Bedwyn 06 ligeiramente perigoso

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Ligeiramente Perigoso Mary Balogh Série Bedwyn 06 Disponibilização em Esp: Passionate Novels Tradução: YGMR Revisão: Edith Revisão Final: Adriana Amaral Formatação: Adriana e Gisa PROJETO REVISORAS TRADUÇÕES A chegada de Wulfric Bedwyn, duque de Bewcastle, à festa campestre por excelência da temporada revolucionou a alta sociedade londrina. É um dos homens mais ricos, poderosos e influentes do reino; também o mais altivo e distante. Mas nesta deslumbrante tarde de verão, enquanto todos os olhares femininos convergem no bonito e arrogante duque, ele só parece ter olhos para a única mulher que de maneira nenhuma quereria chamar sua atenção. Christine Derrick é imune a seu título e sua posição. Desconcerta-o e o exaspera com sua vitalidade e suas francas maneiras. É absolutamente inadequada para ele. Mas a seu lado, pela primeira vez em sua vida, Wulfric sente que esse muro de frieza e reserva que levantou entre ele e o mundo se começa a rachar.

Nota da revisora Edith: Adorei a historia. É deliciosa. Ri muito. O duque é arrogante, altivo, frio e cumpre todas as regras da etiqueta. A mocinha é oposto de tudo isso. Mete-se em situações embaraçosas das quais é a primeira a rir (eu junto). E tem uma luz própria e alegria que conquista a todos e faz com que o duque se apaixone por ela contra sua vontade. E vice-versa. Os demais Bedwing que foram os personagens principais das demais historias agora aparecem como casamenteiros! Nota da Revisora Adriana: O livro começa como todos os outros clássicos que já li, mas depois fica interessante e o tempo todo a gente quer saber o que a mocinha vai aprontar em seguida e qual será a reação do Conde. Também passei boa parte do livro na expectativa de que a mocinha o fizesse rir, pois ele é um homem muito sério que não dá um risinho sequer.


Capítulo 1

-Tem as faces excessivamente ruborizadas, Christine - comentou sua mãe ao mesmo tempo que soltava a costura em seu regaço para lhe dar uma olhada mais conscienciosa - E os olhos muito brilhantes. Espero que não tenha febre. Christine pôs-se a rir. -Venho do vicariato estive jogando com os meninos – explicou - Alexander queria jogar críquete, mas em seguida nos demos conta de que Marianne não podia apanhar a bola e de que Robin era incapaz de golpeá-la. Assim decidimos brincar de esconderijo, embora para Alexander parecesse um jogo muito infantil para seus nove anos e tive que pedir que ficasse no lugar de sua pobre tia com seus vinte e nove anos! Estávamos nos divertindo muito até que Charles apareceu na janela de seu escritório e nos perguntou, embora suponha que foi uma pergunta retórica, como ia terminar o sermão com toda a animação que estávamos fazendo. Nesse momento Hazel saiu com os copos de limonada e levou aos meninos ao salão para que se entretivessem lendo em silêncio, pobrezinhos, e eu decidi voltar para casa. -Parece-me que não usava o chapéu enquanto brincava de correr de um lado para outro com os meninos - comentou sua irmã mais velha, Eleanor, que afastou o olhar do livro para observá-la por cima de seus óculos - Não está ruborizada, tomou muito sol! -Como quer que meta a cabeça nos esconderijos mais diminutos se o chapéu dobrar seu tamanho? - perguntou-lhe, lançando mão da lógica ao mesmo tempo que começava a colocar em um vaso com água que tinha pego da cozinha as flores que tinha cortado do jardim antes de entrar em casa. - Saiba que tem o cabelo feito um desastre - acrescentou Eleanor. -Isso tem conserto fácil - assegurou, passando-as mãos pelos curtos cachos com uma gargalhada - Já está feito. Melhor assim? Eleanor meneou a cabeça antes de devolver o olhar ao livro, embora o fez com um sorriso. Um agradável silêncio reinou de novo na sala enquanto as três mulheres se concentravam em suas respectivas tarefas. Entretanto, o silêncio emoldurado pelos gorjeios dos pássaros e o zumbido de dos insetos que revoavam do outro lado das janelas abertas foi interrompido ao cabo de uns minutos pelo som da carruagem que entrou na rua em direção a Hyacinth Cottage. Havia mais de um cavalo e o som das rodas indicava que era um veículo grande. Devia ser a carruagem do Schofield Park, a casa senhoril do barão Renable situada a uns três quilômetros de distância, supôs de forma distraída. Nenhuma das três prestou muita atenção à chegada do veículo. Lady Renable costumava utilizá-la quando ia fazer visitas, embora uma calesa poderia lhe haver servido para o mesmo propósito, ou um simples cavalo... ou seus dois pés. Eleanor costumava descrever à dama como frívola e ostentosa, e não era uma descrição desacertada. Embora também fosse amiga de Christine. Nesse momento compreenderam que os cavalos estavam diminuindo o passo. As rodas da carruagem chiaram em protesto. As três ergueram a vista ao mesmo tempo. - Acho que lady Renable vem de visita - disse Eleanor, com a vista cravada ao outro


lado da janela por cima dos óculos-. A que se deverá a honra? Estava esperando-a, Christine? -Sabia que tinha que ter trocado de touca depois do almoço - disse sua mãe Christine, por favor, diga à senhora Skinner que traga correndo uma limpa. -A que leva está muito bem, mamãe - assegurou enquanto dava os últimos toques ao ramo, depois do que atravessou a sala para lhe dar um beijo na fronte. - Além disso, só é Melanie. -Já sei que é lady Renable. Essa é minha preocupação - replicou exasperada sua mãe, embora não voltasse a insistir com o assunto da touca. Não era preciso ser um gênio para adivinhar o motivo da visita de Melanie. -Suponho que deve perguntar por que recusou o convite - aventurou Eleanor, pondo voz a seus próprios pensamentos - E suponho que não aceitará um não por resposta agora que veio em pessoa. Pobre Christine. Quer correr para se esconder em seu dormitório enquanto eu lhe digo que contraíste um leve caso de varíola? Pôs-se a rir ao escutar o comentário de sua irmã enquanto sua mãe levava as mãos à cabeça. Era por sabido todos que Melanie jamais aceitava um não por resposta. Independentemente do que Christine estivesse fazendo, e sempre estava ocupada com algo - dava aulas na escola da aldeia vários dias na semana; visitava e ajudava aos anciões e aos doentes, a alguma mulher que acabava de dar a luz, a algum menino doente ou a algum amigo; e brincava e entretinha a seus sobrinhos no vicariato, já que em sua opinião Charles e Hazel os desatendiam com a desculpa de que os meninos não necessitavam que um adulto brincasse com eles quando se tinham uns aos outros para entreter-se. Melanie se empenhava em acreditar que devia estar adoecendo à espera de que aparecesse alguém com alguma diversão frívola. Claro que Melanie era sua amiga e adorava estar com ela e com seus filhos. Mas dentro de limites. Estava segura de que sua visita não tinha outro fim que repetir em pessoa o convite que lhe tinha levado por escrito um criado no dia anterior. E que ela tinha recusado também por escrito, com tato, mas com firmeza. Em realidade tinha recusado um mês antes, a primeira vez que a convidou. A carruagem se deteve em frente à grade do jardim com tal animação que todos os habitantes do povoado deveriam ser conscientes de que a baronesa teve o trabalho de fazer uma visita à senhora Thompson e a suas filhas, residentes do Hyacinth Cottage. Escutou-se o ruído da portinhola ao abrir-se e fechar-se, logo antes que alguém possivelmente o cocheiro, pois era impossível que fosse Melanie. Suspirou e se sentou à mesa. Sua mãe soltou a costura e endireitou a touca. E Eleanor retornou a seu livro com um sorriso malicioso. Melanie, lady Renable, entrou na sala ao cabo de um instante, deixando atrás à senhora Skinner, a governanta, que tinha aberto a porta para anunciá-la. Como era habitual, estava muito arrumada para a vida rural. Seu traje era tão elegante como se fosse dar um passeio pelo Hyde Park, em Londres. Seu rígido chapéu estava coroado por coloridas e espigadas plumas cuja finalidade era o de fazê-la parecer mais alta. Usava luvas e uma de suas mãos segurava uns óculos. Sua pessoa parecia ocupar a metade da sala. Sorriu-lhe com jovial afeto.


-Ah, aqui está, Christine! - exclamou Melanie com grande eloquência depois das saudações e das cortesias de rigor com as outras duas damas. -Aqui estou – reiterou - Como está, Melanie? Sente-se na poltrona. Entretanto, sua senhoria declinou o convite com um gesto dos óculos. -Não tenho tempo - declarou - Estou segura de que sofrerei uma de minhas enxaquecas antes que acabe o dia. Você tem culpa que esta visita seja necessária, Christine. O convite deveria ter bastado que eu saiba. Não entendo por que teve que me enviar essa carta recusando-o. Bertie assegura que é um excesso de falsa modéstia e diz que deveria lhe dar uma lição e não vir em pessoa para fazê-la repensar. O pobre não diz mais que tolices... Mas eu sei por que recusou o convite, e estou aqui para dizer que você também faz tolices de vez em quando. É porque Basil e Hermione estão convidados, não é? E porque discutiu com eles depois da morte de Oscar. Mas isso faz muito tempo, e você tem o mesmo direito que eles a vir a minha casa. Afinal, Oscar era o irmão de Basil e, embora o pobre já não esteja conosco, você é e continuará sendo parte de nossa família porque esteve casada com ele. Christine, não seja teimosa. Nem peque de falsa modéstia. Recorda que é a viúva do irmão de um visconde! Era impossível que o esquecesse, embora as vezes gostaria de fazê-lo. Tinha estado casada durante sete anos com Oscar Derrick, irmão de Basil, visconde de Elrick, e primo de lady Renable. Conheceram-se em Schofield Park, na primeira festa que Melanie organizou justo depois de casar-se com Bertie, o barão Renable. Para ela, filha de um cavalheiro com recursos tão escassos que se viu obrigado a complementar seus ganhos com o salário de professor de aldeia, tinha sido um matrimônio muito vantajoso. E nesse momento Melanie queria que fosse a outra de suas festas. -É uma cortesia de sua parte me convidar. - disse Christine - Mas de verdade preferiria não ir. -Tolices! - Melanie levou os óculos aos olhos e inspecionou a sala com eles, um gesto afetado que os fazia muita graça a Eleanor e a ela; e como não, sua irmã não demorou para esconder a cabeça atrás do livro para ocultar seu sorriso. -É claro que quer ir. Quem não ia querer? Minha mãe virá, acompanhada de Audrey e sir Lewis Wiseman. Em realidade, a festa é a celebração de seu compromisso, embora já tenha sido anunciado. Inclusive convencemos ao Héctor, embora já sabe que é impossível convencê-lo a se divertir a menos que alguém o obrigue. - Justin também irá? -perguntou. Audrey era a irmã mais nova de Melanie; Héctor e Justin, seus irmãos. Justin era seu amigo desde que os apresentaram naquela mais que longínqua primeira festa. Virtualmente tinha sido seu único amigo durante os últimos anos de seu matrimônio. -É obvio que sim. - respondeu Melanie - Acaso não vai onde quer? Sobre tudo a minha casa, que é onde passa mais tempo. Sempre se deu muito bem com minha família. Mas além deles, esperamos a um sem-fim de convidados distintos e agradáveis, e planejamos um bom número de atividades para que todo mundo se divirta, manhã, tarde e noite. Tem que vir. Insisto. -Melanie - protestou Christine-, de verdade que... -Deveria ir, Christine - interrompeu-a sua mãe - e divertir-se. Sempre está pendente das necessidades de outros.


-Já pode ir dizendo que sim - acrescentou Eleanor, que preferiu voltar a olhar por cima dos óculos em lugar de tirá-los até que a visita partisse e pudesse retornar à leitura Sabe muito bem que lady Renable não irá até que a tenha convencido. Olhou com exasperação a sua irmã, que se limitou a enfrentar seu olhar com expressão risonha. Por que ninguém convidava a Eleanor a esse tipo de acontecimentos? Entretanto, conhecia a resposta. Em seus trinta e quatro anos, sua irmã tinha aceitado com placidez seu papel como solteirona e como apoio de sua mãe, e não parecia sentir a juventude perdida. Porque esse foi o caminho que escolheu de forma deliberada quando o único pretendente que teve morreu em combate na Península muitos anos atrás, e depois nenhum homem tinha conseguido fazê-la mudar de opinião, embora alguns o tenham tentado. -Tem muita razão, senhorita Thompson - replicou Melanie, e as plumas de seu chapéu se inclinaram quando assentiu com a cabeça - Porque aconteceu algo terrível. como sempre, Héctor se deixou levar por seu caráter impulsivo. Héctor Magnus, visconde de Mowbury, era um erudito que vivia virtualmente afastado do mundo. Era impossível imaginá-lo fazendo algo impulsivo. Melanie começou a golpear a mesa com os dedos. -O pobre não sabe como comportar-se - afirmou- teve a temeridade de convidar a um amigo à festa, lhe assegurando que era eu quem o convidava. E teve a amabilidade de me informar desta mudança de planos há apenas dois dias; muito tarde para encontrar a uma dama que emparelhe o número de convidados. Ah! Por fim entendia. Seu convite tinha chegado no dia anterior pela manhã, um dia depois que Melanie descobrisse a catástrofe que se abatia sobre seu mundo. -Tem que vir – repetiu - Querida Christine, não pode se negar. Seria uma desgraça impensável ver-me obrigada a fazer uma festa com um número ímpar de convidados. Você não o permitiria, não é? Muito menos quando minha salvação está em suas mãos. -Seria muito embaraçoso, na verdade - reconheceu sua mãe - Sobre tudo quando Christine não tem nada especial para fazer durante as próximas duas semanas. -Mamãe! - protestou. Os olhos da Eleanor seguiam olhando-a com expressão risonha por cima dos óculos. Suspirou com força. Estava decidida a manter-se firme. Nove anos antes tinha entrado para formar parte da alta sociedade graças a seu matrimônio. Naquela época a ideia lhe tinha sido maravilhosa. Além de estar enamoradíssima de Oscar, a possibilidade de formar parte dos círculos sociais mais deliciosos a tinha deslumbrado por completo. E durante alguns anos tudo tinha ido bem tanto em seu casamento como na alta sociedade. Depois tudo começou a ir ladeira abaixo. Tudo. Ainda se sentia aturdida e doída quando o recordava. Enfim, assegurou-se de manter tudo enterrado no fundo de sua mente a fim de conservar a prudência e recuperar o ânimo, e nesse momento não necessitava de nenhum aviso do passado. Não queria ver Basil nem Hermione nem em pintura. Entretanto, era incapaz de ficar de braços cruzados quando alguém estava em apuros. E Melanie parecia necessitar de verdade de sua ajuda, porque a fama de anfitriã meticulosa era seu maior orgulho. Além disso, por cima, eram amigas. -O que lhe parece se continuar aqui em casa, mas ir a uma festa em alguma ou outra


ocasião? - sugeriu com uma nota esperançada na voz. -Mas Bertie teria que ordenar que preparassem a carruagem todas as noites para trazê-la e que a recolhessem pela manhã - disse Melanie. - Seria um aborrecimento, Christine. -Poderia ir caminhando - assinalou. -E chegar com a bainha do vestido poeirenta ou enlameada, as faces ruborizadas e o cabelo alvoroçado? – perguntou - Para isso, melhor não ir. Tem que ficar dormindo conosco. E não há mais o que falar. Os convidados chegarão depois de amanhã. Enviarlhe-ei a carruagem cedo para que possa se instalar comodamente. Compreendeu que o momento para negar com firmeza já tinha passado. Ao que parecia, estava condenada a ir a uma das festas campestres de Melanie. Pelo amor de Deus! Se não tinha nada que vestir nem dinheiro para comprar um guarda-roupa novo! Claro que, de qualquer forma, tampouco havia algum lugar onde comprar um guardaroupa novo em oitenta quilômetros ao redor. Melanie acabava de retornar de Londres, onde tinha passado a temporada social atuando como madrinha da estreia de sua irmã e sua apresentação à rainha. Todos seus convidados, salvo ela acabavam de retornar da capital e levariam consigo seus melhores trajes e suas deliciosas maneiras. Aquilo era um pesadelo. -Muito bem – disse - Irei. Melanie esqueceu sua dignidade o suficiente para rebaixar-se a sorrir de orelha a orelha, antes de lhe golpear o braço com os óculos. -Sabia que o faria – afirmou - Embora teria gostado que não me tivesse feito perder todo este tempo para vir convencê-la. Tenho um sem-fim de coisas que fazer. Me dá vontade de estrangular ao Héctor. De todos os cavalheiros que poderia haver convidado, teve que escolher ao único capaz de converter uma festa em um não viver para a anfitriã. E para cúmulo me avisa de sua chegada com alguns dias de antecipação! -O príncipe do Gales? - aventurou Christine, rindo entre dentes. -Não acredito que alguém deseje tê-lo em sua casa - respondeu Melanie - embora suponha que seria um logro contar com ele. Mais ou menos como acontece com meu convidado, que não é outro senão o duque de Bewcastle. Arqueou as sobrancelhas ao escutá-la. Conhecia o duque de ouvir falar, mas jamais o tinham apresentado. Era incrivelmente poderoso e arrogante e também frio como um bloco de gelo, segundo os rumores. Compreendia o nervosismo de Melanie. E tinha escolhido a ela para fazer par com o número de convidados? A ideia lhe pareceu hilariante até que compreendeu que a presença do duque era uma razão mais para ficar em casa. Claro que já era muito tarde. -Ai, Deus! - exclamou sua mãe, que parecia muito impressionada. -Sim - concordou Melanie com os lábios apertados ao mesmo tempo que suas plumas se balançavam - Mas não tem por que preocupar-se, Christine. Há um bom número de cavalheiros que lhe serão muito agradáveis e que estarão encantadíssimos em procurar sua companhia. Sempre tem esse efeito nos homens, sabe? Apesar de seus anos. Eu mesma estaria morta de ciúmes se não estivesse tão apegada ao Bertie, embora fique tão intolerável cada vez que organizo uma festa. Não para de grunhir, de queixar-se e de insinuar que divertir-se não lhe interessa o mínimo. De qualquer forma, suponho que


não terá que cruzar nenhuma palavra com sua excelência se não quiser. Sua arrogância e sua reserva são conhecidas, e possivelmente nem sequer chegue a reparar em você. -Prometo que não tropeçarei em seus pés – replicou - porque me manterei bem longe dele. Os lábios da Eleanor voltaram a esboçar outro sorriso quando a olhou. Entretanto, pensou, o problema era que talvez acontecesse o que tanto desejava evitar: tropeçar nele. Ou melhor, tropeçaria consigo mesma quando passasse em frente ao duque enquanto levava nas mãos uma bandeja com gelatina ou uma jarra de limonada. Estaria muito mais contente ficando em casa, mas já não podia fazer nada. Tinha aceitado ficar em Schofield Park durante duas semanas. -Agora que o número de convidados volta a ser par - disse Melanie - tentarei perdoar ao Héctor. Esta será a melhor festa campestre de todos os tempos. Com certeza será o assunto de conversa em todos os salões londrinos na próxima temporada, vou converteme na inveja de todas as anfitriãs inglesas e aqueles que não estão convidados procurarão com esforço um convite o ano que vem. O duque de Bewcastle nunca sai de Londres a menos que seja a uma de suas propriedades. Não consigo entender como Héctor conseguiu convencê-lo a vir. Talvez lhe tenham chegado rumores de como são deliciosas minhas festas. Ou talvez... Não obstante, ela tinha deixado de escutá-la. As seguintes duas semanas estavam destinadas a ser algo menos agradável. E para cúmulo estava o agravante da presença do duque de Bewcastle como convidado, coisa que a faria sentir-se envergonhada. Em vão, é obvio, já que tal como Melanie acabava de afirmar, era improvável que percebesse sua presença, do mesmo modo que não se perceberia se pisasse em uma lombriga. Como detestava sentir-se envergonhada! Nunca o tinha feito até uns anos depois de suas bodas, quando se transformou de repente na protagonista dos falatórios das pessoas, depois de enviuvar se prometeu que jamais voltaria a ficar nessa situação, que jamais abandonaria os limites de seu reduzido mundo. Claro que os anos não passavam em vão. Estava a ponto de completar os trinta, era a velhice! Ninguém esperaria que se unisse aos jovens para pular alegremente. Podia fazer parte do grupo de adultos dignos. Podia acomodar-se em sua cadeira e observar os acontecimentos em lugar de participar deles. De fato, inclusive poderia ser muito divertido. - Quer tomar uma xícara de chá com biscoitos, lady Renable? -perguntou sua mãe. -Não tenho tempo, senhora Thompson - respondeu Melanie - Os convidados chegam depois de amanhã e ainda restam mil e um detalhes que atender. A vida de uma baronesa não é tão glamorosa como parece, asseguro. Tenho que partir. Despediu-se com um elegante gesto da cabeça, embora desse um beijo na face e um carinhoso apertão no braço, e saiu da sala agitando os óculos, um revoou de plumas e saias. Sua mãe já estava de pé. -Temos que subir a seu quarto agora mesmo, Christine – disse - para ver se terá que limpar, remendar ou adornar sua roupa. Pelo amor de Deus, o duque de Bewcastle ! Além disso o visconde de Mowbury, sua mãe e visconde de Elrick com sua esposa! E de lorde e lady Renable, é obvio. Subiu correndo a escada em frente de sua mãe para ver se, por algum milagre,


tinham aparecido de repente em seu armário dez ou doze vestidos elegantes e na moda desde que se vestira essa manhã. Wulfric Bedwyn, duque de Bewcastle, estava sentado atrás da enorme escrivaninha de carvalho da magnífica e bem sortida biblioteca de sua residência londrina, Bedwyn House. Arrumou-se para a noite com muito esmero e elegância, embora não tivesse jantado com nenhum convidado nem havia ninguém presente nesse momento. O tampo de couro de sua escrivaninha estava vazio, salvo pelo mata-borrão, várias penas recémafiadas e o tinteiro com seu plugue de prata. Não tinha nada que fazer, pois sempre se assegurava de concluir os assuntos de negócios durante o dia, e já era de noite. Poderia ter saído de fato, ainda podia fazê-lo. Tinha vários convites entre os que escolher, embora a temporada tivesse concluído e a maioria de seus pares partira a Brighton ou a suas respectivas propriedades no campo para passar o verão. Entretanto, nunca tinha gostado das reuniões sociais a menos que sua presença fosse requerida por um motivo muito concreto. Poderia ter passado a noite no White"S, embora o clube não estaria muito concorrido nessa época do ano, era um bom lugar onde procurar companhia agradável e conversa. Não obstante, tinha passado muito tempo em seus distintos clubes ao longo da última semana mais ou menos, desde que o Parlamento fechara suas portas. Nenhum membro de sua família estava na cidade. Lorde Aidan Bedwyn, o irmão com o que tinha menos diferença de idade e seu legítimo herdeiro, nem sequer tinha posto um pé em Londres nessa primavera, ficou no Oxfordshire com sua esposa, Eve, devido ao nascimento de seu primogênito, que tinha sido uma menina. Depois de três anos de casamento tinha sido um acontecimento muito celebrado e esperado. O batismo tinha sido em maio e ele mesmo tinha assistido, embora só ficou com eles alguns dias. Lorde Rannulf Bedwyn, o terceiro dos Bedwyn por ordem de nascimento, estava no Leicestershire com Judith e seus dois filhos, um menino e uma menina. Desde a morte de sua avó, momento no que herdou a propriedade, tomava suas obrigações como latifundiário com mais seriedade que nunca. Freyja, uma de suas irmãs, estava na Cornualha com o marquês do Hallmere, seu marido, que nesse ano tinha descuidado de suas obrigações parlamentares e tampouco tinha pisado na capital. Freyja estava grávida de novo. Seu primeiro filho nasceu a princípios do ano anterior e ao que parecia os dois desejavam uma menina nessa ocasião. Lorde Alleyne Bedwyn estava no campo com sua esposa, Rachel, e suas gêmeas, que nasceram no verão anterior. Estavam muito preocupados com a saúde do barão Weston, o tio de Rachel, com quem viviam, e não queriam deixá-lo sozinho. O coração voltava a lhe dar problemas. Morgan, a caçula da família, estava em Kent. Ela e seu marido, o conde de Rosthorn, tinham passado umas semanas na cidade, mas o clima de Londres não tinha sido muito bom para seu filho, de modo que Morgan o tinha levado de volta para casa. Rosthorn tinha passado a primavera viajando entre Londres e o campo até que o Parlamento fechara suas portas, momento no qual partira sem perda de tempo. Não voltaria a repetir a experiência jamais, tinha-lhe assegurado antes de partir. No futuro, se sua esposa e seus filhos não podiam acompanhá-lo, ficaria em casa, e que se aborrecesse o Parlamento. "Seus filhos", havia dito. Em plural. O que


certamente queria dizer que Morgan também estava grávida. Era muito gratificante, concluiu enquanto segurava uma das penas e a acariciava com o indicador e o polegar, ver que seus irmãos estavam felizmente casados. Suas obrigações no referente a eles tinham sido concluídas de forma satisfatória. Entretanto, Bedwyn House estava vazia sem eles. Morgan nem sequer se alojou com ele durante as semanas que tinha estado na cidade. Talvez fosse essa conclusão que o tinha levado a tomar uma decisão impulsiva, coisa incomum nele, poucos dias antes. Tinha aceito um convite verbal de parte de lady Renable para participar da festa campestre que a dama faria em Schofield Park, em Gloucestershire. Jamais ia a festas campestres. Era incapaz de imaginar uma forma mais insípida de passar duas semanas. Claro que Mowbury lhe tinha assegurado que a companhia seria excepcional e a conversa, inteligente, e que poderiam pescar. De qualquer forma, duas semanas rodeado pelas mesmas pessoas, por muito afáveis que estas fossem, poderiam acabar com a paciência de qualquer um. Reclinou-se na poltrona e apoiou os cotovelos nos braços, depois do que uniu as mãos pelas pontas dos dedos e cravou o olhar à frente, sentia falta da Rose mais do que se atrevia a admitir. A que fora sua amante durante mais de dez anos tinha morrido em fevereiro. Um resfriado inofensivo na aparência, embora ele insistisse em chamar a seu médico pessoal para que a atendesse. Apesar de tal atenção, acabou convertendo-se em uma inflamação dos pulmões, e o único que o médico pôde fazer foi lhe evitar as dores na medida do possível. Sua morte tinha sido um duro golpe. Esteve ao seu lado no último momento, assim com durante a prática totalidade de sua enfermidade. E se sentia exatamente como se tivesse enviuvado. Rose e ele tinham desfrutado de uma relação muito agradável. Durante os meses do ano quando residia na cidade, encarregava-se de que ela estivesse alojada com todos os luxos e comodidades, e quando partia para Lindsey Hall, ela ia à casa de seu pai, um ferreiro, onde sua condição de amante rica de um duque lhe dava certa fama e um considerável respeito. Sempre que estava em Londres costumava passar as noites com ela. A sua não tinha sido uma relação apaixonada (a paixão era algo alheio a ele) e tampouco tinham desfrutado de uma amizade especialmente íntima, pois seus interesses e sua educação eram muito diferentes. Não obstante, tinham tido um agradável companheirismo. Estava seguro de que para ela também tinha sido uma relação satisfatória. Se não fosse assim, o teria notado ao longo dos dez anos de sua relação. Sempre se tinha alegrado de não ter tido nenhum filho com ela. Embora os teria mantido se tivessem nascido, lhe teria sido incômodo ter filhos bastardos. Sua morte tinha deixado um enorme vazio em sua vida. Sentia falta dela. Tinha levado uma existência celibatária desde fevereiro, mas não sabia como podia substituí-la. Tampouco estava seguro de querer fazê-lo. Ao menos, no momento. Rose tinha sabido agradá-lo e satisfazê-lo. E ele tinha sabido agradá-la e satisfazê-la, mas estaria disposto a amoldar-se a outra pessoa? Aos trinta e cinco anos se sentia como um ancião. Nesse momento apoiou o queixo na ponta dos dedos. Tinha trinta e cinco anos. Tinha completado suas obrigações como duque de Bewcastle ao pé da letra, e isso


porque nunca tinha querido o título, apesar de havê-lo herdado aos dezessete anos. Todas as obrigações salvo a de casar-se e engendrar filhos e herdeiros. Muitos anos antes tinha estado a ponto de cumprir também essa obrigação, quando era jovem e albergava a esperança de que a felicidade pessoal e as obrigações pudessem vir de mãos dadas. Entretanto, na mesma noite escolhida para anunciar o compromisso, sua futura esposa pôs em marcha um elaborado plano a fim de livrar-se de um matrimônio que lhe era repugnante, já que tinha muito medo (dele e de seu próprio pai) para dizer a verdade. Como um duque ia escolher uma mulher como sua duquesa e esperar que a união lhe trouxesse felicidade pessoal? Quem ia casar-se com um duque pela pessoa, não pelo título? De uma amante era fácil desfazer-se. De uma esposa, não. Daí que a pequena rebelião que se permitiu desde aquele assunto com lady Marianne Bonner não fosse outra que a de permanecer solteiro. E satisfazer suas necessidades com Rose, a quem conheceu e fez sua amante menos de dois meses depois daquela desastrosa noite. Mas Rose estava morta e enterrada graças a sua generosidade em uma igreja próxima à forja de seu pai. O duque de Bewcastle tinha deixado à vizinhança boquiaberta com sua presença no funeral. Por que demônios tinha aceito ir a Schofield Park com Mowbury? Porque não queria voltar sozinho a Lindsey Hall, mas ao mesmo tempo tampouco suportava a ideia de ficar em Londres? Uma razão de pouco peso, embora Mowbury fora muito inteligente e um grande conversador, e lhe tivesse assegurado que o resto dos convidados cumpriria a mesma premissa. De qualquer forma, teria sido melhor passar o verão inspecionando suas diversas propriedades na Inglaterra e Gales, e talvez ficando uns dias com cada um de seus irmãos enquanto viajava de uma a outra. Não, o último não teria sido boa ideia. Todos eles tinham as próprias vidas. Cônjuges e filhos. Todos eram felizes. Sim, assim achava. Eram felizes de verdade. Todos eles. E se alegrava muitíssimo. O duque de Bewcastle, completamente a sós com seu esplendor e poder pessoal, e rodeado pela magnificência da mansão londrina que habitava, continuou olhando ao vazio enquanto batia as pontas dos dedos no queixo.


Capítulo 2

A carruagem do barão Renable chegou bastante cedo essa manhã para recolher Christine e levá-la a Schofield Park. Melanie, com aspecto agitado, aceitou contente que a ajudasse com os preparativos de última hora. Christine passou pelo quarto que lhe tinham atribuído, um aposento do tamanho de uma caixa de sapatos situado na parte posterior da mansão entre duas lareiras, que por sua vez bloqueavam a vista da janela e só lhe permitiam ver um trecho da horta para agarrar seu boné, arrumar o cabelo e colocar sua escassa bagagem. Depois subiu ao quarto infantil para saudar os meninos, e passou o resto da manhã e parte da tarde de um lado para outro fazendo diversos recados. Teria estado fazendo-o todo o dia se Melanie não a tivesse visto no meio da tarde subindo depressa, carregada de toalhas em direção a um dos aposentos de convidados mais luxuosos, e lhe tivesse dado uma reprimenda por seu aspecto. -Tem que se vestir agora mesmo, Christine - disse horrorizada com uma mão sobre o coração - e arrumar o cabelo. Disse-lhe que podia ajudar, não que se deixasse tratar como uma criada. Isso que leva são toalhas? Vá a seu quarto agora mesmo, tola, e comece a se comportar como uma convidada. Menos de meia hora depois, reapareceu no piso inferior vestida decentemente, embora não na moda, com seu segundo melhor vestido de musselina bordada e o cabelo lustroso depois de tê-lo escovado. Detestava com toda sua alma estar nervosa... E ter se deixado apanhar. Poderia estar na metade da lição de geografia na escola e desfrutando lindamente com isso. -Ah, aqui está - disse Melanie quando se reuniu com ela no vestíbulo. Agarrou-lhe uma mão e lhe deu um apertão um tanto doloroso - Vai ser muito divertido, Christine. Espero não me ter esquecido de nada. E também espero não me pôr a vomitar quando vir chegar os convidados. Por que vomito sempre neste tipo de situações? É muito inapropriado. -Como de costume, tudo sairá tão maravilhosamente bem que a declararão a melhor anfitriã do verão - lhe assegurou. -De verdade acredita? - Melanie colocou uma mão sobre o coração como se quisesse refrear seu errático pulsar - Eu gosto como fica de cabelo curto, Christine. Esteve a ponto de me dar um desmaio quando me disse que iria cortá-lo, mas parece mais jovem e bonita, como se alguém tivesse retrocedido o tempo para você... Claro que sempre foi bonita. Não sabe o ciúme que tenho. O que disse Bertie? Entretanto, lorde Renable, que estava a alguns passos delas, limitou-se a pigarrear com uma espécie de grunhido. -Aproxima-se uma carruagem, Mel - disse o barão - Começa a festa. - Olhou a sua esposa como se o contestável estivesse a ponto de invadir Schofield Park para levar todos seus bens terrestres - Sobe a seu quarto para se esconder, Christine. Acho que poderá desfrutar de outra hora de liberdade. Melanie lhe deu uma batidinha no braço com brutalidade e inspirou de forma audível. Deu a sensação de crescer vários centímetros e se transformou na hora em uma anfitriã elegante e aristocrática que jamais na vida tinha experimentado os nervos nem a


necessidade de vomitar em tempos de crise. Embora esteve a ponto de fazê-lo quando baixou a vista de repente e se deu conta de que tinha um copo de limonada ao meio na mão direita. -Que alguém leve isto! - ordenou enquanto olhava a seu redor em busca do criado mais próximo - Pelo amor de Deus! Poderia tê-lo derramado sobre as botas ou sobre o vestido de alguém. -Já o pego eu. - ofereceu-se ela com uma gargalhada enquanto o tirava da mão. - E derramar a bebida sobre alguém é algo típico de mim, não de você, Melanie. Desaparecerei com a limonada para evitar o perigo. Subiu a escada em direção à saleta amarela, onde as convidadas deviam reunir-se com ela. Por alguma razão que só ela conhecia, Melanie sempre mantinha as damas e aos cavalheiros separados até que pudesse recebê-los conjuntamente no salão para tomar o chá, momento no que se inaugurava de forma oficial a festa. Entretanto, deteve-se um momento no patamar, situado justo sobre o vestíbulo, de modo que se podia ver o que havia abaixo se chegava ao corrimão. A carruagem que tinha ouvido Bertie devia estar mais perto do que pensava. Os primeiros convidados já estavam entrando no vestíbulo. Foi incapaz de resistir a dar uma olhada para comprovar se conhecia algum dos recém-chegados. Tratava-se de dois cavalheiros. Um deles, vestido descuidadamente com uma jaqueta marrom amassada e muito grande, calças azul escura com bolsos à altura dos joelhos, botas desgastadas que tinham vivido melhores tempos, uma gravata que parecia atada ao pescoço com pressas e sem ajuda nem de espelho nem de criado, a gola da camisa sem arrumação, e o cabelo alvoroçado como se acabasse de levantar-se da cama, era Héctor Magnus, visconde de Mowbury. -Mel, aqui está! - exclamou com um sorriso em direção a sua irmã, como se tivesse esperado que o recebesse outra pessoa em sua casa - Como está, Bertie? Christine sorriu com afeto, e o teria saudado se não fosse pela presença do outro cavalheiro. Não teria sido mais oposto a Héctor mesmo se tivesse tentado. Era alto, bem formado e muito elegante. Levava uma magnífica jaqueta azul sobre um colete bordado em cinza claro, umas calças cinza escura e umas reluzentes botas de montar rematadas em branco. O nó da gravata era elegante e preciso, sem cair na ostentação. A gola engomada da camisa lhe chegava justo à mandíbula. Ambas roupas eram de um branco antigo. Levava um chapéu de taça na mão. Seu cabelo era escuro e abundante, com um corte delicioso e muito bem penteado. Sob o elegante traje, seu peito e seus ombros pareciam muito largos e poderosos, e em comparação, seus quadris eram muito estreitos. Saltava à vista que essas coxas não necessitavam que o alfaiate preenchesse as calças. Embora não foi seu impressionante aspecto o que a manteve em silêncio e cravada no lugar, espiando-o em lugar de seguir se caminho, mas a segurança de seu porte, a orgulhosa e arrogante inclinação de sua cabeça. Estava claro que se tratava de um homem que dominava seu mundo com facilidade e que exigia obediência imediata de seus subordinados, entre quem se encontrava, é obvio, virtualmente o resto dos mortais... Talvez fosse uma ideia ridícula, embora nem tanto se fosse o conhecido duque de


Bewcastle. Seu aspecto era o que esperava, pelo que conhecia dele. Era um aristocrata dos pés à cabeça. Viu parte de seu rosto quando Melanie e Bertie o saudaram e ele fez uma reverência. Era bonito, apesar da frieza e austeridade de seu atrativo, com um queixo firme, lábios magros, traços marcados e um nariz proeminente, ligeiramente curvado e muito aristocrático. Entretanto, não lhe viu os olhos. Depois de saudar Melanie se moveu até colocar-se quase debaixo dela enquanto que seu amigo conversava com Héctor, de modo que se inclinou ligeiramente sobre o corrimão no preciso instante no qual o duque jogava a cabeça para trás e levantava a vista para ela. Teria se retirado depressa, envergonhada porque a tivesse pilhado espiando, se não a tivessem surpreendido os olhos que tentava ver. Porque pareceram atravessá-la até chegar até sua nuca. Não tinha muito clara sua cor: azul claro?, cinza claro? mas a distância que os separava não era suficiente para livrar-se de seu efeito. Com razão tinha semelhante reputação! Por um breve instante teve a impressão de que o duque de Bewcastle podia ser um homem muito perigoso. O coração lhe desbocou como se a acabassem de descobrir olhando pelo olho da fechadura de um aposento onde se estivessem cometendo atos escandalosos. E nesse momento aconteceu algo extraordinário. O duque lhe piscou um olho. Ou isso lhe pareceu por outro instante muito breve. Não obstante e enquanto abria os olhos como pratos, percebeu que estava esfregando o olho que lhe tinha piscado, e então caiu na conta de que ao inclinar-se sobre o corrimão também tinha inclinado o copo que tinha na mão. Tinha derramado limonada sobre o olho do duque de Bewcastle ! -Ai! – exclamou - Sinto muitíssimo. Em seguida, deu meia volta e subiu a escada tão depressa quanto lhe permitiram as pernas. Que constrangimento mais horroroso! Que estupidez de sua parte! Tinha prometido que não tropeçaria com ele no primeiro dia, mas não tinha ocorrido prometer que não lhe derramaria limonada em um olho. Desejava com toda sua alma que esse incidente não fosse um mau presságio dos dias vindouros. Tinha que recuperar a compostura antes que as damas se reunissem com ela, pensou uma vez que chegou sã e salva a saleta amarela. E devia manter-se bem longe do duque de Bewcastle durante os seguintes treze dias e meio. Claro que isso não seria muito difícil. Certamente nem sequer a reconheceria quando voltasse a vê-la. Além disso, não era a classe de pessoa em que o duque poderia fixar-se em circunstâncias normais. A pesar do acidente com a limonada, o duque de Bewcastle nem sequer significaria um ligeiro perigo para alguém tão insignificante como ela. Além disso, por que deveria afetá-la sua presença? Era um desses homens a quem jamais tentaria impressionar.


Era limonada, percebeu Wulfric na hora. Não obstante, embora a limonada fosse uma bebida refrescante para os que não gostavam do vinho nem de outros licores em dias quentes, não podia dizer-se que fosse um colírio agradável... Não se queixou em voz alta. Os Renable não pareciam haver-se dado conta do incidente, apesar de que a criatura que lhe tinha jogado a limonada da galeria superior tinha sido bastante impertinente para desculpar-se a gritos antes de sair fugindo como um coelho assustado... e tinha feito bem. Os Renable estavam muito ocupados com o Mowbury. Limpou o olho com um lenço e esperou que não estivesse tão irritado como o sentia. De qualquer forma, não era um começo promissor para uma visita de duas semanas. Um criado que trabalhasse para ele não continuaria sendo-o durante muito tempo se espiava aos convidados, derramava-lhes algum líquido em cima, desculpava-se em voz alta e logo saía fugindo. Esperava que fosse um episódio isolado e não um indício da pobre qualidade do serviço doméstico. A criatura nem sequer usava touca. Tinha conseguido ver que tinha o cabelo encaracolado, o rosto redondo e uns olhos enormes embora, evidentemente, não tinha tido a oportunidade de lhe dar uma boa olhada. Fato que não lamentava o mínimo. Desterrou-a de seus pensamentos. Se os Renable eram incapazes de controlar a seus criados, não seria ele quem se preocuparia da má qualidade do serviço. Isso era coisa dos barões. Afinal, ele ia acompanhado por seu criado pessoal para que se encarregasse de suas necessidades pessoais. Ainda tinha a esperança de que a festa campestre em Schofield Park fosse de seu agrado. Mowbury, um homem de uns trinta anos que era um leitor compulsivo e que tinha viajado por todo mundo, sobre tudo a Grécia e Egito, tinha sido um companheiro de viagem muito interessante durante o longo trajeto de Londres. Conheciam-se desde há anos e mantinham uma espécie de amizade. Os Renable o tinham recebido cordialmente. Tinham-lhe atribuído uma suíte espaçosa e elegante orientada para os jardins, arvoredo e canteiros de flores da fachada da mansão. Depois de mudar de roupa e sentar-se em frente ao espelho no closet para que seu criado o barbeasse, desceu à sala de bilhar, o lugar de reunião destinado aos cavalheiros e ali se encontrou com o conde de Kitredge e o visconde de Elrick, que tinham chegado antes que ele. Ambos os cavalheiros eram mais velhos e sempre lhe tinham sido uma companhia amena. Era um sinal prometedor. Mowbury e seu irmão mais novo, Justin Magnus, também estavam no aposento. Nunca se tinha relacionado com o Magnus, mas lhe parecia um jovem bastante agradável. Talvez isso fosse depois de tudo o mais indicado para ele, pensou enquanto se juntava à conversa. Desfrutaria de duas semanas de uma companhia interessante e logo estaria preparado para retornar a Lindsey Hall e passar ali o resto do verão. Afinal, não ia converter-se em um ermitão pelo simples fato de que seus irmãos se casaram e sua amante tivesse morrido. Nesse preciso momento a porta voltou a abrir-se e escutou dois sons extremamente desagradáveis: risinhos femininos e gargalhadas masculinas. As vozes femininas e


masculinas produziam uma alegre gritaria. As damas seguiram seu caminho. Um considerável grupo de cavalheiros entrou na sala de bilhar. E nenhum só deles, estimou, ultrapassava os vinte e cinco anos. E nenhum só deles, concluiu a julgar pelas gargalhadas, e pelo andar, tinha dois dedos de testa. Se não estava muito equivocado, acabava de passar em frente à porta um grupo igualmente numeroso de acompanhantes femininas. Eram as mesmas pessoas, participantes do mercado matrimonial, que enchiam os salões de baile londrinos durante a temporada social. E eram o principal motivo pelo que evitava os ditos eventos a menos que as circunstâncias o obrigassem a ir. Era o resto dos convidados. -Ah, parece que quase todo mundo já chegou - disse um do grupo, um tal sir Lewis Wiseman, um jovem de aspecto simpático a quem conhecia de vista - Um homem não necessita de uma festa de compromisso em sua honra, mas a irmã de Audrey e sua mãe insistiram, assim como Audrey, suponho. Assim aqui estamos. - ruborizou-se e logo pôsse a rir quando seus jovens amigos começaram a lhe dar tapinhas nas costas e o converteram no alvo de várias brincadeiras subidas de tom. Wiseman, recordou muito tarde, acabava de anunciar seu compromisso com a senhorita Magnus, a irmã de lady Renable. A festa era em honra de seu compromisso. E dado que os dois membros do casal eram muito jovens, a maioria dos convidados também o eram. A ideia o horrorizou. Tinham-no convidado com falsos pretextos para pular com infantes de ambos os sexos? Durante duas semanas? Entretanto, não podia culpar a ninguém, salvo a si mesmo, por acreditar em um homem que mal se se relacionava com o mundo exterior. Até tal ponto era isso certo que Mowbury tinha chegado a apresentar-se no White"s com botas díspares. Era muito possível que se esquecera por completo do recente compromisso de sua irmã. Agarrou o cabo de seu monóculo e de forma quase inconsciente adotou sua expressão mais fria e imponente quando os jovens mostraram sua intenção de tratar aos cavalheiros mais velhos e a ele mesmo com alegre camaradagem. Piscou várias vezes. Nesse momento se deu conta de que ainda sofria uma ligeira ardência no olho. A cunhada de Christine, Hermione Derrick, viscondessa do Elrick, foi uma das primeiras damas a chegar. Alta, loira e magra, estava tão elegante e bonita como de costume apesar de ter mais de quarenta anos. Christine, com o coração na boca, levantou-se e lhe sorriu. Teria-lhe dado um beijo na face, mas algo em sua atitude a deteve, de modo que ficou de pé onde estava. -Como está, Hermione? - perguntou. -Christine... - Hermione a saudou com um rígido gesto de cabeça e passou por cima a pergunta - Melanie me disse que estava convidada. -Como estão os meninos? - Os sobrinhos de Oscar já não eram meninos, compreendeu de repente, mas jovens que sem dúvida já teriam saído do ninho para explorar o mundo por si só.


-Cortou o cabelo - comentou Hermione - Que incomum! E com esse comentário a abandonou para conversar com o resto das damas pressentes. Bom, pensou enquanto voltava a sentar-se, ao que parecia sua cunhada não pensava passar por cima de sua presença, mas sim de sua voz. Um começo nada prometedor... ou melhor uma continuação nada prometedora do começo. Hermione, que era filha de um procurador rural, fazia um matrimônio muito mais vantajoso que o seu quando se casou com o visconde de Elrick fazia mais de vinte anos. Acolheu-a no seio da família com os braços abertos e a ajudou a acomodar-se à vida da alta sociedade. Inclusive se encarregou de apresentá-la à rainha. Fizeram-se amigas apesar dos mais de dez anos de idade que as separavam, embora tal amizade se ressentiu durante os últimos anos de seu matrimônio. De qualquer forma, a espantosa briga que tiveram depois da morte de Oscar a pegou de surpresa. No dia posterior ao funeral abandonou Winford Abbey, a casa senhoril do Basil, destroçada, desolada e sem um penny depois de ter comprado uma passagem na carruagem de postas, decidida a retornar a casa, a Hyacinth Cottage, para lamberas feridas e recompor como pudesse os pedaços de sua vida. Não havia tornado a ter notícias de seus cunhados depois... Até esse dia. Esperava fervorosamente que ao menos pudessem ser corteses durante duas semanas. Afinal, ela não tinha feito nada de mau. A viscondessa do Mowbury, a mãe do Melanie, uma mulher baixa e rechonchuda de cabelo grisalho e olhos penetrantes, abraçou-a e lhe disse que se alegrava de voltar a ver seu adorável rosto Audrey também comentou como estava encantada de vê-la antes de ruborizar-se e sorrir de felicidade quando lhe deu o parabéns por seu compromisso. Por sorte, a tensão que tinha existido com a família direta de Oscar jamais afetou à relação que manteve com sua tia e seus primos, que não costumavam passar muito tempo em Londres enquanto ela esteve casada. Lady Chisholm, casada com sir Clive e a quem conhecia de outros tempos, assim como senhora King, a quem também conhecia, saudaram-na com amabilidade. Além disso, havia seis mocinhas vestidas com elegância e opulência, certamente amigas de Audrey. Saltava à vista que se conheciam muito bem, já que se agruparam para rir e conversar fazendo caso omisso do resto das convidadas. Todas elas teriam estado na sala de aula enquanto ela vivia em Londres, pensou. Voltou a sentir-se como uma anciã. E seu segundo melhor vestido de musselina de repente lhe pareceu um fóssil. Era um dos últimos trajes que Oscar lhe tinha dado antes de morrer. Duvidava muito que tivesse chegado sequer a pagá-lo... -O duque de Bewcastle é um dos convidados - anunciou lady Sarah Buchan ao resto de mocinhas em voz bastante alta, com os olhos arregalados e duas rosetas nas faces. Acabava de chegar com seu pai, o conde de Kitredge, e seu irmão, o honorável George Buchan. Não obstante, todos sabiam por que Melanie o tinha ido desvelando aos convidados conforme chegavam a fim de impressioná-los. Ao que parecia, seu aborrecimento com o Héctor por havê-lo convidado tinha desaparecido. -Não o vi nenhuma só vez durante a temporada social - continuou lady Sarah embora esteve todo o tempo em Londres. Diz-se que mal sai, e que só vai à Câmara dos


Lordes e a seus clubes. Mas vai estar aqui. Imaginem isso! - Um só duque e uma horda de damas - comentou Rowena Siddings com expressão maliciosa e um sorriso que deixava à vista suas covinhas - Embora as casadas não contam. E Audrey tampouco porque está comprometida com sir Lewis Wiseman. - Mas ainda assim, continuamos sendo muitas para competir pelas atenções de um só duque. -Mas o duque de Bewcastle é velho, Rowena - assinalou Miriam Dunstan-Lutt - Tem mais de trinta anos. -Mas continua sendo um duque - lhe recordou lady Sarah - assim sua idade não importa absolutamente, Miriam. Meu pai diz que não posso me rebaixar a me casar com um homem que ostente um título inferior ao de conde, embora nesta primavera recebi uma multidão de propostas por parte de cavalheiros perfeitamente aceitáveis para muitas outras. Não seria tão desatinado que me casasse com um duque. -Seria uma façanha conseguir a mão do duque de Bewcastle - acrescentou Beryl Chisholrn - Mas por que temos que lhe conceder a vitória, Sarah? Talvez devamos competir todas por ele, ergueu-se um coro de risinhos. -Todas são umas mocinhas muito bonitas - disse lady Mowbury com afabilidade, levantando a voz para que pudessem escutá-la do outro lado da sala, - e certamente todas casarão o ano que vem ou no seguinte, mas talvez deveriam saber que Bewcastle evitou todos os esforços casamenteiros até o momento. Tanto é assim inclusive as mães mais decididas retrocederam em seu empenho. Eu nem sequer o tive em conta para Audrey. -De qualquer maneira, quem quereria casar-se com ele? - perguntou a aludida com a complacente segurança que lhe outorgava o estar comprometida. - Basta entrar em uma sala para descer a temperatura vários graus. Carece de sentimentos, de sensibilidade e de coração. Sei de uma fonte muito confiável. Lewis diz que quase todos os jovens que frequentam White’s lhe têm medo e que o evitam na medida do possível. Acho que foi muito injusto por parte de meu irmão convidá-lo. Ela era da mesma opinião. Se Héctor não tivesse convidado ao duque, ela não estaria ali sentada nesse preciso instante, a cavalo entre o desconforto e o aborrecimento e certamente que não lhe teria derramado limonada no olho. Sentia-se um pouco afastada das damas mais velhas, que logo formaram um grupo e começaram a conversar, e também das mais jovens, embora como estas se encontrassem mais perto acabou por converter-se em um membro de seu grupo quando desceram a voz e os risinhos tolos continuaram. -Proponho uma aposta - disse lady Sarah baixando a voz. Tinha que ser a mais jovem, pensou. De fato, parecia ter escapado do ala infantil embora devia ter ao menos dezessete anos se tinha sido apresentada em sociedade - A ganhadora será a que consiga que o duque de Bewcastle lhe proponha matrimônio antes de que acabe a festa campestre. -Temo que isso é quase impossível, Sarah -replicou Audrey enquanto as demais continham as gargalhadas - O duque não tem intenção de casar-se. -E nenhuma aposta é atraente se não houver possibilidade de que alguém ganhe acrescentou Harriet King.


-O que propõem que apostemos? -quis saber Sarah, que continuava com as faces acesas e esse brilho malicioso nos olhos, e que não estava disposta a desterrar a ideia de qualquer jeito - Ver quem é capaz de entabular uma conversa com ele? Não, não, isso é muito fácil. Adivinhar quem é a primeira em dançar com ele? Audrey, sua irmã planejou algum baile? O que lhes ocorre? -Ganhará quem é capaz de mantê-lo entretido durante uma hora inteira - sugeriu Audrey - me Acreditem, isso será uma tarefa muito difícil. E a vencedora, se houver alguma, terá ganhado seu prêmio com acréscimo. Tenho a sensação de que uma hora em companhia do duque será como estar uma hora sentada no Pólo Norte. Ergueu-se outro coro de risinhos. Não obstante, Sarah fez caso omisso da advertência e olhou às integrantes do grupo com os olhos brilhantes. A todas salvo a ela, que não formava parte do grupo embora tinha escutado cada palavra. -Que seja uma hora a sós com ele – disse - A ganhadora será primeira em conseguir tal façanha. Quem sabe? Talvez consiga que se apaixone por ela e lhe proponha matrimônio depois de tudo. Não acho tão estranho, na verdade. Houve uma pausa antes dos inevitáveis risinhos. -Quem quer participar? - perguntou lady Sarah. Lady Sarah, Rowena, Miriam, Beryl, sua irmã Penélope e Harriet King aceitaram a provocação, tudo acompanhado de mais risinhos, gritinhos e sorrisos indulgentes por parte das damas de mais idade, que quiseram saber o que lhes fazia tanta graça. -Nada -respondeu Harriet King-. Não é nada, mamãe. Só estamos falando dos cavalheiros que foram convidados. Christine também sorriu. Alguma vez tinha sido tão tola? perguntou-se. Mas sabia que sim, casou-se com Oscar depois de dois meses de o conhecer, simplesmente porque era tão bonito como um deus grego, assim costumavam descrevê-lo e porque se apaixonou até as sobrancelhas de sua atitude e seu encanto. -E você, prima Christine? - perguntou Audrey quando as damas de mais idade deixaram de lhes prestar atenção. As jovens tinham acordado que Audrey fosse o banco; cada uma apostaria um guinéu e o total o levaria a ganhadora. Se ninguém conseguisse o prêmio, os guinéus retornariam às mãos de suas respectivas proprietárias ao cabo das duas semanas. Surpreendida, destacou-se com a mão e arqueou as sobrancelhas. -Eu? Não, nem pensar! - respondeu com uma gargalhada. -Pois não vejo por que não - insistiu Audrey, que inclinou a cabeça e a observou com atenção - Afinal é viúva, não uma mulher casada, e o primo Oscar nos deixou faz dois anos. E não é tão velha. Duvido muito que tenha completado os trinta. As outras mocinhas se voltaram para ela como se fossem uma só para contemplar com receio a alguém que estava tão perto dos trinta. Seu silêncio foi bastante eloquente para dizer que na sua idade não tinha a menor oportunidade de fazer-se com a atenção de um duque durante uma hora. Estava absolutamente de acordo com elas, embora não pela mesma razão. Tanto fazia os vinte e nove anos que tinha que os dezenove. -A verdade é que não acho graça pagar para passar uma hora convertida em um


pedaço de gelo - disse. -Nisso tem razão - concedeu Audrey. -É a filha de um professor de escola rural, não é assim, senhora Derrick? - Perguntou Harriet King com evidente desdém - Estou segura de que lhe dá medo perder a aposta. -Certamente que me dá medo - reconheceu com um sorriso, já que o comentário não requeria resposta - Mas acho que me dá muito mais medo ganhar. Que diabo ia fazer eu com um duque? Produziu-se um momentâneo silêncio antes que voltassem a explodir em risinhos. -Me ocorrem algumas coisas - comentou Miriam Dunstan-Lutt, que se ruborizou por suas atrevidas palavras. -Já está bem - declarou Audrey com firmeza ao mesmo tempo que levantava uma mão para chamar a atenção de todas e comprovava que nenhuma integrante do outro grupo estivesse escutando - Não posso permitir que se exclua da aposta pelo mero fato de que não deseja ganhar, prima Christine. Eu porei seu guineu. De fato, vou apostar por você. Não acham que isto é muito escandaloso? Supõe-se que as damas não devem apostar. -Olhos que não veem, coração que não sente - disse Beryl Chisholm. -Vai perder seus dois guinéus, asseguro - disse Christine a Audrey e pôs-se a rir ao pensar na reação do duque de Bewcastle se chegasse a inteirar-se do que estava acontecendo na saleta amarela. -É possível - concordou Audrey - Mas como espero que ninguém ganhe, recuperarei o dinheiro sem dúvida alguma. É obvio, dado que a aposta consiste em entabular conversa com o duque durante uma hora e não em fazer que proponha matrimônio, poderia participar eu mesma, mas acho que não vou fazê-lo. Sete guinéus não me parecem incentivo suficiente. Além disso, Lewis poderia ficar ciumento, e lhe explicar que tentava ganhar uma aposta não seria uma desculpa apropriada. Em algum lugar do piso de baixo alguém fez soar uma campainha, sinal de que todos os convidados tinham chegado e de que se esperava que se reunissem no salão para tomar o chá. -Bom, conhece o duque de Bewcastle? - perguntou Harriet King a lady Sarah. -Não - admitiu a aludida - mas se é um duque, com certeza tem que ser bonito. -Eu sim o conheço - replicou Harriet ao mesmo tempo que se agarrava a seu braço para sair da saleta com ela, - e em circunstâncias normais não o olharia duas vezes. Mas não posso me arriscar a que ganhe uma viúva, filha de um professor rural, que pode ser que sim ou pode ser que não tenha completado já os trinta, não lhe parece? O par saiu da saleta agarrada pelo braço. Audrey a olhou com uma careta. -Ai, Deus! Temo que já riscaram a linha de combate - lhe disse - Claro que não vai recusar semelhante desafio, não é, Christine? Vai ter que recuperar meu dinheiro. Rowena Siddings a pegou pelo braço enquanto desciam ao salão. -Mas que tolas somos todas - disse a moça - Aceitamos a provocação, senhora Derrick, ou mantemos as distâncias e admiramos ao grande homem de longe? - Acho que eu vou manter as distâncias e rir dele de longe se é tão pretensioso e soberbo como se murmura- respondeu - Não admiro a grandeza carente de consistência. -Que valente é você! - a moça sorriu - Rir do duque de Bewcastle!


Ou dela mesma, pensou, por haver-se deixado arrastar aos segredinhos e as tolices dessas mocinhas quando a única coisa que tinha que ter feito era recusar o convite do Melanie no dia anterior ou dizer não à Audrey uns minutos antes. Entretanto, não podia culpar a ninguém, salvo a si mesma, reconheceu com pesar.


Capítulo 3

O salão já estava cheio de cavalheiros. A festa campestre, ao que parecia, tinha começado de forma oficial. Menos mal. Se não começasse, jamais acabaria. Seria muito cedo para começar a contar os dias que faltavam até sua volta a casa? Perguntou-se Christine. O primeiro homem que viu foi Justin Magnus, o irmão mais novo de Melanie. Sorriulhe e a saudou com a mão do outro extremo do salão. Lady Chisholm estava falando com ele e a dama gostava muito de falar... Devolveu-lhe a saudação e o sorriso. Justin, que era baixinho, quase lhe era menor meia cabeça, magro e de aparência bastante comum, possuía inteligência, uma personalidade encantadora e um grande senso de humor como cartas de apresentação. E sempre se vestia com elegância e bom gosto; não como seu pobre irmão Héctor. Justin se declarou e lhe pediu em matrimônio naquela primeira e longínqua festa. Entretanto, depois de rechaçá-lo e de aceitar Oscar, floresceu entre eles uma amizade que se estreitou com o passar do tempo até tal ponto que durante os dois ou três anos anteriores à morte de seu marido foi seu único amigo. Ou, ao menos, o único a quem podia acudir. Sua família se encontrava longe. Ele foi o único que jamais deu crédito aos terríveis rumores que corriam sobre ela. Nem sequer ao pior de todos, o último. Ele foi o único que saiu em sua defesa, embora Oscar, Basil e Hermione não acreditassem jamais. Ainda o contava entre seus amigos. A seguir viu Basil. A aparência física do visconde de Elrick, um homem de meia estatura e compleição magra, de cabelo espaçado e calvo no alto da cabeça, rosto alongado e feições regulares, que não atraentes, sempre tinha ficado eclipsado por seu irmão mais novo. Basil era mais de dez anos mais velho que Oscar, mas o adorava e sua morte o deixou destroçado. Em lugar de lhe dar as costas, como achava que faria, saudou-a com uma reverência muito formal ao mesmo tempo que ela fazia o mesmo e se dirigia a ele por seu nome de batismo. Em seguida e tal como fizera sua esposa pouco antes, deu a volta para continuar falando com um cavalheiro de meia idade que conforme acreditou recordar era o conde de Kitredge. Não lhe disse nenhuma palavra, afastou-se em busca do canto mais remoto do salão. Já era hora de adotar o papel de satírica espectadora da humanidade, papel que pensava desempenhar durante as duas semanas seguintes. Se tivesse sorte, ninguém se fixaria nela em todo esse tempo. Conseguiu chegar ao lugar escolhido e sentar-se em uma cadeira antes de que o duque de Bewcastle entrasse no salão. Depois do desafortunado incidente ocorrido durante sua chegada, temia o momento de vê-lo. Embora o que teria a temer? Que se jogasse sobre ela? Ou o que seria mais lógico, que ordenasse a um batalhão de criados que se jogasse sobre ela e a arrastasse até o magistrado mais próximo acusando a de agressão e assalto a seu olho? Chegou acompanhado de Bertie, e o rumor das conversas que tinham lugar no aposento sofreu uma drástica mudança. As mocinhas começaram a falar em voz mais alta e seus sorrisos se tornaram deslumbrantes; os jovens riam de forma mais afetada e adotaram uma atitude mais arrogante. As damas de mais idade exibiram sua plumagem.


Foi muito divertido. Claro que não deveriam ter se incomodado. O duque não teria posto uma expressão mais desdenhosa se tivesse estado observando um salão cheio de lombrigas. Esse rosto aristocrático e frio bastou para deixar claro que considerava a cena tão abaixo de sua dignidade ducal que não ia fazer o esforço nem de sorrir nem de adotar uma atitude medianamente afável. Melanie, como era de esperar, inclinou-se sobre ele e se desdobrou. Todo sua desenvoltura como anfitriã experimentada. Pegou-o pelo braço e o levou pelo salão para assegurar-se de que aqueles pobres mortais inferiores a sua excelência que não tinham o prazer de conhecê-lo em pessoa desfrutassem da oportunidade de beijar o chão a seus pés. Por sorte, graças a Deus! Melanie não a viu sentada no lugar e assim a mortal mais insignificante que havia no salão se viu privada da oportunidade de ficar em pé para executar sua mais elegante reverencia ante o grande nome. A uma observação satírica, recordou-se, possivelmente lhe sobrassem esses comentários depreciativos a respeito de um homem a quem nem sequer conhecia. Entretanto, a mera presença do duque de Bewcastle lhe punha os nervos à flor da pele. Caía-lhe mau, era-lhe insuportável e estaria muito contente se a deixasse tranquila durante os treze dias e meio que tinham por diante. A que se devia essa reação tão antagônica? Era muito estranha nela, tanto com conhecidos como com desconhecidos, adorava as pessoas. Todo tipo de pessoas. Uma vez que a ronda de apresentações chegou a seu fim, o duque continuou em pé, pires de biscoitos na mão, conversando com o conde de Kitredge e Héctor, que pouco antes a tinha saudado a distância com um gesto da cabeça e um sorriso. O conde era um homem importante. E também era pomposo. Mas não despertava animosidade alguma. E embora Héctor possuísse o título de visconde, professava-lhe um grande carinho. Assim que o título aristocrático que ostentava Bewcastle não tinha nada que ver com sua reação. E nesse preciso instante a serenidade que a embargava se esfumou assim que seu olhar se encontrou com o do duque e começaram a passar por sua cabeça visões de carcereiros, cárceres, grilhões e magistrados. Seu primeiro impulso foi desaparecer por completo e afastar o olhar em um esforço para fundir-se com a tapeçaria da cadeira que ocupava. Entretanto, nunca tinha sido das que tentava passar despercebida frente ao mundo, embora essa foi sua atitude durante os dois últimos anos de vida de Oscar, por que tinha que desaparecer? Por que tinha que afastar ela o olhar quando ele não dava sinais de fazê-lo primeiro? Então a irritou de verdade. Sem deixar de olhá-la, arqueou uma dessas arrogantes sobrancelhas. E depois a enfureceu. Com os olhos cravados nela e a sobrancelha arqueada, agarrou o cabo do monóculo e o ergueu a meio caminho do olho como se lhe surpreendesse o descaramento que demonstrava ao enfrentar seu olhar. Foi então quando decidiu que não afastaria a vista nem por todos os cárceres e os grilhões da Inglaterra. Tinha-a reconhecido, verdade? E o que? Afinal, seu único delito tinha sido o de derrubar mais da conta o copo de limonada quando casualmente ele


estava debaixo. Devolveu-lhe o olhar e aumentou seu descaramento rindo-se em sua cara. Enfim, não riu precisamente. Mas lhe demonstrou com sua expressão que não ia deixar-se acovardar por uma sobrancelha e um monóculo meio erguido. Agarrou um biscoito de seu prato e lhe deu uma mordida... momento no que descobriu que levava um banho de açúcar glassê. O açúcar lhe manchou os lábios e os lambeu ao tempo que o duque de Bewcastle abandonava o grupo no que se encontrava e punha-se a andar para ela. Ante ele se abriu um caminho como por arte de magia. Claro que não houve magia alguma no fato. Todo mundo se afastou para lhe deixar passagem... Certamente estaria tão acostumado a receber semelhante tratamento que nem percebeu que o faziam. Pelo amor de Deus! Pensou enquanto o via aproximar-se. Sua presença era magnífica, certamente. Deteve-se quando as pontas de suas botas de montar estiveram a escassos centímetros das pontas de seus escarpins. O perigo se abatia sobre ela, pensou, com o coração acelerado muito a seu pesar. -Não recordo que nos tenham apresentado, senhora -`disse com uma dicção deliciosa e uma nota ligeiramente enfastiada na voz. -Ah! Eu sim o conheço - lhe assegurou-. É o duque de Bewcastle. -Nesse caso, leva-me vantagem - replicou sua excelência. -Christine Derrick - disse, sem lhe oferecer mais explicação. Nem sua família, nem a de Oscar, teriam o menor interesse para ele. -Fiz inadvertidamente algo que lhe seja engraçado, senhorita Derrick? - quis saber ele. -Sim, temo que sim - respondeu -. E é "senhora" Derrick. Sou viúva. O monóculo voltava a estar em sua mão. Viu-o elevar ambas as sobrancelhas e compor uma expressão que sem dúvida seria capaz de gelar os cachos de uvas nas videiras e de arruinar a colheita de todo um ano. Enquanto isso, deu-lhe outra mordida no biscoito... e teve que voltar a lamber os lábios. Deveria lhe pedir desculpas de novo? Perguntou-se. Mas por quê? Já se desculpou em seu momento. Tinha o olho direito um pouco mais vermelho que o esquerdo? Ou eram imaginações suas? -Seria amável de me dizer o que foi? - perguntou-lhe erguendo o monóculo um pouco mais, embora não chegou ao olho. Que arma mais efetiva! Pensou, conseguia interpor tanta distância entre o duque e os aborrecidos mortais como uma espada em mãos de um homem normal. Decidiu que gostaria de dispor de um. Talvez se convertesse em uma anciã excêntrica que contemplava o mundo através de um monóculo gigante, aterrorizando aos presunçosos e arrancando gargalhadas aos meninos por culpa de um horripilante olho magnificado. Estava-lhe perguntando o que lhe tinha feito graça. "Graça" não era a palavra mais acertada, mas certamente se riu dele. Coisa que estava fazendo de novo. -Mostrou-se contrariado, de fato continua contrariado - se encolheu - porque me neguei a obedecer a seus desejos. -Contrariado, diz você? - Suas sobrancelhas se arquearam de novo - Acaso lhe ordenei algo?


-Certamente que sim - respondeu - Me descobriu observando-o do outro extremo do salão e levantou uma sobrancelha, que foi seguida do monóculo. Claro que nem sequer deveria ter percebido que você erguia o monóculo. Deveria ter afastado obedientemente o olhar muito antes de que o fizesse. -E o fato de erguer uma sobrancelha se equivale a uma ordem e o de elevar um monóculo é sinônimo de contrariedade, senhora? -perguntou de novo. -Do que outra forma explicaria você que tenha cruzado o salão para dirigir-se a mim? - perguntou ela por sua vez. -Talvez, senhora - respondeu - deva-se a que, ao contrário você, estive circulando entre os restantes convidados. Adorou a resposta. Tanto que soltou uma gargalhada. -E agora despertei sua hostilidade – assinalou - Seria melhor que não me prestasse a menor atenção, excelência, e que me deixasse seguir interpretando meu papel de espectadora. Não espere que me acovarde ante você. -Acovardar-se? -levou o monóculo ao olho e observou suas mãos através da lente. Tinha as unhas curtas. E limpas, mas suspeitava que para o duque seria fácil adivinhar que trabalhava com elas. -Sim, me acovardar – reiterou - Assim é como governa seu mundo. Acovardando a todos os outros. -Alegra-me que acredita me conhecer tão bem apesar da breve relação que nos une, senhora - respondeu. -Suponho que não deveria ter falado com tanta franqueza – admitiu - Mas foi você quem perguntou. -Certamente - replicou ao mesmo tempo que executava uma rígida reverência Entretanto, antes que o duque pudesse dar meia volta e partir, apareceu Melanie. -Vejo que já conheceu Christine, excelência - disse, tomando-o pelo braço e esboçando um elegante sorriso - Entretanto, permite-me afastá-lo dela um momento? Lady Sarah Buchan deseja lhe fazer uma pergunta, mas é muito tímida para dirigir-se a você por si mesma. Melanie o conduziu para o lugar que ocupava lady Sarah, quem lançou um olhar venenoso a ela antes de fazer uma reverência e dirigir um deslumbrante sorriso ao duque. Mãe do amor formoso! A aposta! Pensou. Acaso pensava essa menina que tentava ganhá-la? Claro que se fosse assim, não era a única que o fazia. Harriet King se plantou diante dela. -Um conselho, senhora Derrick, se me permitir disse com amabilidade - Talvez seja capaz de atrair ao duque de Bewcastle até seu lugar com um sorriso incitante e uma total falta de decoro ao negar-se a afastar o olhar de sua pessoa, mas vai necessitar de um plano muito mais elaborado se quer ter uma conversa durante uma hora. Bem! Exclamou para si mesma e pôs-se a rir de boa vontade. -Estou certa de que tem razão – afirmou - vou ter que pensar em algo realmente incitante. Entretanto, em lugar de compartilhar a brincadeira, a moça deu meia volta depois de ter completado com sua boa obra.


Teve o palpite de que sua intenção de passar desapercebida em um canto durante duas semanas não ia ser fácil. Acabava de chamar a atenção do mesmo modo que se tivesse estado no meio do salão agitando um estandarte. Embora jamais tivesse sido capaz de passar despercebida em nenhum lugar... e isso tinha sido parte do problema durante seu matrimônio. Possuía uma natureza muito sociável. Esses olhos! Pensou de repente. Durante sua breve conversa com o duque tinha descoberto que eram prateados. Os olhos mais extraordinários que tinha visto na vida. Eram duros, frios e velados. Olhá-los era como olhar uma superfície que repelia tudo o que lhe lançassem de modo que nada conseguia transpassá-la. Tinha-lhe dado à impressão de que ou não havia nada em seu interior, que esse aristocrático rosto duro e arrogante estava oco, ou que a pessoa que morava em seu interior estava muito bem escondida. De qualquer forma, esses olhos eram muito inquietantes, porque apesar de guardar com zelo o interior do duque, pareciam possuir o extraordinário poder de atravessar a outros e chegar diretamente à nuca. Vê-los tão curta distância e, sobre tudo, senti-los penetrar seu crânio tinha confirmado sua impressão inicial: podia ser um homem perigoso se o provocasse. Ela teria provocado? Supôs que, quando muito, o teria incomodado tanto como um diminuto mosquito que revoasse em torno de sua orelha ou que lhe metesse no olho. Suspirou e comeu o biscoito que tinha na mão. Estava lambendo os dedos quando Justin se aproximou de seu lugar. Ficou em pé com um alegre salto e se fundiram em um quente abraço. -Justin! – exclamou - Passaram séculos! -Milênios, diria eu - corrigiu-a com um sorriso - Em realidade nos vimos na Páscoa. Eu gosto de como fica seu cabelo curto. Está mais bonita que nunca. Já vejo que acaba de conhecer o grande homem. Apostaria o que fosse como Mel passou algumas noites em claro desde que descobriu que Héctor o havia convidado. -Inclusive foi a Hyacinth Cottage para me convencer de que viesse e assim equilibrar o número de convidados - replicou com uma careta - E já conhece Melanie quando coloca algo entre sobrancelha e sobrancelha. Não me deixou alternativa. -Pobre Chrissie! - zombou dela - Embora eu saí ganhando. Depois desse comentário pareceu relaxar-se pela primeira vez em todo o dia. -Christine esteve casada com meu pobre primo Oscar - estava explicando Renable ao Wulfric - Conhecia-o? Era o irmão mais novo do visconde de Elrick. Um homem encantador e querido por todos. Sua morte foi uma tragédia, sobre tudo para Christine, que se viu obrigada a voltar para a casa de sua mãe, aqui no povoado. Era a filha do professor do povoado quando Oscar a conheceu. E fez um matrimônio brilhante. Mas, enfim, não durou, e lhe tenho muitíssima lástima. Por isso a convidei. Temos uma grande amizade e precisa divertir-se um pouco. Seu sobrenome o tinha levado a supor que era da família dos Elrick, e ao lhe explicar que era viúva, recordou que o visconde tinha perdido a seu único irmão uns anos antes. Entretanto, não dependia economicamente dos Elrick, pois vivia com sua mãe e se via obrigada a aceitar a caridade de seus amigos para participar de acontecimentos sociais


como esse. Oscar Derrick não contaria com uma fortuna ao casar-se ou, o que era mais provável, tinha-a dilapidado. Sua viúva não parecia contar com ganhos próprios Sua vestimenta era muito menos elegante que a do resto das damas. Para falar a verdade, a primeira vez que a viu - com um só olho, por certo - a tinha tomado por uma criada. O vestido de musselina que levava era decente, embora não fosse o último grito da moda. E tampouco era muito jovem. Talvez rondasse os trinta. Era muito bonita, de olhos grandes, rosto redondo e bronzeado pelo sol - a tão escassa distância tinha sido impossível não perceber esse detalhe -. Se por acaso isso não bastasse, tinha sardas na ponta do nariz. Era morena e de cabelo encaracolado, embora o levasse curto. Seu aspecto delatava sua origem rural, e parecia muito fora do lugar entre os convidados de lady Renable. Mas claro, realmente estava fora do lugar. Apesar de ter feito um matrimônio muito vantajoso, não deixava de ser a filha de um professor de escola incrivelmente impertinente ainda mais. Uma lástima que Derrick tivesse tido a desconsideração de morrer tão jovem. Decidiu que não aprofundaria sua relação com a dama durante as duas semanas que duraria sua estadia. Embora o mesmo poderia dizer no referente a quase todas as demais convidadas. Começava a dar-se conta do engano garrafal que tinha cometido ao aceitar de forma impulsiva um convite verbal procedente de outro convidado... que não era outro que lorde Mowbury, cujas desorientações eram amplamente conhecidas. Lady Sarah Buchan estava lhe fazendo outra reverência, apesar de que não fazia nem meia hora que tinham sido apresentados. -Queria lhe perguntar, excelência - disse ruborizada quando cravou o olhar nesses enormes olhos prateados -, que atividade matinal prefere: cavalgar ou passear? Fiz uma aposta com a Miriam Dunstan-Lutt, embora saiba perfeitamente que não está bem visto que as damas apostem - riu com dissimulação. Estava há muito tempo fora do âmbito do mercado matrimonial e tanto as damas de todas as idades como suas respectivas mães tinham deixado de rondá-lo fazia anos ao dar-se conta de que não se deixaria caçar. Não obstante e embora suas habilidades estivessem um pouco oxidadas, era capaz de reconhecer uma armadilha quando a tinha diante. -Em regra geral, dedico as manhãs à correspondência e aos assuntos de negócios porque é quando minha mente está mais lúcida, lady Sarah - respondeu com brusquidão. - Costumo cavalgar ou passear quando o dia está bem avançado. E você, o que prefere? Estava a ponto de morrer de aborrecimento. De verdade estava a moça paquerando com ele?


