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Galeria Homero Massena
tete rocha
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Ironia e insubmissão aos padrões corporais Almerinda Lopes curadora
O corpo sempre fez parte do imaginário artístico, materializado em diferentes processos, linguagens e materiais, que tanto exaltam suas proporções miméticas ou perfeitas, quanto introduzem simplificações, geometrizações e deformações em suas formas e volumes. Após o término da Segunda Guerra Mundial o corpo liberta-se de sua antiga representação idealizada ou fictícia, tornando-se objeto, suporte, matéria e motor da obra, refletindo a intenção dos artistas de transgredir ou questionar os valores do passado, pleiteando maior autonomia e liberdade criativa. O corpo feminino desnudou-se, desvelou toda a sua complexidade, vulnerabilidade, potencialidades e limitações físicas e biológicas, visando quebrar tabus sexuais e promover reflexões variadas: perversão, violência, medo, frustração, dor, anseios, desejos, sonhos...
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Nessa mesma esteira transita a poética da jovem artista Tete Rocha, como atesta a pesquisa artística realizada por ela ao longo do corrente ano, com o prêmio conquistado no Edital de Seleção de Projetos de Exposições de Artes Visuais 15/2017, da Secretaria de Estado da Cultura. O resultado é exibido nesta sua primeira mostra individual denominada, Ventos em Vênus movem montanhas, constituído por um junto de fotografias de grandes dimensões, de seu próprio corpo, visando questionar os padrões instituídos na contemporaneidade pela publicidade, e pela indústria da beleza e da moda. Algumas dessas imagens fazem parte de uma instalação, que reúne também elementos naturais, objetos manufaturados, uma balança de precisão, fotografias e um vídeo. Na maioria das fotos, a autora manipula, com humor e ironia, e de maneira ousada e corajosa, seu próprio corpo, transformando-o em objeto, protagonista e tema de sua praxe criativa. Ela recorre, ainda, a estruturas diversas para simular nas fotografias algumas situações enfrentadas diariamente pelos corpos fora de padrão. Ao deixar-se fotografar nua e sem recorrer a qualquer processo de manipulação, a artista tanto confirma a “autoapreciação” ou a identificação com seu próprio corpo, como nega o propósito de lidar com questões de beleza, exuberância e sensualidade. Refu-
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ta tais conceitos, questionando as construções sociais e os olhares inquiridores e preconceituosos dirigidos aos corpos que subvertem padrões e derrubam tabus e paradigmas. Se o seu objetivo é discutir determinadas dicotomias a que estão sujeitos os corpos: natureza e cultura, realidade e mito, submissão e emancipação, paradigma e transgressão, liberdade e repressão social, a artista sintetiza a problemática que lhe interessa discutir e a escolha do título de sua primeira individual observando: “É o meu corpo gordo, é o seu corpo magro, são todos os corpos que não encontram esse lugar de conforto e de segurança. É ser força, ser ventania, poder varrer de nós essas montanhas estagnadas da opressão sobre os corpos. É sobre ser montanha e mover de lugar”, que fala a exposição. Almerinda Lopes
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Da vigilância ao alívio: algumas estratégias para a tomada de controle da representação dos corpos femininos Karenn Amorim Pesquisadora
Tendo me identificado como uma pessoa gorda logo na infância, vivi uma vida de privações e regras que, muitas vezes, se contradiziam. Conselhos de familiares e conhecidos sobre como eu não deveria me expor e sobre como eu deveria me vestir de forma que meu corpo imenso passasse sem ser notado. As revistas femininas que davam conselhos sobre como desenvolver o amor próprio e melhorar a autoestima, desde que você não fosse gorda. Para isso haveria uma dieta da moda nas próximas páginas. Ao longo da minha vida, entendi que a constante vigilância social sobre os corpos femininos se intensifica para as mulheres gordas. Somos duplamente vigiadas. Primeiro, por sermos mulheres e, depois, por sermos gordas. Até a minha vida adulta eu não havia conhecido uma única mulher gorda que não buscasse intensamente
mudar sua “condição” de gorda, como se o peso fosse o maior obstáculo para uma vida adulta plena. Também não tive contato com representações de mulheres gordas que não fossem os estereótipos de compulsivas por comida, tristes e infelizes ou as gordas engraçadas que compensavam a sua aparência fazendo piadas. Por isso, a minha primeira reação à exposição Ventos em Vênus movem montanhas foi o choro. Um choro de alívio por, finalmente, conseguir reconhecer a minha experiência de vida no corpo de outra mulher. Foi o alívio pelo entendimento de que mais alguém compartilhava comigo a experiência de viver uma vida inteira dominada pela sensação de não caber no mundo. Não se trata somente de uma identificação física, mas de reconhecer naquelas imagens e objetos as minhas próprias angústias que nunca fui capaz de explicar para outras pessoas. Eu estava diante de uma representação do corpo feminino com a qual eu era capaz de me comunicar. No entanto, não se trata apenas de representar corpos femininos, mas de colocar em discussão os problemas gerados pelas formas tradicionais de representação destes corpos. Nesse sentido, os trabalhos expostos ampliam as possibilidades de debate não só sobre as formas representação dos corpos femininos, mas principalmente, para a afirmação de corpos que tem sua existência ignorada.
