Memorial descritivo: Videodança autorreferente

Page 1

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

ELISSON TIAGO BARROS AMATE

MEMORIAL DESCRITIVO Videodança autorreferente: dança-cinema em trânsitos híbridos no ciberespaço da web

Salvador 2018


ELISSON TIAGO BARROS AMATE

MEMORIAL DESCRITIVO DE PESQUISA ARTÍSTICO-ACADÊMICA Videodança autorreferente: dança-cinema em trânsitos híbridos no ciberespaço da web

Memorial descritivo do percurso da pesquisa artístico-acadêmica

em

dança

Videodança

autorreferente: dança-cinema em trânsitos híbridos no

ciberespaço

da

web

para

qualificação,

apresentado ao programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Dança.

Orientadora: Prof.ª Dra. Gilsamara Moura

Salvador 2018


ELISSON TIAGO BARROS AMATE

VIDEODANÇA AUTORREFERENTE: DANÇA-CINEMA EM TRÂNSITOS HÍBRIDOS NO CIBERESPAÇO DA WEB

Memorial descritivo do percurso da pesquisa artístico-acadêmica em dança Videodança autorreferente: dança-cinema em trânsitos híbridos no ciberespaço da web para qualificação, apresentado ao programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Dança.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________ Gilsamara Moura - orientadora Doutora em Comunicação e Semiótica – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – (PUC-SP)

______________________________________________________________________ Daniela Amoroso Doutora em Artes Cênicas – Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia (UFBA)

______________________________________________________________________ Elianne Ivo Doutora em Comunicação e Cultura – Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal Fluminense (UFF)



sua arte não é a quantidade de pessoas que gostam do seu trabalho sua arte é o que seu coração acha do seu trabalho o que sua alma acha do seu trabalho é a honestidade que você tem consigo e você nunca deve trocar honestidade por identificação - a todos vocês poetas jovens Rupi Kaur


SUMÁRIO

1. Resumo................................................................................................................06 2. Deu aloka no mestrado........................................................................................07 3. Etapas do desenvolvimento teórico-artístico da pesquisa...................................26 4. Percurso acadêmico.............................................................................................33 4.1. Disciplinas obrigatórias................................................................................33 4.2. Disciplinas optativas.....................................................................................37 4.3. Atividades obrigatórias.................................................................................41 4.4. Atividades complementares e extra-curriculares..........................................50 5. Participação em eventos científicos e acadêmicos..............................................54 5.1. Apresentações orais......................................................................................54 5.2. Publicações...................................................................................................56 5.3. Ouvinte.........................................................................................................61 6. Participação em encontros, residências e festivais..............................................61 7. Processos de criação e atividades artísticas em dança/cinema............................66 8. Lista de figuras....................................................................................................70 9. Anexos de documentos comprobatórios..............................................................71 9.1. Publicações...................................................................................................71 9.2. Projeto Cine da da danse............................................................................151 9.3. Currículo Lattes..........................................................................................164 9.4. Certificados.................................................................................................164 9.5. Histórico Escolar........................................................................................164


1. RESUMO Neste memorial pretendo apresentar os entrecruzamentos da minha trajetória de artista-pesquisador maranhense, cineasta e dançarino, com a experiência e a intensidade de cursar em Salvador o até então único Mestrado em Dança do Brasil, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para tanto me apresentarei em primeira pessoa, desbloqueando ferramentas falologocêntricas (pois centralizadoras de lógica) corriqueiras, num discurso hegemônico que recusa a pessoalidade e é responsável por legitimar fazeres acadêmicos e suas derivações coloniais, europeias e assassinas, no sul do mundo. Por isso, lembrarlhes-ei de estar num país latino-americano, atualmente ameaçado em todos os direitos civis, sociais e políticos, construídos a duras penas, por décadas, depois do abrandamento da ditadura neocolonial norte-americana, com a redemocratização dos anos 1980 e 1990. Num contexto de guerras civis e a ascensão de posicionamentos fascistas, em meio a um cenário brasileiro de exceção e violência, datado do mesmo período em que adentrei a Pós-graduação em Dança da UFBA (2016), refaço o caminho de artista-pesquisador marginalizado antes do meu processo de institucionalização para pensar como vida e arte são manifestos conjuntos que pretendo visíveis para o mundo. Não há possibilidade ou, neste caso, alternativa, que viabilize dissociar arte de cotidiano, arte de resistência. Portanto, manifesta-se no corpo, não carece de bandeiras, muito menos de vitimizações. Assim refaço o pensamento de Gilles Deleuze na conferência O ato de criação (1987). Não escrevo para comunicar, mas para provocar, causar destruições, erupções, “brincar” de ser gente, quando a ideia de humanidade nos parece tão próxima do projeto higienista que impingiram a nossos corpos controlados. Então, danço. Danço com Ciane Fernandes (2013), a partir de seu artigo Em busca da escrita com dança: algumas abordagens metodológicas de pesquisa com prática artística. E danço com Thereza Rocha (2017), em seu livro O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Danço e penso com duas brasileiras, antes deste memorial, a fim de me deixar escrever com(o) dança, enquanto danço, talvez apenas para vos fazer lembrar que antes de letras, aqui reside um corpo em movimento. E resiste. Aloka das Américas é a materialidade dessa resistência que meu corpo toma como reflexão. E por isso vos recomendo assistir a alguns dos vídeos disponíveis no cartão de memória anexado a estas páginas ou acessíveis no endereço1 da web onde se reúnem todos os experimentos finalizados. Danças que aconteceram e continuam acontecendo na 1

Disponível em: <https://vimeo.com/alokdasamericas>. Acesso em: 22/10/2017

6


internet. Por isso, um pensamento de dança como acontecimento. Cinema também como acontecimento. Videodança e acontecimentos, enfim.

2. DEU ALOKA NO MESTRADO Talvez tenha levado mais tempo do que o comum para a escrita deste memorial, por supervalorizá-lo enquanto relato de experiência, em detrimento da imagem de um simples documento burocrático, como pude notar pela leitura dos egressos. Esse é o risco e, ao mesmo tempo, lugar-comum em que se cristalizam a maioria dos nossos investimentos intelectuais na academia. Números, burocracia. A pessoalidade da experiência, algo tão descartável. E me pergunto, logo em dança? Descartar a experiência? Atravessam-me uma miríade de questões. É possível aplicar impessoalidade na dança? Transformá-la em métrica, produto, matéria reiterável? A história da arte pode nos dar uma resposta afirmativa acerca disso. Mas minha experiência estética, não. Antes que vos escreva sobre linguagem, precisais conhecer que dança é esta em cuja escrita se faz e quais os impactos de seu encontro com a instituição universitária. Então preciso voltar no tempo, mesmo que seja breve. Ou não. Figura 1

No centro, eu. Uma criança-bailarina-dançante-brega-alvoroçada-extasiante. Na foto, duas mulheres, mamãe (esquerda) e dindinha (direita). Curioso tê-las na foto, logo numa das mais polêmicas, logo elas, que decidiram pelo meu nascimento, como entenderia anos mais tarde. De repente me vem à cabeça Tarnation (2004), filme autorreferente de Jonathan Caouette, cuja história entrelaça garoto-mãe num devir em que o personagem refaz os caminhos da figura materna. Também me lembro de Juno (2008), ficção de Jason Reitman, quando duas mulheres decidem pela vida de uma criança. Deixo 7


meu pensamento dançar com essa filmografia enquanto me lembro das performances na sala de estar em São Luís, Maranhão. 4, 5, 6, 7 anos de idade...foi longo e indeterminado o período da infância em que dancei na frente do som com uma fralda na cabeça. Queria ter cabelos longos, mas tudo que tive foi a cabeça raspada. Uma criança afeminada, talvez viada, sem um rótulo plausível, mas hiperativa, voraz em sua vontade de fazer-se corpo. Figura 3 Figura 2

Foram nessas danças da sala de estar que tive meus primeiros contatos com o prazer do movimento e suas relações de atualização com a consciência: corpo-mente, indissociados. Meus estados de presença, os fui descobrindo aos finais de semana, na frente daquelas caixas de som. Quaisquer músicas tocavam, as preferidas estavam entre Xuxa, Sandy & Junior, Mamonas Assassinas, Angélica e É o tchan – todo o alvoroço pop-infantil brasileiro dos anos 1990. E, talvez, na dança da sala tenha encontrado o grau necessário de abstração da dura realidade de ter um corpo sem autonomia, marcado por processos binários de ensino-aprendizagem e pela masculinidade imposta no contexto da performatividade vigente de gênero, fosse na escola, na família, na igreja. Normas instituídas, institucionais. Normas sobre meu corpo. Uma das poucas experiências que escapavam coletivamente a essa reprodução eram as festividades do São João da cidade, o que me permitiu ter contato com o bumbameu-boi durante boa parte da infância, fosse na minha rua ou nos arraiais da vizinhança. Dançar o boi na frente de todos não era problema para uma criança, muito menos para os adultos, especialmente em situações de festividade. Eram as exceções e os excessos. Nas abstrações de dançar em casa, a norma e a disciplina necessárias ao corpo dócil chegaram tardias, todavia. Minha mãe foi a responsável pela reduzida intervenção sobre o corpo de criança nesses momentos de dança, pois aprendera numa infância dura, 8


de várias violências, que uma criança não deve, ou não pode se divertir sem retenções. O aprendizado opressor a fez refutá-lo durante meu crescimento. Talvez, se não fosse esse olhar sobre a infância eu não tivesse dançado o tanto que dancei quando pequeno [conheço, por exemplo, amigos que foram ameaçados por suas figuras familiares – se dançassem, apanhavam]. E talvez não pudesse ter resgatado a mesma memória corporal anos mais tarde, quando ela foi útil para abandonar a ficcionalização sobre minha existência. Foi assim que abandonei uma história esperada de mim, inventada antes mesmo que pudesse questioná-la na infância. Acredito que essas circunstâncias nos atinjam a todos, até que experimentemos possibilidades de autonomia no devir.

Se não conseguimos estabelecer um contato consciente com o nosso eu interior, contato que normalmente se perde a partir da infância, ficamos impotentes e incapazes de criar um verdadeiro diálogo, seja ele qual for. Em linguagem corporal, isso se traduzirá em gestos, posturas e atitudes [...] revelando a maneira como nos projetamos no mundo. (VIANNA, 2005: 114)

Estive protegido. Por isso levei anos até abandonar esse hábito, quando enfim acabei transportando-o para o banheiro. Se na infância não tinha vergonha de dançar, na adolescência o impacto foi abusivo. Dançava escondido, sozinho, como se “aquilo” pudesse ser criminoso. O medo de ser ridículo enclausurou ainda mais minhas danças. E, aos poucos, fui reduzindo o hábito de experimentar, de pensar e mover simultaneamente. Na escola católica, a educação básica em artes jamais colocava o corpo em pauta. Estudávamos apenas história das artes visuais. O corpo, este servia para ficar sentado na cadeira ouvindo o blá-blá-blá docente, como em todas as outras disciplinas. Então, acabei transferindo a experiência de presença para o voleibol. As aulas de educação física me mantiveram em movimento, apesar de dificilmente me fazerem pensar sobre. Por volta dos 14/15 anos, mais ou menos, voltei a dançar, ainda que escondido. Os musicais e filmes românticos de dança foram o mote seguinte. Ao ver corpos em movimento na televisão, queria testar as possibilidades comigo. O auge disso foi com o longa-metragem inglês Billy Elliot (2000), ficção de Stephen Daldry, quando comecei a pensar na dança como projeto de vida. O filme narra a história de um menino numa vila de mineiros, no interior da Inglaterra, que descobre sua paixão pela dança ao abandonar as aulas de boxe pelo ballet. Num contexto de máxima repressão de gênero, o personagem vive a experiência de se afastar do destino minerador a que se submeteram o pai e o irmão, tornando-se um grande bailarino. Durante a exibição do filme na tv aberta, lembro-me de 9


ter aproveitado os intervalos da publicidade para dançar na cozinha. Naquele horário, a família inteira estava dormindo e pude extravasar num espaço mais amplo que o banheiro. A cozinha passaria, assim, a ser meu novo lugar de experimentações, mas à noite. Na última cena desse filme inglês,2 assistem à apresentação dele a família e uma amiga crossdresser da infância, deixando evidente que Billy atravessou os preconceitos da época ao manter seus laços com a transexualidade da colega que, no início da narrativa, se travestia escondida dos pais. A dança poupou Billy do machismo. Billy e a amiga eram sobreviventes de uma cidade truculenta e de condições de gênero/papel social impostas aos seus corpos. Vê-los adultos foi alcançar, de alguma forma, a redenção através da fuga de um destino cruel, determinado pela heteronormatividade compulsória. A partir dessa experiência estética, percebi que a dança poderia me auxiliar nas tentativas de fuga. E, assim, retomei aos poucos meus processos abstratos de composição, guardando essas informações para mim, quando conjecturava como poderia escapar eu também. Desde essa época, comecei a encarar a dança como uma linguagem em cuja experiência me faria resistir. “Um ponto de interesse”, como aponta a artista Vera Mantero sobre aquilo que considera a obra de arte: os resíduos da vida, aquilo que a hegemonia não quer que vejamos. O que o Império descarta. Figura 4

Figura 5

Tudo isso para dizer que, ao retomar exaustivamente esses aspectos da infância e da adolescência, pude me manter próximo das abstrações de movimento que escapavam à norma cotidiana. Quando me percebi como um corpo dançante, constatei que havia dançado toda uma vida, e que aquela consciência só não era coletiva ou partilhada por uma recorrente seletividade institucional, que decidia quais corpos poderiam ou não dançar, mas também como deveriam executar esses movimentos.

2

Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=989pUycUqAg >. Acesso em: 23/10/2017

10


Lembrando o contexto patriarcal e oligárquico do nordeste no Brasil, é importante ressaltar que os corpos ditos ou lidos como masculinos não poderiam se dar ao luxo dessa experiência, sob o risco de perder a virilidade mantenedora do status ou até de uma integridade física, moral. Isso se repete em todo o país, de formas por vezes diferentes (ou não). A perspectiva da dança como existência e subsistência, por muito tempo, foi erroneamente lida pela dinâmica do ballet, território relegado às mulheres e/ou às classes mais abastadas. A cultura popular foi lançada à marginalidade desse processo. Ao manter em segredo uma certa consciência, de saber que não desejavam que eu dançasse, fui guardando o projeto de fuga, dançando escondido, e vivendo intervalos insalubres segundo as demandas de controle sobre o corpo. Com o passar dos anos, passei a frequentar festas e, nelas, percebi a possibilidade de extravasar todas as experimentações enjauladas que tive fora do convívio social, durante anos. Essa experiência se deu concomitantemente à saída de São Luís, quando me mudei para cidades como Brasília e Rio de Janeiro. Foi assim que me tornei um clubber. Aos finais de semana, a rotina da dança passou a se dar no espaço público, quando frequentava todo os gêneros de festa noturna. No Rio de Janeiro, onde esse hábito se mantém ainda hoje pela ocupação das ruas, tive a oportunidade de dançar em praças, avenidas, lugares abertos em geral, saindo das boates, lógica a que tinha me acostumado como frequentador em Brasília. Se não havia mais problema em improvisar publicamente, as festas tornaram-se reduto de meus experimentos artísticos, performances improvisadas ao vivo. Dança, festa e cotidiano se entrelaçaram, me encorajando a propor experiências estéticas públicas.

Figura 6

Figura 7

11


Figura 8

Figura 9

Figura 10

Figura 11

Figura 13 Figura 12

Esses experimentos ocasionavam toda sorte de encontros. Pessoas se aproximavam para conversar, fotografar (como nos registros acima) ou até agradecer pelas danças, o que era, no mínimo, curioso. Entretanto, apesar do prazer nos experimentos e da série de acontecimentos que deles se desencadeavam, mantinha-me

12


insatisfeito com as restrições espaciais e minha própria dança, visto que meu pensamento ainda era influenciado pelo paradigma cênico, oriundo de uma norma sobre a dança como expressão. A referência de Billy Elliot, nesse sentido, reverberou ainda durante alguns anos da fase adulta. Imaginava que o ballet e a experiência numa companhia de dança, de dançar num teatro e ser aplaudido de pé, poderiam me legitimar enquanto artista. E, por isso, desde que sai de São Luís, procurei aulas ou formas de me institucionalizar. O interessante é que isso nunca aconteceria de fato, tanto pelo tempo que trabalho e estudos me exigiam na universidade, quanto pela indisciplina em relação aos espaços formativos e produtivos de dança. Nenhuma companhia, nenhuma escola de dança. Não consegui me infiltrar nesses lugares por todos os motivos anteriores, mas também pela inviabilidade econômica. Existe um movimento muito recente no Brasil com a expansão das graduações e cursos técnicos de dança para solidificar um ensino gratuito e democrático dessa linguagem. Fora isso, na maioria das vezes, precisa-se encaixar num padrão de corpo, idade e gênero, ou pagar para assistir às aulas. Com a continuidade dos experimentos de clubber no Rio de Janeiro, concomitantemente à graduação em Cinema & Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF) e às atividades cineclubistas dos estudantes, fui aos poucos modificando essas expectativas cênicas e algumas expectativas enquanto artista. Percebi que as interseções entre as linguagens da dança e do cinema, além de repercutir a dissidência que vivia nas festas noturnas, poderiam expandir meus experimentos, modificando-os e, consequentemente, virtualizando-os. As experiências estéticas com imagens em movimento foram imprescindíveis para revisitar minha relação com a dança. Então, da matriz corpo-câmera, passo a encabeçar alguns processos criativos. Com pessoas próximas, amigos e familiares. Ou sozinho, apenas com a câmera do celular. Lembro-me da primeira vez que tive contato com Pina Bausch, a partir de seu único filme, realizado para a TV italiana em 1990. O Lamento da Imperatriz fora exibido no Cineclube Defumado, organizado por estudantes da UFF, rendendo vários debates acerca do processo criativo em Bausch e de sua relação com os corpos dançantes na miseen-scène. Apesar da assinatura da coreógrafa, a criação era coletiva, pessoalizada por cada um dos bailarinos. Depois desse choque, uma amiga chamada Isadora (curiosamente recebera esse nome em homenagem a Isadora Duncan, quase a personificação desse símbolo em minha história pessoal com dança), com quem teci diversos diálogos sobre as possibilidades de experimentos em dança, apresentou-me a paradigmática Maya Deren em Meshes of the Afternoon (1943). O cinema experimental em 16mm realizado pela 13


ucraniana modificou muitas das expectativas que possuía como realizador, revelando no amadorismo uma preciosa relação com os processos criativos em vídeo e dança. Foi, então, dessa aproximação com cineastas amadores da UFF, que começamos a organizar um grupo de interesse voltado à linguagem da videodança, especialmente a partir de uma perspectiva experimental. Começamos a filmar isoladamente e compartilhar os experimentos. Alguns grupos de colegas se juntaram, produzindo, inclusive, vídeos em grupos maiores. Entretanto, foi a partir da nossa incessante motivação em compartilhar filmes/vídeos em grupo, criando uma rede de cineclubismo na web com a plataforma Facebook, que vimos sugir, sem planejamento algum, uma interessante rede de contatos em torno da videodança. Faz dois anos que tenho feito parcerias com artistas separados por quilômetros de distância – o cineclubismo virtual nos colocou em rede. Mas foram as iniciativas cineclubistas da UFF, de seus cinéfilos e cineastas amadores, incialmente com as experiências de Maya Deren e Pina Bausch, as responsáveis por criar um vasto grupo interessado na experimentação entre os trânsitos da dança com o cinema. Figura 14

Figura 15

O grupo Videodança – experimentações do movimento reuniu, em 2017, mais de mil membros espalhados pelo Brasil. Sua criação se deu no segundo semestre de 2015, praticamente no mesmo período em que tiveram início as experimentações do canal Aloka das Américas na plataforma Vimeo. Incialmente meus vídeos foram veiculados apenas no grupo do Facebook. Alguns meses depois, comecei a exibi-los, especificando em sua feitura uma experimentação singular em relação a interface dança-cinema. A mostra Chorume organizada na UFF, cujo nome se remetia aos resíduos desinteressantes produzidos no amadorismo dos estudantes, foi um dos primeiros ambientes em que Aloka das Américas teve suas videodanças exibidas. Era um espaço de troca de experimentações, sem uma perspectiva de julgamento das obras. Essa 14


perspectiva dadaísta tinha mais a ver com fazer circular nossas experiências da relação corpo-câmera, fossem elas narrativas ou não. Depois disso, Aloka das Américas teve vídeos exibidos por alguns festivais nacionais, todos pequenos, alguns relacionados à ideia de corpo-cidade, em experimentos dançantes no espaço urbano, e à performance. Figura 16

Meus vídeos têm sido feitos numa perspectiva de improvisação, em constante atualização espaço-temporal com a câmera e com o lugar onde se dá essa dança. Aloka das Américas surge de um pensamento que não deve à hegemonia do cinema ou da dança. Não estive durante todo esse tempo preocupado em fazer um filme que servisse à formacinema ou tivesse de ser completamente compreendido pelo espectador. Também não estive preocupado em como entenderiam meu corpo em movimento e quais críticas seriam feitas a ele doravante, tanto por estar fora de uma normatividade de gênero, quanto por, e principalmente, estar fora de uma norma reguladora da dança [talvez aqui possa chamá-la de dançalidade]. Muitas das ideias simplesmente aconteciam. Estar num determinado lugar, num determinado momento, com uma câmera na mão, o corpo inquieto e uma ideia na cabeça. Aloka! O desejo de dançar compunha com o dispositivo cinematográfico e o espaço. Convidava alguns amigos para filmar e, depois de um tempo, passei a convidá-los para montar também. Na maioria das vezes, todavia, estive montando as danças de Aloka das Américas. Isso passou a constituir o processo criativo num fazer tríadico, de dança-filmagem-montagem. Uma tríade que não corresponde à fixação histórica de um parâmetro narrativo para as imagens em movimento, visto que se localiza numa ideia experimental de cinema: a relação corpocâmera. Entendia e ainda entendo esses acontecimentos como relações temporais que se dão na perspectiva de um corpo que dança e que, em movimento, pensa. Mas não pensa apenas em si. Pensa na sua relação com a câmera e nas imagens futuramente projetadas 15


numa tela. São diversas imagens simultâneas, que se atualizam segundo os acontecimentos que se dão entre [esta palavra não apenas no sentido de uma relação, mas daquilo que distancia] corpo e dispositivo. Parece que penso com filmes, talvez seja isso mesmo. Penso com dança, penso com filmes. Penso em danças filmadas. Penso em filmes dançados. Filmo eu mesmo minhas danças, registro-as, monto-as, desfaço e refaço na memória, nos dispositivos virtuais. Em qualquer matéria que repercuta pensamentos e movimentos. A dança, contudo, ela não se restringe à sua relação com a câmera. Por isso, o entre, é uma bela peça da linguagem para entender como os acontecimentos do corpo em relação com o espaço-tempo nem sempre (ou quase nunca) chegam ao filme. Há pessoas, animais, plantas, coisas, natureza, objetos, prédios, eventos, sensações de corpo, olhares, etc. E, nesse sentido, antes de qualquer pensamento fílmico, penso na dança. Penso no corpo em movimento, penso no ambiente, naquilo que se torna a improvisação de uma dada dança, que se atualiza segundo presença do corpo. E por isso, tantas vezes, danço sem câmera no meu cotidiano. Quando danço com os dispositivos fica difícil dissociar a experiência de corpo deles, que estão me filmando. Porém, mesmo esta relação sempre se dá num âmbito do in between. Pode se desfazer e se reconectar a qualquer instante. Corpo e câmera não são um só, mas estão implicados num pensamento de filme e de dança, simultaneamente. Aqui penso que isto possa ser um dos apontamentos acerca daquilo que estou chamando de videodança: uma implicação mútua que gera acontecimentos. Figura 17

16


Aloka das Américas surge num instante da minha vida em que inicio aproximações, concomitantemente, à dança contemporânea. O cinema experimental e a dança contemporânea foram imprescindíveis para que esses experimentos fossem colocados em prática. Isso se dá na medida em que são linguagens ampliadas “democraticamente” na história hegemônica da arte. O democrático, obviamente, ainda exclui grande parcela da população mundial. Eu diria, apenas, a partir de minha provocação inicial, que são quase um “tiro no pé” da burguesia. Que ela própria se deu sem que percebesse. Os ready mades e o dadaísmo fazem parte do contexto hegemônico responsável por parte desse processo que golpeou o monopólio de uma linguagem técnica erigida até o século XX. Assim, condições vão, paulatinamente, a partir das vanguardas, abrindo caminhos estéticos para a arte contemporânea e deslegitimando sistemas fixos. Qualquer coisa pode ser arte. Entretanto, nem tudo é. Depende. E quem decide? Façamos o favor de não deixarmos isso nas mãos da burguesia. Não deixemos apenas na mão de festivais, museus, grandes corporações e indústrias de entretenimento. Em se tratando de dança contemporânea e cinema experimental, nenhum corpo pode ser privado de fazê-las, se assim o desejar. A videodança, no cenário contemporâneo, pode ser feita com uma câmera na mão, um corpo inquieto e uma ideia na cabeça. Maya Deren fez isso na década de 1940! Mas, ainda hoje, para um filme se alinhar com a linguagem da forma-cinema existem várias condicionantes: grandes sets de filmagem, roteiros, atores, estrutura de distribuição, produção, etc. Já no caso da dança, o lugar-comum se remete ao paradigma cênico e seu contexto de dançalidade. Exige-se um saber dançar (fundamentado por técnicas desenvolvidas no eixo Europa-EUA até meados do século XXI) mais alguma dramaturgia que teça sentidos a fim de que aquela obra seja apreciada, uma plateia e/ou um palco. Se os circuitos hegemônicos do cinema e da dança ainda legitimam paradigmas históricos e operações disciplinares, a arte contemporânea, não necessariamente. Não possui essa obrigação, pois nela cabe o “qualquer”. Começo a imergir num contexto de dança contemporânea a partir de algumas participações no Festival Panorama, criado há mais de 20 anos pela artista Lia Rodrigues no Rio de Janeiro. Em 2014, uma grande festa no Parque Laje reuniu corpos nus em celebração na piscina do prédio principal. A Associação Panorama teve de pagar uma multa pela situação. Este acontecimento ilustra a ideia de um Festival que tem de lidar com a inesperada junção de artistas imersos em fazeres contemporâneos, num contexto de encontros, reflexões e proposições em dança. E não apenas os artistas convidados para as apresentações cênicas. Há sempre artistas entre o público. E nas festas. 17


Naquele ano, pude acompanhar uma impactante apresentação de Biomashup (2013), idealizado por Cristian Duarte, e o trabalho da Companhia Rosas, da Anne Teresa De Keersmaeker, com Drumming (1998). Lembro-me de sair dançando pelas ruas depois que terminava de assistir aos espetáculos. Estive em todas as festas, trocando informações com vários artistas num contexto contemporâneo de pensar e fazer dança.

Os festivais de dança contemporânea podem funcionar como escolas informais de formação – um lugar de confrontações do olhar, do gosto, do juízo. Mas uma escola sem professor que ensina. Uma escola que proporciona oportunidades de construção a partir de suas fissuras, de suas dúvidas, de seus intervalos, do “entre”. Somente deste lugar posso me dar a pensar honestamente qualquer curadoria. (ROCHA, 2016: 53)

Em 2015, essa parceria se adensou. Assisti ao trabalho de Vera Mantero, O que podemos dizer de Pierre? (2011), que abriu o Festival. Ali vi o discurso de dança contemporânea se materializando de uma forma tão peculiar quanto provocadora. Mantero dançava ao som de uma aula de Gilles Deleuze. Escrevi uma crítica sobre isso, pois, na mesma época, estive no Laboratório de Crítica do Festival (Labcrítica), projeto de extensão organizado entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Associação Panorama. Esta parceria duraria mais tempo do que o previsto, aproximandome, inclusive, da pesquisa em dança e propiciando minha entrada no Mestrado. Naquele ano, participei também de uma oficina com Mantero e de uma residência artística com o grupo Cena 11, dirigido por Alejandro Ahmed. As experimentações trouxeram à tona questões e motivos que já atravessavam meus experimentos no projeto Aloka das Américas, reiterando a importância do corpo em movimento no processo criativo. Com Vera, a recusa por procedimentos hierárquicos e repetitivos ressaltou a evocação das diferenças, tanto de movimentos, quanto de pensamentos em jogo. A artista nos propôs um diálogo entre danças, explorando exercícios que apresentavam a nós sua relação com o inconsciente, numa tentativa de trazer à tona nossos interesses com espaços mentais pouco explorados nas experiências cotidianas de corpo e de dançalidade. Retomando minha participação no LabCrítica do Festival Panorama em 2015, observo que a produção de textos críticos acerca dos experimentos em dança contemporânea determinou-se como terreno profícuo em minha trajetória enquanto pesquisador. Orientados por Sérgio Andrade, egresso da Universidade Federal da Bahia (UFBA), [um grupo de mais de dez pessoas] fomos conduzidos a leituras de Jacques Derrida, Peggy Phelan, André Lepecki, Luiz Camillo Osorio e John Austin. Ao fim desse 18


processo, optamos pelos espetáculos que mais se aproximavam do nosso pensamento de dança e das nossas inquietações enquanto críticos para, enfim, produzirmos textos. Foi então que Vera Mantero se consolidou como importante referência para mim, num cenário em que prática e teoria não estão dissociadas. Estaria aí um possível entendimento desse pensamento contemporâneo de dança: as velhas dicotomias não se sustentam mais.

Figura 19

Figura 18

Assim que estou terminando a passagem pelo Laboratório do Panorama, tento a seleção do até então único Mestrado em Dança do Brasil. O encontro com os departamentos de Dança da UFBA se deu na metade de 2016, numa dinâmica associativa e crítica. Foram colocadas na mesa ambas as referências do meu processo enquanto pesquisador: as contribuições do cinema experimental e da dança contemporânea. Nesse mesmo período, havia acabado de escrever uma monografia sobre a incidência da autoficção no cinema contemporâneo, a fim de encerrar o ciclo de estudos na UFF. A pesquisa em autoficção estava integrada ao pensamento de cinema de dispositivo e, por isso, foi uma fração importante na minha proposta de pesquisa em videodança. No Programa de Pós-graduação em Dança da UFBA me deparei com colegas e professores interessados na pesquisa. E, durante o processo de trocas, que durou aproximadamente um ano, tive a oportunidade de expor inúmeras vezes os entendimentos da investigação, a fim de avançar (ou não) na proposta de associação entre os experimentos autorreferentes do cinema e a ideia de um pensamento em dança contemporânea. Uma perspectiva alicerçada na experimentação das possíveis relações corpo-câmera que pudessem criar ruídos nos formatos hegemônicos das imagens em movimento hoje em circulação na web. Durante essas exposições do processo, fui remodelando o corpus da investigação enquanto questionava alguns procedimentos 19


metodológicos da pesquisa em dança. Muitas professoras incentivaram aproximações entre dança e escrita, a fim de identificarmos coletivamente quais eram os temas mais pertinentes aos entendimentos do campo da dança e seus hibridismos de linguagem. Outras, entretanto, tinham um posicionamento mais disciplinar acerca da área. Uma das experiências mais interessantes dessa incursão num Mestrado em Dança foi me deparar com a importância do corpo e de suas demandas de movimento nas aulas, durante a fase das disciplinas. Um verdadeiro desafio aos paradigmas de mestrados acadêmicos nas áreas das humanidades/artes. Assistir às aulas deitado no chão, dançando, sem estar fixo aquele modelo do aluno-cadeira-professor, trouxe à tona novas formas de pensar de maneira prática, com o corpo, a pesquisa em artes, que não mais representadas pelo modelo objeto-sujeito do método científico, empregado com mais recorrência em áreas como a Comunicação e o Cinema. A dinâmica de mais horizontalidade nos debates permitiu que as pesquisas transitassem em discussão, apontando diferentes pontos de vista acerca das questões levantadas. Como discente, me senti muito à vontade para levantar dúvidas e questionar bibliografias, procedimentos e perspectivas em dança. Contudo, nem sempre pôde se dizer que houve diálogos. A disciplina de Seminários Avançados (uma das mais importantes no primeiro semestre) concentrou, por exemplo, algumas das experiências mais conflituosas da passagem pelo Programa. Como disciplina obrigatória, deveria trazer um panorama mais expandido acerca dos três diferentes direcionamentos que constituem as linhas de pesquisa. Infelizmente não foi o que aconteceu. Centrada em reflexões da Linha 1, Corpo, dança e cognição, que assinala no departamento um universo distante da minha atual pesquisa – esta mais voltada às configurações estéticas, processos criativos, arte-educação, crítica, etc. – a disciplina trouxe uma série de limitações às referências e discussões propostas coletivamente, por mais que tentasse perfazer diferentes epistemologias em seu programa teórico. Percebo que quanto mais plural uma disciplina obrigatória for mais haverá condições de satisfazer a um número maior de discentes, que chegam com uma grande variedade de pontos de partida. E essa é também uma reflexão que me leva a questionar a disciplinaridade do programa. É imprescindível que estejamos centrados no debate acerca do campo que constituiu a dança ao longo do tempo. Mas não podemos deixar de lado as invisibilidades históricas do processo que erigiu as artes como forma de conhecimento. Ainda estamos muito condicionados ao pensamento científico e, especificamente, à hegemonia da história da arte – uma história eurocêntrica.