Capítulo 4

Muitos dos convidados estavam cansados da viagem e aproveitaram o tempo entre o chá e o jantar para descansar na tranquilidade de seus quartos. Wulfric aproveitou a oportunidade para escapar ao exterior em busca de ar fresco e um pouco de exercício. Evidentemente não conhecia a propriedade, mas procurou o amparo da vegetação para ocultar-se de forma instintiva da mansão e evitar que alguém unisse a ele. Atravessou em diagonal um prado salpicado de árvores e entrou em um atalho que cruzava uma zona de bosque até chegar à beira de um lago artificial cuja colocação tinha sido escolhida com esmero para obter o maior efeito visual. Não era muito grande, mas estava afastado e era um lugar encantador e tranquilo e também ficava oculto da mansão. O dia era agradável, quente, mas não caloroso, e corria uma suave brisa. Isso pensou enquanto respirava fundo, era o que necessitava ar puro e um entorno campestre para recuperar o ânimo depois da longa viajem e do salão lotado de pessoas que tinha tido que enfrentar. Vários atalhos se internavam entre as árvores em diferentes direções, mas ficou onde estava, sem saber muito bem se continuava caminhando ou demorava-se nesse lugar, desfrutando dos aromas do campo no verão. Deveria ter ido a Lindsey Hall. Entretanto, não o tinha feito, assim não tinha sentido desejar nesse instante ter tomado outra decisão. Ainda estava no mesmo lugar, contente sem fazer nada quando escutou a suas costas o inconfundível som de passos que se aproximavam pelo mesmo atalho pelo qual tinha chegado. Repreendeu-se por não ter se movido antes. A última coisa que desejava era ter companhia. Mas já era muito tarde. Tanto fazia o atalho que escolhesse, já que lhe seria impossível partir sem que o visse quem quer que aparecesse na borda. Virou-se, incapaz de dissimular por completo a irritação. A mulher avançava com passos muito pouco femininos, não levava boné nem luvas, e ia olhando para trás como se quisesse assegurar-se de que ninguém a seguia. Antes de que pudesse afastar-se ou avisá-la do iminente desastre, deu de encontro com ele. Agarrou-a pelos braços muito tarde e se encontrou com um matagal de cachos no nariz, antes que ela erguesse a cabeça com um grito alarmado e seus narizes sofressem uma topada. De algum jeito era quase inevitável, disse a si mesmo com triste resignação... E com o nariz dolorido e os olhos chorosos. Algum anjo malévolo tinha que tê-la enviado a esta festa campestre para atormentá-lo... ou para lhe recordar que jamais se deviam tomar decisões impulsivas. Viu-a levar a mão ao nariz, certamente para averiguar se o tinha quebrado, se sangrava ou padecia de ambos os males. Tinha os olhos cheios de lágrimas. -Senhora Derrick - disse com uma leve arrogância, embora já fosse muito tarde para dissuadi-la de que se aproximasse dele. -Ai, Deus! - exclamou ela ao mesmo tempo que baixava a mão e piscava - Sinto


muitíssimo! Que torpe sou! Não estava olhando por onde ia. -Nesse caso – replicou - bem poderia ter acabado no lago se eu não tivesse estado aqui. -Mas não o fiz - respondeu ela com sensatez - De repente, tive a impressão de que não estava sozinha e olhei para trás em lugar de prestar atenção ao caminho. E tinha que ser você nem mais nem menos. -Desculpe-me. - Fez-lhe uma reverência muito rígida. Poderia lhe ter devolvido o comentário, mas não o fez. Nesse momento ficaram em evidência suas rústicas maneiras e a falta de elegância e sofisticação que esperava encontrar nas damas com as quais estava obrigado a relacionar-se durante essas duas semanas. A brisa alvoroçava as mechas frisadas de seu cabelo. O sol fazia com que sua pele parecesse ainda mais bronzeada que no salão. Seus dentes pareciam muito brancos em comparação. Seus olhos eram tão azuis como o céu. Era, reconheceu a contra gosto com certa surpresa, bastante bonita... apesar de que o nariz ia avermelhando naquele momento. -Minhas palavras soaram muito rudes - falou ela com um sorriso - Não era minha intenção dizê-lo assim. Mas primeiro lhe derramo limonada em um olho, depois o desafio em um duelo de olhares pelo mero fato de que me incomodou sua sobrancelha e agora me dou de cara contra você e lhe parto o nariz ao mesmo tempo que quebro o meu. Espero de todo coração que com isto se esgotou minha reserva de estupidezes para estas duas semanas e que possa ser decorosa, elegante e muito aborrecida durante o resto de minha estadia nesta casa. Podiam dizer-se grande quantidade de coisas como réplica a um comentário tão franco. Entretanto, dito comentário tinha revelado muitas coisas sobre ela mesma, e nenhuma especialmente atraente. -Escolhi um atalho ao acaso - replicou ele ao mesmo tempo que se afastava ligeiramente - O lago foi uma surpresa, mas está situado em um entorno muito agradável. -Sim, certamente! - concordou ela - Sempre foi um de meus lugares preferidos. -Não me cabe a menor duvida de que saiu porque desejava estar sozinha - disse, preparando sua fuga - Incomodei-a. -Absolutamente – corrigiu-o com voz alegre - Além disso, saí para passear. Há um atalho que rodeia o lago e que foi planejado com detalhe para oferecer uma grande variedade de prazeres sensuais. - Olhou-o nos olhos, fez uma careta e se ruborizou - Às vezes não escolho as palavras com muito acerto - comentou. "Prazeres sensuais", isso era o que devia tê-la envergonhado. Não obstante, em lugar de entrar na hora no o atalho que tinha mencionado, viu-a titubear um instante e compreendeu que lhe estava bloqueando o passo. Antes de que pudesse mover-se, ela voltou a falar: -Talvez goste de me acompanhar. Não havia nada que gostasse menos no mundo. Não lhe ocorria uma maneira mais indesejada de passar a escassa hora livre de que dispunha antes de trocar-se de roupa para o jantar. -Ou talvez não... - acrescentou ela com esse olhar risonho que tinha visto pouco antes, do outro lado do salão quando arqueou uma sobrancelha e a ofendeu com o gesto.


Disse-o como se fosse um desafio. E a verdade, pensou, era que tinha algo que lhe era um tanto fascinante. Era muito diferente de qualquer outra mulher que tinha conhecido. E ao menos não havia nem rastro de paquera em seus gestos. -Gostaria - disse, e se afastou para que ela o precedesse pelo atalho que entrava entre as árvores e corria paralelo à borda do lago. Depois se colocou a seu lado, pois quando se desenhou o atalho tiveram a previsão de fazê-lo-bastante largo para que duas pessoas pudessem caminhar uma ao lado da outra. Não falaram durante um momento. Embora como bom cavalheiro era hábil para iniciar uma conversa educada, nunca tinha sido dado a conversar para evitar o silêncio. Se ela estava contente passeando em silêncio, ele também. - Acho que devo agradecer meu convite a Schofield Park - disse ela finalmente com um sorriso, embora não o olhasse no rosto. -Como diz? - Olhou-a com as sobrancelhas arqueadas. -Depois que o convidaram - lhe explicou ela - Melanie se viu assaltada pelo pânico ao dar-se conta de que o número de cavalheiros superava em um ao de damas em sua lista de convidados. De modo que despachou a toda pressa uma carta a Hyacinth Cottage para me convidar, e quando me neguei, foi em pessoa para me rogar que aceitasse. Acabava de lhe confirmar suas suspeitas. -Depois que me convidassem – repetiu - De que me convidasse o visconde de Mowbury. Devo entender, então, que o convite não partiu de lady Renable. -Em seu caso eu não me preocuparia por isso - o tranquilizou - Assim que acessei a vir e a resgatei do potencial desastre, admitiu que preferia sua presença a do príncipe regente por muito importante que tivesse sido contar com sua majestade. Segundo ela - e possivelmente esteja certa, será a inveja de todas as anfitriãs da Inglaterra. Continuou olhando-a. Efetivamente, um anjo malévolo tinha intervindo em todo o assunto. Essa mulher estava ali por ele... e ele estava ali pelo mero fato de ter agido de forma alheia a seu caráter. -Não desejava aceitar o convite? - perguntou-lhe. -Não. - Tinha estado balançando os braços de um modo muito pouco apropriado para uma dama, mas nesse momento entrelaçou as mãos às costas. -Porque se sentia ofendida ao ter sido excluída da lista original? - sugeriu. Isso indicava que costumavam tratá-la como uma parente pobre que ninguém fazia caso, não? -Porque, embora pareça muito estranho, não desejava vir - respondeu. -Talvez se sinta fora do lugar em companhia superior, senhora Derrick - aventurou. -Acredito que não compartilho sua definição de "superior" – replicou - Mas, em resumidas contas, tem razão. -E ainda assim esteve casada com um irmão do visconde de Elrick – comentou. -E ainda assim estive - afirmou com jovialidade. Entretanto, não aprofundou no assunto. Tinham saído do arvoredo e se encontravam ao pé de uma verde colina salpicada de margaridas e ranúnculos. -Não lhe parece uma colina linda? -perguntou-lhe, embora sem dúvida não esperava resposta. Vê? Se subirmos, nos permitirá ver por cima das copas das árvores e teremos uma vista panorâmica perfeita do povoado e das terras de trabalho que se estendem ao longo e largo de quilômetros ao redor. A campina é como um tabuleiro de xadrez. Quem


escolheria a vida em cidade a isto? Não o esperou nem se amedrontou pelo íngreme da ascensão O precedeu até coroar a colina, embora poderiam tê-la rodeado e ter ficado ao pé, e uma vez no mais alto, estendeu os braços em cruz e deu uma volta completa com o rosto erguido para o sol. A brisa, que ali em cima soprava com força, agitou o cabelo e o vestido e fez que a fita que levava em torno da cintura ondeasse ao vento para frente. Parecia uma ninfa do bosque, e apesar disso tinha a sensação de que seus movimentos e seus gestos eram genuinamente espontâneos e naturais. O que em outra mulher poderia interpretar-se como paquera nela era uma expressão de exuberante alegria. Tinha a estranha sensação de ter entrado, sem pretendê-lo, em outro mundo. -Certamente... - reconheceu. A senhora Derrick deixou de mover-se para olhá-lo. -Você prefere o campo? - perguntou-lhe. -Sim - respondeu ao mesmo tempo que continuava subindo até chegar a seu lado e, uma vez em cima, foi girando devagar para admirar toda a vista da campina. -Então, por que passa tanto tempo na capital? -Sou membro da Câmara dos Lordes - lhe explicou - É meu dever assistir às sessões. - Cravou a vista na aldeia. -A igreja é bonita, não lhe parece? - comentou ela - Reconstruíram a ponta da torre faz vinte anos, depois que uma tormenta derrubou a antiga. Lembro tanto da tormenta como das obras. A nova é cinco metros mais alta que a anterior. -O vicariato é o edifício que está ao lado? -perguntou. -Sim – respondeu - Minhas duas irmãs e eu crescemos ali, com o antigo vigário e sua esposa. Eram muito amáveis e hospitaleiros. Suas duas filhas eram nossas melhores amigas, e depois havia seu filho, Charles, com quem tínhamos menos relação. O pobre era o único varão entre cinco garotas. Todos íamos à escola local, as garotas e os meninos. Tivemos sorte porque o professor, meu pai por certo, não era da opinião de que a única coisa que as mocinhas têm entre as orelhas é ar. Louisa e Catherine se casaram muito jovens e vivem um pouco afastadas. Mas depois que o antigo vigário e sua esposa morreram com dois meses de diferença, Charles, que ocupava um posto de diácono a uns trinta quilômetros daqui, ficou com o cargo e se casou com minha irmã Hazel, a do meio das três. -Sua irmã mais velha também está casada? -quis saber. -Eleanor? -Negou com a cabeça - Quando tinha doze anos anunciou que sempre ficaria em casa para cuidar de nossos pais quando fossem velhos. Apaixonou-se uma vez, mas seu noivo morreu na batalha da Talavera antes que se casassem, e depois perdeu o interesse pelos homens. Quando nosso pai morreu, insistiu no que dizia de menina, embora claro, agora só precisa cuidar de minha mãe. Acredito que é feliz. Sim, pensou certamente que pertencia a outro mundo... ao da nobreza rural. Certamente tinha feito um matrimônio muito vantajoso. Viu-a estender um braço e dar um passo para ele para lhe indicar com mais facilidade o que apontava. -Aquilo ali é Hyacinth Cottage – disse - Ali vivemos. A casa sempre me pareceu


muito pitoresca. Passamos momentos de incerteza quando meu pai morreu, já que só ele constava como arrendatário. Mas Bertie, o barão Renable, teve a amabilidade de arrendála a minha mãe e a Eleanor por toda a vida. -Pensando que você não as sobrevivesse? -perguntou. A senhora Derrick desceu o braço. -Ainda estava casada com o Oscar - respondeu - Sua morte era imprevisível, é obvio, mas embora não tivesse sido esse o caso, suponho que Bertie teria pensado que ficaria com sua família. -Mas não o fez? -Não. Contemplou Hyacinth Cottage da distância. Era uma casa bonita, com seu telhado de palha e seu extenso jardim. Parecia uma das casas maiores do vilarejo, um lar adequado para um cavalheiro de nascimento, embora tivesse agido como professor de escola. A senhora Derrick, que estava de pé e em silencio a seu lado, pôs-se a rir baixo. Virou a cabeça para olhá-la. -Tornei a fazer algo que lhe é engraçado, senhora Derrick? - perguntou. -A verdade é que não. - Sorriu-lhe - Mas acabo de me dar conta que Hyacinth Cottage parece uma casinha de bonecas daqui acima. Certamente caberia em um cantinho do salão de sua casa. -Refere-se a Lindsey Hall? - disse - Duvido muito. Calculo que deve haver quatro dormitórios no andar de cima e outros tantos aposentos no piso inferior. -Então talvez em um cantinho de seu salão de baile. -Talvez - concordou, embora duvidasse. Não obstante, a ideia era engraçada. -Se seguirmos pelo atalho que rodeia o lago a este passo, pode ser que ainda tenham biscoitos para acompanhar o chá da tarde. -Nesse caso será melhor que nos ponhamos em marcha. -É possível que não quisesse caminhar até tão longe - disse ela - Talvez prefira retornar por onde viemos em lugar de me acompanhar. Aí estava... sua oportunidade de escapar. Não soube por que não a aceitou. Talvez porque não estava acostumado a que o despachassem. -Não estará tentando desfazer-se de mim por acaso, não é, senhora Derrick? perguntou ao mesmo tempo que segurava o cabo do monóculo e o levava ao olho para observá-la através da lente, só porque sabia que o gesto a incomodaria. Não obstante, ela pôs-se a rir. -Simplesmente pensei que talvez esteja acostumado a ir a cavalo a toda parte ou a que o levem de carruagem - respondeu - Não quero ser a culpada de que lhe saiam bolhas nos pés. -Nem de que chegue tarde ao jantar? - Baixou o monóculo e o deixou pendurado na fita - É muito amável, senhora, mas não a culparei de qualquer possível desastre. Apontou com uma mão o caminho que descia pelo outro lado da colina. Conforme comprovou, continuava discorrendo em paralelo à borda do lago durante um lance antes de voltar a desaparecer entre as árvores. A senhora Derrick fez várias perguntas enquanto caminhavam. Perguntou-lhe por Lindsey Hall, em Hampshire, e também por suas outras propriedades. Pareceu muito


interessada na propriedade que tinha em uma remota península do Gales, perto do mar. Perguntou-lhe por suas irmãs e irmãos, e depois, quando soube que estavam todos casados, perguntou-lhe por seus cônjuges e seus filhos. Caiu na conta de que estava falando mais do que o habitual sobre si mesmo. Uma vez que saíram do arvoredo, descobriu uma bonita ponte de pedra colocada sobre um riacho cujas águas desciam com rapidez entre suas escarpadas bordas no caminho ao lago. Detiveram-se ao chegar ao centro e contemplaram o reflexo do sol na água. A senhora Derrick se apoiou na mureta. Os gorjeios dos pássaros inundaram o ar. Era uma cena bucólica. -Justamente aqui foi onde Oscar me beijou pela primeira vez e me pediu que me casasse com ele - disse ela em voz baixa - passou muita água debaixo desta ponte desde aquela tarde... em mais de um sentido. Não disse nada. Esperava que não lhe desse de soltar um sem-fim de sandices sentimentais sobre o amor e a enormidade de sua perda. Entretanto, quando se virou para olhá-lo, fez isso muito depressa e com as faces ruborizadas. Supôs que tinha esquecido por um momento com quem estava... e agradeceu enormemente que o tivesse recordado na hora. -Ama Lindsey Hall e suas outras propriedades? - perguntou ela. Só uma mulher, uma mulher muito sentimental, poderia fazer semelhante pergunta. -"Amar" talvez seja uma palavra muito extravagante para referir-se a um montão de pedras e uma parte de terra, senhora Derrick – respondeu - Preocupo-me de que estejam bem administradas. Cumpro minhas responsabilidades com aqueles que vivem de minhas propriedades. Passo todo o tempo que me é possível no campo. -E ama a seus irmãos e irmãs? Arqueou as sobrancelhas. -"Amar" é uma palavra utilizada pelas mulheres, senhora Derrick - respondeu - e em minha experiência costuma implicar tal leque de emoções que é virtualmente impossível que contenha um significado. As mulheres amam a seus maridos, a seus filhos, aos bebês e a seus cães; a última ninharia que se compraram, dar passeios pelo parque e a última novela que tomaram emprestada da biblioteca. Também amam a luz do sol e as rosas. Eu cumpri meu dever com meus irmãos, assegurei-me que todos tenham um futuro e um matrimônio feliz. Escrevo-lhes uma vez ao mês. E suponho que morreria por qualquer deles se alguma vez fosse necessário um sacrifício tão ostentoso e nobre. Isso é amor? Deixo a resposta você. Ela o observou em silencio durante um bom tempo. -Refere-se às emoções das mulheres com desdém – replicou - Sim, amamos todas essas coisas que mencionou e muitas mais. Acredito que não quereria viver se minha vida não estivesse cheia de amor por todas as coisas e por todas as pessoas que me rodeiam. Não é uma emoção que deva inspirar desdém. É uma atitude ante a vida completamente oposta a daqueles que a veem como uma sucessão de deveres que cumprir ou de cargas que suportar. É evidente que a palavra "amar" tem um sem-fim de acepções, ao igual a muitíssimas palavras de nossa preciosa língua em constante evolução. Mas embora digamos que amamos as rosas ou amamos aos bebês, nossas mentes e nossos corações


compreendem que a emoção não é a mesma. Sentimos uma imensa alegria ao contemplar uma rosa perfeita. Dá-nos um tombo o coração ao ver um menino de nosso sangue ou de nossa família. Ninguém conseguirá que me envergonhe pela ternura que sinto por minhas irmãs ou por meus sobrinhos. Teve a firme impressão de que acabava de pô-lo em seu lugar. Entretanto, tal como acontecia com as pessoas que discutiam levadas pela paixão e não pela razão, tinha tergiversado suas palavras. Lançou-lhe um de seus olhares mais gélidos. -Desculpe-me se me equivoco, mas disse ou insinuei que deva envergonhar-se, senhora Derrick? - replicou. Suas palavras teriam castigado a qualquer outra dama. Porém não à senhora Derrick. -Sim - afirmou cortante - insinuou-o. Insinuou que as mulheres são frívolas e que fingimos amar quando em realidade não conhecemos o significado dessa palavra. Quando, de fato, essa palavra não tem um significado verdadeiro. -Ah! - exclamou em voz baixa, mais aborrecido do que jamais se permitia estarNesse caso, talvez deva me desculpar, senhora. Afastou-se da mureta e empreenderam de novo a marcha. O caminho voltou a leválos entre as árvores, embora nesse lance pudessem contemplar o lago que estavam rodeando para poder chegar ao ponto de partida. A senhora Derrick apressou o passo até chegar à mansão. -Bem - disse ela com um sorriso deslumbrante quando entraram no vestíbulo, rompendo assim o longo silencio que tinha dominado a última parte do passeio - devo me apressar se não quiser chegar tarde ao jantar. Despediu-se dela com uma reverência e a deixou correr - sim, "correr" era a palavra adequada escada acima até que desapareceu de sua vista, depois do que empreendeu o caminho a seus aposentos. Ao chegar a seu destino surpreendeu descobrir que tinha estado fora mais de uma hora. Não lhe tinha sido tão longo. Deveria ter sido assim. Normalmente não o fazia nem pingo de graça aguentar a companhia de alguém que não tivesse escolhido com antecipação e isso incluía a todos os desconhecidos. O duque de Bewcastle não se sentiu obrigado a acompanhá-la ao diminuto quarto que lhe tinham atribuído, comprovou Christine com alívio. Possivelmente estaria contente depois de ter sobrevivido a uma hora tão tediosa, pensou enquanto corria escada acima, esquecendo que Hermione tinha insistido em que correr não era uma maneira elegante de deslocar-se de um lugar a outro. Seguiu correndo até chegar a seu quarto. Não demoraria muito em trocar de vestido para o jantar, mas restava muito pouco tempo. Mal dava crédito ao que acabava de fazer. Deixou-se estimular por algumas tontinhas, isso era o que tinha feito. Tinha saído a toda pressa da mansão depois do chá para desfrutar de um pouco de tempo a sós, deu-se de cara com o duque de Bewcastle que momento mais embaraçoso! E depois, justo quando estava a ponto de escapar dele, lhe tinha ocorrido a genial ideia de ganhar a aposta nesse preciso instante, quase antes de tê-la feito. Só para demonstrar-se a si mesma que podia fazê-lo. Porque em nenhum


momento teve a intenção de retornar correndo para reclamar seu prêmio. Não necessitava do prêmio nem ser a inveja das jovens conspiradoras. Em realidade, tudo se devia a seus espantosos vinte e nove anos e ao fato de que todas as mocinhas, quase sem exceção, tivessem-na olhado com pena e desdém, como se fosse uma anciã. Era lhe incrível havê-lo feito... e que ele tivesse aceito sua companhia. E que, uma vez na colina, assaltada pelos remorsos e depois de lhe oferecer a oportunidade de fugir, ele tivesse escolhido continuar o caminho com ela. Alegrava-se enormemente de que a hora tivesse terminado. Jamais tinha conhecido a um homem mais soberbo e frio. Tinha falado de Lindsey Hall e de suas outras propriedades, de seus irmãos e de seus sobrinhos sem o menor traço de emoção. E depois se referiu com desdém ao amor quando lhe perguntou pelo conceito. A verdade fosse dita, esse homem lhe era fascinante de um modo um tanto aterrador. E seu perfil era esplêndido igual a seu físico. Deveriam esculpi-lo em mármore ou em bronze, concluiu, e colocá-lo sobre um alto pedestal em uma avenida de sua casa senhoril para que as futuras gerações de sua família pudessem contemplá-lo com admiração e assombro. O duque de Bewcastle era um homem muito bonito e um presente para a vista. Deteve-se no meio de seu diminuto quarto e franziu o cenho. Não, seu atrativo não residia aí. Oscar tinha sido um homem bonito, tanto que tirava o fôlego. Foi sua atitude o que a conquistou nada mais. Há nove anos era a típica mocinha tola. O aspecto físico era tudo. Bastou-lhe um olhar para cair rendida a seus pés. A única coisa que importava naquele momento era seu rosto. As restantes qualidades que pudesse ou não ter tinham passado totalmente despercebidas a seus olhos. Não obstante, já era mais velha. Não se movia às cegas, os anos lhe tinham ensinado. Era uma mulher amadurecida. O duque de Bewcastle era sem dúvida muito bonito, apesar da frieza e da austeridade de seu atrativo. Entretanto, tinha algo mais além do físico. Atraía-a do ponto de vista sexual. A simples ideia, formulada em sua mente, fez com que lhe endurecessem os mamilos e que o desejo fizesse brecha entre suas coxas. Que vergonha! E que perigo! Certamente era um homem perigoso, embora não fosse patente a simples vista. Afinal, não tinha tentado ultrapassar os limites com ela no bosque, não é? A ideia era ridícula. Nem sequer tinha tentado seduzi-la o que era ainda mais ridículo. Nem tinha sorrido uma só vez. Claro que, apesar de tudo, seu corpo tinha reagido à atração sexual enquanto passeava a seu lado. Devia ter a cabeça cheia de pássaros para sentir-se sexualmente atraída pelo duque de Bewcastle, disse-se antes de repreender-se com severidade e sentar-se diante da penteadeira, um homem a quem poderiam colocar tal qual no dito pedestal da avenida e passar sem problemas por uma estátua de mármore sem que ninguém reparasse na diferença. Nesse momento levou uma mão à boca para conter um grito. Pássaros na cabeça? Parecia que um pássaro tinha tentado aninhar em sua cabeça. Tinha o cabelo feito um desastre, o nariz como um tomate e as faces pareciam duas maçãs vermelhas depois de ter estado exposta ao vento.


Brincadeiras aparte, esse homem devia ser feito de mármore se tinha sido capaz de olhar para seu rosto com essas manchas sem dobrar-se de risada. Enquanto seu corpo palpitava alegremente pelo desejo sexual que lhe provocava, o do duque devia estar encolhido por causa da repulsão. Envergonhada, embora já fosse muito tarde, agarrou a escova. Quando por fim se meteu na cama nessa primeira noite, Christine se sentia muitíssimo mais a gosto na festa campestre do que o estava antes que começasse e até também depois do chá. Além de ter ido obrigada, tinha começado de uma maneira desastrosa. Mas o êxito de ter conseguido que o duque de Bewcastle passasse uma hora com ela tinha achado graça e lhe tinha levantado o ânimo, apesar da sua decisão de não compartilhar seu triunfo com as outras damas. Não obstante, o compartilhou com Justin, com quem se sentou no salão para tomar o chá depois do jantar. Falou-lhe sobre a absurda aposta e lhe contou como foi fácil ganhála, embora ninguém jamais saberia. -É obvio que não foi uma hora fácil - lhe assegurou - Agora entendo por que o duque de Bewcastle tem reputação de frio. Não sorriu nenhuma só vez, Justin, e quando lhe disse que me convidaram porque Melanie estava histérica depois que Héctor o convidou, nem riu nem pareceu contrariado. -Contrariado? - replicou Justin - Bewcastle? Duvido muito que saiba o que significa a palavra, Christine. Certamente acredita que é seu direito divino assistir a qualquer festa campestre que lhe chame a atenção. -Pois não acredito que isso aconteça frequentemente – comentou - Que muitas festas campestres chamem sua atenção, quero dizer. Enfim, deixemos de ser implicantes, que tal lhe parece? Alegro-me muito de ter ganhado essa estúpida aposta segundo minhas condições. Agora posso evitá-lo durante os treze dias seguintes. -Ele perde e eu saio ganhando - replicou Justin com um sorriso - Me teria encantado lhe ver a cara quando deu um encontrão nele. Entretanto, foi outra coisa que lhe aliviou o humor. Ao final da noite percebeu que tinha sobrevivido ao momento que temia há dois anos, que não era nem mais nem menos que voltar a ver Hermione e Basil. De modo que compreendeu que já não tinha nada que temer e que podia ser ela mesma, sem inibições. Tinha ido a Schofield Park com a intenção de passar despercebida, de observar mais que de participar, de evitar qualquer incidente e qualquer encontro que pudesse fazê-la objeto de rumores. Tinha ido, de fato, com a intenção de comportar-se tal qual tinha tentado comportarse durante os últimos anos de seu matrimônio, antes que Oscar morresse. Naquele tempo não serviu de nada, por mais que o tentasse, e tampouco tinha servido de nada durante as primeiras horas da festa campestre. Alegrava-se de que seu plano tivesse fracassado tão cedo. Porque o fracasso a tinha levado a fazer uma pergunta: por que tinha que comportar-se de um modo contrário a sua natureza? Se seus vizinhos soubessem que Christine Derrick tinha pensado passar duas semanas em uma festa campestre sentada em um canto e observando o que acontecia a seu redor, morreriam de rir...


Se acaso chegassem a acreditar em semelhante patranha, claro estava. Por que tinha que comportar-se dessa forma, ou tentá-lo ao menos, pelo mero fato de que seus cunhados também fossem convidados à festa? A opinião que tinham dela não podia ser pior. Continuavam odiando-a, coisa que tinha ficado clara essa mesma tarde. Mas já se livrara deles, estava há dois anos sendo livre. Oscar estava morto e enterrado. Podia voltar a ser ela mesma. Era um pensamento maravilhoso e libertador, apesar da dolorosa sensação provocada pela lembrança de Oscar - revivido com especial emotividade na ponte de pedra próximo ao lago - e o encontro com Hermione e Basil. Seria ela mesma. De modo que passou o resto da noite jogando charadas, embora a princípio nenhuma das equipes a escolheu, ao acreditar - ou isso supôs ela - que devia mesclar-se com os convidados de mais idade. Ao final uma equipe a escolheu por que faltava um membro, pois Penélope Chisholm se negava a participar dizendo que era tão má que todos lhe suplicariam que abandonasse o jogo assim que começassem. Ela não era má jogando charadas pelo contrário. De fato, era um de seus jogos de interior preferidos. Sempre lhe tinha encantado o desafio de comunicar uma ideia sem palavras e de ter que adivinhar os gestos de outra pessoa. Lançou-se totalmente ao jogo com patente entusiasmo, e não demorou para estar acalorada e morta de risada, e em converter-se na preferida de todos ao menos de sua própria equipe, é obvio. Sua equipe ganhou com muita vantagem. Rowena Siddings e Audrey, contagiadas por seu entusiasmo, não demoraram para melhorar suas atuações, embora Harriet King, que era um desastre no jogo, fingiu estar aborrecida e disse que essas tolices estavam muito abaixo dela. O senhor George Buchan e sir Wendell Snapes começaram a olhá-la com admiração e aprovação. Assim como o conde de Kitredgé e sir Clive Chisholm, que observavam o jogo de um canto enquanto animavam os participantes. O duque de Bewcastle também estava observando com uma expressão de supremo aborrecimento no rosto. Mas não reparou nele salvo para fixar-se nessa expressão, claro. Apesar de sua fama de descer a temperatura do aposento onde estivesse, não pensava lhe permitir que a desanimasse. Quando por fim se deitou, tinha aceito por completo a ideia de desfrutar dessas duas semanas e de esquecer-se de todos os deveres com os quais costumava ocupar seus dias.


Capítulo 5

Ao longo dos dias seguintes Wulfric descobriu que a senhora Derrick carecia de boas maneiras. A primeira noite da festa, quando os convidados decidiram jogar charadas, lançou-se de cabeça ao jogo, ruborizou-se e começou a rir a gargalhadas em lugar de fazê-lo com dissimulação como o resto das damas e a gritar respostas sem temor a superar aos cavalheiros. Além disso, importava-lhe um nada fazer o ridículo quando lhe chegava o turno de fazer gestos. Entretanto e apesar de que se proposto evitar a aborrecida experiência de observar o jogo, descobriu que não podia afastar os olhos dela. Era o tipo de mulher que era bonita quando estava imóvel, mas que se convertia em uma beleza quando se animava. E tal parecia que esse era seu estado natural. -É impossível não admirá-la, não é? - escutou que lhe perguntava com voz risonha Justin Magnus, que se tinha aproximado sem que percebesse. - Salta à vista que falta o refinamento que muitos membros da alta sociedade esperam encontrar em uma dama bem educada. Lembro que meu primo Oscar se sentia muitas vezes envergonhado por seu comportamento, igual a Elrick e Hermione. Mas se lhe interessa minha opinião, Oscar foi afortunado por tê-la durante um tempo. Eu sempre a defendi a capa e espada, e sempre o farei. Não tem meio termo. A menos que se seja muito distinto, está claro. Observou ao jovem através do monóculo. Não sabia se acabava de lhe jogar uma sutil reprimenda por ser muito distinto ou se o estava tratando como a uma espécie de camarada do que se esperava que reconhecesse que as mulheres sem meio termo eram preferíveis às damas de maneiras refinadas. De uma maneira ou de outra, não gostou absolutamente da familiaridade com que o tinha tratado. Embora Magnus fosse o irmão de Mowbury, apenas o conhecia de vista. -Suponho que está falando da senhora Derrick - replicou com a voz que utilizava sempre que queria descer as fumaças a alguém - Eu me limito a observar o jogo. Entretanto, uma verdadeira dama não deveria ter os olhos tão brilhantes, nem ser tão alegre, nem ter esse aspecto tão desalinhado quando estava em companhia da alta aristocracia. Seus cachos curtos se agitavam cada vez que se movia, e não tinha demorado muito em perder toda a aparência de elegância e refinamento. O fato de que no final do jogo estivesse o dobro de bonita que ao princípio era uma questão de todo irrelevante. Não deveria comportar-se desse modo. Se esse tinha sido o comportamento que tinha demonstrado durante seu casamento, tanto Derrick como os Elrick estavam em todo seu direito a sentir-se ofendidos. Recordava-lhe um pouco a suas irmãs, reconheceu a contra gosto, embora lhe faltava o ar aristocrático que sempre as tinha salvado de cair na vulgaridade. Embora não podia dizer-se que a senhora Derrick fosse vulgar. Simples e sinceramente, era uma pessoa comum. Mas claro, suas origens distavam muito da alta sociedade. Durante os dias seguintes se comportou com mais decoro. Passou grande parte de


seu tempo com Justin Magnus, com quem parecia compartilhar uma estreita amizade. Entretanto, cada vez que a observava com atenção, coisa que acontecia com mais frequência do que o devido, via em seu rosto a mesma inteligência e jovialidade que viu naquela primeira tarde no salão. Mas nunca voltou a vê-la sozinha em um canto. Sua popularidade crescia entre os mais jovens, um fato muito estranho. Porque não era uma jovenzinha. Não deveria pular com os infantes. A coisa mudou na tarde que foram todos em excursão às ruínas de um castelo normando situado a vários quilômetros de distância da mansão. As carruagens estavam preparadas na esplanada principal, assim como estavam os convidados em espera das instruções de lady Renable, que era a encarregada de fazer as distribuições. Entretanto, chegado a recontagem final descobriu-se que faltava uma dama, e isso fez perigar o cuidadoso plano de emparelhar aos convidados. A dama ausente era a senhora Derrick, conforme assinalou com voz gélida lady Elrick, cujo tom sugeria que deveriam havê-lo suspeitado desde o começo. Procuraram-na durante um quarto de hora, durante o qual lady Renable esteve à beira do desmaio, até que por fim apareceu. Em realidade, mais que aparecer chegou correndo do lago com dois meninos lhe pisando os calcanhares, um menino e uma garota, e outro nos braços. -Sinto muitíssimo! -gritou alegremente e quase sem fôlego enquanto se aproximava -. Estávamos fazendo ricochetear calhaus na água e perdi a noção do tempo. Voltarei assim que leve seus filhos a seu quarto, Melanie. Entretanto, lady Renable deixou a seus filhos - cuja existência ele ignorava até esse preciso instante - aos cuidados de um lacaio e a senhora Derrick, com um aspecto um pouco desalinhado, mas bonita de qualquer forma, subiu a uma das carruagens ajudada pelo Gerard Hilliers, seu par para a excursão. Cinco minutos mais tarde já estavam em marcha, e seu comportamento foi irrepreensível durante o resto da jornada, embora acompanhasse aos cavalheiros na subida até o parapeito do castelo enquanto que as outras damas os aguardavam no pátio de armas, admirando as ruínas de baixo. Para falar a verdade, o grupinho de jovens ao qual acompanhava parecia muito animado. A situação teria sido inapropriada se fosse ela mais jovem, mas como não o era e que era viúva, acabou por reconhecer que seu comportamento não era escandaloso. Embora pouco convencional e talvez um tanto imprudente. Pouco aristocrático. Entretanto, foi no quinto dia quando ultrapassou os limites do decoro. Depois da excursão ao castelo tiveram um dia chuvoso, outro bastante cinza, mas o sol acabou aparecendo finalmente. Alguém propôs um passeio até o povoado para ver a igreja e tomar refrescos na estalagem, de modo que um bom número de convidados se somou ao plano. Wulfric entre eles. Interessavam-lhe as igrejas antigas. E como lhe era impossível evitar que as damas mais jovens o agarrassem pelas abas, em sentido figurado, menos mal, procurou deliberadamente a companhia de duas delas -a senhorita King e a senhorita Beryl Chisholm e se perguntou em que momento o mundo tinha enlouquecido. As jovenzinhas, e outras que não o eram tanto, levavam anos evitando-o, mas as duas que o acompanhavam se dirigiam a ele com uma atitude claramente coquete. Viu que a senhora Derrick caminhava com os gêmeos Culver, sobrinhos do Renable, agarrada em seus


braços. O trio ria a gargalhadas e conversava alegremente, embora a distância não lhe permitisse escutar o que diziam. A dama levava seu inseparável chapéu, um de palha com a aba um pouco caída pelo passar do tempo, embora devia reconhecer que lhe assentava estupendamente. Percebeu que tinha tendência a caminhar com grandes passadas como se tivesse energia a torrentes... e como se nunca lhe houvessem dito como devia se comportar uma dama. Em primeiro lugar entraram na igreja e o vigário lhes ofereceu uma detalhada visita guiada, já que estava muito bem informado a respeito da história e do estilo arquitetônico do edifício, de modo que respondeu a todas as perguntas que lhe fizeram, quase todas elas formuladas por ele. Depois se foram para o cemitério, um lugar pitoresco e silencioso cujo centro ocupavam dois vetustos discos. O vigário apontou as tumbas mais ilustres, embora as damas mais jovens se mostraram impacientes para ir à estalagem. Lady Sarah Buchan deixou escapar, depois de aproximar-se dele, que se não saísse do sol nesse mesmo momento e se refugiasse em algum lugar fresco, acabaria desmaiando pelo calor em questão de minutos. Entretanto, seu irmão replicou que era uma tolinha sem remédio e a puxou pelo braço enquanto lhe recordava que estavam à sombra de um dos discos e que o dia não era tão quente. Das duas uma, ou George Buchan desconhecia o que era a sutileza ou era incapaz de reconhecer as paqueras de uma mulher. Ou talvez continuava considerando que sua irmã era uma menina pequena. Fosse o que fosse, agradeceu-lhe de coração. E nesse momento, quando chegaram ao lugar reservado para a família Renable e se reuniram em torno do solene mausoléu com o respeito apropriado deixando que o vigário começasse com sua lição de história, interrompeu-os uma voz infantil. -Tia Christine! - Gritou a pleno pulmão um menino que atravessou o cemitério como uma ventania e se lançou aos braços da senhora Derrick, que o ergueu do chão e o fez girar no ar entre gargalhadas, as suas e as do menino. -Robin! – disse - escapou do jardim, não é? Mamãe vai dar uns bons açoites e papai já está olhando-o com cara muito má. - Esfregou o nariz do pequeno com o seu e o deixou no chão - Mas que recebimento mais maravilhoso! O vigário, certamente, olhava-os com cara de poucos amigos. Uma dama que devia ser sua esposa, e portanto irmã da senhora Derrick, acompanhada por uma menina e um menino maiores que Robin, aproximou-se rapidamente ao grupo com a clara intenção de levar a seu caçula de volta a casa. Não obstante, algumas das damas, aborrecidas a mais não poder de estar entre as tumbas, lançaram exclamações e adulações ao pequeno, que com seus cachos loiros e suas faces gordinhas parecia mais um bebê que um menino mais crescido. Um dos Culver lhe tirou a bola que levava em uma mão e a lançou a seu gêmeo por cima de sua cabeça, desafiando-o a jogar. Quando seu irmão a devolveu, Robin chiou e soltou um risinho enquanto tentava recuperá-la elevando os braços. A inapropriada cena teria concluído ao cabo de uns momentos. Um dos gêmeos teria dado a bola e teria revolto o cabelo ao pequenino. As damas se teriam cansado de fazer dramalhões por ser tão bonito. O vigário teria dito algo apropriado para acalmar ao menino, que teria retornado a sua casa pelas mãos de seus dois irmãos. Entretanto, a senhora Derrick inverteu os papéis de novo. Ao que parecia, gostava


muitíssimo das crianças e era capaz de ficar a seu nível na menor oportunidade. Assim se lançou de cabeça ao jogo, com a aba de seu chapéu e as fitas ao vento, apanhou a bola quando passava por cima de seu sobrinho. Tudo isso entre alegres gargalhadas. -Robin! - exclamou, afastando uns passos a toda pressa alheia por completo ao fato de que estava dando de presente aos espectadores uma escandalosa imagem de seus tornozelos - agarra-a! Como era de esperar, a bola escapou do menino, que seguiu voando pelos ares enquanto suas mãos davam uma palmada. Entretanto, apressou-se a correr atrás dela, colheu-a com uma mão e a devolveu a sua tia. Mas dada a falta de coordenação própria de um bebê, lançou-a com força e a bola começou a subir... e a subir... mas não desceu. Porque ficou firmemente encaixada entre um dos ramos do disco e o tronco. O menino começou a mostrar todos os sinais próprios de uma manha de criança. Seu pai pronunciou seu nome com evidente aborrecimento. Seu irmão tentou distraí-lo convidando-o a ver o que acabava de fazer. Sua irmã o acusou de ser muito torpe. A senhora Derrick se aproximou da árvore. E Anthony ou Ronald Culver - era impossível distingui-los - começou a subir pelo tronco. Chegado a esse ponto, a cena ainda poderia ter terminado pouco depois. E em realidade, os culpados de que se prolongasse tanto não foram outros senão os gêmeos. Não obstante, embora um deles resgatasse a bola e a jogou de volta ao chão sem a menor dificuldade, foi incapaz de fazer o mesmo com sua própria pessoa. Pelo visto, as costas da jaqueta tinham travado em um ramo bastante groso e ficou preso lá encima. Ronald ou Anthony Culver teria subido a resgatar a seu gêmeo sem dúvida alguma. Entretanto, enquanto perdia um tempo precioso zombando sem piedade do atoleiro no que seu irmão se encontrava, outra pessoa foi ao resgate. E ficou patente que não era a primeira árvore a qual a senhora Derrick tinha subido em sua vida. Observou com sofrida resignação como a dama introduzia a mão sob a jaqueta do Culver para libertá-lo do ramo. Apesar das gargalhadas que a cena suscitou, foi uma evidente exibição de vulgaridade para não mencionar a exibição de pernas que todos puderam ver. Culver desceu ao chão de um salto e ofereceu sua ajuda com gentileza a sua salvadora. Não obstante, ela recusou e se sentou no ramo mais baixo de onde saltou. -Sempre que subo numa árvore - disse com voz alegre e o chapéu ligeiramente torcido, os cachos alvoroçados, as faces ruborizadas e os olhos brilhantes - me esqueço que tenho que voltar a descer. Lá vou! - E se deixou cair. E caiu. Embora parte de seu vestido ficou atrás escutou-se o som da malha ao rasgar-se quando o vestido se travou em outro impertinente ramo, que lhe produziu um rasgão no flanco da bainha até o talhe. Apesar de não ser quem mais perto se encontrava dela, foi, o primeiro em chegar a seu lado. Colocou-se frente a ela para ocultá-la aos olhos de outros e manteve o olhar cravado em seu rosto. Mais adiante teve a sensação de que talvez tivesse estado "preso" a ela, porque certamente recordava o calor que irradiava seu corpo e esse aroma tão feminino que desprendia sob o sol. Tirou a jaqueta tão rápido como pôde uma façanha porque seu


criado pessoal tinha empregado toda sua força e engenho para colocá-la e a envolveu com ela enquanto que a dama tentava unir o rasgão na medida do possível. Olhou-a com seriedade nos olhos. E lhe devolveu um olhar risonho! Embora era certo que o rubor que lhe tingia as faces era mais intenso que o que teria provocado o simples esforço físico. -Que constrangimento mais espantoso e mortificante – disse - Não lhe parece estranho que sempre acabe me pondo em evidencia diante da aristocracia, excelência? Não, não lhe parecia estranho absolutamente. A suas costas se produziu um grande alvoroço, mas o evitou por completo e se limitou a arquear as sobrancelhas. -Christine - a voz do vigário se ergueu por cima do barulho - sugiro que entre no vicariato e deixe que Hazel a atenda. -Obrigado, Charles, vou agora mesmo - aceitou enquanto olhava a ele com expressão risonha - O problema é que não sei se poderei fazê-lo decentemente. -Segurou os extremos rasgados do vestido com ambas as mãos, embora fosse óbvio que necessitaria quatro pares mais para cobrir-se um pouco... -Me permita, senhora - disse ele, que passou a cobri-la com a jaqueta da cintura para baixo, tentando não tocá-la, a fim de não piorar seu embaraço. Porque supunha que estava envergonhada, como bem merecia. Entretanto, não serviu de nada. Era evidente que não poderia caminhar até ao vicariato sem expor muito mais que os tornozelos e as pernas como tinha acontecido enquanto subia à árvore. -Agarre a jaqueta - lhe ordenou. Assim que o obedeceu, inclinou-se e a ergueu nos braços. Pôs-se a andar ao vicariato sem dirigir aos outros nenhum olhar nenhuma palavra, e se perguntou como demônios se colocou em uma situação tão ridícula e tão incomum nele. O grupo se afastou para lhe abrir passagem algo que por sorte não era nada incomum. Nesse momento não sentia nenhuma compaixão pela humanidade, muito menos pela parte da humanidade que levava nos braços. As crianças puseram-se a andar dando saltos a seu lado e o pequenino relatou a seus irmãos o que acabava de passar como se não o tivessem presenciado. Inclusive imitou com grande acerto o som da musselina ao rasgar-se... -Ai, Meu deus! -exclamou a senhora Derrick - Devo pesar muitíssimo. -Absolutamente, senhora - lhe assegurou. -Vejo-o um pouco mal-humorado - disse ela - Suponho que seus criados serão os encarregados de realizar este tipo de tarefas por você. - Em regra geral as damas não costumam saltar das árvores, destroçando os vestidos no processo, ao redor de mim nem ao redor de meus criados – replicou. Ao cabo de um minuto chegaram ao vicariato. A esposa do vigário tinha tido a previsão de armar-se com uma enorme toalha branca com a qual passou a cobrir a sua irmã sem mais e entraram na casa e a deixou no chão da cozinha. A cozinheira ou a governanta, não teria sabido dizer, lançou uma exclamação surpreendida antes de voltar a atender o guisado que tinha ao fogo. -Adeus a meu segundo melhor vestido de musselina, Hazel - comentou a senhora


Derrick -Chorarei sua perda. Era meu preferido e só tinha três anos. Agora terei que pegar o terceiro e por fim o quarto subirá um posto. -Talvez possa remendar-se - sugeriu sua irmã com mais otimismo que bom senso. Mas enquanto isso enviarei Marianne sem perda de tempo a Hyacinth Cottage para que lhe traga um vestido limpo e possa retornar ao Schofield Park. Os meus ficariam muito grandes. Marianne, vá a casa da avó e diga, a ela ou à tia Eleanor, que lhe dêem um vestido para a tia Christine, quer, querida? Espere lá em cima, Christine. Nesse momento a senhora Derrick percebeu que não os tinha apresentado e procedeu a emendar o engano. -Hazel, apresento-a ao duque de Bewcastle -disse-. Excelência, minha irmã, a senhora Lofter. Embora suponha que deveria lhe ter perguntado se desejava conhecê-la, não é? Enfim, já é muito tarde. Saudou-a com uma reverência, e a senhora Lofter, que de repente parecia aterrada, fez o mesmo com evidente estupidez. -Suponho que quererá reunir-se com outros na estalagem - lhe disse a senhora Derrick, que começou a retorcer-se por debaixo da toalha e conseguiu tirar sua jaqueta para devolvê-la - Não tem por que sentir-se obrigado a me esperar. -Ainda assim a esperarei, senhora - disse com um brusco assentimento de cabeça Aguardarei lá fora e a acompanharei até a estalagem. Entretanto, seus motivos para tomar semelhante decisão lhe eram um mistério, já que a dama tinha passado a maior parte de sua vida na aldeia e seria capaz de encontrar o caminho com os olhos fechados. Durante a meia hora de espera, entreteve-se primeiro vestindo a jaqueta como pôde, já que não contava com a assistência de seu criado, e depois mantendo uma incoerente conversa com o vigário. Enquanto isso, o filho mais velho do dito brincava de correr pelo jardim com seu irmão nas costas. A senhora Derrick saiu por fim vestindo um vestido azul claro que, a julgar pelas costuras, talvez fosse azul escuro quando se confeccionou. Perto da bainha se distinguia um remendo muito bem dissimulado, mas evidente de todas formas, um possível indício de que o objeto tinha sofrido algum acidente no passado. Penteou-se e levava o chapéu direito. Tinha as faces rosadas e brilhantes, como se se acabasse de refrescar o rosto com água. -Ai, Deus! - exclamou olhando-o - esperou-me! Respondeu ao comentário com uma rígida reverência. Como era possível que uma criatura tão maltrapilha conseguisse não só ser muito bonita mas também parecer transbordante de vida? Perguntou-se. Viu-a virar-se para pôr a cabeça pela porta da cozinha. -Vou! – gritou - Obrigado pela água e o sabão, senhora Mitchell. Você é um encanto. Estava falando com a criada!? Sua irmã saiu nesse momento e se abraçaram. Ao vê-las, os meninos correram para reclamar seu correspondente abraço de despedida, embora o mais velho estendeu a mão direita, envergonhado, e lhe deu um apertão entre gargalhadas. Despediu-se da mesma maneira do vigário, embora acrescentou um beijo na face e todos juntos, a trupe completa, rodearam a casa em direção ao jardim dianteiro para despedir-se dela agitando as mãos, embora a estalagem estivesse a dois escassos minutos a pé.


A cena foi assombrosa. -Jamais compreenderei como acerto para me colocar nestas embrulhadas tão espantosas - disse a senhora Derrick depois de aceitar o braço que lhe tinha oferecido. Mas assim sou eu. E sempre o fui. Hermione, que tentou me converter na dama perfeita depois das bodas, acabou desesperada. Oscar chegou a acreditar que fazia de propósito para envergonhá-lo. Mas não faço de propósito. Limitou-se a guardar silêncio enquanto ela prosseguia. -Embora suponha que se tivesse esperado um pouco – seguiu - Anthony Culver teria ido ao resgate. Não acha? -Efetivamente, senhora - respondeu com brusquidão. Nesse momento escutou-a soltar uma gargalhada. -Enfim – disse - ao menos nenhum dos convidados do Melanie e Bertie me esquecerão em uma boa temporada. -Eu diria que não o farão - concedeu. Nesse momento entraram na estalagem e na hora a rodeou um grupo entre cujos integrantes estavam Justin Magnus, sua irmã mais nova e os gêmeos Culver. Todos a saudaram como se fosse uma espécie de heroína, embora um tanto cômica. As risadas aconteciam sem pausa, incluídas as da recém chegada. Ao menos, teve que reconhecer, levava bem as coisas. Entretanto, quando a manhã chegava a seu fim se viu obrigado a admitir que carecesse de boas maneiras. E se suas palavras eram sinceras e já tinha demonstrado em anteriores ocasiões que dizia a verdade, o desastre do disco não era um episódio esporádico em sua vida. Teria que cuidar-se e guardar as distâncias com ela durante o resto de sua estadia. Ainda assim e apesar de que começava a confundir ao resto das damas mais jovens em sua mente, descobriu que pensava mais da conta na senhora Derrick. Tinha uns olhos lindos e um rosto bonito e alegre embora as sardas e o bronzeado danificassem o efeito capaz de transformar-se em uma beleza deslumbrante quando ria ou se encetava em alguma atividade física extenuante. Possuía uns tornozelos magros, pernas torneadas e uma figura agradavelmente curvilínea. E não foi nem o único em notá-lo. Logo se converteu na preferida da maioria dos cavalheiros. Era difícil explicar seu atrativo com palavras, porque não era nem elegante nem refinada... nem jovem. Mas possuía uma espécie de faísca, de jovialidade, de vitalidade envolvente, de... Possuía atrativo sexual. Para cúmulo e conforme tinha entendido, estava a sem compreender como rezava a expressão. Graças a uma pergunta dirigida a Mowbury, tinha descoberto de forma fortuita que o marido dilapidou sua fortuna nos últimos anos de sua vida nas mesas de jogo e a deixou com uma mão em frente da outra ao morrer em um acidente de caça na casa senhoril do Elrick. Aparentemente, o visconde se fez encarregado das vultosas dívidas de seu irmão, mas não do cuidado de sua viúva. Seu segundo melhor vestido matinal, que tinha acabado esmigalhado e não tinha acerto algum, tinha três anos...nada mais. E não tinha precisamente muitos com os quais repô-lo. Não achava nem um pingo de graça saber-se atraído por uma mulher que carecia


por completo das qualidades que admirava em uma mulher. De fato, incomodava-lhe profundamente descobrir imaginando-se o que sentiria se se deitasse com ela. Porque não tinha por costume olhar às damas, nem às mulheres em geral, com idéias luxuriosas. Mas se sentia atraído pela senhora Derrick. E se perguntava o que sentiria... No dia do desastroso acidente do cemitério, Christine retornou ao Schofield Park, caminhando com Justin. -Teve que esperar muitíssimo tempo na estalagem – disse - Mas agradeço muito que o tenha feito, Justin. Se não me tivessem esperado, teria tido que fazer todo o caminho de volta com o duque de Bewcastle. -Pensava que a partir deste momento ele veria como uma espécie de cavalheiro de brilhante armadura - replicou ele com um sorriso. -Nunca passei tanta vergonha na vida - confessou. - Se pelo menos ele ficasse na mansão e não tivesse presenciado a espantosa cena, não me pareceria tão embaraçosa. Justin, nem sequer respirou com um sorriso nem com uma palavra de consolo. Não me importa que tenham rido de mim dadas as circunstâncias, eu mesma o teria feito se houvesse acontecido a outra pessoa. E ao final eu mesma acabei rindo. Mas, embora se comportasse em todo momento de forma irrepreensível e cavalheiresca e lhe estou muito agradecida pela rapidez com a que reagiu, estava mal-humorado e tive a sensação de que me tratava como a um trapo. Tomara me tivesse engolido a terra. Se ele não tivesse estado no cemitério, teria agarrado o vestido como facilmente poderia e procuraria refúgio no vicariato tranquilamente, sem que minha dignidade se ressentisse. -Tomara te tivesse visto, Chris - replicou Justin, incapaz de conter a risada. - Imagino perfeitamente, obrigada - lhe assegurou antes de explodir em outra vez em gargalhadas. Ai, Meu deus! Pensou. Ai, Meu deus! Quando se colocou frente a ela e a olhou tão sério nos olhos enquanto ocultava seu estado de semi-nudez ante os atônitos olhares de outros, seu corpo reagiu de tal forma a sua proximidade que agradeceu por poder dissimular tal reação com o embaraço por seu aspecto e esforços por cobrir-se. Tinha-o cheirado! Levava uma colônia almiscarada e indubitavelmente muito cara. E o calor que irradiava seu corpo a assaltou como se fosse um forno ao vermelho vivo. Menos mal que Justin não percebeu nada disso. Certas coisas era melhor ocultar inclusive dos melhores amigos. Não era sensato, nem elogiável certamente, suspirar por um homem a quem desprezava com todas suas forças. Adoraria poder escapar um momento para seu diminuto dormitório quando chegassem à mansão. Em realidade, lhe teria encantado se dispusesse de um abismo sem fundo onde pudesse arrojar-se e assim desaparecer. Mas as mocinhas que tinham presenciado sua humilhação não iriam permitir uma fuga fácil. -Eu não teria sido capaz de me pôr em evidência dessa maneira tão escandalosa nem por todas as apostas do mundo - afirmou lady Sarah com desdém depois de citá-la na saleta amarela junto a todas as demais. -E se pensar que já ganhou, senhora Derrick - acrescentou Miriam Dunstan-Lutt com evidente ressentimento - vou ter que contrariá-la. Desde que chegamos à estalagem até


que você apareceu com o duque de Bewcastle só transcorreram cinqüenta minutos. Eu mesma controlei o passar do tempo no relógio que havia sobre a porta. Além disso, estiveram acompanhados virtualmente todo o momento pelo vigário, sua esposa e seus filhos, e não a sós. Outra vez a ditosa aposta! -Me alegro de não ter que lhe dar o dinheiro hoje, prima Christine - disse Audrey com voz tensa. - Porque ninguém me deu ainda seu guinéu. -Eu acredito que deveríamos nos compadecer um pouco da senhora Derrick - lhes recordou Harriet King, embora sua voz não tinha nada de compassiva. - Suponho que a esposa do vigário deve ter tirado esse vestido do baú dos trapos. -Mas o remendo da bainha está tão bem feito, Harriet - declarou lady Sarah com voz açucarada - que é quase imperceptível. -Entretanto - interveio Rowena Siddings - terá que admitir que a cena do cemitério foi impagável. Jamais ri tanto. Tomara que tivesse visto sua cara quando aterrissou, senhora Derrick. -Prorrompeu em gargalhadas e as demais, salvo pelas notáveis exceções da senhorita King e de lady Sarah, uniram-se. Christine, na falta de outra coisa que fazer pois preferia não encetar-se em uma disputa encarniçada, riu de novo. Claro que rir da mesma coisa perdia a graça ao cabo de um tempo. A conversa tomou outros roteiros e acabaram discutindo a respeito das condições para ganhar a aposta. As damas de mais idade, que não as tinham acompanhado à aldeia, fizeram eco do incidente pouco depois, teria sido um milagre de proporções épicas se tivesse passado sem pena nem glória. Lady Mowbury não lhe expôs o menor problema. Convidou-a a sentar-se a seu lado no salão antes do jantar para que lhe contasse sua versão da história; coisa que fez, embora com um considerável embelezamento dos fatos. Tanto lady Chisholm como a senhora King evitaram o assunto e mantiveram as distâncias, talvez temendo que a afligisse algo contagioso que pudesse as impulsionar, no momento menos pensado, a saltar das árvores, deixando-a metade do vestido. Hermione se sentou a seu lado quando lady Mowbury começou a falar com outro convidado e Basil se colocou em frente a ela. Era a primeira vez desde sua chegada que se aproximaram dela e que demonstravam a intenção de lhe falar. -Suponho que era muito pedir que se comportasse com um mínimo de decoro durante duas semanas, Christine - sussurrou Hermione com voz tensa. -E nem sequer passou uma semana desde que chegamos... - assinalou Basil. -Não é capaz de demonstrar respeito à memória de meu cunhado? - perguntou Hermione com voz trêmula. - Nem a nós? -Para cúmulo, obrigou ao Bewcastle, nada mais e nada menos, que fosse resgatá-la - acrescentou Basil - Embora não sei por que me surpreendi quando me relataram o incidente, na verdade. -O que pensará agora de nós? - perguntou Hermione, que parecia sinceramente nervosa, ao mesmo tempo que levava um lenço aos lábios. -Eu diria que pensa o mesmo que ontem e anteontem - respondeu ela ao mesmo


tempo que um intenso rubor lhe cobria ao meio. - E que a opinião que tem de mim tem caído em pedacinhos. Entretanto, como estou segura de que, para começar, tampouco me tinha em alta estima, não acredito que possa cair muito mais baixo. Não vou permitir que esta questão me roube o sono, na verdade. O comentário foi o mais ridículo que havia dito e feito em todo o dia, não lhe cabia a menor duvida, porque era fruto do enorme aborrecimento que a embargava. O incidente a que se referiam seus cunhados já era suficientemente embaraçoso por si, mas não tanto para lhe roubar o sono ou o apetite. A animosidade que os movia, isso sim, era outro cantar. Houve um tempo no qual foram amáveis com ela. Tinham-lhe mostrado simpatia. Era possível que Hermione inclusive lhe tivesse tomado afeto. Por sua parte só tinha existido carinho por eles. Tinha tentado com todas suas forças amoldar-se a seu mundo, e durante os primeiros anos o tinha conseguido. Tentou ser uma boa esposa para o Oscar e o quis com loucura. Mas em um dado momento tudo se desmoronou e nesse instante a tratavam com amarga hostilidade. Nem sequer quiseram escutá-la depois da morte de Oscar. Bom, em realidade a escutaram mas se negaram a acreditar nela. -Suponho que paqueraste com o duque de Bewcastle - aventurou Hermione - Não me surpreenderia absolutamente porque é o que está fazendo com todos os outros. Ficou em pé de um salto e se afastou sem dizer uma só palavra mais. A mesma acusação de sempre! E doía tanto como de costume. Por que podiam outras damas falar com os cavalheiros, rir com eles, dançar com eles e ser admiradas por mostrar-se sociáveis enquanto que a ela sempre a acusavam de paquerar? Quando nem sequer sabia como fazê-lo! A menos que o fizesse de forma inconsciente, claro estava. Além disso, se tivesse sabido como, jamais o teria feito durante seu matrimônio. Porque se casara apaixonada. E embora não o tivesse estado, achava firmemente que uma esposa devia fidelidade absoluta a seu marido. Jamais lhe ocorreria paquerar com ninguém apesar de ser uma mulher livre. Para que? Se desejasse contrair matrimônio de novo, contava com várias opções bastante aceitáveis entre os cavalheiros de seu entorno. A questão era que não queria voltar a casar-se. Como era possível que alguém, embora fosse Hermione, pudesse acreditá-la capaz de paquerar com um homem como o duque de Bewcastle ? Entretanto, antes que pudesse fugir da sala e evitar desse modo ao resto dos convidados durante o jantar, Melanie a pegou no braço e lhe sorriu com carinho. -Christine - lhe disse - sei que se houver um menino aborrecido, você o entreterá, e que se alguém precisa ser resgatado, será você quem vai em sua ajuda embora isso implique subir a uma árvore. Se lhe disser a verdade, achei que ia sofrer uma enxaqueca quando me contaram o acontecido. Mas Bertie riu muito quando Justin contou. Até o Héctor, o bom do Héctor, achou-o hilariante. Assim decidi seguir seus exemplos. Asseguro-lhe que não podia parar de rir, e lhe peço por favor que não me olhe nem de esguelha agora mesmo ou explodirei em gargalhadas de novo. Só Hermione e Basil, os grandes tolos, negaram-se a ver a graça da situação, embora Justin lhes assegurou que o fez de boa fé e que não procurava se converter no centro de atenção, muito menos chamar a atenção de Bewcastle. Tomara tivesse estado ali para vê-lo! -Se quiser, partirei para casa às escondidas e não voltarão para ver-me durante o resto da festa – sugeriu - Espero que me perdoe, Melanie.


Melanie se limitou a lhe dar um apertão no braço e a dizer que não fosse tola. -Christine, querida –replicou - relaxe e desfrute. Convidei-a precisamente para isso; para que não esteja tão ocupada durante duas semanas. Lastimo que tivesse que ser o duque de Bewcastle quem fosse em sua ajuda, mas não vamos nos preocupar mais por isso. Certamente esquece isso antes que acabe o dia e é possível que não volte a lhe dirigir a palavra durante o resto de sua estada. -Isso seria um alívio - afirmou ela. -Enquanto isso - seguiu Melanie - está claro que há um bom número de cavalheiros que bebem os ventos por você, como sempre; o conde incluído. -O conde de Kitredge!? - perguntou, surpreendida. -Quem se não? - respondeu sua amiga e depois de lhe dar uns tapinhas na mão a modo de despedida para prosseguir com seus deveres de anfitriã, acrescentou - Seus filhos já estão crescidos e está procurando uma nova esposa. Atreveria-me a dizer que poderia fazer outro brilhante matrimônio se quisesse. Isso sim, me prometa agora mesmo que não voltará a subir a uma árvore enquanto dure a festa. "Outro brilhante matrimônio." A simples ideia bastava para lhe provocar pesadelos. Não obstante, parecia que Melanie tinha razão em uma coisa. Durante o que restava de dia e ao longo dos dois ou três seguintes o duque de Bewcastle evitou relacionar-se com ela. Embora ela tampouco fez nada para cruzar-se em seu caminho, é obvio. A mera ideia de que o duque, ou qualquer outro convidado, pudesse pensar que tinha estado paquerando com ele... Sempre que o olhava, por perturbador que lhe fosse, era incapaz de manter a vista afastada dele mais de cinco minutos quando estavam no mesmo aposento, via-o agir com aquela arrogância e aquela fria dignidade tão características de sua pessoa. Quando seus olhares se encontravam, coisa que acontecia com muita frequência, o duque se limitava a erguer uma sobrancelha ou as duas e a agarrar o cabo de seu monóculo, como se tivesse a intenção de verificar o surpreendente fato de que uma simples mortal se atrevera a enfrentar seu olhar. Tinha acabado por odiar esse monóculo. Entretinha imaginando-as coisas que poderia fazer com ele se tivesse a oportunidade. Como por exemplo, meter-lhe pela garganta e observar como lhe deformava o pescoço enquanto o engolia. Essa imagem lhe ocorreu um dia que estava sentada em um canto do salão, enquanto tentava recuperar seu breve papel de espectadora satírica, e se deu a casualidade de que seus olhares se encontraram no preciso momento no qual chegava à parte mais gráfica. De repente, descobriu que a estava observando através da lente. E se viu obrigada a admitir em seu foro interno que se sentia muito atraída por ele. Que morria de curiosidade por saber o que sentiria caso se deitasse com ele. A simples ideia a deixou horrorizada. Mas certas partes de sua pessoa totalmente alheias a seu controle, a parte situada entre as coxas, por exemplo despertaram, sacudidas pelo influxo da luxúria. Detestava o duque de Bewcastle com todas suas forças. Não, ia mais além. Detestava a ele como pessoa e também detestava tudo o que ele representava. Mas reconhecia que a assustava, um pouco ao menos, embora preferisse que a estirassem no


potro até que seus membros alcançassem o dobro de sua longitude a admitir tão degradante sensação ante outra pessoa. Apesar de tudo seguia perguntando-se o que se sentiria na cama com ele e em segundo que ocasiões sua imaginação ia um pouco mais à frente... Também em segundo lugar às vezes disse a si mesma, que necessitava urgentemente que um doutor lhe examinasse a cabeça.


Capítulo 6

Wulfric não demorou muito em compreender que as convidadas mais jovens tinham posto em marcha algum tipo de provocação no qual ele estava envolvido. Apesar de ser um dos solteiros mais cobiçados da Inglaterra, não era dos homens que atraía às jovens. Ainda assim, todas se pegavam a ele em quase cada intolerável minuto do dia e utilizavam todas as artimanhas imagináveis para separá-lo do grupo. Coisa que não achava nem um pingo de graça. Contra-atacou adotando uma atitude mais distante e fria quando se encontrava em companhia das damas e também relacionando-se quanto lhe era possível com os cavalheiros e os convidados de mais idade. Como já não podia fazer nada para evitar a festa, decidiu que a utilizaria para aprender uma lição. Essa era a consequência de haverse sentido sozinho e deprimido durante uns dias muito tontos depois que o Parlamento encerrara suas sessões. Jamais permitiria que lhe acontecesse de novo. Sempre tinha estado sozinho no que de verdade importava. Ao menos, desde os doze anos, quando o separaram de seus irmãos e o deixaram ao cargo de dois tutores fiscalizados de perto por seu pai, quem, consciente de que se aproximava sua morte, quis que seu primogênito e herdeiro fosse instruído para sucedê-lo. Estava sozinho desde os dezessete anos, quando seu pai morreu e ele se tornou o duque de Bewcastle. Estava sozinho aos vinte e quatro, quando Marianne Bonner o rejeitou de um modo especialmente humilhante. Estava sozinho desde que seus irmãos se casaram, todos em questão de dois anos. Estava sozinho desde que Rose morreu em fevereiro. Estar sozinho não era o mesmo que sentir-se sozinho. Sentir compaixão por si mesmo não tinha sentido. Como tampouco o tinha assistir à primeira festa campestre que se cruzava em seu caminho. Estar em companhia de outras pessoas costumava ser muito menos passível que estar sozinho. Sua irritação aumentou uma tarde em concreto depois de uma longa cavalgada durante a qual o separaram do grupo principal em duas ocasiões, primeiro a senhorita King e depois a senhorita Dunstan-Lutt, com pretextos igualmente ridículos, e em ambas as ocasiões teria acabado perdido se não tivesse um grande sentido de orientação e um instinto de sobrevivência inclusive mais desenvolvido. Estavam tentando lhe estender uma armadilha para casar-se com ele? A mera ideia era ridícula. Embora não fosse muito velho para ser o pai das moças, assim se sentia. Em lugar de seguir ao resto do grupo de volta na mansão, escapou e atalhou pelo caramanchão depois do qual se estendia um longo passeio de erva. Era um lugar pitoresco e isolado, com muretas de pedra que chegavam à altura dos joelhos de ambos os lados e flanqueado por duas fileiras de arbustos cujos ramos cresciam sobre um teto feito de barras e abobadado. A impressão era a de estar em uma espécie de catedral gótica ao ar livre. Que nesse momento estava ocupada, por certo. A senhora Derrick estava sentada em uma das muretas, lendo o que parecia uma carta. Não o tinha visto. Talvez pudesse retroceder até o caramanchão sem fazer ruído e


encontrar outro lugar onde passear, coisa que não pôde fazer na outra ocasião junto ao lago, quando a dama deu um encontrão nele. Entretanto, não retrocedeu. Talvez tivesse o desafortunado costume de carecer de maneiras em algumas situações, mas ao menos não era tola, e não suspirava nem paquerava. Aproximou-se, e ela ergueu a cabeça e o viu. -Ah! - ouviu-a exclamar. Voltava a usar o chapéu de palha com a aba caída. Em realidade não a tinha visto com outra coisa em toda essa semana. Salvo pelas fitas que tinha atadas sob o queixo, o objeto carecia de adornos. Entretanto, lhe assentava maravilhosamente. O resto de seu traje consistia em um vestido de manga curta confeccionado em popelina a raias brancas e verdes com o decote quadrado e rematado por uma extremidade bordada, que já tinha brilhado em várias ocasiões. A diferença das demais convidadas, que trocavam de roupa varias vezes ao dia e que quase nunca usavam o mesmo vestido duas vezes. O vestido não era novo nem tampouco estava na última moda, perguntou-se se era seu melhor vestido ou o que acabava de subir ao segundo posto. Estava muito bonita. -Não a incomodarei, senhora Derrick. - Inclinou a cabeça sem mover as mãos, que tinha entrelaçadas às costas - A menos que queira dar um passeio comigo, é obvio. Em um primeiro momento pareceu surpreendida. Nesse instante, entretanto, olhavao com essa expressão que o intrigava na mesma medida que o irritava às vezes. Como era possível que rira, que inclusive o fizesse a gargalhadas, sem mudar a expressão de seu rosto? -Já voltou de seu passeio a cavalo? - perguntou-lhe - E suponho que agora quer escapar das pressões humanas. E aqui estou eu para perturbar sua solidão novamente. Entretanto, nesta ocasião eu estava aqui antes de você. Ao menos, disse-se, estava com uma pessoa que não lhe impunha constantemente sua presença em um esforço por ganhar qualquer que fosse a provocação que as jovens tinham combinado. - Quer passear comigo? - perguntou por sua vez. Por um instante acreditou que se negaria, e se alegrou. por que demônios ia querer a companhia de uma mulher que, em sua opinião, nem sequer deveria ter sido convidada à festa? Entretanto, viu-a olhar a carta, dobrá-la e guardá-la em um bolso de seu vestido antes de levantar-se. -Sim - respondeu. E nesse momento se alegrou com sua resposta. Parecia ter passado uma eternidade desde a última vez que uma mulher lhe esquentou o sangue. Rose tinha morrido há seis meses. Ainda lhe surpreendia o muito que lamentava sua perda. Sempre tinha acreditado que o seu era um acordo de negócios muito satisfatório mais que uma relação pessoal. Era indubitável que Christine Derrick, por alguma estranha razão, esquentava lhe o sangue. Nesse mesmo momento seus sentidos se aguçaram e foi muito consciente da cúpula de ramos que os cobria, do céu azul que se via entre as folhas e da tapeçaria de luzes e sombras que o sol desenhava no longo passeio que tinham por diante. Foi muito


consciente do calor desse dia estival, da suave brisa em seu rosto, da intensa fragrância da erva e das folhas. Os gorjeios dos pássaros reverberavam no passeio, embora nenhum fosse visível. A senhora Derrick pôs-se a andar a seu lado. A aba do chapéu lhe ocultava o rosto. Recordou que no dia que passearam juntos pelo lago levava a cabeça descoberta. -Foi agradável a excursão a cavalo? -escutou-a perguntar - Suponho que poderia dizer-se que você nasceu na sela. -Isso teria sido um pouco incômodo para minha mãe -replicou e suas palavras reportaram uma fugaz visão de seu rosto quando virou a cabeça, para lhe sorrir com expressão travessa - Mas sim, obrigado, a excursão foi agradável. Em realidade, nunca tinha entendido o que lhe viam no fato de cavalgar por pura diversão, embora seus irmãos o faziam com frequência embora "cavalgar" não era a palavra mais apropriada para o que faziam. Em regra geral costumavam ir a galope, saltando qualquer obstáculo que se cruzasse em seu caminho. -Agora toca a você - disse ela depois de uma pausa. -Como diz? - perguntou. -Eu fiz uma pergunta - respondeu -, e você a respondeu. Possivelmente poderia ter estendido seu comentário descrevendo a excursão, o destino e as estimulantes conversações que manteve com o resto dos cavaleiros. Mas escolheu responder com suma brevidade e sem oferecer informação útil. Agora cabe a você tentar fazer uma conversa agradável. Estava rindo dele uma vez mais. Ninguém jamais tinha rido dele. Por curioso que parecesse, era-lhe intrigante que se atrevesse a fazê-lo. -Estava lendo uma carta agradável? - replicou. A pergunta lhe arrancou uma gargalhada alegre e sincera. -Touché! - respondeu - Era da Eleanor, minha irmã maior. Tem-me escrito embora só esteja a alguns quilômetros daqui, em Hyacinth Cottage. É uma escritora compulsiva de cartas, e também muito divertida. Encarregou-se de dar minha aula de geografia na escola da aldeia dois dias depois que eu partisse e se pergunta como é possível ensinar algo aos meninos se não deixarem de fazer perguntas sobre qualquer assunto imaginável, desde que não esteja relacionado com a lição do dia, é obvio. Esse é seu segredinho. Os meninos são muito preparados e se aproveitam dos incautos que não sabem o que fazer. Darei-lhes um bom sermão quando retornar, mas se limitarão a me olhar com cara de não ter nunca quebrado um prato e eu acabarei rindo. E eles também rirão. E a pobre Eleanor jamais será vingada. -Dá aulas na escola. - Era uma afirmação, não uma pergunta, mas a viu virar a cabeça para olhá-lo uma vez mais. -Ajudo um pouco - respondeu - Afinal, devo fazer algo. Se por acaso não sabe, as mulheres devem fazer algo se não quisermos morrer de aborrecimento. -Pergunto-me por que não ficou com Erick e sua esposa depois que seu marido morreu – disse - Assim teria continuado frequentando o círculo social ao qual deve ter se acostumado durante seu matrimônio e teria encontrado mais atividades e entretenimentos dos que desfruta aqui. Além disso, Elrick teria se encarregado de que renovasse seu guarda-roupa durante esses dois anos.


