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Por Thais Barcellos Fotos Divulgação
As muitas faces do amor materno
FOI-SE O TEMPO EM QUE VALIA O DITADO “MÃE SÓ TEM UMA”, OS ARRANJOS FAMILIARES MODERNOS MOSTRAM QUE AFETO DE MÃE É TAREFA NÃO APENAS DAS MULHERES criação de uma data para celebrar as mães surgiu em virtude do sofrimento de uma norteamericana que, após perder a mãe na guerra civil do seu país, pas sou por um processo depressivo. As amigas mais próximas de Anna M. Jarvis fizeram uma homenagem para a mãe dela e com o sucesso da festa, em 1914, o presidente Thomas Woo drow Wilson oficializou a data. A partir daí, vários países também passaram a aderir a um dia específico no calendário para comemorar o Dia das Mães. Oficializado no Brasil em 1932, o segundo domingo do mês de maio é o dia em que todos os filhos, sejam biológicos, adotivos ou filhos de consideração se preparam para con templar com presentes, abraços e muito cari nho aquela figura, seja mulher ou homem, que lhes dá conforto, amor, afeto e educação. Afinal, o amor materno, como é definido ulti mamente, transcende barreiras de gênero ou mesmo aquelas biológicas. De acordo com a socióloga Mayana Rocha Soares, o amor materno surge de uma cons trução social, não é apenas uma questão bio lógica. “A relação entre mães e filhos é fruto de uma série de dispositivos discursivos, que ao longo da história das sociedades, tecem o que é ser mãe, qual o seu papel e como de verá desempenhálo. E, muito antes disso, tece também o que é ser mulher, o que é ser homem, qual o papel que cada um deles de verá desempenhar na sociedade, e, sobre tudo, qual a relação de poder exercida nesta fronteira”. No entanto, com o avanço da sociedade, esses papéis prédeterminados passam a ser questionados e ampliase o entendimento de que ser mãe está muito além de apenas gerar uma criança. “O que é ser mãe? Só mulheres podem ser mães? O que é ser mulher? Quais discursos instauram ‘essa verdade’ e quais os seus objetivos? Essas e tantas outras questões nos ajudam a projetar outros caminhos para além do biológico”, acrescenta a socióloga.
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Um exemplo histórico de que a biologia não necessariamente define o ser ou não ser uma “boa mãe” é que nos séculos XVII e mea dos do século XVIII, as mães, principalmente aquelas de famílias ricas, entregavam seus fi lhos para serem criados por amas de leite, pois não havia o costume ou a valorização das chamadas tarefas maternas, como a ama mentação. Com a Revolução Industrial e, posterior mente, os movimentos feministas, as mulhe res passaram a sair de casa para ir trabalhar e tiveram de dividir o dever de cuidar dos fi lhos, a chamada maternagem, com babás ou mesmo com os próprios maridos. A partir daí, surgem alguns dos vários tipos possíveis de amor materno. Os pais passam a ter mais convivência com os filhos, já que não eram apenas eles os responsáveis pela manuten ção financeira da casa, e as avós também exercem o seu papel de mães, quando as mu lheres deixam os filhos sob o cuidado delas. Muitas mulheres, independente de terem ou não filhos biológicos, também re correm à adoção de crianças, o que cria uma nova forma de arranjo familiar, provando que o amor de uma mãe pode ser transferido de uma mulher para uma criança independente de ela ter nascido da sua barriga ou não. “O fato de uma mulher ter um filho não significa, necessariamente, que o vínculo uterino irá trazer um vínculo de afetividade e de mater nidade já inscritos nesta relação”, explica Mayana. MATERNAGEM MODERNA Na contemporaneidade, a maternidade passa por transformações e coloca em xeque uma visão mais tradicional e conservadora de sociedade e daquilo que se espera da ativi dade materna. Neste contexto atual, inclu sive, ganham visibilidade as famílias forma das por casais homoafetivos e todas as outras formas de arranjos familiares. Pais solteiros, por exemplo, que criam os filhos sozinhos, podem exercer os cuidados de maternagem com uma criança. De acordo com o psicólogo Rodrigo Bas tos Melo, a relação mãefilho é de vital impor tância para o desenvolvimento físico, cognitivo e psicológico da criança, mas esse amor ma terno pode ser dado por outras pessoas do convívio afetivo dela, não necessariamente apenas pela mãe biológica. “O amor materno proporciona um sentido especial para a vida do filho. Nesta atitude de entrega, o vínculo que existe entre os dois é reforçador para a criança, proporcionandolhe segurança emo cional para interagir com o mundo”. A figura materna é a referência que toda criança tem desde o seu nascimento e através
dela a criança pode conhecer todo o escopo de emoções e sensações novas que surgem ao longo de sua experiência de vida. “A mãe tam bém é um referencial importante de compor tamento, tanto pelo próprio exemplo quanto através das orientações que transmite. Pode mos dizer que os primeiros reflexos do mundo são traduzidos para a criança por sua mãe ou por quem desempenhe esse papel. Sendo esse um momento sensível do desenvolvi mento humano. O apreendido nessa relação serve como base e guia para todo o aprendi zado posterior”, destaca Rodrigo. AMOR X OBRIGAÇÃO SOCIAL Algumas mulheres não manifestam o chamado amor maternal e, segundo o psicó logo, a questão varia de acordo com cada pessoa. Pode ser fruto tanto da história de vida pessoal quanto de fatores sociais ou mesmo biológicos. “Se a mãe tiver uma his tória de abandono parental, por exemplo, pode desenvolver um trauma que, quando não trabalhado, pode levála a repetir o mesmo gesto de abandono com seus filhos. Outros casos podem ocorrer devido à gravi
dez indesejada ou mesmo por uma falta de maturidade afetiva da mulher. Quadros como a depressão também podem justificar a au sência desse sentimento”, enumera. É importante lembrar que nenhuma mu lher é obrigada a ser mãe, pois a maternidade deve ser vivenciada como uma alegria e não como uma cobrança social. Cuidar e colabo rar para o desenvolvimento saudável de um indivíduo é uma das experiências mais espe ciais que uma pessoa pode viver e ninguém tem a possibilidade de vivenciar isso de ma neira mais íntima se for pressionada. Pesquisas apontam que receber carinho e cuidados de maternagem podem influen ciar bastante no desenvolvimento físico e psí quico das crianças, daí a importância de esse afeto ser dado de forma espontânea e não apenas por convenção social. “O amor materno é a coluna de susten tação dos filhos para toda a vida. O filho que se sente amado e protegido tornase forte para enfrentar as diversas circunstâncias da vida, das boas coisas e, sobretudo, das situa ções adversas”, explica o pediatra Antônio Carlos Santana.
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Amores possíveis CONHEÇA HISTÓRIAS DE FAMÍLIAS QUE VIVENCIAM A MATERNAGEM DE VÁRIAS FORMAS
Mãe do coração Amor e equilíbrio na equação Mãe de Juliana e Rodrigo, de 9 anos e 14 anos, respectivamente, a empresária e contadora Ionara Cabral sabe como manter o equilíbrio necessário para a criação dos filhos. “Não diria que é algo simples, mas entendo que amor e disciplina no processo de educação são inseparáveis e proporcionam o equilíbrio que as crianças necessitam. O amor leva à confiança e ao respeito necessários para a transmissão e o consequente entendimento dos ensinamentos”, afirma. Para criar um menino e uma menina com idades tão diferentes, a mãe tem o dever de entender e saber lidar com cada um. “Com minha filha caçula, brinco de bonecas e converso sobre assuntos que dizem respeito ao universo feminino. Já com meu filho, um adolescente, as conversas seguem por outro caminho, de acordo com a fase que ele está passando, em que surgem outros interesses e conflitos. Mas carinho, afeto e a necessária intervenção disciplinar tem de sobra para os dois”. Postura e bons ensinamentos, como tolerância, honestidade, integridade, senso de justiça e independência são a base dos princípios que Ionara e o marido passam aos filhos, para que eles desde cedo aprendam a ter responsabilidade. “O amor de mãe não é amor de amiga, de colega, de irmã, mas é o amor de quem tem a responsabilidade indelegável de cuidar e de formar pessoas de bem. Mãe é mãe! É simples e complexo ao mesmo tempo”, acredita. Para Ionara, o amor materno é essencial para o desenvolvimento de uma criança. “Não há maternidade sem amor! É ele o sentimento que leva a total dedicação, ao afeto, aos cuidados necessários, à preocupação constante e à busca pelo melhor para os meus filhos”.
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A dona de casa Célia Passos e seu esposo César fizeram inúmeras tentativas de ter um filho biológico, incluindo quatro inseminações artificiais e três fertilizações in vitro. De acordo com Célia, um amigo do casal ouviu certa vez na igreja que frequentavam uma pregação que dizia: “Não perguntem o porquê para Deus, mas sim o para quê”. Essas palavras fizeram com que o casal procurasse o Juizado da Infância para iniciarem o processo para a habilitação da adoção, que teve início em 2010. “Sempre sonhei em ser mãe, e no dia 29 de junho de 2011, o juizado nos ligou perguntando se estávamos interessados em conhecer um casal de gêmeos que se encontrava no abrigo e que tinha 11 meses de vida. No dia seguinte, fomos visitálos e foi amor à primeira vista. Durante essa visita, senti que eles precisavam de mim e eu deles. Já na terceira visita sentia que nasceram para mim. E foi então que eu e o meu marido decidimos adotálos”. A relação de amor entre a dona de casa e os gêmeos Daniel e Daniela é muito forte e, para ela, o elo que os une é maravilhoso. “Eu sinto no olhar deles que me amam e são felizes por se sentirem amados”. Para Célia, o amor pelos filhos funciona como um porto seguro: “Acredito que o amor é essencial na vida de qualquer pessoa, ainda mais na vida de uma criança”.