20


Nesse quesito, um dos pontos que levanto é a própria condição em que se instalam os estudos de dança nas universidades brasileiras. Ou eles estão institucionalmente próximos do teatro, inseridos no contexto das artes cênicas (de onde o Mestrado em Dança se desmembrou), ou no da educação física, entendidos enquanto estudos sobre condicionamento corporal. A dança, por sua interdisciplinaridade inata, ao lidar com o interesse de pesquisa mais poroso das ciências (o corpo), está em constante instabilidade. Quando intenta afirmar um conteúdo ou uma unidade que a proteja de um segundo plano, o campo em construção vai precisar revisitar as condições históricas a que foi submetida a dança, em sua multiplicidade, a partir das associações com outras áreas. Aponto superficialmente esses dois lugares institucionais na universidade, sobretudo, para provocar dissonâncias ao estado de conhecimento que condicionou a reprodução de um pensamento hegemônico em dança. A ideia de um Mestrado resgatar o campo e revisitar essas relações ontológicas não é apenas imprescindível, mas uma demanda que satisfaz a ideia de pesquisa em dança e do artista-pesquisador da dança, inclusive em suas interfaces com outras linguagens. Optei pela área de concentração vislumbrando essa disciplinaridade, inclusive. Todavia, nem mesmo tamanho esforço de localização escapa de alguns equívocos identitários que continuam a reproduzir, nos estudos contemporâneos de dança, algumas amarras institucionais, apontadas em minha pesquisa dentro do conceito de dançalidade esboçado por Thereza Rocha. A dança ainda se mantém, na história hegemônica da arte, circunscrita ao paradigma cênico e às indexações de movimento oriundas de saberes catalogados pela técnica. Ainda é muito recente esse escape, no final do século XX, do determinismo disciplinar e de uma delimitação da dança pelo saber eurocêntrico. As danças populares, a experiência cotidiana/abstrata do corpo em movimento, suas relações culturais com a cidade, a política, a filosofia, o meio ambiente, outras linguagens artísticas, etc. têm reverberado consideravelmente no fazer/pensar dança. Levar Aloka das Américas como fundamento prático para uma pesquisa em artes concentrada em dança me fez ouvir, de maneira recorrente, sobre a carência de legitimidade que um corpo ordinário tem para produzir discursos no campo. Ouvi de alguns docentes, por exemplo, que minha pesquisa artística não tinha consistência como arte. Também me deparei com a reincidência de uma expectativa cênica sobre meu trabalho. Noutros momentos ouvia, de forma brincalhona, por alguns colegas de mestrado, que meus movimentos de corpo lembravam os de Martha Graham, mesmo sem que eu conhecesse seu trabalho e nunca tivesse experimentado uma educação formal em 21


dança. Entretanto, em grande maioria, fui encorajado por professores e colegas acerca da especificidade da pesquisa e de meu corpo em movimento. Como essas dissonâncias à expectativa da dançalidade poderiam estar, no meu trabalho, especificadas noutras formas de conhecimento, a partir das interfaces de linguagem tecidas com a dança? A relação entre dança-cinema-filosofia, pretendida neste projeto, requereu um universo de pesquisa em dança cujas relações não mais estivessem delimitadas à ideia de dramaturgia. Os dispositivos com os quais se circunscrevem os fazeres do corpo podem se tornar mais interessantes para compreender a sintaxe investigativa da qual estou falando: o corpo-câmera, o corpo-cidade, suas experiências performativas, e a cibercultura, por exemplo, são algumas perspectivas possíveis. Estou falando, especialmente, de experimentos de corpo em movimento que já não dissociam cotidiano/vida de arte, portanto permutam estados dialógicos e autorreferentes em seus fazeres, que não mais se limitam ao total esvanecimento dar artes da cena e escoam por redes múltiplas, como a internet. São experimentos que se relacionam, na presença, por uma ideia de acontecimento, mas não de um acontecimento cênico. O que se dança precisa ser vivido, não apenas visto e reconhecido como tal – a dança não mais em busca de uma legitimidade cênica, que interprete a si mesma; a dança em sua estranheza de romper com a repetição e a mimese cotidiana, ela mesma improvisada e tão imprevisível, indissociável de suas relações, surpresas e ruídos no espaço público. Quando problematizo a autorreferência, que esta não seja limitada erroneamente ao conceito de autobiografia, mas às atuais contribuições da autoficção no debate sobre a vida cotidiana. Estamos a ficcionalizar nossas vidas com os dispositivos. E este pode ser um caminho na “brincadeira” infindável entre mimese-realidade com as câmeras, evitando sintetizar conceitos como “real” e “imaginário” numa separação simplista. Isso diz respeito, em especial, ao regime estético das imagens em movimento, que, nesta pesquisa, não são entendidas como mero registro do real, mas enquanto seleções, recortes, acontecimentos: uma construção a partir de um olhar fílmico sobre a “realidade”. Todavia, apesar do parâmetro afastado de uma perspectiva documental, as imagens também não são delimitadas por uma ótica da representação. Por isso, estamos a falar do corpo-câmera e de seus acontecimentos espaço-temporais; acontecimentos construídos, provocados pelo corpo em movimento e sua lógica de desaparição no tempo. Nesse contexto, Aloka das Américas e algumas das demais obras que constituem meu corpus de análise se reúnem em torno de experimentos das artes performativas e das imagens em movimento que não estão mais a dissociar arte e vida. Dessa forma, não as 22


encaixo à finitude de classificações nos esquemas hegemônicos, que precisam identificar o real a fim de contrapô-lo à cena. Em que medida, portanto, nos surgiria a obra de um artista que vive o próprio fazer aquém do jogo da representação e de suas variações cênico-narrativas? O desafio de materializar esta pergunta num programa de pósgraduação em artes é a óbvia afronta aos esquemas de produção de conhecimento ainda centrados nas formas de legitimidade que a arte toma para si como campo de investigação. No caso do Mestrado em Dança da UFBA está, sobretudo, na criação de ruídos ao paradigma cênico ainda ontologicamente acenado enquanto fazer e pensar dança. Esse é o paradigma similar aquele que me deparei na Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), no Curso Técnico de Dança da instituição. Apesar das evidentes diferenças nos modos de pensar e fazer dança, a UFBA e a Funceb centram seus esforços na cena. Na última, contudo, o contexto se dá de forma mais complexa ainda, quando se delimita à reprodução de uma ideia de dançalidade marcada pelo status dos acúmulos de repertório em que se consolidaram as técnicas do saber-dançar no século XX. Na UFBA, a dançalidade é apenas marcada pelo paradigma cênico. E foi na experiência de frequentar simultaneamente essas duas instituições que vivi universos em cujos diálogos percebia muitos afastamentos. Por mais de uma vez me perguntei se a imersão em instituições que assinalam a dançalidade pela via da técnica estaria de acordo com as minhas pretensões enquanto artista. Acredito que, por carregar um histórico informal de educação em dança, praticamente autodidata, senti a necessidade de ser legitimado pelo circuito do “saberdançar”. Depois de dois semestres na Funceb, contudo, abandonei o curso técnico por perceber que a experiência de ensino-aprendizagem não respeitava não só o meu corpo, mas todas as minhas provocações enquanto artista-pesquisador da dança em interfaces. Ter abandonado esse curso técnico não me faz concluir, todavia, que as experiências de construção de repertório e de investigação histórica da dança não possam contribuir para o desenvolvimento da pesquisa nesse campo. Muito pelo contrário: a dançalidade pertence a um contexto histórico que assinalou a dança enquanto campo. O problema, em minha opinião, é apenas estar fixo a isso. A dançalidade precisa ser revisitada, questionada e criticada, na propulsão de diferentes fazeres e corpos. Por fim, considero que a Funceb se limita a oferecer um tipo de conhecimento em dança que não é exclusividade desse espaço de formação. Há várias academias de dança e cursos espalhados pelo país reproduzindo o que é feito lá (excluo aqui apenas o contexto específico das danças de matriz popular e afro-brasileira, um privilégio aos estudantes da instituição). Além disso, as relações de ensino-aprendizagem, ainda distantes de uma 23


ideia de autonomia, não privilegiam as experiências anteriores do corpo que dança, bem como suas contribuições estéticas enquanto pensamento do campo. O artista é impedido de escolher sua formação no processo e decidir aquilo que melhor se encaixa às suas experimentações. É a insistência num modelo disciplinar que não dialoga com os corpos. Talvez tenha imergido na tentativa de um curso técnico concomitantemente ao mestrado por uma insegurança comum ao jogo transdisciplinar de minha pesquisa e ao meu trajeto como artista independente. Ser legitimado como artista da dança é um problema quando o conhecimento utilizado para tanto ainda serve ao pensamento hegemônico da história da arte. Como relatei anteriormente, minha pesquisa e meu corpo foram colocados em xeque por diferentes agentes que não viam na proposição de Aloka das Américas uma experiência estética. Contudo, muitos foram os artistas e professores que incentivaram a continuidade de experimentos e digressões. Se ainda me mantenho no esforço de evidenciar as linhas possíveis entre o cinema experimental e a dança contemporânea é, sobretudo, porque esta é uma necessidade latente dos estudos em videodança, que precisam abrir horizontes para além da experiência cênico-narrativa e aceitar a democratização dos meios de produção: as tecnologias virtuais. Hoje temos câmeras disponíveis nos bolsos de nossas calças, ao livre alcance das mãos. É necessário apostar nas reflexões da condição corpo-câmera em relação às linguagens emergentes do ciberespaço da web para criar outros contextos de criação, não mais delimitados por grandes sets de filmagem nem às companhias de dança. Não é mais possível limitar a ideia de videodança ao que se consolidou nos festivais do gênero, muito menos aos estudos que ainda catalogam o debate por um prisma disciplinar. A expansão do campo precisa ser feita, especialmente, por uma perspectiva de repensar a linguagem ainda hegemônica da história do cinema e das atuais tecnologias da vida virtual. E, também, para repensar o que é essa dança com a câmera e como ela implica em virtualidades do corpo em movimento. Não podemos mais encarar os experimentos de dança-cinema pela reprodução dos padrões de imagens em movimento, sejam eles experimentos 3D, fotografias, filmes, vídeos, gifs, menes, etc. Também não é justo subjugar a experiência do corpo às tecnologias com as quais desenvolvemos o processo de criação. Há de se pensar num entrelugar, como fizeram Maya Deren e Loie Fuller: experimentos. Afinal, como o corpo em movimento pensa a linguagem do cinema? Por fim, é importante ressaltar que a contraproposta de uma pesquisa em artes ao sistema produtivo do mercado, em suas economias de linguagem, vai enfrentar uma série de boicotes por parte das instituições que não apenas legitimam fazeres, como também 24


pretendem fixá-los. Nesse sentido, o corpo docente das universidades é responsável por tecer diálogos (ou não) com o universo experimental, podendo contribuir para repensar as estruturas de poder ou para mantê-las do jeito que estão. Diante disso, diria, pela minha própria experiência na pós-graduação, que dar “aloka” no mestrado não é recomendável. Meu projeto artístico esteve minguando em sua marginalidade, ao passo que a investidura num pensamento em dança-cinema fluía solitária por uma conjuntura pouco disponível às interfaces críticas de linguagem. Dessa forma, minha incursão acadêmica só foi entendida e respaldada como pesquisa em artes por conta dos “pares” estéticos que encontrei – artistas que tivessem investigações similares à proposta. O reduzido interesse do Programa de pós-graduação nessa perspectiva experimental das interfaces em dança-cinema reverberou não apenas nos resultados deste projeto de pesquisa, mas nas possibilidades de extensão desse pensamento à comunidade acadêmica. A proposta de cineclube Da da da danse, por exemplo, nunca saiu do papel. Várias foram as dificuldades institucionais colocadas diante do projeto escrito para que ele não se materializasse como também não promovesse redes de experimentação em torno da interface com os dispositivos. Nessa atividade cineclubista, a ideia era conjugar à exibição de filmes experimentações de movimento [num formato mais próximo da improvisação das jams] para a provocação de happenings, festas e afins, a partir de uma perspectiva dadaísta. O intuito estava em reunir artistas num espaço aberto próximo à Escola de Dança da UFBA a fim de fazer dos encontros semanais um cenário de trocas de saberes e produção de conhecimento em relação aos trânsitos híbridos entre as artes performativas e as imagens em movimento. Um contexto amador de acontecimentos e experimentações entre artistas. Mas a UFBA nunca disponibilizou seus equipamentos. A experiência da marginalidade nos circuitos consolidados é um risco para artistas, especialmente artistas amadores, que estão vulneráveis em todos os aspectos institucionais da economia da arte. E então me pergunto: como um artista sobrevive à universidade, aos números e à conjuntura falologocêntrica orquestrada pelos dispositivos disciplinares? Escrevi sobre isso num dos textos reunidos neste relatório, quando interpelo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). As formas de avaliação de um artista-pesquisador ainda estão centradas no modelo de produtividade, não na experiência estética e em suas implicações epistemológicas. Neste pequeno relatório da passagem pelo Mestrado em Dança da UFBA, anexarei todas as reflexões que estiveram esquecidas e fizeram de Aloka das Américas apenas mais um processo episódico no contexto acadêmico-disciplinar de uma universidade brasileira. 25


Assim, termino este breve texto com uma reflexão de Klauss Vianna, que já foi professor da graduação em Dança da UFBA. Segundo ele, professores podem ser responsáveis por aniquilar artistas em formação. É tudo questão de diálogo, ou não. Afinal, a universidade acolhe artistas ou os mata antes que possam surgir? Não há resposta. Há apenas resistência.

Desde essa época, no Rio, descobri que sou um professor – filósofo da dança, como digo sempre, brincando –, nem mais nem menos do que isso. Mas nunca me coloquei na posição de um professor distante, superior. O professor é um parteiro, ele tira do aluno o que este tem para dar. Se o aluno não tem nada, não sai nada. Mas é preciso sempre ter cuidado: é claro que o aborto existe. Muitos professores matam o artista na sala de aula. (VIANNA, 2005: 44)

Referências bibliográficas VIANNA, Klaus. A dança / Klauss Vianna; em colaboração com Marco Antônio de Carvalho. São Paulo, Summus: 2005. FERNANDES, Ciane. Em busca da escrita com dança: algumas abordagens metodológicas da pesquisa com prática artística. In: Dança. Revista do Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. Vol 2. n 2. Salvador, 2013. ROCHA, Thereza. O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Salvador, Conexões Criativas, 2016.

3. ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO TEÓRICO-ARTÍSTICO DA PESQUISA Quando cheguei ao Programa de Pós-graduação em Dança da UFBA, meu arcabouço teórico e suas possíveis contribuições para a pesquisa estavam centrados no campo do Cinema. À época do ingresso no Mestrado, havia acabado de encerrar o ciclo de escrita da monografia Autoficção na narrativa cinematográfica: meio século entre Truffaut e Xavier Dolan, que foi publicada integralmente na Revista Rascunho da UFF, em 2017. As provocações dessa investigação estavam organizadas em torno das relações existentes entre alguns pressupostos da literatura contemporânea e do cinema moderno, pensando em como esse encontro se deu num processo contínuo de exploração da linguagem cinematográfica. Um debate sobre o cinema narrativo de ficção. A autoficção foi importante para que me aproximasse de algumas perspectivas autorreferentes na arte contemporânea, sobretudo na literatura e em suas relações com o ciberespaço. Pesquisadores como Paula Sibilia abriram outros pontos de partida numa 26


proposta de questionar a ficcionalização de nossas próprias vidas a partir dos dispositivos de poder na cultura digital. No livro O show do eu, a intimidade como espetáculo, Sibilia está num contexto de investigação que abarca, especialmente, debates acerca da sociedade do espetáculo e da indústria cultural, ainda que sua atenção esteja voltada à subjetividade dos usuários e às bases filosóficas da tecnociência. Nesse ponto, minhas referências de autoficção, proveniente dos estudos em literatura contemporânea, se encontravam com as investigações mais atualizadas da subjetividade no contexto das tecnologias digitais. Quando transpus esse conjunto de saberes para relacioná-lo com as teorias do cinema, estava interessado em questionar como a narrativa cinematográfica sofreu, durante mais de meio um século, mutações em sua economia da representação. Para isso, considerei as mudanças no estatuto da ficção em filmes que tensionassem a mise-en-scène com a realidade, a partir das referências e evidências sobre a vida real do personagem, que, nesse caso específico, não era só o protagonista, mas o diretor do filme. Se o fazer fílmico passa a ser atravessado por situações que exploram, de forma mais evidente aos espectadores, as relações entre mimese e realidade no cinema do eu, deixamos de lado um antigo confronto entre ficção e documentário. Assim, a transformação da autorreferência numa perspectiva de fazer fílmico mostrou como a autoficção tem criado ruídos ao conceito de autobiografia no cinema, demonstrando as intervenções ambíguas de uma cinematografia que assume a ambiguidade e a falência da representação no contexto ficcional. Por isso apresento o hiato de meio século entre François Truffaut, que ainda se localiza numa transição do cinema autobiográfico de ficção na Nouvelle Vague francesa, e Xavier Dolan, inserido na cultura do entretenimento e das tecnologias digitais – um cineasta que começa sua carreira apostando na autoficção como fazer fílmico. Na atualização desse encontro entre literatura e cinema, circunscrito ao conceito de narratividade, me deparei com a economia do cinema narrativo. E, assim, percebi que o primeiro filme de Xavier Dolan – Eu matei a minha mãe (2009) – estava não apenas confirmando as aproximações entre a autoficção e o cinema, mas que este fazer fílmico também se delineava de forma experimental, ao repercutir ruídos de um cinema de dispositivo. Ou seja, um cinema que revela ao espectador a câmera e, por vezes, os modos de produção e ficcionalização da subjetividade em cena. Assim, a autoficção tornou-se um incentivo às minhas investiduras na linguagem do cinema quando me permitiu aprofundar as investigações acerca do regime de imagem e da economia cinematográfica. Dessa forma, cheguei ao cinema de dispositivo e ao cinema experimental. Estes conceitos traziam no fazer fílmico uma perspectiva muito 27


profícua ao debate sobre autorreferência nas audiovisualidades contemporâneas, criando rupturas com aquilo que o pesquisador André Parente chamou de “forma-cinema”, um modelo de fazer filmes que está na base da criação de gêneros fílmicos consolidados e das separações ontológicas entre ficção e documentário.

A noção de dispositivo pode contribuir para uma renovação da teoria do cinema, sobretudo no que diz respeito à idéia de um cinema expandido sob todas as suas novas modalidades, ou seja, de um cinema que alarga as fronteiras do cinema-representativo instituído [...] uma vez que os dispositivos são, antes de qualquer coisa, equipamentos coletivos de subjetivação (PARENTE, 2009: 35)

O cinema de dispositivo trouxe, então, problematizações à interface corpo-câmera no debate sobre autoficção no cinema, repercutindo em minhas experimentações estéticas do projeto Aloka das Américas. Quando consolidei meu fazer fílmico na ideia de dançar para a câmera e deixar de fingir que ela não estava ali, configurando uma mise-en-scène, percebi que minha discussão sobre dança-cinema se inseria num paradigma contracultural das imagens em movimento. A autoficção serviria, nesse contexto experimental, para entender como a autorreferência no fazer fílmico se apropria da operação com o dispositivo a fim de criar acontecimentos, brincando com a lógica da representação e do registro de uma “realidade”. A ideia de um cinema do eu, de um corpo que dança para a câmera e que também a orquestra enquanto diretor. Um cinema que explora os acontecimentos da feitura do filme com o corpo em movimento e produz perguntas sobre seu estatuto/regime de imagem. Em que medida esse corpo que dança para a câmera poderia ou não ser apenas mais um atributo de representação no cinema? Como ele deixa de sê-lo? Como escapar disso? O que vira filme é invenção ou acontecimento? Os dois? Ao abandonar a necessidade do jogo da representação e pensar num acontecimento fílmico, que se dá com a câmera e o espaço-tempo, o cinema de dispositivo, assim como o cinema experimental, contribuíram como formas de fazer filmes que se encaixam no conceito de videodança explorado em minha investigação. Uma videodança autorreferente, não devedora dos esquemas hegemônicos que constituem a representação/ficção nessa linguagem da interface dança-cinema. Pois o corpo que dança com a câmera se materializa num constante jogo de mimese-realidade que pode, inclusive, transbordar ao espectador de forma transparente. Com esses questionamentos experimentais, então, cheguei ao Programa de Pós-graduação em Dança

28


– pensando numa videodança mais próxima da vanguarda de Maya Deren e das explorações contemporâneas do cinema de dispositivo com a autoficção. Com a imersão no campo da Dança, pude me ater aos debates que centram na experiência do corpo em movimento sua completa associação com o pensamento. Interessei-me pelas aproximações possíveis entre dança e filosofia, que vem contribuindo para o delineamento da dança contemporânea em seus fazeres e disrupções diante de uma economia histórica da linguagem da dança. Nesse contexto, a pesquisa que antes estava estruturada especialmente numa teoria contemporânea do cinema passou a se hibridizar com os conceitos de acontecimento na dança contemporânea. A ideia de improvisação em tempo real para a câmera pressupõe uma relação estética que vê no corpo o princípio criativo do filme. A impossibilidade de dissociar o filme daquele corpo em movimento traduz uma certa resistência aos princípios históricos da relação coreográfica que durante décadas foi doutrinada como imprescindível à linguagem da videodança e do filmedança. Nesse sentido, aos poucos pude compreender como os pesquisadores da dança tem se posicionado acerca das condições históricas que catalogaram essa expressão artística no ocidente. O movimento desta pesquisa em recusar, de alguma maneira, a economia hegemônica da dança está na mesma direção da reação que proponho à forma-cinema. Na dança, os termos mais apropriados para basear a necessidade de posicionamento crítico, que produz disrupções discursivas no fazer artístico e abre a experiência do corpo em movimento (corporeidade dançante) às dúvidas, se resumem às circunstâncias do paradigma cênico que a dança estabeleceu como arte e técnica no século XX. Por isso adotei o conceito de “dançalidade” (a sintaxe de uma dança pura) da pesquisadora Thereza Rocha, a fim de acrescentar ao eixo dança-filosofia um problema que se contrapusesse àquilo que Alain Badiou, em releitura de Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, nominou na dança como “a metáfora do pensamento”. A dança vista enquanto metáfora e, em uma discussão ainda mais atualizada, como o próprio ato de pensar associado ao movimento, traduz algumas contribuições possíveis da dança contemporânea ao fazer fílmico experimental em minha pesquisa. As provocações de Marie Bardet sobre improvisação, por exemplo, em seus diálogos com Henri Bergson e Gilles Deleuze, disponibilizaram-me algumas atualizações específicas da pesquisa em dança à filosofia, denunciando a distância com que o olhar do filósofo se deteve historicamente ao corpo em movimento. Tal provocação é responsável por retirar do conceito de metáfora o resumo ontológico da relação entre dança e pensamento para satisfazê-lo na ação, no movimento. Pensar e Mover, como o livro de Bardet deveria ser 29


traduzido no Brasil (foi traduzido como A filosofia da dança), refaz o percurso de alguns filósofos que se detêm à dança em reflexões estéticas, políticas, metafísicas e fenomenológicas, para apontar alicerces epistêmicos da dança que não fossem apenas metafóricos. A relação com o peso, as implicações da gravidade e as atualizações espaçotemporais do corpo em movimento, este inserido no jogo do atual-virtual (acontecimentopensamento), seriam os principais pontos em contraposição à ideia de “leveza”, construída acerca de uma bailarina “livre” que dança alegoricamente. “Entre a dança e a filosofia, não um corpo de pensamento, mas o corpo no pensamento” (ROCHA, 2016: 42-43). A dança em sua relação com o pensamento, inicialmente dada pelas provocações metafóricas da filosofia, depois pela constituição de um campo interdisciplinar entre dança e filosofia – com a impossibilidade de dissociação entre pensar e mover (contribuição específica de um corpo que dança à filosofia) – tem produzido novos ruídos ao determinismo histórico que fundamentou a dançalidade no século XX. Isso diz respeito, sobretudo, às contribuições da dança contemporânea ao fazer experimental e indisciplinar num contexto de recusa à representação como condição única do campo, numa aproximação entre arte e vida/cotidiano. “Não é cena. Não é disso que se trata” (ROCHA, 2016: 48). Trata-se de corporeidades dançantes em espaçostempo indeterminados. Trata-se de um corpo pensante e movente em atualização. Thereza Rocha traz algumas provocações de Laurence Louppe em seu debate sobre dança contemporânea quando chama pela “dança de cada um”, a partir da ideia de assinaturas corporais ancoradas nas pesquisas de movimento. Um panorama em que se multiplicam os trabalhos independentes e as colaborações, quando os estados corporais tornam-se imprescindíveis à ideia de investigação em dança. A dança contemporânea, então, perfaz um caminho de inúmeras perdas à dançalidade, especialmente quando recusa formas e gêneros predeterminados para a experiência da corporeidade dançante. A disciplinaridade do campo é atingida pela mesma instabilidade logo que a dança passa a ser provocada por todos os possíveis trânsitos que desempenha, hibridismos que recusam delimitações puristas com outras linguagens artísticas. O que não significa, todavia, uma recusa das especificidades do campo da dança ou de todas as questões que estão centradas no corpo pensante em movimento. A recusa se dá por limitações inerentes à disciplina e seus apegos, condições opostas aos ultrajes quase herdeiros da vanguarda dadaísta, de tão indisciplinadas que podem ser essas experiências em seus processos de investigação.

30


Tudo o que respeitar os termos da elaboração ou, mesmo, da inscrição da dança contemporânea numa dada disciplina poderia passar por uma instância formalizante, conferindo um território especializado a essa dança que, frequentemente, só é objecto de desejo porque parece escapar a todo o género preciso e a todas as tentativas de delimitação. (LOUPPE, 2012: 20-21)

A busca por uma definição/formalização da dança contemporânea é quase uma tarefa sisífica, pois ao debate interessa mais a pergunta que lhe interpela do que uma resposta definitiva por características e gêneros. “A dança contemporânea permanece durando em sua indefinição, permanece na sua incógnita, no seu x” (ROCHA, 2016: 133). Tal impossibilidade de classificação abriu vasto leque ao universo experimental/amador do qual estou tratando no corpus da pesquisa. Minhas aproximações com as variadas perspectivas de um pensamento em dança contemporânea refundaram não apenas alguns dos procedimentos teórico-metodológicos de minha investigação, como formataram conceitos acerca da hibridação de linguagens na videodança. Aos poucos, abandonei uma suposta necessidade de mimese da dança no processo criativo dos corpos com as câmeras, tornando-me muito mais interessado nos acontecimentos provenientes dessa relação movente no espaço-tempo, sem uma preocupação em responder se isso é ou não “dança”. O deslocamento para a dança enquanto área de conhecimento, todavia, foi imprescindível para não centrar o debate na linguagem cinematográfica, visto que o que interessa são as relações possíveis de uma interface ambivalente: o corpo-câmera. Tais conclusões repercutiram, também, na própria tentativa de escrita da dissertação, quando me interessei pelo que a dança poderia construir de interface com as palavras e com o ato de escrever, atravessando-se pela ideia de imagens em movimento, também. A prática como pesquisa despontou, então, como importante contributo das artes performativas às possíveis restrições que uma pesquisa metodologicamente limitada à análise fílmica e aos atuais interesses etnográficos das tecnologias da comunicação poderiam ter no processo. Escrita como/com dança. Um corpo em movimento que pensa e, então, escreve. Nem tudo é logos e uma pesquisa em artes precisa assumir seus devaneios e experiências estéticas como força motriz da própria constituição do campo em que se insere. Não pelos restritos canais da textualidade descritiva, mas por uma miríade de acontecimentos inerentes ao processo de pensar relacionando perceptos e afectos; relacionando sensações, corpo movente. “Palavra, pensamento, conhecimento, conceito, pesquisa. Que estas palavras estejam associadas à dança é todo um capítulo da história da dança

31


contemporânea” (ROCHA, 2016: 84). Como provoca o pesquisador Sérgio Andrade, “um pensamento que vem dançando”, seja ele a respeito de dança ou como a própria matéria de que se fala: a experiência movente-pensante. Estou dançando a-g-o-r-a---- !!

de fazer dança”

“Pensar é somente um outro modo

(ROCHA, 2016: 84)

De uma hegemonia do logocentrismo passamos, então, a um pensamento sensívelprático, dançante, não-linear; pensamento ao qual esta pesquisa deve parte de suas reflexões. A intermitência sobre uma escrita doutrinada pelo lugar-comum da lógica e da narratividade, contudo, ainda não parece ser considerada em programas de pós-graduação voltados à produção de conhecimento em artes, ao menos no Brasil. Por isso, ficará nítida esta qualidade discursiva: a intermitência. Revezar-me-ei, depois de tanto tempo imerso nos fazeres de Aloka das Américas, entre a condição de corpo dançante, na escrita, e a de reprodutor linear, apesar de crítico, do percurso histórico. O pensamento dançante se intercala e se encontra, enfim, com as evidências de uma videodança condicionada aos formatos hegemônicos do hibridismo dança-cinema, em sua transição expandida às experiências informais e ainda inclassificáveis dos métodos autorreferentes no cinema. A ciência se recusa a absorver em suas operações que atribuem sentido à realidade metodologias que desfaçam os modelos consolidados de saber e legitimidade. A pesquisa em artes há de se encontrar com esse imbróglio, produzindo ruídos aos saberes dominantes da história formal e às genealogias que buscam uma linguagem pura. O eixo experimental do trânsito dança-cinema guarda alguns desses enfrentamentos há mais de 75 anos, quando Maya Deren optou por questionar modelos estabelecidos para a linguagem fílmica. Em sua reiterada recusa ao star system e ao entrave mimese/realidade operado pelos modelos narrativos da indústria, a ucraniana apontou algumas evidências criativas da relação corpo-câmera nas imagens em movimento. E isso está, de formas diferentes, em Aloka das Américas e Une minute de danse par jour. Referências bibliográficas: LOUPPE, Laurence. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.

32


PARENTE, André. A forma cinema: variações e rupturas. In: MACIEL, Katia (org.), Transcinemas. Rio de Janeiro: Editora Contra Capa, 2009. ROCHA, Thereza. O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Salvador, Conexões Criativas, 2016.

4. PERCURSO ACADÊMICO Neste ponto serão analisadas e avaliadas as experiências disciplinares do Mestrado em Dança da Universidade Federal da Bahia. Se as disciplinas e atividades obrigatórias contribuíram ou não para o desenvolvimento desta pesquisa. É uma análise crítica, que pretende compor um quadro construtivo às experiências futuras dos mestrandos.