-Certo, verdade? -replicou ela, mas não aprofundou no tema. Não era a primeira vez que evitava falar de seu matrimônio ou de algo relacionado com ele. E já se dera conta de que os Erick mantinham distância dela, e vice-versa. Talvez não lhes caísse bem. Era provável que levaram uma decepção quando Oscar se casou com ela e que não a tivessem acolhido com gosto no seio da família. Não seria surpreendente. -Poderia lhe contar mais coisas de minha carta - continuou ela depois de uma breve pausa - mas não devo monopolizar a conversa. Passa os verões indo de uma festa campestre a outra? Sei que é frequente entre a alta sociedade. Oscar e eu estávamos acostumados a fazê-lo. -Esta é a primeira a que vou em anos - respondeu - Passo os verões no Lindsey Hall. As vezes viajo pelo país, inspecionando minhas outras propriedades. -Deve ser estranho ser tão rico - comentou ela. A vulgaridade do comentário fez que arqueasse as sobrancelhas. As pessoas bem educadas não falavam de dinheiro. Embora em seu caso o estranho seria não ser rico. Saltava à vista que ela era pobre, lhe seria estranho ser pobre. Supôs que era uma questão de perspectiva. -Espero que isso não fosse uma pergunta - replicou. -Não. - Soltou uma gargalhada. Sua risada era rouca e incitante. - Peço desculpas. Não foi um comentário muito educado, não é? Não lhe parece um passeio bonito? Toda a propriedade o é. Lembro que em uma ocasião, quando Oscar vivia, perguntei ao Bertie por que não abria a propriedade ao público para que todos os habitantes do povoado pudessem passear por aqui, ao menos quando a família não estivesse em casa. Ele se limitou a grunhir e logo pôs-se a rir dessa maneira tão sua antes de me olhar como se tivesse soltado algo tão desatinado que não merecia sequer resposta. Lindsey Hall tem muito terreno? E suas outras propriedades? -Sim - respondeu - Quase todas são extensas. -E permite que as pessoas desfrutem de alguma delas? -Permite você que as pessoas entrem em seu jardim, senhora Derrick? -perguntou por sua vez. Olhou-o no rosto uma vez mais. -Há uma enorme diferença - respondeu ela. -Há-a? - Essa era a classe de atitude que o irritava - Estamos falando de sua casa, de seu jardim ou de sua propriedade, de seu domínio privado, do lugar onde se pode relaxar e ter intimidade, onde pode ter espaço para suas necessidades privadas. Não vejo nenhuma diferença essencial entre sua casa e a minha. -Salvo o tamanho - assinalou ela. -Sim - concordou. Detestava as pessoas que o faziam ficar na defensiva. - Acho que devemos estabelecer que sempre estaremos em desacordo, excelência. De outro modo, chegaríamos aos punhos, e estou convencida de que levaria a pior parte. Uma vez mais, é questão de tamanho. Voltava a rir dele e talvez também dela mesma. Ao menos não era como esses


desagradáveis cruzados que se sentiam obrigados a discutir até ficarem ofensivos, sobre tudo se o assunto estava relacionado com os privilégios da aristocracia e as injustiças que sofriam os pobres. De fato, todas suas propriedades salvo Lindsey Hall estavam abertas a qualquer viajante que batesse a sua porta e pedisse permissão à governanta para entrar. Era uma cortesia muito estendida entre os latifundiários. As luzes e as sombras brincavam sobre ela enquanto caminhavam. Sua figura era muito agradável à vista, voltou a comprovar. Seu corpo era o de uma mulher amadurecida, não o de uma jovenzinha magra. Tentou formular em sua mente as razões pelas quais lhe era tão extremamente atraente. Conhecia muitas damas muito mais formosas e elegantes que ela, incluídas várias convidadas à festa. Essa tez ligeiramente bronzeada e as sardas impediam de pontuar a de beleza. Além disso, levava o cabelo curto e com frequência alvoroçado. Entretanto, irradiava uma energia, uma vitalidade, que lhe chamou a atenção desde o começo. Estava rodeada por um halo de luz e de alegria. Quando estava animada, coisa que acontecia com frequência, parecia brilhar do interior. Dava a sensação de que amava a todo mundo... e quase todo mundo a correspondia. Não obstante, jamais lhe teria passado pela cabeça a possibilidade de sentir-se atraído por uma mulher assim. Seus gostos, ou isso pensava até então, inclinavam-se mais para a sutil elegância e a sofisticação. - Você declinou a unir-se ao passeio a cavalo - comentou. A senhora Derrick lhe deu de presente um sorriso. -Deveria me agradecer por tê-lo feito – assegurou - Sei montar, se por montar se entende subir ao lombo de um cavalo e permanecer na sela sem cair. Ao menos, nunca caí até agora. Mas seja qual for minha montaria, pode ser o mais dócil dos animais, perco a batalha ao subir à sela e em questão de minutos me encontro perambulando sem rumo em qualquer direção salvo em que eu desejo ir ou em que vai o resto do grupo. Não fez comentário algum. Todas as damas eram consumadas amazonas. E quase todas montavam com elegância. Sim, devia agradecer por ter decidido ficar na mansão com sua carta. -Em uma ocasião saí a cavalgar pelo Hyde Park com o Oscar, Hermione e Basil prosseguiu ela - Graças a Deus, só foi em uma ocasião. Íamos por um atalho estreito quando vimos que um grupo de cavaleiros se aproximava de nós de frente. Oscar e outros se afastaram respeitosamente e lhes cederam o caminho, mas meu cavalo decidiu ficar de lado, bloqueando a passagem, e ali ficou, como se fosse uma estátua. Meus companheiros se desfizeram em desculpas para o outro grupo, embora eu não pudesse parar de rir. A cena me resultou muito engraçada. Basil me explicou mais tarde que os outros cavaleiros eram importantes funcionários do Governo que cavalgavam em companhia do embaixador russo. Não obstante todos levaram o incidente muito bem, e o embaixador inclusive me mandou flores no dia seguinte. Mas Oscar não voltou a me pedir que saísse a cavalgar com ele enquanto estivemos em Londres. Cravou o olhar em seu chapéu e imaginou com perfeição a vergonha que deveram sentir seus acompanhantes. E ela ficou ali sentada enquanto ria? Entretanto, o mais estranho do assunto era que ao imaginar a cena, ao imaginá-la sentada em seu cavalo petrificado, rindo a gargalhadas e ganhando-a admiração do embaixador russo, teve desejos de voltar a rir. Deveria sentir-se horrorizado. Deveria dar por confirmada sua


opinião de que carecia de bons maneiras. Em troca, ansiava jogar a cabeça para trás e estalar em gargalhadas. Não o fez. limitou-se a franzir o cenho e a seguir adiante. Ao cabo de um momento percebeu que estavam chegando ao final do passeio. Levavam uns minutos caminhando em silêncio. Um silêncio absolutamente incômodo, ao menos não para ele, mas de repente pareceu envolvê-los certa tensão, certa percepção que devia ser mútua. Seria possível que se sentisse atraída por ele na mesma medida que ela o atraía? Certamente não tinha feito nada de extraordinário para seduzi-lo. Não paquerava. Não era uma coquete. Mas se sentia atraída? Em regra geral e até onde ele sabia, as mulheres não costumavam achá-lo atraente. Seu título e sua fortuna talvez fossem, mas sua pessoa não. Talvez estivesse envergonhada pelo silêncio. - Que tal lhe parece continuarmos? - perguntou ao mesmo tempo que apontava com a mão os degraus de pedra do final do passeio - Ou prefere retornar à mansão? Acredito que corremos o risco de perder o chá. -Nas festas campestres se come e se bebe em excesso - respondeu ela - Aí acima há um labirinto esplêndido. Viu-o já? Não o tinha visto. Não achava atraente a um labirinto, mas não queria retornar à mansão. Queria passar um pouco mais de tempo em contato com sua luz, sua vitalidade e sua risada. Queria passar mais tempo com ela. Do último degrau se via um prado verde salpicado de árvores que se perdia na distância. O labirinto do que ela tinha falado se encontrava perto de onde estavam. As sebes alcançavam uma altura de uns dois metros e estavam podadas cuidadosamente para parecer muros verdes. -Jogo-lhe uma carreira até o centro - desafiou quando se aproximaram do labirinto enquanto se virava para olhá-lo com expressão travessa. De fato, não só tinha virado a cabeça, colocou-se frente a ele e manteve a distância caminhando depressa para trás. -De verdade? - Arqueou as sobrancelhas e deixou de andar - Eu diria que você conhece o caminho senhora Derrick. -Descobri-o faz tempo – admitiu - Mas passaram anos depois. Deve contar lentamente até dez antes de sair em minha busca, e eu contarei lentamente até dez quando chegar ao centro. Se passo de dez, terei ganho. Não lhe deu a oportunidade de negar-se a participar. Transpôs a toda pressa a estreita abertura da sebe exterior, girou à direita e se perdeu de vista. Seguiu um momento com a vista cravada na entrada sem dar crédito ao que estava passando. Supunha-se que devia brincar de correr por um labirinto? Estava disposto a fazê-lo? Entretanto, não tinha alternativa, não é? Salvo que a deixasse abandonada no centro do labirinto contando até três mil ou mais. Um... dois... três... Deveria ter se negado? Quatro... cinco... seis... sete... Nunca participava desse tipo de jogos. Oito... nove... Nunca participava de nenhum tipo de jogo.


Dez. Entrou no labirinto com expressão séria. As sebes estavam perfeitamente podadas. Eram altas e frondosas, de modo que era impossível espionar o centro nem o caminho que levava até ele. Supôs que uma pessoa poderia perambular durante um bom momento até encontrar o caminho correto. Ao dobrar uma esquina lhe pareceu vislumbrar suas saias, mas era uma mariposa branca que cruzou frente a ele antes de elevar-se por cima da sebe que tinha à esquerda. Ao dobrar a seguinte esquina sim a viu, mas desapareceu imediatamente e, quando chegou à abertura pela que tinha passado, não havia rastro dela nem forma de saber que caminho tinha pego. Percebeu que o ambiente do labirinto era de total intimidade, como se o mundo real tivesse ficado atrás e não existisse nada mais que as árvores, a erva, as mariposas, o céu... e a mulher que perseguia. Equivocou-se várias vezes de caminho, mas finalmente conseguiu averiguar qual era o desenho. Terei que alternar os giros à esquerda e à direita ao chegar às encruzilhadas. Assim que o compreendeu, demorou muito pouco em chegar a seu destino, embora não conseguisse alcançar à senhora Derrick pelo caminho. - Quinze - disse ela em voz alta quando chegou à clareira que formava o centro do labirinto, uns dez minutos depois de ter entrado nele. A estátua de alguma deusa grega se erguia no centro do lugar e a seu lado havia um banco de ferro forjado. A senhora Derrick estava apoiada na estátua. Uma deusa ou talvez uma ninfa de carne e osso, com as faces ruborizadas e um brilho triunfal nos olhos. aproximou-se dela. -Podemos nos sentar um momento e descansar se o deseja - a escutou dizer - Mas a vista não é nada do outro mundo. -Não, certamente - reconheceu depois de dar uma olhada a seu redor - Havia algum prêmio? Não o mencionou depois de lançar seu desafio. -Bom - disse com uma gargalhada - o triunfo de ser o vencedor é mais que suficiente. Nesse momento apenas os separava um passo e aparentemente não tinham nada mais a dizer-se nem tinham outra coisa que olhar salvo seus rostos. A sensação de intimidade se incrementou. Escutou o zumbido de uma abelha que devia revoar por ali perto. Viu-a morder o lábio inferior e percebeu que estava ainda mais ruborizada que antes. Pegou uma de suas mãos e a segurou entre as suas. Estava cálida e sua pele era suave. -Nesse caso, limitarei-me a admitir minha derrota - disse e levou a mão aos lábios. Por alguma estranha razão, o coração lhe pulsava tão depressa que se sentia ligeiramente enjoado. Notou que lhe tremia a mão. Sustentou-a contra seus lábios mais tempo do que o necessário. Teria sido necessário sequer retê-la? Ou sensato? Ao levantar a cabeça viu que o estava olhando com os olhos dilatados e os lábios ligeiramente entreabertos. Voltava a irradiar esse aroma tão feminino sob o sol. Inclinou-se para ela e a beijou nos lábios. Imediatamente, o desejo e a sensação de intimidade o assaltaram com força. Seus lábios eram quentes, suaves e incitantes. Saboreou-a, acariciou-a com a


língua, degustou a delicada carne que havia atrás de seus lábios, deixou-se envolver por sua calidez e se embriagou com sua essência. Não soltou sua mão em nenhum momento, e teve a sensação de que parte do bloco de gelo no que sempre tinha resguardado suas emoções começava a derreter-se e de que a água morna se filtrava até suas veias. Não soube se foi ela quem libertou sua mão ou se ele a soltou. Fosse como fosse aconteceu, e lhe jogou os braços ao pescoço ao mesmo tempo que lhe passava um braço pela cintura e outro pelos ombros. Estreitaram-se com força. Esse corpo quente, feminino e suave se pegou a ele por completo. Incitou-a a separar mais os lábios e lhe introduziu a língua na boca. Ela a roçou com a sua e depois a chupou com força. Foi um beijo longo e apaixonado. Não soube quanto durou nem por que se separaram. Mas acabaram separando-se, e ele levantou a cabeça, soltou-a e retrocedeu um passo. Esses enormes olhos, tão azuis como o céu, olharam-no abertos como pratos, e de repente pensou que poderia perder-se em suas profundidades. Tinha os lábios rosados e úmidos pelo beijo. Devia ter estado cego para não ver que era a mulher mais formosa que tinha conhecido na vida. -Desculpe-me - disse ao mesmo tempo que entrelaçava as mãos às costas - Peço mil desculpas, senhora. Ela continuou olhando-o sem mudar a expressão. -Não vejo por que - a escutou dizer em voz baixa - Afinal não disse que não, não é verdade? Embora suponha que deveria havê-lo feito. E evidentemente não deveria havêlo desafiado a entrar no labirinto comigo. Às vezes não costumo pensar antes de agir ou de falar. De fato, tenho fama de justamente o contrário... Mas bem deveria admitir que sou famosa por esse fato. Que tal lhe parece que retornemos à mansão e comprovemos se nos deixaram um pouco de chá? Ao que parecia, tinha recuperado a compostura porque a viu sorrir com expressão alegre... Talvez muito alegre. - Há quanto tempo Derrick está morto? -perguntou-lhe. -Oscar? - o sorriso desapareceu - Dois anos. -Deve ter se sentido muito só durante esses dois anos – comentou - e também infeliz por ter-se visto obrigada a retornar a seu povoado natal para viver com sua mãe e sua irmã solteira. Ao enviuvar tinha voltado para sua situação inicial. Ou talvez fosse pior. Porque sabia o que estava perdendo. -Todos temos que viver nossa vida - replicou ela ao mesmo tempo que levava as mãos às costas para apoiar-se na estatua - A minha não é intolerável. -Mas poderia ser melhor – afirmou - Eu poderia lhe oferecer algo melhor. Escutou suas próprias palavras como se as estivesse dizendo um desconhecido. Não tinha pensado dizê-las muito menos. Entretanto, não se retrataria embora pudesse fazê-lo, admitiu com surpresa. Embora tivesse recuperado o controle, continuava excitando-o. Seus olhares se encontraram. Produziu-se um longo silencio durante o qual escutou


o zumbido de uma abelha que se afastava para a sebe, e se perguntou de forma distraída se seria a mesma de antes. A expressão desses olhos azuis era mais reservada do que tinham há apenas um minuto antes. -Você acha? - perguntou finalmente. -Poderia ser minha amante - lhe ofereceu - A instalaria em sua própria casa, com sua própria carruagem, em Londres. Não lhe faltaria nada. Nem roupa, nem joias, nem dinheiro. Trataria-a muito bem em todos os sentidos. Continuou olhando-o um bom tempo em silêncio. -E tudo isso simplesmente por estar disponível para você em todo momento? Disponível para me deitar com você sempre que gostasse de deitar-se comigo? -Seria uma posição de considerável prestígio - lhe explicou, no caso de achar que lhe estava oferecendo a vida de uma cortesã qualquer - Seria respeitada e poderia levar uma vida social tão ativa como quisesse. -Desde que não insistisse em acompanhá-lo a nenhum evento da alta sociedade declarou ela. -É obvio. - Arqueou as sobrancelhas. -Bom, ao menos isso seria um alívio - confessou. Olhou-a um bom momento. Não tinha interpretado mal a natureza do beijo e ela tampouco o tinha feito, não lhe cabia a menor duvida a respeito. Não tinha havido nem inocência nem romantismo. Além disso, ela já não era uma jovem inocente. Tinha estado casada vários anos. Sua reação, o desejo que tinha demonstrado, tinha tido uma clara cor sexual. Certamente sabia que não era um homem dado às aventuras ligeiras com as mulheres, fosse qual fosse sua posição social. Tinha-a ofendido? Sua vida seria imensamente melhor como sua amante que como a ajudante do professor do povoado, obrigada a viver com sua mãe por sua condição de viúva e por sua pobreza. Iria muito melhor no plano material. E no plano sexual também, é obvio. Dois anos de celibato deviam ser tão perturbadores para uma mulher como para um homem. Entretanto, foi incapaz de interpretar sua expressão enquanto o olhava no rosto. Era impossível que tivesse esperado uma proposta matrimonial... -Uma casa própria - disse por fim-. Uma carruagem. Joias, roupa, dinheiro, entretenimentos... E, o melhor de tudo, você em minha cama de forma regular. Diria que é uma oferta incrivelmente aduladora. Mas temo que tenho que recusá-la. Nunca aspirei a me converter em uma puta. -Senhora, há uma enorme diferença entre uma puta e a amante de um duque replicou com voz tensa. -Há? - perguntou ela - Se refere a que a puta se dá a uma relação em um portal em troca de um mísero penny e a amante faz o mesmo entre lençóis de seda em troca de uma pequena fortuna? Entretanto, tanto a uma como a outra vendem seu corpo em troca de dinheiro. Eu não venderei o meu, excelência, embora lhe estou muito agradecida por sua amável oferta. Sinto-me honrada. Essas últimas palavras foram pronunciadas, evidentemente, com marcado sarcasmo. Nesse momento se deu conta de que estava aborrecidíssima, embora o único indício que a delatava era o tom que tinha utilizado e o ligeiro tremor de sua voz. A vulgaridade de


suas palavras o tinha sobressaltado um pouco. -Desculpe-me. - Fez-lhe uma reverência formal e lhe indicou com a mão a abertura que havia em uma das sebes - Permita-me que a acompanhe de volta à mansão. -Preferiria que ficasse aqui e contasse até dez muito devagar depois de que me tenha ido - replicou ela - Temo que o encanto de sua companhia se esfumou. Rodeou a estátua e ficou de costas a ela até que esteve seguro de que se fora. Em seguida se sentou no banco. Tinha interpretado mal os sinais. Embora tinha estado disposta a desfrutar de um beijo luxurioso, não o estava para encetar uma relação duradoura com ele... ao menos não como sua amante, e essa era a única posição que estava disposto a lhe oferecer. Por mais que lhe pesasse. Tinha-lhe esquentado o sangue e sua sensação podia comparar-se com a do degelo primaveril depois de um longo e frio inverno. Sua recusa o tinha tomado de surpresa. Porque era evidente que se sentia atraída por ele, isso não tinha fingido. Além disso, ele tinha feito uma oferta muito generosa, sobre tudo considerando sua posição social e suas circunstâncias econômicas. Sim, no passado esteve casada com o filho de um visconde, embora não fosse o herdeiro. E talvez por isso, embora fosse uma viúva empobrecida que vivia com sua mãe e com sua irmã em um vilarejo perdido, talvez aspirasse a algo mais que converter-se na amante de um duque. Talvez tivesse levado uma decepção ao escutar que não tinha nada mais que lhe oferecer... embora isso não fosse assunto seu. Essa tediosa festa campestre acabava de piorar grandemente, pensou. Que necessidade tinha de aguentar tudo isso? Nenhuma. Evidentemente a culpa era somente dela. Sua mente tinha passado de uma ligeira atração e um abraço apaixonado a algo muitíssimo mais sério, a da dama não tinha seguido o mesmo curso. Não era habitual nele falar de forma tão impulsiva sem refletir antes a respeito das possíveis consequências de uma ideia. Afinal, era a cunhada do Erick, embora nem o visconde nem sua esposa pareciam querer saber nada dela. E também era a filha de um cavalheiro, embora o pobre homem se vira obrigado a converter-se em professor de escola. Menos mal que tinha declinado a oferta. E além disso, desagradava-lhe seu comportamento, não? Continuou sentado muito quieto, com a vista cravada na sebe, tentando novamente encerrar suas emoções nesse seguro bloco de gelo.


Capítulo 7

Christine virou na direção errada várias vezes até que conseguiu sair do labirinto dando tropeções. Uma vez fora, desceu os degraus e pôs-se a correr pelo passeio que de repente parecia o dobro de comprimento. Olhou para trás algumas vezes, mas não a seguia. O que esperava? Que a perseguisse e a obrigasse a acatar seus desejos a golpe de monóculo? Diminuiu o passo. Teria feito de qualquer modo, porque lhe doía o flanco. "Poderia ser minha amante. " O mais absurdo de tudo era que ao escutá-lo dizer que poderia lhe oferecer uma vida melhor que a que levava nesse momento tinha pensado que se referia ao matrimônio. Embora o pior, a loucura mais absoluta, era o tombo que lhe tinha dado o coração. podia-se ser mais tola? Era possível que o duque de Bewcastle, o duque de Bewcastle! A queira casar-se com alguém como ela? De modo que tinha sido uma sorte, uma enorme sorte, que lhe tivesse devotado algo totalmente diferente. Quando entrou no caramanchão se deu conta com pesar de que havia alguém sentado. O alívio a invadiu quando viu que era Justin, que ficou em pé e se aproximou dela com um sorriso no rosto. -Uf, assustou-me! - exclamou ao mesmo tempo que levava uma mão ao coração. -De verdade? - Viu-o inclinar a cabeça enquanto a observava com atenção aconteceu algo que a tenha incomodado, Chris? Venha, sente-se comigo e conte. Em lugar de lhe fazer caso, aproximou-se dele e pegou seu braço. -Aqui não - se apressou a dizer - Vamos ao outro lado da mansão. Justin lhe deu uns tapinhas na mão para reconfortá-la enquanto caminhavam. -Vi você passear com Bewcastle – comentou - Como me disse que ia ler a carta de sua irmã, aguardei o que me pareceu um tempo razoável para que a desfrutasse, e vim em sua busca se por acaso quisesse passear comigo. Mas cheguei muito tarde, ele me adiantou. Insultou-a? -Não, é obvio que não - negou com presteza e lhe deu de presente um sorriso. -Está falando comigo, Chris - assinalou Justin - Não pode me enganar de qualquer jeito, recorda? Estava muito agitada quando entrou no caramanchão. E continua estando. Tomou ar e o soltou muito devagar, com um suspiro. Justin era seu amigo há muitíssimo tempo, e tinha continuado sendo fiel nos tempos difíceis. Podia lhe confiar sua vida. -Entramos no labirinto e me beijou - lhe explicou - Isso é tudo. -Quer que o desafie a duelo e lhe ensine maneiras? - perguntou ele, olhando-a com um sorriso torcido. -É obvio que não. - Soltou uma gargalhada trêmula. - Devolvi-lhe o beijo. Em realidade não foi nada. -Não tinha ao Bewcastle por um mulherengo - comentou Justin quando deixaram


atrás o prado que havia atrás do estábulo, e a horta colocada na parte posterior da mansão - Mas posso ter umas palavras com ele se quiser, Chris. É evidente que a incomodou. Não esperará convertê-la em sua duquesa, não é verdade? -Justin! - voltou a rir - Ofereceu algo muito mais humilhante. Pediu-me que seja sua amante. Era humilhante. Era degradante. Não tinha sido sua intenção compartilhar essa humilhação com ninguém, mas de qualquer maneira lhe tinha escapado. Justin se deteve e se virou para ela ao mesmo tempo que lhe soltava o braço. Estava muito sério, coisa estranha nele. - Fez isso? Pelo amor de Deus! - tremia-lhe a voz de fúria. - Sim, não estranho. Bewcastle não se rebaixaria a casar-se com alguém que não fosse uma princesa pelo menos, não tenho a menor duvida. Mas insultá-la dessa maneira! É intolerável. Chris, mantenha-se afastada dele. Não é uma pessoa agradável. Não conheço ninguém a quem lhe caia bem, nem que o tolere sequer. Não é aconselhável relacionar-se com gente como ele. Vou A... -Justin! -Pegou-o pelo braço uma vez mais e o obrigou a seguir caminhando - É um cortesia preciosa que se ofenda em meu nome. Não me zanguei muito... embora reconheça que estou um pouco afetada. É obvio que não quero ser sua duquesa. Quem em seu juízo perfeito quereria sê-lo? Não quero nunca voltar a me casar. Estou muito feliz com a vida que levo. E tenha por certo que não penso me expor a novos insultos. Não é preciso que se preocupe por mim. -Mas às vezes não posso evitá-lo - confessou ele com um suspiro - Sabe que lhe tenho muito afeto. Chegaria inclusive a lhe propor matrimônio se soubesse que iria aceitar me, mas como sei que não o faria me conformo sendo seu amigo. Mas não espere que fique de braços cruzados enquanto outros homens a insultam. Essas palavras a comoveram e a envergonharam. Deu-lhe um apertão no braço. -De verdade que já estou bem – disse - Mas eu gostaria de apreciar um pouco de tranquilidade e ar fresco antes de voltar para a mansão. Importa-se, Justin? -Que nunca se diga que não capto uma indireta - respondeu, com um sorriso. - Verei você mais tarde. Isso era precisamente o que sempre tinha gostado nele, pensou enquanto o via afastar-se. Era seu melhor amigo, mas nunca lhe imporia nem sua presença nem suas atenções quando desejava estar sozinha. Entretanto, lamentava que em muitos aspectos a dita amizade não fosse mútua. Justin rara vez confiava nela ou compartilhava suas coisas. Já chegaria o momento, disse-se. Algum dia necessitaria de sua amizade e ali estaria ela para oferecê-la. Quando por fim subiu a escadaria e chegou à porta de seu quarto, estava exausta. Esgotada física e mentalmente. Embora parecia que não iriam deixá-la descansar ainda. -Senhora Derrick! - gritou uma voz a suas costas. Quando olhou para trás, viu Harriet King na porta de seu quarto e depois viu a cabeça loira de lady Sarah Buchan por cima de seu ombro. - Por favor, venha. Foi mais uma ordem imperiosa que uma petição, embora poderia ter feito ouvidos


surdos sem mais. Mas para que? Havia muito pouca intimidade em uma festa campestre. Se não ia nesse momento ver o que queriam, teria que suportá-las mais tarde. -É obvio. - Sorriu enquanto entrava no quarto, um espaçoso aposento voltado para a fachada da mansão - desfrutaram do passeio a cavalo? Todas as mocinhas estavam no quarto de Harriet: lady Sarah, Rowena Siddings, Audrey, Miriam Dunstan-Lutt, Beryl e Penelope Chisholm e, como não, a própria Harriet. -Devemos felicitá-la - disse Harriet com um quê de aço na voz. -Só posso lhe dar cinco guineus do prêmio - lhe explicou Audrey - O resto ainda não puseram. Felicidades, prima Christine. Embora apostei por você, confesso que no fundo não esperava que ganhasse. De fato, não achei que ninguém pudesse fazê-lo. -Pois eu me alegro muitíssimo de que alguém tenha ganho - declarou Rowena com sinceridade - Agora posso relaxar durante a segunda semana da festa. Por mais que eu goste das provocações, asseguro-lhes que a ideia de passar uma hora completa em companhia do duque de Bewcastle não me deixou pregar olho. Felicidades, senhora Derrick. -Vimo-la - explicou Beryl - Penélope e eu. Acabávamos de chegar ao caramanchão quando o duque saiu dele em direção ao passeio dos labirintos. Estávamos discutindo quem das duas devia segui-lo ou, melhor dizendo, quem não quando vimos que ficava conversando com você. E depois puseram-se a andar juntos pelo passeio. O senhor Magnus apareceu pouco depois e nos demoramos um momento falando com ele. Você não retornou até agora, e isso que a estivemos esperando, passou mais de hora e meia com o duque. Bem feito. Estávamos desejando ganhar a aposta, não é, Pen? Mas igual à Rowena, o requisito para fazê-lo não era santo de nossa devoção. -Eu não passaria hora e meia a sós com um cavalheiro nem por todo o ouro do mundo - afirmou Sarah, coisa estranha dada a natureza da aposta - Seria uma forma segura de perder a reputação. - Desde que se tenha uma reputação que perder, Sarah - declarou Harriet, uma indireta em toda regra. Todas começaram a falar em uníssono, e em certa forma o agradeceu. Assim teve a oportunidade de recuperar-se da surpresa inicial. Havia alguém que não a tivesse visto passear com o duque? Por que não tinha pensado nenhuma só vez na ditosa aposta enquanto estava com ele? -Audrey, deve ficar com o dinheiro – disse - além de apostar por mim, contribuiu com meu guinéu portanto, o prêmio é seu. A verdade é que foi uma provocação muito tola, não lhes parece? Me apresentou a oportunidade de ganhá-lo quando o duque de Bewcastle me encontrou lendo uma carta no passeio, e a aproveitei. Passei toda uma hora tagarelando, e acredito que estive a ponto de matá-lo de aborrecimento, o mesmo que me passaria se tivesse que repetir a experiência. Assim, senhoritas, aceito minha vitória. Soltou uma gargalhada e olhou às moças com expressão radiante. Quase todas pareciam aliviadíssimas e encantadas de ceder seus guinéus. É obvio, duas delas pareciam furiosas e desencantadas, mas tanto lady Sarah como Harriet King eram um par de malcriadas que não mereciam sua compaixão. Aafinal, não tinha se esforçado para ganhar a aposta. Resultava irônico que a tivessem visto nessa ocasião e não na anterior, quando se propôs passar uma hora com o duque enquanto retornavam à mansão sem


que ninguém os visse. -Harriet, Sarah, devem-me um guinéu cada uma - disse Audrey. Escapou pouco depois desse comentário e se refugiou por fim em seu dormitório. Era ridículo pensar que jamais tinha estado tão perturbada na vida, mas essa era a sensação que tinha. "Poderia ser minha amante. " Fechou os olhos com força e meneou a cabeça. Tinha-a beijado. E lhe havia devolvido o beijo. Por uns instantes, talvez por minutos ou horas se deixou arrastar pela paixão mais intensa que jamais tinha experimentado. E depois lhe tinha pedido que fosse sua amante. Que humilhante! -Asseguro-lhe que Christine não é uma coquete - disse Justin Magnus a Wulfric. Tinham passado dois dias desde o desastre do labirinto. Durante esse tempo ambos se evitaram por todos os meios, embora a experiência não parecia ter afetado o ânimo da senhora Derrick. Justamente o contrário. Parecia haver ganho o afeto da maioria das jovens e a admiração de quase todos os jovens cavalheiros. Além disso, saltava à vista que Kitredge estava apaixonado por ela. Apesar de não tomar a iniciativa em nenhuma das atividades programadas, tinha acabado convertendo-se na alma da festa. Ali onde a conversa fosse mais alegre e se escutassem mais gargalhadas, estava presente a senhora Derrick. Certas pessoas poderiam dizer que era uma coquete. Em sua opinião, era evidente que não o era. O magnetismo de sua personalidade era genuíno. E igualmente genuíno era seu afeto pelas pessoas. -Certamente - replicou com voz tão gélida como foi possível. O grupo completo caminhava em direção à colina próxima ao lago para desfrutar do que lady Renable havia descrito como "um lanche campestre improvisado", mas suspeitava que de improvisada não tinha nada. Magnus tinha decidido caminhar a seu lado. -Não é uma beleza convencional, nem tem talento nem é elegante - continuou o jovem, mas é atraente. Ela não é consciente do efeito, mas qualquer homem que se cruze com ela acaba sob seu irremediável influxo. O mais extraordinário é que o efeito é similar na maioria das damas. Assim, como vê, não se trata de paquera, mas sim do extraordinário atrativo de sua personalidade. Meu primo Oscar se apaixonou por ela a primeira vista e insistiu em casar-se com ela, apesar de que poderia ter se casado com qualquer mulher que quisesse. Tinha o físico de um deus grego. -Que afortunado para ele... Chegaram à clareira que havia junto ao lago, o mesmo lugar onde a senhora Derrick se trombou com ele, e viraram para a colina. Diminuiu o passo ligeiramente com a esperança de que Magnus se adiantasse, mas parecia que tinha uma missão que cumprir. Não podia passar por cima que era amigo da senhora Derrick. Tinha-o enviado com uma mensagem? Ou tinha sido decisão própria? O fato de ter acabado na ridícula situação de ter que aguentar o sermão de um jovenzinho era muito irritante.


-De modo que a admiração que lhe professam Kitredge - continuou Magnus - os Culver, Hilliers e Snapes é algo espontâneo que ela não alimentou absolutamente. -Suponho que tem a intenção de me explicar a importância da dita conclusão replicou. -Você também a admira - afirmou seu interlocutor - E talvez ache que esteve paquerando com você. Ou talvez ache que esteve paquerando com todos os cavalheiros e que a você em concreto tenta caçá-lo. Qualquer das duas hipóteses seria errônea. É o efeito de seu caráter afável e trata a todo mundo por igual. Se Oscar se desse conta, teria sido muitíssimo mais feliz. Mas queria que todos seus sorrisos e toda sua atenção fossem para ele. Alguém deveria dizer ao Magnus que abandonasse o papel de paladino de sua amiga, pensou. De forma inadvertida, parecia insinuar que a senhora Derrick era incapaz de albergar sentimentos profundos por ninguém, nem sequer por um marido, e que repartia suas atenções de forma indiscriminada e metida. Que, de fato, era uma coquete. -Sinto muito, mas meu interesse pela felicidade ou infelicidade de um homem morto é nulo - disse ao mesmo tempo que acariciava o cabo do monóculo - Se me desculpar... Tinham chegado à colina e foi evidente na hora que o lanche campestre tinha sido preparado de antemão. Havia mantas estendidas na ladeira orientada ao lago e algumas cadeiras para os convidados de mais idade. Junto a cada manta e perto das cadeiras havia cestas com comida e bebida. Alguns criados aguardavam entre as árvores, ao pé da colina, para atendê-los. Acabava de iniciar uma conversa com o Renable quando percebeu que a senhora Derrick estava no topo da colina, com as fitas do boné ondeando ao vento, enquanto apontava vários pontos ao Kitredge... tal qual tinha feito com ele, naquela primeira tarde. estava rindo por algo que Kitredge havia dito. Incomodava-o que tivesse ido queixa-se a Magnus. Incomodava-o sentir-se culpado no concernente a essa mulher. Porque até que a beijou, sem que ela o convidasse, não tinha visto em sua atitude nada que indicasse que poderia aceitar de bom grado suas atenções ou sua oferta. Era evidente que lhe devia uma desculpa. Em regra geral não estava acostumado a ser nem impulsivo nem mal educado. Rara vez cometia um engano ou se expunha a que o atacassem. Não voltaria a acontecer. Estava muito perturbado com Christine Derrick... talvez porque sabia que ela não tinha a culpa de nada. Christine passou em claro grande parte da noite posterior a atroz cena do labirinto e esteve a ponto de tomar a decisão de retornar para casa pela manhã. Entretanto, o orgulho e a teima foram a seu resgate. Por que devia ser ela quem saísse fugindo depois que o duque de Bewcastle lhe tinha proposto ser sua amante? O fato de que não se atrevera a fazer essa oferta a nenhuma das outras damas não tinha importância. Não tinha a menor importância. Por que ia ter? Caía-lhe pior que nunca, desprezava-o mais que nunca. Mal suportava estar no mesmo aposento que ele... nem na mesma casa, por certo. Mas ficaria, decidiu finalmente, embora só fosse pela possibilidade de que sua presença o


envergonhasse. De modo que enfrentou ao que restava de festa campestre com renovada energia, e obteve a satisfação de constatar que ganhou a amizade de vários convidados, tanto homens como mulheres. Podia fazê-lo, decidiu. Podia desfrutar enquanto guardava as distâncias com o duque de Bewcastle, que parecia igualmente decidido a fazer o mesmo com ela. E tudo saiu como foi pedido. Passou muito bem no lanche campestre. Esteve indicando vários lugares distintos do topo da colina ao conde de Kitredge, que a reteve um momento com suas perguntas, e depois do chá, correu para a borda do lago a pedido de um grupo de jovens que queriam que lhes demonstrasse a arte de fazer ricochetear calhaus sobre a água. Algumas das damas se juntaram à atividade, e desfrutaram lindamente. Por sua parte, acabou com a bainha do vestido empapado porque quando via no fundo do lago um calhau ideal para jogá-lo, insistia em agarrá-lo em pessoa embora não estivesse perto da borda. Mas como tinha tido a precaução de tirar os sapatos e as meias, o desastre foi menor. Em alguns momentos foi capaz de convencer-se de que o caso estava mais que enterrado e de que tinha recuperado plenamente tanto a juventude como o ânimo. Entretanto, as sombras do passado espreitavam nas proximidades, sem se importarem quão resplandecente fosse a luz... ou talvez por isso mesmo. Os acontecimentos que estavam por chegar o demonstraram. Foi uma das últimas em partir da colina, já que teve que encontrar um lugar resguardado onde pôr as meias. Viu que Hermione e Basil seguiam na ladeira, e depois percebeu de que o duque de Bewcastle estava com eles. -Excelência, confesso que Elrick e eu tínhamos a intenção de manter uma conversa com você desde anteontem, escutou Hermione dizer enquanto ela se punha a andar para o trio, mas acredito que é apropriado que Christine escute o que temos que dizer. Devemos nos desculpar em seu nome. Estava a uns passos deles quando se deteve e ergueu a vista para olhar a sua cunhada sem dar crédito. -Foi uma tremenda tolice que as jovenzinhas apostassem entre elas para ver quem seria capaz de manter uma conversa privada com você durante uma hora - continuou Hermione, com voz trêmula por causa de uma emoção que bem podia ser fúria reprimida, mas conhecendo como são as mocinhas, é compreensível que queriam impressionar a alguém de sua classe e posição. Entretanto, por parte de Christine foi imperdoável e presunçoso participar de semelhante aposta e além disso ganhá-la. Fechou os olhos um momento ao escutar essas palavras. A ditosa aposta! Como se tinha informado Hermione? Através de lady Sarah e do Harriet King, sem dúvida alguma. Basil pigarreou. -Tenha como certo que lady Elrick e eu desaprovamos um comportamento tão vulgar, Bewcastle - afirmou. -Foi uma desgraça para nós que meu cunhado se apaixonasse pela filha de um professor rural e se casasse com ela - acrescentou Hermione - Se passou toda a festa campestre paquerando com todos os convidados nos humilhando com comportamentos como este. - Apontou com uma mão a bainha molhada de seu vestido. - Mas que o


envolva em suas destrezas e que paquere com você é imperdoável. Era incapaz de dar crédito ao que estava escutando apesar de que a cena acontecia diante de seu nariz. Era como voltar de repente para o passado. Estavam falando com tanta fúria e amargura... e tão injustamente... Estava muito surpreendida para protestar... ou para partir dali sem mais. O duque de Bewcastle ergueu o monóculo e o deixou a meio caminho de seu olho. Se lhe olhasse a bainha do vestido ou qualquer outra parte de sua pessoa através da lente, o tiraria e o partiria sobre o nariz. Ou lhe partiria o nariz com ele. Entretanto, concentrou toda sua atenção em Hermione. -Não é necessário que fique indignada, senhora - disse com voz tensa e com uma nota terrivelmente gélida. - Você tampouco, Elrick. As filhas daqueles cavalheiros com mentes acadêmicas costumam ser melhor educadas e, portanto, sua conversa costumava ser muito mais interessante que a das típicas jovenzinhas da alta sociedade. Passei toda uma hora em companhia da senhora Derrick depois de convidá-la a passear pelo labirinto. Reconheço que o tempo me passou voando. Paquerei com ela enquanto falávamos do passeio a cavalo e da carta enviada por sua irmã que estava lendo quando a encontrei. Se for assim, peço-lhe mil desculpas e prometo ser mais discreto no futuro. O monóculo ficou pendendo da fita negra quando o duque o soltou. Seu aspecto era muito perigoso, reconheceu, e o silêncio que seguiu a suas palavras deixou bem claro que não era a única que o tinha percebido. Acabava de pôr a seus cunhados em seu lugar. Se não se sentisse tão ferida, lhe teria encantado. -Hermione! - exclamou em voz baixa. No caso de Basil se limitou a olhá-lo. Seu cunhado tinha adorado ao Oscar, mas em troca tratava a sua viúva com desprezo. Ele evitou seu olhar. Teria partido nesse mesmo momento correndo, a não ser porque o duque de Bewcastle se dirigiu a ela. -Me permita que a acompanhe de volta à casa, senhora – disse - Assim poderá me dizer se verdadeiramente lhe devo uma desculpa. Jamais o tinha escutado falar com essa frieza. O duque lhe ofereceu o braço, e como não lhe ocorreu nenhuma desculpa para rechaçá-lo, aceitou-o. Seus olhos, percebeu, assemelhavam-se a dois pedaços de gelo. Seu encantador estado natural, de fato. Teria preferido sair correndo em direção contrária e perder-se entre as árvores para lamber as feridas em privado. Porque até esse momento não se dera conta de que ainda tinha feridas que lamber. Pensava que tinham cicatrizado fazia muito tempo. Hermione e Basil não fizeram gesto de retornar com eles. -Devo-lhe uma desculpa, senhora Derrick? - perguntou-lhe o duque quando se afastaram bastante para que não os escutassem. -Por me fazer a oferta que me fez? - disse. - Já se desculpou por isso. -Achava isso - replicou ele - embora suponha que minha oferta deve ter sido um final bastante chocante para sua bem-sucedida artimanha de reter minha atenção durante uma hora. Utilizar o labirinto para dilatar o momento foi muito inteligente de sua parte. Espero que tenha desfrutado ao reclamar o prêmio e que este seja merecedor de seus esforços...


e inclusive do insulto que se viu obrigada a suportar. Respirou fundo e soltou o ar muito devagar. Suas feridas pessoais iriam ter que esperar um pouco mais. -A verdade é que não reclamei o prêmio - lhe assegurou - Outra pessoa pôs o dinheiro por mim e também apostou em meu nome. Entreguei o prêmio a ela em sua totalidade. Mas sim, desfrutei de meu momento de triunfo junto ao lago porque, evidentemente, ganhei o primeiro dia quando o convenci para que passeasse comigo, mas teria sido muito injusto dar por terminado o jogo tão cedo. Assim decidi repetir a façanha. - Suspirou e levantou o rosto ao céu. -Não obstante, fui eu quem a convidou a passear na segunda ocasião - assinalou ele. -É obvio que sim. - Olhou-o com expressão surpreendida - Uma dama não deve convidar a um cavalheiro a passar tempo em sua companhia, não é certo? Muito menos se for de forma tão seguida, duas vezes na mesma semana. Mas isso não foi impedimento algum para mim. Há formas de obter que um cavalheiro me convide... como me sentar com expressão pensativa em uma mureta com uma carta de há um mês, por exemplo, a escassa distância de um passeio e fingir que estou lendo-a. Sua excelência manteve a calma, talvez com acerto. Sentiu uma insalubre satisfação ao dar-se conta de que possivelmente estivesse zangado e de que possivelmente também estivesse - poderia aferrar-se a essa esperança? Um pouco humilhado. Internaram-se no arvoredo. Poderia ter-se soltado de seu braço nesse instante, e o teria feito se não lhe tivesse passado pela cabeça que talvez isso fosse o que ele queria. -Que saiba que a aposta original era enrolá-lo até o ponto de que propor matrimônio –confessou - Mas como chegamos à conclusão de que não tinha graça apostar por algo impossível, trocamos os termos e se lembrou que ganharia quem conseguisse ter com você uma conversa privada de uma hora de duração. Talvez teria podido ganhar a primeira aposta com tanta facilidade como a segunda, mas me ofereceu carta branca em lugar de matrimônio. Para sua informação, resultou-me muito humilhante, embora suponha que se deve a minha condição de filha de um professor de escola e ao fato de que sou muito vulgar para ocupar a posição de duquesa. Entretanto, o dano não foi permanente já que não tive que confessar esse detalhe a meus competidores. O duque de Bewcastle continuou conservando a calma. Era muito irritante. Jamais tinha sido dada a discutir e brigar com outros. Entretanto, tinha a sensação de que seria extremamente satisfatório manter uma acalorada discussão com o duque de Bewcastle. Embora se suas hipóteses fossem corretas, seria muito mais difícil lhe provocar um inapropriado e descontrolado arrebatamento emocional que levá-lo ante o altar. Pela simples razão de que carecia de emoção, de paixão. Desterrou a lembrança de certo beijo no labirinto. Isso não tinha sido paixão, tinha sido luxúria. Voltou a suspirar. -Me alegro de ter ganho a aposta... duas vezes – disse - Já não me verei obrigada a procurar sua companhia. -Suponho que esse é meu pé e agora devo lhe assegurar que estou encantado com as notícias, não é assim? -Está? - quis saber - Refiro a se está encantado.


-Não tenho uma opinião a respeito - respondeu. -Alguma vez discute com alguém? -Discutir é absolutamente desnecessário - foi sua resposta. -É obvio. - Agitou a mão livre no ar - É capaz de obter obediência cega em só arquear uma sobrancelha. -Salvo quando alguém decide fazer caso omisso da ameaça que supõe tanto minha sobrancelha como meu monóculo - declarou. Soltou uma gargalhada, embora não porque lhe fizesse graça o comentário, na verdade. Tinha sofrido uma humilhação espantosa, primeiro no labirinto e depois na colina, e estava desejando esconder-se em seu diminuto quarto e encolher-se na cama. -Seus cunhados não a suportam, senhora Derrick - afirmou o duque de Bewcastle com voz fria. Bom, Basil e Hermione o tinham deixado muito claro. Não tinha sentido voltar a incomodar-se embora o tivesse deixado cair dessa forma tão abrupta. -Certamente lhes aterra a possibilidade de que o seduza para que se case comigo, assim como fiz com Oscar - replicou quando estiveram na clareira do lago, onde se trombou com ele na primeira tarde - E de que depois você lhes jogue a culpa por não lhe ter advertido. -Por não me ter advertido de que é a filha de um professor de escola? – assinalou -. De que é uma intrigante? -E de que sou vulgar – acrescentou - Que não o esqueça. Esse era um de meus pecados capitais, se por acaso não sabe. Meu comportamento sempre me convertia no centro de atenção e acabava envergonhando-os. Por mais que o tentasse, nunca pude ser tão perfeita como Hermione. Agora que teve tempo para meditá-lo, suponho que se sentirá aliviado de que recusasse ser sua amante. -Devo estar? - perguntou ele - Porque não é você uma dama perfeita? Estavam atravessando o arvoredo que confinava com o prado da fachada da mansão. -E porque sou uma coquete - acrescentou. -É? -E porque poderia matá-lo como matei ao Oscar - concluiu. Produziu-se um breve silêncio durante o qual percebeu que todas as defesas que tinha levantado a seu redor sem dar-se conta tinham caído e de que já não havia rastro de seu bom humor. Também percebeu que se não chegassem logo à casa, ia discutir com o duque o quisesse ele ou não. Imaginou a si mesmo lhe golpeando o peito com ambas as mãos, pisando-o com ambos os pés e convertendo seu monóculo em um saca-rolha enquanto lhe gritava como uma lavadeira. O problema era que a imagem não tinha nem pingo de graça. Voltaria a chorar se não andava com cuidado. Ela nunca chorava. Não servia de nada chorar, não é verdade? -Nesse caso, parece que Elrick e sua esposa têm um motivo para desprezá-la - disse ele finalmente. O que esperava? Que lhe perguntasse se era verdade? Que lhe surrupiasse a história que ninguém tinha conseguido lhe arrancar e a exonerasse de toda culpa? Que


depois lhe pedisse perdão pela oferta que lhe tinha feito no labirinto e a subisse na garupa de seu corcel, todo cavalheiro que se apreciasse tinha um para convertê-la em sua duquesa? Não conseguia imaginar um destino pior. Não o havia. Porque não era um cavalheiro de armadura brilhante. Era um aristocrata frio, desagradável e arrogante. -É obvio – reconheceu - Certamente que sim. Dá exatamente no mesmo que eu não estivesse perto quando morreu, não é? É uma prova mais de minhas intrigas. Matei-o de qualquer forma. E não estou de bom humor, excelência, como talvez se deu conta, vou pôr-me a correr assim que termine de falar e vou chegar à mansão ruborizada e ofegante. Não espero que me siga em um alarde de cavalheirismo. Entretanto, antes de que pudesse fazê-lo, a mão direita do duque a agarrou pelo braço com força e se encontrou com seu peito, que subia e baixava com rapidez pela falta de fôlego, estava a escassos centímetros do dele. Esses olhos prateados a fulminaram com seu gélido brilho. Em um instante de loucura acreditou que ia beijá-la de novo. Talvez ele também acreditou. Porque esses olhos se cravaram em sua boca e o viu soprar pelo nariz. Sua mão esquerda lhe segurou o outro braço com mais suavidade. A tensão crepitava no ambiente com a mesma intensidade que o brilho de um relâmpago. Entretanto, não a beijou, detalhe que agradeceu de todo coração mais tarde, quando sua mente voltou a funcionar com normalidade. Certamente lhe haveria devolvido o beijo, teria se pego a ele e lhe teria rogado que a levasse ao coração do bosque para seduzi-la. E o problema era, pensou nesse instante, que o teria feito de verdade, que teria ido com ele, que teria deitado com ele. Inclusive lhe teria rogado que repetisse a oferta do labirinto. Mas não a beijou. -Cada vez me arrependo mais de ter vindo - o escutou dizer, e teve a sensação de que em realidade estava falando consigo mesmo - E antes de que você seja quem diz a última palavra, senhora Derrick, estou seguro de que você também o lamenta... Lamenta que eu tenha vindo e lamenta ter vindo. Assim que lhe soltou os braços, ergueu a bainha molhada do vestido e saiu correndo, sentindo-se pior do que se sentira em dois anos. Não deveria ter ido à festa... e isso era um eufemismo como a copa de um pinheiro. Sabia de antemão que Hermione e Basil iriam participar. E além de se ter exposto ao ridículo e à censura do duque de Bewcastle, que nesse momento acreditaria capaz de ter matado Oscar, pelo amor de Deus! Apesar de tudo, se tivesse chegado a beijá-la, haveria-lhe devolvido o beijo. Não obstante e em lugar de beijá-la, limitou-se a lamentar-se abertamente por ter ido à festa campestre. Odiava-o com toda sua alma. Era um pensamento preocupante. Teria preferido muito ser indiferente a sua pessoa. Deveria ficar fora tomando ar, pensou ao chegar à mansão acalorada, ofegante e descomposta. Deveria enfrentar Hermione e Basil assim que retornassem. Já era hora de que o fizesse. Os dias posteriores à morte de Oscar foram horríveis para todos e não teve forças para defender-se, como era devido, de suas acusações. Embora nesse momento em concreto não se sentia muito melhor. De modo que, como a covarde que era em certas ocasiões, correu escada acima até seu dormitório


e respirou aliviada quando chegou sem ter encontrado ninguém pelo caminho. Fechou a porta, atirou-se de bruços na cama e se aferrou com as mãos ao cobertor enquanto tentava não chorar para não aparecer no jantar com as pálpebras inchadas, os olhos vermelhos e o nariz congestionado. Sabia que não podia jogar a culpa a ninguém, que era a única culpada dessa situação. Deveria ter se negado a participar. Nem sequer Melanie poderia havê-la obrigado a ir se tivesse se fechado em banda. Demorou muito tempo para acalmar-se. Depois se sentou na cama e comprovou seu aspecto em um espelho. Se sorria um pouco, seu aspecto não seria muito diferente do habitual. Sorriu ao espelho para comprovar sua teoria. Parecia a imagem da tragédia esboçando um sorriso grotesco. Separou um pouco os lábios e experimentou alegrar o olhar. Isso, pensou... Estava como nova e uma vez mais ao resguardo de suas defesas. Que estranho... não se tinha dado conta de que ainda as tinha, de que ainda as necessitava. Estava há dois anos em liberdade sendo feliz. Bom, quase feliz. Sobreviveria ao que restava de festa, decidiu com firmeza, até que retornasse a casa e voltasse a esconder seu coração atrás da cômoda rotina do dia a dia. Afinal, tinha sobrevivido à morte de Oscar. Wulfric se sentia descomposto... outra vez. E pelo mesmo motivo... outra vez. Tinha estado a ponto de beijá-la, pelo amor de Deus! Não lhe ocorria um final mais inapropriado para uma tarde tão desagradável. Entretanto, tal como compreendeu enquanto a observava afastar-se dele, tinha cometido um muito grave engano de cálculo. Em mais de um sentido. Continuava zangada com ele pela proposta que lhe tinha feito. Até ele estava irritado consigo mesmo. Nenhuma das duas longas conversas que tinham mantido podia ser premeditada por parte da senhora Derrick. Mas tinha participado dessa ridícula aposta e possivelmente tivesse prolongado seu último encontro na medida do possível. Afinal, tinha sido sua ideia entrar no labirinto e ele a tinha seguido como uma marionete. E depois a beijou e lhe fez sua impulsiva proposta. Em certo modo deve ter sido um consolo para ela sair correndo do labirinto para reclamar a vitória e o prêmio. Não obstante, sua irritação não era nada comparada com o dano que ela tinha sofrido por causa do comportamento dos Elrick na colina. Era normal que estivesse doída. Embora conhecia o casal de forma superficial, jamais os tinha tido por pessoas desagradáveis, indiscretas, nem rancorosas sem motivo. Adjetivos que podiam aplicar-se a seu comportamento dessa tarde. Tinham arejado os trapos sujos da família frente a ele de um modo muito inapropriado. Estavam aborrecidos com ela por sua origem humilde, por sua vulgaridade, por sua paquera... Sim, outra vez essa palavra. Aparecia com tediosa frequência no referente a ela. Não lhe interessavam o mínimo os sentimentos que os Elrick albergavam por sua cunhada. Ou ao menos não precisava conhecê-los. Entretanto, era evidente que algo tinha acontecido entre esses três... algo que estava relacionado com a morte de Oscar Derrick. Em nenhum momento tinha chegado a acreditar que Christine Derrick o tivesse assassinado, mas era evidente que algo tinha acontecido para provocar uma


animosidade tão inflamada. Nessa tarde se viu envolvido de algum jeito em uma sórdida disputa familiar. Não gostava o mínimo de semelhante imposição. Entretanto, graças a esse episódio tinha descoberto algo interessante sobre a senhora Derrick. Em seu interior guardava muito mais que luz e risadas. Também havia escuridão, oculta no mais fundo de sua pessoa, embora tivesse saído à superfície enquanto voltavam para a mansão. Tinha tentado por todos os meios encetá-lo em uma discussão. Tinha estado a ponto de sucumbir... de um modo que a teria tomado de surpresa. Não tinha vontade, nem tampouco a menor intenção, de lutar com a vulnerabilidade que tinha demonstrado a dama. Havia-se sentido atraído por ela, tinha-a beijado, tinha-lhe devotado ser seu amante, ela tinha rechaçado a oferta e aí se acabava tudo. Além do que reconhecia que era uma atração residual por sua pessoa, não albergava o menor interesse por ela nem pela escura complexidade de sua vida. Entretanto e para sua irritação, descobriu durante essa segunda semana que os olhos foram atrás dela tanto ou mais que antes. Irradiava luz, apesar da escuridão que tinha vislumbrado em seu interior. E muito a seu pesar, continuava deslumbrado por essa luz.


Capítulo 8

Durante várias manhãs consecutivas, Wulfric foi pescar, acompanhado pelo barão Renable e vários cavalheiros mais. Conversou de política, da situação internacional e de livros com um reduzido grupo na biblioteca em uma ou outra ocasião. Jogou bilhar com aqueles que também mostravam inclinação pelo jogo. À tarde jogava cartas, já que só os convidados de mais idade sentiam predileção por esse entretenimento. Participou do resto das atividades da sesta o justo para não parecer mal educado. Também passou a sós todo o tempo possível, que foi bem pouco. Contava os dias, inclusive as horas, que lhe faltavam para poder partir para casa. Não obstante, havia um acontecimento que não podia evitar, embora estivesse organizado para o final da festa como encerramento da mesma. Ia se celebrar um grande baile, em termos rurais é obvio, em honra ao compromisso matrimonial da senhorita Magnus e Sir Lewis Wiseman. Convidou-se a um seleto grupo de vizinhos, pois os vinte e quatro convidados mais seus dois anfitriões não seriam capazes de encher um salão de baile como mandavam os cânones. - Os vizinhos que estão convidados não pertencem em sua totalidade à nobreza rural - explicou lady Renable alguns dias antes do baile - Entretanto, gostam muitíssimo de receber este tipo de convites, e nos sentimos obrigados a lhes fazer o gosto algumas vezes no ano. Espero que a companhia não lhe seja muito insípida. -Senhora - replicou, erguendo as sobrancelhas e o monóculo - acredito que seu gosto na hora de escolher convidados é equiparável ao que demonstra em todo o resto. Por que desculpar-se por algo inevitável? E por que desculpar-se só com ele? Por que desculpar-se, simples e sinceramente? Se havia algo que agradecia aos Bedwyn, era que não andavam pedindo desculpas a todas as horas. Os bailes nunca tinham sido santo de sua devoção, embora teria que suportá-los em certas ocasiões. Como a presente, pois não podia encerrar-se em seu dormitório com um livro, vestiu-se com sua costumeira sobriedade e permitiu que seu criado pessoal se esmerasse um pouco mais no nó de sua gravata. Desceu ao baile na hora combinada. Tinha reservado a peça inicial com lady Elrick, a segunda com lady Renable e depois esperava poder retirar-se tranquilamente à sala de jogos. Enquanto se aproximava de Mowbury, que parecia incômodo, por não dizer absolutamente abatido, observou que as damas mais jovens estavam enfeitadas com seus melhores ornamentos. As jóias resplandeciam à luz dos lustres e as plumas eram as estrelas dos tocados mais elaborados; Talvez como uma deliberada estratégia para destacar sobre os vizinhos que tinham sido convidados ao evento e cuja vestimenta não era tão ostentosa, e que começavam a chegar. - Recordei a Melanie que danço como um pato enjoado - lhe disse Mowbury - mas se mostrou muito insistente ao me dizer que tinha que participar e dançar com alguém. Pediuma dança à Christine... à senhora Derrick. Esteve casada com meu primo, e sempre me pareceu uma grande mulher, embora Hermione e Elrick não simpatizem com ela, coisa


que é evidente, não é? Os bailes são tediosos, Bewcastle. Estava do outro lado do salão, conversando com três damas e um cavalheiro. A senhora Derrick, claro estava. Reconheceu ao vigário e a sua esposa, e supôs que as outras duas damas eram sua mãe e sua irmã mais velha. Reconheceu que a dama em questão levou toda a beleza da família. A esposa do vigário não possuía nenhum traço destacável. A irmã mais velha carecia de todo atrativo. A senhora Derrick usava um vestido de noite cor nata de talhe alto, com um babado na barra e um pequeno franzido a jogo no bordo das mangas, que eram curtas e de farol. O decote era baixo, embora decente. Seu brilhante cabelo estava adornado com uma fita rosa combinando com o cinto. Salvo pelos ditos objetos e o leque fechado que segurava, não levava mais adornos. Nem joias, nem turbante, nem plumas. Tampouco podia dizerse que o vestido em si mesmo fosse o último grito. As demais convidadas pareciam ridiculamente emperiquitadas a seu lado. -Assim a senhora Derrick aceitou a dançar a primeira peça contigo - disse. -Pois sim - afirmou Mowbury, torcendo o gesto - Prometi não lhe esmagar os dedos, embora ela se limitará a rir de mim se o fizer e a me dizer que de qualquer forma precisavam estar um pouco mais esmagados ou algo do tipo. Sabe levar bem as coisas. Percebeu que Kitredge, cuja volumosa figura estava embutida nas baleias de um espartilho que não parava de ranger, uniu-se ao grupo da senhora Derrick e foi apresentado à família. Em um dado momento, uma mão gordinha, adornada com um anel, demorou-se na base de suas costas. Contemplou a cena apertando com força o cabo com jóias do monóculo. A mão do conde se afastou assim que ela mudou de posição para lhe sorrir. Viu-a assentir com a cabeça, depois do que Kitredge se afastou. Supôs que a segunda peça tinha sido concedida. Soltou o monóculo, que caiu e ficou suspenso do extremo da fita de seda. Christine sempre tinha se encantado em dançar. Embora nem sempre tinha desfrutado dos bailes, ao menos durante os últimos anos de seu matrimônio. Oscar tinha começado a protestar cada vez que dançava com outros homens, embora sempre tentasse fazê-lo entender que o propósito de um baile não era outro senão o de dançar com diferentes pessoas e que não podia passar toda a noite dançando com ele. Não era bem visto. Além disso, ele gostava de passar um tempo na sala de jogos ou conversando com seus amigos, por isso se vira no dilema de escolher entre converter-se em um floreiro ou incomodar a seu marido. O matrimônio lhe tinha parecido uma prova muito mais dura do que esperava. Apesar de sua extraordinária aparência física, Oscar tinha sido um homem muito inseguro. De si mesmo e dela. O passar do tempo tinha aumentado seu afã possessivo e sua dependência. Tinha-o amado com loucura, mas lhe era muito difícil não lhe reprovar a falta de confiança que demonstrava. Chegou inclusive a levantar a hipótese de ter deixado de estar enamorada por completo dele durante os últimos tempos, quando suas acusações começaram a lhe ser irritantes, mesmo insultantes. Entretanto, esses dolorosos e infelizes dias eram água passada e essa noite era livre


para dançar todas as danças; desde que a solicitasse o número de cavalheiros suficiente, claro estava. Pôs- se a rir na primeira dança, já que se viu obrigada a guiar Héctor durante a contradança e a resgatá-lo em mais de uma ocasião para evitar que desse um salto na direção oposta quando o resto dos cavalheiros se deslocava com elegância para o lado contrário. Depois agradeceu com grande festividade até tal ponto que inclusive lhe beijou a mão, gesto impensável nele. A segunda dança a dançou com um suarento conde de Kitredge, e a desfrutou enormemente, embora teve que esforçar-se para desviar a conversa da jovial paquera ao que o cavalheiro levava submetendo-a desde há uma semana. Quando fez gesto de levála ao outro lado das portas francesas para sair ao jardim e tomar um pouco de ar fresco, viu-se obrigada a lhe assegurar que a entristeceria muitíssimo perder um passo de uma só dança de um baile tão esplêndido. Dançou com o senhor Ronald Culver, tinha acabado por distinguir os gêmeos e com o senhor Cobley, um dos arrendatários de Bertie que lhe tinha pedido em casamento em três ocasiões durante o último ano e meio, com quem riu e falou pelos cotovelos. Percebeu com grande satisfação que Hazel também tinha dançado cada uma das peças e que Eleanor tinha posto os pés na pista em duas ocasiões, apesar de sua aversão ao baile. Sempre que via juntos Audrey e a Sir Lewis Wiseman, esboçava um sorriso. Embora não se mostrassem especialmente abertos na hora de proclamar seu afeto em público, pareciam ser um casal muito compenetrado. Pareciam felizes juntos. E a felicidade era um bem muito escasso. Esperava de coração que lhes durasse. Sempre tinha tido muito carinho por Audrey, que mal era uma menina quando se casou com o Oscar. No dia seguinte iria para casa, recordou nesse instante. Que alegria maior a embargou ao fazê-lo! Apesar de que em termos gerais tinha desfrutado da festa e da simpatia dos convidados. Claro que três deles não lhe tinham demonstrado nenhuma, e isso marcava uma grande diferença. Desde o dia do lanche campestre tinha reinado uma tensão horrorosa entre Hermione, Basil e ela. evitaram-se na medida do possível, embora se tinha prometido encurralá-los em algum canto na primeira oportunidade para esclarecer coisas de uma vez por todas. Entretanto, era difícil encontrar um momento de privacidade em uma festa campestre; ou talvez não tivesse posto muito empenho. Para cúmulo, o duque de Bewcastle se tinha oferecido para converter-se em sua amante e depois tinha presenciado a humilhação a que a submeteram seus cunhados e seu posterior arranque de mau humor, rancor e indiscrição. Tudo era certamente muito desagradável. Não via o momento de voltar para casa. Nunca mais, jamais dos jamais, voltaria a deixar-se convencer para participar de a um acontecimento no qual estivessem envolvidos a alta sociedade em geral e Hermione e Basil em particular. O pensamento não incluía o duque de Bewcastle, já que era impossível que voltasse a encontrá-lo na vida. Fato pelo qual estaria eternamente agradecida. Entretanto e durante todo o tempo que passou no salão de baile, durante cada um dos minutos, estava muito consciente da presença do duque de Bewcastle, cujo aspecto era muito sério, impecável e decididamente sinistro dado a cor negra do fraque e das


calças de seda, que ficava suavizado pelo cinza prateado do colete e o branco níveo das meias, a camisa e o encaixe dos punhos. Parecia que desprezava a todos os mortais com os que se via obrigado a compartilhar essa última noite de uma festa campestre que não parecia lhe haver trazido muitas alegrias. Era muito provável que lhe horrorizasse o fato de ver-se obrigado a compartilhar um salão de baile com pessoas que, embora afirmassem ter certos vínculos com a nobreza, estavam muito abaixo de sua elevada posição social. Como sua mãe e Eleanor, por exemplo. Viu-o dançar com Hermione e com Melanie, depois do que desapareceu em direção à sala de jogos. De modo que foi uma surpresa vê-lo aparecer de novo ao início da terceira dança enquanto ela ocupava seu lugar na pista de baile com o Ronald Culver. Contra sua vontade, observou-o dar um hesitante passo à frente com expressão arrogante embora um tanto angustiada, e depois entrou com mais decisão e se inclinou frente a Mavis Page, a esquálida filha de um capitão da Marinha recentemente falecido, que tinha estado sentada junto a sua mãe desde o começo do baile. Ninguém nunca tirava Mavis para dançar, que por desgraça não contava com uma personalidade impactante que compensasse sua falta de atrativo. De repente se viu assaltada por sentimentos desencontrados. Alegrava-se muitíssimo por Mavis a senhora Page teria algo do que alardear durante um ano ou mais, ou talvez durante o resto de sua vida, mas era irritante para não dizer que desconcertantever o duque atuar de um modo tão incomum. Porque não queria descobrir nenhuma só qualidade que o redimisse. Ao que parecia, o duque tinha reconhecido que Mavis era um floreiro e tinha ido a resgatá-la. O senhor Fontain, outro dos arrendatários do Bertie, tiroua para dançar a seguinte peça. O leve rubor que apareceu em suas faces lhe sentava bem e a fazia parecer quase bonita. O duque, por sua parte, desapareceu para a sala de jogos depois da terceira dança e por fim se sentiu tranquila para relaxar e desfrutar. A partir do dia seguinte jamais teria que voltar a pensar nele. Jamais teria que voltar a olhar esse rosto arrogante e frio. Jamais teria que voltar a recordar que lhe tinha feito uma proposta desonrosa e que por um breve e vergonhoso instante se havia sentido desiludida porque não era matrimônio o que lhe oferecia. A simples ideia de estar casada com ele... O alívio por sua ausência lhe durou bem pouco. Acabada a quarta peça, dispunha-se a retornar ao lado de sua família quando George Buchany e Anthony Culver a detiveram. Certamente um deles queria convidá-la a dançar, pensou. E estava desejando que alguém o fizesse. Porque a seguinte dança era uma valsa. Tinha aprendido a dançá-la durante seus dias na capital, embora só a tinha dançado com o Oscar. Tomara alguém a convidasse a dançar a valsa. Nesse momento sentiu que alguém lhe tocava o braço e ao olhar para trás se encontrou com os olhos prateados do duque de Bewcastle. -Senhora Derrick - lhe disse, se ainda não tiver a seguinte dança comprometida, eu gostaria que a dançasse comigo. Pegou-a totalmente despreparada. De qualquer forma e apesar da surpresa, caiu na conta de que podia declinar o convite sem mais. Mas se o fizesse, não poderia dançar com ninguém. E era a única valsa da noite. Filho da mãe! Exclamou para si mesma. O coração lhe pulsava acelerado no peito, as pernas apenas a seguravam e


respirava de forma entrecortada, como se acabasse de correr um quilômetro sem deter-se para descansar. À margem de todo o resto e nesse instante de loucura, reconheceu que era um homem muito bonito. Essa era a última noite da festa campestre. A despedida entre eles. E ia ser uma valsa! -Não conhece os passos? - escutou-o perguntar. Porque desde que a convidou tinha estado olhando-o boquiaberta como um peixe fora da água. -Sim - respondeu ao mesmo tempo em que abria o leque para refrescar as acaloradas faces - embora haja passado muito tempo desde a última vez que a dancei. Obrigada, excelência. O duque lhe ofereceu o braço, de modo que fechou o leque, colocou-lhe a mão no antebraço e permitiu que a levasse a pista. De repente, recordou que o tinha visto dançar com Mavis e o olhou com certa curiosidade. Seus olhares se encontraram. Chegou à conclusão de que esses olhos prateados eram similares aos de um lobo. Alguém tinha comentado poucos dias antes que seu nome de batismo era Wulfric. Que estranha coincidência! -Achei que esta noite me evitaria a todo custo - comentou. -Seriamente? - replicou o duque com voz arrogante e as sobrancelhas arqueadas. Bem, não havia resposta para essa pergunta, de modo que em lugar de espremer os miolos em busca de algo apropriado, aguardou em silêncio que começasse a música. O que tinha pensado um momento antes? Que era um homem muito bonito? Muito bonito!? Acaso tinha a cabeça cheia de pássaros? Olhou de novo seu rosto. Seu nariz era muito grande. Não, isso não era certo. Era precisamente esse perfil aquilino o que dotava de personalidade a seu rosto e aumentava sua atitude. O efeito não teria sido o mesmo com um nariz mais reto. Que apêndices mais absurdos eram os narizes quando se analisavam em profundidade. - Tornei a fazer algo que lhe é engraçado? - escutou-o perguntar. -A verdade é que não. - Soltou uma gargalhada - Rio de meus próprios pensamentos. Estava pensando em como são absurdos os narizes. -Eu que o diga - replicou com um brilho estranho nos olhos. Nesse momento, a orquestra começou a tocar e o duque de Bewcastle tomou sua mão direita com a esquerda e lhe colocou a outra na base das costas. Pôs-lhe a mão esquerda no ombro... e teve que fazer um esforço para não ofegar. A distância que os separava era a adequada. Mas de repente compreendia por que tantas pessoas continuavam considerando que a valsa era uma dança indecente. A verdade era que jamais se havia sentido tão perto de Oscar quando dançava com ele. Não recordava ter percebido seu calor corporal nem o aroma de sua colônia. O coração tinha acelerado de novo e nem sequer se moveram. Embora o fizeram nesse instante. E soube sem dúvida que jamais tinha dançado uma valsa com antecedência. O duque dançava com passos largos e seguros e a guiava durante os giros com tal resolução que a luz das velas se transformou em um torvelinho. Acabava de descobrir o que era dançar uma valsa. Nunca antes o tinha compreendido. Porque era um deleite


sensual. Luzes, cores, perfume, o calor que irradiava o par, a colônia almiscarada, a música, o chão ligeiramente escorregadio, a mão que a segurava pela cintura, a que a agarrava pela mão, a euforia provocada pela ligeireza de seu corpo, pelo movimento... Era pura magia. Olhou ao duque de Bewcastle no rosto com um sorriso e nesse instante sentiu uma delirante felicidade. Devolveu-lhe o olhar e a tremulante luz das velas dos lustres das aranhas lhe pareceu que, pela primeira vez, seus olhos tinham um brilho quente. Mas, ai! O feitiço não durou. Giraram ao chegar a um dos cantos do salão, o mais próximo às portas francesas, ao mesmo tempo que Héctor se aproximava com o Melanie em direção contrária! O duque a aproximou de seu peito com o que depois reconheceu como um vão intento de protegê-la do desastre, mas já era muito tarde. Héctor lhe deu um pisão no pé esquerdo do qual não se salvou nenhum só de seus dedos. O duque a segurou com firmeza pela cintura enquanto ela erguia o dolorido pé e continha o fôlego. As proverbiais estrelinhas giravam a seu redor, iluminando a escuridão que a rodeava. Escutou a exclamação horrorizada de Melanie, que passou a recordar a seu irmão que lhe tinha avisado de que iam em direção contrária. Héctor se desculpou com tal profusão que roçava o ridículo. -Adverti a Melanie que não danço bem a valsa - declarou. - Ela sabe muito bem que não sei dançar, mas insistiu em que a tirasse para dançar a valsa. Sinto muitíssimo, Christine. Machuquei-a? -Héctor, essa é a pergunta mais idiota que ouvi na vida - comentou sua irmã com voz mal-humorada - É obvio que machucou-a, grande campônio. -Estou certa de que a vontade de gritar me veio em um instante - respondeu ela Enquanto isso, continuarei contando devagar. Quarenta e sete... quarenta e oito... não se preocupe, Héctor, de qualquer forma meus dedos precisavam estar um pouquinho mais esmagados. -Minha pobre - disse Melanie - Quer que acompanhe a seu dormitório e que mande chamar uma criada? Entretanto, pediu-lhes que partissem com os dentes apertados e tentando dissimular. por que sempre lhe aconteciam essas coisas quando seu único afã era passar desapercebida e dedicar-se a seus assuntos? Héctor se afastou cambaleando, nessa ocasião na direção correta, com Melanie atrás. Nesse instante percebeu que continuava apoiada no flanco do duque de Bewcastle. A dor nem sequer tinha alcançado seu ponto crítico. Conteve de novo o fôlego. E então o viu inclinar-se pela extremidade do olho e a ergueu nos braços, depois do que pôs-se a andar para as portas francesas. Foi uma manobra executada à perfeição, admitiu, embora abriu os olhos como pratos, horrorizada. Duvidava muito que algum convidado percebeu sequer a topada e suas consequências, muito menos de sua saída para o jardim nos braços do duque. Claro que se alguém tinha presenciado a última parte... -Ai, Deus! – exclamou - Isto começa a converter-se em costume. - A que mulher


normal tinham que levá-la em braços duas vezes no prazo de duas semanas? O duque se afastou um pouco das portas e a deixou no banco de madeira que rodeava o enorme tronco de um vetusto carvalho. -Entretanto, senhora Derrick – replicou - nesta ocasião a culpa foi somente minha. Deveria ter percebido o que ia acontecer muito antes do que o fiz. Sofreu algum dano sério no pé? Pode dobrar os dedos? - Me permita uns minutos mais para seguir gritando em silêncio - respondeu - e chegar a cem. Depois tentarei movê-los. Suponho que quando Héctor era menino se assegurava de estar bem escondido com um livro de filosofia grega sempre que havia aulas de dança. Em realidade acredito que não deveriam lhe permitir que se aproximasse de menos de três quilômetros de um salão de baile. O pobre parecia muito envergonhado, não é? Noventa e dois... Noventa e três... Ai! O duque de Bewcastle tinha apoiado um joelho no chão e estava lhe desatando a fita que segurava seu escarpín à perna, depois do que passou a tirá-lo. A imagem era curiosa. Parecia que estivesse a ponto de lhe pedir em casamento. Era estranho que o ser humano fosse capaz de rir em meio à dor mais extrema, pensou enquanto mordia o lábio. Wulfric não era médico, mas em sua opinião não havia nenhum osso quebrado. Nem sequer lhe tinha inchado o pé, embora a rígida postura e a respiração superficial deixavam bem claro que continuava lhe doendo horrores. Colocou-lhe a palma da mão sob a planta protegida pela meia e lhe segurou o calcanhar com a outra mão. Em seguida, obrigou-a a levantar o pé desde atrás para que dobrasse os dedos com muita delicadeza antes de devolvê-lo à posição inicial. A senhora Derrick lhe colocou uma mão em um ombro e o apertou com força. Percebeu que tinha os olhos fechados e a cabeça inclinada. Tinha o rosto crispado e se estava mordendo o lábio inferior, mas à medida que repetia o movimento foi relaxando. -Acredito que sobreviverei - disse ao cabo de um minuto - É possível que inclusive volte a dançar algum dia. - Riu entre dentes e o som que brotou de sua garganta foi rouco, alegre e sensual. Seu pé era pequeno, delicado e morno. Levava meias de seda. Deixou-o sobre o escarpam rosa e o observou enquanto ela prosseguia exercitandoo do mesmo modo que tinha feito ele, elevando o talão para flexionar os dedos. Uns minutos mais tarde lhe tirou a mão do ombro. -O que não entendo é o que faz Héctor aqui - disse ao mesmo tempo que ele se endireitava e levava as mãos às costas sem deixar de observá-la - É um homem afastado do mundo, um erudito pouco inclinado a mesclar-se com a sociedade... ao menos com as damas. - Acho que pensou que ia ser uma reunião de intelectuais - replicou. -Ai, pobre! - exclamou enquanto voltava a calçar o escarpam. Colocou de novo as fitas em torno da panturrilha e, em seguida, continuou flexionando os dedos. - Suponho que Melanie pensou que este tipo de festa lhe viria bem; e seguro que pensou o mesmo quando o obrigou a dançar a valsa. É possível que o enganasse desde o começo sem necessidade de lhe mentir abertamente. Porque também é possível que nem sequer se


inteirou de que sua irmã menor acaba de comprometer-se ou talvez o tenha esquecido e Melanie se haja sentido obrigada a organizar uma de suas famosas festas em honra de Audrey. Não respondeu a seu comentário. Viu que tinham acendido algumas lanternas em deferência aos convidados que queriam sair para tomar ar fresco fugindo do cansativo salão de baile. A luz de uma delas se derramava sobre a senhora Derrick e fazia brilhar seu cabelo. Nesse momento a dama ergueu o olhar com uma expressão entusiasmada no rosto... e os olhos risonhos. -Ai, Meu deus! – exclamou - Foi Héctor quem o convidou. Você também acreditou que seria uma reunião de intelectuais? É assim, verdade? Perguntava-me por que tinha vindo, porque Melanie me assegurou que não tinha você por costume abandonar Londres a menos que se retirasse a uma de suas propriedades rurais. Que mal deve ter se sentido ao descobrir o mal-entendido! Pobre... perdão, excelência. -Suponho, senhora Derrick - respondeu ao mesmo tempo que os dedos de uma mão se fechavam em torno do cabo do monóculo - que suas perguntas não requerem uma resposta, que são retóricas. Não estava acostumado a que se rissem dele. Nem sequer recordava que alguém tivesse se compadecido dele nunca. -Entretanto, você possui algumas das habilidades sociais requeridas... dança muito bem a valsa - continuou ela, que levou as mãos ao colo e inclinou a cabeça um pouco sem afastar o olhar - Extremamente bem, de fato. -É possível ser um erudito - lhe assegurou-, como você diz, e ao mesmo tempo ter aperfeiçoado as artes sociais, senhora Derrick. Eu não fugia de minhas aulas de dança. Aprender a dançar corretamente, inclusive bem, é uma parte essencial da educação de um cavalheiro. Não se tinha por um erudito. Embora se considerava culto, não tinha tempo para estar com o nariz enterrado entre livros. Tinha outras preocupações de índole mais prática com as quais ocupar seus dias. Além disso, de menino nem sequer gostava de ler... -Sempre gostei da valsa mais que qualquer outra dança - confessou a senhora Derrick com um sentido suspiro - embora raramente a dancei enquanto vivia em Londres. E agora o pobre Héctor esmagou todas minhas esperanças de continuar dançando-a esta noite. -Ainda não acabou - lhe assinalou - Podemos continuar dançando caso se senta capaz de fazê-lo. -Meu pé se recuperou quase por completo - lhe assegurou ao tempo que movia os dedos por última vez no interior do escarpam de seda rosa - Deveria agradecer que Héctor só pesar uma tonelada em lugar de dois... -Nesse caso, sigamos dançando. -Tendeu-lhe uma mão. Ela a aceitou antes de ficar em pé. -Suponho que se arrepende de me haver convidado – comentou - Os desastres me perseguem embora não faça nada para atrai-los. -Não me arrependo - contradisse-a... e cometeu o engano de não dirigir-se imediatamente para o salão de baile. A lanterna balançava na brisa, envolvendo-a em um jogo de luzes e sombras. De repente, a tensão crepitou no ar que os rodeava.