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O principal problema das formas de representação do corpo feminino na arte é que, ao longo da história, elas foram construídas a partir do ponto de vista masculino, resultando em imagens de mulheres passíveis de objetificação e fetichização. Por esse motivo, a historiadora francesa Michelle Perrot afirma que “Para modificar as imagens seria necessário tomar posse delas.”. Ou seja, a única solução para reverter o longo processo histórico de produção de imagens objetificadoras dos corpos femininos, seria um cenário ideal em que as mulheres tomariam o controle das representações de seus corpos. Precisamos entender que a ideia de tomada de controle representa um posicionamento afirmativo dentro de um sistema de dominação e controle de nossos corpos. Mas também, é uma forma de nos comunicarmos. Representando a nós mesmas somos capazes de estabelecer relações e processos de autoidentificação com imagens que, de fato, sejam capazes de contemplar a experiência feminina em uma organização sociopolítica estruturalmente patriarcal. Essa tomada de controle das formas de representação do corpo feminino, possibilitaria que nós mulheres fossemos responsáveis pelas formas como somos representadas, resultando em imagens capazes de contemplar nossas experiências de vida e nos unir não mais pela busca de um padrão estético e comportamental ao qual não nos adequamos, mas pelo sentimento de identifica-
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ção umas com as outras. Trabalhos como os expostos aqui, nos ajudam a continuar o processo de criação de imagens que contemplem as nossas verdadeiras experiências. São imagens que afirmam e naturalizam corpos femininos, estabelecendo, assim, formas críticas de representar as mulheres, muito mais próximas da realidade. Apesar do momento do choro – mesmo que de alívio – acredito que essa seja a importância de existirem mulheres artistas criando imagens que representam os corpos femininos. Para que possamos nos identificar e nos comunicar, funcionando como um lembrete de que não estamos sozinhas.
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Proposta Educativa Olhar sobre si é reflexo do outro – primeiro exercício de modelar o corpo político.
Iniciar a pesquisa que resultou em ‘Ventos em Vênus movem montanhas’ foi um passo que me obrigou a fazer algo que neguei por muitos anos: Olhar para o meu próprio corpo. Nunca encarei o espelho de maneira ordinária. Condescendente ou inquiridora, sempre foi um olhar furtivo, com medo do que a demora poderia revelar. Tive que mirar meu corpo em vários exercícios longos de contemplação. Precisei travar embates com objetos-símbolos das minhas angústias pessoais, para, a cada confronto receber de volta o reflexo da batalha que assumi travar contra o padrão estabelecido pelo paradigma social. Entendi que eu não conseguia enxergar o meu corpo sem julgamentos, porque os meus olhos carregavam consigo a memória das inúmeras microrrelações de dominação, de poder e de controle da história da sociedade moderna. Então passei a olhar para o outro. Encontrei a Mulher de Willendorf e a teoria de que a pequena estatueta robusta tenha sido esculpida a partir da auto-observação, uma selfie paleolítica. Me reconheci em seu pequeno corpo gordo. Pensei que quando se olha pelo espelho, o corpo está descolado de si, e se vê através do olhar social. Talvez por isso tenha uma visão tão crítica sobre o corpo refletido.