4.1. Disciplinas obrigatórias Disciplinas obrigatórias a todas as três linhas de pesquisa do Mestrado em Dança. A – DANA 25: ELABORAÇÃO DE PROJETOS (68h – 4 créditos) Departamento: Teoria e Criação Coreográfica Docentes: Jussara Setenta e Adriana Bittencourt Ementa: Apresentação dos fundamentos teóricos para concluir o processo de elaboração de projetos de dissertação, discutindo aspectos estruturais do roteiro de um projeto e seus pontos básicos: definição do objeto e o modo de tratá-lo, a relação entre objeto da pesquisa, fundamentação teórica e a metodologia da pesquisa em Dança. Orientação do processo de definição e construção do objeto. Nota: 9,0

Semestre: 2016.1

Avaliação de relevância: Essa disciplina foi deslocada para o primeiro semestre assim que a turma de 2016.1 entrou no Mestrado. Não recomendaria que isso fosse feito novamente. Depois de uma avaliação crítica, a turma de 2017 voltou a tê-la no segundo semestre do Curso. É uma disciplina que exige algum tipo de reflexão anterior sobre os projetos de pesquisa, a fim de que eles tenham mais consistência em sua rotatividade nos debates, preparando o aluno para a textualidade que trará em sua qualificação. No nosso caso, a disciplina foi proveitosa pelo interesse das professoras e, especialmente, de Jussara Setenta, em incidir criticamente sobre todos os trabalhos apresentados. A indicação de leitura central, A ordem do discurso, transcrição de uma aula inaugural Michel Foucault no Collège de France, foi importante para entendermos o posicionamento de nossa 33


produtividade epistemológica, logo quando estamos inseridos num pensamento sobre nossos e outros tantos corpos que dançam. O discurso, nesses termos, é capaz de sintetizar e organizar a experiência sensível, inscrevendo-a em termos não só históricos, mas institucionais. É uma questão de ordem e de poder. Como uma das melhores disciplinas do primeiro semestre do Mestrado, pudemos trocar uma série de informações sobre nossos projetos de pesquisa, ajudando uns aos outros a objetivar o trabalho de transcrição do pensamento em dança. Infelizmente, ao fim do processo, não recebemos um feedback com a revisão de nossos projetos de pesquisa, entregues aos docentes no final da disciplina. Ao contrário de uma atividade obrigatória com a mesma finalidade dessa disciplina que, inclusive, foi concomitante a ela no semestre, não tivemos um retorno escrito acerca de nossa produção durante o semestre. Em certa medida, a ausência de uma revisão discursiva ao fim do processo não contribuiu para uma atualização acentuada do projeto diante das discussões profícuas que tivemos coletivamente. Apesar disso, foi de suma importância algumas trocas e questões trazidas pela professora Jussara Setenta durante o processo. Por conta de suas intervenções, com alguns dos demais colegas de classe, pude entender que meu trabalho estava focado na experiência amadora de Maya Deren. E não no simulacro hegemônico que ainda existe inserido nas nuances quase imperceptíveis entre entretenimento e os circuitos modernos/contemporâneos de arte (em contínua evidência de globalização). Nesta disciplina consegui delimitar melhor o corpus da pesquisa, fazendo as subdivisões necessárias segundo cada experiência estética elencada na investigação. Compreendi, finalmente, como as plataformas influenciam no processo de distribuição e sectarismo de conteúdos audiovisuais em dança na web e como tal interface é atravessada por questões políticas para um corpo que dança. Este não pode negligenciar o contexto em que se inserem os dispositivos de poder com os quais está em constante relação. As experiências coletivas circunscritas ao ambiente sócio-político-econômico em torno do artista foram um princípio para repensar as relações de ordem discursiva na dissertação. B – DANA 26: SEMINÁRIOS AVANÇADOS (68h – 4 créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docentes: Lenira Rengel e Fatima Wachowicz Ementa: Apresentação e discussão de tópicos centrais da caracterização da estrutura de pensamento correspondente ao entendimento de corpo, de dança e duas 34


imbricações contextuais tal como proposto na definição do perfil teórico do curso, a partir de suas linhas de pesquisa. Nota: 7,0

Semestre: 2016.1

Avaliação de relevância: Considero essa uma das disciplinas mais problemáticas do Programa. Talvez mais pela maneira como foi conduzida pelo corpo docente durante o semestre do que por sua proposta inicial no ementário. A questão, como foi levantado anteriormente no texto sobre minha trajetória em relação ao Mestrado, se resume à problemática distribuição do conteúdo segundo as linhas de pesquisa. Foi perceptível uma concentração dos textos na primeira linha, Dança e Cognição. Senti falta de explorarem mais as relações entre dança e filosofia, aprofundando as reflexões sobre dança contemporânea e suas aproximações com outras linguagens. Na seleção do mestrado, ao menos dois dos quatro livros indicados estavam situados nessas outras zonas de investigação, tanto dos dispositivos e suas relações com o corpo quanto da possível interdisciplinaridade de um pensamento em dança com os estudos da filosofia. Além disso, a leitura de um texto do Steve Pinker, sobre questões de gênero, me deixou extremamente desapontado. A psicologia evolucionista tem investigado o desenvolvimento humano a partir de sectarismos e marcadores biológicos, como gênero e raça, se utilizando de princípios “genéticos” para definir aquilo que seria inato à condição de um corpo. A ideia é diferenciar as habilidades humanas segundo sua origem biológica. E, nesse texto específico sobre gênero, Pinker não apenas legitima o estrupo enquanto prática biológica como vê na castração química a única solução para homens condenados pelo crime. A mim foi impressionante ter acesso a uma leitura apontada por várias militantes do movimento feminista como misógina e sexista, logo num Mestrado em Artes onde a maioria das professoras são mulheres (quase a totalidade do Programa de Pós-graduação). Entendo que a maioria das professoras tenham desenvolvido sua formação de doutoramento a partir de uma perspectiva evolucionista, por conta dos estudos no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Isso, contudo, não justifica a centralização desses estudos numa disciplina que reúne as três linhas do programa, sendo uma dedicada aos estudos estéticos e composicionais e a outra à arte-educação e à mediação cultural. O interesse em evolucionismo não legitima uma seleção de textos marcadamente misóginos. E isso precisa ser tensionado. Ao fim da disciplina escrevi uma resenha chamada Evolucionismo e misoginia. Espero que as professoras responsáveis pela seleção da bibliografia tenham acolhido as críticas, que não foram apenas minhas, mas da maioria dos estudantes da disciplina. E, 35


apesar dessa conjuntura limitante, tive acesso a alguns textos profícuos à minha linha de pesquisa, de autores como Muniz Sodré, Lucia Santaella e Judith Butler. Em seguida ao processo de leitura, houve a oportunidade de produzir um artigo específico sobre as questões de gênero presentes nos vídeos de Aloka das Américas. Levei essa discussão para o III Seminário Internacional Desfazendo Gênero, onde publiquei o artigo. O trabalho, entretanto, se materializou de uma forma muito diferente da qual estava debruçado para a dissertação, evidenciando o pouco diálogo dessa disciplina com a minha pesquisa durante os primeiros meses do Mestrado. Isso se repetiu com outros colegas, não demonstrando ser um problema isolado, muito menos centralizado em minha pessoa. Foi convocada, inclusive, uma reunião entre professores e alunos ao fim do semestre para debater essas questões. Há de se repensar o caráter dessa disciplina obrigatória no currículo o quanto antes, para que ela não se torne apenas útil ao trajeto acadêmico dos mestrandos, mas minimamente dialógica com as pesquisas que chegam ao Programa. C – DANA 24: METODOLOGIA DA PESQUISA EM DANÇA (68h – 4 créditos) Departamento: Teoria e Criação Coreográfica Docentes: Lucia Mattos e Daniela Amoroso Ementa: Apresentação de instrumental teórico para subsidiar as definições metodológicas e bibliográficas dos alunos no desenvolvimento de suas pesquisas, esclarecendo suas inserções em tradições teóricas consolidadas e as especificidades epistemológicas de pesquisa em dança. Nota: 8,0

Semestre: 2016.2

Avaliação de relevância: Esta foi a disciplina mais profícua cursada durante todo o período de aulas do Mestrado. Não foi só a melhor disciplina, como seu conteúdo abriu possibilidades em minha pesquisa a fim de pensar metodologicamente questões inerentes às relações entre teoria e prática na dança – a fundação desse campo epistemológico. As aulas práticas estiveram próximas de nossos debates e leituras, trazendo uma série de percepções sobre o estado da arte em nossas pesquisas. Pude conhecer mais sobre a etnocenologia e a prática como pesquisa (practice as research). Também pude compreender como a etnografia estava aproximada dos interesses qualitativos da pesquisa em artes e em tecnologias da comunicação. A disciplina contribuiu, sobretudo, para uma avaliação mais aguçada das metodologias que escolhi para a investigação.

36


Conheci, então, as provocações de Ciane Fernandes, muito importantes para refazer os caminhos de uma escrita com/como dança. O debate se aproximou das leituras doravante feitas a partir de incursões no campo da dança contemporânea. E a pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas se juntou, em minha investigação, às contribuições de Thereza Rocha e Sérgio Andrade, a fim de problematizar como essa escrita dançada ou esse pensamento dançante são responsáveis por ativar as especificidades de um campo ainda pouco explorado no Brasil. Digo isso especialmente quando tensiono as pós-graduações acadêmicas em artes da cena, que ainda precisam revisitar alguns paradigmas metodológicos a fim de visualizar na escrita e no pensamento outras formas de se fazer pesquisa com o corpo em movimento. Ou seja, formas de fazer pesquisa que não excluam o corpo e suas experiências estéticas a partir de um processo logocêntrico costumeiramente exigido para a escrita ensaística na academia; processo este responsável por classificar a escrita enquanto logos. Uma das poucas reclamações que faço à disciplina foi a ausência de uma devolutiva sobre o texto final que, no meu caso, acabou se tornando parte do meu resumo disponibilizado no artigo que publiquei nos anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança. O ano letivo 2016.2 estava muito imprensado por conta da recuperação de semestres na Universidade, depois da grande greve de 2015, o que também dificultou que tivéssemos mais imersões práticas e leituras no primeiro módulo e uma devolutiva mais direta no segundo.

4.2. Disciplinas optativas Disciplinas optativas escolhidas segundo à proximidade com minha linha de pesquisa (2): Processos e Configurações Artísticas em Dança. D – DANA 36: ACOMPANHAMENTO DE RESIDÊNCIA ARTÍSTICA (51h / 3crd) Departamento: Teoria e Criação Coreográfica Docentes: Rita Aquino e Gilsamara Moura Ementa: Atividade orientada de participação em projetos de investigação artística em dança propostos por artistas residentes convidados (por meio de projeto de Extensão) nas funções de acompanhamento analítico do processo e/ou participação orientada, de modo a promover a retroalimentação entre procedimentos de pesquisa artística e acadêmica numa prática laboratorial. 37


Nota: 10,0

Semestre: 2016.1

Avaliação de relevância: A disciplina trouxe várias aproximações com a extensão e a comunidade universitária em geral. Tivemos uma grande rotatividade discursiva de artistas oriundos de várias partes do mundo, especialmente do eixo América Latina, que estiveram em constante diálogo conosco por meio presencial e com a ajuda de tecnologias digitais (Skype, por exemplo). As leituras, entre elas destaco o texto de Ricardo Basbaum, Manual do artista-etc, me levaram a estruturar algumas questões levantadas durante o período das ocupações no país com o texto Ocupação: corpos em festa como formas de resistência, Residência, publicado ao fim da disciplina num website criado com o intuito de reunir os processos coletivos desenvolvidos durante o semestre. Essa experiência é um grande exemplo de como as atividades coletivas podem ser impulsionadas sem a mesma operação disciplinar de obrigação, instituída por prazos e números. Produzimos textos, obras de arte e reflexões avulsas que dialogaram com o vasto contingente de debates organizado pelas docentes. Discutimos, sobretudo, durante um período de recessão política, acompanhado de um golpe de Estado que nos deixou todos desconfortáveis. As ocupações de estudantes secundaristas e universitários espalhadas pelo país foram um mote de vários temas em relação às atuais estratégias de residência artística, que envolvem um tecido afetivo e contextualizam novos fazeres, não mais centrados necessariamente nas oportunidades do sistema econômico. As residências artísticas enquanto malha afetiva de um cenário de resistência de corpos e fazeres marginalizados pelos circuitos em que se consolidou um mercado de artistas e obras. A contribuição dessa disciplina diz respeito, sobretudo, aos afetos envolvidos, às atividades práticas e críticas, abertas ao público e ao convite de artistas colaboradores. Estivemos em constante troca para pensar como podemos resistir a um cenário de recessão e fascismo. Nesse sentido, o contexto da minha pesquisa estava o tempo inteiro em jogo, quando Aloka das Américas desponta como ato de resistência à economia política de afetos, ressalta os experimentos marginalizados pelo Império no espaço público e, simultaneamente, na rede mundial de computadores. A rede virtual e física /material de artistas proposta em nossas reflexões não poderia excluir o cenário amador e deixar de criticar os obscuros processos de legitimação artística dos mercados artísticos. E – EBAA34: TÓPICOS ESPECIAIS EM POÉTICAS VISUAIS (34h – 2 créditos) Departamento: História da Arte e Pintura – Mestrado em Artes Visuais 38


Docentes: Ludmila Pimentel Ementa: Este componente curricular aborda os conceitos de interface, cultura da interface e poéticas digitais, aprofundando questões pertinentes as artes visuais e suas interfaces com as tecnologias contemporâneas. Nota: 8,0

Semestre: 2016.1

Avaliação de relevância: O processo dessa disciplina esteve circunscrito às reflexões das poéticas visuais no contexto digital/virtual, fundamentando nossas imersões conceituais na cibernética e suas ordens. Trouxe algumas referências interessantes, que não apenas expuseram o contexto das tecnologias de comunicação como inventariaram um fazer artístico baseado na interface e em suas práticas de virtualidade. Steve Johnson e Mônica Tavares foram importantes nomes da cibernética e da interface. A disciplina explorou essas experiências a partir de alguns interesses de investigação e trouxe à baila fazeres experimentais nas artes visuais como um todo. Ao fim do processo, expusemos algumas de nossas reflexões, relacionando-as aos conceitos da cibernética e às tentativas de aproximação com a experiência computacional. Utilizamos diagramas conceituais ao fim do processo para entender como essas relações instituídas pela interface se dão numa aplicabilidade virtual da cibernética nas artes, explorando o universo simbólico dos computadores em nossas investigações artísticas e epistemológicas. Apesar de não ter sido uma disciplina que contribuiu em absoluto para o desenvolvimento do meu projeto de pesquisa, que vê na interface não apenas uma experiência estética formal, mas uma virulência contra o poder instituído na sociedade de controle (em que reinam o espetáculo e a indústria cultural), a exploração das poéticas digitais foi interessante para entender conceitos como intermidialidade, cujas interfaces estão circunscritas à virtualidade e aos experimentos que relacionam várias linguagens artísticas. A poiesis, nesse sentido, foi um terreno profícuo de investigação estética para mergulharmos no terreno mais experimental das artes visuais. Esta disciplina não faz parte do currículo do Mestrado em Dança e, por isso, pode se debruçar mais efetivamente sobre o contexto das imagens em movimento nos ciberespaços em uso na atualidade. Talvez tenha faltando um pouco mais de interesse docente em evidenciar os possíveis entrelaçamentos das pesquisas disponíveis com o arcabouço teórico levantado na ementa. Devido a vastidão de interesse que as imagens produzem em sua relação com a cibernética, no contexto das artes visuais e das tecnologias de comunicação, essa disciplina poderia ser um espaço transdisciplinar de efusiva experimentação entre o corpo e as poéticas visuais no meio digital. E não apenas uma repetição exaustiva de operações 39


epistemológicas que nem sempre se encaixam com o trabalho do pesquisador em relação na sala de aula. Talvez seja necessário um processo de orientação direta do docente responsável sobre os pesquisadores visitantes, visto que a disciplina costuma ser operada com um público restrito de discentes; ou ter organização mais relacional do conteúdo, pensando que o público alvo são artistas-pesquisadores nem sempre especialistas no tema. F – DANA 27: ANÁLISE DE CONFIGURAÇÕES DA DANÇA - BRASIL (51h/ 3cr) Departamento: Teoria e Criação Coreográfica Docentes: Ludmila Pimentel e Carmem Paternostro Ementa: Os métodos de análise e suas correspondentes estruturas de pensamento. O papel da crítica no desenvolvimento da Dança enquanto matéria artística e área de conhecimento no Brasil. A crítica jornalística e a crítica ensaística. Análise sistemática de obras de dança - especialmente dança contemporânea, especialmente a brasileira - e produção de resenhas. Nota: 9,0

Semestre: 2016.2

Avaliação de relevância: Acredito que exista um descompasso entre a ementa dessa disciplina e a imersão de conteúdo que tivemos durante o segundo semestre do Mestrado. Passamos muito longe de uma investidura na crítica jornalística e ensaística. E não nos ativemos às experiências estéticas brasileiras, muito menos focamos em dança contemporânea. A disciplina se deteve, de forma limitada, às textualidades da pesquisadora Susan Foster, em seu Reading Dance, cuja publicação já faz mais de três décadas e possui algumas parcas atualizações – apesar de ainda se deter a um universo catalogador da dança que nos remete muito aos paradigmas modernos de avaliação formal do movimento e suas implicações coreográficas, curatoriais e estéticas. Tivemos outras poucas imersões bibliográficas, que surgiram a partir das provocações e debates em sala de aula com a contraposição entre o paradigma cênico e as proposições políticas da dança contemporânea na vida cotidiana. A partir de uma indicação de leitura opcional tive contato com o texto de Marina Guzzo, que acabou baseando parte do conceito de transbordança, que desenvolvi em dois diferentes artigos, mais próximos da perspectiva da minha investigação em dança-cinema. Diria que esta foi a principal contribuição da disciplina, o contato com o texto Arte, dança e política(s). Ao fim do processo, produzi uma textualidade que serviria como base dos primeiros fragmentos do artigo publicado nos anais da V Encontro da ANDA em 2017. 40


Infelizmente, contudo, não tive qualquer retorno dos professores envolvidos no processo, deixando mais uma vez a incursão da escrita sobre minha inteira responsabilidade. Tal contexto caracteriza alguns dos distanciamentos existentes na relação professor-aluno, culminando mais na exposição de elementos que compõem a disciplina do que numa relação de ensino-aprendizagem necessária ao artista-pesquisador na academia. Entretanto, mesmo com a limitação bibliográfica e o incessante retorno às variações de Sagração da Primavera a fim de aplicar os conceitos de Foster, tivemos muitos diálogos profícuos durante algumas experiências estéticas. Destaco o trabalho de Sasha Waltz, em Körper, S e noBody, além de nossa visita ao Museu de Arte da Bahia (MAB) e à exposição em comemoração ao tropicalismo no Pacelete das Artes ( Museu Rodin Bahia). Uma das nossas rodas finais de conversa trouxe à tona muitas das questões que poderíamos ter expandido em sala de aula mas que, infelizmente, não aconteceram antes pela limitação a uma mesma referência. Minha sugestão é que essa disciplina aproveite as experiências estéticas para diálogo e invista nas visitações e saídas para espetáculos, exposições e intervenções artísticas na cidade, conjugando tudo isso a uma abertura de sua bibliografia, dando mais liberdade a docentes e discentes na análise das várias configurações da dança no Brasil e suas consequentes reverberações no mundo.

4.1. Atividades Obrigatórias Atividades obrigatórias relacionadas aos estágios da pesquisa no Mestrado e de atividades de ensino-aprendizagem junto aos departamentos da Escola de Dança. G – DANA 37: PESQUISA ORIENTADA (1) (17h – sem créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docente: Adriana Bittencourt Ementa: De caráter obrigatório e complementar à formação profissional de pesquisador em dança, essa atividade é voltada para encontros sistemáticos com o professor orientador para monitoração do desenvolvimento do projeto de pesquisa. Nota: AT (Aprovado em atividade) Semestre: 2016.1 Avaliação de relevância: Durante o primeiro semestre, meus encontros com a primeira orientadora se detiveram às nossas aulas na disciplina obrigatória Elaboração de projetos. Chegamos a conversar algumas vezes sobre meus interesses, mas fui avisado que naquele primeiro semestre não faríamos nenhuma imersão contundente na pesquisa. 41


Isso significa que, logo no início, não recebi nenhuma devolutiva sobre meu projeto de pesquisa e suas necessidades epistemológicas. Por isso me ative apenas à bibliografia oferecida pelas disciplinas, acreditando que essas poderiam trazer questões interessantes à investigação em dança-cinema. E a revisão do projeto ficou para escanteio, pois não obtive qualquer apontamento crítico sobre o que havia escrito. H – DANA 40: SEMINÁRIO DE PESQUISA ORIENTADA (17h – sem créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docente: Lucia Mattos Ementa: De caráter obrigatório e complementar à formação profissional de pesquisador em dança, essa atividade é voltada ao exercício de encontros regulares com todos os mestrandos e um professor responsável pela atividade, para discussão coletiva dos projetos individuais de pesquisa. Nota: AT (Aprovado em atividade) Semestre: 2016.1 Avaliação de relevância: A atividade obrigatória mais proveitosa à minha experiência como artista-pesquisador em todo o Mestrado trouxe à tona discussões oriundas de nossos projetos de pesquisa. Lucia Mattos, em seus apontamentos críticos, teve um olhar muito cuidadoso para com meu anteprojeto de investigação, esmiuçando detalhes e fragilidades que antes não havia percebido, especialmente no que diz respeito à metodologia aplicada, no que diz respeito especificamente ao campo da pesquisa em dança (artes performativas). A docente selecionava uma dupla de estudantes, que seriam responsáveis por lhe acompanhar nas críticas e avaliações sobre o projeto de pesquisa escolhido. Tive não apenas o projeto, mas a apresentação oral revisitada e criticada pela professora. Foi a única revisão integral e escrita que tive do material entregue aos docentes no início do Mestrado. E talvez seja a única avaliação que realmente seja levada em consideração na edição escrita do projeto de pesquisa. Nessa atividade também pude acompanhar os projetos de outros colegas de turma, contribuindo para uma avaliação minuciosa especialmente daqueles em que fui críticoleitor. Os debates esmiuçaram várias questões trazidas pelos artistas-pesquisadores, apesar do pouco tempo que tínhamos para desenvolver essas trocas. A atividade se debruçou mais sobre o teor escrito, ao contrário das aulas de Elaboração de Projetos, por mais paradoxal que isso possa parecer. Mesmo que ambas tenham contribuído com eficácia para uma revisão crítica do conteúdo, a atividade complementar foi mais técnica. 42


I – DANA 37: PESQUISA ORIENTADA (2) (17h – sem créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docente: Adriana Bittencourt Ementa: De caráter obrigatório e complementar à formação profissional de pesquisador em dança, essa atividade é voltada para encontros sistemáticos com o professor orientador para monitoração do desenvolvimento do projeto de pesquisa. Nota: AT (Aprovado em atividade) Semestre: 2016.2 Avaliação de relevância: Nessa segunda rodada semestral de orientação, tivemos alguns poucos encontros presenciais. Nenhum deles tratou da pesquisa em si, detendo-se a resolver questões pessoais e departamentais. Fui indicado a buscar outra orientação pois estava mais próximo, nos últimos semestres, de outros docentes. A separação foi amigável, apesar de, durante os dois primeiros semestres do Mestrado, não ter tido qualquer devolutiva sobre meu projeto de pesquisa, muito menos um mínimo acompanhamento das textualidades que estava produzindo para publicação em 2017. J – DANA 38: TIROCÍNIO DOCENTE (17h – sem créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docente: Rita Aquino e Daniela Guimarães Ementa: De caráter obrigatório e complementar à formação profissional de pesquisador em dança, essa atividade volta-se ao acompanhamento de qualquer disciplina oferecida pela Escola de Dança, a partir da orientação docente (é dispensável para aqueles que possuem experiência de ensino em Nível Superior, a critério do Colegiado). Nota: AT (Aprovado em atividade) Semestre: 2016.2 Avaliação de relevância: Organizados pela professora Rita Aquino, os encontros para discutirmos a experiência docente na Escola de Dança da UFBA foram imprescindíveis no acompanhamento de meu processo. Tive dificuldades pois a orientadora que estava responsável por minha pesquisa não se motivou a me integrar às suas aulas na graduação. Quando enfim conversamos, houve recesso de fim de ano e, em seguida, nossos horários deixaram de ser compatíveis. Infelizmente a demora nesse encontro acabou me deixando completamente avulso na escolha de outro professor para a função de tirocínio. O auxílio da organizadora do tirocínio foi importante para me reconduzir ao diálogo com o corpo docente da graduação, quando enfim encontrei uma professora que estaria próxima das questões levantadas por minha pesquisa. 43


Meu tirocínio ocorreu na disciplina noturna de Estudos de processos criativos IV (EPC IV), com Daniela Guimarães. Fui muito bem recebido pela professora, que me impulsionou várias vezes a participar da disciplina em seus experimentos corporais. Entretanto, houve alguns contratempos por conta do semestre irregular, de recuperação da greve, com vastos feriados e recessos. Além disso, a disciplina possuía dois professores que não estavam em absoluto diálogo sobre as atividades. Isso acarretou uma cisão e consequente atraso no plano de aulas da professora em questão. Quando comecei a participar da disciplina, o semestre já estava quase pela metade e, além de todas essas questões, não tivemos um diálogo aprofundado que permitisse uma parceria docente no planejamento das aulas. Compreendo que isso tenha ocorrido pelo meu ingresso atrasado no decorrer da disciplina e por algumas questões pessoais que me ocorreram nesse processo (uma agressão física motivada por homofobia/transfobia no pré-carnaval de Salvador, que me machucou de forma séria, tanto física quanto emocionalmente). Mas também entendo que essa distância tenha se dado por pensamentos diferentes, que carregávamos enquanto professores. Devido a isso, especificamente, acredito que o Mestrado em Dança deva abrir oportunidades a seus estudantes para que se organizem e criem suas próprias disciplinas, com a finalidade de que sejam conteúdos optativos no processo formativo da graduação. Isso já acontece em outros programas de pós-graduação em artes, especialmente naqueles que investem na interdisciplinaridade. Minhas propostas relacionam dadaísmo, surrealismo, filosofia da diferença, dança contemporânea, cinema de dispositivo, anarquia, arte experimental, estudos de mídia e crítica de arte. Num arcabouço tão caleidoscópico como esse, meu entendimento de processos criativos tem uma proposição mais voltada à autonomia do aluno, a quem costumeiramente me reporto de forma crítica a fim de entender quais motivações e escolhas condizem com a experiência estética proposta. Ao contrário disso, encontrei uma disciplina que estava alicerçada nos processos criativos de Pina Bausch, que ainda se encaixa num paradigma pós-moderno de dança e traduz-se pela criação na figura do diretor. E, apesar de Pina ser uma artista que evoca vários dos meus interesses enquanto docente e artista, percebi que a estrutura dada em sala de aula ainda refazia a ideia de um diretor centralizador. Este é responsável por reunir o processo criativo em seu caos coletivo a fim de construir uma linha de coesão, narrativa, dramatúrgica. Por isso, interessado em tensionar esses processos na disciplina, propus em meu plano algumas aulas focadas na criação cênica de Vera Mantero, que possui diálogos com Pina mas envereda numa vertente da dança contemporânea mais próxima de minhas expectativas 44


enquanto artista-pesquisador. Vera trabalha com princípios que alternam uma escrita consciente e inconsciente em dança, é leitora voraz e seus experimentos cênicos são dançados, em sua maioria, por ela mesma. Não existe uma companhia Vera Mantero. Existe um coletivo de artistas no qual Vera Mantero colabora, o Rumo do Fumo. E isso faz muita diferença, talvez até no entendimento do que seriam “processos criativos”. Portanto, apesar de certa proximidade e de um interesse no diálogo, acabei não “encabeçando” nenhum momento de “docência” na disciplina. Não que ache isso necessário, muito pelo contrário. Quando falo de uma perspectiva anárquica, vejo muito mais uma construção coletiva do processo do que uma orientação central, ordenadora, hierárquica e vertical. Estar em sala de aula me interessa na medida de uma verdadeira recusa à função disciplinar do professor. Meus projetos preveem muito mais as possibilidades de mediação cultural de saberes que não necessariamente domino por completo, mas com os quais já tive alguma experiência, do que uma aula que pressupõe alunos que não entendam do que eu esteja falando. A carência de conhecimento não é um obstáculo, muito pelo contrário. Ela é a base da curiosidade presente nas investigações acadêmicas e estéticas de um artista-pesquisador. Por isso, a mim foi melhor não assumir qualquer função orientadora na disciplina, mas apenas crítica, na medida em que não me foi dada uma abertura real ao processo de ensino-aprendizagem na turma em questão. Tal situação ocorreu porque, em sala de aula, haviam pensamentos de docência completamente diferentes coabitando. A sugestão que dou ao programa, depois da experiência, é que se abram possibilidades de os mestrandos, eles mesmos, abrirem suas próprias disciplinas. E que elas sejam optativas no currículo vigente. As aulas podem ser dadas em grupo, individualmente, por toda a turma do Mestrado... Enfim, há várias possibilidades. Criemos alternativas aos tiros, tirocinantes, tirocínios... essa é uma condição tão episódica que não entendo como podemos deixar esse momento longo, de investigação profunda, ser ofuscado em suas possibilidades de expansão experimental à comunidade acadêmica apenas pelas restrições institucionais de departamentos e afins. K – DANA 39: PARTICIPAÇÃO EM GRUPO DE PESQUISA (34h – sem créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docentes: Adriana Bittencourt e Ludmila Pimentel Grupos de Pesquisa: Labzat e Elétrico

45


Ementa: De caráter obrigatório e complementar à formação profissional de pesquisador em dança, volta-se ao acompanhamento de atividades de qualquer grupo de pesquisa da Escola de Dança. Leva-se em consideração a afinidade do grupo com a linha de investigação e com o projeto de pesquisa do discente. Nota: AT (Aprovado em atividade) Semestre: 2016.2 Avaliação de relevância: Comecei a participar do grupo de pesquisa Labzat (Laboratório Co-adaptativo), assim que entrei no Mestrado, pois tenho profundo interesse, enquanto pesquisador, de desenvolver pensamentos conjuntos a outros investigadores em torno de um domínio epistemológico. Naquele ano (2016) ocorreria o Corpocidade, evento organizado pelo grupo de pesquisa. Participamos, eu e outros alunos do Curso, ativamente de algumas reuniões, a partir de leituras e trocas, mas, infelizmente, não fomos convidados a atuar na construção do evento porque estávamos recémchegados, a alguns meses do acontecimento. À época, minha orientadora estava ausente dos processos do grupo de pesquisa, logo quando comecei a frequentá-lo. Sem uma expectativa de cumprir créditos, até porque estava me antecipando, – a atividade obrigatória seria apenas no semestre seguinte, que, em recuperação da greve, ocorreria somente em 2017 – me disponibilizei pelo interesse pessoal nas pesquisas desenvolvidas pelo grupo e no debate sobre funções do artista-pesquisador. A professora Jussara Setenta foi grande responsável por manter o grupo funcionando durante aquele período e, boa parte das discussões, leituras e entendimentos propostos tinham seu acompanhamento. Foi uma grande oportunidade estar em diálogo com essa pesquisadora baiana. E, apesar de os outros membros docentes do grupo não terem a mesma assiduidade no período em que frequentei as atividades, tive algumas trocas importantes com Setenta. Como acabei me separando da primeira orientadora à época do segundo semestre, logo quando o grupo de pesquisa se tornava atividade obrigatória no Mestrado, deixei de frequentar o Labzat. Além disso, as atividades do grupo, naquele semestre, foram drasticamente reduzidas, pois elas se deram muito após o Corpocidade – principal preocupação do coletivo. À época, estava começando a me aproximar do Elétrico, grupo de pesquisa em ciberdança, orientado pela professora Ludmila Pimentel, que seria minha segunda orientadora. Ao passo que considerei o Elétrico uma possibilidade de exercício das trocas entre dança e tecnologias da comunicação, deparei-me com um cenário de reduzidas reuniões e debates. Não vi, nesse grupo, uma troca de saberes como estava acostumado em outros grupos de pesquisa, com orientações de leitura e feedback teóricoprático. Apesar de algumas atividades práticas, como seminários e organização de 46


encontros, o Elétrico se restringia ao universo hermético dos orientados da professora responsável, caracterizando um território de atividades pouco profícuas ao meu universo de pesquisa e à minha perspectiva de pesquisador. Ressaltaria, entretanto, o interessante trabalho de alguns dos orientados do grupo em acompanhamento da professora. Tive uma bela experiência de usar um traje baseado na estrutura utilizada pela franco-americana Loïe Fuller para a criação de sua danse serpentine. Praticamente uma réplica do figurino usado por dançarinas da coreógrafa no experimento com os irmãos Lumière no século XIX. Sem dúvida, as atividades do grupo de pesquisa em ciberdança estavam relacionadas às intervenções estéticas dos estudantes constituintes do grupo e de suas relações com a intermidialidade e/ou cibernética. Contudo, foram poucas as experiências de inserção e compartilhamento de ideias que se relacionassem ao que pensava na época. Dessa maneira, avalio as atividades dos grupos de pesquisa como importantes espaços de conjugar fazeres e pensamentos, tecendo procedimentos coletivos de investigação em torno de áreas afins aos envolvidos. É uma pena que minhas experiências em ambos os grupos tenham sido episódicas demais, por isso talvez não puderam contribuir o suficiente, tanto com os pesquisadores responsáveis quanto para mim mesmo como estudante. No caso do Labzat, todavia, a participação e o interesse de Jussara Setenta foi um indicativo de que, se passasse mais tempo inserido no processo, teríamos questões em comum que me levariam a produzir conjuntamente com o grupo e com a professora. No caso do Elétrico, a aproximação com o corpo discente do Mestrado foi a parte mais produtiva do encontro. E os alunos que já haviam deixado a pós-graduação foram importantes figuras de incentivo por meio de suas pesquisas artísticas. Destaco as trocas com a pesquisadora Dorotea Bastos, investigadora do conceito de mediadance, e a artista Carolina Frinhani, mentora dos experimentos baseados no trabalho de Loïe Fuller. L – DANA 37: PESQUISA ORIENTADA (3) (17h – sem créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docente: Ludmila Pimentel Ementa: De caráter obrigatório e complementar à formação profissional de pesquisador em dança, essa atividade é voltada para encontros sistemáticos com o professor orientador para monitoração do desenvolvimento do projeto de pesquisa. Nota: AT (Aprovado em atividade) Semestre: 2017.1

47


Avaliação de relevância: A partir do semestre 2017.1 troquei de orientadoras. Deixei de ser orientado por Adriana Bittencourt para ser acompanhado por Ludmila Pimentel. Durante esse processo de orientação, tivemos algumas poucas reuniões, que se limitavam à discussão de prazos de entrega e formatos de qualificação/defesa. Não houve trocas sobre o projeto de pesquisa, o que acabou configurando uma dificuldade para a exigência dos prazos. Tive de me deter sozinho á produção bibliográfica da investigação durante todo o ano de 2017, sem nenhum tipo de acompanhamento, com três publicações em diferentes congressos, além das textualidades que repercutiram em livros, websites e afins. A experiência de orientação, apesar de pouco dialógica, não foi tão turbulenta nesse primeiro momento porque os prazos ainda não estavam tão apertados. Nesse período passei a frequentar assiduamente a sala designada para o grupo Elétrico, onde comecei a fazer alguns experimentos de dança-cinema, adiantando também a escrita dos textos que seriam publicados no biênio 2017-2018. Infelizmente, tivemos poucos encontros, talvez por isso não tenha havido uma troca substancial entre mim e a segunda orientadora. Não tivemos conflitos de ordem pessoal, mas nossa maneira de pensar e fazer arte eram substancialmente diferentes. Em vários momentos fui interpelado a repensar meu projeto artístico por uma suposta fragilidade em relação ao figurino e afins. Além disso, tive dificuldade de finalizar um sumário exigido desde o início da orientação, pois não houve qualquer aprofundamento em nossos debates sobre o assunto. O primeiro que entreguei estava amplo demais, segundo a orientadora. Mas as indicações genéricas trazidas por ela não me levaram a repensar a estrutura do trabalho. Até porque eu estava bastante imerso na produção das várias textualidades da pesquisa sozinho. M – DANA 37: PESQUISA ORIENTADA (4) (17h – sem créditos) Departamento: Técnicas e Práticas Corporais Docentes: Ludmila Pimentel e Daniela Guimarães Ementa: De caráter obrigatório e complementar à formação profissional de pesquisador em dança, essa atividade é voltada para encontros sistemáticos com o professor orientador para monitoração do desenvolvimento do projeto de pesquisa. Nota: Em processamento

Semestre: 2017.2

Avaliação de relevância: Com a passagem do tempo e a distância da orientadora, os prazos passaram a ser nosso único motivo de comunicação na segunda fase de orientação, em 2017.2. Nesse período, houve mais desgaste devido à produção exaustiva 48


que se estendeu entre os meses de setembro e novembro de 2017, quando escrevi o projeto de cineclube, um resumo e um resumo-expandido para o seminário Trans-incorporados, editei os artigos entregues ao encontro da ANDA e ao seminário Desfazendo Gênero. Como não consegui cumprir os prazos que havia proposto à professora e combinamos que isso seria fator limitante para continuarmos juntos, sugeri que nos separássemos, pois não seria possível continuar sob pressão de entrega sem uma troca substancial com o orientador. Se não há acompanhamento da pesquisa, fica complicado fazer jus aos prazos. Dessa maneira, o colegiado indicou a professora Daniela Guimarães, logo em seguida à entrega de orientação de Ludmila Pimentel ao Programa. Daniela foi minha terceira orientadora. Sentamos por algumas horas para conversar, no diálogo mais profícuo que tive durante mais de um ano e meio no Mestrado. Conversamos sobre minha pesquisa e sobre os caminhos possíveis para desenvolvê-la. Uma semana depois meu sumário estava estruturado. A questão que dificultou minha continuidade com Guimarães foi, mais uma vez, os prazos estipulados pela orientação. Não consegui entregar o material no período exigido – final de novembro –, quando estava encerrando a escrita das textualidades que seriam publicadas em 2018 pelo Trans-incorporados e pelo Lab-crítica – projeto de extensão/pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro do qual faço parte. Esse projeto possui extensa relação com o pensamento de dança contemporânea empregado na proposta de minha dissertação e nos artigos publicados durante congressos nacionais/internacionais dos quais participei. Mesmo assim, não houve justificativa. Infelizmente, a não entrega na data combinada foi mais uma vez motivo para a separação orientador-aluno. Levei cerca de um mês para receber uma resposta definitiva sobre o distanciamento e ter alguma posição final do Colegiado. Comecei 2018 sem orientador, mas uma professora com quem tive importantes e prazerosas trocas durante as aulas do Mestrado, na disciplina de Residência Artística (para qual cheguei a produzir um artigo), disponibilizou-se para um futuro acompanhamento. Parte das atualizações na condução da pesquisa se alicerça nessa nova parceria, com a professora Gilsamara Moura, a partir de janeiro. Esse contato permitiu colocar em prática uma decisão conjunta sobre a banca da qualificação/dissertação. Nossos diálogos se baseiam numa malha afetiva e colaborativa que condiz exatamente com as questões levantadas em nosso encontro acadêmico durantes as aulas de Residência Artística. Compartilhamos a ideia de que artistas precisam resistir ao sistema logocêntrico para construir conhecimento, provocando experiências estéticas. E aqui estamos nós.