-Dancemos aqui - sugeriu. -Aqui? -repetiu ela com as sobrancelhas arqueadas pela surpresa, embora acabasse rindo e com suavidade - À luz das lanternas e sob as estrelas? Que ideia mais rom... maravilhosa! Sim, dancemos aqui. Tinha estado a ponto de dizer "romântica". Se esforçou por manter-se impassível, embora por dentro deu um pulo. Ele não era romântico. Não se achava no romantismo. Entretanto, a sugestão de dançar fora não era prática, decidiu enquanto tomava pela cintura, agarrava-a pela mão e a guiava pelos primeiros passos da valsa. A erva não era a melhor superfície para dançar, e esse terraço em particular nem sequer estava nivelado. Além disso, não era apropriado que dançassem a sós tal como o estavam fazendo. Embora não se encontravam longe da mansão e as portas francesas estavam totalmente abertas, além das lanternas cuja luz convidava aos convidados a sair, não deveria tê-la afastado do salão de baile. Não deveria tê-la afastado de sua mãe e do resto de sua família. De qualquer forma não demorou para reconhecer o absurdo do pensamento. A senhora Derrick era viúva e possivelmente estivesse mais perto dos trinta que dos vinte. Não havia nada impróprio no que estavam fazendo. Não obstante, era consciente de que estar a sós com ela desse modo, dançando com ela uma valsa, era ligeiramente perigoso. Ou talvez mais. Dançaram e giraram em silêncio, rodeados pela música que flutuava do salão. Ao cabo de uns minutos percebeu que a erva era a superfície perfeita sobre a que dançar a valsa e de que o firmamento estrelado era o teto ideal. Os aromas noturnos da vegetação eram muito mais sedutores que a combinação dos perfumes que flutuavam no salão. E tinha entre os braços o par perfeito. Porque não executava os passos com precisão e rigidez. A senhora Derrick seguia seus movimentos totalmente relaxada, enfeitiçada como ele mesmo. Aproximou-a um pouco mais para guiá-la melhor pelo desnivelado terraço e levou sua mão ao peito, sobre o coração, onde a apoiou sem soltá-la. Nesse momento descobriu que ela tinha enterrado o rosto em sua gravata e que seu cabelo fazia cócegas em seu queixo. Esse corpo tão quente, relaxado e feminino estava totalmente colado a ele. Suas coxas se roçavam enquanto se moviam em perfeita sincronia. Chegou à conclusão de que a valsa era uma dança erótica. Sentiu os primeiros indícios da atração sexual. Fazia tanto tempo... A música continuava soando mas, em algum momento, eles se tinham detido. mantiveram-se imóveis durante um lapso interminável de tempo e depois ela jogou a cabeça para trás e o olhou. Nessa ocasião foi a luz da lua e não a da lanterna a que iluminou seu rosto. Possuía uma beleza etérea, pensou. Tomou o rosto com as mãos e enterrou os dedos nesse sedoso cabelo. Utilizou os polegares para delinear suas sobrancelhas, suas maçãs do rosto e seu queixo. Acariciou ligeiramente seus lábios com um dedo, pegando o inferior até umedecer a polpa com seu suave interior. Ela o lambeu com a ponta da língua, convidando-o a ir mais à frente e uma vez que o conseguiu, chupou-o com força. Sentiu o calor, a suavidade e a umidade de sua boca. Retirou o dedo e o substituiu com sua boca. Mas só por um instante. Afastou-se para olhá-la nos olhos, iluminados pela luz da lua.


-Desejo-a - confessou. Disse-o sabendo que ela podia romper o feitiço com uma só palavra. E em parte desejou que o fizesse. -Sim - escutou-a dizer com um fio de voz. Seus olhos o olhavam com uma expressão sonhadora e com as pálpebras ligeiramente entreabertas. -Venha comigo ao lago - lhe disse. -Sim. A alegre melodia da valsa continuava soando. As vozes e as risadas procedentes do salão continuaram. As lanternas ainda se balançavam embalados pela brisa. A lua estava quase cheia. De um céu límpido, sua luz iluminava a terra junto com a de um milhão de estrelas quando pegou Christine Derrick pela mão e a conduziu até o limite das árvores, atrás das quais se encontrava a verde margem do lago.


Capítulo 9

Christine não pensou duas vezes. A noite era mágica e esse era o arremate de duas semanas depois das quais a vida voltaria para seu leito habitual e aborrecido, por que não dizê-lo. Reprovava ao duque de Bewcastle e a tudo o que representava. Tinha-a insultado ao supor com arrogância que o dinheiro, as joias e uma carruagem de sua propriedade seriam mais tentadores que a pobreza de uma vida rural e a vida a que estava acostumada. Representava tudo o que não queria em um homem. Mas essa era a voz da razão, e se negava completamente a escutar seus lúgubres argumentos. Entre eles existia uma atração inegável que claramente era mútua. E igualmente indesejada. Não obstante, aí estava... Fosse o que fosse. E só tinham essa noite para explorar esse algo a fundo antes que seus caminhos se separassem no dia seguinte. É obvio, sabia muito bem o que implicava tal exploração. Não foram ao lago para contemplar a luz da lua nem para trocar beijos castos. "Desejo-a. " "Sim. " Levava-a pela mão. A intimidade do gesto era tal que poderia ter-se posto a chorar. Uma mão que a segurava com força e firmeza. Não tinha entrelaçado seus dedos. Seu toque não deixava entrever ternura nem romantismo. Claro que também não teria recebido de bom grado nenhuma dessas duas coisas. Porque entre eles não havia ternura muito menos romantismo. Só essa espécie de intimidade e a promessa de afundar nela quando chegassem ao lago. Não sabia por que tinha aceitado fazer algo semelhante. Não tinha nem a menor ideia! Ela não era uma mulher promíscua nem de cabeça leve. Antes de casar-se só tinha trocado alguns beijos com Oscar e, durante seu matrimônio e apesar das acusações que ele verteu ao final, jamais lhe tinha passado pela cabeça a possibilidade de lhe ser infiel. Estava há dois anos viúva e se manteve celibatária durante esse tempo porque não havia sentido a menor tentação de mudar esse fato, mesmo quando vários cavalheiros da vizinhança teriam estado encantados de deixar-se seduzir ou de cortejá-la de forma honrosa. Entretanto, aí estava, caminhando entre as árvores pela mão do duque de Bewcastle, no apogeu do baile do Melanie, porque lhe havia dito que a desejava e ela tinha reconhecido com uma só palavra que o sentimento era mútuo. Desafiava a lógica. Embora nem sequer tentara lhe encontrar a lógica. Negava-se a dar voltas ao assunto. O duque se manteve em silêncio. Igual a ela. Por sua parte nem sequer foi uma decisão consciente. Caminharam em silêncio e os sons do salão de baile se foram desvanecendo à medida que se afastavam. A quietude da noite só se viu interrompida pelo piar de um mocho, pelo sussurro das copas das árvores e pela apressada fuga das criaturas noturnas que corriam sob os matagais. Ao quente dia tinha seguido uma noite cálida. A lua brilhava. Sua luz iluminava o caminho apesar da espessura das árvores.


À margem do lago se via virtualmente como se fosse de dia, já que não havia nada sobre suas cabeças salvo a lua, que se refletia na superfície, deixando um lado prateado. Teria sido a noite perfeita para o romantismo. Mas aquilo não era um interlúdio romântico. Sem soltar sua mão, o duque de Bewcastle virou à direita até chegar a uma zona coberta de erva que estava totalmente oculta do atalho pelo qual tinham chegado, se por acaso se desse o improvável caso de que a alguém mais ocorresse dar um passeio. Em seguida, deteve-se. Não lhe soltou a mão imediatamente. Colocou-se frente a ela e se apoderou de seus lábios. Já não havia inibições. Já não estavam à vista do salão de baile nem escutavam as vozes dos convidados. E entre eles não havia hipocrisia. Ele lhe havia dito que a desejava, ela havia dito que sim, assim aí estavam. Suas mãos se separaram. Arrojou-lhe os braços ao pescoço e lhe rodeou a cintura. Notou que lhe introduzia a língua na boca e a recebeu com a sua. O desejo sexual que desceu desde sua boca até sua garganta e continou descendo por seus seios para o abdômen e entre as coxas foi tão poderoso que agradeceu o apoio desses braços e desse corpo para não cair ao chão. Uma das mãos do duque se posou sobre seu traseiro e a colou ainda mais a ele, convencendo-a de que se desejavam na mesma medida. Nesse instante deixou de abraçá-la, embora sua boca não se separou dela em nenhum momento. Estava tirando o caro fraque negro. De qualquer forma, teve que deixar de beijá-la para virar-se e estender a roupa sobre a erva. -Venha - disse. - Deite-se. A impressão de escutar sua voz fez que se desse conta de que essas eram as primeiras palavras que pronunciava desde que a convidou a acompanhá-lo ao lago. A pronúncia cuidada e o sutil tom arrogante fizeram que voltasse a dar-se conta da identidade do homem com quem estava fazendo essas coisas. Entretanto, isso só serviu para avivar o desejo. Deitou-se no chão com a cabeça e os ombros sobre o fraque, e ele a seguiu sem demora. Introduziu as mãos sob seu vestido e foi subindo por suas pernas com o fim de lhe erguer as saias e lhe tirar a roupa de baixo. Notou como desabotoava a braguilha e no momento colocou um braço sob sua cabeça e lhe segurou o queixo com a outra mão para imobilizá-la enquanto devorava sua boca de novo. Não houve delicadeza nem ternura. Embora desfrutasse em grande medida da crua sexualidade do momento. Supunha que ia penetrá-la logo e que tudo acabaria muito em breve. De modo que se dispôs a aproveitar ao máximo cada minuto, movida por um desejo voraz. Um desejo que parecia ter morado nela não só nos dois últimos anos, mas em toda a vida. Sempre tinha desejado mais. Sempre. Os lábios do duque abandonaram os seus e deslizaram até seu queixo. Desceram por sua garganta e se detiveram no peito. Nesse momento, notou que introduzia um polegar sob o decote do vestido e o baixava, para deixar um seio ao ar. Seus lábios se fecharam em torno do mamilo e o chuparam ao mesmo tempo que o lambia com a língua. Enquanto isso, sua outra mão foi subindo pelas coxas até chegar entre as coxas, em busca de sua zona mais íntima, que procedeu a explorar e a acariciar até que não restou mais remédio que jogar a cabeça para trás e, com os dedos enterrados em seu cabelo,


perguntou-se se seria possível tornar-se louca por causa da dor que provocava um prazer tão intenso. Em um dado momento, colocou-se entre suas coxas e as separou ao mesmo tempo que introduzia as mãos sob seu traseiro. Chegados a esse ponto, estava muito segura de que a única coisa que lhe traria a parte final do ato seria dor, porque se sentia excessivamente sensível e excitada. E, de fato, quando notou que se colocava justo na entrada de seu corpo, duro e firme, esteve a ponto de lhe suplicar que se detivesse. -Por favor - disse em troca com voz baixa, rouca e quase irreconhecível até para seus próprios ouvidos - Por favor. E a penetrou. Mas seu corpo estava úmido e preparado, e apesar de enchê-la até o fundo e apesar da dureza de seu convite, a única dor que sentiu foi fruto do prazer que ameaçava explodir em seu interior de um momento para outro. Uma dor e um prazer desconhecidos para ela até então. Inimagináveis até esse instante. Estalou logo que ele começou a mover-se em seu interior com investidas rítmicas, profundas e firmes. Todo seu corpo estremeceu, preso de algo parecido ao êxtase, e depois relaxou durante o que lhe pareceram vários minutos enquanto escutava os sons que a rítmica penetração produzia, enquanto se deleitava na gloriosa sensação de plenitude. Entretanto, esses escassos minutos de prazenteira passividade não demoraram para dar lugar de novo ao desenfreado desejo que a levou a experimentar um novo clímax, momentos antes que ele também o fizesse. Viu-o esticar-se de repente ao mesmo tempo em que ficava imóvel em seu interior, muito mais dentro que antes, e imediatamente notou que a inundava uma cálida umidade. Antes de afastar-se, relaxou uns instantes, depois dos quais se sentou a seu lado e em seguida ficou em pé. De costas para ela, colocou a roupa e se afastou até a margem do lago, a uns metros de distância, onde se deteve com o olhar à frente. Uma imagem digna de contemplar a desse homem alto, bonito e elegante com as meias e o colete bordado, a camisa branca e uma grande profusão de encaixe nos punhos e no peitilho da camisa. A imagem do duque de Bewcastle, nem mais nem menos. Sentou-se para arrumar-se na medida do possível sem a ajuda de uma escova nem de um espelho. Ergueu os joelhos, colocou as plantas dos pés no chão e abraçou as pernas. Tremiam-lhe um pouco, notou. E tinha os mamilos muito sensíveis. além de um leve mal-estar entre as coxas. Fisicamente, sentia-se na glória. Porque tinha feito um grande descobrimento. Tinha amado ao Oscar; ao menos durante uns anos, embora não tinha deixado de querê-lo nunca. O leito matrimonial jamais lhe tinha sido desagradável. Afinal, isso era o que acontecia entre marido e mulher. Se em algum momento se sentiu ligeiramente decepcionada, pois se tinha casado apaixonada até o tutano, consolou-se com a ideia de que a realidade jamais estava à altura dos sonhos. Entretanto, tinha mudado de opinião. A realidade estava à altura dos sonhos e inclusive os superava. Porque acabava de experimentá-lo em sua própria carne. Ao mesmo tempo, estava muito consciente de que entre eles não tinha havido nem ternura nem romantismo nem amor, nem promessas de futuro. O encontro tinha sido


puramente carnal. E apesar disso, tinha-o desfrutado. Não se supunha que só os homens desfrutavam desse tipo de experiências a um nível físico? Não se supunha que para as mulheres consistia tão só em uma experiência emocional? Em troca, ela não albergava emoção alguma pelo duque. E nesse preciso instante nem sequer de caráter negativo. Acreditar-se apaixonada por ele era impensável. Não estava apaixonada por ele. A revelação era terrivelmente impactante! Entretanto, devia admitir que se sentia inquieta. Porque sabia que não ia sem esforço depois do que tinha acontecido e voltasse a estar a sós com seus próprios pensamentos. O duque de Bewcastle se virou nesse instante para olhá-la. Ou ao menos isso supôs que estava fazendo. A lua estava atrás dele, de modo que seu rosto ficava escurecido. Guardou silêncio uns minutos. -Senhora Derrick - disse finalmente com a voz mais gélida e arrogante que nunca, conforme lhe pareceu... ou talvez fosse seu tom de voz habitual - acredito que estará de acordo comigo em que agora terá que reconsiderar... -Não! - contradisse-o, interrompendo-o no meio da frase. Não estava disposta a escutar o que ia dizer - Não, não estou de acordo com você e não vou reconsiderar. O que acaba de acontecer aqui não é o começo de nada, mas sim o final. Por algum motivo que certamente escapa a ambos, entre nós houve algo. E por fim cedemos à tentação e a temos satisfeito. Agora poderemos nos despedir, tomar nossos respectivos caminhos e nos esquecer um do outro. Enquanto falava, tinha consciência das sandices que estava dizendo. -Ah! - escutou-o exclamar - Você acha? -Não me converterei em sua amante - assegurou. - Fiz isto porque sim, por minha própria satisfação. Porque foi muito prazenteiro e satisfiz minha curiosidade. Nada mais. E aí se acaba tudo. Abraçou as pernas com mais força. O duque tinha virado a cabeça ligeiramente para a esquerda, de modo que podia ver seu perfil: orgulhoso, aristocrático, belo em sua austeridade. Nem sequer nesse momento, minutos depois de que tudo tivesse acontecido, conseguia acreditar que se deitara com esse homem. Que as repercussões físicas que notava depois de ter compartilhado um momento de paixão eram fruto de um encontro com esse homem: o duque de Bewcastle. De repente, recordou-o tal qual o viu naquele vestíbulo na primeira tarde, quando se encontrou por cima do corrimão para observá-lo e pressentiu o perigo que apresentava. Não tinha se enganado, não é verdade? - Ocorreu-lhe pensar que há a possibilidade de que a tenha deixado grávida? escutou-o perguntar. Alegrou-se de estar sentada. Porque os joelhos se afrouxaram imediatamente ante a crueldade da pergunta. Evidentemente, o duque não era dado aos eufemismos. -Fui estéril durante os sete anos de meu matrimônio - confessou sem disfarces assim como tinha feito ele - Acredito que continuará sendo uma noite a mais. Produziu-se um longo silencio que teria quebrado de boa vontade se lhe tivesse ocorrido algo que dizer. Mas embora sua mente discorria ativamente, seus pensamentos não eram adequados para compartilhar com ele. Em realidade, começava a compreender


o muito que se enganara pouco antes. Suas emoções tinham desempenhado um papel muito importante nos acontecimentos dessa noite, embora não tivessem nada que ver com o romantismo nem com o amor. Sabia que lhe aguardavam uns dias, talvez umas semanas, espantosas. Porque para uma mulher não era fácil entregar seu corpo e sua honra alegremente e afastar-se depois com a convicção de que tudo tinha sido pelo mero prazer, de que não haveria consequências sérias. Entretanto, já era muito tarde para compreender que quando o duque lhe disse "Desejo-a" deveria lhe ter pedido dez minutos para considerar sua resposta. -Nesse caso - disse finalmente-, não há nada que possa dizer para persuadi-la de que mude de opinião? -Nada - respondeu. E essa, ao menos, era a pura verdade. Não imaginava pior destino que o de converter-se na amante desse homem, submetida a seu poder e a sua arrogância, a seu capricho e a seu mandato. Uma empregada a salário que para ele somente seria um corpo com o qual satisfazer-se quando desejasse muito. E tudo isso sem deixar de desprezá-lo, de detestálo em parte, enojada por sua frieza, por sua falta de humor e de humanidade. E desprezando-se a si mesma. Viu-o aproximar-se dela e se levantou como pôde, relutante nesse instante a sentir inclusive o toque de sua mão enquanto a ajudava a ficar em pé. Entretanto, sua intenção era a de recolher o fraque. Inclinou-se e o agarrou do chão, depois do que o sacudiu para lhe tirar a erva que lhe tinha aderido, antes de vesti-lo. Nesse momento caiu na conta de que sua aparência era tão impoluta como quando o viu pela primeira vez nessa noite no salão de baile. Quando fez gesto de virar-se para ela, levou as mãos às costas e as entrelaçou. O duque captou a indireta e a precedeu para o caminho sem lhe oferecer o braço... nem a mão. Era estranho que duas pessoas pudessem compartilhar a mais profunda das intimidades e depois, em pouco tempo, rechaçar até o mais leve toque entre eles. No dia seguinte voltaria para o Hyacinth Cottage. No dia seguinte o duque se iria. Jamais voltaria a vê-lo. De qualquer forma notou que ainda tinha os mamilos sensíveis, que as coxas ainda lhe tremiam e que sentia uma ligeira ardência entre as coxas, e tudo isso por ter feito amor. Embora essa expressão em particular era um eufemismo como a copa de um pinheiro. Retornaram à mansão em silêncio. Não obstante, ele se deteve certa distância das portas francesas que davam acesso ao salão de baile. -Seria melhor que não nos vissem retornar juntos - lhe disse -. Esperarei aqui um momento. Estava a ponto de continuar caminhando, agradecida por essa amostra de consideração, quando o escutou falar de novo. -Senhora Derrick, escreverá a Lindsey Hall, no Hampshire, em caso de que seja necessário. Foi uma ordem, não uma petição. Não acrescentou nada mais. Não era preciso.


Observou-o caminhar em direção ao vetusto carvalho em cujo banco a tinha deixado depois de que Héctor lhe desse o pisão e estremeceu. Quanto tempo parecia ter passado depois! Apressou-se para o salão de baile, mais deprimida do que recordava havê-lo estado em muito tempo. Menos mal que suas emoções não tinham estado envolvidas no que tinha permitido que acontecesse...! Wulfric esperou fora um momento antes de encaminhar-se à sala de jogos. Não havia nada em seu passado com o que comparar o que tinha passado essa noite entre Christine Derrick e ele. Jamais tinha sido um mulherengo. Rose tinha sido sua única querida, e antes de deitar-se com ela tinham combinado todos os detalhes de sua futura relação. Sempre tinha tido um apetite sexual saudável e tinha satisfeito suas necessidades de forma regular quando estava em Londres, embora jamais se teve por um homem apaixonado. Essa noite tinha experimentado a paixão. Perguntou-se o que teria passado na margem do lago se Christine Derrick lhe tivesse permitido expor o que tinha querido dizer, a conclusão a que tinha chegado depois de vários minutos de reflexão com o olhar cravado na borda oposta do lago. Ela tinha suposto que estava a ponto de lhe fazer a mesma proposta que lhe fizera uma semana antes no labirinto. E tinha suposto mal. Embora, a verdade fosse dita, alegrava-se de que o tivesse interrompido. Tinha deixado que sua interrupção o desviasse do caminho que tinha decidido tomar depois de uma reflexão muito breve. Movido pela honra, certo, mas a honra se desvanecera depois da interrupção. Não queria uma duquesa. E muito menos uma duquesa que não era sua igual no escalão social, que era bonita normalmente e deslumbrante quando estava animada, mas que carecia de elegância e refinamento; que se comportava de forma impulsiva e nem sempre com o decoro devido nem com boa educação; que se convertia no centro de atenção sempre que algo a entusiasmava e que se limitava a rir de si mesma quando se produzia um desastre em lugar de envergonhar-se, como era o normal. O título de duquesa suportava uma enorme responsabilidade. Se alguma vez se casasse, gostaria não precisar fazê-lo com uma dama que tivesse sido educada para amoldar-se a esse papel com segurança. Estava muito claro que a senhora Derrick não poderia fazê-lo. Não havia nada nela, nada que a qualificasse para esse papel. Aidan tinha se casado abaixo de suas possibilidades. Eve era filha de um mineiro de Gales, por muito que tivesse desfrutado da educação de uma dama. Rannulf se tinha casado abaixo de suas possibilidades. Judith era filha de um clérigo rural de origem duvidosa e neta de uma atriz londrina. Em nenhum dos casos aprovou sua decisão, embora lhes dera sua bênção. Alleyne era o único de seus irmãos varões que tinha feito um enlace respeitável, com a sobrinha de um barão. Acaso ele, o chefe de família, o duque de Bewcastle, ia cair tão baixo como seus próprios irmãos? Acaso ia sacrificar todos seus princípios por uma paixão estival que não conseguia compreender? Teria sido um desastre se a senhora Derrick lhe tivesse permitido concluir sua proposta matrimonial. Porque era evidente que não o teria rechaçado se lhe tivesse


deixado acabar de falar. Desdenhar a proposta de converter-se em sua amante era uma coisa, mas que mulher em seu são juízo rejeitaria a oportunidade de converter-se em duquesa, de casar-se com um dos homens mais ricos de Grã-Bretanha? Teria sido um desastre. De modo que permitiu que o interrompesse, que o interpretasse mal. Para sua tranquilidade. Entretanto, tinha a impressão de que acabava de desperdiçar uma das poucas oportunidades que oferecia a vida para descobrir se havia alegria além das engrenagens da rotina, costume e dever. Alegria!? Recordou que Aidan era feliz com Eve, assim como Rannulf o era com Judith... tão feliz, de fato, como Alleyne o era com a sobrinha do barão, Freyja com seu marquês ou Morgan com seu conde. Não obstante, eles gozavam da liberdade de poder ser felizes. Nenhum deles era o duque de Bewcastle, que podia esperar algo da vida salvo liberdade e felicidade pessoal. Durante um tempo, pensou enquanto seus passos o levavam de volta à festa, a vida ia parecer muito vazia sem poder ver, embora fosse de longe, à Christine Derrick. Mas claro, a vida era vazia. Em realidade, não havia nada mais lá das engrenagens. Ao menos, não havia para os homens como ele. Aos doze anos deixaram muito claro que era diferente, especial, que o resto de sua vida estaria regida pelos privilégios e pelas obrigações. Tinha protestado e rechaçado seu destino por um tempo, talvez um ano no máximo, antes de aceitar a verdade do que lhe haviam dito. A partir desse momento aprendeu bem a lição. O menino cujo corpo e cujos sonhos possuiu durante doze anos já não existia. Christine Derrick não era para ele. A música deixou de escutar-se no piso inferior enquanto Christine recolhia seus escassos pertences em seu dormitório. Justin estava sentado na cama. É obvio, não era apropriado que estivesse ali, mas tanto lhe fazia. Tinha sido um alívio abrir a porta quando alguém bateu e descobrir que era ele em lugar de Melanie, Eleanor O... bom, outra pessoa. -Pensei que seria boa ideia voltar para casa esta noite com minha mãe e com a Eleanor e assim economizar ao Bertie o trabalho de ter que mandar preparar a carruagem amanhã pela manhã outra vez - explicou. -Assim está fazendo a bagagem em meio a um baile, sem ter chamado a uma criada para que o faça por você - replicou Justin - Pobre Chris. Vi que Héctor te esmagava o pé quando estava dançando a valsa e que Bewcastle a levava ao terraço. E a vi voltar muito discretamente uma hora mais tarde, embora se limitou a rodear a pista de baile a caminho da porta para desaparecer de novo. Tem certeza que não aconteceu nada que a tenha incomodado? Não terá repetido sua desonrosa proposta por acaso, não é verdade? Justin sempre havia possuído a misteriosa habilidade de acompanhá-la nas diferentes crises que tinha sofrido na vida, como se pressentisse que lhe tinha acontecido algo, que necessitava de um amigo que a escutasse enquanto ventilava sua ira, sua pena, sua frustração ou qualquer outra emoção negativa que a embargasse e depois sempre conseguia encontrar o modo de consolá-la, de aconselhá-la ou simplesmente de fazê-la


rir. Sempre se tinha considerado muito afortunada de contar com semelhante amigo. Mas essa noite não se sentia inclinada a confiar nele. -Não, é claro que não - respondeu - Em realidade foi muito galante, ficou comigo até que fui capaz de apoiar de novo o pé no chão e depois dançamos a valsa um momento e passeamos até que a música acabasse. Acredito que foi para a sala de jogos, embora eu continuei no terraço uns minutos mais. A temperatura era muito agradável e fora se estava muito bem, assim não tinha muita vontade de voltar para o salão de baile. E então me ocorreu que podia fazer a bagagem para partir esta noite em lugar de esperar a manhã. Justin a olhou com um sorriso afetuoso e um olhar penetrante, e soube que era muito consciente de que acabava de lhe mentir pela primeira vez na vida. Entretanto, porque era era seu melhor amigo, não a pressionaria para conseguir mais informação do que ela queria lhe dar. -Me alegro de que não te tenha incomodado - disse. -Não o fez, de verdade - voltou a lhe assegurar enquanto deixava a escova do cabelo sobre a roupa e fechava a bolsa de viagem - Mas me alegrará muitíssimo voltar para casa, Justin. E suponho que Hermione e Basil também se alegrarão de me perder de vista. Sabe o que fizeram essas duas malcriadas de lady Sarah Buchan e Harriet King? Ir contar lhes da absurda aposta. -Ai, Chris! - escutou-o dizer, interrompendo-a - temo que fui eu. Audrey me contou isso depois de que tivesse ganho e estava tão seguro de que todo mundo acabaria por saber que o contei a Hermione. Queria lhe assegurar que lhe tinham obrigado a participar contra sua vontade, que você não tinha apostado dinheiro algum e que foi Bewcastle quem te convidou a acompanhá-lo pelo passeio, não ao contrário. Eu estava ali, recordao? Além disso, assegurei-lhe que não paquerou com ele em nenhum momento. Recalquei-o porquê queria convencê-la. Suponho que fiz justo o que não devia fazer. É possível que não se inteirasse sobre a aposta se não chegar a contar-lhe eu. Olhou-o um momento, espantada. Justin era o responsável pela desagradável cena do lago? Sabia por experiência que costumava intervir por sua conta e risco em qualquer problema no que acabasse envolta para defendê-la, para dar as explicações oportunas e para interceder em seu nome. Sempre lhe tinha agradecido esse afã de ser seu paladino, embora não lhe tivesse servido de muito. Entretanto, nessa ocasião não o aprovava absolutamente. Porque em realidade a tinha prejudicado. - Me perdoe - lhe disse com uma voz tão abatida que lhe derreteu o coração. -Bom – replicou - suponho que se não o houvesse dito você, teria sido outra pessoa. Além disso, pouco importa, não é? Possivelmente não volte a vê-los na vida depois desta noite. Jamais voltaria a aceitar outro convite do Melanie em que seus cunhados estivessem incluídos. Embora lhe partisse o coração fazê-lo. Basil era o irmão de Oscar e durante uns anos pareceu apreciá-la. Hermione inclusive chegou a ser como outra irmã para ela. -Voltarei a falar com eles - lhe prometeu Justin. -Preferiria que não o fizesse - replicou ao mesmo tempo em que se encaminhava para a porta, deixando a bolsa de viagem onde estava - intercedeu tantas vezes por mim


que já não acreditam em você. Deixa correr. Já faz um tempo que não se escuta música, verdade? O jantar estará a ponto de terminar. Suponho que deveria fazer ato de presença outra vez embora só restem algumas danças para o final. Não acredito que os vizinhos queiram demorar muito em partir. Além disso, os convidados que se alojam na mansão partirão pela manhã e não acho que tresnoitem. -Nesse caso, dança comigo - sugeriu Justin enquanto ficava em pé e se aproximava da porta para abri-la e convidá-la a sair - E sorri como só você sabe fazê-lo, embora esteja convencido de que Bewcastle fez ou disse algo que a incomodou, maldita seja sua imagem. -Absolutamente - o contradisse - Estou um pouco cansada, nada mais. Mas não tanto para não dançar com você. Era difícil imaginar-se ainda mais abatida do que se sentia nesse momento, pensou. Tinha o ânimo pelo chão, colado à sola de seus escarpans. Embora sorrisse de qualquer forma. Disse a sua mãe e a Eleanor que partiria com elas, e depois dançou com Justin e com o senhor Gerard Hilliers. Plantou um sorriso nos lábios e agiu com alegria. Foi um alívio descobrir que o duque de Bewcastle não estava no salão de baile. Ao término do baile, aproximou-se de Melanie e de Bertie para lhes agradecer por tudo e comunicar que partia com sua mãe. Embora acreditou que poderia escapulir-se sem que ninguém se desse conta, Melanie estendeu a notícia, fazendo que a despedida se convertesse em um acontecimento, que era justo o que tentava evitar ao partir de noite em lugar de fazê-lo no dia seguinte. Despediu-se de Audrey com um abraço e estreitou a mão do senhor Lewis Wiseman, lhes desejando que tivessem umas bodas perfeitas na primavera e que o futuro lhe sorrisse. Deu um beijo em Lady Mowbury na face e lhe prometeu escrever. Trocou uma ruidosa despedida com um grande grupo de jovens que tentavam falar todos de uma vez... e acabaram rindo às gargalhadas. Até Hermione e Basil se viram na obrigação de despedir-se formalmente dela. Hermione se aproximou para beijar o ar junto a sua face e Basil executou uma rígida reverência. De repente e por vergonhoso que parecesse, notou que lhe enchiam os olhos de lágrimas e surpreendeu ao Hermione e a ela mesma, a verdade com um forte abraço. -Sinto muito – disse - Sinto muitíssimo, Hermione. Não sabe quanto. Embora não soubesse ao que se referia, viu que Hermione se aproximava de seu marido e que lhe passava um braço pelos ombros, depois do que deu meia volta e subiu na carruagem que a aguardava. Ao menos o duque de Bewcastle tinha evitado a pequena multidão que se congregou no terraço. Um enorme alívio a inundou enquanto se acomodava no fofo assento com um nó na garganta por causa das lágrimas que não tinha derramado. Menos mal que não tinha chorado, menos mal! -Foi um acontecimento muito elegante - disse sua mãe, que ocupou seu lugar frente a Eleanor. - E foi muito gratificante ver que soube aproveitá-lo, Christine. -Bem, é o que deve fazer, mamãe - replicou Eleanor - Afinal, é uma Derrick por


matrimônio e tem laços familiares com lady Renable, com o visconde de Elrick e com o visconde de Mowbury. Nossa Christine é uma dama importante - concluiu, piscando um olho a sua irmã. -O conde de Kitredge foi muito amável ao pedir que fôssemos apresentados - seguiu sua mãe - Além disso, dançou com você, Christine. Como o duque de Bewcastle, embora confesse que me seja enormemente desagradável. Nem sequer se aproximou para apresentar-se. -Muito frio e arrogante para seu próprio bem - reconheceu sua irmã - Me alegro de que esta noite tenha terminado de uma vez por todas. Jamais achei graça a saltar por um salão de baile rodeada de um sem-fim de pessoas para lhe destroçar as pernas ou para acabar sem assunto de conversa quando se está muitíssimo melhor em casa com um livro. -E eu me alegro de que as duas semanas por fim tenham acabado - acrescentou ela - senti falta das crianças da escola, de nossos sobrinhos, dos vizinhos do povoado e de nosso jardim. E de vocês duas - acrescentou. -Entretanto - replicou sua mãe - sempre alberguei o temor de que a vida te parecesse muito sem brilho, depois de ter levado uma existência muito mais deslumbrante. -A vida jamais perde seu brilho, mamãe - lhe assegurou com um sorriso ao mesmo tempo em que apoiava a cabeça nas almofadas do espaldar - E nunca foi deslumbrante. Fechou os olhos e de repente se encontrou de novo no lago enquanto o duque de Bewcastle inclinava a cabeça para beijá-la justo antes que a paixão se desatasse entre eles. Fazia um enorme esforço por convencer-se de que tinha sido um encontro de índole carnal e, por fim, irrelevante. Uma experiência que se devia desfrutar enquanto durasse mas que logo se descartava sem mais. Bem, e assim tinha sido! Abriu os olhos para escapar das imagens. "... resulta-me enormemente desagradável. " "Muito frio e arrogante para seu próprio bem. " Por que lhe tinham ardido esses comentários? Em realidade, estava de acordo com ambos. Mas lhe tinham ardido. Ainda o faziam. Embargava-a uma dor atroz, embora não entendia o motivo. Tinha estado em seu interior. Tinham compartilhado a experiência mais íntima que oferecia a vida. Mas só no plano físico. Entre eles não existia nenhum outro vínculo nem poderia existir jamais. Não possuía nenhuma qualidade que pudesse gostar ou admirar e, para ser justa, tampouco ela possuía nada que o duque de Bewcastle pudesse gostar, nem que pudesse admirar. De modo que teriam compartilhado essa intimidade sem ser íntimos. O coração lhe pesava no peito como se fosse uma parte de chumbo. Nunca voltaria a vê-lo. Graças a Deus! Mas nunca... Parecia tanto tempo...


Capítulo 10

Wulfric partiu para Hampshire, para Lindsey Hall. Durante uma semana inteira desfrutou a silenciosa e vasta solidão do lugar. Era seu lar. Seu lugar. Talvez pela primeira vez na vida se deu conta de que o amava. Embora em tempos o rechaçasse. Se tivesse podido fazer algo para trocar seu posto com Aidan quando eram meninos, para conseguir que ele fosse o herdeiro, o teria feito. Entretanto, quando se nascia o primogênito de um duque, evidentemente se nascia com um destino inamovível. Esse menino não tinha a menor liberdade de escolha. Igual ao que acontecia ao filho do limpador de lareiras, supôs. Jamais tinha sido dos que se desfrutavam em suas próprias desgraças. Que sentido tinha? Havia milhares de pessoas que dariam seu braço direito por uma mínima parte dos privilégios, riqueza e poder que ele dava por sentados. Perambulou de aposento em aposento por toda a mansão, mais que de costume, satisfeito com a certeza de que não haveria gente atrás de cada porta à espera de manter uma conversa. Passeou pelos extensos prados que rodeavam o edifício, tanto a cavalo como a pé, e agradeceu enormemente que não houvesse ninguém que pudesse sugerir um lanche campestre ou uma excursão em carruagem. Por estranho que fosse e embora valorizasse em grande medida sua solidão, evitou o único lugar da propriedade onde sempre ia quando queria relaxar em absoluta solidão. Estava muito inquieto para relaxar. Passou muitas horas com seu administrador, já que não o tinha visto desde as férias de Páscoa, momento no qual as sessões da Câmara dos Lordes se interrompiam, e o acompanhou em sua visita às extensas terras de trabalho e as granjas que rodeavam a mansão para comprovar que tudo funcionava perfeitamente de acordo com suas instruções. Recebeu na biblioteca a vários arrendatários, a trabalhadores e a outras pessoas que queriam vê-lo, costume que punha em prática duas vezes por semana sempre que estava em casa. Revisou os livros de contas e outros documentos legais. Leu todos os informes que lhe enviaram os administradores de suas outras propriedades e ditou as respostas adequadas a seu secretário. Escreveu a seus irmãos, coisa que fazia com regularidade, ao menos uma vez ao mês. Recebeu visitas de cortesia de alguns de seus vizinhos e as devolveu à maioria. O visconde de Ravensberg, sua esposa e seus filhos acabavam de retornar de uma viagem ao norte que os tinha levado até Leicestershíre. Tinham passado uma semana no Grandmaison com o Rannulf e Judith, de modo que tinham notícias frescas do casal. Começou a acreditar que o resto do verão seria tediosamente longo e planejou visitar algumas de suas outras propriedades. Leu muitíssimo. Ou ao menos se sentava na biblioteca durante longos períodos de tempo com um livro aberto em uma mão enquanto o folheava e pensava. Havia um bom número de mulheres a quem já conhecia e outras muitas desconhecidas que se tornariam loucas ante a ideia de converter-se em sua amante. Não era uma ideia presunçosa. Não se tinha muito abaixo das respostas às preces das


mulheres. Mas sim sabia que era um homem poderoso, influente e muito rico, e não lhe cabia a menor duvida de que muitas estavam a par de como tinha sido generoso com Rose. Se chegasse a escolher a uma para torná-la sua amante, certamente a situação o contentaria. Sua vida não demoraria para recuperar a normalidade. Sentia falta de Rose com uma intensidade vizinha à dor. Esforçou-se por não pensar na única mulher com a que já tinha tentado substituí-la. Tinha-o rejeitado. Assim como Marianne Bonner o rejeitou quando lhe ofereceu matrimônio. A senhora Derrick o tinha rechaçado ao acreditar que ia oferecer lhe o mesmo... e depois de haver-se deitado com ele. A rejeição em pequenas doses, supôs, era bom para a alma. Entretanto, sua alma parecia afetada, inclusive destroçada. Planejou visitar suas outras propriedades... mas se esqueceu de dar as ordens necessárias para que começassem os preparativos. Não era típico dele andar pelos cantos, sentir-se deprimido, dar muitas voltas às coisas. Sentir-se sozinho. Não pensava em Christine Derrick. Mas às vezes ou, a verdade fosse dita, a maior parte do tempo, era consciente de que esses risonhos e brilhantes olhos azuis, esses cachos escuros, essa pele dourada pelo sol e esse nariz salpicado de sardas penetravam em sua mente, formando imagens indesejadas que o deixavam com o coração na mão. Teria que visitar logo suas outras propriedades. A única coisa que precisava era algo que o mantivesse ocupado. Logo recuperaria a normalidade. Christine tinha a sensação de que tinha passado um ano, ou uma vida inteira, quando recordava os quinze dias passados em Schofield Park uma semana depois de que terminasse a festa campestre. Sua vida tinha recuperado o habitual curso prazenteiro e voltava a ser feliz. Bem, talvez "feliz" não fosse a palavra exata. Mas ao menos estava contente. Embora durante alguns anos tinha sido feliz com Oscar e com seu mundo, este tinha acabado lhe dando as costas e colocando-a na mais absoluta desdita. Ver de novo Hermione e Basil não tinha sido um bom gole. E estar uma vez mais rodeada de pessoas que pertenciam à alta sociedade tinha recordado como era fácil receber seu desdém, sua brincadeira e sua desaprovação. Embora isso não tinha sido o habitual durante seu matrimônio, e tampouco o tinha sido em Schofield Park. Não obstante, em Hyacinth Cottage e no vilarejo sempre estaria a salvo dessa possibilidade. Ali podia relaxar e ser ela mesma, e todo mundo parecia querê-la tal qual. Não tinha inimigos na vizinhança, só amigos. Entretanto, os anos de seu casamento e os anos que tinha passado entre a alta sociedade e a quinzena passada em Schofield Park tinham feito que se sentisse inquieta e insatisfeita com a vida em Hyacinth Cottage, coisa que antes não lhe acontecia. Tinha a sensação de estar apanhada entre dois mundos e de não encaixar em nenhum dos dois. E isso não tinha nem um pingo de graça. Porque foi sua a decisão de viver no povoado. Adorava a vida ali. Sempre havia algo que fazer. Gostava de dar aulas na escola, apesar de só o fazer três horas na semana. Tudo começou porque o professor se queixou um dia de como odiava as aulas de geografia, ao que ela comentou que era sua disciplina preferida de pequena, e assim chegaram a um acordo. Em relação aos doentes e aos


anciões, já estava acostumada a visitá-los de menina com sua mãe ou com a esposa do anterior vigário. Converteu-se em um hábito, e não em um mau. Continuava fazendo-o. Gostava dos anciões, e tinha muitas histórias, sorrisos e conversas para compartilhar com eles e com os doentes... além de dois ouvidos dispostos a escutar e duas mãos dispostas a ajudar. Em seu futuro mais imediato havia algumas visitas sociais que fazer e receber, alguns chás e outros tantos jantares para ir, e um baile na estalagem do povoado. Tinha amigas com quem compartilhava confidências e certos cavalheiros estariam encantados de cortejá-la se deixasse. Não queria fazê-lo, embora fosse uma lástima. Sempre tinha desejado um lar próprio e um marido e filhos a quem amar. Mas tinha perdido a seu marido inclusive antes de sua morte, para falar a verdade e jamais tinha tido filhos. E seus sonhos tinham mudado... ou talvez simplesmente tinham morrido. Tinha três sobrinhos no vicariato, e os filhos de Melanie em Schofield Park, embora não costumava visitá-los com muita frequência quando Melanie e Bertie estavam em casa. Adorava. Adorava-os. A maior decepção de seu casamento foi o fato de não ter concebido. Fez uma visita à Melanie e tiveram um longo bate-papo em que se felicitaram pelo êxito da festa campestre. Melanie insistiu em que todos os cavalheiros se apaixonaram por ela e em que o conde de Kitredge ficou desolado ao descobrir que se foi de Schofield Park ao terminar o baile, em vez de esperar à manhã seguinte. Em sua opinião, poderia ter sido condessa antes que acabasse o verão se tivesse querido. -Mas sei muito bem que não quis olhar a outro homem desde a morte do pobre Oscar - disse sua amiga com um suspiro. - Era um encanto, não é? E tão bonito... Mas, Christine, algum dia se esquecerá dele e se apaixonará por outra pessoa. Houve um momento quando achei que poderia ser o duque de Bewcastle. Ganhou a escandalosa aposta e também dançou a valsa com ele. Mas, por mais esplêndido que seja e por mais feliz que me fizesse tê-lo como convidado, confesso que eu não gostaria para minha melhor amiga. É certo que faz descer a temperatura de qualquer aposento em que entra, não lhe parece? De qualquer maneira, acredito que a olhava com certa fraqueza. Respondeu com uma gargalhada como se acabasse de fazer uma piada, e ao cabo de um momento Melanie começou a rir com ela. -Bom, talvez não - corrigiu Melanie - Duvido muito que tenha alguma debilidade ou sensibilidade humana. Pergunto-me se o príncipe do Gales se acovardará sob seu gélido olhar... O duque de Bewcastle era o único detalhe de sua vida, de sua vida passada, sobre o que se negava a pensar sequer. Porque pensar nele lhe era doloroso e tinha decidido evitar a dor. Ao longo dos dias posteriores a sua volta do Schofield Park encontrou muitas coisas com as quais se manter ocupada, coisas mais que suficientes para encher as horas e alimentar exuberante natureza. Era quase feliz. Ou, ao menos, admitia que estava contente... desde que censurasse seus pensamentos com supremo cuidado. Christine se sentia bastante acalorada e ruborizada depois de uma aula de geografia


um tanto particular. Tinha tirado os alunos da sala-de-aula, pois fazia bastante calor, e seu habitual jogo de voar em um tapete mágico ao país de volta os tinha levado por uma enérgica viagem através do jardim, todos agitando os braços para mantê-los no ar... ela inclusive. Logicamente, não podia ficar atrás quando o tapete começasse sua viagem. Tinham sobrevoado uma ampla franja do oceano Atlântico, onde viram dois veleiros e um enorme iceberg, até o canal de São Lorenzo no Canadá, até Montreal para ser mais precisos, onde tinham aterrissado e enrolado o tapete antes de embarcar rio acima com os extravagantes exploradores franceses em suas enormes canoas para comercializar com peles terra adentro. Tinham remado quase ao uníssono depois de praticar um pouco e se enfrentaram às corredeiras com ruidoso entusiasmo; tinham transportado as embarcações por terra quando as corredeiras eram muito perigosas, sustentando a imaginária canoa de barriga para baixo sobre as cabeças da metade dos meninos enquanto que a outra metade avançava a tropicões sob o peso da imaginária carga. Tinham metido uma alegre canção francesa para manter os ânimos e dar-se forças no caminho. Quando por fim se detiveram para descansar no enorme posto comercial de Forte William no lago Superior, de onde retomariam a viagem em sua aula seguinte, estavam todos exaustos. Caíram sobre o tapete mágico, que tinham transportado na canoa e se arrastaram ou se aproximaram aos tropicões até a escola com um coro de gemidos e grunhidos, enquanto agitavam os braços, riam e se queixavam por ter que retornar à sala-de-aula para a aula de aritmética. Observou-os com um sorriso até que estiveram a salvo no interior, momento no qual já podia retornar a casa para trocar de roupa e relaxar na quietude da sala de estar com um copo da limonada recém feita da senhora Skinner. Deu as costas à escola sem perder o sorriso. Nesse momento, percebeu que havia um homem apoiado na cerca. Um cavalheiro, se não se equivocava, protegia os olhos do sol com uma mão e tentou ver se o conhecia. -A senhora Thompson me disse que poderia encontrá-la aqui - disse o duque de Bewcastle. - Vim vê-la. Pelo amor de Deus! Por absurdo que parecesse, ridiculamente absurdo, de fato, seu primeiro pensamento foi que tinha as faces ruborizadas, o cabelo úmido e revolto sob o velho chapéu de palha, o vestido e os sapatos cheios de pó, e um aspecto muito desalinhado. Seu seguinte pensamento, igualmente estúpido, foi que devia ter observado sua tola aula... tola, sim, mas eficaz na hora de ensinar aos meninos e de ajudá-los a memorizar sem que se dessem conta de que o estavam fazendo. Seu terceiro pensamento foi uma enorme interrogação que parecia pender no ar sobre suas cabeças. Seus sentimentos eram farinha de outro saco. Tinha a sensação de que lhe tivesse caído a alma aos pés... ou de que a viagem no tapete mágico lhe tivesse revolto o estômago. -O que faz aqui? - perguntou-lhe. Era uma pergunta muito mal educada para um duque, mas quem pensaria nas boas maneiras em semelhante momento? O que estava fazendo ali? -Vim para falar com você - respondeu ele com a fria arrogância de um homem que se


achava com todo o direito do mundo a falar com qualquer um em qualquer momento que gostasse. -Muito bem. - Por lamentável que fosse, percebeu que o voo de volta sobre o Atlântico a tinha deixado também sem fôlego - Fale. -Talvez possamos fazê-lo a caminho de Hyacinth Cottage, se lhe parecer bem replicou ele ao mesmo tempo que se afastava da cerca. Já tinha estado em sua casa? Bom, acabava de dizer-lhe não? Tinha falado com sua mãe. Tinha caminhado pelo atalho do jardim até chegar a casa e tinha batido na porta. Não havia nem rastro de um criado que fizesse essas minúcias em seu nome. Saiu do jardim da escola e se colocou a seu lado. No caso de lhe ocorrer a ideia de lhe oferecer seu braço, entrelaçou as mãos com força às costas. Certamente parecia um verdadeiro espantalho. -Achei que partiu daqui há dez dias como o resto dos convidados. Sabia que o tinha feito. Tinha estado em casa da Melanie depois que acabou a festa. -Está certa - afirmou ele com arrogância - Parti a Lindsey Hal e retornei. -Por quê? - perguntou. Qualquer um diria que nem sequer sabia o significado da expressão "boas maneiras". -Precisava falar com você - respondeu. -Do que? - Começava a assimilar a magnitude de que o duque de Bewcastle estivesse no povoado, passeando pela rua a seu lado. -Houve consequências? - quis saber ele. Sentiu que lhe ruborizavam as faces. Evidentemente era impossível interpretar mal o que queria dizer. -Não, claro que não - respondeu - Como já lhe disse em seu momento, sou estéril. Este é o motivo pelo que retornou? Sempre se mostra tão solícito com todas as mulheres com quem... ? - Por desgraça, não lhe ocorreu um eufemismo adequado com o que terminar a frase. -Poderia ter enviado a meu secretário ou a outro criado se só tivesse querido me assegurar – assinalou - Vi que sua casa tem um jardim resguardado. Que tal lhe parece que conversemos nele? Ia pedir-la de novo, pensou sem dar crédito. Como se atrevia? Como se atrevia ? E como se atrevia a retornar dessa maneira para destroçar sua paz uma vez mais? Apesar de seu empenho de não pensar nele; suas noites tinham estado infestadas de sonhos nos quais ele participava, e nem sequer seus dias se livraram de lembranças indesejáveis que pareciam zombar de sua censura. Não gostava de voltar a vê-lo. Ser um duque não lhe dava direito a envenená-la. Sua presença não passou inadvertida. Fazia um dia muito agradável. A metade dos habitantes do povoado, como pouco, estavam nas portas de suas casas, sentados tranquilamente ou conversando em grupos. Até o último deles se virou para saudá-la com a mão ou lhe dizer algo. Até o último deles examinou ao duque dos pés à cabeça. Embora alguns não soubessem de quem se tratava, não demorariam para inteirar-se pela boca de quem o sabia. Seria a fofoca do dia... Não, da década! O duque de Bewcastle havia retornado e passeava pela rua em direção ao jardim do Hyacinth Cottage com Christine Derrick. Em um abrir e fechar de olhos chegaria aos


ouvidos de Melanie, e ao dia seguinte, ao raiar da alvorada ou o mais próximo à alvorada que fosse capaz de levantar-se e de arrumar-se com elaborado esmero a teria na porta de sua casa para lhe surrupiar toda a informação. Melanie acreditaria que tinha estado certa. Acreditaria que o duque de Bewcastle a olhava com debilidade. Entretanto, a verdade era que a desejava e que estava decidido a convertê-la em sua amante. O duque não voltou a falar enquanto caminhavam pela rua. Nem ela tampouco. Estava pensando que se fosse de verdade tão arrogante para não aceitar um não por resposta, ia ter que lhe dar uma bofetada. Jamais tinha esbofeteado um homem e detestava a ideia por considerá-la uma arma do aborrecimento feminino, dado que o homem em questão se tratava de um cavalheiro não poderia responder em consequência. Mas a mão lhe ardia pelo desejo de marcar essa excelsa face. Não estava encantada de vê-lo. Eleanor estava junto à janela da sala de estar, observando a cena por cima de seus óculos, mas desapareceu assim que a fulminou com o olhar. A senhora Skinner abriu a porta principal sem que ninguém chamasse, mas voltou a fechá-la quando também fulminou a ela. Era fácil imaginar o nervosismo e a intriga que deviam reinar em casa. Abriu a grade do jardim lateral, colocado em diagonal com respeito ao jardim principal, o qual transbordava de cor pelas inumeráveis flores, subiu os degraus de pedra e passou sob o arco emperrado pelo que se acessava ao jardim quadrado, cujas árvores altas o ocultavam tanto da casa como da rua e cujos canteiros floridos lhe outorgavam um aspecto colorido e um ambiente fragrante. Colocou-se no ponto detrás de um banco de madeira e deixou a mão sobre o espaldar. Olhou com expressão séria ao duque de Bewcastle. Seu traje, jaqueta cinza escuro, calças cinza claro e botas de montar debruadas de branco lhe conferiam um aspecto masculino. Muito poucos homens entravam nesse jardim. -Senhora Derrick - começou e se deteve para tirar o chapéu, que segurou em uma mão a seu lado. Seu cabelo escuro brilhava à luz do sol. Seu tom de voz era arrogante e brusco - Me pergunto se me concederia a honra de casar-se comigo. Deixou-a boquiaberta. Muito depois, quando recordou o momento, soube que não o olhou com expressão meramente surpreendida, mas com a boca totalmente aberta. -O que?! - perguntou. -Dei-me conta de que sou incapaz de deixar de pensar em você - confessou - Estive me perguntando por que lhe propus ser minha amante em lugar de minha esposa e não encontro uma resposta satisfatória. Não há lei alguma que me obrigue a me casar com uma mulher virgem nem com uma solteira. Não há lei alguma que me obrigue a me casar com uma mulher de minha mesma posição social. E se o fato de não ter tido filhos depois de um casamento de vários anos demonstra sua incapacidade para conceber, tampouco é um impedimento insuperável. Tenho três irmãos mais novos para me suceder, e um deles já tem um filho varão. Escolho-a como minha esposa. Rogo-lhe que me aceite. Olhou-o sem poder articular palavra durante um bom tempo. Agarrou-se ao espaldar do banco com ambas as mãos. Sua cabeça parecia desfrutar-se com os pensamentos mais ridículos nos momentos mais sérios. Esse momento não foi a exceção.


Poderia ser a duquesa de Bewcastle, pensou. Poderia levar arminho e uma tiara. Ou isso achava, porque nunca tinha investigado os privilégios de ser uma duquesa já que nunca tinha esperado que lhe oferecessem a posição. Entretanto, voltou para a crua realidade quando caiu na conta do que lhe havia dito exatamente. "...uma mulher virgem... de minha mesma posição social... não ter tido filhos... sua incapacidade para conceber. Escolho-a a você. " Apertou o espaldar com mais força à medida que a fúria se apoderava dela até um ponto quase incontido. -Sinto-me honrada, excelência - disse ao tempo que soprava pelo nariz - Mas não. Recuso sua proposta. O duque parecia paralisado, surpreso. Viu-o arquear as sobrancelhas. Supôs que o infernal monóculo apareceria em sua mão, coisa que a teria tirado do sério por completo, mas parecia que não o levava consigo nessa ocasião. -Ah! – exclamou - Suponho que a ofendi ao lhe propor algo distinto ao matrimônio. -Assim é - reconheceu. -E ao lhe permitir acreditar que, depois de deitarmos juntos, ia fazer-lhe a mesma proposta - prosseguiu ele. Franziu o cenho. Não tinha sido essa sua intenção? Tinha estado a ponto de lhe propor matrimônio nessa ocasião? Não achava. Um homem não propunha matrimônio a uma mulher que acabava de lhe dar grátis o que desejava dela. Mas por que tinha retornado para fazer exatamente isso? -Ofendeu-me - reiterou. O duque lhe lançou o que parecia um olhar gélido e desdenhoso. -E uma desculpa não basta para apaziguar seu orgulho ferido, senhora? – perguntou - Está decidida a recusar minha proposta de casamento porque não pode me perdoar por minha outra oferta? Peço-lhe desculpas. Não foi minha intenção ofendê-la. -Não - respondeu ao mesmo tempo em que rodeava o banco para sentar-se nele antes que as pernas lhe falhassem e caísse ao chão em uma humilhante postura da qual ele teria que resgatá-la uma vez mais - Não, suponho que não era sua intenção. É uma honra que ofereçam para alguém ser a amante do duque de Bewcastle. Seus olhos a atravessaram de tal forma que acreditou senti-los na nuca. -Já lhe pedi que me perdoe - lhe recordou. -Poderia fazer um enorme favor a outra – disse - Poderia aceitar o papel de sua esposa e deixar vago o posto de amante para outra. Estava sendo muito mais que mal educada. Estava sendo vulgar. E isso só estava começando. "...uma mulher virgem... de minha mesma posição social... não ter tido filhos... sua incapacidade para conceber. Escolho-a a você. " Esse olhar prateado se tornou ainda mais áspero se isso acaso era possível. -Acredito na fidelidade dentro do matrimônio, senhora Derrick - lhe assegurou - Se alguma vez me caso, minha esposa será a única mulher que ocupará minha cama enquanto os dois vivamos. Nesse momento agradeceu enormemente o fato de estar sentada. Sentia as pernas


como se fossem de gelatina. -Como você diz - respondeu - Mas essa mulher não serei eu. Seu guarda-roupa consistia em alguns vestidos remendados, descoloridos e passados de moda. Mal tinha dinheiro. Dependia quase por completo de sua mãe. Levava uma vida mais que insípida. Não restavam sonhos... e ainda assim aí estava, recusando a oportunidade de ser uma duquesa. Acaso tinha um bando de pássaros na cabeça? Viu-o fazer gesto de partir. Mas se deteve e a olhou por cima do ombro. - Não acredito que seja indiferente a minha pessoa - o escutou dizer - E contra a crença popular, um só ato não termina com a atração física. Suas possibilidades de levar uma vida plena neste lugar parecem muito escassas. A vida como minha duquesa lhe ofereceria muitíssimo mais. Rejeita-me somente para me castigar, senhora Derrick? Não se estará castigando você mesma no processo? Posso lhe oferecer todas as coisas que tenha sonhado e mais. O fato de que se sentisse tentada - e bem sabia Deus que o estava! - avivou as chamas de sua ira. -Seriamente? - perguntou com voz cortante - Um marido que tenha uma personalidade carinhosa e humana, que tenha senso de humor? Alguém que ame as pessoas e as crianças, que goste de desfrutar das diversões e das coisas absurdas? Alguém que não esteja obcecado consigo mesmo e com sua importância? Alguém que não seja um bloco de gelo? Alguém que tenha um coração? Alguém que seja meu companheiro, meu amigo e meu amante? Porque isso é o que sempre sonhei, excelência. Pode me oferecer isso tudo? Pode cumprir algum requisito? Pode cumprir embora só seja um desses requisitos? Esses olhos prateados a olharam fixamente durante tanto tempo que teve que jogar mão de todo seu autocontrole para não remexer-se no banco. -Alguém que tenha um coração... - repetiu ele em voz baixa - Não, talvez tenha razão, senhora Derrick. Talvez não tenha coração. E se não o tenho, isso quer dizer que careço de tudo aquilo com o que você sonha, não é verdade? Peço-lhe desculpas por lhe haver feito perder o tempo e por havê-la ofendido uma vez mais. E quando se virou nessa ocasião seguiu seu caminho... Deixou atrás o arco emperrado, os degraus de pedra e, depois de fechar a grade do jardim com um movimento preciso e silencioso, entrou na rua certamente em direção à estalagem, onde teria deixado sua carruagem. Duvidava muito que ficasse em um estabelecimento tão humilde. Olhou-o até que desapareceu de sua vista. Depois cravou o olhar em suas mãos, entrelaçadas com tanta força sobre o regaço que tinha os nódulos brancos. -Ai, Deus! - exclamou em voz alta - Filho da mãe! E em seguida explodiu em lágrimas e soluços que foi incapaz de controlar apesar de estar segura de que podiam escutá-la da sala de estar ou da rua. Chorou até que lhe congestionou o nariz, até que lhe doeram a garganta e o peito, e até que teve o rosto vermelho e descomposto. Chorou até que já não restaram lágrimas. Filho da mãe! Como o odiava! "Que tenha um coração. " "Não, talvez tenha razão, senhora Derrick. Talvez não tenha coração. "


Havia dito essas palavras com uma estranha expressão nos olhos. A que se referia? Que estranha expressão? Uma estranha expressão que lhe tinha partido o coração, a isso se referia. Acabava de lhe partir o coração. E o odiava com toda sua alma!


Capítulo 11

Ao Wulfric não surpreendeu muito que o convidassem à bodas da senhorita Audrey Magnus e sir Lewis Wiseman no fim de fevereiro. Os esponsais se celebrariam em Londres, na Igreja de Saint George em Hanover Square, e nessa época do ano nem toda a alta sociedade estaria na capital. A temporada social não tinha começo realmente até depois da Páscoa. Assim era compreensível que lady Mowbury e seu filho convidassem a qualquer personagem importante que estivesse na cidade. Além disso, ele era amigo de Mowbury e esse detalhe em si mesmo garantia um convite com indiferença das circunstâncias. Salvo pelos dez dias que tinha passado no Oxfordshire com Aidan, Eve e sua família no Natal, estava na cidade desde o outono, embora não tenha tido um motivo concreto para retornar antes de que a Câmara dos Lordes iniciasse as sessões. Tinha passado alguns meses visitando e inspecionando suas propriedades rurais, consultando com seus administradores, concedendo audiências e sendo tratado com atenção pelas famílias mais importantes de cada vizinhança. O lógico era que tivesse retornado aliviado a Lindsey Hall, onde se teria ficado até pouco antes da data de início da abertura do Parlamento. Entretanto, ao chegar se viu assaltado de novo pela ambivalência de sentimentos: por um lado amava o lugar e por outro sentia uma inquietação insuportável. Tinha-lhe sido alarmantemente vazio... uma ideia muito estranha dado que era justo essa qualidade da qual tinha saudades quando estava longe. Mas inclusive Morgan, a caçula da família, e sua preceptora saíram da casa desde há mais de dois anos. Sua irmã menor estava casada, tinha dois meninos, o segundo, também um varão, tinha nascido a princípios de fevereiro. Quando ele herdou o título, Morgan era um bebê de dois anos. Sempre tinha sido mais sua filha que sua irmã, embora não se deu conta desse fato até depois que partisse... ou, mais concretamente, até o dia de suas bodas. De modo que foi para a cidade, onde ao menos podia entreter-se com seus clubes e outras quantas diversões muito bem selecionadas. Além disso, precisava procurar uma nova amante. Embora não gostasse muito, era consciente de que devia satisfazer certas necessidades, e era muito escrupuloso para as satisfazer com uma puta. Suas preferências sexuais tendiam à regularidade e a monogamia. Não obstante, em meados de fevereiro ainda não tinha encontrado a ninguém para o posto embora uma noite convidou para jantar uma atriz muito solicitada depois de admirar sua interpretação no teatro e lhe fazer uma inesperada visita no camarim. Sua intenção era a de discutir os termos de um acordo com a mulher, quem por sua vez tinha deixado bem claro que estava disposta a abordar semelhante discussão e inclusive a consumação do acordo antes de concretizar os pormenores. Entretanto, acabou falando da interpretação e do teatro com ela e depois a acompanhou a sua casa e lhe pagou com acréscimo por seu tempo. No caso da formosa, elegante e muito discreta lady Falconbridge, que também tinha insinuado sua disponibilidade e cuja companhia tinha frequentado em diversos eventos sociais, continuava sem trazer à luz o assunto que ambos sabiam que podia vir à tona em


qualquer momento. Havia adiado o momento uma e outra vez... coisa insólita nele. O convite às bodas não o surpreendeu, mas titubeou antes de responder. A família de Mowbury incluía os Elrick e aos Renable, e era muito provável que também assistissem. Eram pessoas que conhecia desde há anos. Em circunstâncias normais não teria o menor reparo em encontrar-se com eles, mais que nada porque não tinha especial aversão por nenhum. Tinha passado quinze dias com eles em Schofield Park, onde também estiveram os noivos, junto com a mãe da noiva e seus irmãos. Entretanto, preferiria não ter que recordar o desafortunado abandono de seus costumes no que tinha incorrido durante a festa campestre. Tinha decidido esquecê-lo por completo, e achava que o tinha conseguido com êxito. Afinal, por que não ia fazê-lo? Todo esse assunto com a senhora Derrick tinha sido um arrebatamento de loucura, e se alegrava muitíssimo de ter escapado com sua vida familiar intacta. Mas não queria avisos. Não obstante, costumava ser educado e cumprir com seu dever em todas as situações. Redigiu uma breve nota aceitando o convite e ordenou a seu secretário que a fizesse chegar a lady Mowbury. Por muito carinho que professasse a Melanie e ao Héctor, ao Justin, ao Audrey e a lady Mowbury, Christine não teria aceito o convite para as bodas de Audrey em fevereiro se não tivesse acontecido algo extraordinário. Afinal, como ia aceitar? As bodas seriam em Londres. Sabia que a longa distância não era um grande impedimento. Logicamente, Melanie e Bertie assistiriam e sem dúvida aceitariam que viajasse com eles em sua carruagem. Era muito possível que também a convidassem a ficar com eles, embora lady Mowbury tinha acrescentado umas linhas na parte inferior de seu convite, lhe assegurando que estariam encantados de que ficasse em sua casa. Entretanto, como ia assistir se não tinha nada adequado para vestir? E o mais importante, como ia assistir se Hermione e Basil estariam convidados? Durante os meses transcorridos desde a festa campestre lhe tinha pesado muito a hostilidade, a malícia inclusive, que lhe tinham demonstrado. Sua amargura e seu ódio não tinham minguado em dois anos... quase três já. Nem tão pouco seu ressentimento ao ver-se obrigados a reconhecer o parentesco que os unia. Jamais voltaria a cruzar-se em seu caminho de forma voluntária. Não obstante, justo uma hora depois de escrever uma afetuosa carta em que declinava o convite de lady Mowbury, a qual deixou no suporte da lareira da sala de estar para que a levassem ao correio, aconteceu algo realmente extraordinário. Chegou uma carta de Basil e com ela uma remessa bancária por valor de uma enorme quantidade de dinheiro... De fato, para ela era uma pequena fortuna, já que seu trabalho como professora era sua única fonte de ganhos... uns ganhos que, além disso, não eram nada do outro mundo. Devia gastar o dinheiro em roupa nova e em outros objetos pessoais, explicava Basil na direta missiva que acompanhava à remessa bancária. Seu cunhado supunha que quereria assistir ao casamento de sua prima e, portanto, devia se vestir adequadamente. Sobre tudo porque, na qualidade de viúva de seu irmão, era sua responsabilidade. Hermione lhe tinha feito ver que os vestidos que tinha usado o verão anterior estavam


passadíssimos de moda. Não havia nenhuma expressão de afeto nem de perdão, nenhuma desculpa, nenhuma saudação para transmitir a sua família nem nenhuma palavra de Hermione. Não havia notícias sobre sua vida nem a de seus filhos. Não lhe perguntava que tal ia a vida... Só a breve nota explicando seus motivos e o que queria que fizesse com o dinheiro. Seu primeiro impulso foi devolver o dinheiro com uma nota muito mais direta e distante que a de Basil. Entretanto, Eleanor entrou em seu dormitório e a viu com a carta em uma mão e a remessa bancária no regaço. Ia em busca de linho de seda de uma cor que não tinha em sua mesa de costura. -Parece que viu um fantasma - disse depois de lhe pedir o fio. -Olhe isto. - Estendeu-lhe a carta e depois a remessa bancária. Eleanor leu a carta e olhou o cheque antes de arquear as sobrancelhas. - No verão passado em Schofield Park me trataram como se estivessem desejando libertar o universo de minha presença em caso de que houvesse um modo legal de fazê-lo - disse. -E suponho que por isso tem a intenção de devolver o dinheiro - aventurou sua irmã com todo o orgulho ferido que seja capaz de reunir. Foram muito amáveis com mamãe e comigo durante o baile que encerrou a festa, sentaram-se conosco durante o jantar e foram muito agradáveis, se não recordo mal. Não sabia. -Não posso aceitar seu dinheiro - afirmou. -Por que não? - replicou Eleanor - Afinal, é a viúva do único irmão do visconde de Elrick e necessita de roupa nova. Teimou em negar a mamãe a possibilidade de comprar roupa nova. Era certo. Oscar não lhe tinha deixado nada, mas ainda assim não achava que fosse correto depender de sua mãe, cujos ganhos pela propriedade de seu pai cobriam suas necessidades e as da Eleanor com muita dificuldade. -Há dinheiro de sobra para que as três renovemos nossos guarda-roupas do verão – disse - Mas não posso aceitá-lo, Eleanor. Nem sequer lhes sou simpática. -O dinheiro é para você - insistiu sua irmã ao mesmo tempo em que dava umas batidinhas à carta. - O visconde de Elrick o deixou bem claro em sua carta. E se não lhes cai bem, por que lhe enviaram isto? Me parece uma oferenda de paz. -Ainda me culpam pela morte de Oscar – assinalou - Basil o adorava, e como Hermione adora ao Basil, também adorava ao Oscar. -Mas por que culparam a você? - perguntou Eleanor, exasperada - Nunca o entendi, Christine. Saiu para caçar e você nem sequer foi com ele. Supõe-se que devia ter evitado que saísse? Encolheu os ombros. Tinha sido incapaz de contar a verdade sobre a morte de Oscar, e essa relutância a confiar em sua irmã preferida e em sua mãe sempre a tinha dado pena. - Acha que é isso? - Franziu o cenho - Uma oferenda de paz? - Por que senão o teria mandado? - respondeu Eleanor. Isso se perguntava ela, por quê? Talvez lamentavam algumas das coisas que lhe haviam dito, e que haviam dito dela, durante as duas semanas em Schofield Park e queriam lhe estender uma espécie de ramo de oliveira. Se lhes devolvia o dinheiro,


ofenderia-os e alongaria uma inimizade que nunca tinha querido. De certa maneira, isso era o que mereciam. Mas não era dada a guardar rancor. Não queria odiá-los mais tempo. E certamente não queria que eles continuassem odiando-a. Talvez Basil se desse conta de repente de que ela era o último vínculo que o unia a seu irmão. Engoliu em seco para desfazer o nó que lhe tinha formado na garganta. Ou talvez Hermione temia que os envergonhasse ao apresentar-se nas bodas vestida com farrapos. Talvez disso se tratasse a remessa bancária. Mas por que pensar sempre o pior de outros? Não seria prejudicial para si mesma adotar essa atitude frente à vida? Preferia pensar o melhor e equivocar-se que pensar o pior e equivocar-se. Suspirou. -Se pegar o dinheiro, também terei que ir ao casamento de Audrey – disse - Desde que Melanie aceite que viagem com eles. -Por favor, Christine! - Eleanor estalou a língua e revirou os olhos. - Sabe muito bem que, em questão de dias, lady Renable chegará em sua busca para convencê-la de que aceite o convite. Embora tenha decidido rechaçá-la, embora tivesse enviado já a negativa, acabaria indo de qualquer maneira. -Tenho tão pouca vontade? - perguntou com o cenho franzido. -Não, mas ela é a mulher mais teimosa que tive a desgraça de conhecer - respondeu sua irmã - além de a mais fria e da mais pretensiosa. - Soltou um risinho. - Embora não posso evitar que goste dela, sobre tudo por haver escolhido a você como sua amiga em lugar de mim. Tem fio de seda deste vestido? Se não, vou ter que ir à loja para comprar uma meada, não para de chover. E assim foi como decidiu ficar com o dinheiro e gastá-lo em si mesma... claro que isso não aconteceu até que tanto Eleanor como sua mãe se negassem com firmeza a aceitar um só penny dela. Também decidiu que devia assistir às bodas, já que lhe tinham mandado o dinheiro com o objetivo de que comprasse roupa adequada para tão magno evento. Isso sim, compraria-lhes presentes a sua mãe e a Eleanor, e também ao Hazel e aos meninos. Ai, o maravilhoso luxo de poder pensar em comprar presentes! Rasgou a carta em que declinava o convite de lady Mowbury e a substituiu com uma em que aceitava. E também esteve toda uma hora redigindo uma resposta adequada para Basil. Não tinha passado nenhuma hora desde que concluiu a correspondência quando escutou o inconfundível som dos cavalos e as rodas de uma carruagem que anunciava a chegada de Melanie, preparada para a batalha apesar da chuva. Embora não foi preciso liberá-la. Informou sua amiga que já tinha aceito o convite para o casamento e de que tinha pensado ir andando até o Schofield Park assim que desanuviasse para lhe pedir o favor de que a levassem a Londres com eles. -Teria ido a Schofield Park caminhando depois desta chuva, Christine? - perguntou Melanie com os binóculos no ar e a mão livre sobre o coração - Para nos pedir ao Bertie e a mim o favor de que a levássemos a Londres? Asseguro que se tivesse mostrado a menor reticência a nos acompanhar voluntariamente, teria ordenado ao mais forçudo de meus criados que a colocasse à força na carruagem no dia de nossa partida. De verdade


teria caminhado com todo este barro para nos pedir esse favor? Soltou um risinho e Eleanor escondeu a cabeça em seu livro. Parecia que ia a Londres, e que ia assistir ao casamento de Audrey em Saint George. Não sabia se deixar-se levar pela emoção ou pelos nervos, mas escolheu o primeiro. Afinal, ainda não tinha chegado a primavera e a temporada social não tinha começado. Certamente não haveria mais eventos sociais que as bodas, e lady Mowbury a tinha qualificado de "acontecimento familiar" em sua carta. Além disso, ia ter roupa nova e poderia comprá-la em Londres, na última moda. A perspectiva teria animado a qualquer um. Era estranho, pensou Wulfric ao sentar-se no banco da igreja e cravar o olhar em sir Lewis Wiseman - que esperava ao pé do altar a chegada da noiva com aspecto de que seu criado pessoal lhe tivesse apertado muito o nó da gravata - Era estranho que tivesse esperado que toda a família da senhorita Magnus assistisse às bodas e que inclusive tivesse vacilado na hora de aceitar o convite porque não queria recordar essas duas semanas em Schofield Park... e que, entretanto, não lhe tivesse passado nenhuma só vez pela cabeça que talvez Christine Derrick, membro da família graças a seu matrimônio, também estivesse presente. E ali estava. Quase não a tinha reconhecido ao passar junto ao banco que ocupava com os Elrick. Ia vestida na última moda com um vestido cinza e azul claro. Ao passar junto a ela a tinha visto levantar o olhar e por um espantoso momento, que se esfumou assim que agachou a cabeça depressa e ele afastou o olhar com a mesma rapidez, seus olhos se encontraram. Se houvesse sabido, não teria assistido ao enlace nem por sombra. Não gostava absolutamente de voltar a ver Christine Derrick no que restava de vida. A opinião que lhe merecia não era muito boa. E lhe envergonhava recordar que tinha percorrido o trajeto desde Hampshire a Gloucestershire para propor matrimônio a uma viúva, à filha de um professor rural que também exercia como professora, que carecia de boas maneiras durante a maior parte do tempo e que considerava engraçadas seus embaraçosos foras. Não poderia ter escolhido a uma mulher menos apropriada para ser sua duquesa. E para cúmulo, tinha-o recusado! Foi muitíssimo mais tarde quando reparou no estranho de seus respectivos comportamentos dessa manhã. Ele não tinha por costume afastar o olhar de outra pessoa pelo mero fato de que o estivessem olhando. E em Schofield Park, a senhora Derrick sempre o tinha desafiado com o olhar em lugar de lhe fazer acreditar que se submetia docilmente a sua silenciosa e arrogante ordem de que baixasse a vista em sua excelsa presença. A familiar irritação que sentia em sua presença retornou como se não se esquecera dela durante os meses transcorridos. Assistiria à missa, decidiu, e depois daria uma desculpa ao Mowbury para não ficar no banquete. Esperaria em seu banco até que todo mundo partisse e depois desapareceria sem que ninguém se desse conta.