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Em pequenos grupos – antes deve haver um exercício de confiança – todos devem se olhar e questionar sobre o que os torna diferentes, sobre como gostariam de ser, sobre se achar inadequado e questionar a raiz dessa inadequação. Este grupo deve questionar a variedade de corpos existentes e sua representação ao longo da história, sua representação nas artes, na mídia, na publicidade. Deve ainda imaginar como seria olhar para os próprios corpos com intimidade e recuperar a autonomia dos mesmos. Esta é uma conversa para se ter em grupo. Somos sociedade. Durante este exercício de diálogo, cada indivíduo deve – assim como a Mulher de Willendorf, modelar com argila uma autorrepresentação, sem o uso de espelhos. Para tanto, deve se olhar com proximidade para cada braço, para o peito, cada mama, o quadril, a barriga, coxas e pés. Cada parte do corpo isoladamente, tentando juntar as peças do conjunto. Ao observar a si mesmo sem o uso de um instrumento, o indivíduo pode permitir um olhar mais profundo, porque não vê um corpo distante. Você ganha intimidade com este corpo, que é seu. Que te pertence. E que ainda assim, é social. Este é o primeiro passo de construção do corpo político. Tete Rocha Artista - educadora
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proposta é de que se faça “ Minha um experimento de olhar para si
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e olhar para o outro.
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A força, 2018
Tríptico, fotografia sobre tecido, 2 x 1,35m Colaboração Rodrigo Barreto Páginas 1, 5 e 7
Damas em suspensão, 2018
Objetos de resina e argila e balança de ourives Páginas 8 e 9
Qualquer direção é um caminho, 2018 Díptico, fotografia sobre PS, 70 x 50cm Colaboração Rodrigo Barreto Páginas 8 e 9
Sem título, 2016
Série ‘módulos orgânicos - princípios de libertação da matéria’ Fotografia sobre canvas, 1,68 x 1,15 Tete Rocha e Manuel Vason Página 10 - lado direito
Sem título, 2018
Série ‘módulos orgânicos - princípios de libertação da matéria’ Fotografia sobre canvas, 1,61 x 1,15 Tete Rocha e Rodrigo Barreto Página 10 - lado esquerdo
Sem título, 2014
Série ‘módulos orgânicos - princípios de libertação da matéria’ Fotografia sobre canvas, 1,68 x 1,15 Tete Rocha e Rubiane Maia Página 12
Sem título, 2016
Série ‘módulos orgânicos - princípios de libertação da matéria’ Fotografia sobre canvas, 1,61 x 1,15 Tete Rocha e Manuel Vason Página 13
Compulsão, 2018
Réplica da Vênus de Willendorf em caramelo de açúcar, caixa de acrílico e cadeado Páginas 14 e 17
Autofagia
Vídeo 14’54’’ Coolaboração Rodrigo Barreto Página 19
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GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO Paulo Hartung VICE-GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO César Colnago SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA João Gualberto Moreira Vasconcelos
CURADORIA Almerinda Lopes CONCEPÇÃO Tete Rocha PRODUÇÃO EXECUTIVA
SUBSECRETÁRIO DE ESTADO DE GESTÃO ADMINISTRATIVA Daniele Ocleys Mayara Durães Ricardo Pandolfi COORDENAÇÃO DE ARTES VISUAIS Kyria Oliveira
DESIGN E COMUNICAÇÃO VISUAL Luiza Marinho
COMUNICAÇÃO Carol Veiga Danilo Ferraz Erika Piskac Nalin Yuri Braian De Maria
fotos da exposição rodrigo barreto
MEDIAÇÃO Aline da Conceição Pereira Antonio Carlos Oliveira da Fonseca Priscila Nunes Dias FUNCIONÁRIOS Bianca Alves Balbino Santos Evani Rezende da Silva Rafane Fernanda de Andrade Tânia Maria de Jesus Costa
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MONTAGEM Danilo Porphírio de Almeida Tete Rocha ILUMINAÇÃO Vitor Lorenção COLABORAÇÃO Manuel Vason Rodrigo Barreto Rubiane Maia
Catálogo da exposição Ventos em Vênus movem montanhas, da artista Tete Rocha, realizada de 18 de dezembro de 2018 a 03 de fevereiro de 2019, na Galeria Homero Massena. Projeto contemplado pelo Edital 15/2017 da SECULT ES desenvolvido com recursos do FUNCULTURA.
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realização:
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