49


4.2 Atividades complementares e extra-curriculares Atividades artísticas, educativas e investigativas desenvolvidas durante o processo de cumprimento da carga horária obrigatória do Mestrado em Dança. A – CURSO TÉCNICO DE NÍVEL MÉDIO EM DANÇA: FUNCEB A entrada como aluno da Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia em 2017 foi uma importante operação, como descrevi anteriormente no meu texto sobre a experiência de chegada ao Mestrado. Comecei as atividades lá assim que cumpri as disciplinas obrigatórias na UFBA. As aulas de segunda à sexta durante às manhãs me trouxeram um repertório formal e disciplinar de dança que nunca havia tido na vida. Entretanto, a experiência ocasionou um choque de pensamento, devido as propostas da Escola ainda não incidirem de forma plausível para provocar a autonomia de seus estudantes. O conflito me fez ficar apenas dois semestres, quando abandonei o curso. Havia decidido pela experiência mais curta de um curso técnico pois já possuo duas graduação e não tenho mais interesse nem paciência para os esquemas disciplinares da academia. Por isso me desloquei diretamente para um mestrado, não para uma graduação em dança. Contudo, achei que a experiência formal em dança poderia me abrir portas no percurso de artista-pesquisador do campo, até para que pudesse entender jargões e operações estéticas de reprodução. A ida a Escola foi muito importante para entender aquilo que eu não quero nem acredito como artista. Tenho uma série de agradecimentos a fazer (e os fiz) a professores e companheiros de sala, pela troca de saberes. Mas o modelo de ensino e de pensamento em dança, sobretudo para minha pesquisa artística, circunscrita às provocações anárquicas da dança contemporânea, não foi compatível. Fiz aulas de ballet, dança moderna, danças africanas, experimentos de criação, danças populares (neste aspecto destaco meu maior apreço artístico pela Escola) e técnicas contemporâneas de dança, sem falar em disciplinas de caráter teórico e afins. Meus maiores problemas, na realidade, foram institucionais. As aulas, algumas vezes puxadas, nem sempre respeitavam o limite do corpo do aluno. E a Escola não estava interessada em negociar as relações de assiduidade e pontualidade. O corpo, então, ficava em alguma medida negligenciado em processos criativos e decisórios. Todavia, a grande contribuição técnica e histórica da Escola trouxe para mim um novo olhar às maneiras como se dão os caminhos de institucionalização da dança no seu processo de circunscrição a um campo epistêmico. A dança nas salas de aula, nas academias, a dança 50


feita para os espetáculos, a dança pensada a partir de uma perspectiva cênica. Nessa experiência identifiquei todas as qualidades inferidas pelo conceito de dançalidade apresentado em Tereza Rocha e questionado por filósofos da arte como Alain Badiou. B – O QUE É DANÇA CONTEMPORÂNEA? – IX CONEXÃO DANÇA Curso oferecido no ano de 2017 pelo Festival Internacional Conexão Dança, em São Luís, Maranhão. Com carga horária de 8 horas, o curso foi ministrado pela professora Thereza Rocha, docente da graduação em Dança na Universidade Federal do Ceará. O conteúdo trazia algumas apreciações de sua publicação mais recente (2016), cujo título é o mesmo que nomeou o curso. No primeiro encontro, tivemos a presença de Vera Mantero, artista com quem debatemos algumas perspectivas da dança contemporânea e da resistência às definições e às expectativas genéricas ou normativas sobre o esse conceito. Foram analisadas, inclusive, algumas obras da artista portuguesa logo em seguida. Thereza Rocha traz uma discussão que problematiza todo o trajeto ontológico da dança quando tematiza o conceito de dança tanto pelo viés da identidade quanto da diferença. O que resta são muitas danças não categorizáveis e uma constante dúvida, a aporia necessária à continuidade e provocação desse cenário alargado e expandido da dança com outras linguagens artísticas e numa origem genealógica. C – DANÇA ZERO – PROJETO DE CLÊNIO MAGALHÃES Conheci o professor Clênio Magalhães na Escola de dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia, lecionando técnicas contemporâneas de dança. Clênio possui um projeto de ocupação do espaço público com dança, chamado Dança Zero. Os encontros se davam todos os sábados em qualquer lugar de Salvador. A princípio se repetiram algumas vezes próximos ao Teatro Castro Alves, depois se centralizaram na Praça das Artes, no Campus Ondina da Universidade Federal da Bahia. Antes do período de repetição, outros encontros aconteceram em Humaitá, Barra, entre vários outros lugares. Clênio chamava o encontro de “treino”, em que várias pessoas se reúnem para expressar o que sentirem necessidade ou simplesmente para investigar movimentos do corpo. Participei ativamente de algumas experiências, pois o projeto possui um diálogo intenso com as intervenções de Aloka das Américas, na medida em que usa o espaço público para transportar o corpo para outros estados sensíveis, afastando-se da normatividade cotidiana. No Dança Zero, encontrei amigos do Mestrado, artistas51


pesquisadores de outros países e meus colegas de turma na Funceb. A ideia era que o projeto se expandisse, tornando-se uma verdadeira intervenção no espaço público para qualquer pessoa interessada em participar. A dança como experiência estética ativa no cotidiano caótico das cidades e como partilha sensível da relação corpo-pensamento.

Figura 21

Figura 20 Figura 22

D – CINECLUBE DA DA DANSE – ESCOLA DE DANÇA DA UFBA O projeto de Cineclube Da da danse foi concebido com a ideia de reunir numa experiência cineclubista os hibridismos inerentes aos trânsitos de dança-cinema. A partir do contato com filmes e vídeos dessa linguagem específica, selecionados após uma longa pesquisa dos artistas reconhecidos mundialmente e nacionalmente, pretendia fazer do cineclube uma experiência dançante. A proposta era exibir filmes e, em seguida, debater 52


sobre a experiência estética. Além disso, provocaríamos um jam de movimento a fim de investigar corporalmente o que sentimos, pensamos ou guardamos dessa experiência coletiva/individual com os filmes e/ou o espaço. Quase como um laboratório de percepções, a ideia era ir aos poucos transgredindo o espaço da jam para chegar à experiência de festa. Por isso, além do aparato necessário à exibição, pensei em trazer artistas convidados para conduzir musicalmente o processo, quando, aos poucos, a jam culminaria numa festa. É uma pena que o projeto tenha ficado apenas como um registro de desejo, apesar de ter comunicado a vários amigos, artistas e pesquisadores que adorariam ter participado do processo. O espaço, além de reunir artistas em torno da troca de saberes em dança-cinema, seria um espaço de resistência pensado com o objetivo de articular novas reuniões e fazeres artísticos. O Cineclube Da da danse é apenas o começo de um projeto anárquico aberto à participação de artistas e pessoas interessadas em fazeres coletivos e intervenções urbanas. Portanto, um projeto que poderia ser aplicado em outros lugares e não carece de nenhuma fidelidade a sua idealização inicial, configurando-se como aberto a intervenções múltiplas. E – CONTATO E IMPROVISAÇÃO – ESCOLA DE DANÇA DA UFBA Durante o Mestrado, frequentei algumas experiências de contato e improvisação numa sala do térreo da Escola de Dança da UFBA. A experiência foi importante para me aproximar de pessoas experientes em contato, preparando-me para o Encontro de Contato e Improvisação que ocorreria em Olinda, no ano de 2017. Já possuía experiências em jams de movimento no Rio de Janeiro, e o espaço veio a agregar algumas novidades, ainda mais porque minhas experiências não eram inseridas na sala de aula, mas muito mais preocupadas com as relações tecidas no espaço público. Ainda que muitas aproximações se detivessem nos poucos encontros dos quais participei, percebi que a prática de contato e improvisação na UFBA às vezes extrapolava os experimentos em dança contemporânea para culminar num lugar místico e espiritual. Não que seja contra isso ou qualquer coisa do gênero, mas tais experiências acabaram me distanciando um pouco do grupo, pois me interessa mais a maneira como o contato e improvisação reverbera no contexto dança-pensamento, até por conta de minhas aproximações filosóficas com o fazer contemporâneo. Ou seja, existe espiritualidade na dança contemporânea, doravante no contato e improvisação, mas não existem dogmas ou normas de como essa experiência deve se encaixar coletivamente. 53


5. PARTICIPAÇÃO EM EVENTOS CIENTÍFICOS E ACADÊMICOS Reúne as apresentações públicas de trabalhos disponíveis em anais de eventos, bem como minha produção bibliográfica publicada durante o período do Mestrado, que vai de junho de 2016 até meados de junho de 2018.

5.1 Apresentações orais Durante o período de aulas do Curso, estive produzindo artigos com o interesse de circular por importantes espaços institucionais da pesquisa em dança. Apresentei trabalhos em quatro diferentes eventos, tanto de cunho local, circunscrito à Escola de Dança da UFBA, como em encontros nacionais e internacionais. Destaco como único destoante desse grupo o seminário Desfazendo Gênero. Entretanto, mesmo nele, que se insere em outro campo de estudos, houve abertura às provocações estético-políticas da dança enquanto epistemologia de vários artistas-pesquisadores presentes. A – VII SEMINÁRIO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA Entre 14 e 15 de dezembro de 2016, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UFBA indicou a realização de seminário em comemoração 10 anos do Programa de PósGraduação em Dança da instituição. O Colegiado de Pós-Graduação em Dança decidiu pela realização do VII Seminário do Programa de Pós-Graduação em Dança, acerca das pesquisas em andamento. Na programação, além da apresentação das pesquisas de mestrandos do programa, houve uma mesa redonda com as professoras Drª Ana Paula Abrahamian de Souza, Drª Helena Katz e Drª Marianna Monteiro. A apresentação Videodança e autorreferência: uma análise de corpos dançantes na web descreveu o corpus da pesquisa em andamento no mestrado em Dança da UFBA, com pontuações concernentes às interseções de linguagens artísticas na internet, com foco nas aproximações entre dança contemporânea e cinema de dispositivo. Local: Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, Salvador Período: 14 e 15 de dezembro de 2016 B – V ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Entre 11 e 13 de junho de 2017, participei de meu primeiro encontro de pesquisadores em dança organizado pela Associação Nacional de Pesquisadores em 54


Dança (ANDA). Apresentei a comunicação oral no Comitê Dança e(m) Política, intitulada Transbordança: interseções entre dança, política e cinema no ciberespaço da web. Tranbordança é um conceito que pensa a interseção entre linguagens numa ação política de corpos dançantes no ciberespaço da web. O artigo apresentado dialoga com a investigação em Videodança e autorreferência, na medida em que o corpus de análise é praticamente o mesmo: artistas cujos corpos dançantes no ciberespaço da web tensionam politicamente os usos do cinema de dispositivo e a experiência de dança no espaço público. Local: Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal Período: 11 a 13 de junho de 2017 C – III SEMINÁRIO INTERNACIONAL DESFAZENDO GÊNERO Entre 10 e 13 de outubro de 2017, participei do III Seminário Internacional sobre questões de gênero, sediado no nordeste. Apresentei minha pesquisa em videodança no Simpósio Temático nº 12: Artivismos das Dissidências sexuais e de Gênero, organizado pelo professor da UFBA, Leandro Colling. Os debates giravam em torno de como o artivismo pode trazer as questões de gênero que implicam os corpos e seus fazeres artísticos. Havia pesquisadores de diferentes linguagens e áreas do conhecimento. A comunicação apresentada se intitula Aloka das Américas: videodança marginal, estéticas do subdesenvolvimento sudaca e da viadagem. Trouxe, na apresentação, minha experiência como artista marginal e as respectivas interações de linguagem dança-cinema no contexto experimental. Local: Universidade Estadual da Paraiba (UEPB), Campina Grande Período: 10 a 13 de outubro de 2017 D – SEMINÁRIO INTERNACIONAL TRANS-IN-CORPORADOS Entre 10 e 11 de novembro de 2017, estava presente no Seminário Trans-INcorporados: construindo redes para a internacionalização da pesquisa em dança, organizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como um dos primeiros encontros daquele que será o primeiro Mestrado em Dança da instituição, com previsão de abertura para o ano de 2018. Organizador do Labcrítica, em parceria com o Festival Panorama, Sérgio de Andrade foi um dos principais articuladores do evento. 55


No Seminário, apresentei o trabalho Em trânsito de linguagens: afrontas à dançalidade e à arte panfletária na interseção dança-cinema, durante painel Imagem, precariedade e queerness. A pesquisa apresenta alguns apontamentos sobre a transbordança, mas incide com mais ênfase nas questões históricas que desprivilegiam as experiências de hibridismo da dança com outras linguagens, tanto por expectativas estéticas-formais (dançaçidade) quanto políticas (arte panfletária). Local: Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), Rio de Janeiro Período: 10 e 11 de novembro de 2017

5.2 Publicações As publicações aqui designadas não se limitam apenas ao conteúdo estrito da pesquisa, mas às suas relações epistemológicas e ao meu caminho como pesquisador – o que reverbera diretamente sobre o que estou pensando e produzindo no momento. Portanto, reuni cronologicamente neste ponto do memorial tanto os artigos, resumos e resumos-expandidos publicados em anais de eventos como as outras textualidades que se tornaram públicas em livros, periódicos, websites e afins. A amálgama do artistapesquisador que dança, filma e, além de tudo, é crítico de arte/jornalista. A – Entrevista – Eixo do fora #18: Deu aloka! Iniciativas pessoais, circuitos “alternativos”, artistas independentes, legitimações de mercados e instituições: tudo isso vira assunto nesta postagem que traz ao debate o trabalho de Tiago Amate, idealizador de Aloka das Américas. Autores: Dally Schwarz e Tiago Amate Disponível em website: http://ctrlaltdanca.com/2016/07/31/eixo-do-fora-deu-aloka/ Data de publicação: 31 de julho de 2016 B – Artigo – Ocupação: corpos em festa como formas de resistência, Residência. Texto desenvolvido para a disciplina de Acompanhamento de Residência Artística, do Mestrado em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Publicado em website desenvolvido como portfólio do grupo, atualmente em processo de pesquisa sobre as variações de residência artística no Brasil e na América Latina, o artigo tem o objetivo de explorar ocupações cariocas que se desenvolveram entre o período de 2014 e 56


2016, enfatizando as festas e os corpos dançantes como potenciais agenciadores de estratégias de resistência política. Autor: Tiago Amate Disponível em website: http://residenciaartistic.wixsite.com/residenciaartistica/singlepost/2014/09/03/Projeto-Abaixo-da-Dobra Data de publicação: 27 de outubro de 2016 C – Monografia publicada – Autoficção na narrativa cinematográfica: meio século entre Truffaut e Xavier Dolan Ficcionalizar-se no cinema contemporâneo. A ambígua fusão das histórias pessoais do autor com personagens inventados da ficção transportou o realizador para o centro da narrativa fílmica. Se no cinema hegemônico tradicional a figura do diretor se firmou ao orquestrar o filme na perspectiva de uma “função”, como a do autor que possui controle sobre a obra, depois das crises de autoria e da chegada do cinema de dispositivo esta operação se ressignificou. O diretor passou também a diretor-personagem, num “cinema do eu” cuja intimidade está disponível para o público. Imerso na cultura midiática, esse novo autor adotou formas de narrar que se aproximam do que a teoria literária contemporânea chama de autoficção. Para isso forjou estratégias que fogem à dicotomia verdadeiro e falso, abandonando pressupostos verossímeis e verazes da autobiografia, antes utilizada para classificar o “cinema do eu”. Nos anos 1950, vanguardas como a Nouvelle Vague tensionariam sutilmente a identidade do autorpersonagem em filmes como Os incompreendidos (1959), de François Truffaut, a partir de um entrelugar, entre autobiografia e ficção. Exatamente meio século depois, o Canadá francês vê um jovem realizador emergir com Eu matei minha mãe (2009), num cinema cuja vida pessoal do diretorator-protagonista é problematizada em forma de espetáculo, como força-motriz da ficção. Para Xavier Dolan, o principal recurso é a exposição de si mesmo. Ao observar essas visíveis mudanças de paradigma, para onde caminharia o cinema ficcional íntimo? Seria a autoficção uma nova estratégia da narrativa cinematográfica? Autor: Tiago Amate / Orientação: Maurício de Bragança Em periódico: http://www.rascunho.uff.br/ojs/index.php/rascunho/article/view/140 Data de publicação: 22 de setembro de 2017

57


D – Resumo – Em trânsito de linguagens: afrontas à dançalidade e à arte panfletária na interseção dança-cinema. O que se espera da linguagem da dança em critérios de autenticidade e função social? Em circunstâncias contemporâneas de mundo e de arte, vidas pessoais e processos criativos se confundem, atravessando-se mútua e publicamente na rede mundial de computadores. Provocações das artes performativas e de experiências virtuais autorreferentes têm refundado a relação artista-obra e, consequentemente, o contexto da dança contemporânea. Autor: Tiago Amate Disponível em e-book: http://labcritica.com.br/wp-content/uploads/2017/11/TRANSIN-CORPORADOS_Caderno-de-resumos_2017.pdf Data de publicação: 07 de novembro de 2017 E – Capítulo de livro – Critérios de importância: “Isto não é importante, isto é importante?” Em Critérios de Importância: isto não é importante, isto é importante?, Tiago Amate faz uma discussão sobre os diversos limites e as categorias de importância que cercam o dançar uma dança num festival. Começa o texto lembrando sua primeira experiência com o Festival Panorama, em 2014, para depois escrever com a obra de Vera Mantero tensões entre os gestos da bailarina e do filósofo, genderizando o lugar do discurso. Logo em seguida, parte para pensar limite e borrões entre corpos e malabares na obra de Sciarroni, Untittled. O que importa pensar sobre a experiência singular com essas obras? (Texto de Sérgio Andrade) Autor: Tiago Amate / Orientação: Sérgio Andrade Disponível e impresso: http://labcritica.com.br/performar-debates-labcritica-no-festivalpanorama-e-outras-dobras/ Data de publicação: 10 de novembro de 2017 F –

Artigo – Aloka das Américas: videodança marginal, estéticas do

subdesenvolvimento sudaca e da viadagem Nas atuais configurações de produção e compartilhamento de vídeos para o ciberespaço da internet, subjetividades e corpos antes marginalizados pela 58


heteronormatividade compulsória passam a disputar e preencher lacunas artísticas em plataformas populares de domínio público, como o Youtube e Vimeo, além de redes sociais como o Facebook. Corpos dançantes têm adotado novas estratégias para a criação e distribuição de conteúdos em vídeo, criando redes de visibilidade para a dança contemporânea fora dos regimes institucionais. Essas produções demonstram a dissidência de corpos que escapam à performance binária de gênero e sexualidade, problematizando quais corpos possuem legitimidade para dançar. Aloka das américas, projeto de videodança para a web, trabalha com a estética do subdesenvolvimento presente em movimentos brasileiros como o cinema novo e o cinema marginal, para pensar corpos dançantes fora de um regime estético burguês e heteronormativo. Vídeos em baixa qualidade, produzidos com aparelhos de celular, sem uma composição coreográfica preestabelecida ou uma equipe de filmagem profissional, tensionam a experiência da videodança sudaca (PERRA, 2014) e viada a partir de performances improvisadas e filmadas no espaço público. Autor: Tiago Amate / Data de publicação: previsto (2017-2018) Disponível nos anais do III Seminário Internacional Desfazendo Gênero (2017-2018) G –

Artigo – Transbordança: interseções entre dança, política e cinema no

ciberespaço da web Como as experiências políticas dos corpos dançantes têm alcançado o ciberespaço da internet? Ao investigar interseções de linguagem entre cinema e dança para produções da web, pretende-se destacar processos criativos que assinalam a dança como testemunha da política, da vida e da experiência. A transbordança surge nessa identificação de experiências dialógicas em dança e política que recusam a relação figura-fundo da arte panfletária. Como conceito, a transbordança transborda a experiência em dança, na medida em que se relaciona com outros dispositivos e linguagens a fim de provocar proposições estético-políticas tanto no espaço público quanto na internet. Assim, multiplicam-se as telas da relação corpo-câmera quando os corpos dançantes estão simultaneamente nas ruas, em dispositivos portáteis como celulares e na rede mundial de computadores. A partir das reflexões de Marina Guzzo no artigo Arte, Dança e Política, este texto analisa três diferentes projetos de videodança para a internet: 100 lugares para dançar, Une minute de danse par jour e Aloka das Américas. Autor: Tiago Amate / Data de publicação: previsto (2017-2018) Disponível nos anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança 59


H – Resumo-expandido – Em trânsito de linguagens: afrontas à dançalidade e à arte panfletária na interseção dança-cinema. Ao instigar trânsitos híbridos entre campos antes definidos enquanto territórios disciplinares, a transbordança refaz os caminhos da economia secular da arte a fim de afrontá-la. No contexto de hibridações em dança-cinema instaladas no ciberespaço da web, vemos a desestabilização simultânea de normas sobre corpos dançantes no espaço público e na rede. Entretanto, essas experiências estéticas se deparam com a dançalidade e a arte panfletária, estruturas ainda fixas (mas datadas) de um pensamento hegemônico em dança. Analisando os hibridismos de Aloka das Américas e Une minute de danse par jour, ambos projetos de videodança para a web, pretende-se pensar nas afrontas possíveis à representação e à reprodutibilidade técnica, partindo de interfaces de linguagem que desafiem o paradigma cênico na dança e a relação corpo-câmera no cinema hegemônico. Autor: Tiago Amate / Data de publicação: previsto (2018) Disponível nos anais do Seminário Internacional Trans-IN-corporados: construindo redes para a internacionalização da pesquisa em dança I – Crítica de arte – Da exaustão, paisagens e acontecimentos: uma instalação? (first) Texto crítico-ensaístico sobre o trabalho da Antistatus Quo Companhia de Dança, De Carne e Concreto, apresentado no Centro de Artes da Maré durante o Mostra Nacional Br do Festival Panorama, em novembro de 2017. O experimento de longa duração é uma crítica à maneira como nos relacionamos com as cidades, num contraponto do corpo e sua animalidade. É a materialidade que ganha uma instalação coreográfica com o lixo. Autor: Tiago Amate / Orientação: Sérgio Andrade / Data de publicação: 2018 Disponível em: http://labcritica.com.br/da-exaustao-paisagens-e-acontecimentos-umainstalacao-first/ J – Crítica de arte – Exaustos, paisagens e acontecimentos: a catarse! (second) Texto crítico-ensaístico sobre o trabalho do coreógrafo paulista Cristian Duarte, intitulado Ó. O experimento/espetáculo foi apresentado na Escola de Cinema Darcy Riberio durante o Mostra Nacional Br do Festival Panorama, em novembro de 2017. O trabalho trata da jornada de Orfeu e Eurídice, a partir do que ele chama de dramaturgia tátil, algo que exclui ou deixa de evocar a experiência histórica do drama na narrativa. Autor: Tiago Amate / Orientação: Sérgio Andrade / Data de publicação: 2018 60


Disponível em: http://labcritica.com.br/exaustos-paisagens-e-acontecimentos-catarsesecond/ K – Resenha crítica – Com quantos números se faz pesquisa em artes? Texto crítico-ensaístico sobre o debate realizado com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) durante a mesa de encerramento do Seminário Internacional Trans-IN-Corporados. Após levantar algumas questões concernentes às avaliações e números utilizados como referência no processo de internacionalização, ficou evidente que as instituições de pesquisa no Brasil não acompanharam as mudanças de paradigmas metodológicos das pesquisas em artes e ainda teimam em reproduzir um modus operandi constituinte das ciências exatas e naturais: os números como forma de avaliar e qualificar uma experiência que é, sobretudo, cultural, estética, afetiva e relacional. Autor: Tiago Amate / Data de publicação: previsto (2018) Disponível para publicação nos anais do Seminário Internacional Trans-IN-corporados: construindo redes para a internacionalização da pesquisa em dança

5.3 Ouvinte Segue a lista de eventos científicos em que participei como ouvinte, inclusive aqueles em que apresentei trabalho. ➢ V Jornada Agroecológica da Bahia, 2017 ➢ V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança – ANDA ➢ XXI Encontro Nacional de Estudantes de Arte – Enearte, 2017. ➢ XVI Fórum Universitário Mercosul FoMerco, 2017. ➢ III Seminário Internacional Desfazendo Gênero, 2017. ➢ Seminário Internacional Trans-In-Corporados: construindo redes para a internacionalização da pesquisa em dança, 2017.

6. PARTICIPAÇÃO EM ENCONTROS, RESIDÊNCIAS E FESTIVAIS Neste tópico, apresento algumas experiências em encontros e residências artísticas, além de imersões em festivais de dança contemporânea em que tive a oportunidade de ser espectador, crítico e performer. Considero estes os espaços mais 61


importantes aos artistas-pesquisadores, como provocação plausível para que não fiquem circunscritos apenas à lógica dos encontros acadêmicos e suas apresentações formais, que representam incursões epistemológicas muito menos envolvidas com a experiência estética do que os encontros provenientes da lógica curatorial, do acaso entre artistas e da circulação de materiais e experimentos que dizem respeito à práxis. A – Conquista Ruas: II Festival de Artes Performativas Realizado entre 6 e 9 de abril de 2017, em Vitória da Conquista, o Festival de Artes Performativas Conquista Ruas possui uma curadoria aberta e é feito de forma colaborativa, sem muitos recursos financeiros. Os artistas convidados se reúnem na casa de outros artistas da cidade, a fim de levantar questões em torno da arte contemporânea e apresentar seus trabalhos em pontos estratégicos da cidade. A programação é especializada no regime experimental e marginal, em que se inserem experimentações das artes performativas em sua miríade de interseções de linguagem. Por convite de colegas, que sabiam que sobraria vaga no ônibus para Vitória da Conquista, levei ao Festival o trabalho Deu Aloka!, em que brincava com as possibilidades da dança no espaço público e suas retransmissões para a rede mundial de computadores. Danças de cerca de 1 minuto ou 2 minutos eram filmadas em lugares públicos, alguns com grande circulação de pessoas. Em seguida os vídeos eram compartilhados na página do festival. Era um mix de videodança com experiência cênica de dança, pois os vídeos não eram mera documentação de minhas performances. As danças eram realizadas com e para a câmera, com a consciência e provocação dela no jogo poético estabelecido com o espaço/público. Durante as apresentações, tive alguns dos melhores registros fotográficos de Aloka das Américas, que, inclusive, está disponível na capa deste memorial. Figura 24

Figura 23

62


B – IX Festival Conexão Dança Entre os dias 1 e 8 de julho de 2017, o Festival Conexão Dança ocorria na minha cidade natal, São Luís. Artistas como Vera Mantero e Luiz Garay dividiam a programação com outros artistas estrangeiros e nacionais, inclusive, maranhenses. Foi meu primeiro contato com esse Festival, apesar de ter nascido e morado por anos na cidade. Enquanto morei em São Luís não obtive acesso a esse circuito, devido há vários problemas de distribuição e programação de festivais de arte contemporânea na cidade, que acabam não circulando como deveriam. No caso dessa edição por exemplo, descobri sobre o Festival por meio de umas newsletter do coletivo português Rumo do Fumo, que anunciava a vinda de Vera Mantero ao estado do Maranhão. É curioso, mas problemático. Apesar de todas as dificuldades que enfrenta a cena da dança contemporânea em São Luís, como em muitas cidades brasileiras, tive a oportunidade de acompanhar uma programação robusta e imergir em alguns workshops, como o curso de Thereza Rocha, e uma oficina com Luis Garay, cujos espetáculos acompanhei na programação. Com algumas trocas em festas e encontros informais após os espetáculos, o Festival tornou-se não só uma importante via de troca de afetos e experiências estéticas, como permitiu a manutenção da rede de artistas em torno de um tema tão sensível, que são as experiências contemporâneas de dança. Os debates com Thereza Rocha foram imprescindíveis para dar a tônica dessa imersão. Foi meu primeiro contato com esse cenário em São Luís, um impacto. Ainda mais porque esse festival existe há mais de 9 anos. C – III Encontro de Contato e Improvisação de Pernambuco – Contato Coletivo Organizado pelo Coletivo Lugar Comum, o Encontro de Contato e Improvisação Contato Coletivo foi sediado na cidade de Olinda, entre os dias 30 de setembro e 6 de outubro de 2017. Com artistas chilenos, argentinos e brasileiros de várias partes do país pudemos trocar vasta experiência da técnica de Steve Paxton, reconfigurando suas perspectivas. Além de atividades de desenvolvimento técnico e sensível, tivemos experimentações ao ar livre, nas ruas de Olinda, compondo com as informações que foram trabalhadas paulatinamente nas imersões e oficinas. Destaco o trabalho de Gustavo Lecce, professor em Buenos Aires, que nos trouxe alguns movimentos básicos, e as contribuições do baiano Hugo Leonardo, este de cunho mais experimental, inclusive egresso do Curso de Dança da UFBA. Ana Alonso, Nico e Tatiana Perez também foram imprescindíveis para dar sensibilidade e gás ao processo de 63


ensino-aprendizagem e investigação de movimentos. Foi a dupla chilena a responsável por nossas intervenções urbanas. Ana Alonso é uma figura emblemática, organizadora de um outro importante encontro de “contateiros” na cidade de Florianópolis. Sua bagagem técnica e afetiva a fazem uma espirituosa e inspiradora artista em jogo. Foram dias sublimes de imersão coletiva, sem expectativas formais para um jogo excepcionalmente experimental que ia se construindo entre os corpos.

Figura 25 Figura 26

D – Mostra Nacional Br / Festival Panorama 25 + 1 Nas duas primeiras semanas de novembro de 2017 uma vasta programação reuniu artistas internacionais e brasileiros no Rio de Janeiro, em torno das atividades do Festival Panorama, que já possui mais de 25 anos de resistência. Apesar da drástica redução de custos do Festival, devido aos cortes do Ministério da Cultura, a programação se manteve múltipla, trazendo artistas de várias regiões do Brasil e mudando um pouco da proposição costumeira do Panorama, de receber basicamente artistas estrangeiros. Nesse ano, a estratégia foi chamar curadores de outros países para observarem as criações brasileiras. Costumo participar do Panorama a partir do Laboratório de Crítica, projeto de extensão organizado por Sérgio Andrade, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2017, além de minha imersão no LabCrítica, apresentei a investigação de Aloka das Américas no Seminário Internacional Trans-IN-Corporados, que foi organizado concomitantemente ao Festival Panorama, na finalidade de integrar as atividades com a abertura do Mestrado em Dança da UFRJ e o lançamento do livro 64


Performar Debates, que reúne várias críticas produzidas entre 2012 e 2016 sobre as programações do Festival Panorama. Boa parte da minha produção bibliográfica em novembro de 2017 tem relação direta com as experiências estéticas e acadêmicas desse período de duas semanas no Rio de Janeiro. Além dos encontros proporcionados pelo circuito do Festival, que me levou a produzir duas críticas, estive dançando em espaços de pesquisa, de amizade e festa, proporcionados pela movimentação de inúmeros artistas que naquele momento se encontravam produzindo e trocando conhecimento na cidade. Consideraria essa experiência do Festival Panorama uma residência artística de rápida velocidade, mas de uma intensa troca de afetos. Abaixo estão algumas fotos de festas, danças na rua e

Figura 27

Figura 28

imersões em experimentos durante o Festival.

Figura 29

65


E – Participação em outros festivais e encontros, mas com pouca ênfase, em Salvador ➢ Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (FIAC), em 2016 e 2017 ➢ Vivadança Festival Internacional, em 2017 ➢ Tristes, Loucas e Más: Festival de Mulheres em Cena, em 2017 ➢ XI Encontro Internacional de Artes IC, em 2017

7. PROCESSOS DE CRIAÇÃO E ATIVIDADES ARTÍSTICAS EM DANÇA/ CINEMA Reúno algumas experiências estéticas desenvolvidas durante o Mestrado em Dança. Vale ressaltar que muito da minha dedicação ao projeto Aloka das Américas se perdeu durante o processo acadêmico, o que pode ser uma questão levantada quando pensamos os circuitos de artistas pesquisadores na universidade. Será que estamos, de fato, investigando as linguagens artísticas ou reproduzindo um pensamento de outras áreas do conhecimento sobre a arte e suas perspectivas ideais/genéricas? Neste tópico, apresento algumas videodanças produzidas para o canal Aloka das Américas desde o início dos estudos no Curso. Há muito material que foi filmado, mas vários vídeos por finalizar. Compartilharei apenas os que foram publicados na web. A – MERGULHE É possível mergulhar na terra? O impacto do corpo, som audível da impossibilidade, convida ao mergulho num salto. Pular e colidir, marcar os passos através dos saltos, marcar a terra, territorializar-se. Se não se traduzem como água, em fluxo, os mergulhos na terra tornam-se colisões de afeto. Culminam em morte, renascimento frágil. O mesmo abismo que separa terra e ar é o abismo da colisão. Aos audaciosos, dedico o mergulho. Também dedico o abismo. Este momento perdido entre terras e ares.

Ano: 2016 Local: Salvador Disponível em: https://vimeo.com/187614183 Figura 30

66


B – Ê, CANTAREIRA! Aloka das Américas se reúne com os amigos para uma cerveja na praça mais famosa de Niterói e dança. Os rodopios culminam na loucura genuína das quintas-feiras, quando a juventude bêbada ocupa a noite da praça. Ê, Cantareira!

Ano: 2016/2017 Local: Niterói Disponível em: https://vimeo.com/215428165 Figura 31

C – IÊ-MAR-JÁ! Aloka das Américas se reúne com os amigos para uma cerveja na praça mais famosa de Niterói e dança. Os rodopios culminam na loucura genuína das quintas-feiras, quando a juventude bêbada ocupa a noite da praça. Ê, Cantareira! Experimentar, M-A-R, dádiva soteropolitana de Iemanjá, rainha das águas salgadas, M-Ã-E Iorubá. Dançar no elemento incomum, na respiração contida, de olhos fechados. Sentir, mais que ver. Talvez assim descobrir outros pesos, movimentos, métricas assimétricas. No mar, o que sente a pele? No toque, aprofundar-se. Imersões, emersões. Ir e voltar. Quando não há mais fôlego, o que fazer com o desejo? Músicas: Os Tincoãns Exibição - Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), Salvador

Ano: 2017 Local: Salvador Disponível em: https://vimeo.com/226560013 Figura 32

67


D – DA DA DASEIN E se eu quiser dançar? Da dá. Da da dá da da dá, diria Valesca Popozuda. Da da dasein, diria Heidegger .Da da dane-se. Estar com o mundo, experiência de inutilizar as hierarquias sobre a existência. Para isso, um ponto (ou vários): ? ? ? ? ? ? ? ? “O Dasein partilha com os outros o espaço que circunda. Em sua ocupação ele se encontra a si mesmo e aos outros. De fato, nesta possibilidade de ser-com-os-outros, “o estar-só do Dasein é ser-com no mundo (…). O próprio Dasein só é na medida em que possui a estrutura essencial de ser-com, enquanto co-Dasein que vem ao encontro dos outros.” (Ser e Tempo) “Os outros não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente entre os quais também se está.” (Ser e Tempo) In: http://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=489

Ano: 2017 Local: Salvador Disponível em: https://vimeo.com/231147867 Figura 33

E – DES-PEDIR Deixar de pedir, para ser mais exata. ser, como numa despedida. montagem em tempo real da lok do Robson. (Vídeo de despedida da Escola de Dança da Funceb).

Ano: 2017 Local: Salvador Disponível em: https://vimeo.com/239763371 Figura 34

68


F – LINHAS/LINES (em definição) Projeto de videodança filmada em várias cidades brasileiras, com a ideia de unir espaços e corpos a partir do movimento e da relação dança-pensamento com a câmera. Como criar relações entre corpos à distância? Quais as tessituras possíveis quando o espaço nos separa mas os dispositivos nos unem? Essas são algumas perguntas que integram nossa investigação estética. Participam artistas de Curitiba, Goiás, Rio de Janeiro e Maranhão. Nesse projeto, Aloka das Américas está como artista colaboradora.

Ano: 2017/2018 Locais de filmagem: São Luís, Belo Horizonte, Rio de Janeiro (a definir) Figura 35

Observação: Não foram elencadas aqui as experiências cênicas e performativas em festivais de dança e performance. Durante o Mestrado, dancei no Conquista Ruas (Vitória da Conquista, com Deu Aloka!), FIAC (em Salvador, com o projeto de intervenção da disciplina de Residência Artística), Festival Panorama (no Rio de Janeiro, Aloka das Américas em festas e no seminário Trans-IN-Corporados), Encontro Contato Coletivo (intervenção urbana proposta por Tati e Nico), Conexão Dança (Festas e encontros em São Luís) e Festival de Mulheres em Cena (Aloka das Américas em festa). Figura 36

69


8. LISTA DE FIGURAS 1 – Performando quando criança, em São Luís do Maranhão, entre 1995 e 1997. 2 – Cenas de Tarnation (2004), com imagens de Jonathan Caouette. 3 – Um dos planos finais de Juno (2008), com o bilhete trocado entre as personagens "Vanessa, se você ainda está, eu ainda estou. Ass: Juno”. 4 – Cena de Billy Elliot (2001), com o personagem aprendendo ballet. 5 – Cena de Billy Elliot (2001), em que ele está imerso na experiência cotidiana de dança. 6 – Dançando em 2016, numa festa do Centro Cultural do Banco do Brasil, em São Paulo. 7 – Dançando em 2016, numa festa privada em Brasília – DF. 8 – Dançando em 2017, em festa privada em São Luís – MA. 9 – Dançando no Festival Panorama, no Rio de Janeiro, em 2017. 10 – Dançando em 2016, numa festa privada no centro do Rio de Janeiro. 11 – Dançando em 2015, numa festa privada em São Paulo. 12 – Dançando no carnaval do Rio de Janeiro, em 2016. 13 – Dançando em festa/jam de contato e improvisação em Niterói, em 2014. 14 – Meshes of the afternoon (1943), Maya Deren em seu cinema experimental. 15 – O Lamento da Imperatriz (1990), Pina Bausch realiza seu único filmedança. 16 – Montagem com primeiros vídeos de Aloka das Américas, gravados em 2015 entre as cidades de São Luís, São Paulo e Niterói. 17 – Segundo vídeo de Aloka das Américas, gravado no MASP (Museu de Arte de São Paulo) em 2015. 18 – Vera Mantero dançando na abertura do Festival Panorama, em 2015, no Parque Laje. 19 – Oficina ministrada por Vera Mantero durante o Festival Panorama, no Centro de Artes da Maré, em 2015. 20 – Participação no projeto Dança Zero, em 2017, na Praça das Artes (UFBA). 21 – Participação no projeto Dança Zero, em 2017, na Praça das Artes (UFBA). 22 – Participação no projeto Dança Zero, em 2017, na Praça Dois de Julho. 23 – Eu, Georgiana Dantas e Renata Dourado no Festival de Artes Performativas Conquista Ruas, em Vitória da Conquista (2017). 24 – Renata Dourado filma Aloka das Américas em performance Deu Aloka!, no Festival de Artes Performativas Conquista Ruas (2017). 25 – Aloka das Américas dança no Encontro Contato Coletivo, em Olinda (2017). 26 – Oficina de preparação corporal para performance com contato e improvisação na rua, no Encontro Contato Coletivo, em Olinda (2017). 27 – Participação como espectador no experimento De Carne e Concreto, da Anti Status Quo Companhia de Dança, durante o Festival Panorama de 2017.

70


28 – Dançando com amiga Letícia Oka no bairro de Botafogo, no intervalo das programações do Festival Panorama, no Rio de Janeiro (2017). 29 – Dançando ao raiar do dia, em festa de encerramento da Mostra Panorama Br, semana de atividades do Festival Panorama em 2017. 30 – Aloka das Américas dançando próxima ao Teatro Experimental, na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (2016). 31 – Aloka das Américas dançando na praça Cantareira, ponto de encontro de vários estudantes, entre eles os da Universidade Federal Fluminense, em Niterói (2016). 32 – Aloka das Américas dançando no mar do Porto da Barra, em Salvador (2017). 33 – Aloka das Américas dançando no laboratório do grupo de pesquisa Elétrica, o LAPAC, da Escola de Dança da UFBA (2017). 34 – Aloka das Américas dançando sua despedida do curso técnico na Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (2017). 35 – Aloka das Américas dançando em reserva ambiental de São Luís para projeto coletivo de videodança intitulado temporariamente de Lines/Linhas (2017). 36 – Aloka das Américas dança em festa de abertura do Tristes, Loucas e Más: Festival de Mulheres em Cena, organizado em Salvador, 2017. 9. ANEXOS DE DOCUMENTOS COMPROBATÓRIOS Nesta seção, reúno os documentos escritos e publicações que comprovam a passagem pelo Mestrado. Constam abaixo o cumprimento das tarefas acadêmicas de pesquisa, ensino e extensão desenvolvidas durante esse período, a fim de evidenciar tudo que foi apontado neste memorial. É o conjunto de textos produzidos entre 2016-2018.

9.1 Publicações A – EIXO DO FORA #18: DEU ALOKA! Iniciativas pessoais, circuitos “alternativos”, artistas independentes, legitimações de mercados e instituições: tudo isso vira assunto nesta postagem que traz ao debate o trabalho de Tiago Amate, idealizador de Aloka das Américas.

Tiago Amate / foto: Luana Farias

71


eixo do fora #18: Deu aloka! [*], por Dally Schwarz O canal Aloka das Américas é uma criação de Tiago Amate, cineasta e dançarino, que nasceu no Maranhão, passou por Brasília e Rio de Janeiro, e atualmente está cursando o mestrado em Dança na Bahia. O canal divulga suas experimentações pessoais de dança no espaço público e seus interesses nos deslocamentos possíveis entre palco, rua e web, difusão de conteúdo, relações entre dança e vídeo, e tudo que isso junto e misturado pode trazer como discussão para além da arte. Outro aspecto interessante do canal é que Tiago também levanta o debate sobre técnica, virtuosismo e o “saber dançar”. Seu interesse é afirmar que todo corpo dança e que Aloka é também um convite do corpo no espaço urbano ao movimento e à existência não-normalizada. Sua dança, como ele conta, vem de festas, performances, conversas, e de uma relação intuitiva com o movimento: MEU TRABALHO NÃO POSSUI AMBIÇÕES MIDIÁTICAS E ESPETACULARES, A NÃO SER A PRÓPRIA FORÇA DE EXISTIR E ME DAR PRAZER. AS AMBIÇÕES SÃO POLÍTICAS, COTIDIANAS E ESTETICAMENTE VIÁVEIS DENTRO DAS MINHAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO. ALOKA DAS AMÉRICAS É UM MANIFESTO DO MEU CORPO, QUE DANÇA PELOS CORPOS QUE QUEREM EXTRAVASAR NA RUA A QUALQUER MOMENTO.

Foto: Luana Farias

Tiago traz referências de Vera Mantero – que dançou um discurso do filósofo francês Gilles Deleuze – a instalação de Marina Guzzo, 100 Lugares Para Dançar, o projeto de vídeo Une Minute de Danse Par Jour, de Nadia Vadori-Gauthier, e afirma que todo o seu processo de construção teve muita relação com suas descobertas incentivadas por um grupo de Facebook criado por estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF), além do seu contato com residências e oficinas em festivais cariocas como Panorama e Dança em Foco: A INSTALAÇÃO DE MARINA GUZZO, CHAMADA 100 LUGARES PARA DANÇAR, QUE TAMBÉM É UM PROJETO DE VIDEODANÇA NA WEB, ME SENSIBILIZOU AO SE ENCONTRAR COM A ESTÉTICA QUE JÁ PUNHA EM MINHAS PERFORMANCES PARA O CANAL ALOKA. MARINA TAMBÉM PROBLEMATIZA CORPOS ARBITRÁRIOS EM SITUAÇÕES URBANAS ARBITRÁRIAS. UM PROJETO POLÍTICO DE BUSCAR

72


SENTIDOS ATRAVÉS DO MOVIMENTO E DE RESSIGNIFICAR AS RELAÇÕES COM A URBE E A COLETIVIDADE.

Redirecionamento para este vídeo de Aloka: https://vimeo.com/157659943 Quando fala sobre o nome do projeto, Tiago responde que ele problematiza um lugar frágil, friccionando o estereótipo da loucura no espaço público e as formas nãohabituais de mover nos lugares. Sua proposta de movimentação extra-cotidiana com novos gestos para o dia-a-dia dialoga com a dança, a poesia, e sai do lugar dos gestos funcionais ou de comunicação legível: ALOK, SEM O ‘A’, É UMA EXPRESSÃO BASTANTE USADA NA INTERNET, QUE, INCLUSIVE, ADOTEI NO COTIDIANO PARA ME REFERIR A SITUAÇÕES SOBRE AS QUAIS NÃO TENHO UMA OPINIÃO FORMADA, ME RESTANDO RIR OU CHEGAR A CONCLUSÕES ABSURDAS. A ESTÉTICA DO RISO, DO ABSURDO E DA CONTEMPLAÇÃO. ESSA NOÇÃO DE DIFERENÇA VEM NA FORMA DA BRINCADEIRA, DO RECONHECIMENTO DA LOUCURA COTIDIANA, QUANDO CORPOS NÃO SE ENCAIXAM EM PADRÕES. E HOJE ME CONSIDERO CADA VEZ MAIS DISTANTE DELES, COMO PESSOA NÃO BINÁRIA (GENDERQUEER) QUE OCUPA A RUA PARA DANÇAR QUANDO BEM ENTENDE. NESSE SENTIDO, SOU ALOKA QUE DANÇA. E AÍ RESOLVI ACRESCENTAR O ‘A’ NO ALOK PORQUE IMAGINEI QUE NEM TODO MUNDO ENTENDERIA A EXPRESSÃO. NA VERDADE, AINDA ESTOU DECIDINDO SE USAREI ALOK OU ALOKA, POIS ESSE É APENAS O INÍCIO DO PROCESSO. IMAGINO VIDA LONGA PARA O PROJETO, MAS NUNCA SE SABE, TAMBÉM PODE ACABAR A QUALQUER MOMENTO.

Como diz o próprio Tiago, “Aloka das Américas é alguém que dança por aqui, num país da América do Sul, não dança na Europa, e que dança por corpos fora das expectativas de gênero”, levantando comentários e criando dúvidas em quem vê. “Uma mulher… Um homem? Está louco? O que ele está fazendo? Por que dança desse jeito?”. Ele conta que as pessoas costumam rir e fazer essas perguntas, pois não entendem onde ele quer chegar: COMO SE SEMPRE PRECISÁSSEMOS CHEGAR A ALGUM LUGAR. FAZ PARTE DO CHOQUE COM A NORMALIZAÇÃO. POR ISSO, ALOKA TRAZ PERFORMANCES QUE ATRAVESSAM POLITICAMENTE QUESTÕES MARGINAIS E DIALOGAM COM A ESTÉTICA DE SUBDESENVOLVIMENTO NA PRÓPRIA ARTE. AÍ PODERÍAMOS PEGAR ALGUMAS REFERÊNCIAS DO CINEMA MARGINAL, EXPERIMENTAL E DO PRÓPRIO CINEMA NOVO. NOMES COMO ROGÉRIO SGANZERLA, LUIZ ROSEMBERG, GLAUBER [ROCHA] E ATÉ O PIONEIRISMO DA MARAVILHOSA MAYA DEREN, DÉCADAS ANTES DESSES CARAS.

Quando pergunto sobre outras referências, Aloka indica “Pensar e Mover”, de Marie Bardet, mas afirma que, apesar do diálogo e embasamento acadêmico, seu projeto “é, sobretudo, um projeto do prazer que tenho em mover meu corpo pelas ruas, da catarse, das relações e das intenções de colocá-lo em xeque numa arquitetura e num plano urbanístico cada vez mais excludente e impessoal no Brasil.” Redirecionamento para este vídeo-conversa de Aloka: https://youtu.be/ihXyRvUkYcA

73


Foto: Luana Farias

[*] Este texto integra a série eixo do fora, desenvolvida por Dally Schwarz para ctrl+alt+dança.

B – OCUPAÇÃO: CORPOS EM FESTA COMO FORMAS DE RESISTÊNCIA, RESIDÊNCIA.3 Tiago Amate 4

Processos de ocupação em instituições, prédios abandonados e espaços públicos, neste caso a rua e suas adjacências, têm deflagrado em algumas cidades do país a interseção entre manifestações de resistência cultural, movimentos sociais e arte. O interesse deste texto está em discutir as possíveis aproximações do conceito de residência artística e de ocupação a partir do entendimento dos corpos que assim se agenciam coletivamente para produzir e pensar arte no espaço público. Ao tomarmos como fundamento a noção de corpos em festa, busca-se problematizar a noção de afeto em encontros e celebrações, permeando os processos de resistência e criação característicos da qualidade de ocupar e atribuir novos significados a espaços pouco funcionais ou até então esquecidos pelo Estado e pela sociedade civil. Como pensar, então, a residência artística enquanto ocupação e resistência? Ao observar as relações e redes de afeto nos processos de criação e permanência pretende-se apontar a imersão nos espaços ocupados como formas de agenciar novos fazeres artísticos. A ideia de convivência, pensada numa disposição do coexistir (existir conjuntamente), compartilhar, morar, habitar, culmina num contexto de solidariedade 3

Este texto é baseado em algumas experiências estéticas do autor em festas e ocupações, a partir do contato com integrantes desses processos de residência e resistência no Rio de Janeiro, durante o período que se estende de fevereiro de 2014 a setembro de 2016. 4 Mestrando no programa de pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. Formado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense, em 2016, investiga novas configurações de corpos dançantes no ciberespaço da internet a partir da linguagem da videodança. Seu projeto Aloka das Américas <https://vimeo.com/alokdasamericas> pesquisa as apropriações marginais das imagens em movimento na dança. Disp.: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4361189P3>.

74


cujos resultados se entrelaçam na ideia de resistência às formas normalizadoras de compartilhar o corpo no espaço público. Se a convivência, o afeto e a habitação são pontos comuns entre os conceitos de residência e ocupação, a estratégia está em observá-los no incentivo a outras maneiras de subjetivação na própria arte, costumeiramente negligenciadas no contexto sócio-economico-político do Brasil. Pensando recentes situações de ocupação no Rio de Janeiro, concretizadas neste ano turbulento para o país, em que um impeachment ilegítimo depôs uma presidenta democraticamente eleita, ilustram-se algumas maneiras ainda resistentes de organização coletiva, tendo o corpo como principal instrumento de militância política. Militância esta desencadeadora de processos criativos em arte contemporânea, quando dos corpos em jogos, festas e confrontos ideológicos. Não seriam estas situações capazes de repensar os estatutos de arte a partir de práticas dissidentes ao aparato estatal? Durante o processo de Ocupação do Ministério da Cultura (MinC) em 2016, que se alastrou por outras cidades do país em redes de colaboração que também ocuparam sedes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da Fundação Nacional das Artes (Funarte), a população carioca viu surgir articulações de permanência como desencadeadoras de grandes eventos, capazes de chamar atenção do público à causa e fazer circular pessoas no espaço. Festas e encontros com artistas, intelectuais e mestres de cultura popular, transfiguraram um prédio do MinC até então subutilizado pelo Estado em espaço de troca e criação. Com a interseção de movimentos em reação à extinção do Ministério da Cultura e corpos em resistência às violências e ao atual golpe de Estado, expandiu-se à população um contexto de produção coletiva até então restrito às experiências de coletivos artísticos ou movimentos sociais. [...] o movimento de ocupações reverteu o quadro de ameaça a espaços que simbolizam políticas públicas no campo da educação e da cultura, ou seja, não se trata de causas individuais, de foro privado, são demandas que respondem às necessidades coletivas e asseguradas constitucionalmente. É interessante notar, nos exemplos citados, como a ocupação de um espaço da cidade por um grupo social ganha forte contorno político, ativando discussões nas mais diversas esferas da polis, revertendo medidas autoritárias, provocando a queda de chefes de Estado e de secretários. É como se a tomada de um espaço do Estado devolvesse a ele a sua legítima face e vocação pública, muitas vezes negligenciada no cotidiano em que medidas governamentais são tomadas a partir de pressões de grupos políticos e econômicos ou mesmo de projetos de governo que fazem sucumbir os interesses efetivamente públicos. (WILKER, 2016) 5

5

Francis Wilker, em texto Espaço e tempo da arte e da política, publicado na webpage Teatrojornal. Disponível em <http://teatrojornal.com.br/2016/06/espaco-e-tempo-da-arte-e-da-politica/>. Acesso em: 21/20/2016.

75


A interseção entre arte e política proposta pela análise de Wilker no caso das ocupações do MinC colocam em pauta os agenciamentos coletivos no processo de resistência às mazelas do Estado, em resposta à defasagem da cidadania nos seus alicerces civis, sociais e políticos; ou seja, em seus direitos básicos. Esses agenciamentos coletivos culminam em práticas artísticas e experiências estéticas onde o corpo é centralizado como ferramenta de transformação coletiva, seja por meio de redes de solidariedade e afeto em construção seja por processos criativos oriundos dos contatos e trânsitos entre arte e cidade. Neste universo, a ideia de festa propõe aos corpos um estado de problematização de alguns artifícios de mimese social e controle, transfigurando cenários ultrajados por uma política fascista em encontros e celebrações. Na ocupação do Minc RJ, por exemplo, coletivos de carnaval carioca, como o Bunytos de Corpo e o Viemos do Egyto, conduziram festas que reuniram pessoas em torno da causa cultural, produzindo, nessa política de afetos dançantes, novas formas de agenciar subjetividades, militâncias e fazeres artísticos. Como continuidade de um processo de intervenção pública, com atividades diárias de conscientização e encontros (dentre elas rodas de conversa, apresentações, exposições, performances, etc.), as festas potencializavam o espaço já concretizado em rede, tecendo diferentes relações na política de afetos e corpos dançantes. A abertura para aparições e acontecimentos em festa evidenciou os variados processos de construção coletiva da ocupação. Isso permitiu o engajamento de qualquer indivíduo interessado em contribuir, possibilitando o acesso menos verticalizado aos debates e lideranças do movimento político-artístico de ocupação. Assim, durante os eventos (e no intervalo deles) se debateu a forma mesmo de ocupar o Minc, a importância de determinados grupos em detrimento de outros nos espaços de deliberação, trazendo posições críticas às possíveis arbitrariedades coletivas na condução do processo. Por isso, em atos de refazer e desfazer pontos conjuntos de partilha ideológica, ainda que houvesse uma centralidade no movimento coordenado por alguns partidos políticos e movimentos sociais. Visualizando o contexto atual do país e suas reverberações no alastramento das ocupações artísticas fora e dentro de instituições, há de se pensar os novos esquemas colocados como fundantes de práticas econômicas e políticas dentro desses espaços. Ao desestabilizar qualquer pressuposto ingênuo (anticapitalista) de sustentabilidade para essas organizações coletivas, precisa-se observar como elas trazem à tona novas alternativas ao espaço público, numa explícita disputa com regimes de poder estabelecidos. Por mais que haja setores de esquerda injetando capital necessário à 76


sobrevivência dos ocupantes (em questões básicas, como alimentação e higiene cotidianas), uma economia colaborativa fundamenta alguns dos agenciamentos básicos às práticas de resistência e aos processos criativos em grupo. Seja por meio de vendas, rifas ou doações nos espaços de circulação e presença de pessoas. Dessa maneira, as festas se tornam, em certa medida, espaços de arrecadação colaborativa. Festas que colocam corpos para dançar em uma economia disruptiva. Uma economia do encontro. A ideia dos corpos dançantes nas festas, dentro das ocupações e nas ruas, faz pensar o conceito de residência artística por meio da articulação de encontros em variados tecidos afetivos. No Rio de Janeiro, alguns espaços já legitimados pela troca de saberes e abraço à resistência caracterizam-se dentro desse universo colaborativo de festejar os corpos na rua. Um deles é a antiga Casa Nuvem, hoje Casa Nem 6, que articula festas LGBT a baixo custo no centro da cidade (proximidades da Lapa) como vias de arrecadar fundos para manter um projeto voltado para o acolhimento de travestis, transgêneros e transexuais em situação de vulnerabilidade social. A casa passou por um processo de ruptura e transformação após um caso de transfobia em uma festa organizada durante o carnaval. Apesar de se dirigirem ao público LGBT, marginal e “artístico” da cidade, antes da transição as festas e atividades da casa estavam voltadas a um contexto muito menos inclusivo, dentro de um circuito mais próprio às classes abastadas da Zona Sul da cidade. Por isso, lideranças do coletivo tiveram de reorganizar o projeto, repensando suas finalidades e enfretamentos. E a festa, mais uma vez, foi um dos fatores para problematizar a ocupação do espaço, ressignificando a resistência nele. Outras iniciativas têm motivado essas relações de ocupação e festa, com diferentes perspectivas de classe e organização. Recentemente o Solar dos Abacaxis 7 surge como um espaço de construção muito similar ao que fora a Casa Nuvem pouco antes da atual “A Casa Nem é um espaço de acolhimento para pessoas LGBTIs em situação de vulnerabilidade social, com foco em travestis, transexuais e transgeneres. É um espaço autosustentável e festas são realizadas para ajudar nessa autosustentabilidade do local,que também recebe diversos tipos de doações. Na Casa Nem opressões são proibides e o espaço abriga diversos projetos que se inclui o PreparaNem, CosturaNem, FotografaNem, YogaNem, Libras, voltado para as travestis, trans e a todes que se considerem Nem”. Texto disponível em: <https://www.facebook.com/casanemcasaviva/about/>. Acesso em: 22/10/2016. 7 Esta é uma ocupação criada há poucos meses em residência privada. “O Solar dos Abacaxis é uma casa no Cosme Velho que está se transformando em um espaço no Rio de Janeiro para arte, educação e desaceleração. O interesse do Solar dos Abacaxis é catalisar o encontro de indivíduos e grupos que utilizam a arte e a cultura para investigar formas originais de estar junto. Os povos indígenas, a cultura negra e de terreiro, o feminismo, as lutas sociais por igualdade de gênero, o antropoceno e as questões de meioambiente e saúde, a produção cultural dos subúrbios e periferias, o pós-colonialismo e relações internacionais sul-sul, as redes sociais e a ciberdemocracia, o amor livre e as novas famílias, a permacultura e as novas comunidades não-urbanas, os refugiados e imigrantes e os estudos experimentais de arquitetura e urbanismo são alguns exemplos do que será a base política e conceitual desse novo espaço”. Texto disponível em: < https://www.facebook.com/solardosabacaxis/about/>. Acesso em: 22/10/2016. 6

77


transformação, pensando relações entre arte-educação e aglutinando debates em torno das minorias. “O lugar estava desocupado há muitos anos e até hoje sempre foi (sic) utilizado como residência particular. Em 2016, a casa começa a cumprir sua vocação pública”, é o que afirma o texto-resumo da página no Facebook, plataforma que costuma reunir informações de projetos desse tipo. Entretanto, a suposta vocação pública do espaço, qualificada como força-motriz da iniciativa, não têm sido problematizada em torno de questões de classe que se voltam incômodas para pensar quais são os corpos em festa no Solar dos Abacaxis, num bairro como Cosme Velho. Seriam eles corpos periféricos, em trânsito, ou aqueles que já estabeleceram o modus operandi da Zona Sul da cidade? As festas, que cobram entrada, já saíram em jornais como O globo, com presença marcada de celebridades e em relação direta com produtoras do mercado audiovisual, como a RT Features. No Rio de Janeiro não é incomum encontrar ocupações articuladas com espaços de manutenção de poder. Isso mistura e confunde alguns dos conceitos voltados neste texto para a ideia de economia colaborativa. Além das ocupações, algumas festas de rua costumam ter interseções parecidas, promovendo encontros e associações por meio das festas, mas ainda em extensa relação com interesses econômicos capazes de manter o movimento e a subsistência de alguns atores envolvidos. É o caso de festas como a Odara, que costumava ocorrer no bairro do Leme, na Zona Sul, ou aquelas organizadas na Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro. Esses corpos dançantes em festas de rua não apenas celebram suas existências, mas também se deparam com as condições sistêmicas da própria sobrevivência dos eventos, cujas articulações e financiamentos nem sempre se tornam transparentes ao público. De outro lado, porém, o que seriam as rodas de samba e os bailes funks, senão também formas festivas de ocupação da rua? A Zona Norte do Rio e demais espaços descentralizados de poder na cidade assimilam e produzem ocupações de outras maneiras (muitas delas cotidianas), pensadas neste texto enquanto espaços de construção e fortalecimento das subjetividades em jogo. A resistência do que falaciosamente se nomina “periferia” não se difere do contexto de pôr o corpo em festa enquanto um corpo sobrevivente das opressões do aparato estatal. Uma periferia que de periférica não tem nada, tornando-se centro e maioria logo que mudamos a perspectiva de quem a descreve. A questão é que, hierarquicamente, acostumou-se distanciar as expressões “periféricas” do contexto contemporâneo e hegemônico da arte, exatamente por ser a periferia parte de

78


uma cultura ainda marginalizada diante do status artístico burguês e dos ideais estéticos eurocêntricos. Isso se repete no debate acadêmico, atribuído como primazia nos espaços universitários e nas instituições que replicam um sistema educacional excludente, pautado em histórias de colonizadores, imperialistas e vencedores. Apesar de receberem um aumento significativo de indivíduos marginalizados, vindos especialmente das periferias, as instituições de ensino no país ainda mantêm uma organização pensada a partir do silenciamento das histórias pessoais e comunitárias. Pensar a onda de ocupações escolares e universitárias no Brasil, em constante crescimento no sul e sudeste (o Paraná já possui mais de 800 escolas ocupadas, por exemplo, totalizando mais de 1000 espalhadas pelo país no mês de outubro), evidencia a insatisfação com um sistema educacional que tem ameaçado a formação autônoma e crítica dos cidadãos. Em reação, esses estudantes secundaristas pretendem disputar espaço com as ondas de fundamentalismo religioso e moral familiar a fim de trazer rua e periferia para dentro das instituições. Afinal, por que deslegitimar histórias e resistências para determinar formatos ideais de organização política? É no resgate histórico que a ideia de festa e ocupação se encontram outra vez. Quando a cultura marginal é negligenciada e se rebela, sobretudo, por processos criativos em grupo, o corpo é trazido como principal ferramenta de emancipação. Não é à toa que as festas de rua em torno do funk e do samba são, no Rio de Janeiro, expressões da resistência sobrevivente. Se isso extrapola para e dentro das instituições de ensino, fica difícil manter corpos dóceis e normais num contexto conservador, em que tantas garantias de sobrevivência foram postas em xeque. Para analisar como isso tem extravasado nos espaços de criação dentro de instituições de ensino, vale ressaltar a ocupação do Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS) na Universidade Federal Fluminense (UFF), num contexto universitário de reações à consolidação conservadora do Estado, com ocupações de reitorias e prédios por várias universidades do país. Em Niterói, estudantes de diferentes cursos se reuniram pouco antes do impeachment se concretizar e organizaram, no mesmo dia do golpe de Estado, a ocupação de um prédio em obras na Universidade. Aquilo que seria o novo prédio do IACS estava com obras paralisadas há meses, sem previsão de qualquer conclusão, ainda que tenha sido prometido há cerca de cinco anos pela reitoria da UFF. Assim que a ocupação se firmou no espaço, reunindo dezenas de estudantes em torno da causa, várias atividades artísticas e educacionais foram se alastrando pelo prédio abandonado. Os estudantes conseguiram apoio da Associação de docentes da UFF e 79


deslocaram aulas e bancas de monografia para um lugar que antes tinha apenas como perspectiva sua subutilização. Mas, ainda que tenham contribuído para o preenchimento acadêmico das atividades, foi nos processos criativos com sucata e nas alternativas aos espaços de poder que conseguiram agrupar e dar nova significância à ocupação. Inauguração de galerias, mostras de filmes, exposições, oficinas, assembleias estudantis e festas. Múltiplas atividades acontecendo ao mesmo tempo. E se no início estavam apenas interessados em ter o prédio finalizado, passaram então a questionar as futuras atribuições do lugar, inclusive pensando na parcela cabível do corpo discente em decisões fundamentais para o novo IACS. Entre inúmeras assembleias, os estudantes chegaram a cogitar a possibilidade de uma gestão mista, institucional, mas também estudantil, numa perspectiva de autogestão que caracteriza o próprio teor do movimento de ocupação. As festas, que aqui sinalizam um ponto de partida para pensar os corpos políticos em processo de emancipação e encontro, foram imprescindíveis para articular novos contatos e reunir pares da comunidade acadêmica. Na ocupação era comum encontrar pessoas não legitimadas pela instituição, como visitantes e artistas de rua que não tinham relação alguma com a Universidade. Um diálogo entre partes tantas vezes afastadas por discursos puristas em relações acadêmicas, estabelecidas para a própria legitimação da arte como forma de conhecimento dentro de um regime eurocêntrico de manutenção do status quo. A exigência do grau de doutor, por exemplo, para que um artista (mesmo com ampla experiência) possa oferecer um curso de pós-graduação, indica claramente um conflito de legitimações, onde o aparato universitário não abre mão de abrigar primeiramente aqueles reconhecidos pelo seu próprio processo de formação/formatação – é clara a resistência e autoproteção sem as quais, enfim, a academia veria dissolver-se a constelação de valores científico-humanistas e seu pensamento da arte em termos não artísticos que ainda a estruturam (subaparelho assistencialista de Estado). Seria interessante vislumbrar o espaço universitário sob uma contaminação de fazeres-saberes que gradualmente instalasse uma prática de valores decorrentes da formação de ação da arte contemporânea. Aqui, o que se poderia desenvolver (passando ao largo das pontuações que avaliam a produção docente) seriam critérios de mérito menos burocráticos e quantitativos, em que o aparelho universitário reconhecesse, mais prontamente, os mecanismos sociais de deslocamento e legitimação do artista, o circuito de arte, em suas curvas, linhas e pontos diversos – e os incorporasse de modo regular deixando-se atravessar de maneira mais franca pelo “mundo lá fora”. (BASBAUM, 2013: pág. 197) 8

O “mundo lá fora” do qual fala Basbaum é quase sinônimo dessa resistência que tenta se infiltrar em espaços institucionais, como a universidade, para fazer pensar corpos marginalizados dentro das escalas e hierarquias de poder. Os estudantes do “Ocupe novo 8

Ricardo Basbaum, em trecho do livro Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.

80


IACS” 9 pretenderam tensionar esse sectarismo (responsável por afastar uns e aproximar outros), buscando regimes mais democráticos de diálogo e legitimação discursiva. Sem uma liderança fixa, o grupo articulou formas de estar no IACS a partir de iniciativas de economia colaborativa e partilha sensível de conhecimento, pensando formas de organizar interesses comuns em torno de tarefas de manutenção do espaço e das relações. Os “corpos em festa” (aqui relacionados à ideia de ocupação festiva) eram parte desse processo de organização, resolução e criação de conflitos. As festas como forma de agenciar corpos resistentes às disciplinas na estrutura de poder. Assim, o novo prédio do IACS esteve em festa. O novo prédio do IACS esteve ocupado. E, nesse contexto, houve um processo de residência artística em andamento que, mesmo após a saída dos estudantes depois de um mês de ocupação, se estendeu em formas de mantê-los articulados em defesa da universidade pública diante do momento político no Brasil. Mas, então, qual seria o interesse em analisar algumas dessas experiências para pensar a residência artística a partir dos conceitos de festa e ocupação? Nas palavras de Wilker, pensar arte na cidade talvez seja repensar a relação mesma dos indivíduos com ela. E então surgem mais perguntas. Que indivíduos são esses? O que fazem com seus corpos? Por que se movem como se ordenados para isso? Por que não podem dançar ou se desvincular das normas de movimento? Por que não estão em festa, se vivem? Por que não ocupam e desafiam os espaços que lhes ameaçam a vida? Se a ideia for ocupar e resistir, dançar e festejar se fazem quase inseparáveis à ideia de emancipação e autonomia nos processos de residência artística. “Assim como uma manifestação cria novos sentidos para as ruas e espaços vinculados ao Estado, redimensionar a ideia da relação do cidadão com o espaço urbano parece ser também um vetor fundamental em muitos trabalhos artísticos que buscam o tecido urbano” (WILKER, 2016). Portanto, evidenciar esses exemplos, mesmo em suas passagens temporárias por espaços institucionalizados, problematiza certa força e possibilidade da ocupação enquanto residência artística de corpos em festa. A dança, os afetos e os encontros como processos criativos e vetores de novas relações com o espaço, as instituições e a cidade.

9

Link da ocupação na plataforma Facebook: <https://www.facebook.com/ocupenovoiacs/?fref=ts>. Acesso em: 24/10/2016. Estão disponíveis vídeos e textos sobre as últimas experiências do grupo.

81


C - EM TRÂNSITO DE LINGUAGENS: AFRONTAS À DANÇALIDADE E À ARTE PANFLETÁRIA NA INTERSEÇÃO DANÇA-CINEMA TIAGO AMATE – SUBMISSÃO DE PAPER AO SEMINÁRIO “TRANS-INCORPORADOS”

Resumo: O que se espera da linguagem da dança em critérios de autenticidade e função social? Em circunstâncias contemporâneas de mundo e de arte, vidas pessoais e processos criativos se confundem, atravessando-se mútua e publicamente na rede mundial de computadores. Provocações das artes performativas e de experiências virtuais autorreferentes têm refundado a relação artista-obra e, consequentemente, o contexto da dança contemporânea. Como, então, ainda aplicar sintaxes ordenadoras e categorizáveis às experiências do corpo em movimento, na busca pelas “marcas de uma dança pura”, verdadeiras propriedades de um território, como aponta Thereza Rocha (2016) em seu livro de prazeres? Se as especificidades reunidas no século XX fundaram na dançalidade unidades mínimas da dança enquanto conhecimento e fazer, a bancarrota da “autenticidade” como episteme ou território foi afrontosamente anunciada no mesmo século, com o pesar doloroso de uma morte pela técnica. Com o paradigma das imagens em movimento e sua reprodutibilidade, o aviso de Walter Benjamin na década de 1930 trouxe conflituosos apontamentos acerca das funções da arte, apropriando-se da obra em seu caráter reprodutível para pensar a política em detrimento do ritual. A subversão de algo “autêntico” ou puro pela noção de cotidiano, seja real ou imaginário, desafiou perspectivas ideais que, no caso da dança, se estabeleceram sobre um saber-dançar, em cuja miríade de técnicas e sujeitos históricos se excluiu ou invisibilizou corpos dançantes alheios à hegemonia falologocêntrica. A crise da dançalidade, entretanto, encontrou na dança contemporânea não só novas perguntas, como outros problemas. Diante das interseções de linguagem e suas experiências políticas, deu-se ao corpo em movimento variadas perspectivas, não apenas técnicas, mas ideológicas. Entre elas as experiências de arte panfletária, que propõem na relação de “figura-fundo” a possibilidade de uma “inspiração” política para a obra, ou seja, uma experiência estética manipulada pela política. Tal provocação reconstitui neste século outros enfrentamentos, que agora não apenas classificam um corpo ou uma obra segundo sua dançalidade, mas também ao supor uma “proposta” política. Em intenso diálogo com Jacques Rancière, a pesquisadora Marina Guzzo (2015) examina no artigo Arte, dança e política(s) dois modos de interseção a partir dos elementos que o intitulam. O primeiro oriundo da metáfora do plano de fundo, em que elementos secundários ornamentam o principal: a dança como 82


adereço da política e vice-versa, numa relação de causa-efeito; em suma, quase autoexplicativa. O segundo, mais interessante à reflexão deste paper, fundamenta-se na “arte como testemunha narrativa da política, da vida e da experiência”, e propõe à dança construções “dialógicas e performáticas”. Ao abandonar posições hierárquicas, por isso verticalizantes, a amálgama “arte-vida” refaz o caminho da política como testemunha, recusando o palanque ou uma política hermeticamente identitária, universalista. Assim, uma crítica ao panfletarismo na dança se estende não apenas ao fascismo introjetado historicamente no corpo a partir de diferentes categorias ou técnicas de movimento, mas aos lugares-comuns da militância política, que é capaz de reunir no “urgente” e no “necessário” as justificativas plausíveis para a experiência estética, como alerta Daniel Guerra, no ensaio Fantasias Revolucionárias (2017). Segundo o crítico baiano, ao passo que observamos a falência da representação nas artes cênicas, paradoxalmente acompanhamos a ascensão comercial de narrativas engajadas. Aos revolucionários, o capitalismo ofereceria não apenas estruturas sólidas disfarçadas de novidade, “mas falsos modelos de revolução”. Parte-se deste contexto, então, para pensar como os acúmulos do capital, das exigências de consumo e de posicionamento político podem se indispor às experiências estéticas marginais em dança contemporânea. Para isso, pretende-se atravessar o debate sobre dança-cinema no neologismo transbordança (2017), criado a partir das categorias de Guzzo (2015), a fim de imaginar como a dança transborda a si mesma “em favor de uma obra em trânsito de linguagens”, crítica esta concebida nas observações de Thereza Rocha (2016).

Palavras-chave: dança contemporânea; dançalidade; arte panfletaria; dança-cinema; transbordança

83


D – ALOKA DAS AMÉRICAS: VIDEODANÇA MARGINAL, ESTÉTICAS DO SUBDESENVOLVIMENTO SUDACA E DA VIADAGEM Simpósio Temático nº 12: Artivismos das Dissidências sexuais e de Gênero Tiago Amate 10 Resumo Nas atuais configurações de produção e compartilhamento de vídeos para o ciberespaço da internet, subjetividades e corpos antes marginalizados pela heteronormatividade compulsória passam a disputar e preencher lacunas artísticas em plataformas populares de domínio público, como o Youtube e Vimeo, além de redes sociais como o Facebook. Corpos dançantes têm adotado novas estratégias para a criação e distribuição de conteúdos em vídeo, criando redes de visibilidade para a dança contemporânea fora dos regimes institucionais. Essas produções demonstram a dissidência de corpos que escapam à performance binária de gênero e sexualidade, problematizando quais corpos possuem legitimidade para dançar. Aloka das américas, projeto de videodança para a web, trabalha com a estética do subdesenvolvimento presente em movimentos brasileiros como o cinema novo e o cinema marginal, para pensar corpos dançantes fora de um regime estético burguês e heteronormativo. Vídeos em baixa qualidade, produzidos com aparelhos de celular, sem uma composição coreográfica preestabelecida ou uma equipe de filmagem profissional, tensionam a experiência da videodança sudaca (PERRA, 2014) e viada a partir de performances improvisadas e filmadas no espaço público. Palavras-chave: videodança; internet; Aloka das Américas; corpos dançantes; cinema marginal.

Abstract In the current production settings and sharing videos into cyberspace of the internet, subjectivities and bodies previously marginalized before by compulsory heterosexuality come to play and complete artistic gaps in popular platforms at the public domain, such as YouTube and Vimeo, and social networks like Facebook. Dancing bodies have adopted new strategies for creating and distributing video content, producing visibility networks for contemporary dance out of the institutional arrangements. These productions show dissent bodies that escape binary performance of gender and sexuality, discussing which bodies could dance. Aloka das américas, videodance project for the web, work with the aesthetics of underdevelopment, present in brazilian movements as the cinema novo and the marginal cinema, to think dancing bodies away of a bourgeois aesthetic and heteronormative regime. Videos in low quality, produced with mobile devices without a pre-established choreographic composition or a filmmaker professional crew, tense experience of south-american (PERRA, 2014) and queer videodance from improvised and filmed performances in the public space. Key-words: screendance; internet; Aloka das Américas; dancing bodies; marginal cinema

Introdução Aloka das Américas é um projeto de videodança que surge das inquietações acerca das impossibilidades da produção audiovisual contemporânea dentro dos padrões de qualidade estabelecidos pelo mainstream. Ao passo que fazer um filme de grande porte exige um set de filmagem robusto e toda uma lógica de produtividade exclusiva para um

10

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (2017) e artistapesquisadora na Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). Idealizadora do canal Aloka das Américas, na plataforma Vimeo, interliga processos de criação em linguagens como o cinema marginal e a dança contemporânea, a partir de experimentações em videodança, cinema expandido e performance urbana. (shunteco@hotmail.com); (shungranger@gmail.com).

84


mercado consolidado, dançar para a tela se dá no domínio dos corpos autorizados e coreografados, cuja plasticidade seria encaixada nos moldes do belo e do útil, dentro de outra lógica tão predatória quanto, em que dominam as grandes companhias de dança e os grandes nomes da dança contemporânea ou do cinema. Afinal, como escapar a esses regimes de poder e, ainda assim, produzir conteúdo dentro de processos artísticos que alavanquem a interseção entre dança e cinema? Com a democratização do acesso às novas tecnologias de imagem, corpos que antes não tinham a possibilidade de produzir conteúdos audiovisuais passam a disputar espaço e a ressignificar linguagens já consolidadas a partir do registro feito por celulares e câmeras de pequeno porte. Nesse contexto, filmar-se dançando passou a ser uma possibilidade cotidiana, considerando corpos marginalizados pelo desenvolvimento tecnológico. O projeto Aloka das Américas, alterego empregado na plataforma Vimeo, nomeia o conjunto de experiências em videodança que não apenas consolida um resultado fílmico, mas atravessa o contexto da relação corpo-câmera na rua. Um corpo qualquer, que dança de qualquer jeito, em espaço qualquer, sem a pretensão hierárquica de legitimar o olhar higiênico, burguês e planejado de uma arte contemporânea consolidada no entretenimento de museus e festivais de arte. Interpõe-se enquanto uma iniciativa marginal na medida em que se propõe a questionar o que seria a dança no senso comum de sua legitimidade. E, para isso, coloca-se o próprio corpo, bem como suas autorizações, em xeque. Um corpo viado, não-binário, ambíguo, abjeto e esquisito. Em entrevista cedida ao portal carioca Ctrl Alt Dança, esclarecem-se os pilares de um projeto que “levanta o debate sobre técnica, virtuosismo e o ‘saber dançar’” (SCHWARZ, 2016). Ao reiterar que qualquer corpo dança, Aloka convida à existência dançante não-normalizada todos os corpos ocupantes da cidade. Aloka das Américas bifurca, então, possíveis relações entre marginalidade, viadagem e videodança com vídeos curtos, em que o performer dirige, monta e compõe a cena. Politicamente, a construção desse perfil surge como manifestação autoral diante da ausência de lugares para dançar cotidianamente na cidade, ou a ausência de visibilidade do corpo que dança, diante dos corpos aprisionados pela norma disciplinar cotidiana (FOUCAULT, 1977). Além das plataformas de vídeos, as atualizações do projeto Aloka11 foram recorrentemente inseridas em redes sociais como o Facebook, ampliando a visibilidade de um corpo indisciplinar que dança para a câmera. 11

Nas figuras acima, seguem dois frames do vídeo Lua em Capricórnio, seguido de um printscreen da página do Vimeo.Disponível em: < https://vimeo.com/alokdasamericas > Acesso em: 06/08/2017.

85


Figura 1

Figura 2

Figura 3

Pensar na relação entre videodança, dispositivos celulares e ciberespaço da internet, no cenário da arte contemporânea, é partir a um debate sobre os processos de construção da subjetividade na internet, contexto que atravessa a condição dos indivíduos consumidores e informados na atualidade (SIBILIA, 2003). A linguagem do vídeo em sua acessibilidade pelos novos dispositivos (devido às multitarefas de celulares e afins) tem proporcionado à videodança um cenário de tempo real, situação que acarretou multiplicações dessa manifestação artística, especialmente no ciberespaço, e tensões políticas capazes de incluir outros corpos que dançam. Trazer à tona os procedimentos de criação da videodança para web é também colocar em xeque dispositivos e expressões pessoais/coletivas de artistas que têm se dedicado a produzir videodança tanto para festivais quanto para exibições na internet. Muitos deles, tão “multiatarefados” quanto os dispositivos que utilizam, têm acumulado funções e expõem uma linguagem de variadas nuances, do cinema de dispositivo às produções em pequenos sets de filmagem. Essa multitarefa também se encontra com o processo de distribuição, divulgação e publicação desses vídeos na internet. Os corpos dançantes no ciberespaço, se dançam, compartilham de conceitos como videodança, screendance, ciberdança ou mesmo mediadance (BASTOS, 2013). Pois antes de dançar numa tela, dançam para uma câmera. E, se esses mesmos corpos 86


passam a ser identificados por processos de exposição e agenciamento de imagens pessoais ou performáticas (alteregos, perfis fakes, por exemplo) em condições ainda tecnicamente subalternas de produção, isso acaba fazendo tal questão culminar no território da produção amadora, que, neste trabalho, se encontra na interseção dos dispositivos audiovisuais com o corpo dissidente e sua constante resistência às determinações de gênero/sexo. Estratégias e ferramentas comuns às narrativas do eu (autobiografia, autoficção, etc.), também presentes no cinema de dispositivo, vão endossar esse processo da performer viada, que expõe corpo e intimidade (SIBILIA, 2008) ao dançar no ciberespaço. Num cenário mais específico, os estudos do entrecruzamento da videodança com a autoficção (conceito que prevê a interseção da ficção com a vida real) possibilitam experimentações teóricas e estéticas em vídeo, como novas alternativas de criação num ambiente já consolidado pela videodança e o filmedança (PONSO, 2013) desde metade do século XX. Pensando no Brasil, onde parte dessas experiências (tanto de videoarte, quanto de videodança) surgiram apenas a partir da década de 1970 (PONSO, 2013), como no trabalho precursor de Analívia Cordeiro, em M3X3, as condições técnicas atuais potencializam novas relações corpo-câmera, não mais centradas numa atividade profissional, oriunda da relação entre sets de filmagem e companhias de dança. A multitarefa do performer e o amadorismo de sua relação com o cinema de dispositivo e com a internet possibilitou novos processos de criação, alguns não mais circunscritos à estética hegemônica de apelo burguês. Investigações como a da coreógrafa e pesquisadora Marina Guzzo, idealizadora do projeto 100 lugares para dançar12 (disponível na web e reunido como instalação no Oi Futuro do Rio de Janeiro durante o Festival Panorama13, em 2015) possibilitam tensões políticas com a linguagem clássica do cinema e da dança, ao convidar quaisquer corpos para dançar na rua e, a partir dos resultados em vídeo, publicar esse conteúdo na web. O interesse de Guzzo em não hierarquizar corpos que dançam e em utilizar os espaços

“Trata-se de um estudo de improvisação, no qual a superfície do corpo - feita das roupas, das cores e dos cabelos - contorna a dança que é concebida no instante da sua execução. É do encontro com as pessoas, prédios, muros, barcos, [...] ruínas e sonhos que essa dança desvenda a cidade. [...] Lugares onde o corpo (des) especula [...] e se dissolve entre a memória do futuro e o risco do passado. Como artistas, encontramos a possibilidade de dar visibilidade à contradição da falta de espaços e possibilidades culturais da cidade, em oposição à pujança econômica e especulativa do mercado. Talvez porque somos estrangeiros, talvez porque ainda há muito que conhecer, talvez porque a dança tem espaços impensáveis. Vamos atrás deles, com a câmera e o corpo na mão.” Texto descritivo disponível em <http://100lugaresparadancar.org/100-lugares-para-dancar>. 13 Festival Internacional de Dança Contemporânea, que acontece anualmente na cidade do Rio de Janeiro. 12

87


ociosos da cidade se materializa nos vídeos de 1 minuto que compõem as 100 videodanças do projeto. A proposta é desfazer expectativas virtuosas da dança clássica ou de representação do cinema tradicional. As cenas possíveis se tornam infinitas, em espaços tão variados quanto o trocadilho da proposta: cem lugares ou sem lugares? Figura 4

Figura 5

As aproximações do projeto de Guzzo com as referências marginais desta pesquisa se dão no momento em que Aloka das Américas ativa o mesmo interesse de ocupar a cidade e seus espaços, produzindo dissidência numa dança invisibilizada na rua pela norma cotidiana. São imagens que, de acontecimentos em tempo real, tornam-se vídeos na internet. Entretanto, o processo não se materializa numa necessidade de se tornar espetáculo. Aloka dança com o cotidiano em sua marginalidade. “Meu trabalho não possui ambições midiáticas e espetaculares, a não ser a própria força de existir e me dar prazer. As ambições são políticas, cotidianas e esteticamente viáveis dentro das minhas condições de produção. Aloka das Américas é um manifesto do meu corpo, que dança pelos corpos que querem extravasar na rua a qualquer momento.” (SCHWARZ, 2016)14

1. Aloka das Américas, viadagem e estética do subdesenvolvimento Pensar Aloka das Américas como um corpo dissidente que dança no contexto do subdesenvolvimento é de suma importância para entender como essas ressignificações de linguagem partem do campo da videodança para tensionar questões políticas em arte contemporânea. No contexto sudaca (sul-americano), proposto pela travesti Hija de Perra, nem mesmo a teoria queer daria conta dessa subjetividade inclassificável e resistente originada das tensões existentes no sul (ou cu) do mundo. Se o corpo inclassificável e intransigente, que insiste em sobreviver no espaço público para tensionar questões de sexualidade, gênero e do próprio status da arte, é o corpo que dança, como não pensar uma videodança que proponha relações entre a subjetividade do corpo dançante marginalizado e a estética do subdesenvolvimento na América do Sul?

14

Entrevista concedida à Dally Schwarz para a webpage carioca Ctrl + alt + dança.

88


A viadagem que atravessa a dança de Aloka expõe o não-lugar de um corpo subjugado pelas condições políticas do subdesenvolvimento quando se mune do cinema de dispositivo para criar ruídos às imagens ideais de um corpo normalizado no espaço público. A marginalidade que atravessa identidades de gênero dissidentes, os desejos sexuais reprimidos e os estados de loucura enquanto classificações corporais não normalizadas se reúne na experiência abjeta e esquisita de Aloka a fim de tensionar as possibilidades de dança, debilitando expectativas sobre o corpo na rua e na web. A videodança marginal e viada é um projeto político de dar visibilidade a um corpo que há menos de uma década, no Brasil, não obtinha espaço no discurso midiático, a não ser para constituir-se enquanto ridicularização. Em Corpos que importam, a pesquisadora Judith Buttler ressalta o movimento crítico em relação ao determinismo cultural das normas de gênero que, na investigação de Aloka das Américas, abarca os experimentos de um corpo não-binário que dança para a web em busca de visibilidade. Porém, se não há tal sujeito que decide sobre seu gênero e se, pelo contrário, o gênero é parte do que determina o sujeito, como se poderia formular um projeto que preserve as práticas de gênero como lugares de atividade crítica? Se o gênero se constrói através das relações de poder e, especificamente, de restrições normativas que não somente produzem, senão que, ademais, regulam os diversos seres corporais, como se poderia fazer derivar a atividade dessa noção de gênero, entendido como o efeito da restrição produtiva? Se o gênero não é um artifício que se pode adotar ou rechaçar à vontade e, portanto, não é um efeito da escolha, como poderíamos compreender a condição constitutiva e compulsiva das normas de gênero sem cair nas redes do determinismo cultural? Como precisamente podemos compreender a repetição ritualizada através da qual essas normas produzem e estabilizam não somente os efeitos do gênero, senão também a materialidade do sexo? E esta repetição, esta rearticulação, pode também constituir uma oportunidade para reelaborar de maneira crítica as normas aparentemente constitutivas do gênero? (BUTLER, 2011: 14)

Butler vai aprofundar sua investigação a fim de pensar possibilidades indisciplinares de corpos em espaços de determinação coletiva, designados pelo Estado e pela economia de afetos. Se Aloka das Américas dança de cropped, dança nua ou dança de forma esquisita, não se encaixa dentro de um padrão prontamente estabelecido, como passa a ser vista essa performance na rua? Em tempos de cólera para corpos latinoamericanos dissentes, fica difícil encontrar soluções oriundas de uma teoria eurocêntrica aplicada na América do Norte e na Europa para pensar estratégias que saem dos regimes de controle a fim de tensionarem a norma. Queer, na América Latina e na estética do subdesenvolvimento, não é o mesmo que V-I-A-D-A. A resistência da transviadagem na dança de Aloka das Américas se potencializa na própria dúvida e em certa ambiguidade que constitui a dissidência do corpo nos vídeos da internet e na rua. É possível esse corpo dançar? É possível politizá-lo chamando-o de 89


queer? Em contexto sudaca de mortes e assassinatos cotidianos, de uma homolesbotransfobia intrínseca aos poderes de herança patriarcal, a naturalização das violências institucionais convive com as apropriações que a resistência LGBTQ latinoamericana faz de teorias estrangeiras. A artista e intelectual chilena Hija de Perra, cujo nome poderia ser traduzido como “filha da puta”, aponta a fragilidade da solução queer num território de bichas sudacas quando desvela a relação de mais valia estabelecida com as teorias que vêm de fora e a desvalorização da resistência local. Compreendemos que não é o mesmo dizer na América Latina teoria bicha e dizer teoria queer, que por fim esse enunciado de fonética mais esnobe ajuda a que não exista suspeita a que se ensine essa sabedoria em instituições e universidades, sem provocar tensões e repercussões ao estigmatizar esse tipo de saber como bastardo. [...] Podemos desfrutar do shopping queer em nossas latitudes? (PERRA, 2015: 6)

A metáfora de Perra brinca com o contexto de consumo para expor a obviedade de que a teoria queer não é uma novidade na América do Sul, muito menos uma garantia de salvação para o cenário caótico de violência em que se encontram os corpos LGBTs. A crítica da pesquisadora chilena, falecida em 2014, infunde uma intensa reflexão aos nossos

fazeres

subalternos

do

sul,

fazendo-nos

pensar

em

epistemologias

descolonizadoras, que partam mais de nossas práticas e sobrevivências do que de reflexões oriundas do fluxo histórico da filosofia eurocêntrica. Entretanto, são inegáveis as possíveis contribuições de Butler aos avanços epistemológicos no debate das dissidências de gênero. A questão de Perra, ao problematizar o “shopping” em terra sudaca, reitera contextos como o brasileiro no momento em que está mais interessada na experiência dos corpos que vivem no sul. Por isso não desvaloriza a contribuição queer, apesar de criticá-la. Esta posição diz respeito, sobretudo, à resistência secular impingida aos corpos indóceis diante do conjunto de instituições higienizadoras e assassinas. Portanto, não há shopping a ser desfrutado por quem sequer foi incluído nesse projeto de existência. Ser um corpo dissidente na América Latina não cabe no papel. Figura 6

Figura 7

Dançar na rua fora dos regimes de legitimação, por exemplo, não cabe. Acontecimentos de dança na rua, gravados e construídos como experiências estéticas de 90


vídeo para internet aproximam o projeto Aloka das Américas do pensamento de Perra na medida em que contrariam os objetivos de função e utilidade nos dispositivos, desmontando princípios falologocêntricos sobre os corpos não normalizados. Ao aproximar a linguagem da videodança contemporânea das teorias queer e viadas, bem como das práticas marginalizadas do eixo sul-americano, Aloka desestabiliza sincronias e relações de causa-efeito entre gênero e sexo nos processos de criação de dança para a tela, evidenciando um corpo que não pode ser lido objetivamente. E, mesmo que não priorize uma definição enquanto prática dissidente, acaba por se deparar com aquilo que Butler nomina de erro ou desvio à norma de gênero, implantando dúvidas de performatividade: afinal, Aloka seria um homem, uma bicha, uma mulher? Quando surgem essas dúvidas identitárias, o corpo em movimento também está implicado. Assim o acontecimento de uma dança que se opõe às normas sobre a existência provoca experiências lacunares, questionando o lugar-comum das classificações. Ao dialogar com Butler, proponho em Aloka das Américas uma falência epistemológica das classificações sobre meu corpo. Grande parte do meu trabalho se dedica a compreender o que frases como "ser uma lésbica" possam significar. Sim, sou chamada assim, e chamo-me assim em algumas ocasiões, mas não estou certa de que a expressão me descreva no nível do ser! De fato, eu me preocupo com aqueles momentos nos quais o discurso tem o poder de estabelecer "o que eu sou" ou "o que você é" - esperamos que nossos desejos e vidas permaneçam, de algum modo, sem serem capturados por esse tipo de discurso. (BUTLER, 2016: 48)

Portanto, Aloka das Américas não é apenas a viada brasileira que dança na rua a fim de levantar questionamentos sobre o corpo que dança. Aloka acumula uma infinitude de experimentos e experiências. E independe, em seus experimentos, da compreensão ou mesmo legitimidade oriunda de um olhar disciplinar e sociável. Aliás, Aloka não se resume à sua viadagem ou à dança. É um acontecimento e varia segundo a dinâmica das relações corpo-câmera no ambiente onde as performances se dão e nas subsequentes implicações da videodança no ciberespaço da web. A experiência estética do corpo dançante se mantém inclassificável pela própria condição não reprodutiva em que se colocam os experimentos amadores em videodança. Não há uma categoria totalizante para a estética proposta. 2. Videodança dissidente e marginal: a transformação de uma linguagem Os processos de criação em videodança expostos na web 2.0 são atravessados hoje por condicionantes técnicas e culturais que a videodança não alcançou no século XX. Em 91


que medida isso pode ser um estímulo das atuais condições de produção, tão imersas na cultura centralizadora do entretenimento, ou apenas uma estratégia pouco debatida dentro das práticas artísticas onde as imagens em movimento se destacam? A pesquisadora Paula Sibilia visualiza o processo tecnológico como intervenção cabível nessa subjetividade, que busca diferentes estratégias de criação. Atualmente tais estratégias estariam culturalmente mais próximas do entretenimento, da internet e da exposição da intimidade em vídeos e diários abertos. Como isso, então, modificaria a expressão fílmica/artística da videodança e esse corpo que dança na internet? Ou para além disso, como tais circunstâncias interfeririam numa estratégia de confrontar os estatutos burgueses da arte no universo da videodança a partir de iniciativas sudacas, marginais e viadas? Sibilia discute blogs e redes sociais na web, mas seu debate pode ser estendido às experiências em videoarte, visto o atravessamento da cultura audiovisual pela intimidade e espetacularização do “eu” nas duas décadas de anos 2000. Entretanto, não se trata de meras “evoluções” ou adaptações práticas aos meios tecnológicos que apareceram nos últimos anos. Se observarmos todas essas mudanças sob uma nova luz, o que está acontecendo ganha o perfil de uma verdadeira mutação: em nosso espetacularizado século XXI, o jogo dos espelhos complicou-se inexoravelmente, Em vez de reconhecer na ficção da tela – ou da folha impressa – um reflexo da nossa vida real, cada vez mais avaliamos a própria vida “segundo o grau em que ela satisfaz as expectativas narrativas criadas pelo cinema”, como insinua Neal Gabler, em seu provocador estudo sobre os avanços do entretenimento e da lógica do espetáculo. Valorizamos a própria vida em função da sua capacidade de se tornar, de fato, um verdadeiro filme. (SIBILIA, 2008: 49).

Partindo desse pressuposto, de que a experiência fílmica (ou de imagens em movimento) é a experiência narrativa contemporânea de maior ênfase tecnológica e social, a relação do cinema com o ciberespaço se coloca em coalizão nos processos criativos em videodança, revestindo-se pela convergência de forças oriunda tanto da expansão digital dos dispositivos cinematográficos (com os quais se dão processos criativos em vídeo) quanto das heranças culturais (o acúmulo de referências dos dispositivos anteriores). Segundo Sibilia (2003: 87), “as novas configurações corporais da era pós-industrial inspiram-se no modelo da informação digitalizada”. Ou seja, a relação corpo-câmera da videodança torna-se informação na internet. O surgimento da dança para a tela, ligado às tentativas do cinema experimental em câmeras populares de 16 mm e às tecnologias analógicas posteriormente mais acessíveis (VHS, por exemplo), estava diretamente relacionado às experimentações do corpo na linguagem do vídeo, extrapolando as possibilidades do cinema narrativo até então consolidado (PARENTE, 2011). A videodança construiu cenários, situações e 92


movimentos impensados para corpos e para a própria câmera. Em pesquisa histórica sobre o desenvolvimento desse formato, Luciana Ponso (2013) atenta para a experiência de “dançar o impossível”, originada pelas condições tecnológicas dos dispositivos cinematográficos. O “impossível” como parte dos novos paradigmas onde a dança e o cinema modernos se encontraram: Dançar o impossível é uma expressão usada por Lisa Kraus (2005) para designar o que raramente é possível ser visto no palco: coreógrafos, cineastas e artistas de mídia trabalhando com cinema e vídeo para desafiar a gravidade, criar mundos imaginários, multiplicar bailarinos, criar grafismos, acelerar e ralentar movimentos. Dançar o impossível designa o que a tela autoriza à dança: trânsitos impossíveis entre as relações espaço-temporais. Podemos estender essa expressão ao diálogo entre dança e tecnologia para além da relação dança e cinema: o uso cênico de projeções, o uso de softwares ao vivo, espetáculos que acontecem simultaneamente em lugares distintos são exemplos do que a dança vem utilizando para se constituir no cenário cultural vigente [...] por meio de uma obrigatória e mesma condição: a relação corpo-câmera. (PONSO, 2013)

A relação corpo-câmera foi fundamental para estabelecer outro tipo de corpo dançante, não mais limitado pelo espaço ou pelo olho humano. “Nos filmes de dança é possível observar imagens de dança que não podem ser vistas no palco, dialogando com o local escolhido para filmagem, os pontos de vista definidos pelo olhar da câmera, os cortes e os efeitos de edição apresentam uma nova narrativa do tempo” (ACOSTA, 2012: 27). Assim, pensar a dança na tela é pensar a relação corpo-máquina estabelecida pelas imagens em movimento desde a ascensão dos dispositivos cinematográficos a partir do século XIX. “Talvez o diálogo entre movimento e imagem, corpo e câmera, homem e máquina seja a própria poética da dança que é (re)criada na tela” (ACOSTA, 2012: 27). Na atualidade, quando os dispositivos analógicos começam a coexistir com o universo digital, o corpo dançante ganha novas relações com a tela. Pensando no contexto sudaca, que interessa a esta pesquisa, a expansão da linguagem digital sofreu a interseção da dissidência em processos criativos de corpos antes invisibilizados. Os corpos dançantes da web 2.0 são, em grande medida, fenômenos híbridos. De acordo com a pesquisadora e professora Ivani Santana (2006), o empreendimento dualista e cartesiano, que limita as reflexões sobre o fenômeno da videodança, não pensa nas relações interdisciplinares entre arte contemporânea e novas tecnologias. A videodança é um dos pontos de convergência existentes nessa Cultura Digital, assim como outras formas da dança mediada pelas novas tecnologias. Pois então não existem fronteiras, já que não existem mais territórios. Trata-se apenas de emergências dos tempos de agora. (SANTANA, 2006: 8)

93


Por conta da complexidade dos “tempos de agora”, quando as definições escapam às novidades, questionar o projeto estético e político proposto pelos artistas de videodança no ciberespaço é parte do interesse de um corpo dissidente e viado que não se encaixa nas normas gênero/sexo dentro de uma heteronormatividade compulsória e muito menos na legitimação dos espaços consolidados das linguagens da dança e do cinema. Em que medida esses corpos dançantes também não são corpos políticos, e, na tela, projeções de corpos que reagem ao controle? Em que medida não são corpos espetaculares ou espetaculosos, parte das vendas e do comércio na web? “Uma mulher… Um homem? Está louco? O que ele está fazendo? Por que dança desse jeito?”. Ele conta que as pessoas costumam rir e fazer essas perguntas, pois não entendem onde ele quer chegar: “Como se sempre precisássemos chegar a algum lugar. Faz parte do choque com a normalização. Por isso, aloka traz performances que atravessam politicamente questões marginais e dialogam com a estética de subdesenvolvimento na própria arte. Aí poderíamos pegar algumas referências do cinema marginal, experimental e do próprio cinema novo. Nomes como Rogério Sganzerla, Luiz Rosemberg, Glauber [Rocha] e até o pioneirismo da maravilhosa Maya Deren, décadas antes desses caras.” (SCHWARZ, 2016)

A dimensão dos corpos que dançam é política, especialmente quando dançar no ciberespaço pode ser uma alternativa (ou não) às redes de poder que “foram adensando suas malhas nos últimos tempos, em um processo de intensificação e sofisticação dos dispositivos desenvolvidos nas sociedades industriais” (SIBILIA, 2003: 167). Quando estrutura a reflexão sobre a sociedade de controle, Gilles Deleuze (1990) observa que as inovações tecnocietníficas reforçam as relações de poder, cobrindo a “totalidade do corpo social” em formas que escapam até aos corpos mais politizados. Essa totalidade seria o biopoder de que fala Foucault (1981), “um tipo de poder fundamental para o desenvolvimento do capitalismo” (SIBILIA, 2003: 163), em que o objetivo está em fazer as forças do tecido social crescerem, canalizando-as à produtividade. Quando interligamos essa reflexão com o caráter tecnocientífico com que surge a linguagem do cinema, não fica difícil prever a desigual “queda-de-braço” que faz surgir a estética da fome no Cinema Novo brasileiro ou mesmo a revolução do cinema marginal durante as décadas de 1970 e 1980. Os países do sul, ou do cu, os países S-U-D-A-C-AS talvez nunca consigam ultrapassar essa condição verticalizada de uma linguagem como o cinema, que nos foi apresentado dentro de idealidades e códigos reproduzíveis, para os quais deveríamos seguir em direção. Em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Paulo Emílio Sales Gomes descreve esse abismo, talvez de forma pessimista. O cineasta sudaca lido em posição europeia ou norte-americana:

94


Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes. (GOMES, 1996: 85)

Por isso, a proposta de politizar o corpo que dança na web dialoga com o surgimento da própria videodança no cinema experimental e analógico de Maya Deren, em que o corpo dançante adquiriu possibilidades oníricas, inverossímeis e inimagináveis nos novos espaços-tempo do vídeo. Deren representou a resistência de um cinema incompreendido na década de 1940 nos EUA. Ao avançar com a estética experimental dos filmes em 16mm, caracterizada pela produção em baixa qualidade, Deren se aproxima da condição dos cineastas do sul, propondo outros cinemas. O curioso é que desta proposição surgiu o paradigma da videodança na história do cinema, afastado do conjunto de relações mainstream e do cinema linear-narrativo (forma-cinema, segundo André Parente) assim concebido como entretenimento: o star system. Tal condição de surgimento da videodança se relaciona na própria episteme da dança enquanto arte, pois a relação corpo-câmera abandona a linearidade das narrativas falogocêntricas para tensionar o corpo enquanto metáfora de um pensamento. No caso de Aloka das Américas um pensamento marginal que ritualiza novas operações de subjetividade no espaço público. Neste ponto, entra-se em debate com a reflexão de Alain Badiou, alicerçada nas asserções de Nietzsche sobre corpo e dança em Assim Falou Zaratustra. “O corpo dançante, tal como ele advém no sítio, tal como se espaça na iminência, é um corpo-pensamento, jamais é alguém” (BADIOU, 2002: 87). Pelo contrário, pensando nesta pesquisa, a ideia da viada e subdesenvolvida são construídas no ciberespaço para problematizar, sim, o corpo dançante como “alguém”, forjando uma identidade para o corpo cibernético. Entretanto, esta subjetividade é atravessada pela própria condição epistemológica da interseção entre dança e filosofia, por isso não está interessada numa classificação definitiva do sujeito. A condição estética, política e filosófica do corpo dançante transborda as representações. Tal diálogo coloca a videodança no ciberespaço, por consequência, como uma linguagem de experimentação aberta aos corpos e subjetividades inclassificáveis. Qualquer um pode dançar na internet, se porventura tiver acesso aos dispositivos da vida urbana, como câmeras, celulares e a rede mundial de computadores, assim como qualquer corpo pode dançar nas cidades, apesar de comumente não fazê-lo; diante de coerções numa sociedade de controle. Por isso Aloka das Américas dança, a fim de agir 95


diante de sua própria condição marginal, que a impede de tornar visíveis as contestações à normalidade do corpo no espaço urbano. Segundo o filósofo Alan Badiou, dançar é metáfora do pensamento quando constitui uma ruptura com a mimese e a representação, nas indisposições do corpo com sua reprodutibilidade. É esquecimento, porque é um corpo que esquece sua prisão, seu peso. É um novo começo, porque o gesto da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo. Brincadeira, é claro, pois a dança liberta o corpo de qualquer mímica social, de qualquer coisa séria, de qualquer convenção (BADIOU, 2002: 80)

Considerações A ideia de uma videodança dissidente em contexto sudaca traz novos debates para a linguagem consolidada historicamente, permitindo avanços e tensões em torno do conjunto de legitimações que a interseção dança-cinema produziu nas últimas décadas. Aloka das Américas é uma experiência amadora, que permite visualizar na marginalidade mesma de sua produção a carência de vínculos com o mercado e com as representações máximas de gênero e classe, contrariando a fundamentação de que a arte precise de lugares bem estabelecidos para reconhecimento entre os pares. Aloka não busca reconhecimento, ou categorias, mas, sobretudo, dissidências, adotando a estética amadora permitida pelo acesso a novas tecnologias num constante eixo de atualização entre dançar e “viralizar” o corpo em movimento na rede mundial de computadores. É possível que desta experiência partam classificações, mas dificilmente elas totalizariam a experiência do corpo que dança. Visualizando modos de subjetivação que atravessam politicamente a normalidade dos corpos, a dança dissidente e aloucada na web é uma forma de conjecturar quais padrões a arte contemporânea estabeleceu para as linguagens no século XXI. Para pensar também quais as ressignificações possíveis de um corpo que dança. “Aloka das Américas é alguém que dança por aqui, num país da América do Sul, não dança na Europa, e que dança por corpos fora das expectativas de gênero, levantando comentários e criando dúvidas em quem vê.” (SCHWARZ, 2016). Se é uma videodança, entretanto, a experiência de Aloka não é categorizável em utilidade ou finalidade de vídeo. É uma experimentação em fluxo, que pode ter seu fim imprevisto diante do caráter evanescente que adota para lidar com as tensões constantes oriundas da normatividade de afetos e políticas entre corpos. “Alok, sem o ‘a’, é uma expressão bastante usada na internet, que, inclusive, adotei no cotidiano para me referir a situações sobre as quais não tenho uma opinião formada, me restando rir ou chegar a conclusões absurdas. A estética do riso, do absurdo e da contemplação. Essa noção de diferença vem na forma da brincadeira, do reconhecimento da loucura cotidiana, quando corpos não se encaixam em padrões. E hoje me considero

96


cada vez mais distante deles, como pessoa não-binária (genderqueer) que ocupa a rua para dançar quando bem entende. Nesse sentido, sou aloka que dança. E aí resolvi acrescentar o ‘a’ no alok porque imaginei que nem todo mundo entenderia a expressão. Na verdade, ainda estou decidindo se usarei alok ou aloka, pois esse é apenas o início do processo. Imagino vida longa para o projeto, mas nunca se sabe, também pode acabar a qualquer momento”. (SCHWARZ, 2016)

Referências bibliográficas ACOSTA, Antonieta. Dança e Cinema: algumas aproximações. In: Gambiarra. Revista dos Mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comtempôraneos das Artes, n. 4, 2012. AMATE, Tiago. Autoficção na narrativa cinematográfica: meio século entre Truffaut e Xavier Dolan. 2016. Monografia (Graduação em Cinema e Audiovisual) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Artes e Comunicação Social, 2016. BADIOU, Alain. Pequeno Manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. BASTOS, Dorotea Souza. Mediadance: campo expandido entre as danças e as tecnologias digitais. 168p – Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2013. BENTO, Berenice. Queer o quê? Ativismo e estudos transviados. Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p. 20-14, 15 jan, 2016. BESSA, Karla. A teoria queer e os desafios às molduras do olhar. Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p. 25-31, 15 jan, 2016. BUTLER, Judith. A filósofa que rejeita classificações.Publicação: 15 jan, 2016. São Paulo: Revista Cult, nº 6, ano 19, p. 46-50, ed. Especial. Entrevista concedida a Carla Rodrigues. BUTLER. Judith. Bodies that matter. On the Discursive Limits of "Sex".New York: Routledge, [1993], 2011. Tradução: GUADALUPE, Magda. MURILO, Sérgio. Corpos que importam.SapereAude– Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.12-16. CASTRO, Suzana. Queerificando Antígona. Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p.16-19, 15 jan, 2016. COLLING, Leandro. O que perdemos com os preconceitos? Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p. 38-41, 15 jan, 2016. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. 1.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. GOMES, Paulo Emílio Sales Gomes. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Vol.1 JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Pedagogia do armário.Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p. 42-45, 15 jan, 2016. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. LOPES, Guacira Louro. Uma sequência de atos. Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p. 12-15, 15 jan, 2016. MISKOLCI, Richard. Uma outra história da república.Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p. 35-37, 15 jan, 2016. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

97


PARENTE, André. Cinema em trânsito: Cinema, arte contemporânea e novas mídias. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. PARENTE, André. Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. PERRA, Hija. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Revista Periódicus, Universidade Federal da Bahia, Salvador, v. 1, n. 2, 8 págs.,novembro, 2014. PONSO, Luciana Cao. Formas de pensar o impossível - um salto do cinema de 1930 à videodança. 136p – Dissertação de Mestrado Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013. RODRIGUES, Carla. A política do desejo. Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p.32-34, 15 jan, 2016. SANTANA, Ivani. Esqueçam as fronteiras! Videodança: ponto de convergência da dança na Cultura. Digital. In: Dança em foco. Dança e Tecnologia. Org.: P. Caldas, L.Brum. RJ: SCHARWZ, Dally. Deu aloka! Texto publicado na plataforma Ctrl + Alt +Dança. Disponível em:<http://ctrlaltdanca.com/2016/07/31/eixo-do-fora-deu-aloka/ >. Data de acesso: 24/10/2016. SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Ed. RelumeDumará, 2002. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. TIBURI, Marcia. Judith Butler: Feminismo como provocação.Revista Cult, nº 6, ano 19, ed. Especial. São Paulo, p. 9-11, 15 jan, 2016.

Videografia consultada: AMATE, Tiago. Lua em capricórnio. Aloka das Américas. Acessado em: 24/10/2016. Disponível em: <https://vimeo.com/151603734>. AMATE, Tiago. KOQUERO! Aloka das Américas. Acessado em: 24/10/2016. Disponível em: <https://vimeo.com/175795142>. AMATE, Tiago. Festa, sombras. Aloka das Américas. Acessado em: 24/10/2016. Disponível em: <https://vimeo.com/157659943 >. AMATE, Tiago. Itacoa balance. Aloka das Américas. Acessado em: 24/10/2016. Disponível em: <https://vimeo.com/157054442 >. AMATE, Tiago. K. lor✹. Aloka das Américas. Acessado em: 24/10/2016. Disponível em: <https://vimeo.com/149321342 >.

Lista de figuras: Figura 1: Tiago Amate em Lua em capricórnio Figura 2: Tiago Amate em Lua em capricórnio Figura 3: Print do perfil de Tiago Amate no Vimeo Figura 4: Projeto Cem lugares para dançar Figura 5: Projeto Cem lugares para dançar Figura 6: Tiago Amate em KOQUERO! Figura 7: Tiago Amate em KOQUERO!

98


E – TRANSBORDANÇA: INTERSEÇÕES ENTRE DANÇA, POLÍTICA E CINEMA NO CIBERESPAÇO DA WEB Elisson Tiago Barros Amate (UFBA) RESUMO: Como as experiências políticas dos corpos dançantes têm alcançado o ciberespaço da internet? Ao investigar interseções de linguagem entre cinema e dança para produções da web, pretende-se destacar processos criativos que assinalam a dança como testemunha da política, da vida e da experiência. A transbordança surge nessa identificação de experiências dialógicas em dança e política que recusam a relação figurafundo da arte panfletária. Como conceito, a transbordança transborda a experiência em dança, na medida em que se relaciona com outros dispositivos e linguagens a fim de provocar proposições estético-políticas tanto no espaço público quanto na internet. Assim, multiplicam-se as telas da relação corpo-câmera quando os corpos dançantes estão simultaneamente nas ruas, em dispositivos portáteis como celulares e na rede mundial de computadores. A partir das reflexões de Marina Guzzo no artigo Arte, Dança e Política, este texto analisa três diferentes projetos de videodança para a internet: 100 lugares para dançar, Une minute de danse par jour e Aloka das Américas. PALAVRAS-CHAVE: transbordança; videodança; arte; política; dispositivos ABSTRACT: How does the political experiences of dance bodies have reached the cyberspace of the internet? Investigating the intersections of language between cinema and dance for web productions, it purposes to draught creative processes that signalize dance as a witness of politics, life and experience. The concept of transbordança (a brazilian neologism) arises in this identification of dialogical experiences in dance and politics that refuse the relation figure-fund in pamphleteer art. As a concept, transbordança overrun the experience in dance, in the means that relates itself to other devices and languages to raise aesthetic-political propositions in the public space and internet. In this way, the screens of the body-camera’s relation multiply itself when the dancing bodies are simultaneously on the streets, on portable devices such as cell phones and in the world wide web. From Marina Guzzo's reflections on the article Art, Dance and Politics, this text analyzes three different videodance projects for internet: 100 lugares para dançar, Une minute de danse par jour and Aloka das Américas. KEYWORDS: transbordança; videodance; art; politics; devices Ao observar o contexto de expansão tecnológica na internet com o advento de complexas e velozes cadeias de produção de conteúdo para websites, plataformas de vídeo e redes sociais, esta pesquisa tem o objetivo de analisar investigações em videodança, linguagem histórica de uma impossibilidade dançada (PONSO, 2013), que têm adotado o ciberespaço da internet (LEVY, 1999) como resultado final de seus processos criativos, a fim de potencializar politicamente corpos dançantes e suas percepções contemporâneas (SUQUET, 2011) no espaço público. Para tanto, há de se pensar nas interseções entre as linguagens da dança contemporânea, do cinema

99


experimental; de dispositivo (PARENTE, 2007) e da internet nas proposições estéticopolíticas dos artistas investigados. Uma apropriação política da dança, nesses termos, é o que permeia a atitude geral dos trabalhos analisados neste artigo e, ademais, segundo a pesquisadora Marina Guzzo (2015), caracterizaria o discurso da dança contemporânea hoje. “Ou seja, uma atitude situada a partir de seu próprio ponto de vista da realidade, com um engajamento crítico nas maneiras de fazer dança, são características presentes nessa forma de arte” (GUZZO, 2015, p. 4). Interessa, entretanto, não só a disposição política das performances e danças que alterem e reflitam maneiras de entender o mundo (GUZZO, SPINK, 2015), mas aproximações de múltiplas linguagens que constituem essa dança filmada para a internet. Este corpo que dança para redes sociais ou canais de vídeo, dança com uma câmera para depois se transformar em imagem em movimento, ocupando telas de dispositivos celulares e/ou computadores. A proposição de Marina Guzzo (2015) no artigo Arte, dança e política(s) propõe uma base teórico-crítica para pensar as relações entre dança e política no cenário de arte contemporânea, conectando-se, por conseguinte, à proposta interdisciplinar desta pesquisa em vídeos de dança no ciberespaço da web. Transbordança surge desta amálgama, numa tentativa de apontar caminhos em dança contemporânea oriundos das relações que transbordariam dança, corpo e movimento, partindo para telas e páginas da internet. Mas, sobretudo, para a construção de discursos políticos que ocupam a cidade a partir dessas danças, apontando o corpo como direito fundamental de ocupação do espaço público e de produção de arte urbana. Neste sentido, é uma proposição que também aproxima a dança dos estudos contemporâneos da performance (PHELAN, 1997), entretanto, sem condensá-los, pois a performance adentra questões ontológicas a partir de uma relação oposta à reprodutibilidade. Nesta pesquisa, porém, o interesse de investigação está especificamente num corpo dançante que se relaciona com as câmeras e o ciberespaço da web, portanto, com a reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1975). E é este corpo em vídeo, transformado em imagens em movimento, que propõe tensões políticas com o Estado em suas diversas estratégias sociais de controle, ao reiterar seu ato de resistência em relação aos dispositivos (DELEUZE, 1999), convidando, então, outros corpos para dançar no espaço público, seja institucional ou não (rua). Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contrainformação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. [...] A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é — e ela o é por natureza —

100


ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contrainformação só é efetiva quando se torna um ato de resistência. Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. (DELEUZE, 1999: 12, 13)

Se pensada enquanto resistência, a experiência de dançar para a câmera tensiona os imbróglios do controle social na medida em que estes atravessam historicamente a linguagem audiovisual tanto nas interseções com a dança quanto nas variações de formatos na web. Mas não só, as videodanças analisadas nesta pesquisa são experimentos de resistência de vida, dos corpos em relação aos dispositivos (DELEUZE, 1999). “A resistência na arte tampouco é uma forma metafórica para expressar um sentido físico de resistência. Ela implica designar a relação íntima entre uma obra de arte e uma ideia política” (GUZZO, 2015: 11), visto que uma tensão entre estas é o que cria proposições e organizações para o mundo. O conceito de transbordança acompanha, então, a proposta política de Guzzo (2015) em dissonância às formas de arte panfletária, pensadas neste artigo sob a forma de dança-panfleto: “como figura e fundo, a arte se desenvolve em uma situação política e histórica específica [...] indica a política como uma forma de manipulação ou inspiração para a obra” (GUZZO, 2015, p. 4). Na dança-panfleto, a metáfora figura-fundo coloca a relação de dança e política em termos de plano de fundo ou de forma e conteúdo. A ideia de um artista que, por exemplo, dança por uma causa ou cuja causa faz a dança, numa espécie de mimese/representação. Na transbordança, em contrapartida, as experiências do corpo dançante seriam, a priori, imprescindíveis para pensar diálogos com a política. “A arte como testemunha narrativa da política, da vida e da experiência. [...] arte e a política estariam relacionadas pelas formas narrativas e discursivas de estar no mundo, uma como testemunha da outra, em processos de dialogia e coconstrução” (GUZZO, 2015, p. 4). Segundo Guzzo, nesse formato, as construções são dialógicas e performáticas, caracterizando-se politicamente não pelas mensagens transmitidas ou pela representação de estruturas sociais (RANCIÉRE, 2005), mas por uma criação de novos espaços-tempo, que se rompem ou se conformam com outros. Isto daria visibilidade a formas de ocupação do espaço por meio da dança, tanto pelas funções de reunir quanto de isolar um corpo político, em constante dialogia na rua. Afinal, a experiência estética de dançar fora de espaços consolidados pela burguesia enquanto circuito de entretenimento produz 101


vertigens. O corpo que dança se vê então, no cotidiano, próximo ou solitário, visível ou invisível, benquisto ou odiado. Entende-se esta proposta de afetação em Guzzo (2015) na medida crítica pensada por Walter Benjamin acerca das possibilidades de uma arte contemporânea atravessada por poderosos avanços tecnológicos no século XX. Da chapa fotográfica, pode-se tirar um grande número de provas; seria absurdo indagar qual delas é autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear no ritual, ela se funda, doravante, em outra forma de práxis: a política (BENJAMIN, 1975, p. 17)

Configurando formas distintas de entender a relação entre política e arte historicamente, o conceito de transbordança se fundamenta como um desses canais de evidência estético-política das obras investigadas. Está presente, portanto, em processos cuja dança transborda de si mesma, seja por um acontecimento no espaço público ou pelas ressignificações da dança com outras linguagens. Afinal, é tanto uma dança na rua, imprevisível pela própria condição, quanto uma videodança que está na internet convidando o espectador a dançar e ocupar a cidade. Se o convite for aceito ou compreendido como tal, a dança transborda mais uma vez, produzindo redes de corpos dançantes no ciberespaço. Este termo “especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” (LÉVY, 1999: 17). Portanto, se há acontecimentos na rua, há, obviamente, acontecimentos na web, visto que experiências estético-políticas também estão em telas de computadores. O corpo dançante na web não está isolado, mas dando-se a múltiplas e possíveis relações. Pensada num esquema de retroalimentação política, a transbordança torna-se um conceito que produz canais de articulação em dança contemporânea na internet, no contexto de uma ciberdança. Mais especificamente, de uma dança que se dá no ciberespaço da web: “a ciberdança é um exemplo de obra híbrida eletrônica, constituída do encontro entre as cibertecnologias e a arte da dança” (PIMENTEL, 2000: 172). Observando as variáveis dessa proposição interdisciplinar entre linguagens, a pesquisa se encaixa, finalmente, no universo dos processos criativos e configurações em dança, relacionando-se às interações políticas e às interfaces da dança contemporânea com os dispositivos de poder consolidados pelo Estado, pela economia, pelos conhecimentos científicos e pela tecnologia. A proposta de analisar três páginas de diferentes artistas se evidencia no interesse de apontar algumas variações estabelecidas nesta relação corpo-câmera-internet dentro 102


da noção política de transbordança. Como cada canal selecionado produz uma variedade extensa de vídeos, a análise recai sobre o projeto estético-político dos artistas, atravessando um panorama que permeia o conjunto da obra de cada um. Nos dois primeiros projetos, a proposição teórico-metodológica se relaciona com as interseções do cinema de dispositivo no ciberespaço e um pensamento em dança contemporânea, utilizando-se de métodos de coletas de dados específicos da internet, com a reunião de hiperlinks, entrevistas, materiais videográficos, etc. Outro método imprescindível é a análise fílmica das obras e do contexto de sua produção. A arista-pesquisadora Marina Guzzo retorna a esta investigação com o projeto 100 lugares para dançar, que reúne uma centena de videodanças num website específico do canal. Constitui-se em planos-sequência (em sua maioria, não há cortes) filmados com várias pessoas dançando por pontos diversos das cidades de Santos, São Paulo e Rio de Janeiro, numa duração de pouco mais de um minuto, cada. A coletânea de experimentos propõe danças que ocupam variados espaços da cidade, reiterando questões que atravessam a exclusão dos indivíduos dentro dos projetos urbanísticos das metrópoles. “A falta de espaços coletivos e de possibilidades de posicionamento gera [...] incerteza, insegurança e falta de garantia, [...] gera um impedimento a que haja encontros” (GUZZO, 2015: 6). Segundo a pesquisadora, se as pessoas não correm os riscos necessários para que uma ação política ganhe força, os engajamentos civis desaparecem.

Imagem 1

Imagem 3

Imagem 2

Imagem 4

103


Imagem 5

A decorrência de tal fragmentação da coletividade, o espaço urbano reverbera isolamentos sobre os corpos. Em 100 lugares para dançar15 os espaços se tornam infinitos e aos mesmo tempo vazios (cem lugares ou sem lugares?). Assim, os experimentos em vídeo que transbordam para a internet projetam a (im)possibilidade de recriar presenças em espaços cujos contextos especulativos são a norma, convidando a ocupações cotidianas, sem torná-las úteis a algum propósito que não a resistência dançante. Se não há utilidade no corpo que dança, o sentido de não encerrar as performances numa informação reconfigura as ideias daquilo que é estar numa rua, numa escada, numa praia. Quaisquer lugares são lugares para dançar. Num tom por vezes irônico e pueril, Guzzo brinca com o pressuposto de impossibilidade para dançar na rua, com as ausências na pressa diária, com a carência de relações entre os corpos da metrópole, provocando danças que escapem à mimese social cotidiana. E, se “a dança é o que suspende o tempo no espaço” (BADIOU, 2002: 84), ela precede um nome ou uma inscrição para o acontecimento, precedendo também a noção de tempo na marcação numérica dos dias em relógios e dispositivos eletrônicos que atribuem sentido à especulação nas metrópoles. É esquecimento, porque é um corpo que esquece sua prisão, seu peso. É um novo começo, porque o gesto da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo. Brincadeira, é claro, pois a dança liberta o corpo de qualquer mímica social, de qualquer coisa séria, de qualquer convenção (BADIOU, 2002: 80)

“Trata-se de um estudo de improvisação, no qual a superfície do corpo - feita das roupas, das cores e dos cabelos - contorna a dança que é concebida no instante da sua execução. É do encontro com as pessoas, prédios, muros, barcos, [...] ruínas e sonhos que essa dança desvenda a cidade. [...] Lugares onde o corpo (des)especula [...] e se dissolve entre a memória do futuro e o risco do passado. Como artistas, encontramos a possibilidade de dar visibilidade à contradição da falta de espaços e possibilidades culturais da cidade, em oposição à pujança econômica e especulativa do mercado. Talvez porque somos estrangeiros, talvez porque ainda há muito que conhecer, talvez porque a dança tem espaços impensáveis. Vamos atrás deles, com a câmera e o corpo na mão”. Texto disponível em: < http://100lugaresparadancar.org/100-lugarespara-dancar.> Acesso em: 31/08/2017. 15

104


Se para o filósofo francês Alan Badiou a dança equivale ao acontecimento e precede uma denominação, assim como espaço precederia o tempo, ela também seria metáfora do pensamento quando antecede a nomeação. Um acontecimento que ainda não foi fixado, uma indecisão, um ter e ao mesmo tempo “não-ter” lugar. Assim, o corpo que dança não estaria inscrito, determinado, mas em constante desaparição e reaparição. Numa perspectiva de corpo-pensamento, a outra investigação em videodança que se encaixa na mesma ideia de acontecimento, ao passo que reúne os princípios estéticopolíticos de uma transbordança, é Une minute de danse par jour16 (Um minuto de dança por dia), projeto hospedado na plataforma Vimeo17. Ao concentrar quase 1000 vídeos na web dançando por várias cidades européias, em espaços públicos e privados, urbanos ou não, a artista francesa Nadia Vadori-Gauthier, doutora em Estética pela Universidade Paris VIII, propõe um resgate da sensibilidade cotidiana ao dispor um minuto do dia para a dança, exaltando a experiência do corpo em contraponto ao estado calamitoso de violência por que passa a Europa após as séries de atentados terroristas. No contexto conflituoso em que se encontra Paris, cidade onde reside e filma a maior parte dos vídeos, seu projeto surge em janeiro de 2015, a princípio como uma reação ao ataque terrorista à redação do jornal Charlie Hebdo. Sob o slogan aparentemente publicitário de Je suis Paris (Eu sou Paris), Nadia se opõe às violências reproduzidas desde então na França, como os ataques subsequentes de novembro de 2015 (além dos mais recentes, totalizando dez), posicionando-se contra a violência numa perspectiva cotidiana de dança pela cidade. A configuração dos vídeos tem duração de pouco mais de um minuto em plano sequência (não há cortes entre as sequências de movimento), em experimentos de danças que se relacionam com pessoas, animais e plantas por diversos espaços, desde praias, parques e árvores, até ruas, restaurantes, trens, museus, etc. A priori, os vídeos poderiam ser considerados uma documentação das

“Vous qui suivez mes danses depuis quelques jours, quelques semaines, quelques mois, vous savez combien mon engagement est lié à un certain état de violence du monde et à l'envie d'agir au quotidien, depuis les attentats de janvier 2015, pour une poésie en acte, d'œuvrer pour la vie, pour des solidarités, pour plus de douceur entre les catégories et les corps. Depuis les événements tragiques du 13 novembre 2015, cet engagement est pour moi plus que jamais nécessaire. Mais danser devient très difficile dans ces circonstances. Chaque jour, je ne sais pas quelle danse je vais bien pouvoir faire, mais je pense qu'il faut plus que jamais être ensemble sur des modes sensibles et bienveillants qui accueillent nos diversités. Alors je danse. Je danserai encore aujourd'hui une petite danse de rien, un battement d'ailes de papillon, une goutte d'eau en regard du reste. Je danserai pour nous, pour le monde d'interrelations éthiques dans lequel j'ai envie de vivre. À tout à l'heure. (17/11/2015)”. Texto disponível em: < http://www.uneminutededanseparjour.com/>. Acesso: 31/08/2017 16

17

Plataforma online de hospedagem de vídeos. Endereço eletrônico: < https://vimeo.com/>.

105


performances da artista. Entretanto, como Nadia Gauthier dança para a câmera e seleciona os trechos dos vídeos, a interseção de seus experimentos se dispõe na relação do acontecimento para as telas. Imagem 6

Imagem 7

Imagem 8

Imagem 9

Imagem 10

Imagem 11

Amparada pelo pensamento de Friedrich Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, a artista assina o fim de seus vídeos com a seguinte frase: “Et que l'on estime perdue toute journée où l'on n’aura pas dansé au moins une fois”18. Se os dias são perdidos quando não dançados, talvez seja porque, assim como Zaratustra, Nadia prevê na dança cotidiana o principal enfrentamento do inimigo maior, o espírito do peso ao qual o profeta fictício de Nietzsche alude. “A dança é, antes de mais nada, a imagem de um pensamento subtraído de qualquer espírito de peso” (BADIOU, 2002: 79). Neste caso, o espírito do peso se materializa na violência terrorista e indiferença cotidianas de Paris, suas segregações e contextos latentes. Livre tradução do autor: “E todos os dias serão perdidos quando não tiver dançado sequer uma vez”. Data: 31/08/2017 18

106


Em 2017, seu projeto desencadeou uma residência artística no centro Paris Réseau Dance depois de dois anos consecutivos de experimentação diária. A expansão de Une minute de danse par jour se deu, sobretudo, no ciberespaço, pois os vídeos de Nadia Gauthier circularam inúmeras vezes por redes sociais como o Facebook (onde possui mais de 10.000 seguidores que acompanham suas publicações) e por plataformas como o Vimeo. Além da perspectiva estético-política de ocupação dos espaços urbanos e reconfiguração das relações cotidianas, as performances cotidianas da artista francesa se inserem no universo da transbordança sobretudo no momento que ela pede ao público de seus vídeos que compartilhe experiências diárias de dança, filmadas em casa ou na rua. Nessa perspectiva, a ideia da rede de corpos que dançam na internet se aprofunda para dar vazão aos ruídos de resistência a que alude o filósofo Gilles Deleuze, quando fala prioritariamente do cinema em O ato de criação: “a arte é aquilo que resiste [...]. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo” (DELEUZE, 1999: 13). Internacionaliza-se também, na medida em que uma vasta diversidade de público assiste a Nadia Gauthier e compartilha publicamente vídeos de dança. Tal façanha representa no ciberespaço os inúmeros corpos espalhados pelo mundo a reconfigurar as relações cotidianas e urbanas a partir da dança. Ao trazer para o debate os caminhos da internacionalização dos corpos via ciberespaço, seja pelo contexto da globalização, seja pelas redes de resistência que subtraem do consumo suas formas de controle, chegamos ao ponto em que a transbordança aponta para outros formatos de dança em suas interseções tecnológicas. Quando apresenta sua pesquisa Formas do dançar o impossível: um salto do cinema de 1930 em direção à videodança, a brasileira Luciana Ponso alerta para os paradigmas originários da linguagem intercedida entre a dança e o cinema, ao descrever as transposições para a tela de ações que se tornam acontecimentos visuais, por vezes impossíveis de serem executadas apenas pelo corpo, em suas limitações espaciais. Se tal perspectiva evidenciada pela montagem cinematográfica, como faz Maya Deren no visionário Meshes of the afternoon (1943), expande os processos criativos na relação corpo-câmera, quando isso alcança o ciberespaço, a partir da ciberdança, os experimentos ganham novas possibilidades de enredamento: há vários corpos dançantes conectados entre si, produzindo resistência na web.