Talvez se estivesse comportando como um covarde, nada mais longe de seu comportamento habitual, mas estaria fazendo um favor à senhora Derrick. Sem dúvida estava tão consternada de vê-lo como ele de ver a ela... porque para cúmulo sua presença na igreja a teria pego absolutamente de surpresa. "Um marido que tenha uma personalidade carinhosa e humana, e que tenha senso de humor. " Escutava sua voz ao pronunciar essas palavras como se as estivesse dizendo nesse mesmo momento, em Saint George, para que todo mundo a escutasse. Havia desdém em sua voz, trêmula pela paixão. Não era um homem carinhoso, compassivo, amável nem alegre. Disso o tinha acusado. Em parte o tinha rechaçado por esse motivo. Por sua incapacidade para demonstrar carinho. Compaixão. Senso de humor. Por que tinha gravado esse discursinho a fogo na mente? Assim como sua imagem enquanto o pronunciava: poeirenta e inclusive desalinhada por causa da incrível lição que tinha dado aos meninos do vilarejo, com o chapéu de palha que não conseguia ocultar seu cabelo suarento e revolto, com o rosto ruborizado e brilhante pelo suor e com os olhos resplandecentes. Que demônios tinha para que pensasse que devia convertê-la em sua esposa? Depois do acontecido junto ao lago, o lógico teria sido pensar que bastava lhe oferecer carta branca... e ela não deveria ter esperado nada mais. A reação que demonstrou ao interromper sua proposta o demonstrava. Então, por que o matrimônio? O que era o que o tinha contrariado durante semanas, inclusive meses, depois de sua inesperada recusa? Seu orgulho ferido? Por sorte, teria se recuperado por completo e nesse momento agradecia enormemente que o tivesse recusado. "Alguém que ame às pessoas e as crianças, que goste de desfrutar das diversões e das coisas absurdas. " Ele não era essa pessoa muitíssimo menos. Grande ideia... Que goste de desfrutar das diversões e das coisas absurdas! Entretanto, sim amava a certas pessoas... alguns meninos incluídos. "Alguém que não esteja obcecado consigo mesmo e com sua importância. Alguém que não seja um bloco de gelo. Alguém que tenha um coração. " Sua mente fugiu essa lembrança. Era incapaz de lutar com essa parte em concreto de sua recusa. Porque era a parte que mais lhe tinha doído... durante os dias que demorou para recuperar-se de tão absurda aflição. Por sorte, a senhorita Magnus chegou à igreja com poucos minutos de atraso e pôde concentrar-se por completo na cerimônia. Entendia perfeitamente o tímido orgulho que mostrou Mowbury ao levar a sua irmã ao altar. Tinham passado dois anos e meio desde as bodas de Morgan e mais de três desde a da Freyja. Em ambas as ocasiões lhe surpreendeu o enorme vazio que experimentou, sobre tudo com Morgan, a caçula da família, a quem todos adoravam. Inclusive ele... "Alguém que tenha um coração. "


Percebia a presença do Christine Derrick vários bancos atrás, como se sustentasse uma longa pluma nas mãos e lhe estivesse acariciando as costas com ela. Logo lhe tocaria o pescoço e ele se encolheria os ombros em um gesto defensivo. Cravou seu olhar sério nos noivos e no sacerdote, e se dispôs a prestar atenção a tudo o que estavam dizendo... ainda que não escutasse nenhuma só palavra. Por desgraça, esperou muito tempo uma vez que a cerimônia terminou. Quando por fim saiu da igreja, sir Lewis e a deslumbrante lady Wiseman já tinham partido na carruagem nupcial, mas Mowbury e sua mãe também o tinham feito, igual à maior parte da família, incluída a senhora Derrick. Seu desaparecimento supôs um alívio enorme, é obvio, mas como ia faltar ao banquete de bodas sem haver-se desculpado com o Mowbury ou com sua mãe? Seria de muito má educação, e ele nunca era mal educado se pudesse evitá-lo. Notou que uma mão o agarrava pelo ombro. -Bewcastle - saudou-o o conde de Kitredge - importa-lhe que vá com você? Assim os deixo minha carruagem aos mais jovens. -Será um prazer - respondeu. Nesse momento decidiu que ocuparia o lugar que lhe tinham atribuído para o banquete e que depois daria os parabéns aos recém casados, agradeceria o convite a lady Mowbury e partiria na primeira oportunidade. Nos dias vindouros limitaria suas saídas para a Câmara dos Lordes e ao White"s e evitaria abandonar Bedwyn House. Percebeu que semelhante decisão podia tachar-se de covardia, mas se convenceu de que só estava fazendo o que normalmente fazia. No final de contas, nessa época do ano em concreto havia poucos acontecimentos sociais que evitar. Quando chegou ao Magnus House, colocada em Berkeley Square, quase todos os convidados circulavam pelo salão de baile, convertido em buffet para o evento, conversando e rindo uns com outros sem ter ocupado ainda seus lugares à mesa, embora ele evitou unir-se a um grupo concreto. Lhe dava muito bem distanciar do resto em semelhantes ocasiões. Se não tivesse entrado na casa e no salão de baile acompanhado do Kitredge, teria localizado sua cadeira, a teria ocupado e teria observado de forma desapaixonada o que acontecia a seu redor. -Ah! - exclamou o conde ao tempo que lhe colocava uma mão no braço -, aí está a pessoa com quem queria falar, e você também a conhece, Bewcastle. Vamos. Percebeu muito tarde de que o arrastava para Christine Derrick, que estava com os Elrick, os Renable e Justin Magnus. Tirou o chapéu. Tinha um novo corte de cabelo. Os brilhantes e curtos cachos emolduravam esse formoso rosto de olhos enormes. O vestido cinza claro, adornado com franzidos e fitas de cor azul, assentava-lhe muito bem. A maioria das mulheres passaria desapercebida com essas cores tão claras, mas sua resplandecente personalidade os eclipsava. Estava rindo por algo que Magnus havia dito e parecia muito animada e incrivelmente encantadora. E então os viu aproximar-se... e sua alegria desapareceu, embora não perdeu o sorriso em nenhum momento. -Senhora Derrick - disse Kitredge depois de saudar outros com bom humor. Agarroulhe a mão, fez-lhe uma reverência que arrancou um rangido a seu espartilho e a levou aos


lábios - Está mais encantadora que de costume, se é que isso é possível. Não lhe parece, Bewcastle? Passou por cima a pergunta. Fez-lhes uma reverência a outros e também a ela. -Senhora - a saudou com formalidade. -Excelência. - Olhou-o diretamente nos olhos embora tinha esperado que seu olhar se cravasse em seu queixo ou na gravata. Uma tolice por sua parte. Saltava à vista que já se recuperara da surpresa de vê-lo na igreja e que não estava disposta a lhe dar a satisfação de mostrar-se envergonhada, em caso de que o estivesse. -Espero que sua mãe esteja bem - disse. -Está, obrigada por perguntar. - Seguiu sustentando seu olhar. -E suas irmãs? -Também. Obrigado. -Ah! Me alegro. - Os dedos de sua mão direita descobriram o cabo do monóculo e o aferraram. E nesse preciso momento a viu descer o olhar em direção de sua mão e ao monóculo, depois do que a devolveu a seus olhos. Entretanto, produziu-se uma mudança. Embora já não sorrisse, estava-rindo dele com o olhar. Tinha esquecido essa extraordinária expressão. -O salão de baile de Mowbury foi decorado esplendidamente para a ocasião - disse Kitredge - Senhora Derrick, quer dar um passeio pelo salão comigo para admirar os arranjos florais? Viu-a desviar o olhar para o Kitredge, e nesse momento sim sorriu... um sorriso deslumbrante. -Sim, obrigada. - Aceitou o braço que lhe estendia e se afastou com o conde. A senhora Derrick se sentou com sua família durante o banquete. O fez a certa distância e conversou com lady Hemmings, sentada a sua esquerda, e com a senhora Chesney, a sua direita. Assim que terminou o banquete, felicitou aos noivos e agradeceu o convite, depois do que retornou andando a casa depois de se despedir de sua carruagem, que o aguardava no lugar junto a muitas outras. Sentia-se irritado. E esse não era um sentimento que se permitisse com frequência, embora em caso de permitir-lhe costumava enfrentar à causa que o motivava do modo mais adequado. Entretanto, como se enfrentava à irritação que sentia consigo mesmo por culpa de uma mulher que se negava a abandonar seus pensamentos, apesar de haver-se acreditado livre de sua influência e de sua lembrança a essas alturas? Por culpa de uma mulher que, para cúmulo, sorria com muita alegria e falava com muito entusiasmo, inclusive às pessoas que estavam do outro lado da mesa. Simples e sinceramente, carecia de boas maneiras. Como se enfrentava a uma mulher que se empenhava em lhe sustentar o olhar cada vez que o descobria olhando-a, que o desconcertava ao arquear as sobrancelhas e que logo ria dele? Seguia preso a ela, pensou com surpresa ao sair da praça, enquanto alguns cocheiros que estavam apoiados na esquina quem, ao ver sua expressão séria, afastavam-se para lhe deixar passar e levavam a mão a fronte a modo de saudação.


Preso!? E como! Estava virtualmente cego por ela. Estava apaixonado, maldita fora sua imagem! Apesar do muito que lhe desgostava, do muito que o irritava e de que desaprovava algo que fizesse, estava apaixonado por ela até a medula, como um jovenzinho atordoado. Perguntou-se sombriamente o que ia fazer a respeito. Não tinha nenhum pingo de graça. Nem gostava o mínimo.


Capítulo 12

Christine tinha chegado a Londres uma semana antes das bodas de Audrey e se alojou na casa de Melanie e Bertie. Desfrutou muitíssimo desses dias, que incluíram compras em Oxford Street e inclusive na exclusiva Bond Street, pois necessitava de roupa nova e contava pela primeira vez em sua vida com dinheiro para gastar. Além disso, Melanie adorava ir às compras. Em um abrir e fechar de olhos, teve um novo guardaroupa com roupas para a primavera e o verão, escolhidas com especial atenção às cores, ao estilo e à comodidade... amém ao preço, claro estava. Afinal, queria que sobrasse dinheiro para poder comprar presentes para levar quando retornasse a casa. E não era esbanjadora por natureza. Desfrutou muito com a visita que fizeram a lady Mowbury, onde viram o Héctor e compartilharam com Audrey a emoção das próximas bodas. Justin a levou a dar um passeio em carruagem pelo parque. Dois dias antes das bodas foi com Melanie e Bertie a um jantar oferecido por Hermione e Basil, embora a perspectiva não lhe fosse emocionante o mínimo. Entretanto, seus cunhados se comportaram com consideração, mas não precisamente com afeto, e Basil a levou a um à parte durante a velada para lhe comunicar que tinha a intenção de lhe fazer chegar uma pensão trimestral porque era a viúva de Oscar e, portanto, era seu dever mantê-la. Tentou discutir, mas Basil insistiu, dizendo que Hermione e ele o tinham falado e que tinham chegado à conclusão de que essa teria sido a vontade de Oscar. Compreendeu que para ele era importante que aceitasse, de modo que deixou de protestar. Hermione se despediu beijando o ar junto a sua face e se deixou abraçar. Supôs que tinham acordado uma espécie de trégua. Depois dos acontecimentos do ano anterior, era muito mais do que tinha esperado. Os dois filhos do casal, sobrinhos de Oscar e portanto também seus, tinham recebido com grande entusiasmo, e não demorou para recordar que sempre tinha sido sua tia preferida. Decidiu que tinha feito bem ao ir a Londres para o acontecimento familiar que seria essas bodas. E continuou pensando ao chegar à igreja de Saint George, em Hanover Square, apesar de descobrir que tinham convidado a mais pessoas além da família. Ao menos ia vestida com o vestido mais elegante dos que se comprou e ia acompanhada por Hermione, Basil e seus filhos. Ainda pensava nisso quando ergueu a vista para ver quem era o cavalheiro cuja importância lhe tinha outorgado um lugar na igreja em frente dos viscondes de Elrick, primos da noiva, e descobriu que se tratava do duque de Bewcastle. Dizer que se sentiu aborrecida seria pouco. A verdade fosse dita, esteve a ponto de deixar-se levar pelo pânico, de levantar-se de um salto e de escapar correndo pelo corredor central da nave...ficando em ridículo diante de todos os pressentes. Em troca, afastou os olhos dele no mesmo momento quando seus olhares se encontraram e não escutou nenhuma só palavra da cerimônia apesar de que Audrey e Lewis se estavam casando diante de seu nariz.


Esteve pendente em todo momento da longa, orgulhosas e rígidas costas do duque de Bewcastle, tão elegantemente vestido. As lembranças da horrível quinzena passada em Schofield Park retornaram em turba, ao igual ao fizeram os da última noite junto ao lago. E os de sua volta, dez dias mais tarde, quando foi procurar a Hyacinth Cottage. Não lhe tinha passado nem remotamente pela cabeça que pudessem convidá-lo às bodas de Audrey. Porque tinha suposto que seria um acontecimento íntimo e familiar. Jamais se conhecesse teria se aproximado a menos de um milhão de quilômetros de Londres. Tão pouca atenção prestou ao esplêndido salão de baile onde se celebrou a recepção posterior e o suculento banquete que o mesmo poderia ter sido em um estábulo vazio comendo palha. Não obstante, sabia que tinha sorrido com muita alegria ao conde de Kitredge e que sua conversa tinha sido muito efervescente. Também sabia que tinha recuperado certo aprumo durante o banquete e que não se intimidou e tinha baixado a vista cada vez que seu olhar e o do duque se encontravam. De qualquer forma, tinha sido um dos dias mais desconfortáveis de sua vida. Sentiu um enorme alívio quando o viu partir cedo. E durante o resto do dia se sentiu mortalmente deprimida embora estivesse conversando, rindo e se mexendo de alegria até que retornou a casa do Melanie já entrada a noite e conseguiu refugiar-se na solidão de seu dormitório. Achava que tinha esquecido por completo ao duque de Bewcastle nesses seis meses que tinham passado desde a última vez que o viu. Daí que a reação que tinha experimentado ao vê-lo a tivesse perturbado tanto. Como lhe tinha ocorrido pensar que poderia deitar-se com ele na última noite da festa campestre e esquecê-lo logo sem mais? Claro que, teria reagido de forma menos intensa se não tivesse acontecido nada entre eles? Ou se não houvesse voltado dez dias depois para lhe propor matrimônio? Era impossível sabê-lo. Jamais tinha entendido a atração que sentia por um homem que não era atraente absolutamente. Bonito, sim. Mas não atraente... ao menos para ela. De qualquer forma, tanto fazia. Alguns dias depois das bodas voltaria para casa e teria que fazer o esforço de esquecê-lo outra vez. Se suas emoções se viram envolvidas mais do que tinha suposto a princípio, só ela tinha a culpa. Ninguém a tinha obrigado a caminhar com ele pelo passeio dos laburnos. Sua tinha sido a ocorrência de entrar no labirinto. E ninguém a tinha obrigado a acompanhá-lo ao lago. E depois Melanie mudou de ideia. Sobre a volta, claro, plano inicial tinha sido o de ir a Londres para as bodas e retornar logo a Schofield Park até depois das festas de Páscoa, data em que começava a temporada social com sua interminável sucessão de entretenimentos. Evidentemente, ela não os acompanharia quando voltassem para a temporada. -Mas, Christine - disse Melanie durante o café na manhã posterior à bodas - o caso é que há muito mais famílias na cidade do que o normal por estas datas e todas as manhãs nos chegam um bom número de convites a eventos que seria uma lástima perder-se. É normal sentir-se na obrigação de participar a tantos como for possível, porque a princípios do ano não haverá grandes multidões em nenhum lugar. E seria uma lástima ter vindo à cidade e retornar sem nos haver divertido um pouco. Parece-me que seria injusto privar


de seus clubes ao pobre Bertie tão rápido. Bertie, que estava tomando o café da manhã com elas, limitou-se a cortar o suculento bife que tinha diante com um grunhido. Tinha aperfeiçoado até tal ponto o som que resultava apropriado para algo que Melanie lhe perguntasse ou sugerisse sem necessidade de escutá-la, evitando assim ter que prestar atenção a tudo o que sua esposa lhe dizia. -Além disso tem toda sua roupa nova - prosseguiu Melanie - e lhe assenta tão bem que parece uma mocinha com a metade de sua idade. Tem que estreá-la toda, e para isso terá que sair. Mamãe e Justin se sentirão muito decepcionados se partimos tão logo, assim como Héctor, meu pobre, desde que tenha percebido nossa presença. Além de tudo isso, recorda que o conde de Kitredge está enamorado de você e não vai demorar muito em declarar-se. Embora saiba que não lhe interessa um marido trinta anos mais velho que você, e roliço apesar do espartilho, será divertido vê-lo cortejá-la; e não lhe será nada mal que a alta sociedade o presencie. Ao menos a parte da alta sociedade que está na cidade. Como sempre, tinha aberto a boca várias vezes para falar, mas era impossível intercalar uma só palavra quando Melanie se lançava a um de seus fervorosos monólogos; sobre tudo quando pressentia que a resposta podia ser uma negativa. -Ficaremos uma semana mais - prosseguiu ao mesmo tempo em que soltava a xícara de café e lhe cobria a mão que ela tinha apoiada sobre a mesa - Estaremos ocupadas desde meio-dia até a madrugada, e passaremos isso em grande estilo. Poderei desfrutar de toda uma semana de sua companhia na cidade, ou melhor uma quinzena se contarmos os dias que já levamos aqui. Será divertidíssimo. O que diz? Me diga que vai ficar. Diga que sim. Não era o momento de contrariá-la, decidiu com certo abatimento. Como ia dizer lhe que não? Tinha viajado a Londres na carruagem dos Renable, estava-se alojando em sua residência e estava comendo em sua mesa. Como ia contrariá-los e exigir que voltassem para o campo? Ocorreu-lhe que podia retornar na carruagem do correio, mas sabia que se chegasse sequer a sugerir a ideia, Melanie teria um desmaio... e se sentiria muito ofendida. Até o Bertie se sentiria obrigado a fazer algum comentário. Mas uma semana completa? Acotovelando-se outra vez com a alta sociedade? A idéia era espantosa. Claro que só era uma semana. Sete dias. E em Schofield Park todo mundo tinha coincidido ao afirmar que o duque de Bewcastle não assistia a muitos acontecimentos sociais. Não tinha assegurado lady Sarah Buchan que não o tinha visto em toda a primavera durante sua apresentação em sociedade e isso porque devia ter ido a qualquer evento onde a alta sociedade se reunisse toda? Além disso, ela mesma não o tinha visto nenhuma só vez durante seus sete anos de casamento. -Se quer ficar, Melanie - respondeu - eu também devo fazê-lo. Melanie lhe deu um tapa no braço antes de pegar a xícara de novo. - Grande resposta – replicou - Aqui não há obrigações que valham. Se preferir voltar para casa, privaremos ao Bertie de seus clubes e partiremos. Mas perderemos a festa de lady Gosselin que se celebrará depois de amanhã de noite. É muito boa amiga minha e se zangará muito se for para casa em lugar de esperar alguns dias para fazer ato de presença. E perderemos...


-Melanie - interrompeu-a, inclinando-se sobre a mesa para aproximar-se dela estarei encantada de aceitar sua hospitalidade outra semana mais. -Sabia que aceitaria! -exclamou sua amiga com um sorriso radiante ao mesmo tempo que levava as mãos ao peito, encantada - Bertie, meu amor, poderá ir a seus clubes e ao Tattersall"S. Poderá jogar cartas na festa de lady Gosselin, onde as apostas são tão altas como você gosta. Bertie, que tinha dado conta da metade de seu café da manhã, grunhiu. E assim foi como se encontrou apanhada, pensou com lúgubre resignação, não só em Londres, mas também na obrigação de ir a qualquer acontecimento social que Melanie escolhesse. E logo descobriu que o número dos ditos acontecimentos era impressionante apesar de que o começo da temporada social ainda ficava longe. Havia chás aos quais participar, um concerto privado e um jantar; e, é obvio, a noite de lady Gosselin. Christine colocou um de seus vestidos novos para a noite. Era de veludo e bordado azul escuro e gostava sobre tudo porque tinha um desenho vaporoso e elegante sem cair no exagero. Em sua opinião, adequava-se à perfeição tanto a seu físico como a sua idade. Aceitou pôr um colar de pérolas que Melanie lhe emprestou, porque sua amiga insistiu muitíssimo, mas salvo pelas luvas brancas longas e um leque de marfim que Hermione lhe tinha presenteado anos antes com motivo de um aniversário, não levava nenhum complemento mais. Sorriu alegremente quando entrou no salão de lady Gosselin, um dos aposentos abertos para o uso dos convidados. E, como não podia ser de outra maneira, a primeira pessoa que viu foi o duque de Bewcastle, elegante, sombrio e soberbo, do outro lado do salão, conversando com uma dama morena muito bonita que estava sentada e bebia uma taça de vinho. Lady Falconbridge, a viúva de um marquês, recordou. Se pudesse partir de forma dissimulada e retornar à residência dos Renable, ou a Hyacinth Cottage melhor, o teria feito de boa vontade. Mas Melanie a tinha presa pelo braço e não restava mais remédio que seguir adiante. Mãe do amor formoso! Pensou ao perceber logo o elegante penteado de lady Falconbridge e das sofisticadas plumas que o coroavam. Voltou a sentir-se como uma prima recém chegada do campo. Talvez houvesse no salão mais de uma dúzia de pessoas que Melanie conhecia. Ou na adjacente. Mas sua amiga teve que sorrir de orelha a orelha ao perceber a presença de uma pessoa em concreto. Ergueu o queixo e os binóculos e a arrastou até o outro lado do salão de tal forma que Eleanor se teria posto a rir às gargalhadas se houvesse presenciado. Bertie já tinha desaparecido, provavelmente em direção à sala de jogos. -Bewcastle! - exclamou Melanie ao mesmo tempo que dava um toquezinho ao duque no braço com os binóculos. - Não é frequente vê-lo neste tipo de eventos. O duque se virou com as sobrancelhas arqueadas e esses olhos prateados se toparam com os seus antes de cravar-se em Melanie. Viu-o fazer uma rígida saudação com a cabeça. -Lady Renable – disse - Senhora Derrick. Tinha esquecido quão gélidos podiam chegar a ser esses olhos e sua capacidade para atravessar o crânio da pessoa a que olhavam.


- Excelência - murmurou ela. Conforme percebeu, não se dignou a justificar ante Melanie sua presença na festa. Que necessidade tinha de fazê-lo? Seus dedos roçaram o cabo do monóculo enquanto lady Falconbridge começava a demonstrar sua impaciência golpeando o chão com a ponta de um pé. - Ficamos uma semana mais - anunciou Melanie - porque a cidade está cheia de boa companhia apesar da data. Além disso, nunca devo perder as festas da Lilian. Sua excelência voltou a inclinar a cabeça. -Melanie - disse ela - acabo de ver Justin na sala contígua. Vamos? Os excelsos olhos do duque se cravaram nela um instante e o monóculo foi elevado até deter-se frente ao excelso peito. Desafiou-o em silêncio a que o levasse ao olho. -Nesse caso, não as entretenho mais - escutou-o replicar antes de virar-se em direção a lady Falconbridge. A sala contígua era a sala de música e alguém estava tocando o piano. Lady Sarah Buchan, conforme comprovou. Sorriu alegremente para Justin, que se aproximou dela enquanto Melanie seguia caminhando em direção a um grupo de damas que a acolheram em seu círculo com os braços abertos. -Vi-as render homenagem a Bewcastle - disse um sorridente Justin. -Se tivesse suspeitado sequer que poderia ter vindo – assegurou - jamais teria vindo. Sua réplica fez com que Justin estalasse a língua. -É um pouco estranho que tenha reações dessa forma tão radical - disse - quando o ano passado insistia em repetir que seu comportamento tinha sido irrepreensível e cavalheiresco, não lhe parece? Entretanto, este ano não tem nada que temer por sua parte. Está perseguindo com esforço a lady Falconbridge, e como a dama demonstra o mesmo afinco em persegui-lo, é de opinião generalizada que não passarão muitos dias antes de que cheguem a um acordo discreto e satisfatório para ambas as partes. Acredito que nos clubes estão correndo apostas para ver quem acerta o número exato de dias. - Meu amigo - disse com um deslumbrante sorriso - sempre está disposto a dar de presente aos ouvidos de uma dama com aquilo que não deveria escutar. -E com o que não queria escutar de nenhuma maneira. -Mas sei que você não é de não me toques, Chris. - pôs-se a rir e a conduziu até o piano. Entretanto, não lhe permitiram relaxar muito tempo. O conde de Kitredge se aproximou deles ao cabo de um momento e, depois de honrar a interpretação musical de sua filha com um aplauso e perguntar a ela se tinha visto o famoso Rembrandt que se exibia no salão contíguo à sala de refrescos, pergunta que respondeu com uma negativa, ofereceu-lhe o braço e lhe assegurou que estaria encantado de mostrar-lhe. Não havia ninguém no salão, um lugar mal iluminado e que possivelmente nem sequer estivesse aberto ao público durante a festa. Depois de admirar o quadro em altares da cortesia durante cinco minutos, fez gesto de retornar com os convidados, mas o conde a deteve agarrando-a com firmeza pelo braço, depois do que a conduziu até um banco colocado no extremo mais afastado do salão. Uma vez que esteve sentada, ele se colocou diante, com as mãos às costas. Suspeitava que era o espartilho o que lhe impedia de tomar assento a seu lado, coisa que agradeceu em silêncio.


-Senhora Derrick - disse depois de pigarrear - no verão passado deve ter estado a par da profunda admiração que lhe professo. -Sinto-me muito honrada, milord - replicou, repentinamente alarmada - Vamos... ? -E este ano - a interrompeu - sinto-me obrigado a lhe expor abertamente o ardor dos sentimentos que albergo por você. Era uma coquete? Perguntou-se. Era? Oscar tinha chegado a essa conclusão, e tanto Basil como Hermione tinham acabado por acreditá-lo também. Mas se o era, não o fazia de forma consciente. Jamais havia dito ou feito nada que inspirasse os sentimentos do conde até conformar tal ardor; nem sequer nada que justificasse um leve afeto. Nunca tinha feito nada para inspirar a ninguém. Salvo no caso de Oscar, fazia já quase dez anos. -Milord - disse de novo - por mais adulada que me sinto, devo... Não obstante, as mãos do conde lhe agarraram uma das suas com tal força que um de seus anéis lhe cravou de forma dolorosa no mindinho. -Senhora - replicou ele - rogo-lhe que não me atormente mais. O mundo dirá que sou muito velho para você, mas meus filhos são maiores e sou livre para seguir de novo os ditados do coração. E meu coração, senhora, impulsiona-me a segui-la. Adula-me supor que... -Milord! - interrompeu-o ao mesmo tempo que tentava escapar de suas mãos em vão, já que a segurava com muita força. -... alberga você afeto por minha pessoa – prosseguiu - a qual ponho a seus pés junto com meu título e minha fortuna. - Milord – repetiu - Estamos em um lugar público. Por favor, me solte... - Me diga que me fará o mais feliz de... - Milord! - exclamou com firmeza, já que o constrangimento começava a transformarse em aborrecimento - Sua insistência em que o escute me é muito grosseira e inclusive ofensiva. Eu... -... os homens - concluiu. - Rogo que me permita fazer de você a mais feliz das... -Pergunto-me... - interrompeu-o uma voz arrogante e bastante lânguida sem dirigir-se a ninguém em particular - se neste lugar a luz do dia fará mais justiça à tela que a das velas. Os Rembrandt são famosos por seus tons escuros e terá que escolher com tato sua colocação. O que opina, Kitredge? De modo que o duque de Bewcastle não estava falando sozinho, verdade? Afastou a mão das do conde e alisou as saias por cima dos joelhos. Estava tão envergonhada que teria morrido com supremo gosto nesse instante. -Nunca gostei de seu estilo - respondeu o conde, que a olhou com tristeza e talvez com certo arrependimento antes de virar-se em direção ao duque. - Prefiro um Turner ou um Gainsborough. -Certamente. - O duque levou o monóculo ao olho e estava observando a tela de uma distância de meio metro - Não obstante, eu gostaria de ver esta tela com melhor iluminação. - Baixou o monóculo e se virou para olhá-la - Senhora, este salão é um entorno muito tranquilo onde sentar-se quando o resto dos convidados está congregado nas salas restantes. Quer que a acompanhe à sala dos refrescos? -Estava a ponto de... - interveio o conde de Kitredge. -Sim! - respondeu ela ao mesmo tempo que ficava em pé de um salto - Obrigada,


excelência. O duque correspondeu a suas palavras com uma reverência formal e lhe ofereceu o braço. Quando sua mão esteve por fim a salvo no dito braço, virou a cabeça para o conde com um sorriso. -Obrigada, milord – disse - por me mostrar o Rembrandt. Certamente é impressionante. Ao conde de Kitredge não teve mais remédio que assentir com a cabeça e permitir que partisse. Embora, em realidade, acabasse de escolher entre dois maus, pensou. Claro que não saberia dizer qual dos dois homens representava o mal menor... De modo que aí estava, agarrada ao braço do duque de Bewcastle e sentindo-se como se acabasse de agarrar-se a um prego ardendo. -Deu-me a impressão de que necessitava que alguém a resgatasse, senhora Derrick - disse o duque - me perdoe se tiver interpretado mal a situação. -Suponho que eu mesma me teria resgatado cedo ou tarde – replicou - Mas foi a primeira vez que me alegrei que vê-lo aparecer. -Sinto-me adulado - escutou-o dizer. O comentário lhe arrancou uma gargalhada. -Claro que em seu caso não houve ninguém que me resgatasse, excelência - disse não é certo? -Espero que se esteja referindo à cena do labirinto - disse olhando a de esguelha - ou a do jardim da casa de sua mãe. Para sua mortificação, notou como se ruborizava ao recordar a outra cena que o duque deixou no tinteiro e a que também podia haver-se referido. -Exatamente a essas – assegurou - Às duas. -E em ambas as ocasiões conseguiu me convencer de que minhas propostas não lhe interessavam - acrescentou -Quer comer algo? Tinham chegado à sala de refrescos, onde havia disposta uma mesa alongada com uma ampla seleção de manjar que os criados se encarregavam de servir a pedido dos convidados. ao redor da sala havia cadeiras e mesas para que aqueles que queriam comer tomassem assento, embora quase todos levassem os pratos consigo à sala de música ou ao salão. -Não tenho fome - respondeu. -Nesse caso, o que quer beber? - perguntou-lhe o duque. Recusar um segundo convite teria sido uma grosseria. -Uma taça de vinho, por acaso - respondeu. Viu-o afastar-se em busca do vinho para retornar com sua taça e com um copo de alguma outra bebida para ele. Apontou uma das mesas, uma que estava vazia em um canto. -Sentamo-nos? - perguntou-lhe - Ou está planejando um modo de escapar também de mim? Se for assim, pode partir com sua família quando o desejar. Não tentarei retê-la contra sua vontade. Não obstante, aceitou o convite e sentou-se. -Se tivesse sabido que você assistira às bodas - disse, olhando-o diretamente nos


olhos e resistindo a tentação de cravar o olhar na taça - não teria vindo a Londres. -Seriamente? – replicou - O mundo não é o bastante grande para nós dois, senhora Derrick? -Pergunto-me isso às vezes, sim - respondeu - E suponho que você tampouco terá muito boa opinião de mim. Não é habitual que uma vulgar plebeia rechace em duas ocasiões duas ofertas igualmente aduladoras por parte de um duque. -Ao que parece - respondeu o duque - supõe que penso em você... O terrível desconforto que a embargava desapareceu nesse momento e pôs-se a rir ao mesmo tempo que se inclinava para ele. - Eu adoro quando você se deixa levar pelo rancor - lhe disse - Embora seja possível que o esteja insultando ao acusá-lo por essa falta. Teria sido mais educado pontuar o de "desforra".- Juro que foi uma forma magnífica de me pôr em meu lugar. O duque de Bewcastle a olhou com arrogância. -E eu adoro quando você se deixa levar pela risada, senhora Derrick – replicou embora só sorrisse com os olhos. Isso a emudeceu. Reclinou-se na cadeira com a sensação de que um raio acabava de fulminá-la, e isso porque nem sequer estavam se tocando. Não lhe ocorreu nada que dizer e o duque não fez o menor esforço para romper o silêncio. -Está me dizendo que sou uma coquete? - perguntou. -Coquete... - Viu-o soltar o copo com deliberada lentidão para acomodar-se na cadeira enquanto a olhava com esses penetrantes olhos prateados. - Essa palavra parece aplicar-se com tediosa frequência a sua pessoa, senhora Derrick... Em regra geral em uma frase negativa. Eu prefiro não usá-la absolutamente. -Ah, obrigada! - exclamou e o silêncio voltou a instalar-se entre eles, embora o duque não desviasse o olhar de seu rosto e ela não se atrevesse a erguer a taça por temor a que lhe tremesse a mão. Isso seria muito embaraçoso. -Não precisa paquerar - escutou-o dizer - Possui um extraordinário atrativo que não necessita de artimanhas. -Eu? - levou uma mão ao peito e o olhou atônita - Me olhou bem, excelência? Careço da beleza e da elegância de qualquer outra dama aqui presente. Inclusive com meu vestido novo sou muito consciente de que pareço, de que sou, a prima da aldeia. -Mas eu não disse que seja formosa nem elegante - particularizou ele - Disse que é atraente. Extraordinariamente atraente, para ser mais exato. Seu espelho não lhe revelará o dito atributo porque é uma qualidade muito mais evidente quando você está animada. Para um homem é difícil não voltar a olhá-la. Uma e outra vez. Dos lábios de qualquer outro homem, essas palavras teriam se mostrado ardentes. O duque de Bewcastle as pronunciou como se tal coisa, como se estivessem falando... do Rembrandt exposto no outro salão. De repente, ficou consciente de que se deitara com ele em uma ocasião. E lhe pareceu impossível de acreditar, da mesma maneira que não podia acreditar o que acabava de dizer. Porque ninguém esperaria que essas palavras saíssem da boca do duque de Bewcastle. Livrou-se de fazer algum comentário porque alguém se aproximou da mesa que ocupavam. Quando ergueu o olhar viu que se tratava do Anthony Culver, que a olhou com um


sorriso de orelha a orelha. -Bewcastle? – disse - Senhora Derrick!? Continua na cidade! Achei que houvesse retornado a Gloucestershire logo depois das bodas de Wiseman. Ronald e eu estivemos falando de você ontem, recordando sua simpatia e como se converteu na alma da festa em Schofield Park o verão passado. Venha vê-lo; está na sala de música. Além disso, apresentarei a outros amigos. Estarão encantados de conhecê-la. Respondeu a essas palavras lhe oferecendo a mão e um alegre sorriso. E percebeu que o duque de Bewcastle tinha o monóculo na mão... -Peço-lhe desculpas, Bewcastle - acrescentou Anthony Culver sem perder o sorriso Me permite que a roube? Interrompi algo? -Não sou dono do tempo da senhora Derrick - respondeu o aludido. -Sua excelência teve a amabilidade de me trazer uma taça de vinho - assinalou ela ao mesmo tempo que ficava em pé - Mas já a tomei, vê-o? Será um prazer saudar seu irmão e conhecer seus amigos. - antes de afastar-se pelo braço do cavalheiro, virou-se para despedir do duque com um sorriso - Obrigada, excelência - disse. Em realidade, sentia-se chateada a mais não poder. O duque de Bewcastle a considerava "extraordinariamente atraente"! Negou-se a ser sua amante. Negou-se a ser sua esposa. Entretanto, ele a considerava "extraordinariamente atraente". Se desprezou por sentir-se adulada. Por que sentir-se assim depois das coisas que lhe havia dito no ano anterior quando lhe pediu em casamento? Quando a considerava inferior em todos os sentidos. Quando achava que lhe estava fazendo um favor enorme. Possivelmente não voltaria a vê-lo depois dessa noite. Como ia esquecê-lo... de novo? No ano anterior lhe foi muito difícil fazê-lo. A verdade fora dita e para ser sincera consigo mesma -porque no que referente ao duque de Bewcastle nunca tinha sido sincera consigo mesma, não o tinha conseguido. Não possuía nenhuma qualidade que gostasse ou que admirasse sequer... salvo sua atitude. Embora reconhecesse que não era só seu físico que lhe tinha roubado a tranquilidade mental durante os seis meses passados. Estava terrivelmente apaixonada por ele. E a palavra "terrivelmente" era crucial. Embora seria muito mais acertado dizer "ignominiosamente".


Capítulo 13

Wulfric acabava de retornar de Pickford House onde se alojava Morgan, a caçula dos Bedwyn, com seu marido, o conde de Rosthorn. Tinham chegado a Londres com seus dois filhos e esperavam que esse ano o ar da capital não afetasse tanto ao primogênito e que o menor nem se inteirasse da mudança. Jacques, a quem foram procurar no ala infantil para que saudasse seu tio, olhou-o muito sério e guardou as distâncias até que Morgan lhe pôs nos braços um sonolento Jules. Nesse momento Jacques se aproximou para examinar as bordas de suas botas de montar e sua confiança aumentou até o ponto de atrever-se a lhe dar uns tapinhas no joelho. - Tomara pudesse ver-se agora mesmo, Wulf - disse Morgan entre gargalhadas. O temor de que lhe caísse o bebê e o de assustar ao Jacques se fizesse algo o mantiveram imóvel na poltrona. Era muito consciente de que se tratava de seus sobrinhos, dos filhos de sua querida Morgan a quem a maternidade tinha outorgado um halo de maturidade que aumentava a beleza juvenil e graciosa que possuía. Nem sequer tinha completado os vinte e um! -Tomara pudesse vê-lo a alta sociedade agora mesmo - acrescentou Gervase com um tom zombador - Mas temo que não acreditariam nem ainda vendo-o com seus próprios olhos. Tinha ido convidá-los para passar as férias de Páscoa em Lindsey Hall. Freyja e Joshua, que também acabavam de chegar à cidade, já tinham aceito o convite. Também havia convidado por escrito ao Aidan, ao Rannulf e Alleyne. A última vez que coincidiram todos em um mesmo lugar foi para as bodas do Alleyne e Rachel, celebrada dois anos e meio antes. Já era hora de que voltassem a reunir-se todos. Embora os tivesse visto depois, recentemente tinha descoberto que desejava ver-se rodeado por sua família em Lindsey Hall. A família tinha aumentado muitíssimo com os meninos, mas a propriedade era bastante grande para albergá-los a todos. Depois que Morgan e Gervase aceitaram o convite, partiu a cavalo da residência de sua irmã, satisfeito por contar ao menos com parte de sua família durante as férias. Também ia convidar a seus tios, os marqueses do Rochester, mas não o faria nesse mesmo dia. Porque essa tarde tinha outro destino em mente. Nesse momento cavalgava pelo Hyde Park, à altura da Serpentina. O parque estava muito concorrido, com um surpreendente número de passeantes e cavaleiros, sobre tudo tendo em conta que estavam a princípios do ano. Ainda assim, fazia um magnífico dia primaveril. O sol brilhava e o ambiente era quente. Dirigia-se à residência dos Renable, embora é obvio não tinha garantia alguma de que as damas estivessem em casa. Não tinha anunciado sua visita. Conforme havia dito lady Renable na festa de lady Gosselin, tinham pensado ficar uma semana mais em Londres. Tinham passado cinco dias da dita semana, e ele tinha tomado uma decisão. Parte dessa decisão se devia a lady Falconbridge, que foi precisamente a causa de que fosse à festa. Tinha aceito o convite em um deliberado esforço de tirar da cabeça a certa professora rural inaceitável, a qual se achava de volta no campo, e por consumar


por fim a relação com uma dama de mundo que só esperaria obter prazer carnal de seu acordo. Estava ha muito tempo celibatário. Mais de um ano se não tinha em conta uma memorável exceção. Entretanto, logo que viu lady Falconbridge, logo que a dama lhe fez gestos para que se reunisse com ela no salão de lady Gosselin e o enviou em busca de uma taça de vinho antes de entrar em conversa, soube que lhe era impossível escolher uma amante com a cabeça. A dama possuía tudo o que podia desejar em uma amante, salvo um detalhe. Não era, maldita fosse! Christine Derrick. E então, justo quando chegou a essa conclusão bastante irritado pela falta de lógica de sua própria vontade, escutou a voz de lady Renable ao mesmo tempo que sentia os golpezinhos de seus binóculos no braço; e ao voltar-se encontrou com a mulher que tinha levado de novo o caos a sua vida desde as infernais bodas. Estava muito aborrecido com ela, embora depois a seguisse e a resgatasse das garras de Kitredge, e embora depois lhe falasse com desacostumada franqueza. E nesse momento, três dias depois, partia com deliberação para vê-la... Desde que se encontrasse em casa, é obvio. Se tivesse saído... Enfim, teria que voltar outro dia a menos que recuperasse o bom senso enquanto isso. Viu alguns meninos brincando com seus barquinhos a vela na Serpentina sob o atento olhar de sua babá. Saudou brevemente a uns quantos conhecidos com quem se cruzou e levou o chicote à aba do chapéu em deferência às damas. Percebeu de que a senhora Beavis um tratamento de cortesia, já que a dama era uma das cortesãs mais famosas de Londres e não se sabia de nenhum senhor Beavis, passado ou atualpasseava acompanhada por sua criada perto da água, tão emperiquitada e colorida como uma ave do paraíso. Para completar a imagem, estava inclusive mostrando a plumagem em todo seu esplendor ante a chegada de lorde Powell, quem se murmurava que a perseguia com ardor. Observou com descuido que a dama tirava uma luva, depois do que estendeu o braço sobre a água, sorriu coquetamente ao barão e deixou cair o objeto em flagrante convite. A luva caiu a um quarto da borda. Lorde Powell seguiu avançando primorosamente em resposta ao cortejo e teria resgatado a luva com o cabo de prata de sua bengala se outra pessoa não se misturasse para lhes arruinar o momento tanto a ele como ao objeto de sua paixão. Esse alguém chegou quase correndo atrás da senhora Beavis, a quem gritou que lhe tinha caído algo à água enquanto se agachava para recuperá-lo. Fazia dias que não chovia. Era quase impossível que a erva da borda estivesse molhada, a não ser que a quase inapreciável brisa tivesse feito salpicar alguma. Fosse como fosse, o pé direito dessa pessoa escorregou justo na borda e, embora fizesse um torpe esforço por jogar o peso sobre o esquerdo para recuperar o equilíbrio, falhou, começou a agitar os braços enquanto gritava com tal força que atraiu a atenção de todos e cada um dos mortais que ainda não a estavam olhando, e caiu de flanco à água com um forte chapinhar. Wulfric deteve o cavalo e observou com triste resignação a lady Renable e lady Mowbury, que exclamavam horrorizadas, e ao Powell, que indubitavelmente fervia de fúria, mas ao que não ficou mais remédio que exercer o papel de cavalheiro galante e tirar


a senhora Derrick da Serpentina. A senhora Beavis seguiu caminhando, alheia tanto à desastrosa cena que seguia seu curso a suas costas como ao fato de que só levava uma luva. Enquanto isso, a senhora Derrick tiritava de pé na borda com as plumas rosas e lavandas de seu novo chapéu murchas, e com o vestido e a jaqueta, ambos rosas embora de distintos tons, aderidos a seu corpo qual túnica grega. Jorrava água por todos lugares enquanto Powell se tirava um lenço do bolso e começava a secá-la... em vão. Lady Renable e lady Mowbury gesticulavam ao redor. Grande, a audiência contemplava boquiaberta o espetáculo entre exclamações. -A-alguém deveria dê-devolver esta lu-luva a aquela da-dama - disse a senhora Derrick ao mesmo tempo que erguia o objeto em questão. Por um instante sentiu a tentação de seguir adiante. Entretanto, suspirou, desceu do cavalo, ao qual deixou pastar à vontade, e se aproximou do cenário do desastre com passos firmes enquanto tirava o longo abrigo marrom. -Lorde Powell estará encantado de fazê-lo assegurou, lhe tirando a luva da mão e sustentando-o entre o índice e o polegar frente ao nariz do barão, que parecia encantadíssimo de que o liberassem da tarefa de ver-se com uma dama meio afogada e com seus dois inúteis acompanhantes enquanto sua apaixonada ameaçava afastar-se de seu futuro. - Puxa, Bewcastle! – exclamou - Puxa! - E escapou. - Me permita, senhora - disse sem mais, ao mesmo tempo que lhe colocava o casaco sobre os ombros e o fechava à frente. Olhou-a nos olhos com seriedade. Não conhecia nenhuma outra mulher, incluindo a Freyja, tão propensa a ficar em ridículo em público. Não conseguia imaginar por que o destino o tinha levado a estar presente dessa vez em concreto. E jamais compreenderia, embora vivesse cem anos, por que tinha escolhido precisamente a essa mulher, embora a decisão não tivesse sido consciente muito menospara apaixonar-se. -Que em-embaraço mais horroroso! -exclamou ela, que se embrulhou no casaco enquanto o olhava por baixo da aba do finado chapéu, cujas plumas caíam murchas sobre seus ombros - P-parece inevitável que es-estivesse nas proximidades para presenciar minha humilhação. -Senhora - replicou com brusquidão - Tenho a impressão de que deveria estar agradecida. O lenço de lorde Powell não teria bastado para cobri-la. - virou-se para lady Renable, pois a dama ainda parecia incapaz de fazer-se encarregada da situação Levarei a senhora Derrick para casa em meu cavalo sem demora - lhe disse. Não esperou que lhe agradecesse nem tampouco pediu opinião à dama em apuros. Voltou para lugar onde seu cavalo pastava tranquilamente, alheio por completo à cena que tinha hipnotizado a todos os humanos que pululavam pelas cercanias, subiu à sela e retornou à margem. Depois de estender um braço, disse: - Me dê a mão e coloque um pé sobre minha bota. Como era de esperar, não foi fácil. A senhora Derrick necessitava das duas mãos para segurar o casaco, já que não tinha tido a precaução de colocar os braços pelas mangas, e a barra se arrastava um quarto pelo chão. Entretanto, com um pouco de ajuda


por parte de lady Renable, que segurou o casaco, com uns quantos empurrões - muito vulgares - por parte de lady Mowbury, e com alguns puxões por sua parte, finalmente conseguiu sentar-se de lado diante dele na sela, resguardada tanto do frio como de uma exposição indecente graças ao casaco. -Senhora - disse quando duas das empapadas plumas ameaçaram lhe molhar a gola da camisa com a água da Serpentina - sugeriria-lhe que se tirasse o chapéu. -Sim, certamente! - exclamou ela ao mesmo tempo que tirava um braço do interior do casaco para desfazer o laço. Uma vez que o tirou, contemplou-o um momento enquanto ele contemplava por sua vez esses cachos molhados e esmagados - Ai, Deus! Suponho que está arruinado. -Não suponha, está. -Tirou-o da mão e deu uma olhada ao redor até que viu uma criada de expressão esperançada, a qual ofereceu a prenda ofensiva. - Moça, pegue isto por mim. Deu-lhe um guinéu junto com o chapéu, embora a julgar pela expressão de seu rosto, supôs que o chapéu em si era o melhor prêmio para ela. A moça se desfez em reverências e em agradecimentos... ou o que ele supunha que eram agradecimentos, já que falava com um acento londrino tão atroz que era impossível entendê-la. A senhora Derrick escolheu esse momento para estalar em gargalhadas. Ao princípio, o movimento dos ombros poderia ter passado por um ataque de tosse provocado pelo mergulho de cabeça, mas depois a risada escapou de sua garganta e percebeu o brilho risonho de seus olhos. Antes de poder indicar ao cavalo que ficasse em marcha, a prática totalidade dos espectadores pôs-se a rir com ela, que voltou a tirar a mão para saudá-los. E, maldita fosse! Apesar de estar oculta pelo casaco e de ter o cabelo empapado, sua imagem lhe resultou repentinamente deslumbrante. Finalmente puseram-se em marcha. E se encontrou em águas desconhecidas... sem segundas, é obvio. Ao contrário da senhora Derrick, não estava acostumado a encontrarse em meio de uma cena ridícula e ignominiosa, que sem dúvida seria a fofoca de todos os salões durante alguns dias. Em parte porque a senhora Beavis tinha estado envolvida. Mas, sobre tudo, porque também o tinha estado ele. Entretanto, como ia deixá-la ali tiritando na borda quando ninguém parecia capaz de lhe prestar ajuda prática? Se a houvesse deixado, não se teria rido tanto. Embora suspeitava que podia estar equivocado a respeito. - Pode-se acreditar que Oscar me acusava de ser um lastro muito pesado? perguntou-lhe. - Certamente que acredito - respondeu com crueldade. Embora o estranho do caso, o mais estranho! Era que a irritação começava a dar lugar a algo muito diferente. De repente, descobriu que ardia de desejo de tornar a rir tal qual o tinham feito ela e a multidão. De jogar a cabeça para trás e estalar em gargalhadas, para ser mais exato. Nem sequer o incidente do disco do verão anterior podia competir com esse último. Na vida nuca tinha presenciado nada tão hilariante. Não riu. Em primeiro lugar, porque de caminho à residência dos Renable estiveram à vista de um bom número de transeuntes e já chamavam bastante a atenção para dar mais


alimento aos falatórios dando de presente à audiência a desconhecida imagem de um risonho duque de Bewcastle. E em segundo lugar, porque a senhora Derrick devia estar gelada e muito desconfortável apesar das risadas, e a cortesia insistia em não dar a impressão de estar zombando dela. -Suponho que não caí na água com muita elegância, não é? - perguntou ela. O braço com o que lhe rodeava a cintura começava a molhar-se. Seu casaco acabaria arruinado. -Não estou seguro de que exista uma forma elegante de "cair" na água - respondeu sem disfarces - já que é impossível, por mais que se empregue a imaginação, pontuar o de "mergulho". Escutou-a suspirar. -E suponho que chamei muitíssimo a atenção. -Chamou - disse sem mais. -Ao menos resgatei a luva dessa pobre senhora - se congratulou - Nem sequer se deu conta de que lhe tinha caído. Por ter estado casada muitos anos antes de enviuvar e tendo em conta que rondava os trinta, se ainda não tinha entrado nela, adoecia de uma perigosa inocência. Poderia havê-la deixado com suas falsas ilusões, mas voltava a estar irritado com ela. Como se tinha arrumado para cair na água? A luva estava apenas a um quarto da borda. -Deixou-o cair de forma deliberada - lhe explicou - Lorde Powell ia recolhê-la... sem dar um mergulho de cabeça. Suas palavras fizeram que girasse a cabeça de repente para olhá-lo com os olhos arregalados. -Porquê? -A dama não é... respeitável - respondeu - E Powell está fazendo todo o possível para conseguir seus favores. Ao que parece, a senhora Beavis está se fazendo de rogada. Esses olhos azuis continuaram cravados nele enquanto saíam do parque e entravam na rua. Era desconcertante sentir esse franco olhar de tão curta distância. Além disso, tinha esquecido o azul tão puro de seus olhos... e sua habilidade para rir com o olhar como estava fazendo nesse instante. -Nesse caso, perturbei seu momento de cavalheirismo e glória – disse - Pobre homem! Teria posto-se a rir de boa vontade nesse mesmo momento se não tivesse tido que concentrar-se no manejo das rédeas para evitar um varredor que cruzou a rua correndo a fim de recolher a moeda que acabava de lhe jogar um transeunte. Quando se desviou do obstáculo, percebeu que a senhora Derrick seguia olhando-o com a mesma expressão risonha. -E o envolvi em uma situação constrangedora – acrescentou - Entende agora a sorte que teve quando declinei sua apressada oferta de matrimônio o verão passado? -Certamente - reconheceu com brutalidade. Viu-a girar a cabeça para olhar por fim à frente. -Enfim, me alegro por você - comentou depois de uma breve pausa - Mas embora me sinta horrivelmente envergonhada de que tenha presenciado o ocorrido, também lhe


agradeço muito que estivesse ali. Como estou empapada, teria sido um passeio muito frio e longo até chegar a casa. E teria sido o alvo de um sem-fim de olhares lascivos. Coisa que compreenderia se lhe ocorria olhar-se em um espelho antes de tirar a roupa. O vestido lhe grudava no corpo como se fosse uma segunda pele. Inclusive era rosa, pelo amor de Deus! estavam-se aproximando da residência dos Renable. -Agradeço-lhe muitíssimo a ajuda que me prestou - escutou-a dizer - Tenha por certo que não voltarei a envergonhá-lo nunca. Depois de amanhã voltamos para Gloucestershire, assim isto é uma despedida. Desmontou sem deixar de sustentá-la e uma vez no chão a desceu nos braços. Um vulto suave e empapado sob seu úmido casaco, o qual se teria tirado imediatamente para devolver-lhe e subir à carreira os degraus se não o tivesse impedido. -Entrarei com você - lhe disse - Fique com o casaco até que chegue a seu quarto e ordene a uma criada que me devolva ele. -É muito amável - replicou. -Sou muito prático, senhora - a corrigiu com ênfase ao mesmo tempo que a precedia pelos degraus para bater na porta com a aldraba de bronze. -Sim - reconheceu ela - Sim, entendo-o. E aparentemente o entendia... já que quando se virou para olhá-la, tinha as faces acesas. -Adeus - lhe disse quando estiveram no vestíbulo, sob o olhar pétreo do mordomo e de um lacaio - Se alegrará muito livrar-se por fim de mim. Entretanto, pela primeira vez desde que a conhecera, percebeu que não o olhava nos olhos, mas sim cravava o olhar em seu queixo. Um olhar que além disso carecia de sua faísca habitual. -Alegrarei-me? - despediu-se com uma reverência enquanto ela subia a escada com dificuldade, aferrando o casaco com uma mão e levantando-o do chão com a outra. Alegraria-se? Por mais embaraçosa que tivesse sido a cena, devia considerá-la como um golpe de sorte? Em realidade era um desastre de mulher. Era lógico que seu marido a considerasse um lastro. Era lógico que os Elrick se mostrassem hostis com ela e que inclusive o tivessem posto sobre aviso aquela tarde. Tinha um senso de humor inapropriado... Tinha saudado a multidão em lugar de baixar a cabeça em atitude contrita! Era um ímã para os desastres. Era a filha de um professor de escola! Sim, em realidade era uma sorte que partisse de Londres dois dias depois, porque possivelmente não voltaria a vê-la na vida. Era uma sorte que não estivesse em casa quando foi de visita e que a tivesse encontrado no momento preciso. Deveria ter utilizado a mesma palavra que tinha utilizado ela. Deveria lhe haver dito "adeus". Sim, alegraria-lhe muitíssimo livrar-se dela de uma vez por todas. Tomara pudesse tirá-la tão facilmente da cabeça e do... coração. Ao cabo de uns minutos uma criada lhe devolveu seu empapado casaco. Saiu da casa, montou seu cavalo e se afastou... da vida da senhora Derrick. Alegrava-se de ter se libertado de cometer um tremendo desastre.


Christine se sentia um pouquinho deprimida. Bom, mais que um pouquinho, a verdade fosse dita. Hermione e Basil tinham ido visitá-la pela manhã. Haviam-lhe dito que queriam assegurar-se de que não tinha pegado uma pneumonia por culpa do mergulho de cabeça do dia anterior... do qual se inteiraram, como era de esperar. Teriam tido que ser surdos para não havê-lo escutado. Não obstante, estava segura de que seu verdadeiro propósito era o de assegurar-se de que partia realmente no dia seguinte. E era certo. Melanie se lamentou longo e estendido por não poder ficar mais tempo, mas depois recordou que o aniversário de Phillip -seu primogênito e único varão- se celebraria ao cabo de uma semana e mal teria tempo suficiente para organizar sua festa. Partiam. Jamais tinha estado mais contente. Nem mais deprimida. O conde de Kitredge chegou pouco depois de que se fossem seus cunhados, também para assegurar-se de que o desafortunado acidente do Hyde Park não tivesse tido graves consequências. Entretanto, logo que chegou pediu a lady Renable que o deixasse a sós uns instantes com ela com uma grande demonstração de pompa, gestos dissimulados e piscadas; e Melanie, muito astuta, saiu da sala com um alegre sorriso. Recusou sua proposta de matrimônio, embora o perguntou em quatro ocasiões distintas de quatro formas diferentes ao longo de um quarto de hora e inclusive assim o conde se negou a acreditar que estivesse falando a sério. Prometeu viajar a Gloucestershire uma vez que se encerrassem as sessões do Parlamento no verão, para assim renovar sua relação com a senhora e a senhorita Thompson e para comprovar se sua disposição se tornara mais favorável. Foi muito exasperante, embora Melanie explodiu em gargalhadas quando o contou depois que o conde partisse, e ela mesma acabou rindo-se -Christine, é muito atraente para seu bem - disse Melanie, que estava enxugando as lágrimas com um lenço bordado. - Tomara Kitredge fosse trinta anos mais jovem e mais bonito... e mais inteligente e muito mais sensato. Mas carece desses requisitos, não é? E suponho que nunca os teve. Acredito que Bewcastle e você protagonizaram uma imagem muito romântica ontem quando partiram do parque a cavalo, embora estivesse embrulhada em seu casaco e a água gotejasse pelas orelhas, e embora ele levasse cara de muito poucos amigos. Suponho que não lhe fez muita graça ver-se obrigado a te resgatar ao galope. -Pois não - reconheceu com um suspiro - Não lhe fez nenhuma. Nesse momento prorromperam de novo em gargalhadas, embora ela tinha o ânimo pelo chão, grudado às solas dos sapatos. Graças a Deus que no dia seguinte partiam para casa. Não obstante, a ideia incrementou seu abatimento. Nessa mesma tarde, enquanto estava em seu quarto fazendo a bagagem embora Melanie tenha tentado que aceitasse a ajuda de uma criada, um criado bateu a sua porta e lhe informou que sua senhoria requeria sua presença no salão do piso inferior. Quando desceu para ver o que queria, descobriu Melanie sentada junto à lareira com um sorriso muito ufano e o duque de Bewcastle, que se estava levantando da poltrona que ocupava


até esse momento em frente a seu amiga. Nesse instante percebeu que seus ânimos, que continuavam pelo chão, experimentavam um incômodo sobressalto. -Senhora Derrick - a saudou o duque ao mesmo tempo que fazia uma reverência. -Excelência - correspondeu ela da mesma maneira. Melanie não disse nada, mas continuou sorrindo. -Senhora - prosseguiu Bewcastle convertendo-a no alvo desses olhos prateados espero que a aventura de ontem não lhe tenha trazido consequências nefastas. -Obrigada por utilizar um eufemismo tão amável – replicou - Lhe asseguro que o único que se ressentiu foi meu orgulho. -Em realidade, no dia anterior esteve a ponto de ter um desmaio quando tirou o casaco e se olhou no espelho de pé que tinha em seu quarto. Evidentemente o duque de Bewcastle não tinha ido somente por interessar-se por sua saúde. Embora já se despedissem no dia anterior. Ao menos, no que a ela se referia. Porque ele não o fez. De algum modo lhe entristeceu que nem sequer lhe dissesse adeus quando se estavam separando para sempre. -Senhora Derrick - disse ele - perguntava-me se gostaria de dar um passeio pelo parque comigo. -Um passeio? - Olhou de esguelha à Melanie e percebeu que o sorrisinho continuava ali, como se o tivessem pintado no rosto. -Um passeio - repetiu o duque - Trarei-a de volta antes da hora do chá. Melanie começou a dar batidinhas com os óculos no braço da poltrona. -É muito amável de sua parte, Bewcastle – disse - Christine não tomou ar hoje. tivemos visitas durante toda a manhã. Entretanto, os olhos de sua excelência não se afastaram dela nem um momento. Olhava-a com as sobrancelhas arqueadas. Se disesse que não, Melanie zombaria dela sem piedade. Se dizia que sim, zombaria igualmente quando retornasse. Para falar a verdade, não esperava voltar a vê-lo. Não desejava vê-lo. -Obrigada - se escutou dizer - Vou pegar o chapéu e o casaco. Cinco minutos mais tarde caminhavam pela rua em direção ao parque, com os braços dados. Tinha esquecido como era alto, como era imponente sua presença. Tinha esquecido a aura tão poderosa que projetava. Mas não tinha esquecido que tinha compartilhado momentos de grande intimidade com esse homem. E de repente se descobriu sem fôlego. Não tinha nada que lhe dizer que não lhe houvesse dito no dia anterior, e era impossível que ele tivesse que lhe dizer algo. Por que complicações a tinha convidado a dar um passeio? Ao menos enquanto caminhavam pela rua podia distrair-se observando às pessoas em seus afazeres diários. Entretanto, logo esteve com o duque de Bewcastle em um deserto e silencioso Hyde Park... ou ao menos a zona pela que eles caminhavam parecia deserta, detalhe atribuível ao rude e gélido vento que soprava. Virou a cabeça e observou seu perfil. -Bem, excelência... - disse.


-Bem, senhora Derrick... Ao menos, pensou em um absurdo arranque de vaidade, levava seu vestido novo de cor azul com o casaco combinando e o chapéu cinza que tinha estreado para as bodas. Sentia especial predileção pelo chapéu. A parte interior da aba estava forrada com seda azul vincada que, assim como às fitas com as quais se atava, fazia jogo com o resto de sua vestimenta. Ao menos, repetiu-se por enésima vez, não ia feita um despropósito como no verão. Nem feita uma sopa, com a roupa colada ao corpo, como no dia anterior. Caminharam absolutamente silenciosos durante o que lhe pareceu um quilômetro. Era ridículo e enervante. Sobre tudo porque poderia estar em casa fazendo a bagagem. E ele poderia estar onde quer que estivesse acostumado a estar em uma tarde de princípios de março. Ambos poderiam estar em um lugar muito mais agradável. -Em certas ocasiões – disse - enceta-se em um jogo de olhares e se desafia para ver quem a afasta antes. Nós temos feito isso alguma ou outra vez, embora suponha que para você não é um jogo. Simplesmente espera que os insignificantes mortais baixem o olhar quando nos topamos com o seu. Este é um desses jogos, excelência? Quer ver quem é capaz de prolongar mais o silêncio? Ver quem acaba falando primeiro? -Nesse caso, senhora Derrick - respondeu ele - acredito que estará de acordo comigo em que acabo de ganhar. -Certamente - reconheceu entre gargalhadas - por que complicações me convidou a dar um passeio? Depois do que aconteceu ontem e depois do verão passado me achava a última pessoa sobre a face da terra com a que gostaria de passar um momento. -Pois estava enganada, senhora - assegurou. Caminharam em silêncio uns cem metros. -Este ao menos é um jogo que jamais ganharei - disse finalmente - Confesso que sinto muita curiosidade. Por que me convidou? Obviamente, não foi para conversar. Dois cavalheiros cavalgavam pelo caminho em direção contrária à sua, mas insistiram para que suas montarias abandonassem o atalho para deixá-los passar. Trocaram as saudações de rigor com o duque e levaram os chicotes à aba de seus chapéus em sua honra. -Meus irmãos e suas respectivas famílias passarão comigo as férias de Páscoa no Lindsey Hall - escutou-o dizer de repente. Olhou-o com dissimulação. -Com certeza lhe será muito agradável - replicou, perguntando-se se seria assim. Não conseguia imaginá-lo rodeado de irmãos, irmãs, sobrinhos e sobrinhas. Como seriam? Não recordava ter conhecido a nenhum. Pareceriam-se com ele? Nesse momento a ideia lhe foi engraçada. -Estive pensando em convidar seus cunhados e seus primos por afinidade. Nessa ocasião não o olhou com dissimulação, a não ser abertamente e com expressão aniquilada. Sabia que era amigo do Héctor, mas não percebeu que houvesse uma relação tão estreita com o resto da família. -Porém necessito que você me ajude a decidir - prosseguiu. -Eu? - perguntou sem afastar o olhar desse perfil sério e frio. -Convidarei-os... –disse - se você os acompanhar.


-Como!? Deixou de caminhar e se virou para olhá-lo com os olhos arregalados. Entretanto, outros quatro cavaleiros se aproximavam pelo caminho e o duque insistiu em tomá-la pelo braço para continuar caminhando e deixá-los para trás depois de uma nova troca de saudações. Uma vez que os perderam de vista, soltou-lhe o braço e voltaram a deter-se. -Não posso convidar a você somente - declarou. - Seria muito inapropriado, embora toda minha família esteja em Lindsey Hall. Não posso convidá-la com sua mãe, suas irmãs e seu cunhado; não estamos comprometidos. Assim devo convidá-la como um membro mais, embora afastado, de uma família com a que desejo passar as férias. A ira começava a afligir seu estômago. -Tem intenção de me seduzir? É isso? - perguntou-lhe. Não acrescentou "outra vez". O que aconteceu entre eles aquela noite de verão não teve nada que ver com a sedução. -Em minha casa? - perguntou ele por sua vez com voz tensa. - Com minha família e a família de seu defunto marido sob o mesmo teto? Você acredita me conhecer muito bem, senhora Derrick, mas se for capaz de me fazer semelhante pergunta, está claro que não me conhece absolutamente. -E suponho que, por essas mesmas razões – acrescentou - uma vez ali não voltará a me pedir que seja sua amante. -Não o farei - respondeu - Jamais devia fazê-lo. Não desejo convertê-la em minha amante. -Então, o que? - quis saber - por que? É impossível que ainda queira casar-se comigo. -Senhora Derrick - lhe disse - pergunto-me se você acredita estar a par dos pensamentos, das intenções e dos desejos de todos seus conhecidos. É um traço muito irritante. Doída pelo comentário, apertou os lábios, virou-se continuou caminhando devagar. O vento lhe açoitava o rosto, mas ergueu o queixo e recebeu com prazer seu frio assalto. -Eu gostaria que me assegurasse que se convidar sua família por afinidade a Lindsey Hall - escutou-o dizer quando esteve a seu lado de novo - você também aceitará seu convite. -Mas por que? - voltou a lhe perguntar - Quer que veja com meus próprios olhos o que perdi ao recusá-lo? -Não sou dado a me deixar levar pelo rancor - assegurou. - Além disso, estou certo de que se esse fosse o motivo que me impulsiona, você limitaria a dar uma olhada a minha casa e a rir em minha própria cara. -Agora é você quem cria me conhecer - replicou. -Quando declinou minha proposta de matrimônio – seguiu - deu-me uma longa lista de todas as carências que me incapacitam para ocupar o papel de seu marido. -Seriamente? Mal recordava o que lhe disse aquele dia. - O que sim tinha gravado na mente era o terrível desejo de ir atrás dele quando partiu pela rua... e as lágrimas que a deixaram esgotada pela dor. -Está gravada a fogo em minha memória - respondeu - Conforme me disse, qualquer homem que deseje casar-se com você deve ter uma personalidade carinhosa, humana e possuir senso de humor. Deve amar às pessoas, sobre tudo as crianças, e gostar das


diversões e situações absurdas. Deve ser um homem que não esteja obcecado consigo mesmo nem com sua própria importância. Deve ser alguém que não seja um bloco de gelo. Deve ter coração. Deve ser capaz de converter-se em seu companheiro, seu amigo e seu amante. Perguntou-me se eu poderia cumprir todos esses requisitos... ou algum deles. E insinuou, evidentemente, que não poderia cumprir nenhum. Não recordava ter dito nada disso. Mas devo ter feito. Porque eram as palavras exatas que teria desejado dizer. Entretanto, ele as recordava. Ao pé da letra. Umedeceuse os lábios. -Não queria ser cruel – assegurou - Embora suponha que quis ser, porque me incomodou muitíssimo a forma em que escolheu declarar-se. Agora mesmo não desejo ser cruel. Casei-me uma vez porque me dava de cara com o amor, e era tão jovem e tola que achei que a euforia daqueles primeiros momentos tão românticos me levaria em rapidamente durante o resto de minha vida. Não tenho intenção de voltar a me casar. Mas, em caso de que mude de opinião, farei-o com um homem que possua todas essas qualidades que acaba de me repetir. É impossível, não se dá conta? Nenhum homem pode possuir todas nem pode encarnar por completo meu sonho. De modo que por isso escolhi permanecer solteira e livre. Sinto muito se o ofendi. Não parece você a classe de homem que se ofende com facilidade, sobre tudo se tratando de alguém tão insignificante como eu. Mas se o ofendi, peço-lhe desculpas. -Quero lhe demonstrar que possuo ao menos alguns dos atributos que sonha encontrar em um homem - declarou. -Como!? Deteve-se de novo e se virou para olhá-lo. Nessa ocasião não havia ninguém à vista. percebeu de repente de que se desviaram do atalho principal pelo que transitavam cavaleiros e carruagens e que tinham ido parar a um mais isolado, pensado especialmente para os caminhantes. -Ao contrário do que você afirma – disse - não acredito carecer de humanidade. -Eu não disse que... -"Uma personalidade carinhosa e humana" foram suas palavras exatas - replicou. Olhou-o fixamente e de repente recordou algo que se obrigou a esquecer. Recordou a expressão que apareceu em seus olhos antes de que abandonasse o jardim de Hyacinth Cottage e algumas das palavras que lhe disse naquela ocasião. "naquela ocasião. "Alguém que tenha um coração. Não, talvez tenha razão, senhora Derrick. Talvez não tenha coração. E se não o tenho, isso quer dizer que me falta tudo aquilo com o que você sonha, não é verdade?" Recordou que a invadiu uma dor tão grande que acreditou que lhe tinha partido o coração. -Equivoquei-me ao insinuar algo assim – admitiu - Lhe peço perdão. Mas em realidade você está muito longe de cumprir meu sonho. E não o digo com desejo de ofender. Você é como é, e estou segura de que em seu próprio mundo essa personalidade lhe é de utilidade. Porque inspira respeito, obediência e inclusive temor. E suponho que são uns atributos necessários para qualquer aristocrata em sua posição. Entretanto, não são os que eu procuro em um companheiro de para toda a vida. - Além de ser um duque, também sou um homem, senhora Derrick - assinalou. Desejou com toda sua alma que não houvesse dito algo assim. Porque teve a


impressão de que um punho gigantesco acabava de lhe golpear o abdômen, deixando-a sem fôlego e sem força nas pernas. -Sei - sussurrou. Pigarreou - Sei. -Um homem que não lhe foi indiferente no passado - acrescentou ele. -Sei. Viu-o erguer uma das mãos, protegidas pelas luvas, e por um instante lhe acariciou uma face com os dedos. O gesto fez com que fechasse os olhos e franzisse o cenho. Se seguiam por esse caminho, acabaria chorando muito ou jogando-se em seus braços e lhe suplicando que voltasse a lhe pedir em casamento para ter o prazer de viver infeliz a seu lado pelos séculos dos séculos. - Me dê uma oportunidade - lhe disse - Venha a Lindsey Hall. - Seria absurdo - afirmou, abrindo os olhos - Nada vai mudar. Nem você, nem os sentimentos que me inspira. Eu tampouco vou mudar! - Me dê uma oportunidade - repetiu. Nunca o tinha escutado rir. Nem sequer o tinha visto sorrir. Como ia casar se com um homem que estava eternamente com semblante sério? Orgulhoso, arrogante e frio. Porque esse era seu aspecto apesar de estar lhe suplicando que lhe desse uma oportunidade para rebater suas acusações. -A seu lado acabaria consumida - afirmou ao mesmo tempo que piscava com força quando sentiu que lhe enchiam os olhos de lágrimas - Acabaria por me roubar toda a energia, toda a alegria. Apagaria o fogo de minha vitalidade. - Me dê a oportunidade de avivar as chamas desse fogo – rogou - e de dar asas a sua alegria. Separou-se dele com brusquidão e lhe deu as costas enquanto cobria a boca com uma mão. -Me leve para casa – disse - me leve com Melanie. Não deveria ter aceitado passear com você. Não deveria ter vindo a Londres. Não deveria ter participado da festa campestre. -Isso é precisamente o que me repito todos os dias - replicou o duque com voz cortante - Entretanto, participei dessa festa da mesma maneira que participou você. E entre nós existe algo indefinível que ainda não resolvemos por muito que quiséssemos fazê-lo em Schofield Park na noite do baile. Venha a Lindsey Hall. Me prometa que aceitará o convite e que não me deixará a sós com pessoas que só convidarei para que você possa vir a minha casa. - Quer que vá lhe demonstrar quão incompatível somos - acusou-o, - o mau casal que fazemos, como seríamos infelizes se nos comprometêssemos a passar a vida juntos, é isso? Acaso não o deixou bem claro a cena de ontem? -Se for necessário, sim - respondeu - Se pode me convencer de todas essas coisas, senhora, talvez me faça um grande favor. Porque talvez consiga me ajudar a tirá-la de meus pensamentos. -Não serão Páscoas felizes - lhe assegurou - Para nenhum dos dois. -Venha de qualquer forma - insistiu. Suspirou e pensou na Eleanor. Jamais tinha necessitado tanto de uma vontade férrea como nesse momento.


-Muito bem, de acordo! – exclamou - Irei. Algo parecido ao triunfo iluminou brevemente aqueles olhos prateados. -Me leve de volta a casa de Melanie, se for amável - disse. Nessa ocasião o duque não fez ouvidos surdos a sua petição. Percorreram o caminho de volta absolutamente em silencio. Não quis entrar em casa de Melanie, nem ela o convidou a que o fizesse. Limitou-se a lhe pegar a mão na calçada, fazer uma reverência e levar sua mão aos lábios antes de olhá-la nos olhos. -Recorde o que me prometeu - disse. -Sim - concordou, afastando a mão - Recordarei.


Capítulo 14

Wulfric já não podia entrar em nenhum aposento de Lindsey Hall e desfrutar da solidão e do silêncio. A mansão estava lotada com os Bedwyn, seus cônjuges, seus filhos e seus familiares. Os Bedwyn nunca tinham sido tranquilos. Entretanto, ao recordar o passado, poderia dizer-se que eram monges e monjas de clausura... tal era o alvoroço provocado tanto pelo considerável crescimento da família como pelo tempo que tinha transcorrido desde que todos estiveram juntos pela última vez. Freyja e Joshua, os marqueses de Hallmere, foram os primeiros a chegar de Londres com seu filho Daniel, que tinha dois anos, e sua filha Emily, de três meses. Freyja se tinha recuperado muito bem de seu último parto. Ao que parecia, sua atividade preferida era derrubar-se com seu risonho filho pelo chão... e não necessariamente no ala infantil. Quando Daniel não estava ocupado com tal mister, era fácil encontrá-lo em qualquer lugar da mansão, galopando nos ombros de seu pai, ao invés na ala infantil com sua babá como era o habitual. Alleyne e Rachel, lorde e lady Alleyne Bedwyn, e Morgan e Gervase, os condes de Rosthorn, chegaram no mesmo dia. O primeiro casal com suas gêmeas, Laura e Beatrice, de um ano e meio, e com o barão Weston, o tio de Rachel, que se tinha recuperado bastante bem dos achaques cardíacos que tinha padecido no verão anterior. Morgan e Gervase foram acompanhados de seus filhos, Jacques, de quase dois anos, e Jules, de dois meses. Parecia que Rachel voltava a estar grávida, embora sua condição ainda não era evidente. Rannulf e Judith, lorde e lady Rannulf Bedwyn, apareceram no dia seguinte com seu filho, William, de quase três anos, e com Miranda, de um ano. Não tiveram que passar muitas horas desde sua chegada para que William exigisse fazer o mesmo que seu primo e se visse cavalgando nos ombros de seu pai por toda a mansão. O bom humor com o que Rannulf acessou a sua imperiosa ordem deixou bem clara a firmeza com a qual exercia a autoridade paterna em seu lar... E posto que Jacques não ia ser menos, também o pediu a seu pai, embora com mais educação, lhe puxando uma das bordas de suas botas de montar até que lhe fez caso e logo erguendo os braços. A partir desse momento foi normal encontrar-se com um grupo de montarias humanas que avançavam dando pancadas pelos corredores e escadas de Lindsey Hall às ordens de seus escandalosos cavaleiros, de vez em quando algum desses cavaleiros era uma das gêmeas, embora desse trabalho saber qual das duas. Aidan e Eve, lorde e lady Aidan Bedwyn, chegaram com a senhora Pritchard, a tia de Eve, e seus três filhos, Davy, de dez anos, Becky, de oito, e Hannah, de quase um. Davy e Becky eram em realidade seus filhos adotivos, mas nem Eve nem Aidan tolerariam que se dissesse tal coisa em sua presença. Davy se referia a eles como "tio" e "tia", enquanto que Becky os chamava "papai" e "mamãe". Entretanto, aos olhos do casal, os meninos eram tão deles como a própria Hannah. Davy se converteu no preferido das crianças, que abandonaram sem olhar a seus pais, assombrados pelo primo mais velho que deslizava pelo corrimão da escadaria


quando não havia adultos olhando. E Becky recebeu a adoração de todos por igual, embora fossem as meninas quem formaram redemoinhos a seu redor como os pintinhos com mamãe galinha. Tudo lhe era um pouco desconcertante, para não dizer irritante. E o bate-papo entre seus irmãos e seus cônjuges se foi avivando e aumentando de volume com cada nova chegada. Refugiou-se na biblioteca, seu domínio privado, tal como fazia quando todos viviam ali. Também visitou seu lugar de retiro na propriedade, embora em uma só ocasião. Os últimos membros da família em chegar foram seus tios, os marqueses do Rochester. Sua tia era uma Bedwyn de nascimento e tão formidável como qualquer deles. Levou consigo posto que parecia altamente improvável que o marquês tivesse tido algo que veruma sobrinha de Rochester que tinha estado adoecendo em algum lugar do norte até a idade de vinte e três anos, momento no qual seus familiares londrinos se perceberam o assunto e a tia Rochester decidiu acolhê-la sob sua asa e apresentá-la tanto à rainha como à alta sociedade durante a temporada que estava por começar. A tia Rochester também se ocupou de lhes fazer saber que tinha toda a intenção de promover uma união entre a senhorita Amy Hutchinson e o mais velho de seus sobrinhos... ele. -Conseguiremos um marido para a Amy antes de que acabe a temporada social anunciou sem papas na língua enquanto estavam sentados à mesa a noite que chegaram - Ou pode ser que antes de que comece. Não se pode permitir que uma jovem continue solteira aos vinte e três. -Eu casei aos vinte e cinco, tia - lhe recordou Freyja. A tia Rochester levantou seus óculos, que tinha junto a seu prato, e os meneou em direção a sua sobrinha. -Uma espera tão longa pode ser perigosa, Freyja - replicou antes de mover os óculos e assinalar ao Joshua com eles - Se este moço não tivesse aparecido para domesticá-la e fazer se esquecer sua obstinada natureza graças a seu encanto, teria acabado sendo uma solteirona. É um destino muito desagradável para qualquer moça, embora tenha a um duque por irmão. Joshua meneou as sobrancelhas em direção a sua esposa e esta lhe lançou um olhar fulminante e altivo como se tivesse sido ele quem acabasse de elogiar seu encanto e de pontuá-la a ela de desmedida e obstinada. Menos de cinco minutos depois a tia Rochester interrompeu a conversa com outro comentário. -E já é hora de que você te case, Bewcastle – afirmou - Trinta e cinco anos é a idade perfeita para um homem, mas também é perigosa. É a idade perfeita para casar-se e é perigoso perder o tempo. Que homem desejaria estar adoentado pela gota antes de ter a um filho e herdeiro na ala infantil? Cinco pares de olhos Bedwyn, mais os que não eram Bedwyn, cravaram-se nele com maldoso regozijo. -Aí pegou-o, Wulf - replicou Alleyne - Já tem trinta e cinco. Não pode perder nem um só momento mais... poderia ser fatal. -Segue meu conselho, Wulf - acrescentou Rannulf - os papais com gota são piores montarias, e os filhos não os querem igualmente.


-Muito obrigado, tia - disse ele, consciente de que os comentários sobre sua pessoa e sobre a senhorita Hutchinson eram tão evidentes para todos os pressentes como para si mesmo - Embora ainda não padeço nenhum sintoma de gota. Quando chegar o momento, se acaso chegar, de escolher a que será minha duquesa, eu mesmo informarei à família de minha escolha e de minhas intenções. Os Bedwyn lhe sorriram, assim como Joshua e Gervase. Eve lhe sorriu com ternura. Como Rachel. Judith preferiu mudar o assunto de conversa, embora para ele fosse meramente irritante. -Tem alguma atividade especial pensada para as festas, Wulfric? - perguntou-lhe para aliviar o provável desconforto da senhorita Hutchinson, que embora elegante e bonita, era muito tímida e saltava à vista que a companhia a afligia - Podemos organizar algumas? Depois da Páscoa iremos à igreja, é obvio. Mas podemos organizar algumas atividades para depois? Um concerto, talvez? Alguma interpretação? Uma comida campestre se o tempo o permitir? Um baile talvez? -Qual das perguntas quer que Wulf responda primeiro, meu amor? - perguntou Rannulf. -A da interpretação. - Soltou uma gargalhada - Podemos fazê-lo? -Se o fizermos - interveio Freyja olhando a sua cunhada de soslaio - porá-me de mau humor, Judith. Você ganhará em todos e nos fará parecer uns aficionados. -Pois então, encanto, vamos ter que organizar algo para que Judith possa interpretar um papel enquanto que você e eu cantamos um dueto - atravessou Joshua - Nada mais longe de nossa intenção pôr você de mau humor. -Não vejo a necessidade de organizar atividades - interveio Morgan - Alguma vez necessitamos fazê-lo para nos entreter, não é? Por minha parte, trouxe as pinturas e estou ansiosa por tirar o cavalete. Nunca pude pintar a propriedade como queria... A senhorita Cowper não parava de revoar a meu redor me dando sugestões sobre como devia fazê-lo. Acredito que lhe dava medo que Wulf se zangasse com ela se não me ensinava como era devido e a encadeasse nas masmorras. Estou muito certa de que se foi pensando que havia masmorras nos porões de Lindsey Hall. -Não as há, Morg? - perguntou Alleyne com fingida surpresa - Quer dizer que Ralf e eu mentimos quando lhe dissemos que havia uma escada secreta que baixava até elas? - As crianças adorarão brincar em uma propriedade tão bonita - comentou a senhora Pritchard com seu marcado acento Gales - E têm muitos primos com os que brincar. -Mas podemos organizar algo especial, Wulfric? - insistiu Judith. -Espero mais convidados - anunciou. O comentário despertou o interesse de todos os pressentes. Embora tinha por costume receber visitas tal como ditavam os bons costumes, jamais tinha sido dado a ter alheios convidados à família pernoitando na mansão. -Convidei ao Mowbury para que venha de Londres com a viscondessa, sua mãe – explicou - E seu irmão e suas irmãs também vão vir. Justin Magnus, lady Renable com o barão e seus filhos, e lady Wiseman com sir Lewis. E Elrick, o primo do Mowbury, com sua viscondessa e com a viúva de seu irmão, a senhora Derrick.


-Mowbury? - repetiu Aidan. - Continua sendo tão avoado como sempre, Wulf? E toda sua família? Não sabia que tivesse uma relação tão estreita com eles. -E vão vir todos? - acrescentou Rannulf - A que vem isso, Wulf? Soltou a colherinha da sobremesa para pegar o cabo do monóculo. -Não era consciente de que tinha que informar a meus irmãos dos convidados que pretendo receber em minha casa - replicou. -Não seja injusto, Wulf - o repreendeu Freyja com altivez - Morgan e eu não dissemos nada. A senhora Derrick não é a mulher que tirou da Serpentina e a levou empapada a sua casa em seu cavalo? -Não! - exclamou Alleyne com uma gargalhada e acrescentou sem perder o sorriso Wulf fez algo assim? Caramba! Nos conte mais, Free. Adeus à ideia de que seu nome passasse desapercebido entre a lista de convidados, pensou, enquanto que Freyja, ajudada pelo Joshua e Gervase, começava a dar uma versão mais ou menos exata, mas decididamente delirante, do que tinha acontecido naquele dia em Hyde Park. -Certamente não lhe fez nem um pingo de graça, Wulf - disse Rannulf assim que todos deixaram de rir - E agora se sente na obrigação de convidar à dama com o resto de sua família. Má sorte, irmão! Mas não tema, protegeremos você dela. -Formaremos um muro de irascíveis Bedwyn - lhe prometeu Alleyne com uma gargalhada - Não conseguirá passar entre nós, Wulf. Poderá recuperar sua dignidade tranquilamente. Ergueu o monóculo e o deixou a meio caminho do olho. -Todos meus convidados serão tratados com o devido respeito – ordenou - Mas em resposta a sua pergunta, Judith, faremos um baile. Meu secretário já enviou os convites e se está encarregando do resto dos preparativos. Estou certo de que surgirão atividades à medida que vão passando os dias. Deixou cair o monóculo, pegou uma vez mais a colherinha e se concentrou por completo no mingau. Que bicho o tinha picado? "me dê uma oportunidade", tinha-lhe suplicado. Uma oportunidade para que? Para lhe demonstrar que era algo que não era? Ele jamais suplicava. Não era preciso. "Nada vai mudar", tinha-lhe respondido ela. E tinha razão. Como ia ser capaz de mudar sua forma de ser? Queria fazê-lo sequer? Tinha toda a razão do mundo. Não havia nada que pudesse ajudá-los a conseguir esse final feliz dos contos de fadas. "A seu lado acabaria consumida", havia dito ela. "Acabaria por me roubar toda a energia, toda a alegria. Apagaria o fogo de minha vitalidade. " Ele não sabia o que era a alegria. E tampouco sabia muito sobre a vitalidade... ao menos, sobre o tipo de vitalidade que a fazia resplandecer dessa forma tão indescritível. Havia algo nele que pudesse despertar seu interesse? E, dando a volta à moeda, havia algo nela suscetível de convertê-la em uma candidata adequada para ser sua duquesa? Não só sua mulher ou sua esposa, mas sua duquesa. Soltou a colherinha, assegurou-se de que todo mundo tivesse terminado de comer e olhou a sua tia ao mesmo tempo que arqueava ligeiramente as sobrancelhas. Sua tia entendeu a indireta, levantou-se e saiu com as damas da sala de jantar.


Era um dia frio e muito ventoso apesar de estar quase em abril. Nuvens cinzas nublavam o horizonte e descarregavam de vez em quando uma fina garoa sobre o triste panorama que tinham abaixo. Entretanto e por sorte, retiveram a maior parte de sua carga e o caminho permaneceu transitável durante o longo trajeto. Christine quase desejava que um prolongado temporal os obrigasse a deter-se em alguma estalagem rural até que passassem as festas. Mas já era muito tarde para isso. Deviam estar muito perto de Lindsey Hall. De fato, estava pensando isso mesmo quando a carruagem diminuiu a marcha e passou entre dois imponentes postes para entrar numa reta avenida flanqueada por olmos. -Mãe do amor formoso! - exclamou Melanie, que acabava de despertar sobressaltada de uma longa sesta. Tirou as mãos debaixo da manta de viagem que tinha no regaço e endireitou o chapéu. - Já chegamos? Bertie, acorde Não aguento mais seus roncos. Não consigo entender como se pode dormir em uma carruagem. Sacudidelas e pulos me deixaram desconjuntada. A você não, Christine? -Eu acho que foi uma viagem muito cômoda - respondeu. Aproximou a cabeça à janela que tinha ao lado e viu uma enorme mansão ao final da avenida. Não era medieval, nem isabelina, nem georgiana, nem palaciana, mas parecia ter características de todos esses estilos. Era magnífica. Assombrosa. Jamais se tinha enjoado em uma carruagem; entretanto, nesse momento descobriu que tinha o estômago revolto. Menos mal que a viagem estava chegando a seu fim. Embora foi precisamente essa ideia o que piorou seu mal-estar. A carruagem tomou uma curva e viu que estavam rodeando um enorme jardim circular, cheio de vistosas tulipas e narcisos tardios, em cujo centro se erguia uma grande fonte de pedra que lançava a água a quase dez metros de altura. Sua visão engrandecia a chegada à mansão. Também viu que o jardim circular estava colocado de tal modo que assim que rodeassem a fonte estariam bem em frente à enorme porta principal. Suas duas folhas se abriram nesse momento antes de que a carruagem chegasse a seu destino final e perdesse a vista da casa. Melanie estava tagarelando desde que despertou, mas apenas se tinha entendido duas palavras. Tomara pudesse retroceder no tempo, a aquele momento no Hyde Park, pensou, e declinar o convite em lugar de aceitá-lo... Que simples parecia! A essas alturas estaria tranquila em casa, porque seria um dia como qualquer outro, desejando que chegasse a Páscoa para celebrá-la com sua família. Entretanto, não havia dito que não, e por isso estava ali. Os batimentos do coração troavam em seus ouvidos enquanto um criado vestido com uma linda libré abria a portinhola da carruagem e baixava os degraus. Não havia escapatória. Detestava estar tão nervosa. Detestava isso com todas suas forças. Dissera ao duque que seria inútil, que não ia mudar nada, que nada podia mudar. Dissera-lhe que os dois estariam condenados a passar uma Páscoa desventurada se insistisse em que fosse a sua casa.


Tinha insistido de qualquer maneira e ela tinha aceitado. Assim por que estar nervosa? Que motivo tinha para estar? Por que teria que esperar desditas e portanto atrair semelhante destino? Por que não limitar-se a desfrutar? Podia voltar a sentar-se em um canto para rir da estupidez humana, não? Embora a tática não tivesse funcionado em Schofield Park, não havia motivos para que não funcionasse nessa ocasião. Só os criados saíram para recebê-los ao exterior da mansão. Um mordomo ao quem se poderia confundir com o próprio duque em caso de não conhecê-lo em pessoa lhes fez uma rígida reverência e os convidou a segui-lo ao interior, onde sua excelência os esperava. Melanie e Bertie o seguiram como era o normal. Ela não. A carruagem na qual viajavam os filhos de Melanie e sua babá acabava de deter-se atrás do dele, e percebeu imediatamente que as coisas não iam bem em seu interior. Pamela, de seis anos, certamente havia tornado a vomitar, coisa que tinha acontecido com frequência quase desde que se puseram em caminho, e a paciência da pobre babá estaria a essas alturas esgotada. A reclamação, pronunciada com grito que confirmou suas suspeitas se escutou em todo o terraço assim que se abriu a porta da carruagem. Phillip, de oito anos, estava rindo-se daquele modo tão desagradável típico nos meninos dispostos a irritar aos adultos e Pauline, de três anos, passava do pranto aos gritos de protesto contra seu irmão. Não era preciso ser um gênio para compreender que Phillip não parava de xingá-la, o esporte preferido dos irmãos mais velhos. E também era evidente que a babá ia ser incapaz de controlar a situação a menos que alguém lhe desse uma mão imediatamente. Pôs-se a andar em direção à segunda carruagem. -Phillip, acaba de acontecer a coisa mais engraçada do mundo! - exclamou com um enorme sorriso no rosto ao mesmo tempo que se preparava para mentir como uma velhaca - Vê esse mordomo tão formal? - Assinalou as costas do mordomo - Me perguntou pela identidade do elegante cavalheiro que viajava nesta carruagem. Suponho que te confundiu com um adulto. O que lhe parece? A ideia pareceu encantar Phillip. Saltou ao terraço com os mesmos ares de um dândi curtido e ela aproveitou para aproximar-se da carruagem e pegar Pauline nos braços. -Já chegamos, querida - disse ao mesmo tempo que sorria à babá, que estava embalando a uma Pamela de rosto cinzento em seu regaço com expressão tensa e agradecida - E logo vai poder explorar uma ala infantil enorme. Você não gosta da ideia? Estou quase certa de que haverá mais crianças ali, novos amiguinhos. Melanie, Bertie e o mordomo já tinham desaparecido no interior da mansão, percebeu com uma careta. Entretanto, outra pessoa tinha aparecido no outro extremo do terraço. Uma mulher de meia idade que evidentemente tinha saído para levar os meninos e à babá por outra porta. Phillip a saudou com uma rígida inclinação de cabeça e passou a lhe informar de que a mais velha de suas irmãs estava doente pela viagem, de que a menor estava cansada e de que sua babá agradeceria sua ajuda. -É um o perfeito cavalheiro - afirmou a mulher com um sorriso agradável. - E se preocupa muito por suas irmãs. Parecia que estivesse a ponto de surgir um halo em torno da cabeça do fantasia de


diabo. -Eu a segurarei, senhora - disse a mulher ao mesmo tempo que estendia os braços para segurar Pauline enquanto a babá descia muito devagar da carruagem com Pamela. Entretanto, Pauline se negou a soltá-la. Agarrou-se a seu pescoço com força, fazendo com que lhe inclinasse ligeiramente o chapéu, enterrou-lhe o rosto no pescoço e deixou bem claro que estava reunindo as escassas forças que restavam para protagonizar uma boa manha de criança. -Está cansada e tudo isto lhe é estranho - disse à mulher. - Eu a levarei a ala infantil agora mesmo. E se virou depressa em direção à porta da mansão, que quase esperava que já tivessem fechado para que não pudesse passar. Não foi assim. Entrou na mansão e, ao compreender horrorizada que se convertera no centro de atenção, foi muito consciente de seu desalinho. Mal prestou atenção a seus arredores, mas o pouco que viu lhe bastou para dar-se conta de que o vestíbulo era imenso e magnífico, de estilo medieval. Havia uma enorme lareira bem em frente da porta, e diante dela, uma grande mesa com suas cadeiras, que ocupava virtualmente o aposento de lado a lado. O teto tinha um artesanato de carvalho. As paredes estavam caiadas e adornadas com pendões, brasões e armas. Em uma doa laterais se erguia uma persiana de intrincada talha que ocultava uma galeria superior. No outro extremo estava colocada uma escadaria que conduzia aos pisos superiores. Poderia ter prestado mais atenção a tudo, se não fosse pelo grande grupo de pessoas que aguardavam em fila para recebê-la entre a porta e a mesa. Um grupo de pessoas que aguardava para recebê-la a ela, nem mais nem menos! Já que Melanie e Bertie já iam a caminho da escadaria. Demorou uns instantes em adaptar-se à penumbra do interior. Mas quando o fez, viu que o próprio duque de Bewcastle encabeçava a fila. De fato, acabava de abandoná-la para lhe fazer uma reverência formal com uma expressão inescrutável no rosto... Claro que tampouco lhe tinha visto nenhuma expressão que não fosse inescrutável, a verdade seja dita. Viu-o abrir a boca para falar, mas se adiantou: -Sinto muitíssimo - se desculpou com voz muito alta e um pouco ofegante - Pamela estava indisposta; Phillip, insuportável; e Pauline, a ponto de protagonizar uma manha de criança. Deixei Pamela com sua babá, convenci ao Philip para que se comportasse como um cavalheiro durante ao menos cinco minutos e tirei Pauline da carruagem para tranquilizá-la. Mas a pobre está cansada e como tudo lhe é desconhecido insistiu em ficar comigo. Assim... - De repente, ficou sem palavras. Soltou uma gargalhada - Assim aqui estou. Pauline se agarrou mais a ela, virou o pescoço para olhar de esguelha ao duque e lhe torceu um pouco mais o chapéu no processo. -Bem-vinda a Lindsey Hall, senhora Derrick - recebeu-a o duque de Bewcastle, e por um instante acreditou ver um estranho brilho nesses olhos prateados. - me Permita lhe apresentar a minha família. Virou-se e indicou à primeira pessoa da fila, uma mulher de porte altivo já entrada em anos, a quem reconheceu na hora como uma das aristocratas mais enjoadas embora nunca tinham sido apresentadas.


-A marquesa do Rochester, minha tia - disse o duque - E o marquês. Fez a melhor reverencia que pôde com uma menina de três anos nos braços. A marquesa inclinou a cabeça e a observou de cima abaixo com uma só olhada com o que lhe deixou bem claro que acabava de despachá-la por sua insignificância. O marquês, cuja pessoa era a metade que a de sua esposa, fez uma reverência e murmurou algo ininteligível. -Lorde e lady Aidan Bedwyn - prosseguiu o duque ao mesmo tempo que indicava um cavalheiro de porte militar, aspecto sério e cabelo escuro que se parecia muito a ele, salvo que era mais largo de ombros, e a uma dama muito bonita de cabelo castanho que lhe sorriu enquanto seu marido fazia uma reverência. -Senhora Derrick - a saudou a mulher - Essa pequena está a ponto de ficar adormecida. -Lorde e lady Rannulf Bedwyn - continuou o duque. Lorde Rannulf não se parecia em nada a seus irmãos salvo por alguns traços faciais, em especial o nariz. Era uma espécie de gigante de cabelo loiro e ondulado, possivelmente muito longo. Ao vê-lo pensou em um guerreiro saxão. Sua esposa era uma beleza ruiva, espantosa e voluptuosa que também lhe sorriu com amabilidade ao mesmo tempo que seu marido fazia uma reverência. -Senhora Derrick - disse ele com um brilho travesso nos olhos - Lady Renable achava que tinha fugido. -Por Deus! - Soltou uma gargalhada - É possível que a babá não tivesse sobrevivido se não fosse em seu resgate. As viagens e as crianças não são uma boa combinação, sobre tudo se estamos falando de três criaturas encerradas, dois dias seguidos, durante horas em uma mesma carruagem. -Os marqueses de Hallmere - disse o duque de Bewcastle. Saltava à vista que a marquesa era quem pertencia à família. Era baixa e se parecia muito a seu irmão, lorde Rannulf. Também tinha o nariz da família... e a altivez. -Senhora Derrick - a saudou com uma inclinação formal de cabeça enquanto seu marido, um alto adônis loiro, fazia uma reverência, sorria-lhe e perguntava se a viagem tinha sido agradável. -Sim, muito obrigada, milord - respondeu. -Lorde e lady Alleyne Bedwyn - prosseguiu o duque. Lorde Alleyne, concluiu na hora, era o irmão bonito. De cabelo escuro, magro, com feições perfeitas apesar do nariz familiar e uns olhos risonhos... talvez zombadores, talvez alegres nada mais. Eram os olhos de um descarado. Fez-lhe uma reverência muito elegante enquanto pronunciava as cortesias de rigor. Lady Alleyne também era encantadora. Outra beleza, em seu caso loira. -Meu tio acha ter conhecido seu defunto marido, senhora Derrick - lhe disse - Eu gostaria de apresentá-lo mais tarde... quando deixar a essa pobre criatura na ala infantil e veja seu dormitório. -Os condes do Rosthorn - continuou o duque, indicando ao casal que estava em última posição. -Encantado de conhecê-la, madame - disse o conde com um ligeiro e atraente acento


francês ao mesmo tempo que fazia uma reverência. -Senhora Derrick, foi uma cortesia que pegasse esta pequenina que parece cansadíssima - comentou a condessa enquanto acariciava a face de Pauline com os dedos e sorria ao ver que a menina a olhava com um olho entrecerrado. Talvez lorde Alleyne fosse o irmão bonito, pensou, mas a jovem condessa do Rosthorn era claramente a beleza da família. De cabelo escuro e muito magra, tinha feições e uma figura perfeitas. O duque de Bewcastle devia ter dado uma ordem silenciosa, arquear uma sobrancelha talvez? Porque uma criada apareceu no vestíbulo e se deteve a escassa distância em espera de suas ordens. -Senhora, acompanhará-a para a ala infantil e depois a seus aposentos - informou o duque de Bewcastle - E dentro de meia hora alguém a acompanhará ao salão para tomar o chá. -Obrigada - replicou, virando-se para olhá-lo. -E quando Wulf diz meia hora - assinalou lorde Alleyne com uma gargalhada - quer dizer trinta minutos exatos. A expressão do duque era muito séria e impassível. Como era possível que tivesse insistido tanto para que fosse a Lindsey Hall? Ou que tivesse convidado a toda à família de Oscar como desculpa para poder convidá-la a ela também? Em seus olhos não se vislumbrava nada salvo uma fria cortesia. Como se odiava por alegrar-se tanto de voltar a vê-lo! Tinha estado desejando com todas suas forças vê-lo de novo, a verdade fosse dita. Isso queria dizer que estava obstinada em levar uma vida desventurada? A julgar pelo exterior de sua mansão e por esse vestíbulo, por sua aristocrática família, pelo entorno no que se movia, era evidente que jamais poderiam funcionar como casal, embora fossem compatíveis a nível pessoal, coisa que certamente não eram. A ideia de converter-se em duquesa era ridícula como pouco. Seguiu à silenciosa criada em direção a escadaria... e sentiu uma repentina frustração. Tinha imaginado que chegaria a Lindsey Hall toda composta e elegante com sua roupa nova, representando a viva imagem de uma dama educada, e que saudaria o duque de Bewcastle junto ao Melanie e Bertie, com um sorriso distante, controlando plenamente a situação. Em troca... Bom, parecia haver-se sufocado e acalorado durante o trajeto entre a carruagem do Bertie e a porta principal de Lindsey Hall. E seu chapéu estava definitivamente inclinado, já que de esguelha conseguia ver vários centímetros mais do lado esquerdo da aba que do direito. Além disso, assim que pôs-se a andar se deu conta de que levava a capa torcida de tal modo que tinha acabado puxando do vestido para cima, e quando se olhou os pés percebeu que estava mostrando muito um dos tornozelos, embora por sorte os levava cobertos por suas novas botas de cano longo. Para cúmulo, em lugar de esperar a que o duque a saudasse para lhe sorrir com calculada elegância, pôs-se a falar sem tom nem som! Sim, não podia negá-lo. Pôs-se a falar sem tom nem som e em voz bastante alta para que todos escutassem cada uma de suas palavras. E depois lhe tinha apresentado a


seus irmãos, a seus respectivos cônjuges e a incrivelmente arrogante marquesa do Rochester... com a roupa torcida, o chapéu inclinado, as faces ruborizadas e uma menina que nem sequer era sua nos braços. Era suficiente para pôr-se a chorar. Era suficiente para convencer ao duque de Bewcastle de que nenhum homem, muito menos ele, quereria converter-se no homem de seus sonhos. E essa ideia era suficiente para que tivesse vontade de voltar a chorar a lágrima viva.


Capítulo 15

Enquanto tomava o chá no salão, Wulfric se esforçou por prestar atenção a todos os convidados salvo Christine Derrick. Tinha organizado a distribuição dos comensais para o jantar de tal modo que estivesse sentada bem longe da cabeceira da mesa, entre Alleyne e Joshua, enquanto que a seu lado se sentariam lady Elrick, à esquerda, e lady Mowbury, à direita. Não queria que sua família suspeitasse que ela era, em realidade, a convidada de honra. Como era habitual, ia vestida com simplicidade. Usava um vestido de noite verde claro de talhe alto e manga curta, com um discreto babado na barra e um decote recatado. Nada de jóias nem de adornos no cabelo. Seu traje era bonito e decente, mas embora não fosse um espectador objetivo, devia reconhecer que não igualava o esplendor de suas irmãs, nem o de suas cunhadas, nem o do resto das damas pressentes. Não obstante, a seção da mesa a que se sentava transbordava de alegria e engenho enquanto primeiro Alleyne e Joshua depois falavam com ela... ou isso lhe pareceu, já que não escutou nenhuma palavra da conversa. Depois do jantar, quando os cavalheiros se reuniram uma vez mais com as damas no salão, descobriu-a sentada em um canto da sala, longe do fogo, com Eve, Rachel e a senhora Pritchard. Seus olhares se encontraram brevemente e não lhe causou surpresa ver o brilho risonho que iluminava esses olhos azuis, como se estivessem lhe dizendo que tinha fracassado estrepitosamente em seu plano de converter-se em uma espectadora discreta que observava a humanidade sem participar de suas atividades. Em lugar de enfrentar seu olhar, decidiu prestar atenção ao resto dos convidados e sem saber muito bem como, ao cabo de um momento se encontrou realizando a muito tediosa tarefa de passar as páginas da partitura à senhorita Hutchinson enquanto a moça tocava o piano, de forma competente, embora um tanto nervosa em sua opinião. Uma vez que acabou e lhe dedicou os elogios pertinentes, afastou-se para aceitar a xícara de chá que lhe oferecia Judith, encarregada de servi-lo, e acabou conversando com sua tia e com a senhorita Hutchinson de novo, embora a primeira se desculpou uns minutos depois, dizendo que Rochester acabava de lhe fazer um gesto para que se aproximasse, e se afastou com presteza agitando as plumas que levava na cabeça. Rochester, conforme comprovou, estava jogando cartas com o Weston, lady Mowbury e a senhora Pritchard, e certamente nem sequer recordava que sua esposa estava no salão. A senhorita Hutchinson, que já tinha mostrado indícios de nervosismo, pareceu estar a ponto do desmaio quando se converteu na única pessoa com quem continuar conversando. Morgan se aproximou deles nesse instante com um sorriso, mas antes de que a senhorita Hutchinson pudesse aferrar-se a ela como se fora sua tábua de salvação, a tia Rochester caiu sobre eles em picado e levou Morgan com uma desculpa ridícula. Aquilo já passava de enjoativo, decidiu. Fazia mais de uma década que não era objeto das artimanhas casamenteiras de sua tia. -Senhorita Hutchinson – disse - vejo que há um grupo de jovens congregado em


torno do piano. Gostaria de unir-se? -Sim, por favor, excelência - respondeu a moça. Sua tia devia ter perdido a razão por completo, pensou, se achava possível um enlace entre essa jovem e ele. Entretanto, quando se colocava uma coisa entre sobrancelha e sobrancelha, não era fácil fazê-la mudar de opinião. Se não queria voltar a encontrar-se a sós com a senhorita Hutchinson em questão de cinco minutos, ia ter que tomar atitude no assunto e procurar uma alternativa. De modo que fez o que desejava. Aproximou-se do lugar da sala onde nesse momento Christine Derrick estava sentada a sós. Plantou-se frente a ela enquanto a olhava e voltou a deleitar-se com a ideia de que realmente estava em Lindsey Hall. depois de que os Renable fizessem sua entrada no vestíbulo pensou durante um espantoso lapso de tempo que tinha mudado de opinião e que não os tinha acompanhado. E imediatamente, quando a viu entrar ruborizada e sem fôlego, com o chapéu torcido, o vestido e o casaco erguidos em um lado, e a menina nos braços justo antes de que ficasse a falar sem tom nem som, recordou a conclusão a que tinha chegado fazia tanto tempo: carecia de boas maneiras. Entretanto e ao mesmo tempo, teve a estranha impressão de que se o sol se deixou ver em algum momento durante o rude dia, Christine Derrick se ficou com sua luz e a tinha levado consigo ao interior de seu vestíbulo. Jamais lhe tinha passado pela cabeça a possibilidade de apaixonar-se. Nem que o objeto de dito sentimento fosse alguém tão inapropriado. De modo que não estava preparado para enfrentar ao torvelinho emocional que esses dois fatos tinham provocado. -Bem, senhora Derrick... - disse. -Bem, excelência... -Confio em que tudo seja de seu agrado. Seus aposentos? O serviço? -Meu quarto é lindo – afirmou - e tem uma vista maravilhosa. A governanta foi muito amável comigo. Inclusive insistiu em me atribuir uma criada pessoal, embora lhe assegurei que não necessitava de seus serviços. Inclinou a cabeça. Sua governanta, é obvio, limitava-se a cumprir as ordens que lhe tinha dado. Ele mesmo tinha escolhido o quarto que ocupava Christine Derrick, em parte porque acreditou que lhe agradariam as tapeçarias de seda da China, os biombos, os alegres tons dourados e verdes da colcha e das cortinas, e em parte porque quis que quando olhasse pela janela visse a fonte rodeada pelas flores primaveris e, atrás dela, a longa e reta avenida de acesso. Sempre tinha acreditado que essa vista em concreto era uma das melhores da propriedade. E era a mesma que ele desfrutava de suas próprias janelas, embora seus respectivos aposentos estavam separados por três dormitórios. Também tinha suposto que não teria criada pessoal. Seria a única dama da casa sem ela. Simples e sinceramente inconcebível. Sentou-se em uma poltrona próxima a que ela ocupava depois de erguer as abas do fraque. -Espero que a viagem tenha sido agradável. -Sim, obrigada - assegurou ela. -Sua mãe está bem? E sua irmã? -Ambas estão bem, obrigada.


-Espero que sua outra irmã, a esposa do vigário, também esteja. E seus sobrinhos. -Todos estão bem, obrigada. - Olhou-o com o indício de um sorriso nos lábios, embora seus olhos riram abertamente dele - E Charles, o vigário, também está. Quando tinha começado a adorar essa forma tão peculiar que tinha de rir dele? -Alegra-me sabê-lo. - Os dedos de sua mão direita se fecharam em torno da cabo de seu monóculo, e por um instante os olhos do Christine Derrick seguiram o gesto, do que até esse momento não tinha sido consciente. Não era um homem particularmente sociável. Evitava as festas e as conversas insossas sempre que lhe era possível. Não obstante, era um cavalheiro e, portanto, era capaz de manter uma conversa educada quando a ocasião o requeria. E a situação o requeria essa noite em concreto. Tinha convidados em sua própria casa. E todos, incluídos seus irmãos, tinham sido convidados por culpa dessa mulher, por sua necessidade de tê-la em Lindsey Hall e de cortejá-la de algum jeito. Não lhe ocorria nada que lhe dizer. -Surpreendeu-me encontrar a ala infantil cheia de crianças - disse ela - e que muitos deles fossem tão pequenos. -Meus irmãos demonstraram ser muito prolíficos durante estes últimos anos –replicou - Mas não tem por que temer que tomem a casa por assalto ou que recorram a você quando necessitarem algo, as babás se encarregarão de mantê-los ali. Tinha decidido que sua própria família devia limitar o uso da mansão no que aos meninos se referia uma vez que chegassem os convidados. -Fico mais tranquila - replicou ela em voz baixa - Serão mantidos na ala infantil. Que conveniente para as classes enriquecidas é ter babás e alas infantis que os ajudem a esquecer a existência de seus próprios filhos... salvo para o assunto da sucessão. -Preferia que estivessem constantemente no meio? - perguntou-lhe - Interrompendo a todas as horas as conversações dos adultos e pondo a prova sua paciência? -Segundo minha experiência - respondeu - costuma ser o inverso. São os adultos que interrompem constantemente as conversas das crianças e quem põe a prova sua paciência. Entretanto, os adultos e as crianças podem coexistir para felicidade e benefício de ambas as partes. -De tal modo que os adultos devem montar em tapetes voadores com os meninos e agitar os braços enquanto sobrevoam o oceano Atlântico sem molhar os pés - respondeu não? -Ai, Deus! - exclamou ela, ruborizando-se - Assim foi testemunha de parte da lição de geografia, não é? Um pouco grosseiro de sua parte o haver-se colocado frente à cerca com o sol nas costas, o que dificultava que o víssemos. Não gostou de meus métodos? Acredita que me não me comportei com decoro? Teria sido melhor sentá-los ordenadamente sobre a grama para assim poder demonstrar minha superioridade física e intelectual? Teria sido melhor lhes dar uma lição de história sobre o comércio de peles no interior da América do Norte, além da fronteira canadense, e descrever desse modo as rotas em canoa dos viajantes, os rios que percorrem ou a flora e a fauna da zona que atravessam? Dar uma lista da comida que levam consigo e das mercadorias que logo trocam por peles? Nesse caso teria estado justificado meu aborrecimento no dia seguinte


quando descobrisse que nem um só menino recordava o menor detalhe sobre a lição? Muitas pessoas falavam tão só com os lábios. A senhora Derrick o fazia com os lábios, com os olhos, com o rosto, com as mãos, com o corpo... e com tudo o que levava dentro. Falava assim como vivia: com fogosidade, inclusive com paixão. Escutou-a e observou com crescente fascinação. -Em realidade, senhora Derrick - respondeu - eu adorei. -Ah! Tinha-a deixado sem palavras. Porque se tinha preparado para uma discussão. Talvez, pensou fora de tempo, deveria havê-la vexado um pouco. -E apesar disso, você acha que as crianças devem estar na ala infantil? -Pergunto-me o que pensariam as crianças que temos lá em cima se de repente invadíssemos seus domínios sem motivo algum - disse. - Chegariam talvez à conclusão de que o conjunto de adultos deve estar no piso de baixo? Sua reflexão lhe arrancou uma gargalhada. -É uma possibilidade muito novidadeira, a verdade - respondeu ela - Minha irmã Hazel se passa o dia mandando as crianças calar no vicariato porque Charles está escrevendo ou reescrevendo seu sermão dominical, ou corrigindo a gramática que utilizam, ou lhes repreendendo pelas posturas, ou controlando suas atividades. Talvez meus sobrinhos estariam encantados de ter uma ala infantil que fosse seu domínio privado. -Isso quer dizer que não sou o monstro pelo que você me tinha tomado? - perguntou. -Acredito que devemos procurar um meio termo - prosseguiu ela - Aos adultos nos deve permitir desfrutar livremente sem que as crianças estejam pressentes, e a eles devemos lhes permitir desfrutar sem que nós lhes incomodemos. Entretanto, se não os virmos alguma vez, como vamos aprender deles? Como vão aprender eles de nós? -Podemos aprender das crianças? - perguntou-lhe. -É obvio. - inclinou-se para diante - Podemos aprender a ver o mundo de uma forma diferente através de seus olhos. Podemos aprender o que é a espontaneidade, a alegria, a curiosidade, a despreocupação e a risada. E o amor. -Atributos dos que eu careço, senhora Derrick - concluiu. Observou-a reclinar-se de novo na poltrona enquanto o olhava com receio. -Não saberia lhe dizer - replicou. -Eu acredito que sim - a contradisse, erguendo o monóculo a meio caminho de seu olho - Ou ao menos isso afirmou em uma ocasião. -Não deveria tê-lo feito – admitiu - Você não deveria me ter provocado até esse ponto. -Isso fiz ao lhe pedir em casamento? - perguntou em voz baixa ao mesmo tempo que a olhava com os olhos entrecerrados - Estava provocando-a? -Excelência - respondeu - deveria dar graças a Deus todas as noites pelo fato de que declinasse sua proposição. -Você acha? Voltou a comprovar que seus olhos eram do azul mais puro. Como o do mar em um dia de verão. Uns olhos nos quais podia afogar-se se não tomasse cuidado. -Olhe a seu redor, excelência - respondeu ela - Olhe ao resto das damas.


E o fez para agradá-la. Inclusive levou o monóculo ao olho. Percebeu que o vaporoso vestido dourado e as plumas do mesmo tom que Freyja levava no cabelo lhe outorgavam uma aparência magnífica. Para não mencionar os diamantes que brilhavam em torno de seu pescoço, em suas orelhas, em seus pulsos e em vários dedos. Embora sua aparência não fosse diferente das demais. Todas estavam vestidas com a mesma elegância e opulência. -Já o fiz - disse ao mesmo tempo que baixava o monóculo e olhava ao Christine Derrick. -E agora olhe a mim. Viu o mesmo que tinha visto durante o jantar. Era óbvio que o vestido que levava era novo. Certamente era mais elegante que os que lhe tinha visto no verão anterior, mas não deixava de ser simples. Além disso, não levava joias. Seu brilhante cabelo escuro não tinha adornos. Tinha as faces ligeiramente rosadas. Suas pestanas eram escuras e seus olhos, de olhar inteligente. Parecia que as sardas tinham desaparecido. Seus lábios eram carnudos, suaves e nesse momento estavam ligeiramente entreabertos. -Já o fiz - assegurou em voz baixa. -Agora me diga que não vê a diferença - o desafiou. -Vejo uma diferença abismal – admitiu - Porque nenhuma dessas damas é você. -OH! - O rubor que lhe cobria as faces se intensificou - Está muito engenhoso esta noite, excelência. -Engenhoso, diz você? – replicou - Acaso há um libreto? Deveria haver dito outra coisa? -Não pertenço a seu mundo - assinalou ela - Formei parte dele no passado por meu matrimônio, embora só como a esposa do caçula da família. Nunca tivemos muito dinheiro, sobre tudo nos últimos anos, e Oscar morreu endividado. Minha roupa nova, a qual escolhi com supremo tato e sem perder de vista seu preço, foi adquirida graças ao dinheiro que me enviou meu cunhado como presente quando soube que estava convidada à bodas de Audrey. Vivo muito contente em um vilarejo pequeno. Dou aulas às crianças. Sou a filha de um homem que foi um cavalheiro por sobrenome e por educação, embora não por suas riquezas. Meu avô paterno era um baronete, mas meu avô materno era médico. Deveria estar muito agradecido, excelência, por que tenha declinado sua proposta. Igual ao estou eu. Acredito que preferiria a morte a me casar com um duque. A veemência da afirmação o deixou desconcertado. -Essas são palavras maiores, senhora Derrick – disse - Preferiria a morte a casar-se com o homem pelo qual se apaixonou, fosse um duque ou um limpador de lareiras? -Mas não estou apaixonada - lhe assegurou. -Certas pessoas têm a curiosa habilidade de fazer como se respondessem a uma pergunta quando em realidade não o fiz - replicou. -Não acredito que fosse feliz se me casasse com um duque ou com um limpador de lareiras, excelência. Portanto, recai sobre mim a responsabilidade de não me afeiçoar com nenhum dos dois, já que em caso contrário me encontraria em uma alternativa espantosa, não lhe parece? Preferia a morte antes que me casar com o homem que amo... só porque seja um limpador de lareiras ou um duque? Você acha que acabaria sendo a heroína de


uma grande tragédia ao estilo das do Shakespeare se a resposta fosse afirmativa? Em qualquer caso, nem eu mesma saberia. Estaria morta e flutuando rio abaixo com o cabelo estendido sobre a superfície da água... se não tivesse cortado isso, claro. Sentiu que lhe caía a alma aos pés ao escutá-la. Não pensava aceitá-lo e lhe estava advertindo, tal qual tinha feito no Hyde Park, de que nada do que fizesse conseguiria fazê-la mudar de opinião. Ante ele tinha um estranho desafio. Não podia lhe oferecer nem seu título nem sua imensa fortuna, e não sabia como cortejar a uma mulher como um homem normal e comum. Além disso, embora soubesse como fazê-lo, seguiria sendo imune a ele porque era um duque e imensamente rico. Christine Derrick era uma mulher com os pés bem plantados no chão, embora talvez estivesse equivocada. Entre o espírito prático e um sonho, por que escolher o primeiro? Por que o sensato? Por que não o sonho? Por que não viver perigosamente? Era realmente Wulfric Bedwyn quem estava pensando e sonhando rebelando-se contra tudo aquilo que tinha regido sua vida durante mais de vinte anos? vivendo perigosamente? Claro que tinha convidado Christine Derrick a sua casa, não? Temia muito que seus sentimentos por essa mulher fossem mais à frente do mero amor. Receava muito que Christine Derrick se convertesse na pedra angular de sua felicidade. E esse pensamento em si mesmo era estranho e alarmante. Porque jamais tinha procurado a felicidade. Jamais a tinha considerado importante. Nem sequer tinha acreditado nela. Ou talvez sim. Durante os três últimos anos tinha visto todos e cada um de seus irmãos encontrar a felicidade e viver com ela. Tinha visto como os desmedidos e em ocasiões frios, ou desumanos inclusive, Bedwyn se convertiam nos ainda desmedidos embora quase domesticados e felizes Bedwyn. E, embora não tivesse sido de todo consciente, havia-se sentido deslocado e ligeiramente amargurado. E muito sozinho. O silêncio durava muito e compreendeu que Christine Derrick não ia rompê-lo. -Nesse caso – disse - se alguma vez se converter na protagonista de dito drama, espero que acabe sendo a heroína romântica em lugar da trágica. Talvez haja um professor de escola em algum lugar que consiga despertar sua admiração e seu amor incondicional. Espero que seja feliz com ele. Enquanto isso, farei tudo o que esteja em minha mão para que tanto você como o resto dos convidados passem uma Páscoa memoráveil em Lindsey Hall. O brilho risonho tinha desaparecido por completo de seus olhos. Viu-a inclinar-se para diante de novo. - Acho que você leva uma máscara de meio metro de grossura - o acusou-. Virtualmente impenetrável. Ofendi-o? -Como diz? - havia tornado a erguer o monóculo a meio caminho do olho. -Seus olhos voltam a ser dois pedaços de gelo - respondeu ela - Os olhos costumam ser o ponto fraco de qualquer disfarce, sabe você? Porque o portador do mesmo deve ver o mundo e deve deixá-los expostos por muito bem que oculte o resto de sua pessoa. Entretanto, seus olhos são seu disfarce... ou ao menos são a parte mais importante. É-me impossível vislumbrar sequer um pouquinho de sua alma por muito que os olhe. Se seus olhos eram dois pedaços de gelo, estavam gelando o resto de sua pessoa. Olhou-a do único modo que sabia fazê-lo... com gélida arrogância. De que outro modo ia


olhá-la? Como ia arriscar se A... ? - Talvez, senhora Derrick - disse - deveria mostrar meu coração ao mundo para lhe evitar a necessidade de me olhar nos olhos. Ah, me esquecia... que não tenho coração! -Excelência, acredito que estamos discutindo - afirmou ela - Entretanto, você o faz com seu inigualável estilo, esfriando-se e mostrando-se cada vez mais soberbo, em lugar de acalorar-se como estamos acostumados a fazer os insignificantes mortais. É uma lástima. -Preferiria ver-me enfurecido? - Arqueou as sobrancelhas. - Acho que eu adoraria - respondeu. -Embora fosse você o objeto de minha ira? Observou-o com expressão pensativa e a cabeça inclinada enquanto aparecia o indício de um sorriso no fundo desses olhos azuis. -Sim, inclusive nesse caso - respondeu - Porque se o visse enfurecido, poderíamos brigar de verdade. Suspeito que seria um homem muito perigoso em tal situação, embora talvez conseguisse me comunicar com o homem de verdade se perdesse os papéis. Em caso de que em seu interior exista um homem de verdade, e você não seja só um duque até a medula dos ossos. -Está-me ofendendo, senhora - advertiu em voz baixa ao mesmo tempo que sentia a imensa fúria que começava a apoderar-se dele. - Ah, sim? - Abriu os olhos como pratos – Ofendi-o? Enfureci-o? Pois espero ter obtido ambas as coisas. Não vim aqui por minha própria iniciativa, excelência. Não queria aceitar seu convite, e acredito que fui bastante eloquente a respeito. Pediu-me uma oportunidade para poder me demonstrar que há muito mais em seu interior além do que me revelou. De momento não vi nada. Entretanto, quando o acuso de levar uma máscara, de esconder-se detrás de uns olhos gélidos e de uma atitude arrogante, seu comportamento se torna ainda mais frio e me ataca me arrojando minhas próprias palavras à cara para que me sinta desconfortável. "Ah, me esquecia... que não tenho coração!", disse. Talvez tenha razão. Talvez não haja nenhuma máscara. Talvez minha primeira impressão sobre sua pessoa fosse a correta. Inclinou-se um pouco para diante, aproximando-se dela. -Pelo amor de Deus! – exclamou - Estamos discutindo de verdade. E embora você esteja aí sentada, sorrindo e falando em voz baixa, e eu recorra a minha frieza habitual, acabaremos nos convertendo no centro de atenção se seguirmos por este caminho. Seguiremos, mas este não é o momento nem o lugar. Se me desculpar, devo circular entre o resto de meus convidados. Quer que a leve para alguém? Para lady Wiseman, talvez, ou com lady Elrick? -Não, obrigada - respondeu - Aqui estou estupendamente. De modo que ficou em pé, fez-lhe uma reverência e se aproximou de uma das mesas onde jogavam cartas, deteve-se as costas de lady Renable e olhou a mão de naipes que tinha a dama sem ver nada. Tinha estragado o encontro, certamente. Sua intenção tinha sido a de passar uns dez minutos em sua companhia, a fim de conseguir que se sentisse confortável, tanto em sua casa como em sua presença, e começar desse modo a lhe demonstrar que era humano; em troca, tinha acabado... discutindo com ela! Era isso o que tinham feito? Nunca tinha


discutido com ninguém e ninguém tinha tentado jamais discutir com ele. Ninguém se tinha atrevido. Formava isso parte da fascinação que sentia por ela? Esse atrevimento? Continuava achando-a fascinante? Porque suas palavras tinham sido ofensivas. Carecia de boas maneiras e era uma intrometida. Tinha mencionado máscaras, olhos e pedaços de gelo. Tinha insinuado que além de carecer de coração tampouco tinha alma. "É-me impossível vislumbrar sequer um pedacinho de sua alma por muito que os olhe. " Lady Renable ergueu a cabeça para olhá-lo por cima do ombro e riu enquanto devolvia a carta que tinha estado a ponto de soltar ao montão que segurava na outra mão. Escolheu outra em seu lugar. -Tem muitíssima razão, Bewcastle – disse - Essa não era a carta adequada muito menos. Percebeu que Justin Magnus estava com a senhora Derrick em seu canto. Estavam conversando e rindo-se. Parecia feliz e tranquila uma vez mais. Apertou os dentes com força para não chiá-los e combateu o ciúmes. Essa seria a humilhação definitiva.


Capítulo 16

Depois dos outros se deitarem, os Bedwyn e seus respectivos cônjuges continuaram no salão... à exceção de Wulfric, que se retirou à biblioteca, seu domínio privado. -Achava que Wulf ficasse conosco - disse Morgan. -Bastante surpreendente foi que tenha aguentado toda a noite sem procurar uma desculpa para escapulir-se até que outros se foram - replicou Freyja. -Eu acredito que é o normal depois de ter convidado a todas essas pessoas a sua casa - disse Rannulf ao mesmo tempo que se sentava no chão aos pés de Judith e jogava a cabeça para trás para apoiá-la em seu regaço - Alguém sabe por que convidou ao Elrick, ao Renable e a todos outros? Não é que tenha nada em seu contrário, mas não parecem do tipo do Wulf, não acham? -Wulf tem um tipo específico? - perguntou Alleyne. -É possível que agora mesmo se alegre de ter mais convidados além da família disse Aidan, que se sentou em uma enorme poltrona junto à Eve e lhe passou um braço pelos ombros - A tia Rochester está em modo casamenteiro. Não sei se me compadeço mais da Amy Hutchinson ou do Wulf. -Wulf a comeria para tomar o café na manhã seguinte das bodas - afirmou Freyja com desdém - Josh, anda, me ajude a tirar estas tolas plumas do cabelo. Estão todas enredadas. -Supõe-se que tem que pedi-lo por favor, Free - assinale Rannulf. -Não me olhe assim, encanto - lhe disse Joshua, sorrindo enquanto se sentava no braço da poltrona e lhe afastava as mãos para ajudá-la - Eu não disse nada sobre sua falta de boas maneiras. -Talvez devamos fazer algo para ajudar - sugeriu Eve - Para manter a Amy longe do Wulfric e vice-versa. -A tia Rochester se defenderá com todas suas forças - declarou Alleyne - Está decidida. -Me permite assinalar que Wulfric é um digno rival para essa tia enjoativa? perguntou Gervase depois de colocar-se de costas à lareira - A ideia de que colaboremos em sua salvação me é um pouco absurda, a vocês não? Quase todos riram e lhe deram razão. -O que temos que fazer é encontrar uma distração - disse Morgan com o cenho franzido - Encontrar a outra pessoa para a Amy ou para o Wulf. -Não vejo o Mowbury no papel - comentou Aidan - Jamais conheci a um homem mais avoado. Duvido muito que percebeu a existência da moça. Quanto ao irmão, Amy lhe é mais alta ao menos uma cabeça... e além disso é o filho mais novo e não cumpriria as expectativas da tia Rochester. -Coisa que não o exclui como possível pretendente - assinalou Judith. -Também é muito magro e está meio calvo - atravessou Freyja sem disfarces - e certamente não cumpre as expectativas da própria Amy. -Nesse caso, terá que ser alguém para o Wulf - disse Morgan - Temos que encontrar a outra mulher.


-Teremos o mesmo êxito que teve o rei Canudo quando ordenou à maré que se detivesse - apontou Gervase com ternura. -E a senhora Derrick parece a única candidata a ser essa distração - disse Freyja. O comentário os silenciou durante uns minutos. Até que Joshua pôs-se a rir enquanto estendia a Freyja a última das plumas douradas. -Teria pago uma fortuna por ver como Wulfric a tirava da Serpentina e a levava em seu cavalo a casa – assegurou - Apostaria algo que não estava muito contente. -Sua entrada desta tarde foi também triunfal - acrescentou Aidan - Achei que à tia Rochester lhe sairiam os olhos pelas lentes dos óculos. -Eu temi que Wulfric a convertesse em um pedaço de gelo - disse Morgan - Mas não lhe fez nem um pingo de caso, verdade? Parecia um desastre, mas preferiu resgatar a essa menina antes que nos fazer uma reverência, e logo nos saudou esbanjando bom humor. -Sua coragem é admirável - comentou Freyja - Joshua sempre diz que somos um grupo formidável quando estamos juntos. Segundo ele podemos ser tão eficazes como um pelotão de fuzilamento, sem necessidade de fazer um derramamento de sangue. -De fato, a senhora Derrick me parece uma mulher muito simpática - disse Alleyne É uma boa conversadora e possui um senso de humor muito saudável. -Mas é totalmente oposta ao ideal de mulher do Wulf - lhe recordou Freyja ao mesmo tempo que passava uma mão pelo cabelo, livre por fim das plumas, e fazia uma careta ao perceber os enredos. - Podem imaginar isso aceitando-a como par embora Amy seja a única alternativa? As gargalhadas foram unânimes quando tentaram imaginar a cena. -Mas passou um tempo falando com ela esta noite, Free - assinalou Rannulf - e precisamente porque estava fugindo da Amy... ou melhor, da tia Rochester. -Mas não consentirá que volte a passar - lhe assegurou Freyja - Não, temos que procurar outra pessoa. -Mas não há ninguém mais, Free - assinalou Morgan - A menos que o conde de Redfield tenha convidado a alguém para passar as festas. Talvez a prima do Lauren esteja de visita. -Lady Muir? - perguntou Rannulf - Houve um tempo no qual eu gostava dela muito. Jogou a cabeça para trás e sorriu à Judith - Mas depois conheci Jude e me esqueci até de que existia. A aludida lhe deu um golpezinho na cabeça. -Eu não tenho muito claro que a senhora Derrick seja inadequada para o Wulfric disse Rachel de repente - É viúva e entre eles não há tanta diferença de idade como no caso da Amy. Parece-me muito bonita, fora dos cânones de beleza da alta sociedade, claro. E todos nos demos conta de como é alegre, de carinhosa que se mostra e de seu caráter risonho. Tem certa faísca que talvez seja justo o que Wulf necessita. -Wulf? - Rannulf a olhou sem dar crédito. Como o resto. -Wulfric possui uma capacidade de amar imensa - prosseguiu Rachel - A única coisa que precisa é que alguém o ajude a demonstrar esse amor. Rannulf soltou uma gargalhada e Joshua riu baixo. Alleyne se sentou junto ao Rachel, agarrou-lhe a mão e entrelaçou seus dedos.


-Rachel tem esta estranha certeza sobre o Wulf desde que o viu pela primeira vez comentou. -Eu fui a única que viu seu rosto quando voltou a ver Alleyne no dia das bodas de Morgan, depois de tê-lo dado por morto - disse. - Vocês só o viram correr pelo terraço e abraçá-lo. Mas eu vi seu rosto. E se alguém se atreve a dizer em minha presença que Wulfric é um homem frio e sem emoções, que se prepare para discutir comigo. -E a ira de Rachel é temível. - Alleyne levou suas mãos unidas aos lábios e lhe beijou os dedos. -Bravo, Rachel! - exclamou Freyja - Sempre admirei a qualquer que se atreva a arreganhar a um Bedwyn. -Tem toda a razão do mundo, Rachel! - afirmou Morgan - Jamais tinha contado isto a ninguém, salvo ao Gervase. De certa forma me parecia desleal, e ao mesmo tempo devo admitir que estava horrorizada. depois da missa em memória de Alleyne quando o demos por morto, fui à biblioteca de Bedwyn House porque necessitava do consolo de estar no mesmo aposento que Wulf. Menos mal que não me viu. Estava diante da lareira chorando. O embaraço e a surpresa os emudeceram a todos. -Chérie, não acredito que Bewcastle vá agradecer-lhe nunca que tenha contado essa espantosa história sobre ele - disse Gervase. -É obvio que Wulfric é capaz de amar - afirmou Eve - Ajudou ao Aidan e a mim a superar nossas diferenças quando já estávamos casados. E acredito que também ajudou a Freyja e ao Joshua, e ao Rannulf e Judith. Seria muito fácil dizer que o fez pelo bom nome da família e por orgulho, mas há muito que acredito que lhe importa de verdade. Além disso, por que foi Oxfordshire para assegurar-se de que meu primo não tirava ao Davy e ao Becky mas sim por amor? Mas de verdade acha que a senhora Derrick é a adequada para transpassar todas suas defesas, Rachel? Freyja soprou. -É obvio que o é - respondeu de forma inesperada - Não entendo como não nos demos conta antes. Não foi Wulf à festa campestre de lady Renable o verão passado? Certamente a senhora Derrick também esteve convidada. Além disso, não nos estivemos perguntando por que se dignou a resgatá-la do desastre na Serpentina quando, pelo que contam, a metade da alta sociedade estava presente para ajudá-la em caso de que ele não o fizesse? Não é próprio dele expor-se dessa maneira às fofocas e ao ridículo. E por que convidou a sua família a passar a Páscoa aqui quando de todos é sabido que não mantém uma estreita amizade com nenhum deles, salvo talvez com lorde Mowbury? Por que nos convidou? Normalmente nos convidamos sozinhos. -Não estará dizendo... ? - começou Alleyne. -E por que nos alinhou no vestíbulo esta tarde quando só era lorde Renable quem chegava? - continuou Freyja ao mesmo tempo que agitava uma mão no ar - Todos estranharam nesse momento. -Mãe do amor formoso! - exclamou Alleyne - Sim que o está dizendo! As mulheres têm uma imaginação maravilhosa, de verdade. Vão do ponto A ao ponto D sem olhar sequer os pontos B e C. Acha que Wulf já tinha os olhos postos na senhora Derrick, Free? -É muito provável - comentou Rachel, que virou a cabeça para olhar a seu marido nos olhos.


-Bem - interveio Aidan com voz enérgica - acredito que todos estamos de acordo em que terá que acabar com a desenquadrada ideia da tia Rochester de que Amy Hutchinson e Wulf podem combinar... pelo bem de ambos. E se emparelhá-lo com a senhora Derrick serve a esse propósito, proponho que o usemos. Se por acaso Wulf se apaixonar perdidamente dela, embora isso me parece que escapa inclusive à mente mais imaginativa estarei preparado para comprar um vestido novo para Eve para as bodas. -O que eu acredito, se em algo vale minha opinião, já que tratando-se dos Bedwyn sei muito bem que vão fazer o contrário do que lhes sugira... O que eu acredito é que deveríamos deixá-lo tranquilo. Não me ocorre nada mais ridículo que uma bemintencionada conspiração entre os Bedwyn para salvar ao Wulfric de um matrimônio mais que hipotético e empurrá-lo até outro muitíssimo menos provável. Estamos falando de Bewcastle, pelo amor de Deus! -Isso mesmo penso eu. - Gervase se pôs-se a rir. -Ridículo? - perguntou Freyja com altivez - Nos está acusando de ser ridículos, Joshua? E acha graça, Gervase? Aidan ficou em pé. -Acredito que é hora de que todos nos deitemos – disse - Se houver algo mais alarmante que os Bedwyn em plano casamenteiro, são os Bedwyn brigando, dentro de uns minutos começarão os murros e há duas ou três damas pressentes. -Duas ou três... ? - Freyja ficou em pé de um salto lançando faíscas pelos olhos. Entretanto, Aidan levantou uma mão e reinou o silêncio. Quando o propunha, podia ser quase tão formidável como Wulfric e além disso contava com a vantagem de ter sido coronel de cavalaria vários anos. -Freyja, sabe muito bem que em qualquer briga, seus punhos seriam os primeiros em golpear – explicou - E agora, à cama, e já veremos o que nos proporciona o novo dia. Eu estou quase convencido de que Wulf será capaz de frustrar os planos da tia Rochester e de evitar à senhora Derrick sem fazer nada mais extenuante que arquear uma sobrancelha e sem a menor ajuda por nossa parte. – Ofereceu o braço a Eve. -Há pessoas que sempre têm que dizer a última palavra - murmurou Freyja ao mesmo tempo que movia a cabeça. Rannulf e Alleyne se olharam e logo olharam a sua irmã com os lábios apertados. Joshua sorriu e lhe passou um braço pela cintura. Enquanto os Bedwyn estavam no salão, Christine estava com Hermione em seu dormitório. Sua cunhada se aproximou dela na escadaria de caminho a seus respectivos dormitórios e se convidou ela sozinha a acompanhá-la ao interior. Olhou-a com expressão insegura e a convidou a tomar assento em uma cadeira enquanto ela o fazia na beira da cama. -Ah, é um quarto lindo - disse Hermione depois de dar uma olhada - Deve ser um dos dormitórios maiores e elegantes da mansão. Nem sequer tinha reparado nisso. Tinha suposto que todos os quartos desse piso eram igualmente luxuosos. Mas Hermione deixou o assunto aí, sentou-se na cadeira e a olhou com seriedade. -Christine, Basil e eu estivemos falando e perguntamos a que vem este convite –


disse - Nossa relação com sua excelência é mínima e nunca antes tinha organizado uma festa no Lindsey Hall, por que nos convidou? É certo que tem amizade com o Héctor, mas o caso do Melanie e Bertie é idêntico ao nosso, embora Héctor o levasse a Schofield Park o verão passado. Não, chegamos à conclusão de que você é o motivo de nos terem convidado. -Eu? -Por estranho e quase incrível que pareça, acredito e Basil está de acordo comigoque sua excelência se há enamorado de você. Mordeu o lábio inferior. - É evidente que a marquesa de Rochester tem outros planos para ele continuou Hermione e tem muita influência. Além disso, sua família jamais aprovaria uma união semelhante, tem por certo. Ele tampouco. Em caso de estar encaprichado consigo, só lhe oferecerá uma aventura. -Tenta me advertir de que não me faça muitas ilusões? -perguntou. Sua cunhada franziu o cenho. -Estou-lhe pedindo que não se ponha em ridículo e que não ponha em ridículo a nós. Jamais será a duquesa de Bewcastle... a mera ideia é absurda. Mas se recorrer a seus ardis habituais, sua ambição ficará patente a olhos da marquesa e também a olhos dos irmãos de sua excelência, e a vergonhosa vulgaridade de seus atos afetará a todos. -Meus ardis habituais. - Sentiu que lhe gelava o sangue nas veias. -Fingir que cai de uma árvore quando está perto - explicou Hermione com uma nota amarga e triste na voz - Fingir que cai acidentalmente na Serpentina quando passa a cavalo pelo lugar. Estar casualmente no passeio dos laburnos quando ele decide passar por ali. Fingir que Héctor lhe fez muitíssimo dano quando em realidade lhe deu um simples pisão e demorar toda uma hora em voltar para o salão de baile. Tudo isso ao mesmo tempo que granjeia a admiração do resto dos cavalheiros convidados à festa campestre. O conde de Kitredge inclusive chegou a lhe propor casamento em Londres. Mas soube que o rechaçou por que conformar-se sendo condessa quando acha que pode ser duquesa? - Acho que é melhor que vá embora, Hermione - lhe disse. Sua cunhada ficou em pé e se aproximou da porta sem dizer palavra. Claro que as coisas entre elas sempre tinham sido assim, pensou de repente... ao menos durante os últimos anos da vida de Oscar, depois de sua morte e durante o verão anterior, e nesse preciso momento. Nunca falavam de verdade. -Espere! - exclamou, e Hermione a olhou por cima do ombro. Levantou-se da cama e se aproximou da janela. Afastou as cortinas, embora evidentemente não podia ver nada do exterior... só as gotinhas de chuva nos vidros e a escuridão reinante. -Houve um tempo quando você adorava meus contínuos desastres – disse Costumava me dizer que a alta sociedade estava encantada comigo apesar da risada que provocava. Que a risada era boa para a alma e para a alta sociedade. Que tinha um dom para atrair às pessoas, que lhes caía bem às damas, que lhes caía bem aos cavalheiros e que inclusive me admiravam porque era seguro fazê-lo por ser uma mulher casada. Oscar me queria e eu o queria a ele, fomos uma família feliz. Afirmava que eu era a irmã que


nunca tinha tido e sempre tinha querido ter. Você foi a irmã que eu necessitava para substituir às que estavam longe. O que mudou? Nunca o entendi. Era como um pesadelo do qual não podia despertar. De repente, todos meus foras eram vergonhosos e humilhantes para vocês. E de repente todos os cavalheiros com os que falava ou dançava, aos que sorria, eram vítimas de meus ardis coquetes. E não só paquerava com eles. De repente, tinha uma longa lista de amantes secretos. O que provocou essa mudança? Hermione seguia olhando-a por cima do ombro, produziu-se um breve silêncio. -Diga-me isso você, Christine - respondeu finalmente - Suponho que se cansou de Oscar. Deu-se conta de que podia atrair a um peixe mais gordo. Não sentia nada por ele... nem por nós. Piscou para conter as lágrimas. -Sempre quis ao Oscar – afirmou - Inclusive durante os últimos anos, quando começou a ficar difícil, quando começou a jogar sem cabeça e perdeu toda sua fortuna. Nem sequer então deixei de querê-lo. Era sua esposa. Nunca me passou pela cabeça enganá-lo. -Enfim, eu adoraria acreditar em você, Christine - disse Hermione - mas as duas sabemos que é mentira. Se não o fosse, Oscar seguiria vivo. -É incrível que me ache culpada disso - replicou - Supliquei-lhe em seu momento que perguntasse ao Justin por que não o fez? Teria confirmado minha inocência. -É obvio que perguntamos ao Justin - replicou Hermione com voz cansada - E é obvio que ele declarou sua inocência... uma e outra vez e muito indignado pelo fato de que pudéssemos duvidar de ti um instante. Mas sempre te defendeu, não é verdade? Sem importar a situação, Justin sempre esteve aí para defendê-la, para negar todas as coisas em seu contrário. Justin sempre esteve apaixonado por você, Christine. Seria capaz de cometer perjúrio antes de permitir que pensem mal de você. -Entendo – disse - Assim sou culpada. Só por seu afã de me defender. Pobre Justin. Seus esforços por me defender sempre tiveram o efeito contrário ao que pretendia. Enfim, tanto faz para mim o que pense. Embora possa ficar tranquila em um aspecto. Não estou aqui para ser a duquesa de Bewcastle. Já recusei essa posição e voltarei a recusá-la se voltam a me oferecer isso. Possivelmente seja mais consciente que Basil e que você de que seria uma união infernal... para os dois. Estou desejando que chegue o dia de voltar para casa para prosseguir com a vida que me tem feito feliz durante quase três anos... embora durante o primeiro chorasse pela perda de Oscar. -Christine. - De repente, Hermione também tinha os olhos cheios de lágrimas - De verdade que agora mesmo quero acreditar o melhor de ti Basil e eu queremos fazê-lo. É a viúva de Oscar. Assentiu com a cabeça. Parecia que não ficava nada por dizer. Supunha que acabavam de lhe estender um ramo de oliveira... outra vez. Hermione saiu do dormitório sem dizer nada mais, deixando a com a pouco invejável tarefa de tentar dormir em uma cama estranha em uma casa estranha enquanto dava voltas e mais voltas na cabeça à conversa com sua cunhada e também à briga com o duque.


Capítulo 17

Na manhã seguinte todos assistiram à missa da Sexta-feira Santa. Os convidados de mais idade foram em carruagem, mas a maioria foi à igreja andando, já que o tempo tinha melhorado bastante. Christine caminhava ao lado de Justin. O duque, conforme tinha percebido, levava a senhorita Hutchinson pelo braço, embora lorde e lady Aidan não se separaram deles em nenhum momento. Saltava à vista que a marquesa de Rochester estava promovendo um enlace entre o casal. Compadecia-se de todo coração da moça, uma jovenzinha bonita e de caráter doce... absolutamente adequada para o duque. Justin pareceu lhe ler o pensamento. -Pobre moça - disse, apontando com a cabeça em direção à senhorita Hutchinson Me pergunto se é consciente do grande preço que terá que pagar por converter-se em duquesa. De qualquer forma, suponho que sua tia o explicará tudo ao detalhe antes dos esponsais; Desde que consigam convencer ao Bewcastle, claro. Não disse nada. Não queria falar do duque, nem sequer com seu melhor amigo. Muito menos depois da conversa da noite anterior. Entretanto, Justin seguiu com o assunto. -Lady Falconbridge o entenderá, certamente – afirmou - Suponho que de qualquer forma não esperava que se casasse com ela. E sua amante também o entenderá, sim; não ficará mais remédio, a menos que abandone seu emprego, o qual suponho que será muito lucrativo. -Justin! - exclamou com voz tensa - Tem por costume falar com as damas destas coisas? A expressão de seu amigo se tornou contrita imediatamente. -Me perdoe – disse - Mas já sabe de lady Falconbridge, e como faz tanto tempo que tem uma amante, pensei que sabia. Um engano de minha parte; é uma dama. Mas demonstrou ser muito esperta. - Deu-lhe uns tapinhas na mão que descansava sobre seu braço - Ao recusá-lo. Suponho que não gostou muito disso. -Vou mudar de assunto agora mesmo - anunciou com firmeza - Héctor me há dito que dentro de pouco parte de novo para prosseguir com suas viagens e que vai com ele. É certo? Viu-o torcer o gesto. -Só se decide visitar um lugar civilizado - respondeu - A Itália, possivelmente. Escutou-o sem lhe prestar muita atenção. Não tinha o menor interesse nas mulheres do duque de Bewcastle. Era muito irritante que Justin a tratasse como se fosse um amigo em lugar de uma dama. O que o duque fizesse não era de sua incumbência, é obvio, embora empregasse a todo um harém de mulheres. Entretanto, foi impossível não recordar suas palavras quando afirmou que se casando, sua esposa seria a única mulher com a que compartilharia a cama durante o resto de sua vida. Uma afirmação que tinha acreditado em seu momento. Embora tampouco tinha importância, não é? Jamais seria sua esposa. Estava decidida apesar de que a tivesse convencido de ir a Lindsey Hall para cortejá-la.


Era realmente esse o motivo do convite? Custava-lhe acreditar. Evitou-o durante toda a manhã e se sentou bem longe dele durante o café da manhã e o almoço. Não obstante, encontrou-se de repente obrigada a lhe fazer companhia pela tarde. Lorde e lady Aidan anunciaram seus planos de levar a seus filhos a dar um passeio, lorde e lady Rannulf decidiram acompanhá-los com os seus e, ao cabo de um minuto, todo mundo tinha se unido a eles. O grupo se dispersou em busca dos casacos, chapéus e crianças depois de acordar encontrar-se de novo no vestíbulo. Por sua parte, estava encantada com a ideia de tomar um pouco de ar fresco e com o descobrimento de que os Bedwyn compartilhavam seu amor pelo ar livre. Aproximou-se de Audrey e a sir Lewis quando retornou ao vestíbulo, onde os meninos menores brincavam de correr emocionados ante a ideia de dar rédea solta a toda a energia contida. Abraçou Pauline e Pamela, que correram para ela assim que a viram antes de voltar com seus companheiros de jogos. Justin, que estava conversando com Bertie, fez-lhe um gesto para lhe indicar que se reuniria com ela breve. A marquesa de Rochester, que não ia acompanhá-los, desceu ao vestíbulo de qualquer forma para despedir-se... e para organizar um pouco. -Falei a Amy da rota que comunica o atalho agreste com o lago, Wulfric - disse com uma voz em que a que se sentia sua tendência a dar ordens - Deve se assegurar de mostrar-lhe. O duque correspondeu as palavras de sua tia com uma rígida reverência em sua direção e na da aludida, e a pobre senhorita Hutchinson se encolheu visivelmente ante a ideia de passar a tarde em sua companhia. -Tia, receio que terão que deixá-lo para outro dia - interveio a condessa da Rosthorn, agarrando à moça pelo braço ao mesmo tempo que dedicava um sorriso de desculpa a seu irmão e a sua tia - Prometi a Amy que falaríamos sobre sua apresentação à rainha, para a que faltam apenas umas semanas. Penso lhe oferecer toda minha experiência e todos os conselhos que possa lhe dar se por acaso lhe servem de algo. Viu que o marido da condessa, que falava com um encantador acento francês, levava um menino aos ombros; seu filho Jacques. Sabia seu nome porque essa mesma manhã tinha subido à ala infantil antes de ir à igreja para conhecer todos os meninos, incluídos os bebês. -Pobre Wulfric! - gritou lady Alleyne - Agora ficou sem par. Vamos ver se a senhora Derrick tem piedade de você... Justin, que acabava de pôr-se a andar para ela, deteve-se em seco quando o duque de Bewcastle se virou e lhe fez um gesto com a cabeça. -Senhora? - disse-lhe ao mesmo tempo que lhe oferecia o braço - Quer? Não lhe deixaram muitas opções, na verdade. Nem a ele tampouco, pensou enquanto lançava um olhar lastimoso a Justin e aceitava o braço de sua excelência antes de sair da mansão. Fez todo o possível por não olhar em direção ao Hermione e ao Basil. -Ao que parecia - disse o duque - as damas de minha família se uniram contra minha tia. Pergunto-me se em benefício da senhorita Hutchinson ou no meu. -No da senhorita Hutchinson, sem dúvida – replicou - É evidente que você a aterra. Percebeu que a olhava de esguelha, mas manteve a vista à frente. -Evidentemente, aceitei participar do passeio por você - o escutou dizer - Entretanto,


não tenho a menor intenção de ver-me assaltado pelas crianças nem de acabar com os tímpanos destroçados por seus gritos. Tanto eles como seus pais se dirigem ao prado e ao bosque. Nós guiaremos aos que sejam capazes de enfrentar o atalho agreste. -Suponho que jamais permite que quebrem sua tranquilidade - aventurou. -Não se posso evitá-lo – reconheceu - E em regra geral estou acostumado a consegui-lo. Estava desejando lhe mostrar a propriedade. Suponho que é muito mais pitoresca durante o verão, mas a beleza da primavera lhe outorga certo ar de frescura. Além disso, hoje faz um dia muito bom. Eu também gosto muito das paisagens invernais – assegurou - Apesar da morte que aparentam, encerram a promessa da ressurreição. O inverno nos ajuda a entender o poder, o mistério e a glória da vida. E depois chega a primavera. Eu adoro a primavera! É difícil para mim imaginar a propriedade ainda mais bonita. Atravessaram o prado que se estendia pela parte oeste da mansão a fim de entrar no atalho que corria colina acima em direção ao que supôs que era o atalho agreste e deixaram atrás algumas cerejeiras em flor. Os meninos e seus pais, um grupo buliçoso e entusiasta, prosseguiram pelo prado. -Senhora Derrick - disse o duque - acredito que é uma otimista sem remissão. Encontra você esperança inclusive na morte. -A vida em si mesmo seria uma tragédia se não compreendêssemos que é indestrutível - concluiu. Seguiram um atalho íngreme que subia entre árvores cujas copas brilhavam com o verde resplandecente das folhas novas, muito mais evidente pelo contraste com o verde escuro das árvores de folha perene. Depois de uma curva situada na parte mais alta, acessaram a um trecho plano e outras espécies arbóreas de maior altura. Nos espaços abertos o solo estava Coberto de narcisos silvestres e prímulas, de quando em quando viam parte da mansão ou dos jardins adjacentes através das árvores. Na parte leste da propriedade havia um enorme lago ladeado de árvores com uma ilha no centro. Alguns convidados tinham decidido passear também pelo atalho agreste, mas em seguida ficaram atrasados, incapazes de seguir o ritmo que tinham imposto. Depois da depressão da noite anterior se encontrava muito mais animada. E o que acabava de dizer era certo. A Páscoa começava com o sofrimento por uma morte e era um tempo de tristeza, mas atrás dela chegava a glória da ressurreição. O atalho continuou subindo de forma suave até alcançar o ponto superior da colina, onde se erguia um torreão em ruínas. -Pode-se subir? - perguntou. -De cima se desfruta de uma ampla panorâmica - respondeu o duque - Mas a escada é muito íngreme, tortuosa e escura. Talvez seria melhor seguir caminhando em lugar de nos deter. Olhou-o de esguelha. -Ou talvez não - se corrigiu Bewcastle - Se a memória não me falha, gosta de subir até as ameias dos antigos castelos. O comentário a fez rir. Subiu a escada com cuidado, mantendo-se colada à parede, lugar onde os degraus eram mais largos, e erguendo a barra do vestido com uma mão para não tropeçar. Sem


embargo, o esforço valeu a pena quando chegou à parte superior e contemplou a vista. Dali se apreciavam a enorme extensão e a beleza de Lindsey Hall, além das terras de trabalho vizinhas. A mansão parecia enorme e imponente. Se em lugar de haver dito "não" houvesse dito "sim", teria sido a proprietária e senhora de todo aquilo, pensou. E das outras propriedades que o duque mencionou durante o verão. E dele! Talvez ainda pudesse sê-lo. Estava cortejando-a? Não compreendia que era impossível? Virou-se para olhá-lo e o descobriu no degrau superior, observando a ela em lugar de admirar a paisagem. Tinha os olhos entrecerrados por causa do sol. -A vista é magnífica - disse, virando-se um pouco para as observar em sua totalidade. -Sim - reconheceu ele - certamente. - Mas a estava olhando a ela. E ele também era magnífico, concluiu. O marrom, o bege e o branco de seu traje, somados ao negro resplandecente das botas de montar, conferiam-lhe um aspecto impecável. A austera atitude de seu rosto completava a imagem do aristocrata consumado e refinado que projetava. Seria o sonho de qualquer retratista. Estavam apanhados ao meio metro de distância olhando o um ao outro, ele com os olhos entrecerrados e ela com os olhos arregalados, sem nada que dizer-se. Ao cabo de uns instantes Bewcastle deu um passo à frente e apontou com a mão para um ponto concreto da paisagem. Ela deu a volta para olhar nessa direção. -Vê o pequeno edifício situado entre as árvores ao norte do lago? - perguntou-lhe. Demorou um momento em localizá-lo, mas acabou por fazê-lo. Referia-se a um edifício com telhado de palha e planta circular. -O que é? – perguntou - Um pombal? -Sim - respondeu ele - Eu gostaria de mostrar-lhe mas está bastante longe. -E me vê incapaz de caminhar tanto? - perguntou entre gargalhadas. -Acompanha-me? - Tinha virado a cabeça para ela e seus olhares se encontraram e entrelaçaram de novo. -Sim - respondeu e teve a impressão de que o convite que tinha aceito era muito mais transcendental do que parecia. O resto do grupo que os acompanhava chegou ao torreão enquanto eles desciam. A senhora Pritchard e lorde Weston, lady Mowbury e Justin, e Hermione e Basil. Audrey e sir Lewis se atrasaram muitíssimo. -Vou continuar com a senhora Derrick, mas abandonaremos o atalho em uma das curvas - informou-os o duque de Bewcastle - Não se preocupem. Se continuarem caminhando sem desviar-se, acabarão de volta na mansão. Com o passar do caminho há vários pontos desenhados para descansar. Caminharam um curto trecho em silêncio antes de virar para a direita e abandonar o atalho, em direção a uma costa coberta de erva que deviam descer para chegar até as árvores que rodeavam o lago. O duque voltou a lhe oferecer o braço, já que a ladeira era bastante pronunciada e seria difícil descer sem escorregar. Em realidade, pensou enquanto recusava a ajuda de sua excelência, só havia um modo sensato de descer. Ergueu as saias por cima dos tornozelos e pôs-se a correr colina abaixo. A ladeira era mais longa e levantada do que tinha suposto. Quando chegou abaixo


com a aba do boné dobrada para trás, os cachos agitando-se em torno do rosto e gritando a plenos pulmões, estava a ponto de sair voando. Mas que emocionante tinha sido! Nesse instante se deu conta de que o grupo que levava as crianças se aproximava das árvores... e a maioria teria sido testemunha de sua vergonhosa descida. Pôs-se a rir ao mesmo tempo que olhava para trás para ver como o duque de Bewcastle descia a colina com porte majestoso, como se estivesse passeando pelo Bond Street. -Que colina mais estupenda para descer rodando! - gritou. -Se lhe for impossível resistir a tentação, senhora Derrick - disse ele ao chegar ao pé - esperarei-a aqui enquanto você sobe e depois desce rodando. Assumirei o papel de espectador. E depois se virou com as sobrancelhas arqueadas quando um eufórico grupo de crianças chegou correndo na clareira seguido pelos adultos. -Vamos subir? - gritou o pequeno William Bedwyn a seu pai, lorde Rannulf - Quero subir, papai! -Vamos! - exigiu-lhe Jacques ao dele. Daniel nem sequer perguntou, limitou-se a sair correndo colina acima até chegar na metade e depois correu para baixo com toda a velocidade que lhe permitiram suas pernas até aterrissar nos braços de sua mãe, lady Freyja, que o salvou de cair de bruços. O pequeno não demorou para escapar dela para voltar a subir. Saltava à vista que a colina ia ser uma zona de brincadeira durante um bom tempo. O duque de Bewcastle observou a seus sobrinhos com essa indecifrável expressão tão característica nele antes de virar-se para ela e lhe oferecer seu braço; entretanto, Pamela e Pauline lhe tinham adiantado ao tomar a de ambas as mãos. As meninas não paravam de falar de uma vez, melhor de gritar, exigindo que as olhasse embora Melanie e Bertie estivessem por ali perto. De modo que aceitou entre gargalhadas e as observou subir à carreira para participar do jogo de descer correndo. Beatrice Bedwyn foi primeira em fazer-se dano e pôs-se a chorar a lágrima viva até que seu pai a agarrou nos braços, subiu-a nos ombros e partiu para a espessura a pleno galope. Miranda Bedwyn, que mal sabia andar, convenceu a lorde Rannulf para que a acompanhasse uma pequena distância e assim poder descer arranca rabo de sua mão. Antes de chegar abaixo, seu pai a ergueu nos braços com um ensurdecedor rugido e chegaram à base com a menina gritando de alegria e exigindo uma repetição. Hannah Bedwyn se limitava a caminhar em círculos dando Palmas e rindo-se, com os olhos cravados em lorde Aidan até que perdeu o equilíbrio e aterrissou sobre um traseiro bem acolchoado. A animação era ensurdecedora. -Phillip e Davy vão subir - gritou Pamela com todas suas forças enquanto a agarrava de novo pela mão - e minha amiga Becky e eu também queremos subir! Veem conosco, prima Christine. Quando Becky a agarrou pela outra mão, nem lhe passou pela cabeça negar-se apesar de que acabava de descer a ladeira pouco antes. Subiu-a com as meninas e se detiveram a meio caminho para ver como os dois meninos corriam ladeira abaixo entre eufóricos alaridos. -Sabem que seria muito mais divertido baixá-la rodando que correndo? - disse-lhes quando se aproximavam da parte superior.


