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Memórias Paulistanas: Hugo Gio- vanelli e a Vila Maria Zélia
A Vila Maria Zélia na década de 1920. Foto: reprodução
Hugo Giovanelli em frente à casa onde nasceu e viveu até se casar, em 1947. Foto: Thais Matarazzo, 2007
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memóriaS PauliStanaS
huGo Giovanelli e a vila maria zélia (2015)
inStaGram@matarazzothaiS
Esta crônica é dedicada a uma vila encravada no coração do bairro do Belenzinho, zona leste de São Paulo, e a um filho ilustre do local, o artista plástico Hugo Giovanelli.
Conheci o sr. Hugo em 2002, nas reuniões dos colecionadores de discos do Pátio do Colégio, no centro da cidade. Dentre todos aqueles amigos, o sr. Hugo foi com quem encerrei mais afinidade, talvez por sua sensibilidade de artista e sua gentileza, algo raro nos dias de hoje.
Ele foi o maior fã que conheci da cantora e atriz Carmen Miranda. Também era apaixonado pela cidade do Rio de Janeiro.
Em sua casa, na Rua Catumbi, 791, além do seu ateliê, quase todos os ambientes eram decorados com seus quadros, vasos, porcelanas, e também de retratos da “Pequena Notável”.
Como eu sou fã da cantora Aurora Miranda, irmã de Carmen, conversávamos muito sobre o tema.
Um homem ligado às artes, amante do cinema e da boa música, tornou-se notável como pintor, tendo realizado inúmeras exposições em São Paulo, Rio e Minas Gerais. Seu acervo pessoal sobre Carmen Miranda era fora de série. Costumava se corresponder com colecionadores da Inglaterra, Estados Unidos e Austrália para troca de informações e materiais.
Um dia, ele me convidou para conhecer a Vila Maria Zélia, que eu só conhecia de nome. Idealizada pelo industrial Jorge Street e projetada pelo arquiteto francês Pedaurrieux, a Vila foi inspirada nas cidades europeias do século XX. A construção decorreu de 1911 a 1916. Foi à primeira vila operária da Pauliceia. O batismo é um tributo a jovem Maria Zélia, filha de Street que faleceu aos 16 anos, vítima da tuberculose.
Com dificuldades financeiras, Street vendeu a Vila para a família Scarpa, que a renomeou como Vila Scarpa. Em 1929, passou para as mãos da família Guinle, que passou
a denominá-la com o nome antigo. Em 1969, passou a ser administrada pelo INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), atual INSS, e as casas foram vendidas aos trabalhadores e antigos residentes.
Tudo isso, o sr. Hugo me contou no pequeno percurso da sua casa na Rua Catumbi até a entrada da Vila, nas esquinas das ruas Cachoeira e Prazeres.
“Essa Vila é uma sombra do que já foi!”, advertiu o sr. Hugo. Mas para mim foi uma surpresa descobrir aquele recanto – que mais parece uma cidade do interior. Logo, ao passar a cancela de entrada, que restringe o acesso de veículos, vêse um jardim com grandes figueiras bravas e vários bancos de madeira. No centro está a capela de São José, ladeada por dois grandes armazéns: o da direita em total ruína e o da esquerda em melhores condições. Em seguida, tem quatro ruas com as antigas casas dos operários da Companhia de Tecidos Juta. A Vila funcionava como uma extensão da fábrica: havia um rígido controle e normas disciplinares impostas pela direção. Tudo era autossuficiente.
Mesmo vendo toda aquela decadência da Vila, percebi que alguma beleza pairava no ar.
Quis saber do sr. Hugo como a família dele foi morar na Vila?
Ele disse que a notoriedade do local era enorme. Não demorou muito para essa fama ecoasse pelas cidades do interior de São Paulo, como em Amparo, onde residia o seu pai, o italiano Hugo Giovanelli (1869 – 1956), sapateiro de profissão, seus sete filhos e muitos outros parentes.
Hugo ficara viúvo cedo, sua esposa Getulia Baleze morreu no parto do sétimo filho. Viúvo e com tantas crianças para criar, Hugo não demorou e contraiu matrimônio com Olga Franco (1888 – 1960)[2]. Em Amparo nasceram os três primeiros filhos do casal, Hugo (1912 – 1995), Maria Getulina (1914 – 1999) e Zulmira (1917 - ?).
Como a situação financeira da família não era das melhores, Hugo decidiu rumar para a capital paulista. Provavelmente recebeu a proposta de algum parente que já estava em São Paulo. A família Giovanelli deve ter chegado à Vila por volta de 1918 ou 1919.
O patriarca trabalhava como sapateiro, em casa. Vários dos seus filhos, ainda pequenos, foram trabalhar na Fábrica da Juta. Ali nasceram os últimos dois filhos do casal: Hugo (19/3/1922) e Rute (1924).
