Em 73 anos de ofício teatral, o inglês Peter Brook (1925) dirigiu pelo menos três vezes a última peça escrita pelo compatriota William Shakespeare (1564-1616), A tempestade, respectivamente nas décadas de 1950, 1960 e 1990. Em livro recente, Reflexões sobre Shakespeare1, ele dedica um capítulo a Próspero, A qualidade da clemência (título da obra original em inglês publicada em 2013 e traduzida no Brasil três anos depois). Em doze páginas, o personagem é citado dezesseis vezes. Afinal, a pensata versa sobre o duque despachado de seu palácio em Milão e desembarcado numa ilha em nada deserta. Ele carrega consigo a filha, Miranda, então uma criança, e ambos descortinam um mundo novo. E a calhar com a paixão por ciência, por assuntos espirituais e por ocultismo que esse homem sempre buscou nos livros e agora os experimentaria/reconheceria na prática. Nesse referido texto, Caliban é citado três vezes por Brook. Em duas das abordagens o nativo é percebido como um ser deslocado, apesar de estar em seu habitat. Ali Próspero encontra “bruxas, espíritos e, principalmente, Caliban, forças muito violentas”. E, ao cabo da aventura autoritária do ex-duque, o “máximo que ele pode fazer é devolver a ilha a Caliban – que é como um iniciante a seguir seu próprio caminho da existência”. Como sabemos, a versão de Augusto Boal (1931-2009), concluída em 1971, subverte a perspectiva europeia e aproxima a fábula dos processos históricos de países da América Latina e Caribe. A inquietude antropofágica do dramaturgo brasileiro – ele estava exilado na Argentina, perseguido pela ditadura – é notavelmente influenciada pelo poeta e ensaísta cubano Roberto Fernández Retamar (1930), pioneiro no entendimento de Caliban enquanto símbolo das ex-colônias espanholas – e, por extensão portuguesa, inferimos – no livro Caliban: apuentes sobre la cultura em nuestra América, de 19712. Shakespeare concebeu A tempestade em 1611, a partir de relatos de um naufrágio ocorrido nas Ilhas Bermudas, localizadas no Oceano Atlântico, território britânico ultramarino membro da comunidade do Caribe. Ou seja, a geopolítica é premissa no debate a respeito das dominações coloniais, cujos reflexos são prementes neste século XXI considerando-se o rolo compressor dos impérios sobre os povos e culturas originários. Mas também é possível encontrar analogias na literatura, como na lendária obra imaginativa Robinson Crusoé, de 1719, do inglês Daniel Defoe (1660-1731), reinventada dois séculos depois pelo escritor francês Michel Tournier (1924-2016) em Sexta-Feira ou os limbos do Pacífico, de 1967. No posfácio ao livro de Tournier, da lavra do filósofo francês Giles Deleuze (1925-1995), são constatadas duas passagens que ora espelham, ora contrastam em Sexta-Feira a condição de Caliban retratada em comum por Retamar e Boal: o selvagem renomeado, submetido à língua e a dogmas religiosos alheios a sua ancestralidade, porém capaz de reagir com impertinência. Robinson trata-o ora como um escravo que procura integrar à ordem econômica da ilha, pobre simulacro, ora como o detentor 1
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BROOK, Peter. Reflexões sobre Shakespeare. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016. RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban: apuentes sobre la cultura em nuestra América. Cidade do México: Editorial Diógenes, 1971.
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Em cena Daniel Steil
Remar
Contra a
Nausea Valmir Santos*
Revista Cavalo Louco
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