-Rodando!? - Becky soltou um risinho nervoso. - Como? -Terá que deitar-se de costas no chão com os braços estendidos por cima da cabeça - respondeu - e depois rodar para baixo. É a ladeira mais estupenda que vi na vida para descer assim. -Ensine-nos! - exigiu Pamela. -De acordo - aceitou ela – lhes ensinarei como se faz embora eu não participe. Seria um pouco indigno para uma senhora mais velha, não lhes parece? As meninas puseram-se a rir, encantadas, e ela as imitou. Uma vez que chegaram à parte superior da colina, deitou-se no chão e lhes mostrou a posição ideal para rodar costa abaixo. -É muito fácil - lhes assegurou - Se tiverem problemas para dar o giro inicial, eu as empurrarei. Mas tenham em conta que uma vez que comecem a descer, já não haverá... A frase acabou com um grito. Entre gargalhadas infantis, dois pares de mãos lhe tinham dado um empurrão que a enviou colina abaixo. Em um primeiro momento pensou em tentar deter-se, mas sabia por experiência que poderia machucar-se, sobre tudo em uma ladeira tão íngreme; e, além disso, em caso de que não se fizesse mal, a imagem que ia dar tentando encontrar com mãos e pés algum cabo seria muito humilhante. Ao cabo de um instante compreendeu que o momento de tentar deter-se tinha passado, de modo que continuou girando e girando colina abaixo entre gritos a uma velocidade alarmante. Quando chegou à base era incapaz de pensar com coerência e os gritos se transformaram em gargalhadas. Dois fortes braços a apanharam e dois olhos prateados de expressão séria a olharam de cima. Quando seus pensamentos recuperaram a coerência, compreendeu a quem pertenciam os ditos braços e olhos, e percebeu que todos estavam rindo salvo ele. Os gritos inundaram de novo o ar quando as meninas desceram rodando e a partir desse momento o jogo tomou outra dimensão diferente, porque todos os meninos quiseram as imitar. Phillip e Davy já subiam à carreira. -Já vejo que cumpriu seu desejo, senhora Derrick - disse o duque de Bewcastle. -Um espetáculo muito divertido! - exclamou lorde Rannulf com um sorriso que aumentou seu já de por si viril atrativo. -Estou morta de inveja - disse lady Freyja - Faz anos que não desço rodando por aí. Mas vou voltar a fazê-lo hoje mesmo. Davy, me espere! Enquanto se assegurava de que tinha os braços e as pernas decentemente cobertas, perguntou-se se teria deixado alguma fibra de erva na colina ou se as tinha levado todas consigo durante a descida... ficou em pé ao mesmo tempo que sacudia a roupa com força. -Wulf - escutou que dizia lorde Alleyne - agora que a senhora Derrick ensinou as crianças a divertir-se de verdade e desafiou ao Free, por que não a leva ao lago? -Se a senhora quiser - replicou o duque - isso é o que farei. Obrigado, Alleyne. Senhora? -Certamente - respondeu ela, rindo enquanto aceitava o braço de sua excelência - Já me pus em ridículo o bastante por um dia. Percebeu que o conde de Rosthorn lhe piscava um olho.


O duque a acompanhou pela da espessura e logo deixaram atrás o ruído e as risadas. -Só estava ensinando às meninas como se fazia - disse ao ver que o silêncio se prolongava muito - Me empurraram! Ele não replicou. -Terei dado um espetáculo muito constrangedor – prosseguiu - Seus irmãos acreditarão que sou uma criatura espantosa. O duque seguiu em silêncio. -E você também - acrescentou. Não soube muito bem o que lhe fez no braço nesse momento; mas, fosse o que fosse, de repente se encontrou com as costas coladas a uma árvore e com o duque de Bewcastle frente a ela, olhando-a com semblante sério e realmente perigoso. Uma de suas mãos descansava no tronco da árvore, junto a sua cabeça. -E lhe importa, senhora Derríck? – perguntou - Importa-lhe minha opinião? Sua opinião era bastante óbvia. Estava furioso com ela. Considerava-a vulgar e pouco feminina. Acabava de deixar ambos os defeitos bem claros diante de toda sua família. E como era sua convidada... seu comportamento o deixava a ele em muito mau lugar. De repente, recordou a advertência que Hermione lhe fizera na noite anterior. -Não - respondeu, embora fosse mentira. Porque lhe importava. -Supunha-o. - Sua expressão era gélida. -Não gosta de crianças, não é? – aventurou - Nem nada que recorde remotamente a uma reação infantil, exuberante ou eufórica. Para você o único importante é mostrar essa fria dignidade, essa reserva. Não lhe importa nada mais! É obvio que me importa um nada o que pense de mim. -De qualquer forma vou dizê-lo - replicou com os olhos iluminados por um gélido resplendor que supôs que se devia à fúria - Acredito que a puseram neste mundo para iluminar aos simples mortais, senhora Derrick. E também acredito que deveria deixar de supor que me conhece e me compreende. -Uf! - Pressionou a parte posterior do chapéu contra o tronco da árvore - Detesto que faça isso. Justo quando acredito que acabamos de nos encetar em uma satisfatória disputa, deixa-me sem palavras. Que complicações quis dizer com isso? -Que não me conhece absolutamente - respondeu. -Referia ao outro – especificou - o de iluminar aos mortais. Viu-o aproximar a cabeça um pouco mais, mas seus olhos ainda se assemelhavam a um par de resplandecentes pedaços de gelo. Uma contradição certamente curiosa! -Faz coisas impulsivas, pouco femininas, torpes e inclusive vulgares – reconheceu Fala muito, ri muito e brilha de um modo que não é absolutamente sofisticado. Entretanto, todo mundo se aproxima de você, como as traças a uma chama. Acredita que a gente a despreza, insulta-a e lhe dá as costas, quando acontece justo o contrário. Em uma ocasião me disse que não encaixava na alta sociedade. Não acredito que seja certo. Acredito que em realidade encaixa à perfeição; ou o teria feito se lhe tivessem dado a oportunidade. Não sei quem lhe colocou essa ideia na cabeça, mas quem quer que fosse estava equivocado. Talvez não pudesse resistir ao poder de sua luz, ou talvez não


suportava a ideia de compartilhá-la com o mundo. Talvez confundiu tal luz com paquera. Isso é o que opino, senhora Derrick. Estava assimilando a alegria de ver que a vida tinha voltado para Lindsey Hall com as crianças, muitas das quais são os filhos de meus irmãos... e justo então rodou você colina abaixo até meus braços. Não consinto que me diga que eu não gosto das crianças, nem da euforia, nem da alegria. Suas palavras a perturbaram grandemente. E ao mesmo tempo lhe provocaram um imenso júbilo. Tinha conseguido enfurecê-lo! Porque estava furioso com ela. E tinha dado rédea solta a seu aborrecimento. Jamais o tinha escutado pronunciar tantas palavras seguidas desde que o conhecera. -E eu não consinto que você me diga o que devo ou não devo dizer – contra atacou Talvez ostente um poder absoluto em seu mundo, excelência, mas eu não formo parte dele. Não tem poder algum sobre mim, detalhe de que devemos me alegrem depois de ter escutado sua descrição sobre minha pessoa acabaria envergonhando-o todos e cada um dos dias de sua vida; como fiz no Hyde Park. Como fiz há um momento. -A diferença de seu defunto marido ou de seu irmão, ou de quem quer que a convencesse de que é você uma coquete sem remédio - respondeu - acredito-me capaz de suportar o poder de sua luz, senhora Derrick. Minha identidade não minguaria a seu lado. E a sua não minguaria por meu poder. Em uma ocasião me disse que acabaria lhe roubando a alegria, mas se isso é o que pensa, asseguro-lhe que se está menosprezando. A alegria só se consome ao lado da debilidade. E não me tenho por um homem débil. -Não diz mais que tolices! - exclamou quando o duque se afastou por fim e retirou a mão do tronco - Para você outros só são peões que correm a cumprir suas ordens e desejos. E rege seu mundo com o simples gesto de arquear uma sobrancelha ou de elevar um dedo. É evidente que teria a necessidade de me controlar se fosse tão idiota para lhe outorgar poder sobre mim. Não tem nenhum outro modo de relacionar-se com as pessoas. -E você, senhora Derrick - replicou sua excelência enquanto se afastava uns passos dela, depois do que deu meia volta para olhá-la-, não tem outro modo de enfrentar à atração que sente por mim que não seja convencendo-se de que me conhece completamente, decidiu então que não levo nenhuma máscara? Ou que estava certa quando insinuou ontem à noite que era o duque de Bewcastle até a medula dos ossos? -Não me sinto atraída por você! - gritou. -Ah, não? - Ergueu uma dessas arrogantes sobrancelhas antes de fazer o mesmo com o monóculo - Nesse caso, mantém relações sexuais com todos os que a convidam a um lugar afastado depois de dançar com você? A fúria a invadiu. E se concentrou em um objeto concreto. -Agora sim que passou dos limites! - exclamou, aproximando-se dele com grandes passadas. Arrancou o monóculo da passiva mão que o segurava e, depois de lhe passar pela cabeça com brutalidade a fita que o segurava, lançou-o pelos ares com um iracundo giro do pulso. Ambos observaram a ampla trajetória ascendente cujo se localizou entre duas


árvores, depois do que começou a descer... embora nunca chegasse ao chão. A fita ficou travada em um ramo bem alto e a lente se limitou a balançar-se de um lado a outro como se fosse um pêndulo pendurado a um quilômetro do chão... ou isso se parecia com ela. Foi primeira em falar. - Desta vez não penso em subir à árvore - afirmou. -Alegra-me escutá-lo, senhora - replicou ele com a voz mais fria que lhe tinha escutado jamais - Detestaria ter que levá-la nos braços até a mansão com outro vestido arruinado. Virou a cabeça para fulminá-lo com o olhar. -Não me sinto atraída por você. Nem um ápice - lhe assegurou - E não sou promíscua. -Suponho que, quando voltarmos à mansão - disse ao mesmo tempo que olhava para o monóculo, ao qual a brisa balançava suavemente - limitará-se a arquear uma sobrancelha para que um exército de jardineiros corra a resgatá-lo. Porque não poderá erguer o monóculo, não é verdade? Embora seja possível que tenha um fornecimento infinito deles. -Oito - afirmou com brusquidão. - Tenho oito, ou os terei assim que esse em particular volte a estar em meu poder. - E com essas palavras se afastou dela. Em um primeiro momento pensou que ia deixar a só em penitencia pelos pecados cometidos. Entretanto, deu-se conta de que ia em direção ao velho carvalho com o fim de recuperar o monóculo. Viu-o subir pelo tronco exatamente igual a tinha descido pela colina: com agilidade e elegância. Quando conseguiu chegar à altura do ramo do qual pendia, ela tinha o coração na boca. Não obstante, o monóculo estava bastante afastado do tronco, de modo que teve que sentar-se no ramo e continuar avançando desse modo. -Tome cuidado, por favor! - gritou antes de cobrir a boca com as mãos. -Sempre o tenho - lhe assegurou ao mesmo tempo que liberava a fita e a soltava para que ela o recolhesse, embora continuasse sentado, observando-a - Sempre. Salvo no que a você se refere, conforme parece. De outro modo, ficaria sentado aqui acima até que você estivesse sã e salva em Gloucestershire. De outro modo, a teria evitado em Schofield Park como se fosse a peste. Me teria encerrado em Bedwyn House depois das bodas da senhorita Magnus e não teria tornado a sair até estar seguro de que você se encontrava a cinquenta quilômetros de Londres como pouco. Abandonei a ideia de me casar depois de um fracassado plano matrimonial quando tinha vinte e quatro anos. A partir desse momento deixei de procurar esposa. Se houvesse feito, jamais me teria fixado em você, asseguro. Teria tido muito cuidado na hora de escolher. E teria escolhido com sensatez. Para falar a verdade, é você a antítese da mulher que teria escolhido. -Tendo duas amantes, não estranho que não queira casar-se - replicou com sarcasmo e compreendeu, muito tarde, que a tinha incitado até levá-la a cometer a maior das vulgaridades. Como se atrevia a lhe dizer sem disfarces que era a antítese da mulher que quereria como duquesa!? Sua excelência seguia observando-a das alturas com expressão malhumorada... e bonito até o inexprimível.


-Duas... - escutou-o dizer - Uma para a semana e outra para os domingos? Ou uma para o campo e outra para a cidade? Ou uma para o dia e outra para a noite? Seu informante está muito desinformado, senhora Derrick. Minha única amante, a qual mantive durante anos, morreu faz mais de um ano e não sei de nenhuma outra. Estou seguro de que me perdoará a vulgaridade de ter mencionado a semelhante pessoa pois foi a primeira em trazer à luz. Mais de um ano. Nesse caso, tinha tentado substituir a dita amante em Schofield Park... com ela. -Consegue você que me sinta constantemente enfurecido e encantado - lhe confessou - Frequentemente ao mesmo tempo. Encontra alguma explicação? -Não quero encantá-lo! – gritou - Nem sequer quero enfurecê-lo. Não quero ter absolutamente nada que ver com você. Não entendo como pode sentir algo por uma mulher a que é óbvio que despreza. Imagine até que ponto me desprezaria caso se visse obrigado a viver comigo durante o resto de sua vida. Sentiu-se atravessada por esses gélidos olhos prateados. -Isso foi o que aconteceu a seu matrimônio? - perguntou-lhe ele. -O que lhe acontecesse ou deixasse de lhe acontecer a meu matrimônio não é seu assunto – repôs - Vai ficar todo o dia aí sentado... ou está esperando a que ponha rumo para Gloucestershire? É absurdo que continuemos discutindo desta maneira quando você corre o risco de cair e eu de sofrer um torcicolo por culpa desta postura. Sua excelência começou a descer sem dizer palavra. Observou-o em silêncio. Era um homem de físico atlético e muito viril, reconheceu a contra gosto. E sua presença lhe era inquietante. Porque acabava de ver que em seu interior havia muito mais que gelo e poder. Tinha sido testemunha de sua fúria e de sua frustração. Havia-lhe dito que o encantava... e que o enfurecia. Por que se atraíam os polos opostos? Perguntou-se. E bem opostos que eram em seu caso. Entretanto, os polos opostos não iam além da mera atração. Jamais podiam coexistir em harmonia e felicidade. Nunca, jamais! Renunciaria a sua liberdade pelo capricho de uma atração. Embora parecesse amor. O duque sacudiu a roupa enquanto ela se colocava o monóculo em torno do pescoço, ia encarregar se de que essa tarde não voltasse a utilizá-lo. -Já é muito tarde para ir ao pombal – disse - Teremos que deixá-lo para outra ocasião. Retornaremos ao lago... como Alleyne sugeriu. Esses olhos prateados posaram no monóculo, embora não fez nenhum comentário nem lhe exigiu que o devolvesse. -Sim - replicou ela, levando - as mãos às costas - Obrigado. "Acredito que a puseram neste mundo para iluminar aos simples mortais, senhora Derrick." Esqueceria algum dia o momento no qual lhe havia dito essas palavras? Umas palavras tão estranhas, que a tinham deixado à beira do pranto. Ele, muito desagradável e estúpido, era quem a deixava à beira do pranto.


Capítulo 18

Voltaram para a mansão, caminhando pela margem do lago. O vento soprava da outra borda e, embora fizesse um dia lindo, a sensação era a própria de um dia de princípios da primavera. Wulfric estava aniquilado pelo fato de ter perdido o controle com ela. Ele nunca perdia o controle. Embora tampouco se apaixonara nunca... até esse momento. Havia-lhe dito a verdade, enfurecia-o e o encantava ao mesmo tempo. Nesse mesmo momento estava tentado de deixá-la partir, de empreender a retirada, de recorrer uma vez mais à frieza, embora segundo ela nunca a tivesse abandonado e de esquecer-se dessa loucura de conquistá-la. Desde quando uma duquesa de Bewcastle rodava colina abaixo ante uma enorme audiência composta pelos membros de sua família, tanto adultos como crianças, entre gritos de júbilo e alegres gargalhadas? E tão incrivelmente formosa que tinha estado a ponto de erguê-la nos braços quando chegou aos pés da ladeira para lhe cobrir o rosto de beijos. Perguntou-se como teriam reagido seus irmãos, e os Renable, se tivesse cedido à tentação. Caminhavam em silêncio. Foi ele quem acabou por rompê-lo... a contra gosto. Não estava seguro do que suas palavras podiam chegar a provocar. Não estava seguro de querer conhecer a resposta, em caso de que ela estivesse preparada para dar-lhe Mas como ia amá-la se não a conhecesse de verdade? -Me fale de seus anos de matrimônio - lhe disse. Viu-a virar o rosto para o lago. Ao descer a vista, viu também que tinha seu monóculo ao pescoço. Por uns instantes acreditou que não ia responder lhe. -Era loiro, bonito, doce e encantador - respondeu ela - Apaixonei-me a primeira vista e, por incrível que pareça, ele se apaixonou por mim. Casamos dois meses depois de nos conhecer, e por um tempo parecia que seríamos felizes para sempre. Adorava a sua família, e eles me adoravam, inclusive seu irmão e sua cunhada. Adorava a meus sobrinhos. A vida na alta sociedade nunca foi fácil, mas de algum modo consegui que me aceitassem, inclusive que me recebessem com os braços abertos... Nisso você estava certo. Inclusive fui apresentada à rainha e recebi convites para o Almack’s. Me achava a mulher mais afortunada do mundo. Devia ter uns vinte anos naquela época. Uma jovem linda, carregada de sonhos românticos com seu belo marido com quem seria feliz para sempre. Sentiu uma onda de ternura por essa jovem. Se a houvesse conhecido naquele tempo, também se teria apaixonado por ela? -O que aconteceu? - quis saber. Viu-a encolher os ombros e seguiu um pouco encurvada embora não se queixasse do frio. -Oscar me surpreendeu quando cheguei a conhecê-lo melhor - respondeu - Apesar de sua atitude, seu encanto, sua posição e sua fortuna, era muito inseguro.


Emocionalmente dependia muito de mim. Adorava-me e mal permitia que me afastasse de sua vista. Não me importava... é claro que não me importava. Para mim, ele era o ar que respirava. Mas então começou a pensar que podia me perder. Começou a me acusar de paquerar com outros cavalheiros. Sua obsessão chegou a tal extremo que se falava, sorria ou dançava com outro homem, deprimia-se durante dias. E depois, cada vez que saía sem ele, embora sempre me acompanhava outra dama ou minha criada, pensava que era para me encontrar às escondidas com outro homem. Inclusive me acusou de... bom, dá no mesmo. Oscar Derrick, percebeu ele, era um homem fraco, e como tal foi muito possessivo. A medida de sua valia era a quantidade de atenção que lhe prestava sua esposa. E quando não lhe foi suficiente, porque jamais teria podido ser, converteu-se em um homem malhumorado e inclusive cruel. -Adultério? - sugeriu. Escutou-a inspirar fundo. Ainda tinha o rosto virado. -Hermione e Basil acabaram acreditando nele - prosseguiu ela - Deve ser terrível que o acusem de algo quando é culpado. Mas quando é inocente, é uma situação intolerável. Não, essa palavra não é bastante forte. É uma situação demolidora. Durante os últimos anos de meu casamento me despojaram de toda a alegria. E ao Oscar aconteceu o mesmo. Começou a beber muito e a apostar grandes somas de dinheiro. Nunca fomos ricos, mas sua fortuna era respeitável. Quando morreu tinha tantas dívidas que se tivesse seguido com vida, jamais teria podido saldá-las. Se não fosse por Justin, acredito que não teria podido sobreviver sem me tornar louca. Aparentemente, era o único amigo que restava. Sempre acreditou em mim, sempre confiou em mim, sempre me consolou. Mas por mais que o tentasse, nunca teve muita influência sobre seus primos. Tinha deixado de caminhar e estava olhando com os olhos entrecerrados um bando de patos que nadavam perto da ilha. Oscar Derrick lhe tinha feito um favor ao morrer jovem, pensou. -Seu marido morreu em um acidente de caça? - perguntou-lhe. -Sim. - A resposta foi imediata. -Em uma ocasião me disse que a tinham acusado de matá-lo embora não estava com ele quando morreu - comentou. -Morreu em um acidente de caça - disse, recalcando cada palavra. O vento açoitava a aba de seu chapéu e a parte inferior de seu casaco. Tinha pensado que era possível chegar a conhecê-la melhor essa tarde. Tinha planejado levá-la ao pombal, mas se demoraram muito na colina e logo se produziu a discussão no bosque. Nesse momento acabava de lhe dizer algo que suspeitava que não tinha contado a muitas pessoas, mas era evidente que ainda guardava segredos concernentes à morte de seu marido. Sentia-se decepcionado. Percebeu que queria ser seu amigo. Que queria que fosse sua amiga. Grande estupidez! Jamais tinha inspirado uma amizade sincera em outros. Continuou caminhando muito devagar, subindo a suave ladeira da colina que se afastava do lago para retornar à mansão através do arvoredo. -Dispararam-lhe em um duelo - escutou-a dizer de repente. Deteve-se na hora mas continuou em silêncio.


-Estávamos em Winwood Abbey - continuou ela, e ao virar-se para olhá-la se deu conta de que tinha os punhos apertados de ambos os lados do corpo. Viu-a voltar-se para encará-lo. Hermione e Basil se ausentaram durante uns dias e Oscar tinha saído para jogar cartas com um vizinho. Enquanto estava fora, chegou outro vizinho, um jovem solteiro. Oscar e ele tinham sido amigos desde meninos. Encontrava-me fora da mansão, e ele se negou a entrar porque Oscar não estava em casa. Acompanhei-o pela avenida porque tinha saído para fazer um pouco de exercício e ele tinha ido à casa a pé. Quando chegamos ao final da avenida nos encontramos com Justin... Costumava passar temporadas conosco. Justin também conhecia o senhor Boothby. Desmontou e os três ficamos ali conversando um bom tempo. Justin acabava de montar e eu estava me despedindo do senhor Boothby quando Oscar apareceu pelo caminho na garupa de seu cavalo. Ainda recordo que o senhor Boothby lhe gritou entre risadas: "Derrick, por fim voltou. Como esteve descuidando de sua mulher, levo mais de uma hora entretendo-a. Primeiro me pesca seu primo com ela e agora você". -Ah! - exclamou ele - Uma brincadeira pouco afortunada para qualquer marido. E de consequências desastrosas para um marido ciumento. -Não acreditou nem na minha afirmação de inocência nem na insistência de Justin ao lhe assegurar que tinha estado presente durante quase todo o tempo – continuou - Nessa mesma tarde Oscar cavalgou até a casa do senhor Boothby e o desafiou a duelo, arrastando ao pobre Justin com ele, e na manhã seguinte se bateram com pistolas. Foi espantoso, horrível. – estremeceu - O senhor Boothby disse que tinha apontado à perna de Oscar e que ali era onde lhe tinha disparado. Mas atirou em uma artéria e morreu sangrando, já que não tinham tido a precaução de levar um cirurgião. Hermione e Basil chegaram justo quando o estavam entrando em casa. Eles... - Agitou uma mão em sua direção e lhe deu as costas de repente - Sinto muito. Não posso... Saltava à vista que estava lutando contra as lágrimas e contra as lembranças. -Não acreditaram? - perguntou ao cabo de um momento. Viu-a negar com a cabeça. -Estava tão bonito... Parecia tão tranquilo... Eu... Mas não podia continuar. Seu primeiro impulso foi aproximar-se dela para abraçá-la com força. O instinto lhe advertiu que talvez precisasse estar sozinha. Se Oscar Derrick continuasse vivo, pensou, estaria mais que tentado de fazê-lo entrar em razão a base de golpes. -Contou a alguém esta história? - quis saber. Viu-a negar de novo com a cabeça. -Combinamos que todos diríamos que tinha sido um acidente de caça - respondeu ela - Desse modo o senhor Boothby evitava problemas com a lei e nós, o escárnio público. -Mas você era inocente - replicou. -Sim. - Virou a cabeça para olhá-lo por cima do ombro - Não posso acreditar que tenha contado isto precisamente a você. Não sabe quanto desejei poder contar a alguém. Sustentou seu olhar. Até certo ponto compreendia a reação de Oscar Derrick. Um idiota morto de ciúmes, indubitavelmente debilitado pela bebida e por dívidas desastrosas. Muito mais difícil de compreender era o papel que tinham interpretado os Elrick nessa


história. Pareciam pessoas sensatas. Mas, é obvio, Derrick era o irmão do Elrick. Quando estava implicada a família, nem sempre era possível enfrentar às pessoas e às situações com objetividade. O sangue, como rezava o ditado, era mais espesso que a água. -Obrigado - disse finalmente, com a estranha sensação de que lhe tinha dado um grande presente ao lhe haver contado a verdadeira história - Obrigado por me contar isso Pode confiar em minha discrição. -Sim - afirmou ela - Sei. Viu-a aproximar-se dele com as mãos entrelaçadas às costas e seu monóculo no pescoço. Retornaram à mansão caminhando o um ao lado do outro em completo silêncio. "Não crie vínculos emocionais com ninguém. " "Não tente compreender nem compartilhar as emoções de outra pessoa. " "Mantenha as distâncias. " "Concentre nos fatos. " "Decida sempre por agir com lógica em todas as situações e evite a impulsividade e as emoções. " Todas essas regras as tinham gravado a fogo os dois tutores que seu pai contratou. E finalmente tinha aprendido e tinha seguido-as ao pé da letra, tinha feito delas, regia-se por elas de forma inconsciente. A frieza e a lógica se converteram em uma parte essencial de seu caráter. Acabava de romper essas regras. Entrou na vida emocional de outra pessoa. E, que Deus o ajudasse, o vínculo emocional que o unia a ela era inegável. -Estou-lhes dizendo que atirou o monóculo a uma árvore. - Alleyne se deixou cair de costas na cama de Eve e Aidan, cobriu os olhos com uma mão e explodiu em gargalhadas. - Tinha que ser ela. Wulf não o teria feito nunca e essa intriga não subiu sozinho. E estavam discutindo, disso não havia dúvida. - Eu gosto dessa mulher! -exclamou Morgan ao mesmo tempo que se sentava na beira da cama e levava as mãos ao peito - É uma criatura atalhada por nosso mesmo patrão, não lhes parece? Depois de deixar as crianças na ala infantil, reuniram-se no quarto de Aidan porque Alleyne lhes havia dito que tinha algo muito importante para lhes dizer depois do seu passeio pelo bosque com Beatrice sobre os ombros. -Não me entra na cabeça que alguém tenha a temeridade de tocar sequer um dos monóculos de Wulfric, muito menos de tirar-lhe e lançá-lo pelos ares - disse Gervase entre risadas. Isto é divertidíssimo. -E lhe ordenou que subisse para pegá-lo? - quis saber Joshua - Lady Renable me comentou a princípio de nosso passeio que o ano passado a senhora Derrick subiu a uma árvore no jardim de uma igreja e deixou meio vestido em um ramo quando desceu... diante de quase todos os convidados do Schofield Park. Wulfric foi quem saiu em seu resgate. -Cada vez eu gosto mais - declarou Freyja - Quando a vi rodando colina abaixo, soube que era a mulher adequada para o Wulf. Foi ela a que subiu à árvore para


recuperar o monóculo, Alleyne? Enfim, tome seu tempo para responder, não se preocupe, termina primeiro de rir. -Não, não foi ela quem subiu - respondeu - Foi Wulf... e logo ficou sentado em um ramo fulminando-a com o olhar enquanto retomavam sua discussão. A imagem de seu irmão mais velho subindo a uma árvore a fim de resgatar seu monóculo para depois ficar sentado em um ramo e retomar uma discussão, foi muito para os Bedwyn e seus cônjuges. O ataque de hilaridade durou vários minutos. -Não escutei o que diziam - assegurou Alleyne quando se recuperou um pouco - Não teria ficado bem. A única coisa que escutei foi que Wulf dizia que era a antítese da mulher que escolheria e que a senhora Derrick lhe soltava com incrível desdém que era lógico que não queria casar-se tendo duas amantes. Fez-se o silêncio mais absoluto durante um instante depois do que voltaram a explodir em gargalhadas. -Pobre Wulfric! - exclamou Rachel ao mesmo tempo que enxugava os olhos com um lenço - Se tiver reagido de um modo tão descortês é porque está apaixonado. Aos homens pareceu muito engraçada a ideia de que Wulfric estivesse apaixonado, embora as mulheres estavam de acordo com Rachel. -Tenho que tê-la por cunhada - disse Freyja - E não penso deixar que me contradigam. -Pobre Wulfric - se compadeceu Joshua - Não tem a menor oportunidade. -Pobre tia Rochester! - exclamou Rannulf com um sorriso - Está tão decidida a emparelhar ao Wulf com a sobrinha de Rochester que não vê além de seu nariz... e isso quer dizer muito sendo uma Bedwyn. -Deveríamos descer ao salão para tomar o chá - recordou Eve - ou nos tomarão por mal educados... e a pobre Amy se encontrará sentada com o Wulfric em um tête-à-tête. -Devemos nos assegurar de que a senhora Derrick e Wulf passam mais tempo juntos - acrescentou Judith. -Acredito que podemos deixar isso em suas mãos, Jude - disse Alleyne ao mesmo tempo que se sentava na cama. -Pois não - o contradisse ela - Não teriam estado juntos esta tarde se à Morgan não tivesse ocorrido dizer que tinha prometido a Amy falar sobre sua apresentação à rainha. E se não tivessem estado juntos, não teriam tido a oportunidade de discutir. -E segundo a lógica feminina isso é bom? - quis saber Rannulf, que sorriu com ternura a sua esposa. -Se tivesse sabido que algum dia me veria envolvido em uma conspiração para casar Wulfric - disse Aidan com voz séria ao mesmo tempo que abria a porta para fazê-los sair me teria dado um tiro em algum campo de batalha e teria jogado a culpa aos franceses. Não obstante, é obvio que foram os Bedwyn quem convenceram Christine, apesar de seus protestos, de sair a cavalgar com eles na manhã seguinte. Dado que outros convidados também iriam, confiavam em que o dever do Wulfric como anfitrião o levasse a acompanhá-los. Não deveria ter aceitado a fazer algo assim, pensou Christine quando colocou o pé nas mãos de lorde Aidan para que a erguesse até a sela de amazona. Para os Bedwyn, sem exceção alguma, montar a cavalo era tão natural como


respirar. Assim como para a senhorita Hutchinson. Melanie, Bertie e Justin eram excelentes cavaleiros. Dela não se podia dizer o mesmo. Em primeiro lugar, não tinha traje de montar, de modo que levava um vestido de viagem verde escuro e um chapéu. Em segundo, teve que sofrer a humilhação de pedir, diante de todos, o cavalo mais manso de toda a quadra... Um coxo e meio cego seria como pérolas, disse a lorde Aidan, que estava selecionando as montarias. E em terceiro, uma vez na sela, ficou sentada muito tensa e decidida a não cair. Embora sabia que não lhe serviria de nada, aferrou-se às rédeas como se fossem a única coisa que a mantinha a salvo apesar de estar longe do chão. Como era de esperar, sua montaria, que não estava nem coxa nem cega mas que era o animal mais dócil que tinha existido jamais segundo lorde Aidan, começou a mexer-se com nervosismo desde o primeiro momento. Sabia o que ocorria, mas parecia incapaz de lhe pôr remédio. Tampouco ajudava o fato de levar quase três anos sem montar a cavalo, já que o trajeto que percorreu empapada da Serpentina até a casa do Bertie na cidade não contava. Os Bedwyn e seus cônjuges pareciam encantados de qualquer forma. Prorromperam em gritos de ânimo e conselhos, e ao ver que estalava em gargalhadas, imitaram-na. Saíram do pátio dos estábulos com ela no centro do grupo, e cavalgaram assim um momento para lhe dar uma falsa sensação de segurança. E depois a abandonaram. Um grupinho levou a senhorita Hutchinson, embora a marquesa de Rochester a tivesse encomendado ao cuidado do duque. Outro grupo levou Melanie e Bertie, Audrey e sir Lewis, e Justin. A única pessoa com a que podia cavalgar era o duque de Bewcastle. E viceversa. Sentia-se mais nervosa que nunca em sua companhia. Continuava sem poder acreditar que lhe tivesse contado a verdadeira história do acontecido em seu matrimônio e da morte de Oscar. Nunca tinha contado os detalhes a ninguém, nem sequer a Eleanor, a irmã com quem tinha mais confiança. Depois de fazê-lo, sentiu-se estranhamente reconfortada embora não lhe tivesse devotado palavras de consolo. Entretanto, nessa manhã se sentia envergonhada... e um pouco gelada a seu lado. Não lhe tinha devotado palavras de consolo. Certamente que não. Possivelmente estava aborrecido, embora lhe tivesse agradecido por contar-lhe. Na noite anterior manteve as distâncias com ela e essa manhã não lhe tinha dirigido a palavra durante o café da manhã. -Se queremos nos manter ao mesmo tempo com outros e chegar ao Alvesley Park antes do anoitecer, será melhor que consiga que esse cavalo fique em marcha e deixe de dançar, senhora Derrick - escutou-o dizer. Assim que seu cavalo perdeu a guia de todos outros, começou a fazer isso... bailotear sem mover do lugar. Soltou uma gargalhada, embora se sentisse um pouco envergonhada. -Temos que nos conhecer assegurou-. Só necessitamos de um momento. -Trixie, apresento-lhe à senhora Derrick - disse ele - Senhora Derrick, apresento a Trixie. -Eu adoro saber que consigo graças a tais cotas de engenho respondeu. Apertou a rédea que tinha na mão direita e Trixie obedeceu na hora traçando um círculo completo.


-Relaxe- indicou o duque-. Relaxe o corpo. Seu cavalo percebe como está tensa, e isso a põe nervosa. E relaxe as mãos. É mais uma seguidora que uma líder. Seguirá a Nobre se a deixar a seu livre-arbítrio. Parecia muito simples, só tinha que relaxar. Quando o tentou, entretanto, funcionou e Trixie seguiu como uma boa garota ao magnífico garanhão negro que o duque montava. -Agora espero não me encontrar de repente com uma cerca no caminho – disse Suponho que Nobre a saltaria sem demora, e dado que Trixie é uma seguidora, iria atrás dele. Temo que me deixariam estirada no chão do outro lado. -Prometo voltar por você - lhe assegurou ele. Soltou uma gargalhada e o duque a olhou com esses olhos inescrutáveis. -Me conte coisas de Alvesley Park e de sua gente - lhe pediu. Já que esse era seu destino, conforme tinha entendido-. É o lar do conde Redfield? -Assim é - respondeu. Supôs que isso era tudo o que ia dizer lhe e chegou à conclusão de que não se incomodaria tentando ter uma conversa enquanto cavalgavam. Se ele estava a gosto em silêncio, ela também. Entretanto, o duque começou a lhe contar coisas dos três filhos do conde. O primogênito tinha morrido fazia uns anos e o caçula trabalhava como administrador em uma de suas propriedades galesas. Tinha sofrido feridas terríveis na Península e ao que parecia estava decidido a demonstrar a todos que não era um inútil. Kit Butler, o visconde de Ravensberg, era o filho do meio e o atual herdeiro do conde de Redfield, e vivia em Alvesley Park com sua esposa e seus filhos. -As duas famílias sempre estiveram unidas? - quis saber. -Quase sempre - respondeu ele - Os filhos de Redfield e meus irmãos, Freyja incluída, foram companheiros de jogos... e Morgan se uniu a eles quando teve idade suficiente. -Mas você não? -Durante um tempo. - encolheu os ombros - Cresci antes que eles. Pronunciou as palavras com frieza e desdém. Acaso esse homem alguma vez tinha conhecido a alegria, nem sequer quando menino? Como se tinha podido acreditar apaixonada por ele? Como tinha podido lhe contar seus segredos no dia anterior? Ou discutir com ele? Quase se tinha esquecido da briga. Naquele momento não agiu com frieza. Uf, a complexidade desse homem era frustrante! -Durante um tempo - repetiu ela - Isso quer dizer que sofreram desavenças? Em seguida o duque passou a lhe narrar a extraordinária história do plano que o conde de Redfield e ele tinham combinado para consertar um matrimônio entre lady Freyja e o falecido primogênito do conde, um plano que tinha funcionado às mil maravilhas até que Kit retornou da Península um verão e lady Freyja e ele se apaixonaram. Lady Freyja renunciou a ele e anunciou seu compromisso com seu irmão, e Kit retornou à Península, depois de haver-se encetado em uma terrível briga com lorde Rannulf no jardim de Lindsey Hall uma noite. E três anos depois, já morto o irmão mais velho, o conde e ele combinaram um novo matrimônio entre lady Freyja e Kit, achando que o dito plano seria bem recebido por ambas as partes. Mas quando Kit retornou a casa naquele verão, supostamente para celebrar o compromisso, levou a atual lady Ravensberg consigo como sua noiva.


-Ah - disse ela - E lady Freyja ficou muito afetada? -Estava zangada - respondeu o duque - Se estava afetada, não o admitiu. Mas nenhum de nós, para disser a verdade, estava muito contente com Kit... e todos o fizemos saber tanto a ele como a sua noiva a nossa maneira. Embora as desavenças já ficaram no esquecimento. Freyja inclusive fez as pazes com lady Ravensberg depois de conhecer o Joshua. Era uma história muito complexa que no ano anterior não se teria dignado a lhe contar, compreendeu ao recordar a desapaixonada descrição que lhe tinha feito de suas propriedades e sua família, carente de detalhes supérfluos e emoção. Nesse momento percebeu que estava tentando abrir-se, tal como ela tinha feito no dia anterior. Estava tentando ter algum tipo de relação com ela. E em certo sentido estava cortejando-a. O duque falou durante quase todo o trajeto até Alvesley Park sem necessidade de que o animasse. Contou-lhe coisas sem necessidade de que lhe perguntasse. Resumiulhe as histórias de amor de seus irmãos e também lhe falou do espantoso verão de 1815, quando acreditaram durante alguns meses que lorde Alleyne tinha morrido na batalha do Waterloo, a qual foi para levar uma carta ao duque do Wellington por parte do embaixador britânico, a cujo serviço estava naquela época. -E então retornamos a Lindsey Hall da igreja depois das bodas de Morgan - disse, resolvendo a história - e ali estava, de pé no terraço, nos esperando. Percebeu que tinha uma espécie de nó na garganta. -Deve ter sido um momento maravilhoso - disse. -Sim - reconheceu o duque com brusquidão. - caiu do cavalo depois que lhe dispararam na perna em Waterloo, e bateu a cabeça com tanta força que é um milagre que sobrevivesse. Perdeu a memória uns meses. Foi Rachel quem o encontrou e quem cuidou dele até que se recuperasse. Olhou-o enquanto Trixie seguia placidamente a seu cavalo. E nesse momento descobriu algo que não estava muito segura de querer saber. Apesar da frieza de sua voz e severidade de sua expressão, estava revivendo algo que tinha sido extremamente emotivo para ele. "E ali estava, de pé no terraço, nos esperando. " Seria consciente do muito que se traiu com essas palavras? Piscou várias vezes e virou a cabeça para olhar à frente. Como lhe ia explicar o motivo de suas lágrimas se chegasse a vê-las? Chegaram a Alvesley Park, outra grande mansão, depois de um tempo e o duque a ajudou a desmontar antes de deixar os cavalos aos cuidados de um cavalariço e de levála com outros, que já estavam no interior. Foi um enorme alívio não estar mais tempo a sós com ele. Estava começando a jogar por terra alguns de seus preconceitos e não tinha nem um pingo de vontade de que isso acontecesse. Queria retomar a segurança de sua vida. Mas, sobre tudo, queria retomá-la sem remorsos, sem duvidar em nenhum momento de que isso era o que desejava tanto com a cabeça como com o coração. Ao longo da hora seguinte chegou à conclusão de que para não ter querido relacionar-se com os membros da alta sociedade em Schofield Park o ano passado e depois em Londres, depois das bodas de Audrey, tinha perdido o controle de seu mundo de um modo alarmante. Primeiro os Bedwyn, e logo os convidados dos condes de


Redfield. Depois de ser apresentada aos condes de Redfield e aos viscondes de Ravensberga a quem observou com atenção depois da história que acabava de lhe contar o duque, apresentaram a todos seus convidados, e não havia nenhum só sem título: os condes do Kilbourne, os duques de Portfrey, lady Muir, os condes de Sutton, o marquês de Attingsborough e o visconde de Whitleaf, todos eles parentes da viscondessa de Ravensberg. A situação era entristecedora. Entretanto e por sorte, havia tantas pessoas e tantas vozes falando de uma vez, que conseguiu encontrar um assento livre no fofo batente de uma janela do salão onde conseguiu passar relativamente inadvertida. E se dispôs a recuperar sua antiga ambição de ser uma espectadora satírica da humanidade em lugar de participar de suas tolices. O duque de Bewcastle se sentou com um grupo formado pelo conde de Redfield, o duque de Portfrey e Bertie, e logo esteve imerso na conversa. Por estranho que parecesse, era o mais aristocrático de todos os pressentes... e também o mais bonito. Um pensamento muito tolo, é obvio, sobre tudo porque tinha chegado à conclusão de que lorde Alleyne era o mais bonito dos irmãos Bedwyn e porque o visconde de Whitleaf era um jovem muito atraente com uns irresistíveis olhos violetas, cujo efeito estava sofrendo nesse instante Amy Hutchinson. E o marquês de Attingsborough, um homem alto, moreno, bonito e encantador, bastava para que qualquer mulher com sangue nas veias tropeçasse e ficasse sem palavras. Para não mencionar ao conde de Kilbourne e ao visconde de Ravensberg... -Sonhando acordada, Chris? - perguntou-lhe Justin ao mesmo tempo que se sentava a seu lado - Sinto haver abandonado a sua sorte com Bewcastle de caminho até aqui. Não ficou mais remédio. Porei mais empenho no caminho de volta. Sorriu. Tinha-lhe prometido a noite anterior que ficaria a seu lado quando pudesse para protegê-la das que ele considerava as inoportunas atenções do duque. Naquele momento não fez nada para fazê-lo desistir. Nem para animá-lo. Tinha dormido com seu monóculo junto ao travesseiro, o monóculo do duque, é obvio, para não esquecer-se de devolver-lhe pela manhã. Nesse preciso momento notava sua presença... um peso considerável no bolso de seu vestido de viagem. -Não me importei – assegurou - Me inteirei que muitas coisas interessantes sobre sua família. São pessoas muito agradáveis, não lhe parece, Justin? -Agradáveis? - Justin soltou uma risada. - Se lhe agradarem as pessoas arrogantes e avassaladoras, Chris, suponho que o são. E se te agrada que neste momento se juntem em grupinhos para rir de nós. Escutei-os ontem depois do passeio... estavam todos juntos em um quarto. Não gostaram de seu comportamento, asseguro-lhe. Mas não se preocupe por isso.Deu-lhe uns tapinhas na mão - eu gostei, embora não a visse te lançar rodando colina abaixo. E Eu gosto de você. Irei a Schofield Park a passar o verão assim que termine a temporada social. Assim poderemos estar juntos. Daremos longos passeios e também sairemos em carruagem, e nos riremos da alta sociedade. Por que não se apaixonou por alguém tão seguro como Justin nove anos antes... ou no verão passado? Perguntou-se, de qualquer forma e apesar do que Hermione tinha afirmado algumas noites atrás e de que lhe tinha proposto matrimônio, nunca tinha pensado que Justin estivesse apaixonado por ela. Entretanto... -Senhora Derrick...


Levantou a vista sobressaltada e se encontrou cara a cara com lady Sutton, uma jovem que dava a impressão de se ter em grande estima. -Não foi você quem causou um grande alvoroço ao cair à Serpentina faz umas semanas? -Ai, Meu deus! - Sentiu que se ruborizava quando todos os pressente, que até esse momento tinham estado conversando, viraram-se para olhá-la. Receio que tenho essa duvidosa honra. O marquês de Hallmere riu baixo. -Inclinou-se para recolher a luva que certa... dama tinha deixado cair à água – disse e caiu de cabeça. Lorde Powell a tirou da água, mas foi Bewcastle quem se fez de cavalheiro andante, protegendo-a com seu casaco para levá-la a casa em seu cavalo. -A história correu por toda Londres em questão de uma hora, como cabia esperar acrescentou lady Rosthorn, que de repente tinha uma expressão tão arrogante como a de seu irmão maior - A todo mundo pareceu muito engraçado e não houve ninguém que não apreciasse seu encanto por haver ficado em perigo por semelhante motivo. -Levamos uma espantosa decepção - interveio lady Hallmere, com aspecto realmente formidável - assim como a muitos outros, quando a senhora Derrick partiu pouco depois. Teria estado muito solicitada em muitos eventos sociais. Mas tivemos a sorte de encontrá-la aqui, convidada pelo Wulfric. -Ontem mesmo - acrescentou lorde Alleyne com um sorriso deslumbrante - tivemos o privilégio de presenciar a exuberante e extraordinária atitude com a que a senhora Derrick enfrenta à vida quando rodou ladeira abaixo, junto ao atalho agreste, para deleite de nossos filhos, que é obvio se sentiram obrigados a imitá-la. - Assim como Free - assinalou lorde Rannulf. - Pelo amor de Deus! - murmurou lorde Sutton. - As crianças a adoram - comentou lady Aidan - Esta manhã, antes do café da manhã, obrigaram-na a ir à ala infantil. -Não me surpreende absolutamente - disse a encantadora viscondessa de Ravensberg ao mesmo tempo que a olhava com um sorriso - As crianças sempre sabem muito bem com quem se afeiçoam. Teve muita relação com crianças, senhora Derrick? Tem filhos próprios? O que estavam fazendo todos nesse momento, percebeu enquanto tentava responder, era defendê-la contra o inequívoco desdém da condessa de Sutton. O duque de Bewcastle não havia dito nenhuma só palavra, mas tinha lançado um de seus gélidos olhares à condessa e levou o monóculo, um dos sete restantes ao olho. Durante o resto da hora, viu-se obrigada a abandonar seu papel de espectadora. Incluíram-na em numerosas conversas e sem saber muito bem como acabou sentada ao lado do marquês de Attingsborough em vez de ao lado de Justin. O marquês também era um cavalheiro extremamente encantador. Quando chegou a hora da partir acompanhou ao exterior e a ajudou a montar Trixie, que a olhou com resignada paciência enquanto estava no chão e se comportou com extrema docilidade uma vez que esteve na sela com o corpo e as mãos relaxadas com toda deliberação. -Senhora Derrick, poderia me reservar uma dança na festa de Lindsey Hall? Talvez a


primeira? - perguntou-lhe o marquês antes de afastar-se. -Obrigada. - Sorriu-lhe da sela. - Será um prazer. Percebeu que Justin se colocou junto ao duque de Bewcastle e estava falando com ele. Sem dúvida alguma para manter sua promessa de protegê-la de sua companhia quanto fosse possível. Em algumas ocasiões, pensou com certa deslealdade e pela primeira vez desde que o conhecia, Justin podia ser muito pesado. Entretanto, não teve motivos para temer que Trixie se desmandasse sem a tranquilizadora e dominante presença de Nobre. Lorde Aidan se colocou a seu lado e, ao recordar que tinha sido coronel de cavalaria, sentiu-se tão segura como era possível estar sentada em uma sela de amazona a um quilômetro de altura.


Capítulo 19

Embora Justin Magnus fosse o irmão de Mowbury e respeitasse muitíssimo a este último, o qual estava desfrutando dessa manhã da oportunidade de vagar pela biblioteca de Lindsey Hall, nunca havia sentido muita afinidade com o jovem Magnus. Inclusive tinha chegado a perguntar-se com grande desgosto se o ciúme seriam um dos motivos de tal antipatia, dada a amizade que o unia à Christine Derrick. Tinha passado toda a noite em claro, pensando. Levantou-se muito cedo e saiu para dar um passeio vivificante durante o qual pensou um pouco mais. Quando retornou à mansão ainda era muito cedo, de modo que tinha se sentado na biblioteca para continuar pensando. De fato, foi ele quem manipulou a situação para que Justin Magnus cavalgasse a seu lado de volta a Lindsey Hall, embora era provável que o jovem acreditasse justamente o contrário. - Attingsborough está tomando seu tempo para despedir-se - comentou com voz gélida - teve tempo mais que suficiente no salão para dizer tudo que quisesse. Perguntou-se se essas palavras bastariam. Em caso negativo, estava condenado a aguentar uma tediosa volta para casa apesar de que seus irmãos tinham tentado que cavalgasse junto à senhora Derrick, assim como quando saíram de Lindsey Hall. E nessa ocasião em concreto não podiam estar fazendo-o em deferência a Amy Hutchinson, porque a tia Rochester não estava aí para emparelhá-los. Pelo amor de Deus! Seus irmãos estavam se fazendo de casamenteiros! -Attingsborough leva anos sendo um dos libertinos mais reputados de Londres replicou Magnus tal coisa, enquanto cavalgavam para certa distância do grupo. Era a primeira notícia que tinha sobre o assunto. Sabia que Attingsborough levava anos sendo um dos solteiros mais cotados no mercado matrimonial e duvidava muito que tivesse levado uma vida monacal. Mas... um libertino? Limitou-se a soltar um grunhido evasivo. Esperou para ver o que chegava a seguir. - Entretanto, seria injusto acusar Christine de estar paquerando com ele - prosseguiu Magnus - Embora haja estado casada com um aristocrata e conhece em certo modo a vida da alta sociedade, em realidade não é uma mulher adequada para alguém como Attingsborough, não lhe parece? E suponho que é natural que o marquês a tenha escolhido para conversar, já que lady Muir é sua prima, Whitleaf estava monopolizando à senhorita Hutchinson e as restantes damas estão casadas. Além disso, Chris é muito mais bonita e encantadora do que acha. -Certamente - replicou com fingido aborrecimento. -Suponho que está aborrecido com ela pelo fato de estar prestando tanta atenção ao marquês - aventurou Magnus - É impossível passar por cima, se me desculpar o atrevimento, a admiração que você lhe professa. Não lhe culpo por sentir-se um pouco irritado. Mas é minha melhor amiga e devo sair em sua defesa. Não deve culpá-la quando homens como Kitredge ou Attingsborough demonstram também um interesse por ela. Não tem culpa. É o efeito que sempre teve sobre os homens. Não pode fazer nada para evitálo. Oscar converteu sua vida em um inferno ao acusá-la durante todo seu matrimônio de


paquerar e inclusive de ir mais à frente da paquera. Hermione e Basil também lhe recriminaram o mesmo. E, além disso, está o detalhe da cortina de fumaça que se ideou para justificar a morte de Oscar, da que também a culpam. Mas ela é inocente por completo. Quero que fique muito claro. -Tenho a impressão de que protesta muito - disse com voz gélida - Segundo minha experiência, quando o rio soa, água leva. Magnus suspirou. -O que quer que lhe diga? – perguntou - Chris é minha amiga. E é obvio que é inocente. Defenderei-a até a morte. Teria acreditado em sua palavra embora tivessem sido centenas de deslizes em lugar de uns poucos. Isso é o que fazem os amigos. Embora durante o trajeto de ida a Alvesley Park tinha tomado a rota mais simples em deferência à senhora Derrick, que não era boa amazona, nesse momento não teve a menor consideração. Estavam atravessando um prado e poderia ter se desviado um pouco para sair pela grade, que estava aberta, mas seguiu adiante com decisão. Atiçou Nobre e se dirigiu à parte mais longa da cerca. O animal a superou com uma boa folga. Uma vez ao outro lado, apertou os dentes e aguardou que Magnus saltasse a cerca e se reunisse com ele. -Meu deus! - exclamou com uma gargalhada quando esteve a seu lado - Faz muito tempo que não fazia nada tão arriscado. -Acredito que está apaixonado pela senhora Derrick - afirmou ele com voz de aço enquanto o atravessava com um olhar gélido - Acredito que diria algo em sua defesa. Acredito que chegaria ao extremo de cometer perjúrio se fosse necessário. Justin Magnus cavalgou em silencio durante uns minutos. -A confiança é essencial para a amizade, igual é para o amor - disse finalmente - Eu confio em Chris. Sempre o tenho feito e sempre o farei. Bewcastle, se a ama, ou lhe professa um pouco de carinho, também terá que confiar nela...embora as vezes pareça que tenha cometido alguma indiscrição. Você é um homem de mundo. Oscar não o era e tampouco era forte. Queria-a para ele somente. E com isto não quero dizer que Chrissie possa cometer alguma indiscrição. Não refiro a isso, muito menos, mas justamente o contrário. Chris é a personificação da honra. Mas às vezes parece justamente o contrário; como por exemplo no dia anterior à morte de Oscar. Esteve uma hora a sós com um homem em Winwood Abbey sem ninguém que lhes servisse de acompanhante. Tentei lhe oferecer um álibi porque achei quando me contou o acontecido. Mas de qualquer forma, cometeu uma indiscrição, entende? Embora tudo fosse muito inocente. Estou falando muito. Suponho que não lhe interessará este assunto em particular. -Certamente - lhe assegurou em voz baixa. -Prometi-lhe que tentarei mantê-lo afastado dela na medida do possível - confessou Magnus com um sorriso sincero e um tanto pesaroso - Por isso estou cavalgando com você. Suponho que a ideia de converter-se em duquesa lhe resulta tentadora... assim como à possibilidade de ser a condessa do Kitredge. Seria um lucro para a filha de um professor rural, não acha? Entretanto, tem-lhe um pouco de medo, Bewcastle... porque teme que você seja mais estrito que Oscar. Chris precisa ser livre para... -Paquerar? - sugeriu. - Eu não gosto nada dessa palavra. - Magnus parecia perturbado - Chris jamais


paquera. Precisa ser livre para poder ser ela mesma. -Livre para perseguir seus... mmmm... "amizades" com os cavalheiros - declarou ele. -Bom, sim, se o preferir assim... - concedeu seu interlocutor - Mas são amizades inocentes. -Certamente. - O trajeto desde Alvesley Park jamais lhe tinha parecido tão longo, pensou quando Lindsey Hall apareceu por fim na distância - Entretanto, esta conversa me é tediosa, Magnus. Ao contrário do que parece pensar, meu interesse pela senhora Derrick é mínimo. E, é obvio, não acredito nada do que disse sobre ela. Sua lealdade é admirável, mas é evidente que essa mulher é uma rameira. - E com esse último comentário por fim fez girar a seu cavalo em direção à alameda que dava acesso à mansão. -Excelência! -exclamou Magnus indignado a mais não poder - Lhe recordo que está falando de minha prima por afinidade e de minha amiga! -A quem defenderia você com sua vida – acrescentou - Entendo perfeitamente. Um homem apaixonado acreditará no que queira acreditar... ou, melhor dizendo, passará por cima daquilo que não deseja acreditar. Se sua intenção ao cavalgar para meu lado era a de proteger à senhora Derrick de minha opressiva companhia ao mesmo tempo que defendia seu caso, fracassou estrepitosamente. E por minha parte o assunto fica resolvido. -Mas... Wulfric instigou seu cavalo para adiantar a seu acompanhante e se pôs rumo ao estábulo. "Não terá que zangar-se nunca. É contraproducente. Também é desnecessário. " "Se terá que dizer algo, diga-o. Se terá que fazer algo, faz-o. " "Não terá que zangar-se nunca. Mas, sobre tudo, não terá que mostrar aborrecimento. " "O aborrecimento é um indício de debilidade. " Tinha aprendido bem as antigas lições. Entretanto, esse dia em concreto estava submetendo seu domínio a uma dura prova. Porque ardia em desejos de matar a alguém... com suas próprias mãos. Nesse dia estava muito, muito zangado. Os marqueses de Hallmere estavam a ponto de interpretar um dueto, embora a marquesa se negasse a princípio e não aceitou até que dois de seus irmãos a estimularam. -Que o senhor tenha piedade de nós... - disse lorde Rannulf com um sorriso Joshua, ainda não ensinou Free a cantar? -Se murmura, Ralf - comentou lorde Alleyne - que o clima úmido da Cornualha faz que os serrotes se oxidem às primeiras mudanças. Bertie e Héctor puseram-se a rir. A marquesa de Rochester levou os óculos aos olhos. A senhora Pritchard, que sorria de orelha a orelha, meneou um dedo em direção a lorde Alleyne e lhe recordou que os galeses eram famosos por seus cantores e também por seu clima úmido. E lady Freyja ficou em pé em um espantoso arranque de dignidade.


-Josh – disse - vamos cantar. E, depois, se alguém tiver alguma brincadeira mais sobre serrotes oxidados, esmagarei alguns narizes. -Ninguém o faz melhor que você, encanto - disse seu marido entre gargalhadas-. Cantar, digo. Todos vinham alternando-se para entreter ao resto. A senhorita Hutchinson havia tocado o piano. Lady Rannulf havia devolvido à vida a Desdémona, demonstrando um incrível talento para a interpretação. Héctor lhes tinha agradado com uma de suas incomuns atuações de magia e prestidigitação. E o dueto estava a ponto de começar nesse momento. Christine estava tentando divertir-se. Em realidade não tinha motivo algum para não fazê-lo. Tinha sido um dia repleto de atividades. Depois do passeio matinal a cavalo, a visita e o almoço, durante o qual esteve conversando com o barão Weston, tinha acompanhado aos mais jovens e as crianças a num passeio. Tinha pulado com eles em um prado muito espaçoso onde os maiores e alguns adultos jogaram bola, enquanto que outro grupo brincava com os pequeninos à roda de pessoas da batata. O conde de Rosthorn levava seu caçula nos braços e lady Alleyne estava fazendo carinhos na pequenina dos Hallmere. Depois do jogo, acompanhou Justin a dar um passeio. -Fazia muito bem em evitar ao Bewcastle e suas atenções, afirmou Justin ao mesmo tempo que lhe dava um tapinha de ânimo na mão. Segundo ele, o duque era um homem arisco e sem dúvida seria um marido muito ciumento para a pobre dama que algum dia chegasse a casar-se com ele. Tinha-lhe irritado muito que o marquês de Attingsborough a acompanhasse ao exterior da mansão, ajudasse-a a montar e conversasse um momento com ela a modo de despedida. -Coisa que foi muito injusta de sua parte – acrescentou - pois Whitleaf estava fazendo o mesmo com a senhorita Hutchinson. Mas Chris, não sei se deu-se conta, o caso é que está encaprichado consigo e anseia conseguir toda sua atenção. Disse-lhe bem claro que é um espírito livre, que necessita de liberdade para ser você mesma. Não me importa se lhe sentou bem ou não. O duque não tinha saído da mansão em toda a tarde. Por isso ela sabia, claro. E embora tenha aparecido para o jantar, fazendo demonstração de uma atitude gélida e quase sem participar da conversa, não tinha feito ato de presença no salão quando os cavalheiros se reuniram com as damas. Importava-lhe um nada. Certamente que sim. Tinha sido uma estupidez de sua parte discutir com ele no dia anterior e depois lhe confiar seus segredos. As revelações que Bewcastle lhe tinha feito sobre sua família e seus vizinhos essa manhã não tinham a menor importância. Só tinham sido um esforço por manter uma conversa. E nesse instante, justo quando os marqueses de Hallmere estavam sentando-se ao piano, alguém lhe deu uma batidinha no ombro. Quando levantou a vista, encontrou-se com um criado inclinado para ela para lhe dizer ao ouvido: -Sua excelência lhe pede que se reúna com ele na biblioteca, senhora. Olhou-o surpreendida. Entretanto, viu que Hermione e Basil estavam de pé e caminhavam para a porta. Havia-os convidado também? Ficou em pé e atravessou a estadia ao mesmo tempo que os marqueses começavam a tocar o piano. Depois de trocar alguns olhares envergonhados com seus cunhados, os três


desceram a escadaria em silêncio. Embora fizesse vários dias que tinha desaparecido a hostilidade, tinham mantido as distâncias quase como se puseram de acordo. -Do que vai tudo isto? - quis saber Hermione. -Suponho que Bewcastle deseja ser sociável, mas não gosta de sentar-se em um salão abarrotado - aventurou Basil. Ela guardou silêncio. O mesmo criado que tinha ido avisá-los se adiantou para abrir a porta da biblioteca quando chegaram frente a ela. -Lorde e lady Elrick, e a senhora Derrick, excelência - anunciou. Era um aposento imenso com aroma de couro, madeira e cera das velas. Calculou que haveria milhares de livros nas estantes que ocupavam as paredes do chão até o teto muito alto. Perto das janelas havia uma escrivaninha de grande tamanho e diante da lareira, onde crepitava o fogo, colocaram-se algumas poltronas em semicírculo. O duque de Bewcastle estava de pé de costas ao fogo, distante e imponente com seu traje de gala em branco e negro. Não se encontrava sozinho. Justin se estava levantando da poltrona que ocupava frente à lareira com expressão surpreendida, embora sorrisse ao vê-los. O duque fez uma reverência para saudar seus convidados e lhes indicou que tomassem assento com um gesto, sem mover do lugar que ocupava e sem que sua gélida atitude se relaxasse nem um ápice. Claro que poucas vezes o fazia. Olhou-o no rosto. Como se atrevia a estar irritado com ela por ter falado essa manhã com o marquês do Attingsborough e por lhe permitir que a ajudasse a montar? Como se atrevia?! Por um breve instante seus olhares se encontraram e ela se negou a desviá-lo. Foi ele quem acabou cedendo. Fazia muito bem em afastar o olhar. Que homem mais desagradável! Acaso achava ter algum direito sobre ela pelo simples fato de ter aceito seu convite a Lindsey Hall e por ter mantido alguma ou outra conversa privada? -As atividades do salão nos pareceram muito divertidas - disse Hermione - Lady Rannulf é uma atriz excelente. Obteve que durante uns minutos me esquecesse de que não era a pobre Desdémona, a ponto de ser assassinada pelo Otelo. E Héctor fez uns truques de magia. Sempre o observo com atenção, convencida de que essa vez conseguirei averiguar o truque, mas nunca o consigo. Como é possível que uma parte de corda se divida de repente em duas e que logo volte a unir-se? E isso que em nenhum momento aproxima as mãos aos bolsos e que leva a jaqueta arregaçada! -Héctor tem essa habilidade desde que era pequeno - comentou Justin - Estava acostumado a nos entreter desse modo ao Audrey e a mim na ala infantil, mas nunca compartilhou seus segredos conosco. -É uma ilusão - explicou o duque de Bewcastle - Tanto a atuação como a magia. O truque está em obter que o espectador confunda o aparente com a realidade. E isso requer dedicação e habilidade. -Bom, pois me supera - confessou Justin - O que lamento é me haver perdido a interpretação de lady Rannulf. Talvez a repita alguma outra noite. -Certas pessoas, por exemplo - seguiu o duque, fazendo ouvidos surdos ao comentário do Justin - possuem a habilidade de dizer uma coisa e de insinuar justamente


o contrário. -A ironia pode ser divertida - afirmou Basil - Tem razão, Bewcastle. Alguns utilizam a técnica com mestria, e muitos de nossos grandes escritores a converteram em uma arte. Como Alexander Pope, por exemplo, e seu poema "O cacho roubado". Cada vez que o leio acabo rindo a gargalhadas. -E outras têm a habilidade de dizer a verdade e de convencer a quem as escuta de que estão mentindo - continuou o duque como se Basil não tivesse falado. Hermione, Basil e Justin o olharam de forma imperturbável e guardaram silêncio. Ela, por sua parte, seguiu olhando-o com expressão desanimada. Chegou à conclusão de que era um homem arrogante e cheio de si mesmo. Resultava-lhe incrível ter chegado a acreditar que houvesse algo mais nele. Talvez por obra de alguma ilusão como ele acabava de dizer? Não conseguia entender por que a tinha convidado à biblioteca. - Pelo que escutei - continuou sua excelência - a senhora Derrick é considerada uma coquete. - Como! -exclamou Justin ficando em pé de um salto. Hermione levou uma mão às pérolas que adornavam seu pescoço. -Bewcastle, acredito que deve uma desculpa a minha cunhada - advertiu Basil com voz tensa. Ela ficou petrificada na poltrona. O duque pegou o cabo de joias de seu monóculo entre seus largos dedos. -Espero que todos se dignem a me escutar - replicou com uma nota enfastiada na voz - Sente-se, Magnus. -Não! - exclamou o aludido - Não até que peça desculpas à Chris. O duque ergueu seu excelso monóculo até seu excelso olho. - Disse que eu a considere como tal? - assinalou com arrogância. Justin se sentou, mas saltava à vista que estava furioso. Presentou-a com um sorriso tranquilizador antes de voltar a olhar ao Bewcastle com o que esperava fosse uma expressão tão de aço como a que ele mostrava. -É como você mesma a chamou, senhora - prosseguiu o duque dirigindo-se à Hermione com uma ligeira inclinação de cabeça - em Schofield Park o ano passado. Entretanto, devo confessar que essa foi a única ocasião em que escutei a acusação abertamente. Porque o que sim escutei até não poder mais foi o contrário... que não é uma coquete. Quando esses olhos prateados se cravaram nela uns instantes, fulminou-o com o olhar. Tomara pudesse ficar em pé e lhe cruzar o rosto com um bofetão, mas duvidava muito que as pernas a sustentassem. Além disso, estava tão alterada que lhe faltava o fôlego. -Conforme disse você - continuou sua excelência referindo-se à Hermione - a senhora Derrick tinha paquerado com todos os cavalheiros convidados à festa campestre e também tinha paquerado comigo o dia que aceitou me acompanhar pelo passeio dos laburnos, a fim de ganhar a aposta que mantinha com o resto das jovens. Peço-lhe por favor que tente recordar quem a fez pensar assim. Chegou você sozinha a essa conclusão depois de observar os acontecimentos? Ou foi outra pessoa quem jurou e lhe


perjurou que a senhora Derrick não estava paquerando, até o ponto de que começou a suspeitar e acabou convencendo-se disso? -Viu!? - gritou Justin antes que Hermione pudesse responder - Lhe disse esta manhã que sempre acontecia isto, Bewcastle, refere-se você a mim, não? Tomara jamais tivesse falado em defesa de Chris. Sempre acabo prejudicando-a em lugar de ajudá-la. Sempre! Mas até aqui chegamos. Não voltarei a fazê-lo mais! - Olhou-a da distância a ponto de querer chorar. - Sinto muito, Chris. Entretanto, ela o estava olhando sem dar crédito. -Todos sabemos que Justin sente um grande afeto por Christine - disse Hermione. Talvez inclusive esteja apaixonado por ela. E também soubemos sempre que jamais verá nada mau nela. Defenderia-a inclusive no caso de havê-la visto cometer uma flagrante indiscrição. É um traço enternecedor de seu caráter. Mas não inspira confiança absolutamente, me perdoe, Justin. Sei que sempre agiu de boa fé. -Se houver alguma outra palavra além de "paquera" que pareça ir unida à senhora Derrick em todas e cada uma das histórias que escutei sobre seu matrimônio e em todos e cada um de nossos encontros ao longo deste último ano é... - O duque, fez uma pausa antes de acrescentar: "Justin". -O que está querendo dizer? - o aludido voltou a ficar em pé - Asqueroso... O duque de Bewcastle, que não se alterou o mínimo, havia tornado a levar o monóculo ao olho. -Quero dizer que se sente, Magnus - respondeu e, por incrível que parecesse, Justin se sentou - Elrick – prosseguiu - se não lhe importar, eu gostaria que recordasse as ocasiões nas quais seu defunto irmão, sua esposa e você pontuaram à senhora Derrick de ter paquerado ou de haver-se comportado de forma comprometedora com outros cavalheiros durante seu matrimônio e também eu gostaria que se perguntasse se em realidade algum dos três teve uma evidência irrefutável de sua culpabilidade ou se recebeu alguma queixa de outra pessoa. Peço-lhe que recorde se alguma vez chegou a você algum rumor sórdido sobre sua cunhada. Apesar de estar perto do fogo, Christine se sentia gelada. E já não estava olhando ao duque. Estava observando ao Justin. -Não acredito que nossos assuntos familiares sejam de sua incumbência, Bewcastle - replicou Basil. Escutou que Hermione engolia em seco antes de dizer: -Sempre foi Justin quem trazia à luz o assunto. Trazia-nos as notícias dos clubes de cavalheiros e de outros lugares. Falatórios que ninguém se atrevia a comentar em presença do Basil e de Oscar. Sempre o fazia zangado e perturbado. Sempre defendeu Christine e insistiu em que nada do que se dizia era certo. Sempre... -Justin! - exclamou ela, levando uma mão à boca - O que tem feito? Tudo era tão simples... tão, tão simples. E quase indetectável. -Esta manhã, durante o trajeto desde Alvesley Park a Lindsey Hall - prosseguiu o duque - que percorri em companhia do Magnus, este me assegurou que a senhora Derrick não podia considerar-se culpada de responder às atenções do marquês do


Attingsborough, nem de paquerar com ele, pois o muito ilustre é um reputado libertino. Assegurou-me que não podia evitar o efeito que provocava nos homens como Attingsborough, Kitredge ou eu mesmo. Que essa é sua forma de ser... embora seja perfeitamente compreensível que ambicione conseguir o título de mais posição que fique a seu alcance. Assegurou-me que embora a senhora Derrick tivesse cometido centenas de indiscrições em lugar de umas poucas, teria que defendê-la sempre porque nisso consistia a amizade. Assegurou-me que embora a senhora Derrick esteve uma hora a sós com um cavalheiro no dia anterior à morte de seu marido, ofereceu-lhe um álibi porque confia plenamente nela. -Justin... - ainda tinha os olhos cravados nele - Destroçou meu matrimônio deliberadamente? Tornou louco ao Oscar? Conduziu-o a sua própria morte?! -Chris, é impossível que acredite em algo assim! - declarou Justin com os olhos arregalados. - Sou seu amigo. Sou o único que a compreende. Quero-a! Basil pigarreou. Hermione tinha levado uma mão à fronte e tinha os olhos fechados. -Isto é um pesadelo – disse - Não pode ser certo. É impossível. Mas o é. Sei. Justin... sempre foi tão convincente... Sempre nos compadecemos de você. E não acreditávamos nada do que nos dizia. -Você! - gritou Justin, assinalando ao duque com um dedo acusador - Bewcastle! Você a chamou rameira esta manhã! -E depois parti para o estábulo para que pudesse saborear seu triunfo em privado declarou o duque ao mesmo tempo que voltava a levar o monóculo ao olho. -E depois me disse que sua excelência seria um marido terrivelmente ciumento e possessivo, porque ao ver que o marquês do Attingsborough me acompanhava ao exterior e me ajudava a montar a cavalo se irritou. Justin! Justin, Por Deus! Pobre Oscar! Enterrou o rosto nas mãos e sentiu o tato frio de uma mão na nuca... Hermione. -Ninguém a quer tanto como eu, Chris - afirmou Justin - Mas, claro, sempre se deixa deslumbrar pelo físico. Primeiro foi Oscar e agora é Bewcastle, e entre ambos um sem-fim de cavalheiros bonitos, me olhe a mim... Porque isso é precisamente o que nunca tem feito. Nenhuma mulher me olha nunca, em realidade, e você menos. Jamais me tomou a sério. Não suporto vê-la com outros homens que não a apreciam como é devido Chris, eu a quero! Afastou as mãos do rosto a tempo de ver como o duque de Bewcastle se inclinava sobre a poltrona do Justin e, sem fazer nenhum esforço aparente, voltava a endireitar-se elevando ao mesmo tempo pela gravata a seu suposto amigo, de modo que mal tocava o chão com as pontas dos pés. -Compartilho sua habilidade em certo modo, Magnus - escutou que dizia sua excelência em voz tão baixa e gélida que lhe provocou um calafrio - Jamais estive seguro do que é o amor, mas sim sei o que não é. O amor não destrói aos seres queridos nem lhes ocasiona uma tortura inexprimível. Havia tornado a enterrar o rosto nas mãos, mas as ardentes lágrimas que lhe escapavam dos olhos corriam entre seus dedos e caíam sobre suas coxas. -Eu gostaria de sacudi-lo como a o animal que é até que não ficasse nem um hálito de vida em seu corpo - prosseguiu o duque com o mesmo tom de voz - mas é um


convidado em meu lar, igual a outros membros de sua família, entre os que se inclui sua mãe. Eles se encarregarão de fazer com você o que estimem oportuno mais adiante, mas neste instante vai inventar uma desculpa convincente e amanhã pela manhã antes do café da manhã partirá de minha casa. E, se souber o que lhe convém, manterá-se afastado de minha vista tanto como lhe seja possível durante os próximos dez anos no mínimo. Percebeu que Basil ficava em pé. -Justin – disse - antes que parta, antes que vá embora de Lindsey Hall e da Inglaterra, para ser exatos, eu gostaria de falar consigo. Fora. Agora. -Basil... - chamou-o Hermione justo quando ela erguia a cabeça. -Hermione, não se mova daqui - ordenou seu cunhado - Nem você tampouco, Christine. Justin? Fora! Justin se deteve o passar frente a ela, com o rosto lívido e mudado. Tinha lágrimas nos olhos. -Chris? - escutou-o dizer. Nesse momento aconteceu algo realmente surpreendente e chocante. O duque de Bewcastle ergueu uma perna e sentou um pé no traseiro do Justin, mandando o desse modo e quase voando no ar atrás de Basil, que já saía do aposento. Houve um breve silêncio quando ambos partiram. -Deixarei-as a sós - lhe disse Bewcastle com uma reverência - Ninguém as incomodará. Entretanto, antes de partir parou em frente a ela assim como tinha feito Justin e lhe colocou na mão um enorme lenço de linho. Tanto Hermione como ela seguiram um momento em silêncio. -Christine - disse sua cunhada ao cabo de uns minutos - poderá nos perdoar algum dia? -Me enganaram igual à vocês – respondeu - Era meu amigo. Durante os anos anteriores à morte de Oscar era a única pessoa em que confiava. Nesse momento ambas estalaram em lágrimas a uma nos braços da outra. Choraram pelos anos perdidos e pela amizade truncada. Pela desnecessária morte de um homem fraco e atormentado. Pela ingenuidade que tinham demonstrado ao cair vítimas de uma estratégia tão enganadoramente simples que tinha funcionado à perfeição. Quando se serenaram, assoou o nariz com o lenço que o duque lhe tinha emprestado. -Espero que Basil não faça mal – disse - foi uma tolice por sua parte dizer ao Justin que saia. -É um homem - assinalou Hermione com carinho - Do que outro modo ia reagir ante semelhante revelação? Espero que lhe dê uma boa sova. Ambas sucumbiram à risada nervosa antes de compartilhar uma nova sessão de lágrimas.


