6 minute read

Livro proibido pela Justiça sobre nazismo é vendido em Campos

Next Article
Douglas Mattos

Douglas Mattos

A

obra “Minha luta”, de Adolf Hitler, não pode ser comercializada em todo o Estado do Rio desde 2016; proibição divide opiniões

Advertisement

Ocinei Trindade

Em uma livraria de Campos dos Goytacazes a venda de um livro proibido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro causou espanto entre alguns leitores. “Minha luta”, de Adolf Hitler, publicado em 1925, é considerado a “bíblia” do nazismo, ideologia fascista e racista que se espalhou pela Europa, contribuiu para a 2ª Guerra Mundial, e que matou milhões de pessoas, sobretudo judeus, gays, ciganos e eslavos. Em 2016, a venda do livro foi proibida em todo o estado. De acordo com o magistrado Alberto Salomão Junior, da 33ª Vara Criminal da Capital, o descumprimento gera multa de R$ 5 mil. A proibição tem rendido debates. Entre especialistas, há o temor de ressurgimento dos horrores do nazismo, sobretudo no meio de jovens em idade escolar.

Uma professora de uma grande escola pública de Campos, que prefere não se identificar por temer por sua segurança, alertada por uma aluna sobre a disponibilidade do livro para venda no município, procurou a reportagem para denunciar a comercialização do livro de Hitler (Mein Kampf, em alemão) em uma livraria itinerante no Shopping Avenida 28, em Campos. “Não houve nenhuma dificuldade em comprar o livro que custou R$50. Decidi procurar o J3News e ceder o livro como forma de alertar sobre o comércio proibido e os riscos de ideias nazistas se espalharem pela cidade, principalmente com atos e ameaças terroristas nas escolas brasileiras, como temos visto ultimamente”.

A reportagem esteve na livraria do shopping de Campos, e verificou o livro de Hitler na prateleira para venda. A empresa paulista Toque Mágico é a responsável pela rede itinerante que percorre o país. Questionada sobre a proibição do livro no estado do Rio de Janeiro, a vendedora que estava no local, disse desconhecer sobre a decisão judicial, e que cerca de dez livros foram vendidos em Campos. Procurada por telefone, a proprietária da livraria em São Paulo, Mayara Braga, disse que tinha conhecimento sobre a proibição da obra, mas que não vendia “Minha luta”. Fotos com o livro na estante foram enviadas pelo Whatsapp para ela. Logo após, a empresária alegou estar “surpresa” com o fato. Por e-mail, ela enviou a seguinte nota:

“Eu gostaria de expressar minhas sinceras desculpas por ter vendido um livro proibido em minha loja sem meu conhecimento. Eu reconheço que este tipo de venda é ilegal e que eu sou responsável por garantir que todos os produtos em minha loja sejam legais e permitidos. Infelizmente, eu desconhecia que este livro estava em meu acervo de venda, mas entendo que isso não justifica a venda. Eu assumo a responsabilidade pelo meu erro e garanto que estou tomando medidas para evitar que algo semelhante ocorra novamente no futuro. Eu respeito e valorizo a confiança dos meus clientes e, por isso, estou trabalhando para remediar quaisquer danos causados, eu entendo que a confiança dos meus clientes é essencial para manter meu negócio funcionando. Gostaria de assegurar-lhes que estou tomando medidas para garantir que isso não ocorra novamente no futuro. Além disso, estou reforçando minha política de verificação rigorosa dos produtos antes de colocá-los à venda”, escreveu Mayara Braga.

Outro fato que chamou à atenção sobre o livro de Hitler na livraria em Campos foi de parecer ser uma edição clandestina. A obra dividida em dois volumes não possui ISBN. De acordo com a Câmara Brasileira do Livro, o ISBN (International Standard Book Number) é o padrão internacional de numeração de livro que fornece uma espécie de “RG” para publicações. O ISBN é imprescindível para qualquer publicação.

“Considero graves a vendagem e a falta de informações sobre a origem do livro pelo teor nazista”, comentou a denunciante à reportagem. A assessoria de imprensa do TJRJ informou por meio de nota que “sob eventuais descumprimentos, é preciso que as autoridades, autores das ações ou outras instituições comuniquem à Justiça sobre a venda e irregularidades, para que então novas medidas possam ser tomadas”. A delegada titular da 134ª DP em Campos, Natália Patrão, disse que ainda não tinha conhecimento sobre o comércio ilegal do livro, mas que agiria com providências legais cabíveis a partir da notificação da reportagem.

Proibição do livro é debatida

O primeiro volume de “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, foi escrito por ele em 1925 na prisão. A obra apresenta seus ideais nacionalistas, supremacistas e antissemitas (ódio aos judeus). O segundo volume foi escrito em 1926, fora da prisão. Em 1936, Hitler chegou ao poder na Alemanha que aderiu ao totalitarismo extremista e ao militarismo. Em 2015, setenta anos depois do fim da 2ª Guerra Mundial, o livro ganhou domínio público na Alemanha e na Áustria. Desde então, a liberação da obra divide opiniões.

