Revista Fábrica de Imagens Ed. 22

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ARTIGO

NOVIDADE

ENTREVISTA

MARIA LYGIA QUARTIM 4

GÊNERO PLURAL 5

CONSTANZA MOREIRA 12

REVISTA

FÁBRICA DE IMAGENS EDIÇÃO 22 | SETEMBRO - OUTUBRO - 2015

TRÁFICO DE PESSOAS

QUANDO O LUCRO IMPORTA MAIS QUE A VIDA 11

SÉRIE

À COR DA PELE 11 EXTERMÍNIO DE JOVENS NEGROS E NEGRAS


ARTIGO

NOVIDADE

ENTREVISTA

MARIA LYGIA QUARTIM 4

GÊNERO PLURAL 5

CONSTANZA MOREIRA 12

REVISTA

FÁBRICA DE IMAGENS EDIÇÃO 22 | SETEMBRO - OUTUBRO - 2015

SÉRIE

À COR DA PELE 11 EXTERMÍNIO DE JOVENS NEGROS E NEGRAS

CONTEÚDO TRÁFICO DE PESSOAS

QUANDO O LUCRO IMPORTA MAIS QUE A VIDA 11

Capa Exposição Contrastes

4 ARTIGO MARIA LYGIA QUARTIM

Coordenação Geral Marcos Rocha

Como garantir os Direitos Humanos nos dias de hoje?

Coordenação Socioeducativa

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Christiane Ribeiro Gonçalves

NOVIDADE

Dário Bezerra

GÊNERO PLURAL

Taiane Alves

Gênero, Feminismos e suas interseccionalidades

Design e Layout Thyago Nogueira

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Projeto Gráfico

TRÁFICO DE PESSOAS

Thyago Nogueira

Quando o lucro importa mais que a vida

Jornalistas Luizete Vicente

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Monique Linhares

ENTREVISTA

Edição e Revisão

Gênero e Políticas Públicas

CONSTANZA MOREIRA Laís Regina Contribuições

na América Latina 10

Maria Lygia Quartim

SÉRIE

Fábrica de Imagens

Estado e Sociedade

À COR DA PELE Ações Educativas em Cidadania e Gênero Rua Odilon Benévolo, 1133 - Maraponga Fortaleza - CE 2015 +55 85 3495 1887 fabricadeimagens.org.br Versão digital disponível em: issuu.com/frabricadeimagens 2


CARTA AO LEITOR

OLÁ! Tudo pronto para a 2ª edição da nova revista! Aqui vocês podem mergulhar em artigos, entrevistas e matérias com características bem específicas para tratar de temas importantes da atualidade. Mais uma vez, queremos criar um espaço de diálogo e reflexão, com os leitores e leitoras, sobre assuntos que são, por natureza, desafiadores no que tange os direitos humanos, políticas públicas e Estado. Decidimos apurar o tema da campanha Coração Azul, da ONU em parceria com os Correios, que alerta sobre o Tráfico de pessoas, uma forma de questionar o que divide o mundo: quando o lucro importa mais que a vida. O Brasil é hoje um dos países que mais lucram sendo rota, fonte e destino do tráfico humano. Brasileiros e brasileiras são levados para serem explorados em outros países, por aqui passam vítimas a caminho de outros lugares e também recebemos outras para aqui serem exploradas. Lembrando que, além do tráfico internacional, há também o tráfico interno, que acontece dentro do território nacional. A seção Com Partilha continua, com a colaboração da profª doutora da UNICAMP, Maria Lygia Quartim de Moraes, que disserta sobre a garantia dos direitos humanos nos dias de hoje. Ela fala sobre a luta incessante para a garantia de direitos às mulheres; aos negros; aos homossexuais; aos povos das florestas; entre outros. E essas conquistas continuam sendo ameaçadas pelas forças conservadoras, pelos grupos religiosos fundamentalistas e por todos que temem os movimentos sociais. Trazemos também a continuação da série “À cor da pele”, a segunda matéria traz o tema Estado e Sociedade, que discute relatos de vida e histórias de pessoas que pautam o extermínio da juventude cearense. Com opiniões dos dois lados, aponta questionamentos e perspectivas para minimizar os homicídios da juventude negra. Também vamos contar com uma entrevista excepcional. A senadora do Uruguai, Constanza Moreira, que participou do Curta o Gênero 2015, relata um pouco sobre os avanços e conquistas nas políticas sociais no Uruguai e as perspectivas na América Latina nas políticas de gênero. Não vamos esquecer das boas e tradicionais notícias da Fábrica, para falar um bocado do que acontece na organização. Desta vez, vamos falar sobre o Gênero Plural, projeto de programa para TV idealizado e realizado pela Fábrica de Imagens, que pretende produzir séries com abordagens e temas importantes, não só para mulheres e feministas, mas para a sociedade. Por isso, desejamos que apreciem nossa revista e curtam cada seção, que sempre deixa um gostinho de “quero mais”. 3


COM PARTILHA COLUNA

COMO GARANTIR OS DIREITOS HUMANOS NOS DIAS DE HOJE? POR MARIA LYGIA QUARTIM

PROFESSORA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DA UNICAMP

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om a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 iniciase a era do direito a ter direitos, na fórmula de Hanna Arendt. A Declaração nasce dos sofrimentos da II Guerra Mundial e da tentativa de se lançar as bases de uma convivência digna e respeitosa para a humanidade. Mas o respeito às boas intenções da Declaração dos Direitos Humanos varia muito segundo os países e sua cultura. Assim, tem sido uma luta incessante a garantia de direitos às mulheres; aos negros; aos homossexuais: aos povos das florestas e muitos outros. E essas conquistadas continuam sendo ameaçadas pelas forças conservadoras, pelos grupos religiosos fundamentalistas e por todos que temem os movimentos sociais. Para discutir a questão dos diferentes tipos de racismo e sexismo, vou me apoiar em algumas formulações de Judith Butler, até mesmo como desagravo às manifestações hostis de que foi vítima em sua estada em São Paulo, em setembro de 2015. A hostilidade contra Butler deriva de suas posições inovadoras e corajosas sobre todas e todos que integram o exército dos excluídos, dos precarizados, dos discriminados, dos chamados corpos “abjetos”; “não inteligíveis”, fora das normas. Esse conjunto de seres humanos são aqueles e aquelas que são desvalorizado(a) s como indigno(a)s , que morrem sem serem lamentados; que não recebem proteção contra sua vulnerabilidade. Como sabemos, a preocupação ética de Butler com as vidas precárias, com os corpos que não importam é central em sua obra. Tanto com referência aos corpos abjetos (os excluídos, os que não podem existir) como os corpos vulneráveis dos palestinos e das vitimas da guerra. Daí

a importância dos movimentos das mães na Argentina e as diversas manifestações de apoio e suporte às populações civis que fogem das inúmeras zonas de guerra que ensanguentam o mundo atual. Um outro tema prioritário de Butler é a defesa do o direito das pessoas a escolherem como preferem viver sua sexualidade, seus desejos, mesmo que sejam o de submeter-se às mudanças de sexo, se isso o(a)s fizer mais feliz. Da mesma maneira, há que respeitar as mulheres que desejem acentuar o que consideram sua feminilidade, usando sapatos altos, saias e roupas justas. Como há que respeitar as mulheres que gostam de mulheres e os homens que gostam de homens, os homens que querem ser mulheres e as mulheres que querem ser homens e assim por diante. Butler defende uma postura ética universalista. Como forma de atuação política, ela valoriza as manifestações de resistência e protesto, falando dos atuais movimentos anti-austeridade na Europa; dos movimento “ocupar Wall Street” e de outras formas de oposição à globalização capitalista e à intolerância do conservadorismo religioso. E enriquece a noção de performatividade ao destacar a importância dos corpos presentes nas arenas da luta política. Ao sublinhar que Assembleias de corpos físicos tem uma expressiva dimensão que não pode ser reduzida ao discurso (a fala), pelo simples fato de que as pessoas reunidas “dizem” algo mesmo sem pronunciar discursos, Butler estabelece modos de estar junto, incluindo formas de solidariedade de longa distância, levando a uma nova compreensão do espaço público, essencial para a politica.


NOVIDADE

GÊNERO PLURAL GÊNERO, FEMINISMOS E SUAS INTERSECCIONALIDADES POR LUIZETE VICENTE FOTO GRÁ DIAS

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oi pensando estratégias para ampliar os espaços de discussão sobre Feminismos, Gênero e suas interseccionalidades que nasceu a ideia de se produzir um programa piloto para TV, o Gênero Plural. Idealizado e realizado pela Fábrica de Imagens o programa pretende em breve se constituir numa série na qual temas fundamentais não só para mulheres e feministas, mas para a sociedade em geral, serão desenvolvidos, como “Gênero e Educação” e “Gênero e Violência”. O Programa Piloto, que tem o apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e da Ancine e patrocínio da Petrobras, desenvolverá um tema necessário e precioso para a reflexão de todas e todos, sobretudo, em tempos dos discursos e ações de ódio promovidas por indivíduos e grupos conservadores e fundamentalistas avessos aos direitos conquistados por mulheres e sujeitos LGBTT. Em seu primeiro programa o Gênero Plural tratará das “Flores do Feminismo - contribuições e impactos dos

feminismos na contemporaneidade”. A expectativa é que o “Flores do Feminismo” esteja concluído em dezembro deste ano e contará com uma entrevista maravilhosa da professora Margareth Rago da Unicamp, um minidocumentário sobre a Marcha das Margaridas - MM e uma ficção que ilustrará uma das flores que os feminismos ofertou e oferta a nossa sociedade. “Nosso intuito agora é dialogar com TV públicas, em especial com a TV Ceará, para apresentar o programa piloto e a proposta de realização de uma série composta por mais 12 programas. Queremos proporcionar ao público interessado nos temas de gênero e sexualidades, além do público em geral, um programa que alie uma perspectiva esteticamente interessante e conceitualmente robusta, que trate dos referidos temas com o rigor e a responsabilidade devidas”, afirma Marcos Rocha, diretor do Gênero Plural. 5


CAPA

TRÁFICO DE PESSOAS QUANDO O LUCRO IMPORTA MAIS QUE A VIDA POR LAÍS REGINA

Em 13 de maio de 1888, foi decretado o fim da escravidão no Brasil, o último país do mundo a aboli-la. Antes disso, em 1850, o tráfico negreiro já havia sido extinto. Vendo assim, parece que o tráfico de pessoas e a escravidão ficaram para trás, não é mesmo? Só que infelizmente não é bem assim e, mesmo depois da humanidade tanto “avançar”, nos deparamos com seres humanos sendo traficados e escravizados em pleno século XXI. Essa forma nefasta de exploração está relacionada ao modelo de desenvolvimento mundial, baseado na competitividade, na maximização dos lucros e na redução constante dos custos.

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Protocolo de Palermo, o mais relevante instrumento jurídico internacional relativo a este crime, ratificado em 2004 no Brasil, define tráfico de pessoas como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendose à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”. Vendo assim, parece algo absurdo, mas basta observarmos alguns dados para percebermos que não só é um crime mais comum do que se imagina, como também é altamente lucrativo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas. Dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) revelam que o tráfico humano atinge cerca de 2,5 milhões de pessoas e movimenta 32 milhões de dólares por ano. As principais vítimas são mulheres

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(na grande maioria dos casos), homens, crianças e adolescentes em alguma situação de vulnerabilidade, social, econômica ou cultural, que acabam caindo nessa rede por diversos fatores. Só para ilustrar, podemos citar as desigualdades sociais; falta de acesso a serviços básicos, como saúde, educação e moradia; ausência de perspectiva de emprego e renda; discriminação de raça, gênero e classe; e até a busca por ascensão social. Uma questão que precisa ser esclarecida é que o consentimento não invalida a caracterização da situação como tráfico de pessoas. Segundo a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, o consentimento dado pela vítima é irrelevante em todas as modalidades, sem depender dos meios utilizados. Isso significa que, mesmo que a vítima tenha consciência da exploração que irá sofrer, quem a explora continua praticando um crime e violando direitos humanos, pois entende-se que a pessoa explorada não tem alternativa real e aceitável a não ser se submeter ao abuso. Sobre o Brasil, é importante salientar


que somos um país de fonte, trânsito e destino do tráfico humano. É fonte quando brasileiras e brasileiros são levados para serem explorados em outros países. É trânsito quando vítimas passam por aqui a caminho de outros lugares. É destino quando recebe outras vítimas para aqui “trabalharem”. Lembrando que, além do tráfico internacional, citado acima, há também o tráfico interno, que acontece dentro do território nacional. Existem diversas modalidades de tráfico de pessoas, mas as principais são a exploração sexual, o trabalho escravo, a adoção ilegal e a remoção de órgãos. No Brasil, as duas primeiras são as mais frequentes, enquanto sobre as duas últimas há pouca informação a respeito, o que não significa que elas não aconteçam. Exploração sexual Diferente da prostituição, tão erroneamente relacionada a esse crime, a exploração sexual acontece quando o trabalho sexual de alguém é explorado por terceiros, seja em situações em que a pessoa é enganada, seja no caso de ela aceitar por livre vontade, mas ter sua liberdade suprimida. No caso da prostituição, não há crime algum em uma pessoa querer trabalhar no mercado sexo voluntariamente, já que não trabalham contra sua vontade e podem abandoná-lo quando decidirem por conta própria. Em resumo, exploração sexual é ter seu trabalho explorado de alguma forma, seja por jornada exaustiva, cobrança abusiva de despesas, retenção de documentos, restrição da liberdade, ameaças e violência física e psicológica. Essa é a modalidade de tráfico humano mais comum e afeta não só mulheres, mas crianças, adolescentes, travestis, transexuais e homens. Trabalho escravo Apesar de não ser dada sua devida importância na mídia, é crescente a descoberta de casos de trabalho escravo contemporâneo no Brasil. As áreas mais comuns desse tipo de crime são as rurais (agronegócio, agricultura, produção de carvão, mineração), mas é possível encontrar casos também na construção civil, confecções e trabalho doméstico. Só em 1995 o Brasil reconheceu a existência de trabalho escravo no país e formulou instrumentos para combater

essa prática. O artigo 149 do Código Penal lista quatro categorias que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (que retiram a dignidade do trabalhador), jornada exaustiva (que impede o repouso e a possibilidade de realizar outras atividades sociais), trabalho forçado (obriga a pessoa a trabalhar por meio de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (prender o trabalhador por meio de uma dívida contraída ilegalmente apenas para este intuito). Por sua complexidade, essa caracterização brasileira de escravidão contemporânea é considerada referência pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa é a segunda modalidade mais frequente de tráfico humano e atinge homens, mulheres, crianças e adolescentes, distribuídos de acordo com a atividades produtivas em que ocorrem essa exploração. Remoção de órgãos Mesmo com pouca informação sobre essa categoria, sabe-se que o mercado ilegal de órgãos funciona por meio de coerção, engano ou de aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade. Em geral, pessoas menos favorecidas economicamente aceitam vender seus órgãos (rins e fígado, principalmente), em troca de remuneração financeira. Esse mercado tem caráter internacional, em geral, e conta inclusive com participação de profissionais da área médica. Adoção ilegal Quanto a essa modalidade e tráfico, as informações também são escassas, mas é de conhecimento a existência do contrabando nacional e internacional de crianças e adolescentes, que são vendidos como se fossem meros objetos. Seqüestrados ou comercializados por suas próprias famílias, são “adotados” por outras, meio de falsificação de documentos e outras práticas ilícitas. Crime previsto no ECA, a adoção ilegal pode levar à cadeia tanto quem “compra” como que “vende” crianças e adolescentes: pena de dois a seis anos para quem retira a criança do poder dos pais para destinálo à adoção, e pena de um a quatro anos para quem promete ou entrega o filho para terceiros por conta de recompensas, sejam elas financeiras ou não. 7


ENTREVISTA

GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS NA AMÉRICA LATINA CONSTANZA MOREIRA

PROFESSORA, DOUTORA EM CIÊNCIA POLÍTICA E ATUAL SENADORA DA REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI

ENTREVISTA MONIQUE LINHARES TEXTO LUIZETE VICENTE FOTO THYAGO NOGUEIRA

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Conversamos com Constanza Moreira, que participou da IV edição do Curta O Gênero como conferencista da mesa “Gênero e Políticas Públicas Culturais: cenários e perspectivas na América Latina”. Como surgiu o projeto de lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) no Uruguai e sua aprovação? Colocamos o nome do projeto de lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) para não usar a palavra ABORTO, mas para nós a decisão da gravidez é voluntaria. Nós falamos em direitos reprodutivos, e não obrigação reprodutiva. O corpo da mulher, o ventre da mulher, não é do estado, da comunidade ou do homem, por tanto, não é direito nosso decidir por ela. Nós, poder público, temos que cuidar da saúde da população. Consideramos que a vida sexual livre e segura um direito de todos e todas, e é nossa obrigação cuidar dos direitos de cidadão e cidadã. Quando o Estado não dá esse serviço de saúde para a mulher interromper a gravidez de forma segura, ele está faltando com sua obrigação, através do Sistema de Saúde. Lutamos

para que a lei fosse cumprida, realizando a interrupção no prazo das 12 primeiras semanas de gravidez, e em casos especiais, como estupro ou má formação do feto. Foi colocado esse prazo para resguardar a saúde da mulher. Não admitimos que o direito do nascituro seja superior ao direito da mulher. Não é possível conceber que isso possa ser uma contradição de direitos, apenas consideramos que o sujeito de direito é um agente moral, e isso está na teoria jurídica, um embrião que não é viável, não pode ser agente moral e nem sujeito de direito. Cabe ao Estado dá proteção as mulheres e assegurar a igualdade. As jovens mulheres, as mulheres do interior ou as mulheres mais pobres não tinham condições de levarem adiante uma gestação compreendendo suas condições. Estamos cientes que existi uma grande desigualdade entre as mulheres mais vulneráveis e as menos vulneráveis. Por isso, a lei permite o aborto nas primeiras semanas de gestação sem que a mulher tenha de alegar algum motivo e que seja resguardada pelo Sistema de Saúde. Tivemos problemas no início com um aborto realizado fora do sistema, de forma clandestina, e a mulher foi


presa. Fora do Sistema de Saúde o aborto é ilegal. Com isso, nós (governo) agora estamos refletimos sobre essas brejas na lei. Mas conseguimos, politicamente, articular o formato para aprovar o projeto com a participação da maioria. Como trabalhar a consulta pública e os interesses da sociedade em assuntos polêmicos? A exemplo, nós (Uruguai) realizamos um plebiscito sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. A direita, muito conservadora, alegava em pesquisas de opinião pública, que cerca de 70% dos uruguaios eram favoráveis à redução. E a mídia influenciou muito quando colocou conteúdos que afirmavam o problemas da criminalidade no país era apenas dos menores de idade. Onde, na verdade, a criminalidade no Uruguai é realizada por adulto. Menores de 16 anos são responsáveis por 7% dos crimes violentos. Mas as pesquisas, a direita e a mídia apresentavam outra realidade. “As prisões do Uruguai estão cheias de jovens. Criamos uma sociedade para a juventude e depois os responsabilizamos pelas doenças sociais que nós criamos. É uma hipocrisia total! Com isso, a sociedade organizada e a juventude reagiram com a criação de uma comissão “No a La Baja”, pitaram as ruas e os números começaram mudar e com 53% os uruguaios disseram “não” à medida. Mesmo com dinheiro, pesquisas e pauta na mídia, eles perderam. E retiramos essa pauta da agenda pública quando fortalecemos a participação popular nas ruas. Esse foi o ponto central para conseguirmos a vitória. Como as mulheres podem se emponderar nos espaços políticos ainda majoritariamente ocupados por homens? Temos que nos empoderar umas com as outras para assumir lideranças nos espaços de poder. A mulher tem que falar e aparecer primeiro no cenário. Eu dou aula na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República e na sala os meninos falam mais que as meninas. Elas até falam, mas no geral ficam caladas. Porque isso está enraizado na formação cultural onde “é o homem quem fala”, “fala alto”. São séculos de opressão e invisibilização e inaudibilidade das mulheres. Primeiro, nós temos que superar as limitações apresentadas e praticar a equidade de gênero, as mulheres têm que caminhar juntas para a produção uma “solidariedade de gênero”. Isso só se constroem quando falamos sobre a luta coletiva dentro dos movimentos, sindicatos e organizações e o terceiro ponto, é a entrada na política. Falo sempre para a juventude que não abandonem os partidos políticos, pois eles são muito importante, além de serem espaços de decisão das diversas pautas da sociedade.

Temos acompanhando um novo momento na representação política na América Latina. Como você vê a questão das mulheres sendo protagonistas do executivo de um país? Eu acho maravilhoso! E a primeira coisa a se perceber são as imagens delas e a diferença (que é enorme, rsrsrs) de uma com a outra. Seja em projeção como mulher e sua inserção na vida política. Acho que a gestão das três será marcante, mesmo que ainda não vemos ou percebemos, mas tenho certeza que elas entraram para a história. A Michelle Bachelet é hoje a liderança mais popular do Chile, e a Cristina Kirchner, no Argentina, é muito forte, querida e carismática, além de ter força política com sua reeleição. E Dilma que, no primeiro governo tinha boa popularidade, passa por um momento de difícil diálogo com os aliados. Temos presenciado o assedio que ela vem sofrendo do congresso que vota contra tudo do governo, é algum incompreensível. Mas, a primeira coisa que essas mulheres fizeram ao entrarem no poder foi desconstruir um imaginário que “mulher não pode governar”. Tanto para pessoas que acreditam nelas quanto para pessoas que estão na oposição, perdeuse a força do pensamento que “mulher não serve para governar”. E isso não se sustenta, seja socialmente ou empiricamente. As mulheres podem governar tão bem ou tão ruim quanto os homens. Enfim, nós temos, neste momento, um negro e mulheres governando países, economicamente, importante do ocidente. Esse acesso das novas elites que são as mulheres, os negros, os indígenas como Evo Morales, essas são as novas lideranças populares que estão experimentando uma nova circulação de ideologias e concepções muito importante.

“O corpo é da mulher, o ventre é da mulher, não é do estado, da comunidade ou do homem, portanto, não é direito nosso decidir por ela.”

Você foi convidada para participar como conferencista do Curta O Gênero. Quais os desafios ao pensar políticas de gênero para combater as violações sofridas contra as mulheres latino-americanas? Pensar um política que integre gênero na América Latina é primordial. Realizamos um debate nacional, em todas as dimensões, com pessoas de diferentes lugares do Brasil e de outros países da América Latina para construir uma rede que integre diversas as origens e as identidades, vai juntar movimento social, política e academia. Será uma mistura maravilhosa. E o Curta O Gênero junta palavras e imagens que é algum incrível, pois não se ver com frequência, seja seminário ou congresso a relação da imagem com cultura e política. Com certeza foi uma mistura genial. Agora que faço parte dessa rede desejo que esse ajuntamento de pessoas brasileiras e dos outros países se fortalecessem na construção dessa rede tão importante e forte. 9


SÉRIE

À COR DA PELE ESTADO E SOCIEDADE POR MONIQUE LINHARES FOTO KÉLVIN CAVALCANTE

Uma cidade que não reconhece seus contrastes, mas, principalmente, não enxerga o outro (e a outra) que lhe é diferente, e indiferente. Num mesmo espaço, calçadão a beira-mar de Fortaleza, enquanto umas crianças brincam de patins ou num recém instalado parquinho na areia da praia aterrada, outras tão pequenas quanto pelo menos em tamanho -, são abordadas e revistadas por dois guardas municipais que vigiam a estátua de Iracema, cartão postal da cidade. O que passa pela sua cabeça, leitor e leitora, nesse momento? Causa mal-estar, revolta, segurança ou simplesmente nada, porque normal? Ao menos a inquietação pode caber numa informação que faltou no caso acima: as crianças eram negras. Nos últimos meses, o Ceará e o Brasil têm sido noticiados sobre duas tragédias da cidade: a crise no sistema de centros socioeducativos para adolescentes em conflito com a lei e a maior chacina já vista no estado, que estão sob investigação e especulações em polvorosa. Indagamos polícia e bandidos, segurança pública e tráfico, Estado e sociedade civil; uma prática para facilitar nosso entendimento dos problemas através do maniqueísmo intermitente. Mas o que tem sido visto nos últimos tempos, de meados da década 1990 para cá, é uma inversão de “papéis” entre esses “personagens” e todos se desentendem, principalmente quando a opinião pública se constrói pelas versões da imprensa, da polícia e dos governos, mais do que pela própria experiência. E de experiência direta tentamos abordar na matéria anterior desta série “(À cor da pele: negras lágrimas”, do informativo 20), dando voz a mães e famílias que precisam, além de passar pelo luto da perda dos jovens, buscar explicações que justifiquem as mortes e ter paciência com a vagarosa investigação dos casos - quando feita. 10


Quando no noticiário assistimos ou lemos as atrocidades, abordadas de diversas formas, muitas vezes ficamos sem resposta, sem os porquês, sem consolo, sem esperança. Até que alguém ou em algum lugar vimos a palavra “racismo”. – Mas no Brasil não existe racismo, aqui todo mundo é misturado, desde que os negros vieram e se misturaram com índios e brancos, - alguns dizem. – Somos uma raça só, a humana! – outros bradam. O racismo, velado, disfarçado de humor, costume ou naturalização das discriminações, quando não feito escancaradamente - o que é crime previsto no Código Penal, assim como injúria racial, prevista na Constituição - tem afetado as mais diversas camadas sociais do Brasil pela evidência dos fatos e das pesquisas, revelando o agravamento dos crimes, inclusive institucionais. “Sabemos que uma das esferas que mais contribui com a propagação do racismo é a esfera pública. O racismo institucional tem matado física e simbolicamente o povo preto. Mata quando se torna omisso, mata quando, nega direitos”, confronta a jovem professora Michelle Ferreira, militante do movimento negro do Ceará e integrante do grupo caririense Pretas Simoa, que tem o recorte de gênero dentro do debate sobre racismo. Michelle vem da experiência de seu emponderamento enquanto mulher e pessoa negra, numa sociedade ainda calcada no retrocesso do próprio Estado. “O enfrentamento diário se dá quando mais pretxs se emponderam e veem seu cabelo e seu corpo como arma de luta contra o racismo. Faz-se necessário também que a desconstrução da falácia da democracia racial se expanda cada vez mais, e que as demais pessoas não negras enxerguem o racismo não só como um problema de preto, mas como algo estrutural da nossa sociedade que atinge todas as esferas. No entanto, quem mais poderia ajudar o MN (movimento negro) com todo esse processo acaba fazendo o oposto, em questão o Estado.” Nessa mesma perspectiva, a professora Zelma Madeira, agora na condução da Coordenadoria de Política de Promoção da Igualdade Racial – COPPIR do Ceará, também comenta sobre a responsabilidade do Estado de impulsionar mudanças na sociedade, a partir das políticas públicas. “A gente tem que entender primeiro: por que estamos diante de um extermínio da juventude negra? Se eu não entendo que a sociedade brasileira é racista e violenta, eu não vou encontrar a raiz do problema. Então, eu parto do pressuposto que para enfrentar, para superar e combater o extermínio da juventude, há que se ter uma ação do estado e da sociedade civil”. Zelma também afirma que é preciso

combater o racismo dentro das próprias instituições do Estado. “Não é porque estou hoje dentro dele que não visualizo, mas que a gente já está, neste governo, trabalhando no sentido de fazer romper esse racismo institucional, através das capacitações, de capacitar a polícia e outros agentes do governo”. A coordenadora responde pela articulação de políticas junto a todas as instâncias governamentais envolvidas no combate ao racismo e à violência a jovens de periferia, como as secretarias de políticas setoriais, da educação, da cultura, de segurança pública, além das outras coordenadorias, trabalhando através das transversalidades “Estamos contaminando todo o Estado e todas as secretarias setoriais pra pensar e refletir os impactos que tem as desigualdades sociais, o racismo, a negação, a invisibilidade, o discurso de que o Ceará não tem negro. Estamos dialogando junto com os movimentos para levantar essa reflexão. Diante de um problema tão grande, nós temos, sociedade civil e Estado, de fazer nossa parte, nossas pontes e articulações. Então, para pensar a política de igualdade racial, fazemos em três frentes: a repressiva porque racismo é crime; a ação afirmativa, que é por tempo determinado, tipo as cotas, além de outras possibilidades de ações, como a lei de cotas também para concursos; e a outra é valorativa, que permanece, sempre com a aposta das diretrizes curriculares, para educação quilombola e indígena, por exemplo”, afirma Zelma. A jovem Michelle complementa essa reflexão, pois uma questão crucial é dos jovens negros de periferia que não tem as mesmas oportunidades que jovens de classe média ou brancos. “Quando o Estado nega os direitos básicos a juventude negra, ignorando suas especificidades, tem culpa massiva na entrada desses/dessas jovens no mundo da criminalidade. Nossos jovens se sentem desamparados pelo governo e passam a agir por ‘conta própria’ É necessário trazer essa responsabilidade para o Estado. Ele deve investir ainda mais em políticas educacionais para a desconstrução do racismo na sociedade, como também criar políticas que contemplem os jovens negrxs, não que os excluam”. “Que a gente precisa de um policiamento ostensivo, precisa! Mas a partir da escuta respeitosa, adequada e qualificada dessas pessoas que estão a periferia, principalmente os jovens. Isso porque a violência não passa só pelo jovem negro de periferia, porque a questão não é só social, é também racial”, finaliza Zelma. Uma postura que deve ser levada a sério e adiante, com medidas efetivas nas diversas frentes de ação em que o Estado deve se impor no combate ao extermínio de jovens negros e negras.

“Que a gente precisa de um policiamento ostensivo, precisa! Mas a partir da escuta respeitosa, adequada e qualificada dessas pessoas que estão a periferia.”

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REVISTA FÁBRICA DE IMAGENS - EDIÇÃO 22 - SETEMBRO- OUTUBRO - 2015


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