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Capa Um pai que também é mãe
As duas mães de Lucca
O vendedor Hebertt Henrique, 27 anos, exerce ao mesmo tempo a função de pai e mãe, como muitos pais modernos. Ele se tornou pai sem planejamento e no começo foi difícil se adaptar a essa nova vida. Quando conheceu a mãe do seu filho, ele não imaginava que ela fosse engravidar. “Nós saíamos e na primeira vez nos descuidamos. Mas demorou um tempo para descobrirmos que ela estava grávida”. Ao descobrir que seria pai, Hebertt ficou assustado por não se sentir preparado para tamanha responsabilidade. Mas após ouvir conselhos de sua própria mãe, o vendedor resolveu assumir o filho e manteve essa postura mesmo após o relacionamento com a mãe do menino ter acabado. “Eu sou apaixonado por ele, não deixo faltar nada, cuido dele, saio, e ele me ama, e não pode me ver que fica louco, querendo vir para o meu colo”. Com a ajuda de sua mãe, o vendedor Hebertt cria o filho, Seyd Kenan, que está atualmente com sete meses e afirma que não deixará mais que ele saia dos seus cuidados. Apesar das dificuldades de criar um filho sozinho e exercer a função materna, Hebertt abdicou da vida de baladas e festas que tinha antes do nascimento do filho para passar mais tempo com ele e participar ativamente da sua educação. “Não acho perda de tempo deixar de ir a festas no domingo para cuidar do meu bebê, não tem explicação o que sinto quando estou brincando com ele”.
O desejo de ter um filho e formar uma família fez com que a arquiteta Milena Pires e a psicóloga Érica Matos, juntas há 16 anos, buscassem através do método de inseminação artificial uma maneira de realizar esse sonho. Depois de inúmeras tentativas sem sucesso, em Salvador, Érica e Milena receberam uma indicação de uma clínica em São Paulo, onde Érica conseguiu engravidar de Lucca, que atualmente está com 7 anos. “Lucca foi uma criança muito desejada, desde quando ele estava na barriga já contávamos a história dele e estabelecemos que a verdade fosse dita sempre para ele ou para qualquer pessoa que perguntasse a respeito”, pontua a arquiteta. Lucca sabe que é uma criança que possui duas mães e a sinceridade é um dos pilares mais importantes na sua família. “A nossa relação com ele é na base da transparência, a gente não mente para ele. Respondemos tudo que ele pergunta, de uma maneira adequada para a idade”, explica Milena. Apesar de já ter passado por situações de questionamento sobre ter duas mães, Lucca encara a sua realidade de forma tranquila e natural. Para Milena, a criança não precisa necessariamente de um pai, e sim de alguém que saiba exercer essa função. “Fizemos terapia para descobrir em qual função cada uma se encaixaria melhor e concluímos que isso não existe de forma bem definida. Às vezes sou mais tranquila, às vezes Érica dá mais disciplina, mas o que é mais bem definido na relação entre eu, Érica e Lucca é a parte do lazer, que eu por gostar muito de esportes, insiro ele nas atividades, levo para jogar tênis, para correr, jogar videogame, ir ao teatro”. Para as duas mães de Lucca, o amor materno é um sentimento muito forte e necessário para o desenvolvimento de toda criança. “A gente tenta fortalecer a nossa história, para que ele se fortaleça como indivíduo, pois a história da gente é dele também”, acredita Milena.
Ser avó é ser mãe duas vezes A aposentada Vanda Maria Pinheiro Pinto cria seu neto Abraão Moraes desde os seis meses de vida, pois a sua nora não tinha condições de criálo. “Desde pequeno ele vinha passar um tempo comigo e então eu passei a me apegar cada vez mais e comecei a criálo”. Avós geralmente mimam e fazem as vontades do neto, mas, no caso de dona Vanda, ela teve de aprender a dosar os mimos com a criação e a educação que uma mãe dá para o filho. “Eu crio ele como um filho, dando limite quando necessário e carinho à vontade”. Toda avó é considerada pelo senso comum como uma segunda mãe e para muitas, criar um neto é orgulho e um enorme sentimento de felicidade. Para dona Vanda, existe ainda um sentimento de gratidão com a vida, pelo privilégio de ver seu netinho crescer: “Coisas que não fizemos com os filhos, fazemos com os netos e até parece que a gente ama mais os netos”.
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