O defensor público e doutor em sociologia política, Tiago Abud, diz que não se pode tolerar a disseminação de ideias contidas no livro. “Trata-se da bíblia do nazismo. Há um equívoco de quem defende que esse livro possa circular. Não há censura, pois censura é a proibição de circulação de obras e de ideias que se coadunam à lei. O livro não se coaduna à lei por incitar o ódio contra as pessoas. Prega o nazismo como algo bom e que deve ser respeitado. Só que essa obra tem um conteúdo que viola direitos humanos. Diante disto, não se pode prestigiar eventual liberdade em circular, em difundir ideias ilícitas. A decisão judicial é absolutamente correta sob o ponto de vista da defesa dos direitos humanos e dos valores que norteiam a base do estado democrático de direito brasileiro. Essa é a primeira observação. Havendo comércio clandestino o fato deve ser noticiado à autoridade policial e ao Ministério Público. Além do crime específico da lei há, ainda, a prática de racismo com a obra”. O advogado e vice-presidente da OAB-Campos, Carlos Alexandre Azevedo Campos, considera o assunto controverso e que precisa ter o debate aprofundado acerca de censura de obras literárias. “Sou realmente contra a censura por uma razão peculiar: para mim, a pior forma de tratar as ideias ruins e odiosas é considerá-las um dogma, retirando-as do espaço público de debate. Mas sei que o nazismo é um caso extremo e em relativa ressurreição”, resume.

O jornalista e professor universitário Vitor Menezes também pondera sobre a obra de Hitler

“Não há dúvida de que se trata de um documento histórico que precisa estar acessível. Realmente, o limite entre acesso ao conhecimento, por mais obscuro que pareça, e propaganda de feitos que são criminosos, inclusive tipificados como tal na nossa legislação, nem sempre é muito nítido. Creio que uma solução interessante foi encontrada pela própria Alemanha, que autorizou a publicação da obra, mas em uma reedição comentada por pesquisadores e contextualizada. Este horror não pode ser esquecido, justamente para ser combatido. Qualquer manifestação que passe disso à publicidade, e da publicidade à ação, como cresceu no Brasil nos últimos anos, devem ser severamente reprimida” diz.

Medo no ambiente escolar

Casos de violência nas escolas brasileiras colocam em alerta autoridades governamentais, policiais e educadores. Crimes ocorridos recentemente em Blumenau, Santa Catarina (quatro crianças mortas e cinco feridas); em São Paulo (uma professora esfaqueada por aluno de 13 anos); e na cidade de Aracruz, Espírito Santo em 2022 (quatro mortos e 12 feridos por adolescente de 16 anos) chocaram o país. Na cidade capixaba, a polícia encontrou na casa do adolescente apreendido, farto material de conteúdo nazista. Em dezembro de 2021, a Polícia Civil do RJ e o Ministério Público prenderam quatro pessoas na Operação Bergon, contra um grupo extremista que fazia apologia ao nazismo e disseminava ódio a negros e judeus em redes sociais. Uma das prisões ocorreu em Campos dos Goytacazes. A pedagoga Denise Tinoco considera que a escola deve ser um local de convivência, tolerância e transformação. “Em uma perspectiva histórica, observa-se que a censura e o impedimento de acesso ao conhecimento, principalmente no que tange à leitura, representam características de regimes políticos ditatoriais, marcados pelo autoritarismo e repressão. Nestes regimes é comum a proibição de circulação de obras literárias, quadros, esculturas, músicas, poemas, pois seguem princípios conservadores e antidemocráticos. Entretanto, nossa história possui capítulos terríveis, macabros e que não podem ser repetidos na contemporaneidade. A promoção do estudo, debate e a análise dos fatos históricos podem auxiliar a construção de novos olhares e de novas posturas contrárias ao crescimento do neonazismo, fascismo, ditaduras, escravidão de pessoas, de regimes oponentes à democracia e ao fortalecimento da cidadania. Minha experiência de quase quatro décadas na educação, me fez entender que proibir por proibir só aguça a curiosidade dos estudantes, podendo colocá-los nas mãos de grupos levianos e perigosos. Precisamos ficar atentos aos sinais e reconhecer a fragilidade das instituições escolares e solicitar ajuda às autoridades”.

Para o psicólogo Renato Chagas, é preciso considerar todo o significado sóciohistórico em relação à obra

“Mein Kampf”

“Isto diz respeito a um recorte da história no qual se percebe nitidamente a inaceitável violência acentuada, ações levianas e banalização da vida. Nesse sentido, atentando-se para a atual configuração social marcada pela objetificação da existência do pensamento distorcido que a vida do ser humano é mais um mero produto capitalista, entendo a decisão judicial como uma forma preventiva de evitar propagação de teorias nazistas que, sem sombra de dúvida, podem influenciar alguns indivíduos vulneráveis psicologicamente a reproduzirem comportamentos hostis” avalia.

Renato Chagas diz ainda que é preciso discutir de forma crítica e reflexiva sobre o acesso do público a outras produções culturais que podem, de certa forma, estimular, influenciar ou incentivar a reprodução de comportamentos nocivos, segundo ele. “O comércio clandestino do livro,

Psicólogo | Renato Chagas lamentavelmente, é quase que inevitável. O mercado está atento a esse consumidor. Vale salientar que não são todos que vão ler para seguir a ideologia, mas apesar disso é preocupante. É imprescindível que os pais acompanhem as leituras dos seus filhos, cultivando um diálogo de orientação e esclarecimento dos limites de acesso a determinadas informações que não são salutares para a construção da sua personalidade”, conclui.

This article is from: