O restolho é um programa extraordinário

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NOV15 www.agrotejo.pt REPORTAGEM

«O Restolho é um programa extraordinário» Isabel Jonet, presidente da Federação Europeia dos Bancos Alimentares Contra a Fome, reconhece na sociedade portuguesa uma bondade que se materializa na ajuda ao próximo e que é ainda mais evidente em tempos de crise. Uma lição em português para uma Europa cujos valores estão postos à prova pela maior crise migratória dos últimos 60 anos.

Nélia Silva geral@comunicland.pt

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| A Assembleia da República declarou 2016 como o Ano Nacional do Combate ao Desperdício Alimentar e propôs ao Governo a criação de um Plano de Ação. Em sua opinião quais devem ser as grandes linhas de ação para que este Plano possa ter sucesso a médio e longo prazo? ISABEL JONET – O desperdício alimentar é algo absolutamente inadmissível, na UE são desperdiçados mais de 100 milhões de toneladas de alimentos. Excedentes gerados na agricultura, na agroindústria, nas cadeias de grande distribuição e nas nossas casas. Bastaria que existisse uma orientação e um incentivo à sua recuperação para que esta quantidade pudesse ser reduzidas. Deve haver uma congregação de esforços também na luta contra o desperdício de recursos humanos, há pessoas e entidades a trabalhar em paralelo em vários projetos, cujas sinergias não são aproveitadas. A iniciativa do Parlamento e o Plano de Ação que propôs ao Governo deve ter isso em atenção. Por outro lado, deve ser feita uma grande campanha de comunicação e sensibilização de toda a Sociedade para este problema que nos deve mobilizar a todos. As estatísticas disponíveis indicam que em Portugal 17% dos alimentos são desperdiçados e que por ano 324.000 toneladas de alimentos acabam no lixo… IJ – Devemos fazer a distinção entre o desperdício, os excedentes e as sobras. AGROTEJO união agrícola do norte do vale do tejo

Na agricultura os excedentes não são exatamente desperdício, quando são canalizados para a alimentação animal ou incorporados como matéria orgânica no solo estão a ser aproveitados, embora não para aquela que é a sua principal função, a alimentação humana. O Banco Alimentar, que faz 25 anos em 2016, luta desde a sua criação contra o desperdício alimentar. Todos os dias se recuperam milhares de toneladas que teriam como destino a destruição, estas são sobras, excedentes, mas também são doações de pessoas que querem oferecer o que têm aos mais carenciados. Duvido que em Portugal existam estatísticas verdadeiras sobre o desperdício alimentar, uma lacuna que deve ser colmatada com o envolvimento das empresas produtoras. Também deveriam ser contabilizados os alimentos doados, é importante quantificar esta realidade e lembrar que há benefícios fiscais para as empresas doadoras. Qual a importância do Programa Restolho no combate ao desperdício alimentar e na erradicação da pobreza? IJ – O Restolho é um programa extraordinário, porque envolve voluntariado, através da bolsa de voluntariado da ENTRAJUDA, e permite recolher alimentos para doação. Por outro lado, o contato com a natureza põe os voluntários de empresas e escolas em contato com o setor primário, tantas vezes desconhecido e até desvalorizado. Trata-se sobretudo de aproximar pessoas que querem ser voluntárias por um dia, do trabalho que está na base de toda a ca-

deia alimentar. Estamos a humanizar estas pessoas, o que se reflete positivamente nas suas relações profissionais, pessoais e com o Mundo. O Programa Restolho devia ser replicado. Ele não teria sido possível sem o envolvimento da equipa da Agrotejo e da Agromais, que desde sempre o acarinhou e lhe deu relevância no âmbito da sua atividade. O Restolho põe em contato duas realidades que em geral não se cruzam, as entidades de solidariedade social e a agricultura. Fale-nos do portal Dar e Receber.pt que possibilita a doação online de produtos agrícolas excedentários. Quantos agricultores estão inscritos? Como funciona para quem quer doar? IJ – É uma pena, mas não teve o sucesso que nós e a CAP gostaríamos que tivesse tido, ou por falta de informação ou de disponibilidade dos agricultores para colocar os seus excedentes ao serviço das instituições de solidariedade. O portal é um facilitador entre os agricultores que têm pequenos excedentes e as instituições da sua zona. Basta criar uma oferta online para que a instituição do seu concelho receba um alerta no email a informar que pode ir recolher frutas ou legumes à exploração do agricultor. A colheita e transporte dos alimentos fica a cargo da instituição. A crise tornou os portugueses mais solidários? IJ – Os portugueses são extraordinários e com a crise, que persiste porque a


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Portugal vai receber 5000 refugiados nos próximos 2 anos. Qual o seu entendimento sobre a forma como a Europa está a conduzir o processo? IJ – Sou presidente da Federação Europeia dos Bancos Alimentares e por isso conheço bem este tema. Apoiámos a criação de dois bancos alimentares na Grécia e amanhã (20 de Outubro) estarei lá para assinalar o que temos feito nos últimos 4 anos. Trata-se da maior crise migratória na Europa desde a 2ª Guerra Mundial, que afeta sobretudo sírios, mas também afegãos, iraquianos, paquistaneses, etc. Nunca como agora fomos tão interpelados a saber onde estão os verdadeiros valores da Europa. Estes povos que nos batem à porta não têm a mesma cultura ou religião que nós europeus e, portanto, apesar da vontade de ajudar, há simultaneamente um receio de que estas pessoas venham ameaçar conquistas civilizacionais. Muitas das posições e decisões que os dirigentes europeus têm tomado refletem este receio.

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NÚMEROS DO BANCO ALIMENTAR CONTRA A FOME

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Bancos Alimentares em Portugal

2.400

Instituições de Solidariedade Social diretamente apoiadas

recuperação económica ainda não chegou às famílias, sobretudo as mais carenciadas, são ainda mais generosos. Os portugueses responderam sempre presente, e menos aqueles com menos

É legítimo acolher refugiados estrangeiros, quando a pobreza em Portugal está a aumentar? IJ – Em Portugal tivemos uma grande experiência com o acolhimento dos retornados, e apesar da maior afinidade que havia com eles, penso que este número de 5.000 pessoas não é excessivo e serão facilmente bem acolhidos na sociedade portuguesa. Basta ver a quantidade de instituições e pessoas que já se disponibilizaram. A integração dos refugiados deve ser feita por via da integração no mercado de trabalho, o que será um desafio face ao nível ainda elevado do desemprego. Mas

420.000

pessoas indiretamente apoiadas

+ 100 toneladas

«Os portugueses são extraordinários e com a crise ainda mais generosos»

de alimentos/dia

40%

alimentos perecíveis ou frescos

22%

dos alimentos recolhidos durante 2 campanhas nacionais nos supermercados

AGROTEJO união agrícola do norte do vale do tejo

recursos nunca deixaram de ajudar com um pacote de leite ou um saco de arroz. É também incrível ver como os portugueses se mobilizaram na ajuda aos refugiados. Há uma bondade presente na sociedade portuguesa que é superior aos egoísmos que podiam ter sido suscitados pela crise.

obviamente que não pode ser posto em causa o apoio que hoje em dia é prestado aos portugueses e residentes em Portugal. Não podemos esquecer que em Portugal há 1 milhão de idosos que vive com menos de 275€/mês e há 2 milhões de pessoas, ou seja 1/5 da população portuguesa, que vive com menos de 420€/mês.


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