Os irmãos Rute e Hugo, 1933 Hugo e dois amigos, 1945
Hugo (com o rosto circulado) na formatura do curso primário, Escola de Meninos da Vila Maria Zélia, em 1935. Fotos: acervo Hugo Giovanelli
“A Vila era uma maravilha! Tínhamos tudo lá dentro: açougue, mercearia, salão de baile, escola primária, coreto, farmácia, restaurante, posto de saúde, campo de futebol e muitas outras coisas. Era proibido fazer qualquer reforma nas casas, até para trocar uma lâmpada era preciso pedir autorização para o sr. João, uma espécie de fiscal da Vila. Minha mãe foi uma heroína criou doze filhos e meu pai ‘bateu muita sola’ para criar todos nós”, afirmou o sr. Hugo – “Eu nasci em 19 de março de 1922 aqui na Vila. Minha mãe contava que eram três da tarde quando a procissão passou na porta da nossa casa e eu nasci. Por isso, sou devoto de São José e adoro o horário das três da tarde. Fui batizado na capela da Vila. Eu sou o caçula dos homens e a minha irmã Rute, dois anos mais nova do que eu, a caçula das mulheres”.
Hugo cresceu brincando com os meninos da vizinhança. Teve uma vida humilde no seio de uma família trabalhadora. Nos fundos da Vila corria o rio Tietê – hoje com o leito retificado –, onde a criançada costumava tomar banho nos dias de verão.
Estudou no “Grupo Escolar Maria Zélia” para meninos, na Rua 3. As classes eram separadas, o prédio que abrigava a escola das meninas ficava em frente a dos garotos. Foi sua professora d. Lucília de Carvalho. Hugo era sempre escolhido para cantar nas festas escolares. Sua família não tinha rádio e nem vitrola, o menino ficava escutando da janela de um vizinho os discos de Carmen Miranda, de quem se tornou fã ainda na infância.
Não foi trabalhar na fábrica como seus irmãos: na parte da manhã estudava e a tarde entregava as encomendas de sapatos para a freguesia do pai.
Havia seis tipos de casas na Vila, que variavam de acordo com os tamanhos dos terrenos, de 75 a 110 m². As famílias costumavam sentar à noite nas portas e conversavam sem receio de violência. As crianças brincavam na rua sem o menor problema. Os inconvenientes eram as traquinagens da molecada. Muitos imigrantes moravam por ali: italianos, portugueses, espanhóis e outras etnias.
“Com o tempo a Vila foi modificando de ambiente. Depois que a Fábrica de Pneus Goodyear comprou uma das partes da Vila, as ruas 1 e 2, o campo de futebol, a creche e o jardim de infância fo-
ram demolidos e começou o desencanto da minha amada Vila Maria Zélia. Muitos moradores foram embora e outros morreram de tristeza. Em seguida, a Prefeitura mudou os nomes das ruas e ninguém se lembrou de homenagear meu pai, que foi o sapateiro oficial da Vila. A casa que nós moramos está toda reformada. Aliás, depois que as casas deixaram de pertencer a fábrica e foram vendidas para os moradores, todos fizeram reformas nos imóveis. Poucas foram as que restaram intactas. A Vila perdeu a beleza de outrora. O Mazzaropi filmou aqui, em 1966, o filme ‘O Corintiano’. Foi um sucesso! Naquela época, a Vila estava conservada. Nos anos 1980, os dois grupos escolares já estavam desativados e hoje resta isso que você vê: as ruínas e a tristeza da decadência”, recordou o artista.
Em 1931, a fábrica foi desativada e o edifício tornou-se um presídio político do Estado Novo. Em 1938, a Vila e a fábrica foram vendidas para a Goodyear. Devido ao avanço de degradação de alguns prédios históricos, o CONDEPHAAT e CONPRESP optaram pelo tombamento do local em 1992, em três níveis, abarcando o traçado urbano, o conjunto de 117 casas e vegetação de porte arbóreo.
Em maio de 1947, aos 25 anos, casou-se com Dalila Medici, moradora do Belenzinho. A família Medici tinha uma olaria muito famosa no bairro. Depois do enlace, o sr. Hugo deixou a Vila e passou a morar na Rua Catumbi.
Trabalhou como técnico têxtil em várias fábricas de tecelagem. Depois, ingressou no Departamento de Obras Públicas do Estado de São Paulo, onde esteve até se aposentar como chefe de seção da administração geral. Lá conheceu o arquiteto Antônio Garcia, que se tornou um grande amigo e muito auxiliou no trabalho.
Muitas de suas vivências, Giovanelli registrou no livro Memórias, hoje, amanhã e sempre: Hugo de A a Z, publicado em 1989, pela editora Ateniense. A capa da obra traz uma foto da capela de São José, padroeiro da Vila.