Capítulo 20

O domingo de Páscoa, transcorreu em relativa calma. Foram à igreja pela manhã, entretiveram-se em família à tarde e passaram uma tranquila noite escutando música, conversando e lendo. Ninguém comentou a repentina ausência de Justin. Todos sabiam que se desculpara com o duque de Bewcastle ao recordar um compromisso anterior na capital e além disso, tal como sua mãe costumava dizer, Justin ia e vinha a seu desejo desde que se converteu em um adulto assim teria um bom motivo para partir. Todos aceitaram a envergonhada explicação do Basil sobre a equimose que tinha na face direita, produzida por causa de um golpe, e sobre as feridas dos nódulos...que se tinha esfolado ao cair da banheira em seu closet. Se alguém não acreditou, guardou-se as suspeitas. Justin, tinha-lhes assegurado Basil ao Hermione e a ela quando retornou à biblioteca, tinha um aspecto muito pior. Depois de dizê-lo, abraçou primeiro ao Hermione e depois a ela. Foi um abraço longo e sentido. -Oscar a amava, Christine - lhe disse com a voz um tanto entrecortada - Quis você até o final, embora deixasse de confiar em você. -Sim, sei. - Isso foi a única coisa que pôde dizer. -E foi mal de nossa parte não nos ter preocupado por você desde que morreu. Não peço que nos perdoe... só que nos permita recuperar o tempo perdido. Voltou a soar o nariz com o lenço do duque. -E se decidir se casar com Bewcastle - prosseguiu Basil - terá minha bênção, e estou seguro que também a de Hermione. -Certamente que sim! - exclamou a aludida - Acredito que lhe tem muito afeto, Christine, por que se não ia falar com Justin de uma forma tão ameaçadora? Deixaram-no assim, e ela retornou ao salão, onde a senhora Pritchard estava interpretando uma versão um tanto trêmula embora muito doce de uma balada galesa. Hermione acompanhou Basil a seu dormitório para lhe refrescar a face com água fria. A segunda-feira amanheceu nublada, ventosa e muito fria. Receberam a visita de um numeroso grupo de cavaleiros procedentes de Alvesley Park, a quem ofereceu uma cálida bem-vinda. Quando partiram já era hora de almoçar. Lorde Aidan anunciou sua intenção de tirar os botes ao lago depois de comer apesar do mau tempo, e sua resposta recebeu o apoio entusiasmado de muitos dos presentes, que se levantaram da mesa ao uníssono e partiram à ala infantil para preparar as crianças. -Deve levar Amy à ilha, Wulfric - ordenou a marquesa de Rochester - A vista é muito agradável ali. O duque, sentado à cabeceira da mesa, ficou em pé. -Estou seguro de que outra pessoa estará encantada de levá-la, tia – replicou - Já concordei em acompanhar à senhora Derrick a dar um passeio... a menos que lhe seja impossível fazê-lo, é obvio. Seus olhos se cravaram nela talvez pela primeira vez desde que saira da biblioteca duas noites atrás, deixando seu lenço atrás de si. Em circunstâncias normais se teria rido dele, dado que ambos sabiam que acabava de soltar uma mentira. Mas tinha o coração


acelerado e tornou a ficar sem fôlego. E era muito consciente de que a marquesa a estava observando com atenção. -Absolutamente, excelência! – exclamou - Estou desejando dar esse passeio com você. A marquesa emitiu um som semelhante a um grunhido enquanto ela ficava em pé, temerosa de ficar na sala de jantar a sós com a mulher. -Irei em busca de meu chapéu e de meu casaco - acrescentou. E assim foi como apenas dez minutos depois saía da mansão depois de ter se encontrado na escada com uma horda do Bedwyn, tanto adultos como crianças. Tinhamna convidado a unir-se a sua expedição, e ela se viu obrigada a recusar o convite e a lhes explicar que ia dar um passeio com sua excelência. Juraria que todos receberam suas palavras com um risinho ladino. -Suponho que esperava passar uma tarde tranquila em sua biblioteca - disse depois de aceitar o braço que o duque lhe tinha oferecido. -Supõe isso? - perguntou ele - Você acredita me conhecer muito bem, senhora Derrick. Caminharam em silêncio um tempo. Ainda estava nublado e soprava um forte vento mais próprio do inverno que de princípios da primavera. Mas ao menos o tinham nas costas. -Devo lhe agradecer o que fez por mim no sábado de noite - disse finalmente - Me sinto um pouco idiota por não ter suspeitado sequer. Tudo parece muito evidente agora que sei a verdade. -Os planos mais cruéis e os que melhor funcionam costumam ser com frequência os mais simples. Por que ia suspeitar dele? Ofereceu-lhe sua amizade, seu consolo e seu apoio quando os necessitou. E por que iriam suspeitar seu marido e seus cunhados? Era seu parente, e sabiam que lhe tinha muito apreço. De modo que lhes foi muito fácil acreditar que a defenderia contra vento e maré. Em meu caso, ao não estar comprometido, foi muito mais simples descobrir que essas duas palavras, "paquerar" e "Justin", costumavam ir de mãos dadas com tediosa regularidade. E, entretanto, nenhuma só vez a vi paquerar. Está muito afetada? -Por ter perdido ao Justin? – perguntou - Não. Mas sim porque Oscar perdesse a vida antes de conhecer a verdade, porque morrera pensando que o tinha traído. Não era um homem emocionalmente forte. Era, suponho, a vítima perfeita de semelhante plano, e Justin devia sabê-lo muito bem quando o arquitetou. Mas também era um homem muito doce quando o conheci. Poderíamos ter tido um bom matrimônio embora a imagem que me tinha feito dele em meus sonhos românticos fosse muito diferente da realidade. Sim, estou afetada, mas em paz. Hermione e Basil sabem a verdade, e isso é o que me importa. Sempre nos tivemos muito afeto até que começaram os problemas. Tenho muito que lhe agradecer. Não era necessário que se incomodasse em meu nome. -Era muito necessária a corrigiu ele em voz baixa. Não elaborou o comentário e não lhe pediu que o fizesse. Continuaram caminhando em silencio através do prado que dominava o lago e ao longo do limite do bosque. Entraram no atalho agreste e deixaram atrás a colina pela qual tinha rodado uns dias antes, e as árvores onde tinham discutido e lhe tinha arrebatado o monóculo... que ainda


não lhe havia devolvido. Percebeu que deviam ir a caminho ao lugar onde quis levá-la aquela tarde, ao pombal situado ao norte do lago. O silêncio entre duas pessoas, descobriu, não tinha por que ser algo incômodo. Não quando suas mentes estavam em harmonia. Porque havia certa harmonia entre eles. Compreendeu que estava começando a gostar da ideia, embora a inquietava um pouco porque é obvio, as diferenças entre eles continuavam sendo abismais e impossíveis de superar, decidiu relaxar e desfrutar da sensação por essa tarde. Afinal, tinha aceito seu convite. E ele acabava de fazer algo incrivelmente maravilhoso por ela. "Era muito necessário. " Incomodar-se em seu nome, claro. Olhou de esguelha esse perfil sério e aristocrático. Por estranho que parecesse e embora não tivesse mudado, começava a lhe ser um perfil muito estimado. Finalmente, chegaram a uma clareira em cujo centro se erguia o antigo edifício de pedra que lhe tinha falado no torreão. Era alto, de planta circular, com telhado de palha e janelas pequenas na parte superior da parede. -Para abrir à porta de madeira terei que descer uns degraus. -O pombal!... – disse - É muito bonito. Está ocupado? -Por pássaros? - precisou ele - Não, deixou de usar-se e ficou abandonado em tempos de meu pai. Sempre gostei de sua forma, mas até há alguns anos não me decidi a repará-lo, sobre tudo o interior. Não queria que chamasse muito a atenção ao mudar o exterior, embora fiz com que arrumassem o telhado, me permita que o mostre. Viu-o descer os degraus, colocar uma chave na fechadura e abrir a porta, depois do que se afastou para deixá-la passar. Não sabia muito bem o que esperava encontrar, mas o que viu lhe roubou o fôlego e a deixou congelada enquanto olhava a seu redor. Porque via perfeitamente, embora a luz não fosse branca. Havia um total de seis janelas, conforme contou, na parte superior da parede. Todas com vidraças de intensas cores. Se olhasse para cima, via o ponto central do teto. As paredes eram de pedra, mas tinham pequenos nichos do chão até o teto onde as pombas descansariam na época em que houvesse centenas delas. Entretanto, todos estavam limpos nesse momento, e muitos dos situados nos níveis inferiores tinham velas ou livros. Na estadia propriamente dita, havia uma cama baixa coberta com uma pele de ovelha, uma escrivaninha muito simples e sua correspondente cadeira, uma enorme poltrona brincalhona, uma lareira, que obviamente era de recente construção assim como o tiro que subia pela parede justo em frente da porta. Ao lado da lareira havia uma pilha de lenha no lenheiro e uns quantos atiçadores. Era um refúgio delicioso, com o toque mágico da luz multicolorido que o banhava. Voltou-se para olhá-lo. Estava diante da porta, com o chapéu na mão e a vista cravada nela. Era um momento terrível. O momento que teria preferido evitar. O momento no que por fim saiu de dúvidas e soube com certeza. Soube que estava tão apegada ao duque de Bewcastle que não podia separar-se dele... nem possivelmente penetrar em seu mundo. Entretanto, já era muito tarde para proteger seus sentimentos ou para lhes pôr freio. Passou a seu lado antes que lhe ocorresse algo adequado que dizer. Tirou o chapéu


e as luvas apesar de ali dentro fazer frio e os deixou sobre a escrivaninha enquanto ele acendia o fogo, já que a lenha estava preparada. Embora pegou fogo imediatamente, duvidava muito que o lugar pudesse esquentar-se por completo. -Por quê? - perguntou-lhe - Por que este lugar quando possui toda Lindsey Hall e tem outras muitas mansões? Embora de algum modo já conhecia a resposta. Tinha a sensação de ter vivido esse momento com antecedência e de saber qual ia ser sua resposta. Estava assustada por ridículo que parecesse, como se estivesse a ponto de ficar sepultada por uma avalanche de neve. -É possível perder-se na imensidão - respondeu ele - As vezes inclusive me esqueço que sou algo mais além do duque de Bewcastle. Engoliu em seco, incomodada. -Aqui posso recordá-lo – seguiu - Entretanto, não estive neste lugar há um ano... Até a semana passada, de fato, quando pensei que devia trazê-la. E então soube... Soube que esse momento tinha sido inevitável, que essa era a oportunidade que lhe tinha pedido, que a visita a esse lugar de retiro no mais recôndito de sua imensa propriedade era o que ele tinha sonhado e o que tinha planejado. Tudo estava limpo e ordenado, embora ninguém mais que ele visitasse o pombal. Tinha limpo e ordenado a estadia, e também tinha deixado disposta a lenha. Deu uma olhada a seu redor em busca de um lugar onde sentar-se e se encantou pela cadeira de madeira colocada em frente a escrivaninha, deixou-se cair nela e se aferrou aos bordo de seu casaco. - E o que recorda quando está aqui? - quis saber. -Que também sou Wulfric Bedwyn - lhe respondeu. A avalanche caiu sobre ela. Sim. Sim! É obvio que o era. Ao longo desses dias em Lindsey Hall tinha descoberto que havia uma pessoa real detrás da formidável figura do duque de Bewcastle. Evidentemente, eram a mesma pessoa. O homem e o duque eram inseparáveis. Em nenhum momento tomou por louco, em nenhum momento pensou que houvesse duas pessoas distintas compartilhando o mesmo corpo. Entretanto, não estava segura de querer ver mais ao homem nem de saber mais sobre ele. Sua vida havia tornado a ser segura desde há quase três anos... e nesse momento voltava a ter ao Hermione e ao Basil. Não obstante, suas palavras lhe tinham chegado ao coração: "Também sou Wulfric Bedwyn". -Me conte mais coisas... de você - lhe pediu. Tinha estado a ponto de dizer "dele", como se Wulfric Bedwyn fosse uma pessoa distinta ao homem a quem via diante da lareira. Sério, distante e, conforme parecia, ao comando de seu mundo - Não, expresseime mau. Nada melhor que lhe pedir a alguém que fale de si mesmo para deixá-lo sem palavras. Me conte coisas de sua infância. Se queria conhecê-lo, apesar da relutância que a ideia lhe provocava, teria que começar por sua infância. Era quase impossível imaginar-lhe como um bebê, como um menino pequeno ou como um moço. Embora, é obvio, tivesse passado por essas três etapas.


-Sente-se na poltrona - disse ao mesmo tempo que a apontava com uma mão. Quando o fez, o duque pegou a pele de ovelha da cama e a colocou sobre o regaço antes de sentar-se em uma esquina da escrivaninha, com um pé no chão enquanto balançava o outro no ar. Tirou o capote, que descansava sobre o espaldar da cadeira. Sua figura estava banhada pela luz azul e vermelho. -Como era? - perguntou-lhe. -Era um molho de nervos incansável - respondeu - ia percorrer o mundo quando fosse maior. Ia aumentar as fronteiras da América. Ia cruzar essas fronteiras para atravessar o Pacífico até a China. Ia desentranhar os mistérios da África e a me deixar seduzir pelo exotismo do longínquo Oriente. Ia ser um pirata mais ao estilo do Robin Hood e se não, a dar caça aos piratas. Depois, quando tive um pouco mais de bom senso, com uns nove ou dez anos, ia ser o capitão de meu próprio navio e a me converter no almirante de uma frota; ou um oficial do exército para me converter no comandante geral das tropas britânicas lá onde lutassem para as conduzir a brilhantes vitórias. Mas enquanto esperava crescer e a conseguir meu glorioso futuro, semeava o pânico em casa e em toda a propriedade. Era o terror dos jardineiros, dos cavalariços e dos criados. O maior desafio ao que meu pai se enfrentou jamais e o desespero de minha mãe. Voltou a ficar em pé e se aproximou da lareira, onde golpeou um lenho com a ponta da bota para que prendesse bem. -Aidan e eu tínhamos um plano – prosseguiu - Suponho que ainda éramos muito pequenos. Tínhamos combinado que nos trocaríamos de roupa e portanto de identidade, e nosso pai nunca se daria conta. Aidan ficaria em casa e se converteria em duque algum dia, e eu me lançaria ao mar e navegaria em busca de qualquer aventura que o mundo e a vida me pusessem no caminho. Guardou silêncio, surpreendida e fascinada enquanto ele contemplava o fogo e, sem dúvida, o longínquo passado. Ao cabo de uns minutos, olhou-a por cima do ombro e voltou para o presente. -Mas, desde que nasci, meu destino era herdar o ducado e todos os deveres e responsabilidades que suporta – disse - E no caso do Aidan seu destino era o exército. Sonhávamos nos trocar, mas era impossível, claro está. Ao final o traí. Apesar da abrigada pele, sob a qual tinha as mãos, ficou gelada. -Não queria a carreira que tinham escolhido para ele – continuou - Era um menino pacífico e muito tranquilo. Estava acostumado a seguir a nosso pai como se fosse sua sombra cada vez que percorria a propriedade, e também passava muito tempo com o administrador. Suplicou a nosso pai e conseguiu que nossa mãe apoiasse sua causa. A única coisa que queria era viver tranquilamente da terra, trabalhá-la e administrá-la. Mas não sei por que cruel destino nasceu o segundo e eu fui o primogênito. Evidentemente, depois de que nosso pai morrera, poderia lhe haver dado o que queria. Eu tinha dezessete anos e ele, quinze. Passou vários anos no colégio, mas quando retornou a casa, entregou-se aos assuntos da propriedade com entusiasmo. Conhecia as terras de trabalho que rodeavam Lindsey Hall como a palma de sua mão. Sabia como as levar. Tinha melhores instintos que eu para isso. Tentou me dar conselhos, com muito bom tino. Queria que retirasse ao antigo administrador, que já era muito velho para o trabalho, e ocupar o posto. Tentou me indicar certas melhorias e também certos enganos


que eu tinha cometido. Tinha boa intenção, amava este lugar, conhecia-o melhor que eu, e eu era seu irmão. Paguei por seu ingresso no corpo de oficiais do exército e o chamei à biblioteca para dizer-lhe. Não ficou mais alternativa que me obedecer. Tal era meu poder como duque de Bewcastle, apesar de que ainda era muito jovem. Utilizei-o sem pestanejar. Estive-o utilizando depois. -E jamais se perdoou por isso - assinalou. A modo de afirmação porque não era preciso perguntar - Embora fez o correto. -Certo - concordou ele - Mas tive que escolher entre meu papel de duque de Bewcastle e o de irmão... do moço com o que fui unha e carne. Foi a primeira ocasião de relevância em que enfrentei a esse conflito e tive que escolher. Escolhi o papel de duque, e depois me vi enfrentando à mesma tessitura em muitas ocasiões. Continuará acontecendo até que morra, suponho. Afinal, sou esse aristocrata, e tenho deveres e responsabilidades. Há centenas de pessoas, talvez milhares, que dependem de mim, e não posso nem penso em fugir de meu dever. Portanto, não posso lhe assegurar que vá mudar para me amoldar a seu sonho, entende isso? Para você sou um homem frio, reservado e sério. E está certa, sou isso. Mas essa só é uma faceta, há mais. -Sei - assegurou, embora não estava segura de que tivesse saído algum som de seus lábios. O duque estava diante da lareira com as mãos às costas e os pés ligeiramente separados. Sua expressão fria e arrogante nada tinha que ver com o que estava dizendo... ou talvez sim. Tinha decidido que fosse o papel de duque de Bewcastle o que regesse sua vida. -Como vê, não posso lhe oferecer o que não sou -disse ele-. Só me cabe esperar que compreenda que qualquer pessoa que tenha vivido trinta e seis anos é muito complexa. Há algumas noites me acusou de levar uma máscara, e se equivocava. Antepor o papel de duque de Bewcastle com suas responsabilidades ao do Wulfric Bedwyn, mas sou ambos. O fato de que o dever seja o primeiro não diminui minha dignidade. Além disso se perguntava você se for um aristocrata frio e insensível até a medula. Não o sou. Se fosse, acredita que teria ficado preso a você sem conhecê-la muito e que me teria visto atormentado por sua lembrança? Não é você a classe de mulher em que Bewcastle se fixaria, nem muito menos cortejaria. Isso a deixou petrificada. -Mas me estou adiantando aos acontecimentos - disse ele-. Tive uma boa infância. Alegre e feliz. Meus pais foram bons, embora durante a adolescência não tive a impressão de que meu pai se preocupasse muito por mim. -O que aconteceu? - quis saber. -Sofreu um ataque de coração quando eu tinha doze anos - respondeu - Sobreviveu, mas lhe disseram que tinha o coração fraco e que poderia deter-se em qualquer momento. Era um dos homens mais ricos e poderosos da Grã-Bretanha. Possuía mais propriedades que qualquer outro. Seus deveres e responsabilidades eram enormes. E, entretanto, seu primogênito seu herdeiro, era um menino selvagem e ingovernável. Era quase impossível recordar que estava falando de si mesmo.


-Embora ficasse em Lindsey Hall – prosseguiu - separaram-me quase por completo de minha família. Deixaram-me aos cuidados de dois tutores. Via pouquíssimo a meu pai, e muito menos a minha mãe. Aidan e Rannulf, e mais tarde Alleyne, foram ao colégio, como eu tinha esperado fazer, e quase nunca os via... nem sequer quando retornavam a casa durante as férias. Estava virtualmente isolado. Rebelei-me, gritei, esperneei e chorei... e aprendi. Dispus de cinco anos para aprender tudo o que devia saber sobre o resto de minha vida. Ninguém sabia que seriam cinco anos, é obvio. Poderia ter sido somente um, inclusive menos. Meu pai morreu quando eu tinha dezessete anos. Em seu leito de morte me beijou a mão e me disse que às vezes o amor fazia mal, embora nem por isso deixava de ser amor. Como verá, não teve alternativa. Eu era seu filho e me amava. Também era seu herdeiro. Devia aprender para ocupar seu lugar. De repente, percebeu que era muito provável que nunca tivesse contado essa historia a ninguém... Assim como ela não tinha contado a ninguém mais os acontecimentos que rodearam a morte de Oscar. Esse fato a aterrou... e ameaçou lhe encher os olhos de lágrimas. Estava despindo sua alma ante ela. Por que... porque se tinha ficado enamorado dela e depois se viu atormentado por sua lembrança. Porque a tinha levado a esse lugar com toda deliberação, a Lindsey Hall, a esse pombal, a seu refúgio particular, com esse propósito em mente. Porque lhe tinha suplicado que lhe desse uma oportunidade. Nesse momento se deu conta de que estava loucamente apaixonada por ele. Mas ainda assim...Ainda assim não achava o felizes para sempre. Já não era a jovenzinha que se lançara sem pensar, faz dez anos, em uma relação que certamente teria evitado se tivesse se dado um pouco de tempo para conhecer melhor ao Oscar. Tinha-o querido até o final, mas no fundo era consciente de que já desde o começo de seu matrimônio tinha detectado a debilidade de seu caráter. Entre eles não houve essa paixão imperecível e envolvente com a qual sempre tinha sonhado. Nesse momento era mais amadurecida e muitíssimo mais cautelosa. Nesse momento era muito consciente de que o felizes para sempre não a aguardava depois de uma proposta de matrimônio e um sim por sua parte. Ainda assim... Ainda assim era um homem que, contra todo prognóstico, tinha chegado a gostar. Um homem ao que, muito a seu pesar, estava começando a admirar. Como não ia admirar a um homem para quem a honra e o dever o significavam tudo? A um homem que valorizava a responsabilidade que tinha para com centenas e inclusive milhares de pessoas por cima de sua gratificação pessoal? Talvez sua educação tivesse sido opressiva, inclusive brutal, mas certamente seu pai se encarregou de que não avassalassem seu espírito. Depois, quando o anterior duque morreu, poderia ter dado as costas a tudo o que lhe tinham ensinado. Poderia haver-se convertido em um moço desmedido e esbanjador, como muitos outros em suas mesmas circunstâncias. Afinal, tinha o poder e a riqueza para fazer o que quisesse. Entretanto, manteve-se firme. Desde os dezessete anos cumpria o papel do duque de Bewcastle sem pestanejar. Como não ia admirá-lo? E, que Deus a ajudasse, como não ia amá-lo? Sorriu-lhe. -Obrigada – disse -. Sei que é uma pessoa muito ciumenta de sua intimidade.


Obrigada por me mostrar este lugar tão encantador e por me contar coisas sobre você. Olhou-a, tão sério e formidável como de costume, com uma expressão mais inescrutável que nunca nos olhos. -Levo quase um ano sonhando vê-la aqui, sentada nesse mesmo lugar - escutou-o dizer. - Não vou fazer lhe nenhuma pergunta hoje. Não é o momento adequado. Embora vou dizer lhe algo. Não a trouxe aqui para seduzi-la. Mas a desejo. Sabe muito bem. Quero fazê-la minha agora mesmo, nesta cama. Quero que seja uma expressão livre do que sinto por você e, talvez, pelo que você sente por mim. Sem compromissos nem obrigações... a menos que haja consequências, embora já me disse em uma ocasião que não era provável. Deitará-se comigo? Vá... parece que depois de tudo lhe fiz uma pergunta. Ficou a mente em branco e isso porque tinha um milhar de perguntas na cabeça. Seu corpo, entretanto, funcionava às mil maravilhas. O desejo lhe endureceu os mamilos e sentiu uma pontada no abdômen e também entre as coxas, ficou sem fôlego. Ali? Nesse momento? De novo? As lembranças da noite que passaram em Schofield Park junto ao lago afloraram a sua mente. E respondeu exatamente como naquela noite quando lhe fez virtualmente a mesma pergunta: -Sim. Viu-o dar os três passos que os separavam e lhe estender a mão direita com a palma para cima. Afastou a pele de ovelha e colocou a mão na sua. Ele a levou aos lábios.


Capítulo 21

Wulfric pegou a pele de ovelha e a deixou sobre a cama, depois do que colocou o cobertor e afastou um extremo para poder meter-se debaixo. Quando se virou para olhála, continuava tal qual a tinha deixado, observando-o, embora tivesse tirado o casaco, que descansava no espaldar da poltrona. Levava um vestido amarelo claro, embora em um dos lados, pelo efeito da luz avermelhada dos vitrais, parecia cor pêssego. Era de talhe alto, decote fechado e mangas longas, sem adorno algum. Colava-se a suas curvas e ressaltava sua figura, atraente mais que suficiente. - Aproxime-se mais do fogo - lhe disse enquanto ficava a seu lado. Colocou-lhe uma mão na parte baixa das costas e a levou a aproximar-se da lareira onde se beneficiariam do calor das chamas. Não queria que esse momento fosse um simples esbanjamento de avidez sexual como da outra vez. Embora não tivesse mencionado a palavra e não pensasse em fazê-lo, queria lhe fazer amor. Não a beijou imediatamente. Tomou o rosto entre as mãos e lhe passou os polegares pelas sobrancelhas. Esses brilhantes olhos azuis o olhavam abertos como pratos. A luz rosácea e morada dos vitrais ressaltava o brilho de sua pele. Tinha uma boca linda de lábios suaves que se curvavam para cima nas comissuras. Enterrou os dedos em seu cabelo. Seus cachos eram suaves e estavam limpos, e recuperaram sua forma assim que se escorreram entre seus dedos. O estilo lhe assentava maravilhosamente. Baixou as mãos até seus ombros e moveu-as até suas costas, onde descobriu a fileira de botões do vestido. Foi desabotoando um a um até que pôde descer a parte dianteira pelos ombros e os braços até a cintura, de onde caiu ao chão, ao redor de seus pés. Não levava espartilho. As curvas eram suas, tal qual as tinha outorgado a natureza. A única coisa que a cobria do peito até os joelhos era uma simples regata de linho. Afastou-se um pouco dela para ajoelhar-se e lhe tirar os sapatos, depois do que lhe desatou as ligas e foi enrolando as meias por suas pernas até tirá-las Antes de lhe soltar o pé beijou o peito do mesmo e depois o joelho. Ela ainda não o havia tocado, percebeu. Entretanto, a julgar por seus lábios entreabertos e pelas pálpebras entreabertas, soube que desejava seguir adiante tanto como ele. Roçou-lhe um ombro com os lábios e o lambeu. Sua pele, cálida e suave, tinha um sabor ligeiramente salgado. Notou-a tremer apesar do calor do fogo. Baixou-lhe uma das alças da regata até despir um seio e, enquanto tomava na mão, foi deixando um rio de beijos até chegar a ele. Era perfeito. Suave e generoso, embora voluptuoso e firme ao mesmo tempo. Rodeou o mamilo com os lábios e respirou antes de chupá-lo. Essa foi a primeira vez que ela o tocou. Enterrou-lhe os dedos no cabelo e inclinou a cabeça até que sua fronte se apoiou nele, momento em que soltou um rouco gemido. De repente caiu na conta de que não a havia visto nua apesar de haver-se deitado com ela em uma ocasião. E quis fazê-lo nesse instante. Queria fazer amor sem que existisse barreira alguma entre eles.


O desejo, o desejo e a necessidade palpitavam em seu interior ao ritmo dos batimentos de seu coração. Sentia o calor do fogo no lado esquerdo de seu corpo. Ergueu a cabeça e ela afastou as mãos. -Venha para a cama - disse. Terminou de despi-la antes que se deitasse. Um raio de luz rosácea procedente de um dos vitrais caía sobre a metade superior de seu corpo, mas se ia tornando avermelhado à medida que descia por seus quadris e suas pernas. Embora pudesse ter ficado um momento mais deleitando-se com o que viam seus olhos, estavam longe do fogo, cujo calor ainda não tinha erradicado o frio que reinava no pombal. Cobriu-a com os lençóis e com a pele de ovelha, e se sentou na beira da cama para tirar as botas. Uma vez descalço, ficou em pé para acabar de despir-se e quando esteve nu, ergueu a roupa da cama e se reuniu com ela. O calor que irradiava seu corpo era muito tentador. Virou-se para ela, acomodou os lençóis e voltou a tocá-la. Dispôs-se a excitá-la com toda a habilidade e a paciência de que dispunha empregando as mãos, os dedos, os lábios, a língua e os dentes. Seu corpo ardia de desejo por ela, ansiando o momento de colocar-se em cima e voltar a consumar a paixão que despertava nele. Entretanto, ela não permaneceu passiva. Suas mãos começaram a explorá-lo, com acanhamento a princípio, embora fossem ganhando confiança à medida que seu corpo se excitava e sua respiração se tornava agitada. Tinha chegado o momento, compreendeu. Tentava se colocar sobre ela, erguer-lhe os quadris com ambas as mãos enquanto lhe separava as coxas, afundar-se em seu corpo e deixar-se levar pelo frenesi até que ambos estivessem satisfeitos. Não obstante, queria lhe fazer amor. Assim ergueu a cabeça e a olhou nos olhos. -Christine... - sussurrou e a beijou pela primeira vez com deliciosa doçura, acariciando apenas aqueles lábios entreabertos. Viu-a abrir muito os olhos ao mesmo tempo que soltava uma pequena exclamação. -Christine – repetiu - é tão formosa... E a beijou com paixão. O desejo sexual era muito intenso para continuar com as preliminares. Colocou-se sobre ela, que separou as pernas imediatamente e o rodeou com elas. Depois de lhe erguer os quadris com as mãos e ajustar sua posição, afundou-se, lentamente, em seu corpo. Christine mudou um pouco de posição nesse momento e se fechou com força em torno dele, apanhando-o em seu interior. Afastou as mãos dela, apoiou-se em um braço e ergueu a cabeça para olhá-la outra vez no rosto. Esses olhos azuis o olhavam com um brilho risonho e sonhador. -Wulfric - lhe disse - Um nome poderoso para um homem poderoso. Muito poderoso reiterou com uma gargalhada suave e maliciosa. Baixou a cabeça até esse tentador lugar oculto sob o lóbulo de sua orelha e grunhiu. Escutou-a rir de novo. Suas pernas o apertaram com força e seus músculos internos se esticaram ainda mais em torno dele.


Amou-a devagar e durante muito tempo, protegidos no quente refúgio que lhes proporcionavam os lençóis enquanto que o fogo crepitava na lareira e a luz rosácea, avermelhada e carmim dançava sobre a pele de ovelha. Amou-a até que ambos ficaram sem fôlego e seus movimentos os deixaram suarentos e excitados. Amou-a até que respondeu com um gemido a cada investida, até que se esticou com força a seu redor. E ambos alcançaram um clímax rápido e assustador. -Wulfric... - escutou-a protestar, com voz sonolenta, quando se separou dela para evitar que seu peso a esmagasse. Perder seu calor lhe provocou um calafrio, já que tinha o peito empapado de suor, mas a calidez dos lençóis fez que a sensação passasse rápido. Colocou-se de lado e a observou dormir com os olhos entrecerrados. As luzes em tons creme lhe iluminavam uma metade do rosto, enquanto que a outra metade descansava em sombras. Tinha o cabelo alvoroçado. Era um homem poderoso, tal qual havia dito Christine pouco antes. Aparentemente tinha tudo o que um homem podia desejar na vida. Entretanto, havia algo que queria e que não estava seguro de poder conseguir algum dia. Embora não pensasse perguntar nada esse dia. Talvez nem sequer no dia seguinte, nem no outro. Tinha medo de fazer essa pergunta. Tinha medo de que a resposta fosse negativa. Porque, se fosse assim, jamais poderia voltar a fazê-la. Assim devia esperar. O que queria era seu amor. Quando saíram do pombal, as nuvens se afastaram e o sol brilhava. O vento, não obstante, ainda soprava com força, de modo que o dia continuava sendo rude e frio. Caminharam de volta à mansão tal como o fizeram na noite do baile em Schofield Park do lago: Sem tocar-se e sem falar. Entretanto, a sensação era diferente. Porque nessa ocasião o silêncio e a proximidade eram agradáveis. Embora não fosse exatamente isso. Entre eles havia uma... certeza. Tinham compartilhado muito mais que o que compartilharam em Schofield Park. Ali tinham compartilhado seus corpos. No pombal o tinham compartilhado tudo. Christine ainda se sentia vulnerável e lhe tremiam as pernas. Estava profundamente apaixonada. E ao mesmo tempo tentava convencer-se de que devia ser sensata, de que um amor não era o mesmo que o amor verdadeiro. Era um alívio que não lhe tivesse feito a sabida pergunta. Tomara não o perguntasse... nunca. Porque se o fizesse, teria que responder e não sabia o que acabaria dizendo. Sabia o que não devia dizer, mas não o que diria. Mas e se alguma vez o perguntasse? Poderia suportar? Já o tinha perguntado uma vez e lhe havia dito que não. Provavelmente não quereria sofrer uma nova humilhação ao lhe repetir a pergunta. Claro que, que explicação tinha então sua estadia no Lindsey Hall? Que explicação tinha o dessa tarde? Tinha-a chamado "Christine"! Era absurdo recordar esse momento como, talvez, o mais terno e precioso de todos. Mas o tinha sido! "Christine... ", havia-lhe dito com essa dicção tão aristocrática e culta. Embora na primeira vez tinha sussurrado.


E depois ela o tinha chamado por seu nome e ele tinha grunhido em resposta. Virou a cabeça para olhá-lo e descobriu que ele a estava observando. Voltou a olhar à frente imediatamente. -O que? - perguntou Wulfric - Assim fácil ganhei hoje? Sentiu que se ruborizava. -Há muitas árvores - respondeu ela - Se não olho por onde vou, acabarei me pondo em ridículo ao trombar com uma. O rubor se intensificou ao recordar que tinha sido ela quem tomara a iniciativa a segunda vez que fizeram amor no pombal. Depois de despertar depois da primeira ocasião, sentiu-se quente, protegida e na glória. Virou a cabeça e o descobriu olhando-a. E esse foi o momento no que se endireitou sobre um cotovelo, inclinou-se sobre ele e o beijou nos lábios com ardor. Wulfric se deitou de costas e ela o seguiu, colocando-se em cima desse quente corpo nu com seus maravilhosos músculos, e começou a esfregar-se contra ele a modo de flagrante convite que foi rapidamente aceito. Jamais tinha feito algo parecido. Fazer amor com o duque de Bewcastle, com o Wulfric, era com diferença a experiência mais excitante e mais emocionante que tinha conhecido na vida. Entretanto, não devia confundir o ato do amor, ou o fato de estar apaixonada, com o amor em si. Conduziu-a até a mansão por uma rota diferente. Saíram do arvoredo pelo extremo mais afastado do lago, pela zona mais agreste onde as árvores chegavam até a margem. E ali, justo diante deles, estavam todos os outros, adultos e crianças, obviamente encantados, enquanto brincavam de esconderijo entre as árvores. Pamela, que foi primeira a vê-la, aproximou-se deles dando saltos com Becky ao lado. -Prima Christine! – gritou - subimos em um barco e coloquei a mão na água e Phillip queria remar, mas o papai de Becky lhe disse que não, que não hoje não se pode porque a água está agitada e Laura se enjoou e tivemos que parar na ilha e depois Laura não queria subir, mas o papai de Becky lhe disse que se olhasse sempre ao horizonte não voltaria a enjoar-se e não se enjoou e eu tampouco, embora Phillip dizia que ia me enjoar porque sempre me enjoo quando vou na carruagem. Pôs-se a rir ao escutá-la. -Uma tarde muito emocionante, sim, senhor - disse. Percebeu que Becky tinha tomado ao Wulfric da mão e caminhava movendo seus braços. -Tio Wulf - escutou-a dizer - Pamela e eu queríamos brincar de escola, mas com tantas crianças na ala infantil não podemos. Nos empresta a biblioteca quando voltarmos para casa? -Desde que me prometam não levar isso muito longe - respondeu ele. As meninas puseram-se a rir, encantadas. -Tolo! - exclamou Becky - Não vamos levá-la a nenhum lugar, só vamos utilizá-la! -Ah! Então sim - replicou Wulfric. A brincadeira do esconderijo devia ter chegado a seu fim. Tanto os adultos como as crianças estavam congregados em torno da margem, e as meninas os guiaram nessa


direção. -Estávamos dizendo às crianças que - explicou lorde Rannul f- embora sempre nos permitisse nadar no lago, aqui estava proibido. -Porque a tentação de lançar-se de cabeça dos ramos das árvores era muito difícil de resistir - declarou lorde Alleyne. -Mas seria muito divertido! - gritou Davy, apontando para cima - Olhe esse ramo, tio Aidan. Aposto o que quiser que poderia me lançar de cabeça daí. -Parece um pouco perigoso - disse lady Aidan. -Categoricamente proibido, moço! - exclamou lorde Aidan ao mesmo tempo que falava à sua esposa. -Sempre esteve proibido, Davy - lhe assegurou lorde Rannulf ao menino - Uma lástima. -Entretanto, isso nunca os deteve - disse Wulfric nesse momento - A nenhum. Nem sequer a Freyja. A ela menos que a nenhum. Morgan inclusive. Melanie pôs-se a rir e todos os Bedwyn se viraram para olhar a seu irmão mais velho com incredulidade. -OH, OH... - disse lorde Alleyne - sabia, Wulf? E nós nos achávamos muito espertos... -A primeira vez que o tentei, Kit ficou flutuando debaixo do ramo e se ofereceu para me agarrar - confessou lady Rosthorn - Tinha oito anos, se não recordo mau, e teria preferido a morte a que me acreditasse ser uma galinha. Estava apaixonada por ele até as sobrancelhas. Todos se puseram a rir com ela. Lorde Rosthorn lhe passou um braço pelos ombros. -Eu tenho oito anos! - gritou Becky - Papai, quero tentá-lo um dia que faça calor. -Viu o que formou ao falar diante das crianças? -exclamou exasperada lady Aidan. -Wulf começou ! - assinalou lady Hallmere - Como sabia que nadávamos aqui, Wulf? -Porque eu também o fazia quando era pequeno - respondeu - Com o Aidan. Nunca trouxemos Rannulf porque tínhamos medo de que abrisse a cabeça com uma pedra ou com uma raiz, motivo pelo que nos teriam dado uns bons açoites na bunda. As crianças explodiram em vivas, encantadas com o que ouviam. -O tio Wulf disse "bunda"! - gritou William e todos voltaram a explodir em gargalhadas. -Wulfric atirando-se de cabeça de um ramo! ? - exclamou lorde Hallmere com um sorriso - Contra as regras? Não consigo acreditar nisso. -Nem eu tampouco - concordou lorde Rannulf com ironia - Nunca teria aceitado que me deixassem para trás. O duque levou o monóculo ao olho. -Devo entender que está me acusando de... mentiroso? - perguntou. Entretanto, a pergunta só serviu para que as gargalhadas e as brincadeiras subissem de volume. Percebeu que Becky ainda o tinha pego pela mão. Viu-o olhar à menina e o escutou suspirar. -Não há nenhuma outra forma, verdade? - perguntou. E para estupefação de todos os pressentes, incluída ela, tirou o chapéu, as luvas e o


capote, e foi dando a Becky. -Caramba! - exclamou lady Hallmere - Wulf vai atirar se à água. Josh, fique atrás de mim. Estou a ponto de desmaiar. -Wulfric... - disse lady Aidan - a água estará gelada. -É fora da água e já estamos congeladas... - declarou Melanie. Bertie grunhiu. -Isto é maravilhoso! - exclamou lady Alleyne. A essas alturas tirou a jaqueta, o colete, o monóculo e a gravata, objetos que tinha ido passando a ela. Finalmente, passou a camisa pela cabeça e a deixou sobre o montão de roupa que descansava em seus braços. -Wulfric - lhe disse lady Rannulf - não deixe que o provoquem. É perigoso. Vai fazer se mal. As crianças saltavam de um lado para outro, loucas de alegria. -Ver para acreditar - comentou lady Rosthorn ao mesmo tempo em que dava um tapinha à mão de seu marido, que repousava sobre um de seus ombros. Lorde Rannulf e lorde Alleyne contemplavam a cena cotovelo com cotovelo, Sorrindo de orelha a orelha. Wulfric tirou as botas sem sentar-se no chão e as deixou uma junto à outra, sobre a erva. Deve estar gelado, pensou ela. Embora não podia evitar olhá-lo com assombro. A última coisa que tirou foram as meias três-quartos, que acabaram no interior das botas. De modo que ficou com as calças e os calções que sabia que levava debaixo. Afastou-se deles descalço e subiu pelo tronco do carvalho como se fosse uma atividade que praticasse todos os dias. Claro que um pouco de prática sim que teve poucos dias antes, quando resgatou o monóculo... Caminhou pelo ramo que se estendia em paralelo sobre a água segurando-se a outro superior para não perder o equilíbrio até que foi impossível fazê-lo e depois seguiu sem nenhum apoio. Quando chegou ao extremo, comprovou a solidez do ramo dando pequenos saltinhos ao mesmo tempo que flexionava os braços. Compreendeu que o estava fazendo para deleite de seu público, que estava encantadíssimo. E nesse momento se atirou de cabeça com os braços estendidos para diante, as pernas retas e os pés esticados. Mal salpicou quando entrou na água. Entretanto, se escutou, da margem, uma coletiva exclamação de assombro, que logo foi seguida por uma ovação. Ela levou a mão livre à boca até que viu emergir sua cabeça, a qual começou a sacudir para tirar a água dos olhos. -Alguém deveria me ter avisado de que a água está fria! - gritou. E nesse momento foi quando se apaixonou total e irremediavelmente por ele. Justo antes que acontecesse algo extraordinário; além do anterior, claro. Lady Hallmere se plantou frente a ela com expressão carrancuda e a abraçou com todas suas forças, esmagando a roupa de seu irmão no processo. -Se isto for obra tua - a escutou dizer - quererei-a toda a vida. E depois se afastou com os outros para continuar desfrutando do espetáculo de ver o duque de Bewcastle nadando a escassa distância que o separava da margem. Uma vez ali, saiu e se plantou no chão, jorrando água da cabeça aos pés.


-Lançar-se de cabeça à água desde esses ramos... - disse, dirigindo-se às crianças com sua costumeira autoridade, embora lhe tocavam castanholas os dentes - continua estando categoricamente proibido. -Algo extremo, não lhe parece, Wulf? - perguntou lorde Aidan - Se queriam convencer-se de que estava dizendo a verdade, só tinham que perguntar a mim. - Viu-o esboçar um desses estranhos sorrisos que aumentavam em grande medida seu atrativo. Ela se tinha aproximado correndo para eles, mas estendeu a roupa a lorde Aidan em lugar de ir passando peça a peça a Wulfric. Esses olhos prateados, mais prateados que nunca pelo contraste com o cabelo molhado, cravaram-se nela. -Alegra-me recordar, senhora – disse - que não ri de você no dia que caiu na Serpentina. Agora entendo o desconforto que sofreu. Entretanto, ela riu dele. Não em voz alta. Mas sim com os olhos. Tinha-o feito por ela. Estava certa. Para lhe demonstrar que era tanto Wulfric Bedwyn como o duque de Bewcastle.


Capítulo 22

O baile de Lindsey Hall esteve muito concorrido, já que a maioria das famílias da zona continuava no campo devido às festas de Páscoa. Além disso, os grandes bailes organizados pelo duque de Bewcastle eram um evento único. Acudiram pessoas de vários quilômetros ao redor. É obvio, Wulfric não tinha organizado o evento em pessoa. Tinha um secretário para encarregar-se dos detalhes mundanos, e irmãs e cunhadas para preocupar-se com outras coisas, como os arranjos florais do salão ou a seleção do menu para o jantar e para a sala de refrescos. Entretanto, no dia famoso se interessou pelos preparativos mais do que o costume e passeou da biblioteca ao vestíbulo principal e dali ao salão de baile, incapaz de concentrar-se em uma atividade em concreto. Seus convidados partiriam ao cabo de dois dias. Inclusive sua família partia, uns à cidade e outros a suas propriedades campestres. Ia deixá-los partir. Ia deixar que ela partisse. Assim tinha decidido. Mas queria que essa noite fosse especial. Por isso perambulou impaciente pela mansão e se manteve afastado do salão, negando-se a participar das atividades que outros tinham planejado. Ao chegar a noite e uma vez que esteve na linha de recepção junto a seus tios, vestido como de costume de branco e negro, pensou que o salão de baile estava realmente magnífico, adornado com cestinhos de flores primaveris penduradas nas paredes e por cima das portas, e os enormes vasos de samambaias e lírios que rodeavam as três colunas centrais. E ela também estava encantadora... Sim, Christine Derrick, que sorria e brilhava com luz própria ao passar da linha de recepção ao salão e vê-lo pela primeira vez. Levava um vestido branco. O delicado festão que adornava a barra e as mangas curtas de farol estava composto por mariposas, margaridas e folhas. Parecia um pedacinho da primavera. Deu-lhe um salto o coração ao vê-la. Ao sair da sala de refeições depois do almoço tinha perguntado a ela se podia lhe reservar a primeira valsa. Poderia dizer-se que eram as primeiras palavras que lhe dirigia em dois dias, depois de mergulhar no lago. Embargava-o um absurdo acanhamento. Ou talvez se tratasse de pânico. Queria acreditar que tudo estava bem entre eles, que ela sentia o mesmo que ele e que -isso era o mais importante de tudo nesse momento achava possível um futuro juntos. Mas não estava seguro. E como a incerteza não era habitual em sua vida de adulto, não tinha muito claro como enfrentar-se a ela. Abriu o baile com a viscondessa de Ravensberg, que tinha escolhido muito acertadamente um vestido violeta do mesmo tom que seus preciosos olhos. A seguir dançou com lady Muir, a irmã do conde de Kilbourne, e se perguntou por que uma mulher com sua beleza não havia tornado a casar-se apesar de estar viúva vários anos e de ser um grande partido. Em certa forma era estranho que nunca lhe tivesse passado pela cabeça cortejá-la ele mesmo. Acompanhou na terceira dança a Amy Hutchinson graças às destrezas de sua tia. A tia Rochester tinha tomado ao assalto a biblioteca no dia anterior e lhe tinha soltado um sermão sobre o dever e sua responsabilidade para com o sobrenome


familiar. Uma responsabilidade que deveria afastá-lo, segundo ela, da filha de um professor rural que sorria muito e cujas maneiras deixavam muito a desejar em certas ocasiões. Tinha escutado o sermão sem replicar, depois do que levou o monóculo ao olho, agradeceu-lhe sua preocupação e virtualmente a obrigou a ir-se por onde tinha chegado e a deixá-lo como dono e senhor de seus domínios, levando sua indignação com ela. Entretanto, parecia não ter retrocedido em seu empenho de lhe impor a sua sobrinha. A quarta dança seria uma valsa. Christine Derrick tinha dançado com Attingsborough, Kit e Aidan. Estava ruborizada e tinha os olhos brilhantes; de fato, sua imagem era a oposta a que devia mostrar uma dama durante um baile: Distante e ligeiramente enfastiada. Estava realmente adorável. Viu-a o outro lado do salão de baile com lady Elrick e a duquesa do Portfrey. Seus olhos se encontraram através da pista de baile vazia. Foi incapaz de resistir. Agarrou com força o cabo de joias de seu monóculo e o levou a olho antes de baixá-lo ligeiramente. Apesar da distância percebeu o brilho risonho que iluminou seus olhos. E depois a viu rebuscar na bolsinha de tecido que pendia de seu pulso, da qual tirou algo. Por um instante só conseguiu ver uma fita negra. Até que ela ergueu muito devagar o objeto até levá-lo ao olho e olhá-lo... através da lente de seu próprio monóculo. Wulfric Bedwyn, muito arrogante e gélido duque de Bewcastle, surpreendeu-se tanto que soltou uma gargalhada, antes de esboçar um lento sorriso transbordante de afeto e bom humor. Ela já não sorria, percebeu, enquanto avançava pela pista de baile vazia para ela. Nem sequer lhe passou pela cabeça que teria sido muito mais correto rodear o perímetro do salão sem chamar a atenção. Entretanto esses claros olhos azuis o olhavam abertos como pratos enquanto mordia o lábio inferior. -Senhora Derrick - disse ao mesmo tempo que fazia uma reverência depois de chegar a seu lado - acredito que é minha vez. -Assim é, excelência - replicou ela - Obrigada. Foi nesse instante, ao lhe estender a mão, quando percebeu o repentino silêncio que se deu no salão de baile. Virou a cabeça e olhou a seu redor com expressão surpreendida e as sobrancelhas arqueadas para ver o que tinha acontecido. Entretanto, ao fazê-lo todos os pressentes retomaram suas respectivas conversas. -Perdi algo? - perguntou. Christine aceitou sua mão. O monóculo tinha desaparecido uma vez mais na bolsinha. -Sim - respondeu ela - Mas lhe teria feito falta um espelho. Perdeu a oportunidade de ver-se sorrir. De que demônios...? Pensou e a olhou com o cenho franzido. -Pelo que entendi - prosseguiu ela e compreendeu que grande maliciosa voltava a rir dele - é tão extraordinário como uma rosa no inverno. Que tolice, pensou. Que tolice maior! Mas não disse nada a respeito. Durante meia hora dançou a valsa com ela e o mundo a seu redor se desvaneceu.


Nessa ocasião, não havia risco de que Héctor se chocasse com eles ao dançar em direção contrária, já que tinha partido para a sala de jogos ao começar os primeiros acordes. Não havia nada que pudesse machucar a ela nem que pudesse distrai-lo de sua presença. Christine estava resplandecente. Tinha a sensação de levar a própria alegria entre os braços. Olhou-a nos olhos todo o tempo, maravilhado por sua beleza, inalando sua fragrância, sem fazer nada para dissimular a admiração com a qual o fazia. -Obrigado - disse quando a música chegou a seu fim e se viu obrigado a retornar à realidade. Depois do que acrescentou em voz muito mais baixa - Obrigado, Christine. O dever o chamava. Era o anfitrião do baile. Seu lar estava repleto de convidados. Sua meia hora de complacência tinha terminado. Christine não recordava nunca ter-se sentido tão deprimida. Embora isso fosse precisamente o que se pensava quando se estava deprimido. De qualquer forma, essa depressão superava com acréscimo a qualquer outra. Wulfric tinha querido lhe demonstrar algo. Tinha-a convidado para fazê-lo... e o tinha conseguido. Até aí chegavam suas intenções. Tinha tido sua oportunidade o ano passado e a tinha rechaçado... com firmeza e supremo desdém. Não voltaria a pedir-lhe É obvio que não o faria. Era o duque de Bewcastle. E se por acaso fosse pouco, nesse dia se pôs a chover. Embora não o suficiente para atrasar sua partida e demorá-los um dia mais em Lindsey Hall. Graças a Deus que não estava chovendo com força. Não obstante, bastava para converter o mundo em um lugar cinza e triste, e para embaçar as janelas da carruagem uma vez que estivessem em caminho. Lançou um último olhar ao dormitório de estilo oriental que tinha ocupado durante sua estadia. Já tinham descido sua bolsa de viagem e a tinham metido na carruagem. Há duas noites tinha alcançado o topo da felicidade. Tinha lhe sorrido do outro lado do salão de baile depois de havê-lo olhado através de seu próprio monóculo... que nesse momento estava no bolso de seu casaco envolto com seu lenço. Tinha-lhe sorrido, e teria jurado que o coração lhe deu um salto. E depois dançaram a valsa enquanto ele a comia com os olhos. Estava segura de ter visto um sorriso em suas profundidades. Seu prateado pareceu, de repente, cobrar vida e luz. Teve a sensação de que seus escarpans mal tocavam o chão enquanto dançavam. Todas suas dúvidas se evaporaram, todas as barreiras tinham caído. Mas depois acabou a valsa... e depois apenas lhe tinha dirigido a palavra. No dia anterior tinha estado muito ocupada com o resto dos convidados divertindo-se desde a manhã até a noite. Entretanto, o duque de Bewcastle se encerrou em sua biblioteca, e só Bertie, Basil, Héctor e lorde Weston tiveram a permissão para entrar em seu domínio privado. E nesse momento partia. As duas carruagens de Bertie estavam preparadas no terraço. As crianças estavam subindo com sua babá à segunda. Melanie e Bertie


certamente estariam no vestíbulo, perguntando-se onde se colocara. Inspirou fundo e saiu do dormitório sem lançar a vista atrás. Obrigou-se a esboçar um sorriso. No vestíbulo a aguardava uma multidão. -Ah, aqui está, Christine! - exclamou Melanie. Em seguida, viu-se envolta em um redemoinho de mãos e abraços. Eram os primeiros em partir, embora o resto se iria nesse mesmo dia. Hermione chorava abertamente, e isso esteve a ponto de fazê-la explodir em lágrimas. Alargou o sorriso. Melanie e Bertie correram para a carruagem. -Senhora Derrick... - disse a voz arrogante e fria do duque - me permita que lhe sustente o guarda-chuva para que não se molhe. Acrescentou uma nota risonha a seu olhar. -Obrigada - replicou. Baixou a vista ao cruzar a soleira da porta principal, momento em que ele abriu um enorme guarda-chuva. Tentou se apressar. Mas ele a agarrou pelo braço com firmeza. Virou-se e lhe sorriu. -A chuva me converteu em uma mal educada – disse - Não lhe agradeci sua hospitalidade, excelência, foi uma estadia esplêndida. -O problema, senhora Derrick, é que sua mãe não está aqui - escutou-o dizer - nem suas irmãs nem seu cunhado. Há uma pergunta que eu gostaria de lhe fazer, mas as boas maneiras me obrigam a falar ao menos primeiro com sua mãe, coisa que não fiz no verão passado. Posso falar com ela? Posso lhe fazer minha pergunta depois? Não a incomodarei, nem a ela nem a você, se preferir que não o faça. O guarda-chuva emprestava uma falsa sensação de intimidade. Escutava o repico da chuva contra o tecido. Olhou-o nos olhos, e de repente a depressão se esfumou, e foi substituída por uma radiante felicidade. -Sim - respondeu quase sem fôlego - Pode falar com minha mãe. Sentirá-se honrada. E pode me perguntar depois. Eu me sentirei... -Christine? - insistiu ele em voz baixa. -Encantada - concluiu, e saiu de debaixo do guarda-chuva a toda pressa para subir os degraus e meter-se na carruagem sem esperar a que ele a ajudasse. Foi então quando as tolas lágrimas apareceram, inundando lhe os olhos e empanando-lhe a vista, e ameaçando deslizar-se por suas faces. Melanie lhe deu uns tapinhas na mão enquanto a portinhola se fechava com um golpe surdo e a carruagem se punha em marcha quase ao mesmo tempo. -Sinto muito, Christine - consolou-a. - Esperava algum anúncio durante o baile. Todo mundo esperava. Mas não importa. De qualquer maneira, é um homem muito arrogante e muito desagradável, não é? Já encontraremos alguém. Saiba que não será difícil. Os homens a acham muito atraente. Não se tinha produzido nenhum anúncio durante o baile, pensou, porque sua mãe não estava ali, nem Eleanor, Hazel ou Charles. E ele tinha achado que diferente do ano anterior que seria descortês fazê-lo sem ter completado com a formalidade de consultá-las antes. Não estava apaixonada por ele, pensou. Não, muito menos.


Amava-o! Wulfric supôs que Christine não havia dito a sua família que deviam esperar sua visita. Enquanto conversava com sua mãe e suas irmãs na sala de estar de Hyacinth Cottage ficou muito claro que estavam aterradas. Ao menos, a senhora Thompson e a senhora Lofter, que tinha chegado de visita ao aparecer ele e assim que entrou lhe deu a sensação de que teria partido se as boas maneiras o tivessem permitido. A senhorita Thompson o observava por cima de seus óculos, que não tirou apesar de ter fechado o livro que estava lendo quando o viu aparecer. Seu rosto tinha uma expressão um tanto zombadora, que lhe recordou em certa forma a sua irmã. Tinham passado oito dias desde que Christine partiu de Lindsey Hall com os Renable. E, como não podia ser de outro modo, teve que aparecer uma tarde em que ela não se encontrava em casa, embora esperavam que retornasse em qualquer momento para tomar o chá. A senhora Thompson não deixava de olhar pela janela com nervosismo como se desse modo pudesse apressá-la. De fato, era algo positivo que não estivesse em casa, decidiu. Já estava farto do bate-papo insubstancial. -Há algo de que eu gostaria de falar com você, senhora - disse, dirigindo-se à senhora Thompson - antes de falar com a senhora Derrick. Assim que talvez seja oportuno que suas outras filhas também estejam pressentes. Perguntava-me se oporia você a que a senhora Derrick se converta na duquesa de Bewcastle. A senhora Thompson o olhou com a boca aberta. A senhora Lofter levou ambas as mãos ao rosto. Foi a senhorita Thompson quem falou depois de um breve silêncio. -Excelência, Christine o está esperando? - perguntou-lhe. -Acredito que sim - respondeu. -Nesse caso, é a ilusão de sua chegada o que avivou seus passos e acrescentou ainda mais ternura a seu sorriso desde que voltou de Hampshire a semana passada – afirmou - Acredito que estaremos encantadas, excelência. E não porque vá ser a duquesa de Bewcastle, mas sim porque voltará a ser feliz. -Mas Eleanor, Christine sempre é feliz. -Seriamente? - perguntou a senhorita Thompson e deixou a questão no ar. -Mãe do amor formoso, Christine uma duquesa! - exclamou a senhora Thompson - É muito amável de sua parte pedir nossa aprovação, excelência. Mas estou segura de que não era necessário que o fizesse, já que você é um duque e Christine tem bastante idade para decidir por si só. Tomara seu pai tivesse vivido para ver este dia. Nesse momento escutaram vozes no vestíbulo. -Chego tarde para tomar o chá, senhora Skinner - dizia Christine - Estava lendo para o senhor Potts e ficou adormecido como costuma a acontecer cada vez que chego ao terceiro parágrafo, pobrezinho. Mas assim que me dispus a sair nas pontas dos pés, despertou e me entreteve durante meia hora me contando todas suas historietas. Tomara alguém me desse um xelim por cada vez que as escutei. Mas é que adora ver-me exclamar e rir no momento adequado. Nesse instante abriu a porta da saleta com um sorriso no rosto e entrou nela com o


velho chapéu de palha e um vestido de popelina com listas verdes e brancas que recordava do ano anterior. Tão bonita como o tinha estado com sua roupa nova em Londres e em Lindsey Hall. -Ah! - exclamou, com o sorriso congelado no rosto. Ele se levantou e lhe fez uma reverência. -Senhora Derrick - a saudou. -Excelência. - Fez-lhe uma reverência. A senhora Thompson também ficou em pé. -Sua excelência deseja falar com você em particular, Christine – disse - Vamos, Eleanor. Vamos, Hazel. Deixemo-los sozinhos. -Preferiria sair com a senhora Derrick ao jardim lateral, senhora - replicou. O lugar onde tinha dado um fora no ano anterior. Era importante para ele remediar o engano no mesmo lugar. E assim, ao cabo de um par de minutos, saíam pela porta principal em direção aos degraus que davam ao arco emperrado, o qual deixaram atrás de caminho ao tranquilo jardim quadrado que tinha visto em seus pesadelos durante semanas depois da última vez que esteve ali. -A senhora Skinner deveria ter me avisado antes de passar à sala de estar – disse Me teria arrumado um pouco. -Em primeiro lugar, não acredito que tenha dado opção a sua governanta a dizer alguma só palavra. E em segundo, está adorável tal como está. -Ah! - colocou-se uma vez mais atrás do banco de madeira, tal como fizera naquela ocasião. Viu a aferrar-se ao espaldar com ambas as mãos. -Antes de tudo, devo lhe dizer que nunca poderei ser seu homem sonhado... - disse ao mesmo tempo que entrelaçava as mãos às costas. -Sim pode - interrompeu-o ela depressa - Pode ser e o é. Não recordo muito bem a lista que lhe enumerei o ano passado, mas não tem importância. É tudo o que sempre sonhei e muito mais. Adeus ao discurso que tinha preparado com tanto esmero. -Isso quer dizer que me aceita? - perguntou-lhe. -Não. - Quando a viu negar com a cabeça, fechou os olhos - Não sou nem a classe de mulher que necessita para ser sua duquesa - concluiu. Abriu os olhos. -Não terá pensado me soltar uma fileira de tolices, não é? - perguntou-lhe - Segundo a mais alta instância, Freyja, nenhum de meus irmãos, nem seus cônjuges ou seus filhos, voltarão a me dirigir a palavra se não lhe oferecer essa posição e além disso convenço-a para que aceite. E nenhum membro da alta sociedade é mais elitista que um Bedwyn. -A marquesa de Rochester o é - assinalou ela. -Minha tia é como o resto de nós – replicou - gosta de sair-se com a sua. Tinha a absurda ideia de que a sobrinha de meu tio e eu formaríamos um bom casal. Mas se sobreporá à desilusão. Adora-me. Sou seu preferido. Circunstância que, por certo, nenhum de meus irmãos inveja. Pôs-se a rir, como tinha sido sua intenção. Viu-a rodear o banco e sentar-se.


-Excelência, eu... - começou. -Por que me chama assim? - perguntou-lhe - Por que, Christine? -Parece-me presunçosa chamá-lo de Wulfric - respondeu. -Pois não lhe pareceu isso enquanto estávamos na cama do pombal - replicou. Viu-a ficar vermelha como uma papoula, embora continuasse sustentando seu olhar. Era incrível pensar que tivesse sido precisamente isso o que o levou a fixar-se nela em Schofield Park. -Wulfric, tenho trinta anos - lhe disse. - Completei-os há três dias. -Ah! – exclamou - Nesse caso, durante umas semanas posso fingir que só sou cinco anos mais velho que você. Porque ainda não completei os trinta e seis. -Sabe muito bem o que quero dizer - disse ela - Embora não fosse estéril, estou-me aproximando do final de meus anos férteis. Mas acontece que sou estéril. Deveria lhe ter dito que não quando me perguntou se podia vir. Mas não estava pensando com a cabeça. Só pensava nos dias tão maravilhosos que tinha passado no Lindsey Hall e em... -Christine, deixa de dizer tolices - interrompeu-a. - Já lhe disse que tenho três irmãos, e qualquer deles seria um magnífico herdeiro. Você os conhece. E se Aidan não tem filhos varões, parece-me muito bem que William me suceda algum dia. Não tinha planejado me casar. Depois da fracassada tentativa de fazer um matrimônio de conveniência aos vinte e quatro anos, soube que jamais poderia me casar a menos que conhecesse a mulher que se converteria na outra metade de minha alma. Para falar a verdade, não esperava conhecê-la jamais. Não sou um homem que inspire muito amor. -Seus irmãos o querem com loucura - afirmou. -Christine, você é a luz, a alegria e a personificação do amor. Se aceita ser minha esposa, jamais tentarei que se amolde à imagem preconcebida do que deve ser uma duquesa... nem que ninguém tente te amoldar a ela. A tia Rochester o tentará com todas suas forças. A única coisa que tentaria, ou melhor que lhe exigiria, é que você seja a mesma, nada mais. Se alguém se desgostar de sua forma de levar o papel de duquesa, fracassará. Mas não acredito que isso acontecerá. Tem um dom para despertar o amor e a risada, inclusive naqueles que não estão predispostos a querê-la nem a rir com você. Christine cravou a vista em suas mãos, que tinha unidas no regaço, e seu rosto ficou oculto pela aba do chapéu. -Sempre serei o aristocrata sério, distante e frio que tanto detesta – prosseguiu Tenho que sê-lo. Eu... -Sei - assegurou ela ao mesmo tempo que levantava a cabeça - Jamais esperaria, nem quereria, que mudasse. Amo ao duque de Bewcastle tal como é. É formidável, magnífico e perigoso... sobre tudo quando levanta os vilãos do chão com uma só mão e os sustenta no ar enquanto os aterroriza com algumas palavras pronunciadas em voz baixa. Estava observando-o com sua característica expressão risonha. -Mas também serei sempre Wulfric Bedwyn – acrescentou - E Wulfric tem descoberto que de vez em quando é divertido lançar-se à água do ramo de uma árvore proibida. O sorriso se estendeu por todo seu rosto. -Amo ao Wulfric Bedwyn com loucura - assegurou ela com uma nota travessa na voz. -De verdade? - Cruzou a distância que os separava e lhe agarrou ambas as mãos.


Levou-as aos lábios, primeiro uma e depois a outra - De verdade, meu amor? O bastante para te arriscar comigo? Porque devo lhe fazer uma advertência. Os Bedwyn têm uma tradição segundo a qual, embora demoremos para nos casar, quando o fazemos entregamos a nossos cônjuges toda nossa devoção e fidelidade. Se casar comigo, será o objeto de minha adoração pelo resto de sua vida. Ouviu-a suspirar. - Acho que poderei suportá-lo assegurou - se puser todo meu empenho. Mas só se me permite fazer o mesmo. Sorriu ao escutá-la rir dele. -Bem. - Apertou-lhe as mãos com mais força - Bem. Ajoelhou-se na erva diante do banco e lhe beijou as mãos antes de deixa-las no regaço. -Casara-se comigo, Christine? Ela se inclinou para diante e lhe beijou a face. -Sim - respondeu -. Sim, Wulfric, se não se importar. Virou a cabeça e seus lábios se encontraram. Sentar-se em um banco da igreja do Saint George, em Hanover Square, durante as bodas de Audrey com sir Lewis no fim de fevereiro, tinha enchido Christine de assombro e isso porque esteve meio vazia. Vê-la nesse momento - no dia de suas bodas, em meados de junho- do fundo da nave, cheia a transbordar com quase todos os membros da alta sociedade que ainda seguiam boquiabertos pela surpresa, provocava-lhe tal pânico que temia ter esquecido como caminhar e já se via de bruços no chão quando o órgão começasse a soar-coisa que estava fazendo nesse preciso momento-, de modo que Basil teria que arrastá-la até o altar para que não perdesse a oportunidade de converter-se em duquesa. Como Charles estava ajudando a oficiar a cerimônia, a decisão sobre quem a levaria a altar foi evidente. -Ai, Deus! - murmurou, aterrada. -Calma. - Basil lhe deu um tapinha na mão - Todo mundo está ansioso por vê-la, Christine. Esse era o problema, pensou. Wulfric tinha deixado em suas mãos a escolha do lugar onde se celebraria as bodas. Teria lhe encantado casar-se na igreja do povoado com Charles oficiando a cerimônia. Do mesmo modo que lhe teria encantado fazê-lo na igreja de Lindsey Hall. Como ao Wulfric. Porque o havia dito. Mas não, tinha tido que enfrentar o assunto com generosidade. Afinal, era o duque de Bewcastle, um dos homens mais ricos e poderosos do país. portanto, era importante que suas bodas se celebrassem com toda a pompa dignas de sua posição. Assim se decidiu por Saint George, onde se celebravam as bodas mais elitistas da alta sociedade desde que fosse durante a temporada social. Assim era a única culpada de estar passando por esse momento aterrador. Mas então Basil lhe deu outro tapinha na mão para lhe indicar que deviam caminhar para o altar... e descobriu que recordava perfeitamente como se fazia. Embora não fosse um ato consciente que tivesse que agradecer a suas extremidades.


Assim que olhou à frente. Viu-o vestido de branco, marrom e ouro. Estava muito bonito. O assombro e a incredulidade se apoderaram dela por um instante... ou talvez dois. Era impossível que a estivesse esperando a ela. Devia ter entrado no sonho de outra pessoa e certamente estava a ponto de despertar na escola ou em Hyacinth Cottage. Entretanto, nesse momento conseguiu por fim ver seu rosto. Era bonito, apesar da frieza e da austeridade de seu atrativo, com um queixo firme, lábios finos, maçãs do rosto afilados e um nariz proeminente de perfil aquilino. O rosto do duque de Bewcastle. O rosto do homem que amava com toda sua alma. O rosto do Wulfric. Sorriu-lhe através do véu de seu chapéu verde musgo. E por fim, à medida que se aproximava pelo braço de Basil, viu-lhe os olhos... esses olhos prateados que a observavam caminhar com um brilho intenso, alheios aparentemente à presença de lorde Aidan a seu lado e a de todos outros convidados que enchiam a igreja. E nesse momento o viu sorrir muito devagar, desse modo tão especial que o convertia no homem mais bonito que jamais tinha pisado na terra. Pouco depois esteve a seu lado, e a partir desse momento os nervos a abandonaram. Não havia ninguém mais no mundo salvo eles dois... e o sacerdote que ia convertê-los em marido e mulher para o resto de suas vidas. -Queridos irmãos... - começou com esse tom tão particular que todos os clérigos utilizavam nas ocasiões solenes. Uma vez terminada a cerimônia, assinaram o registro e o órgão começou a tocar para que os noivos saíssem da igreja caminhando entre os bancos ocupados pelos solenes convidados, momento no qual Wulfric degustou o que lhe proporcionaria o resto de sua vida de casado. Christine ia segura a seu braço e a olhou com compaixão. Sabia que tinha escolhido Saint George e um casamento faustoso e muito público por ele. E era de supor que estivesse muito nervosa ao ter que enfrentar a seus convidados pela primeira vez. Seu rosto, livre do véu que recolhera sobre a aba do chapéu, mostrava um sorriso radiante. Sorria à direita e à esquerda, a sua própria família, aos poucos Bedwyn que ainda estavam na nave, a vários conhecidos... Preocupou-se em vão. E nesse momento, a metade do corredor e quando o órgão acabava de alcançar o crescendo do solene hino, viu-a apontar com um braço para o outro extremo da igreja. -Olhe, Wulfric! - exclamou em voz alta - Ali estão as crianças! E estavam. Os mais pequenos, com suas respectivas babás, perto da porta para poder tirá-los sem problema em caso de que começassem a fazer barulho. -É a tia Christine! - disse William gritando. - E o tio Wulf! - acrescentou Jacques. E Christine levantou o braço e os saudou com a mão... com toda a alta sociedade como testemunha. Aguardou que estivesse pronta para prosseguir a solene procissão e como não tinha


nada que fazer salvo esperar, levantou a mão e também os saudou. E sorriu. A vida, supôs, ia ser uma aventura a seus recém estreados trinta e seis anos. De fato, era o dia de seu aniversário. -Será melhor que a avise - murmurou quando chegaram à porta - Não sei se quando sairmos reparou que os bancos mais próximos ao altar estavam vazios. As pessoas que deveriam ocupá-los nos esperam fora. E certamente fora estavam os Bedwyn, seus cônjuges e seus filhos maiores, alinhados entre a porta e a carruagem que os esperava, e armados com pétalas de rosas. Havia muitíssimo mais pessoas, uma massa de curiosos que tinha ido para ver um casamento da alta sociedade. Alguém aclamou aos noivos e a multidão respondeu. -Wulfric, que emocionante é tudo isto! - exclamou Christine. Soltou uma gargalhada, agarrou-a pela mão e pôs-se a correr com ela. Uma chuva de pétalas caiu sobre eles. Embora, como era inevitável, ela se deteve a meio caminho e se agachou para recolher um punhado que passou a lançar contra Rannulf, Rachel e Gervase com uma alegre gargalhada. Pouco depois subiram à carruagem descoberta e enquanto ela se trabalhava em excesso com as saias do vestido branco debruado de verde e muito elegante, ele agarrou as bolsas com moedas e passou a jogá-las em punhados sobre as cabeças da multidão. Um lacaio de libré subiu à boleia junto ao cocheiro e outros dois o fizeram atrás, e a carruagem se pôs em marcha... criando um grande estrépito, já que arrastava algumas fileiras de botas velhas e outras vasilhas quebradas, além de um sem-fim de fitas de cores. Olhou a sua noiva, a sua esposa, a sua duquesa, e lhe pegou na mão. -Por fim – disse - Agora por fim posso acreditar que vamos ser felizes para sempre. -Wulfric, nada de felizes para sempre – corrigiu - Isso é muito estático. Não quero ser feliz para sempre. Quero ser feliz, viver, brigar, me reconciliar, ter aventuras e... Inclinou-se para ela e a beijou nos lábios. -Bom, e isso também - disse ela com uma gargalhada enquanto a multidão que se amontoava frente à igreja estalava em outro turno de vivas e os dois lacaios que iam na parte traseira da carruagem cravavam o olhar à frente.

Epílogo

Era o aniversário do duque de Bewcastle. Fazia trinta e sete anos. Entretanto, não tinha por costume celebrá-lo em companhia de um grande número de convidados em Lindsey Hall. Também era seu primeiro aniversário de bodas. Obviamente, teria celebrado a ocasião com sua duquesa, mas não teria convidado a ninguém. Era muito mais provável, pensou enquanto aguardava com paciência que seu criado pessoal lhe fizesse um nó perfeito na gravata, que tivessem ido ao pombal, onde tinham passado grande parte das festas natalinas.


Não obstante, a mansão estava ocupada por um grande número de convidados. Mais que os que assistiram à Páscoa do ano anterior. E se esperava a chegada de muitos mais depois de que acabasse a missa a que todos iam assistir. A celebração não se devia nem a seu aniversário nem ao aniversário de bodas. Os duques nem sequer esperavam ser o centro de atenção. Essa honra o tinha James Christian Anthony Bedwyn, marquês de Lindsey. Entretanto, uma hora depois de que a gravata do duque tivesse sido cuidadosamente atada e o resto de seu traje colocado, e depois de que a duquesa aparecesse vestida com um novo vestido azul que fazia jogo com seus olhos, o marquês parecia disposto a lhes ceder essa honra. Ficou dormindo. Embora despertou sobressaltado quando a água que se supunha que devia estar temperada, mas que lhe pareceu gélida, caiu-lhe sobre a fronte e escorreu até a nuca. Deu rédea solta a sua ira durante alguns minutos. Não obstante, alguém se encarregou de secá-lo imediatamente e em um abrir e fechar de olhos esteve nos braços de outra pessoa cuja firmeza lhe deixou claro que embora o queriam por cima de todas as coisas, devia aprender a não ficar em ridículo chorando por uma tolice. Em lugar de discutir, lorde Lindsey voltou a ficar adormecido. Acabava de ser batizado. Levava o traje muito precioso de batismo que os filhos do duque de Bewcastle tinham levado durante gerações. Tinha tios e tias a mão-cheia para arrulhá-lo, e também tinha uma avó e uma tia avó, cujos óculos ficaram travados por um angustiante momento no encaixe de suas abas. Também tinha primos, a maioria dos quais quiseram agarrá-lo nos braços uma vez que voltou para casa nos braços de seu pai... para surpresa e espanto de sua babá. Os únicos que não expressaram nenhum desejo por agarrá-lo foram Davy, o maior, que considerava tal coisa indigna de sua masculinidade, e Robert, o menor, filho do tio Alleyne e da tia Rachel, que estava dormindo em um berço na ala infantil. A todos seus primos negaram a petição, salvo à Becky e à Marianne, que tiveram que sentar-se primeiro e colocar os braços tal como lhes disseram para agarrar um minuto cada uma ao marquês do Lindsey. Também houve vizinhos que o arrulharam. Uma vez que o levaram de volta à ala infantil para que a multidão não o incomodasse, sua mãe lhe deu um beijo em uma de suas gordinhas faces e seu pai o fez na outra. Não se incomodou. Deu-lhe exatamente igual, já que estava dormindo e protegido sob as mantas. Entretanto, começava a identificar essas duas vozes que falavam entre si por cima do berço. Duas vozes que teria pontuado de ser as mais importantes para ele se sua mente fosse capaz de raciocinar nesses termos na tenra idade de seis semanas e dois dias. -Nosso pequeno milagre - disse sua mãe com carinho e de forma um pouco boba. -Nossa futura fonte de problemas - replicou seu pai com firmeza, mas com o mesmo carinho que tinha demonstrado sua mãe - Na igreja não só estava incomodado, Christine. Estava furioso. Dará-nos mais de uma dor de cabeça, já o verá.


O marquês de Lindsey teria notado a carícia de dois dedos na face se não tivesse estado profundamente adormecido. -Isso espero, Wulfric - respondeu sua mãe demonstrando assim sua falta de bom senso. - Isso espero. E espero que tenha irmãos e irmãs que nos deem muitos mais. -Enfim, meu amor - disse o duque de Bewcastle com uma nota arrogante e um pouco enfastiada na voz - se posso ajudar de algum jeito para que seus desejos se cumpram, só tem que me dizer isso. A duquesa de Bewcastle soltou um risinho. O marquês nem sequer sabia o que eram irmãos e irmãs. Ainda...


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