Estive várias vezes na Vila, sempre em companhia do sr. Hugo. Gostava muito de visitá-lo, das nossas conversas, meu amigo parecia uma “enciclopédia”. Sua esposa, d. Dalila sempre me recebia com o maior carinho e nunca ia embora sem saborear um chá com bolo.
Dalila Medici no dia do seu casamento com Hugo Giovanelli, maio/1947 Joana Campanella, Dalila Medici, Hugo e a filha Sandra, em 1957. Ao fundo, vemos, o rio Tietê que passava no fundo da Vila Maria Zélia
Afonsina Medici [3] era tia de d. Dalila, irmã do seu pai. Tornouse tia por afinidade do sr. Hugo, ele a adorava. Era uma pessoa muito alegre e independente, nascida no Belenzinho em 1896, contava que quando criança brincava nos túmulos do cemitério do bairro, que existia onde hoje está o Largo São José.
A família Medici era formada por imigrantes italianos, no final do século 19 moraram na região da Consolação. Depois transferiram-se para o Belezinho. Foram proprietários de uma olaria, famosa na região, que localizava-se num grande terreno entre as ruas Catumbi e Marcos Arruda, abrangendo parte da atual Praça General Humberto de Souza Mello. Essa área do Belenzinho era conhecida no final do século 19, como Várzea do Catumbi, rica em argila retirada das margens do rio Tietê, aliás, do Belenzinho até à Penha existiram inúmeras olarias, geralmente, de propriedade de italianos e portugueses imigrantes. A maior parte do escoamento da produção de tijolos e telhas era feita pela via fluvial.
Após décadas o negócio cessou e o terreno foi retalhado entre os herdeiros.
Afonsina chegou a se casar com um italiano, conforme desejo da família, mas ficou viúva logo. Foi trabalhar numa fábrica de vidros e cristais. Um dia foi mandada embora, com o dinheiro ajuntado, mudou-se para o Rio de Janeiro e lá viveu durante décadas. Morou em uma casinha de porta e janela para a rua na lendária Praça Onze. Em seguida, foi admitida como funcionária na Escola de Enfermeiras d. Anna Nery, na Cidade Nova. Morava no alojamento do colégio. Era uma funcionária querida pelas alunas e procurava ajudá-las como possível.
Hugo visitava a tia Afonsina duas vezes por ano, ela muito a auxiliou. Já idosa, mudou-se para São Paulo e foi residir com o sr. Hugo e d. Dalila, falecendo aos 81 anos, em 1978. O ateliê de pintura do sr. Hugo foi batizado com o nome da sua saudosa tia.
Entre os anos de 2008 e 2009, a Associação Cultural Vila Maria Zélia procurou o sr. Hugo para organizar uma exposição sobre a Carmen Miranda e também prestar uma homenagem ao “artista da Vila”, como o chamavam.
A exposição ficou muito bonita e foi o último trabalho de Giovanelli. Juntamente com alguns
amigos colecionadores do Pátio do Colégio, organizamos um grupo para animar a exposição. Realizamos vários saraus. Foi um período feliz. Posteriormente, o sr. Hugo se retirou de qualquer atividade artística, já não saia de casa: estava com 88 anos e sua saúde estava fragilizada.
Em 8 de março de 2011, alguns dias antes do seu natalício, o sr. Hugo veio a falecer. Soube da notícia pela sua filha Sueli. Foi muito triste. Ele pediu para ser cremado, a família atendeu o pedido. As cinzas foram jogadas em uma cerimônia entre as figueiras do jardim da Vila Maria Zélia. Infelizmente, não consegui comparecer. Na ocasião, não consegui folga no trabalho.
Dois anos depois, faleceu d. Dalila.
Do grande acervo do sr. Hugo, ganhei das filhas, algumas peças e livros, diversos itens foram divididos pelos familiares e amigos colecionadores.
Voltei a Vila Maria Zélia recentemente para uma festa do Jornal do Brás em 2015. Impossível foi não conter a emoção e não se lembrar destes saudosos amigos.
[1] Anteriormente publicada na antologia Vamos falar do Belenzinho? (2017), Editora Matarazzo.
[2] Olga era imigrante italiana. Filha de Francesco e Maria Franco, estabelecidos em Amparo, SP. O casal também veio residir na Vila Maria Zélia. O sr. Hugo sempre contava que a nonna Maria Franco havia ficado cega quando velhinha. Costumava usar um avental com vários bolsos. Aos domingos dava um tostão para os netos comprarem um doce. Quando percebia que a criança retirava uma moeda de outro bolso, pedia para colocar na sua mão e se fosse uma moeda maior e mais valiosa, Maria mesma trocava por um tostão.
[3]Afonsina Medici (São Paulo, SP, 3/8/1896 – São Paulo, SP, 21/5/1978). Filha de Paulo Medici e Filomena Bulana (ou Buffana). Foi enterrada no jazido da família no Cemitério da Quarta Parada, no Belenzinho.