107


Dançar o impossível designa o que a tela autoriza à dança: trânsitos impossíveis entre as relações espaço-temporais. Podemos estender essa expressão ao diálogo entre dança e tecnologia para além da relação dança e cinema: o uso cênico de projeções, o uso de softwares ao vivo, espetáculos que acontecem simultaneamente em lugares distintos são exemplos do que a dança vem utilizando para se constituir no cenário cultural vigente [...] por meio de uma obrigatória e mesma condição: a relação corpo-câmera. (PONSO, 2013: 11)

Levando em consideração não só as autorizações do cinema à dança, mas a potência que adquire a linguagem cinematográfica com as experiências em dança contemporânea, é imprescindível ressaltar o abandono da forma-cinema ou do discurso hegemônico engendrado historicamente sobre esse dispositivo (PARENTE, 2007). Reconsiderando formas de fazer, pressupõe-se que, nas interseções da transbordança, o projeto estético-político do corpo que dança não está interessado em reproduzir um discurso narrativo e linear da forma-cinema, e, muito menos, em fundar-se numa estética representacional da dança. Não há respostas fixas que determinem esse fazer fílmico ou a experiência do corpo que dança. O que há na transbordança são vestígios de imagens em movimento que transbordam a relação ao vivo do corpo-câmera para as telas da web, expandindo as redes que começam na experiência de dançar. Abandonam-se hierarquias entre as linguagens: “a videodança é um dos pontos de convergência existentes nessa Cultura Digital [...]. Pois então não existem fronteiras, já que não existem mais territórios. Trata-se apenas de emergências dos tempos de agora” (SANTANA, 2006: 8). Dito isto, o terceiro objeto de análise neste corpus é o projeto do autor deste artigo, que idealizou o canal de videodança Aloka das Américas19. Partindo metodologicamente da prática baseada como pesquisa, pretende-se expor os percursos do processo criativo de Aloka, a fim de identificar possíveis estratégias dentro das configurações em transbordança, contribuindo às relações do canal com os projetos de 100 lugares para dançar e Une minute de danse par jour, bem como suas respectivas relações entre arte e política. “Na pesquisa baseada na prática, o artefato criativo é a base para a contribuição ao conhecimento” (FERNANDES, 2013: 24). Ao analisar os experimentos de Aloka, oriundos da interseção das linguagens de dança-cinema no ciberespaço, e as relações com os princípios estético-políticos em evidência, pressupõe-se uma aproximação mais contundente sobre o saber-fazer do processo de criação em dança para a web.

19

Projeto do autor Tiago Amate hospedado na plaraforma de vídeos Vimeo. Disponível em: < https://vimeo.com/alokdasamericas>. Acesso em: 31/08/2017

108


Nesta investigação20, que se relaciona aos princípios estéticos e filosóficos do dadaísmo21 e às experiências anarquistas como a zona autônoma temporária22, produzi vídeos em baixa qualidade de imagem, com câmeras variadas, especialmente de celular, ao dançar por espaços públicos e privados em cidades brasileiras. A idéia também se remete a potência do discurso contemporâneo de dança quando aponta para a dança de qualquer corpo dançante, não visando mais às hierarquias históricas de quem pode ou não pode dançar. A configuração dos vídeos se dá a partir de uma montagem anterior, com vários recortes das cenas previamente filmadas. E, a priori, pretende-se experimentar com essa montagem, desafiando os princípios métricos, lineares ou documentais da interseção do cinema com outras linguagens. A exibição também culmina em estratégias de live action via plataformas como o Facebook. Entretanto, o projeto concentra-se num canal do Vimeo onde essas danças se distribuem a partir de contextos variados. Danças que ocorrem em praias, árvores, muros, casas, universidades. Quaisquer são os lugares. A montagem se detém às variações possíveis de uma estética não normativa, antes devedora à forma cinema. Não devemos permitir que a “Forma Cinema” se imponha como um dado natural, uma realidade incontornável. Aliás, a “Forma Cinema” é uma idealização. É preciso dizer que nem sempre há sala, que a sala nem sempre é escura, que o projetor nem sempre está escondido, que o filme nem sempre é projetado (muitas vezes e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens eletrônicas, seja na sala, seja em espaços outros), nem sempre o filme conta uma história (muitos filmes são atracionais, abstratos, experimentais, etc). Entretanto, as histórias do cinema recalcam os pequenos e grandes desvios produzidos neste modelo, como se ela se constituísse apenas do que quer que tenha contribuído para o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. Na verdade,

“Alok, sem o ‘a’, é uma expressão bastante usada na internet, que, inclusive, adotei no cotidiano para me referir a situações sobre as quais não tenho uma opinião formada, me restando rir ou chegar a conclusões absurdas. A estética do riso, do absurdo e da contemplação. Essa noção de diferença vem na forma da brincadeira, do reconhecimento da loucura cotidiana, quando corpos não se encaixam em padrões. E hoje me considero cada vez mais distante deles, como pessoa não binária (genderqueer) que ocupa a rua para dançar quando bem entende. Nesse sentido, sou aloka que dança. E aí resolvi acrescentar o ‘a’ no alok porque imaginei que nem todo mundo entenderia a expressão. Na verdade, ainda estou decidindo se usarei alok ou aloka, pois esse é apenas o início do processo. Imagino vida longa para o projeto, mas nunca se sabe, também pode acabar a qualquer momento”. Entrevista concedida à pesquisadora Dally Schwarz para o portal Ctrl + alt + dança. Disponível em: < http://ctrlaltdanca.com/2016/07/31/eixo-do-fora-deu-aloka/> Acesso em: 31/08/2017 20

21

Vanguarda conhecida como dadá, iniciada em Zurique por volta de 1916. Entre seus manifestos, destacam-se os escritos de Hugo Ball e Tristan Tzara. Anuncia a ausência de propósitos determinantes para o fazer artístico, apostando na experiência atualizada pela crítica e aleatoriedade. 22

Conhecida como TAZ (Temporary Autonomous Zone), é um manifesto de 1985 escrito pelo autor Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) sobre as possibilidades de criação em sistemas anárquicos e suas relações com as utopias piratas. Pensa estruturas distópicas de relação em contextos cibernéticos como a web 2.0 e de neoliberalismo selvagem, a partir de conceitos como redes, hackers, festa, resistência, gozação, farra, etc.

109


o cinema sempre foi múltiplo, mas esta multiplicidade foi, por assim dizer, encoberta e/ou recalcada por sua forma dominante. Ao longo da história do cinema temos não apenas experiências esparsas, mas cinco momentos fortes (cinema do dispositivo, cinema experimental, arte do vídeo, cinema expandido, cinema interativo) que se notabilizam por grandes transformações e experimentações quanto ao dispositivo cinematográfico, sobretudo depois do pós-guerra. (PARENTE, 2007: 5)

Pensando tanto no cinema de dispositivo quando no cinema experimental, cinemas em que a relação com a câmera produz não apenas visualidades críticas, mas pretende uma fuga dos usos e atribuições tradicionais da forma-cinema, Aloka dança numa relação abstrata de co-construção com a experiência da presença. Nesse sentido, abandona um cinema de representação ou aquilo que o pesquisador André Parente vai chamar, no texto Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo, de esquematismos das figuras e dos discursos. Escapa, assim, à linguagem e suas cadeias de significação, evitando reificações e reproduções. “Para o cinema experimental o que interessa não é a impressão de realidade, ponto nodal do cinema de representação, mas a intensidade e a duração das imagens. (PARENTE, 2007: 20)”. Portanto, dançar para câmera não é apenas documentar uma cena com expectativa mimética de realidade e, em seguida, submetê-la ao universo digital da rede mundial de computadores, mas um experimento de visualidade que adquire o corpo quando dança para um dispositivo como a câmera, não subtraindo desta relação os acontecimentos que são inerentes às experiências de dança no espaço público e às suas releituras quando da transmissão das imagens na web 2.0.

Imagem 12

Imagem 13

Imagem 14

Imagem 15

110


Imagem 16

Imagem 17

Aloka dança para a câmera no intuito de que suas imagens “viralizem” na internet, mas não apenas pelo movimento crítico em relação aos dispositivos com quais se relaciona: câmeras, celulares, computadores e web. No projeto, há a proposta estética do cinema marginal que, no Brasil, teve forte representatividade com discursos de cineastas como Luiz Rosemberg Filho e Rogério Sganzerla nas décadas de 1970 e 1980, e pelos experimentos de artistas contemporâneos como Vera Mantero, que reconfiguraram relações de dança com dispositivos disciplinares a partir das aproximações entre corpo, percepção, pensamento e espectador. Na hora em que alguns bailarinos procuram, através da tecnologia eletrônica, o meio de uma hibridação dos sentidos que apontaria para o horizonte "póshumano” de um “cibercorpo", um outro setor da dança contemporânea centra mais que nunca a sua pesquisa no afinamento da percepção a partir somente dos recursos da presença. Silêncio, lentidão, aparente imobilidade são muitas vezes convocados. De Myriam Gourfink a Meg Stuart e Xavier Le Roy, passando por Vera Mantero, esse coreógrafos parecem procurar, não tanto desdobrar um novo dado cinético, mas criar condições de uma tomada de consciência pelo espectador do trabalho de sua percepção, verdadeira instância ficcionante. (SUQUET, 2011: 540)

Por isso, o projeto de videodança é, sobretudo, uma tentativa de expandir as possibilidades da dança no espaço público e no ciberespaço, repercutindo sensações, acontecimentos e estéticas dissidentes na esteira “percepção-pensamento”. Nessa perspectiva, vincula-se à transbordança enquanto conceito no instante que materializa no corpo e em suas relações os processos dialógicos da vida cotidiana, testemunhando na dança os experimentos de um corpo que resiste à invisibilidade da mimese, incluindo neste escopo variadas causas, entre elas a agressividade do Estado brasileiro e do neoliberalismo global, em sua capitalização de relações, assassínio de populações vulneráveis e subjugação de corpos a novas e insondáveis formas de escravidão. À arte e à dança caberia esse papel de desviar, experimentar e propor situações de estranhamento e de possibilidades. A dança teria papel privilegiado nesse sentido, pois, como arte do movimento, apresenta uma experimentação na forma primária de existência e organização humana que é o corpo. A própria

111


definição de dança como prática reflexiva do corpo já é um processo social que pressupõe uma mobilização. O movimento gerado por um corpo que dança é uma proposta, uma ruptura, um recomeço, um fim. (GUZZO, 2015: 8)

A imprevisibilidade de dançar na rua e suas implicações estético-políticas já apontadas pelos projetos anteriores demonstram que a experiência crítica do corpo em movimento em relação à mímica social sofre retaliações de toda ordem. Especulações, guerras, violência, terrorismo. E, portanto, dançar no espaço público configura-se enquanto ato de resistência, que não apenas se determina no experimento material de dançar e ocupar ruas, mas na relação que se estabelece entre a poética e a consciência crítica do movimento, a vida cotidiana e as relações com os dispositivos cujas implicações estão em nossos corpos. Essa dança se posiciona em relação ao real. “A dança pode ser política a partir do movimento crítico que faz em relação à realidade, questionando ou propondo possibilidades de ação e transformação da maneira que existimos” (GUZZO, 2015: 9). Assim, as interseções pretendidas pela proposta de transbordança se encaixam nesse universo de dança contemporânea que, segundo a pesquisadora francesa Annie Suquet, no texto O corpo dançante – um laboratório de percepção, se dá numa geografia multidirecional de relações entre o artista, a criação e o mundo. Ou seja, que politicamente não cria divisões entre vida e representação, a partir do instante em que pressupõe o corpo que dança como paisagem de variáveis intensidades, num compartilhamento constante de experiências cinestésicas não determinadas. Através da exploração do corpo como matéria sensível e pensante, a dança do século XX não cessou de deslocar e confundir as fronteiras entre o consciente e o inconsciente, o “eu” e o outro, o interior e o exterior. E também participa plenamente na redefinição do sujeito contemporâneo. Ao longo do século, a dança contribuiu para desafiar a própria noção de “corpo”, a tal ponto que se tornou difícil ver no corpo-dançante essa entidade fechada em que a identidade encontraria os seus contornos. O bailarino contemporâneo vive a sua corporeidade à maneira de uma “geografia multidirecional de relações consigo e com o mundo”, uma rede móvel de conexões sensoriais que desenha uma paisagem de intensidades. A organização da esfera perceptiva determina os lances casuais dessa geografia flutuante, tanto imaginária como física. Assim os universos poéticos tão diferentes que a dança do século encaminhou poderiam ser descritos como outras tantas ficções perceptivas. Os arranjos coreográficos seriam apenas a sua extrapolação espacial e temporal. Se o bailarino se inventa dançando, se não cessa de fabricar sua própria matéria, trabalha também o espectador para sentir o corpo. A informação visual gera, no observador, uma experiência cinestésica (sensação interna dos movimentos do próprio corpo) imediata, e as modificações e as intensidades do espaço corporal do bailarino encontram assim a sua ressonância no corpo do espectador (SUQUET, 2011: 538)

112


As implicações dessa relação entre espectador e corpo dançante anunciam os fragmentos de um longo processo de configurações na percepção da dança, que não só foi influenciado pelos dispositivos ao longo do século XX, como amalgamou uma continuidade a partir de infindáveis variações oriundas das geografias multidirecionais com o mundo a partir do duo “matéria-memória”. Ora, neste instante a dança de um intérprete ou performer pode chegar facilmente às páginas da internet em formato de vídeo. E pode, inclusive, ser publicada numa transmissão ao vivo. Quais as implicações políticas possíveis dessa acessibilidade para a produção de uma experiência em dança contemporânea na internet? Em que medida avanços na linguagem das imagens em movimento e da internet não influenciaram novas proposições estéticas de corpos dançantes? Celulares ou câmeras de bolso, portáteis, constantemente mais próximos de milhares de indivíduos tornaram o registro ou filmagem de um corpo em movimento algo simples de ser executado, em comparação a inacessibilidade histórica dessas linguagens. Diante de tal conjuntura, um corpo que antes apenas dançava para a câmera ou para um público se deparou transbordando as funções de intérprete ou coreógrafo na construção de uma obra em imagem em movimento para a web, acumulando tarefas como fez Maya Deren há mais de meio século nas experimentações em 16mm. Ao se tornar videomaker de um projeto de dança para web, por exemplo, ou administrar os recursos próprios da linguagem do ciberespaço para a edição e circulação do vídeo, esse corpo estabelece outras experiências de criação com os dispositivos. É o caso de Une minute de danse par jour e Aloka das Américas, projetos executados individualmente por intérpretes que desempenham várias tarefas e aliam a elas suas proposições políticas a partir da dança. E, mesmo no caso de 100 lugares para dançar, que possui uma equipe maior para distribuir funções, as intervenções em relação aos dispositivos são múltiplas, quando produzem ruídos coletivos que, para além da internet, ressignificam as relações humanas com o cotidiano das cidades. Portanto, pensar um corpo dançante nas configurações intersticiais da web demonstra o quanto são híbridas as propostas estético-políticas dos artistas em questão e o quanto isso afeta o fazer artístico e as experiências de incontáveis danças-políticas na internet a partir da interseção de linguagens. A transbordança é apenas uma dentre tantas experiências políticas de co-construção e dialogia a partir da dança e de suas relações com as variadas linguagens do novo século. Corpos, afetividades, percepções e movimentos têm proposto aos dispositivos configurações que assinalam intervenções cotidianas nas cidades, fora e dentro das telas, on e offline. 113


Referencias bibliográficas BADIOU, Alain. Pequeno Manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura.. São Paulo: Brasiliense, 1975. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. 1.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. DELEUZE, Gilles. O ato de criação. São Paulo: Folha de São Paulo, 1999. FERNANDES, Ciane. Em busca da escrita com dança: algumas abordagens metodológicas da pesquisa com prática artística. In: Dança. Revista do Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. Vol 2. n 2. Salvador, 2013. GUZZO, Marina. SPINK, Mary Jane. Arte, dança e política(s). In: Psicologia & Sociedade --Revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol. 27. n 1. Porto Alegre, 2015. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. PARENTE, André. Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo. In: MARA, India (org.). Estéticas do Digital - Cinema e Tecnologia. Rio de Janeiro: Livros LABCOM, 2007. PHELAN, Peggy. A ontologia da performance: representação sem produção. In.: Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Edição Cosmos, 1997, nº 24. PIMENTEL, Ludmila Cecilina Martinez. Corpos e Bits: linhas de hibridação entre dança e novas tecnologias. 202p – Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2000. PONSO, Luciana Cao. Formas de pensar o impossível - um salto do cinema de 1930 à videodança. 136p – Dissertação de Mestrado Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013. RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. [1.ed., 1.reimpr.]. São Paulo: Ed. 34, 2012. SANTANA, Ivani. Esqueçam as fronteiras! Videodança: ponto de convergência da dança na Cultura. Digital. In: Dança em foco. Dança e Tecnologia. Org.: P. Caldas, L.Brum. RJ: Inst.Telemar. 2006. Vol.1 SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Ed. Relum e Dumará, 2002. SUQUET, Annie. Cenas – O corpo dançante: um laboratório de percepção. In: COURTINE, JeanJacques (Org.). História do Corpo – as mutações do olhar: os século XX. Vol. 3. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

Referências de Imagens (Print) Imagens 1, 2, 3, 4, 5 100 lugares para dançar. Disponíveis em: < http://100lugaresparadancar.org/100lugares-para-dancar.> Acesso em: 31/08/2017 Imagens 6, 7, 8, 9, 10, 11 Une minute de danse par jour. Disponíveis em: < http://www.uneminutededanseparjour.com/>. Acesso: 31/08/2017 Imagens 12, 13, 14, 15, 16 Aloka das Américas. Disponíveis em: <https://vimeo.com/alokdasamericas> Acesso: 31/08/2017

114


F – EM TRÂNSITO DE LINGUAGENS: AFRONTAS À DANÇALIDADE E À ARTE PANFLETÁRIA NA INTERSEÇÃO DANÇA-CINEMA (RESUMOEXPANDIDO) Resumo Ao instigar trânsitos híbridos entre campos antes definidos enquanto territórios disciplinares, a transbordança refaz os caminhos da economia secular da arte a fim de afrontá-la. No contexto de hibridações em dança-cinema instaladas no ciberespaço da web, vemos a desestabilização simultânea de normas sobre corpos dançantes no espaço público e na rede. Entretanto, essas experiências estéticas se deparam com a dançalidade e a arte panfletária, estruturas ainda fixas (mas datadas) de um pensamento hegemônico em dança. Analisando os hibridismos de Aloka das Américas e Une minute de danse par jour, ambos projetos de videodança para a web, pretende-se pensar nas afrontas possíveis à representação e à reprodutibilidade técnica, partindo de interfaces de linguagem que desafiem o paradigma cênico na dança e a relação corpo-câmera no cinema hegemônico. Palavras-chave | dança contemporânea; dançalidade; arte panfletaria; dança-cinema; transbordança In transit of languages: affronts to historical dance and pamphlet art in intersections of screendance Abstract | Instigating hybrid transits between fields that once were considered disciplinary territories, transbordança rethinks the ways of the secular economy of art to confront it. In the context of dance-cinema hybridizations presented in the cyberspace of web 2.0 we see the simultaneous destabilization of norms on dancing bodies in the public space and in the internet. Otherwise this aesthetic experiences find the historical dance and pamphlet art as difficulties still fixed (but dated) of structures in hegemonic thinking of dance. Analyzing the hybridity in screendance projects like Aloka das Americas and Une minute of danse par jour it would be interesting to think about the possibilities to affront the representation and mechanical reproduction. Another language interfaces between dance-cinema could challenge the scenic paradigm in dance and the bodycamera relation in the hegemonic cinema? Keywords | contemporary dance; historical dance; pamphlet art; dance-cinema; transbordança Tiago Amate (Universidade Federal da Bahia - UFBA) É melhor não fazer nada que contribuir formalmente para a visibilidade daquilo que, para o Império, já existe. Alain Badiou, em 15 teses sobre a arte contemporânea

“Não se trata de uma abordagem linear nem previsível”.23 Nesta dinâmica de partilha, recorrerei à escrita performativa ou à performance escritiva anunciada pela

23

FERNANDES, 2008, p. 4.

115


pesquisadora Ciane Fernandes a fim de me desviar das estratégias puramente logocêntricas de argumentação científica, ainda determinantes em pesquisas das artes performativas. Seria, portanto, um diálogo possível ao desafio de pensar e escrever com dança e seus respectivos trânsitos de linguagem, aqui entendidos enquanto um devir inacabado, nunca finalizado em suas variações e marcas digressivas. Ou seja, um “pensamento que vem dançando”24 e, por isso, recupera nas experiências do e pelo corpo25 memórias e tessituras que fundamentam outras relações entre escrita e dança, afrontando as falsas oposições entre pensar/fazer, entre matéria e memória. As distinções entre razão teórica e razão prática, ciência e técnica, pensamento e ação mediam por muitas vezes, aquilo que chamamos e atendemos como dança, o que nos faz pensar como dança. Por sua vez, os rastros coloniais ocidentalizantes das teorias de dança que privilegiaram e se desenvolveram, não por acaso, a partir de uma lógica sistêmica onde a relação entre dança e escrita e, consequentemente, o desdobramento dança e pensamento são estabelecidos em denegação mútua. 26

Ao problematizar tal denegação mútua descrita por Sérgio de Andrade, pretendo, sobretudo, reaproximar dança e pensamento, assim como fizeram Thereza Rocha e Alain Badiou. “Aqui trata-se de dança. Da dança quando se apresenta sob a metáfora do pensamento”27. Dança e pensamento coadunando-se nesta escrita a fim de provocar outros olhares ao fazer artístico indisciplinar, transdisciplinar – em trânsito. Escreverei, então, entre múltiplas pessoas, adotando o discurso direto e indireto livre na primeira e terceira pessoas do singular, implicando experiências de um corpo que dança e suas respectivas relações, doravante. Recupero algumas questões levantadas no painel Imagem, precariedade e queerness 28 com o intuito de refazer os caminhos inicialmente previstos para este resumo e acrescentar contribuições que se deram coletivamente durante os debates acerca do corpus de análise desta pesquisa. Trago, assim, Aloka das Américas

29

e Une minute de

danse par jour 30 para pensar o que se quer dizer com trânsitos de linguagem em e com

24

ANDRADE, 2017, p. XXIX. ROCHA, 2016, p. 48. 26 ANDRADE, 2017, p. XLI. 27 ROCHA, 2016, p. 57. 28 Oitavo painel realizado pelo Seminário Internacional Trans-incorporados, cujas apresentações ocorreram no dia 11/11/2017. 29 Meu projeto de videodança para web, disponível em: < https://vimeo.com/alokdasamericas >. Acesso em: 10/12/2017 30 Projeto de videodança para web, da francesa Nadia Vadori Gauthier, disponível em: < http://www.uneminutededanseparjour.com/ >. Acesso em: 11/12/2017. 25

116


dança, bem como suas respectivas afrontas às economias da dançalidade

31

e da arte

panfletária 32. Ambos os projetos de videodança citados trazem questões sobre a natureza híbrida da dança para as telas, bem como suas respectivas experimentações de linguagem. Território profícuo aos trânsitos e afrontas propostos por experiências estéticas que trafegam de maneira limítrofe e não contributiva às economias impingidas pelo império (lê-se, aqui, o neoliberalismo globalizado dos países mais ricos) na arte contemporânea, como anuncia Badiou na epígrafe deste resumo. Afinal, a arte e seus trânsitos são, nesse conjunto proposto, entendidos enquanto dispositivos de resistência numa sociedade de controle33, ao perpetuarem manifestações estéticas de disputa simbólica de poder numa economia artística de reprodutibilidade técnica. Da interseção dança-cinema ao hibridismo em trânsito Há algum tempo venho conjecturando se a palavra interseção traduz, de fato, as aproximações e elipses entre dança e cinema na linguagem da videodança. A proposta de trânsito de linguagens

34

me parece recusar essa disciplina comumente proposta aos

projetos que se dizem “fusões” ou “reuniões” de linguagens artísticas. Crítica também presente no pensamento de Ivani Santana, a videodança é apontada como ponto de convergência da cultura digital em suas audiovisualidades contemporâneas. Segundo a pesquisadora, “não existem fronteiras, já que não existem mais territórios. Trata-se apenas de emergências”.35 Não apenas o desfazimento dos territórios, mas os eixos transdisiciplinares que se estabelecem na contínua reapropriação das linguagens parece produzir associações que vão além de um limite proposto pela ideia de interseção, onde campos se tocam. Assim, é necessária uma substituição que atualize o conceito de interseção para hibridismo. “O termo procurava nomear os fenômenos de fronteira, de mistura e indistinção, os estados de ambiguidade e a coexistência de diferentes gêneros artísticos em uma mesma obra”.36 Proponho a videodança como um trânsito híbrido das relações em dança-cinema, pois estas já não podem definir exatamente qual será a configuração

31

ROCHA, 2016, p. 42. GUZZO, 2015, p. 6. 33 DELEUZE, 1999, p. 11. 34 ROCHA, 2016, p 39. 35 SANTANA, 2006, p. 8. 36 ROCHA, 2016, p.124. 32

117


estabelecida entre corpo-câmera para a criação, separando o que é dança daquilo que é cinema. A multiplicidade do corpo-câmera é entendida, portanto, segundo os inúmeros modos de materializar experiência estética. A câmera, ela também dança. O corpo, ele também filma, exatamente quando dança para a câmera, pois dança pensando no filme. Corpo-câmera estão implicados para além de uma ideia de registro de uma dança, com proposições estritamente arquivais ou cujas intenções sejam dotar este encontro de uma condição utilitarista: o registro técnico para a dança, ou o alívio “cômico” do corpo em movimento para o cinema. Evoco Thereza Rocha mais uma vez, quando, em seus ensaios de dança contemporânea, aponta a videodança dentro desse conjunto híbrido de linguagens em que se insere uma dança em trânsito: Hibridismo, hibridização ou hibridação são termos emprestados da biologia para a teoria contemporânea da cultura e da arte. Na biologia, designam os híbridos que nascem do cruzamento entre seres provenientes de espécies diferentes. No pensamento contemporâneo, eles servem para descrever o cruzamento de, no mínimo, duas especificidades, gerando um terceiro e novo gênero de arte, campo de conhecimento ou de atuação, de natureza não sintética, uma vez que não pode ser definido simplesmente pela soma das partes constituintes.37

A operação não é de simples soma, mas de encontro, associação, em múltiplas variáveis, podendo pensar também em subtrações e desaparecimentos. Partindo desse pressuposto, anuncio Aloka das Américas como uma experimentação de corpo-câmera que se dá no ciberespaço da web a fim de levantar perguntas sobre as autorizações dos corpos na organização cotidiana das cidades. Aloka das Américas sou eu quando danço para a câmera e penso um filme de dispositivo, um cinema cujos trânsitos não repercutem a linearidade de uma “forma-cinema”.

38

A ideia de um cinema hegemônico, narrativo,

ou de fenômenos das estéticas de representação em filme. Aloka das américas sou eu quando danço pensando em não dançar, em não fazer jus às economias históricas da dança ocidental, que veem na dançalidade o conceito constitutivo de uma dança a partir das operações de pausa e movimento segundo técnicas inscritas numa ontologia de autorizações. Quais corpos podem dançar? Existe uma dança instituída quando todos os corpos dançam? A brincadeira de Aloka das Américas é repercutir o qualquer enquanto uma experiência de excesso, de extravasamento, dando ao cotidiano nas cidades a primazia das possibilidades numa mise-èn-scene do vídeo. Ou

37 38

ROCHA, 2016, p. 124. PARENTE, 2007, p. 5.

118


seja, o corpo que dança na rua e pode ser surpreendido, dentro da relação corpo-câmera, por acontecimentos. Aloka das Américas propõe o cinema de dispositivo ao revelar, a partir de uma herança direta do cinema experimental, a estética de uma câmera que filma, de um dispositivo cinematográfico e de uma montagem que desvelam a ficção antes intocável da cena [construto do cinema hegemônico] como parte de uma operação simbólica da representação. Pensa assim a relação corpo-câmera pela videoarte e enquanto acontecimento, ao trazer a dança contemporânea como provocação de suas relações com o dispositivo cinematográfico e o espaço-tempo. São experimentações que se transformam em videodança e são lançadas na rede mundial de computadores. Um corpo que dança nas ruas da América do Sul e na internet. Assim, faço da minha dissidência cotidiana como pessoa não-binária e da estranheza sobre meu corpo na ocupação do espaço público um mote para os acontecimentos que se dão com a câmera. Não há uma expectativa objetiva de que algo vá acontecer “de fora” enquanto danço, pois meu corpo que dança para a câmera já é, em si, acontecimento. Acontece na medida em que não foi e ainda não é um corpo autorizado à dança enquanto linguagem que reproduz uma historiografia excludente da arte: criando divisões entre quem sabe/pode dançar (no palco) e quem não sabe/pode (plateia). Também não é parte de um sistema de legitimações artísticas: uma dança que merece/deve ser vista por ter sido aprovada ou indicada num circuito de artistas ou curadores. É, sobretudo, uma dança que existe quando da ausência de apreensão de sentido ou utilidade no espaço público, criando vazios e perguntas a partir de uma relação corpo-câmera no espaço-tempo da filmagem e, doravante, no espaço-tempo da rede mundial de computadores, o ciberespaço.

Imagem: © Juliana Di Lello

Aloka das Américas é um experimento contínuo dos acontecimentos corpo-câmera no espaço público

119


Em sequência, problematizo alguns pontos de Aloka das Américas que se relacionam com o projeto Une minute de danse par jour, da francesa Nadia VadoriGauthier. Uma dança no espaço público, oriunda também de uma relação corpo-câmera que transborda o acontecimento performativo da presença para o vídeo, estabelecendo-se na medida em que Nadia propõe uma poética de dança contemporânea, não hermética em seu fazer, e está aberta às relações que se sucedem no espaço público durante a filmagem. Dada às aproximações de corpos e situações não determinadas, a performer dança pela cidade, a fim de interpelá-la num ode poético assim que se iniciam os ataques terroristas em Paris no ano de 2015. Como forma de resistência à violência cotidiana e a economia dos afetos na cidade, Nadia dança todos os dias com a câmera desde que o ataque à redação do jornal francês Charlie Hebdo aconteceu há quase 3 anos. Publica os vídeos de pouco mais de um minuto por dia em plataformas como o Vimeo, descrevendo-os também na rede social Facebook, onde compartilha os links, com horários, lugares e acontecimentos. As danças se dão em vários lugares da cidade (Paris) e do mundo. Sua relação de filmagem é materializada num plano-sequência (não há cortes entre a sucessão de acontecimentos), que é selecionado pela artista depois de algum tempo de filmagem. Nadia costuma escolher os momentos mais emblemáticos de suas danças, quando não só é convocada por outros corpos que lhe acompanham mas também por situações de repressão física, empregadas pelo Estado. A artista dança, muitas vezes, em lugares onde não se é permitido dançar, levantando, de outras maneiras, esse sistema de autorizações do corpo na cidade. Uma estratégia curiosa do projeto da francesa é a utilização das redes sociais para incentivar o público a enviar vídeos de dança para a página, compartilhando experimentos em rede. Um minuto de dança por dia incentiva a multiplicação das experiências de dança oriundas da sintaxe corpo-câmera como símbolo de uma poética diária, traduzida pela citação de Nietzsche que segue anexa em todos os seus mais de 1.000 vídeos. “E todos os dias serão perdidos quando não tiver dançado sequer uma vez”. Dança cotidiana como sinônimo de resistência na internet.

120


Imagem: © Nadia Vadori-Gauthier

Nadia dança no metrô de Paris e usa o projeto Une minute de danse par jour como poética de mobilização à dança no cotidiano

Durante o painel do Seminário Trans-incorporados fui questionado por alguns dos participantes do porquê de aproximar, nesta pesquisa, experiências estéticas como Aloka das Américas e Une minute de danse par jour, observando as nítidas diferenças geopolíticas e econômicas que caracterizam cada projeto. Se Aloka das Américas tem a maioria dos vídeos filmados com celular, montados à revelia, e dança na América do Sul, Une minute de danse par jour produz conteúdo diário em alta resolução, tendo Nadia um projeto estruturado e financiado pelo governo francês. Há um abismo nas condições estruturais de cada artista, ainda mais quando eu, um corpo não-binário, danço a evidência de todas as incertezas e violências sobre minha presença, que diz respeito ao meu modo de vestir e aos estranhamentos causados por um dança “estranha” num país subdesenvolvido. Condição que não é atravessada pelas mesmas circunstâncias de uma Europa e sua produção simbólica, bem como por um corporeidade cisgênero como a de Nadia Vadori em seus vídeos. Entretanto, a proximidade dos dois projetos evita comparações que visam à simplificação de uma dicotomia, pois as diferenças estão dadas no âmbito estrutural, da economia social dos dispositivos e dos corpos em jogo. O que interessa, entretanto, são as relações estabelecidas no hibridismo dança-cinema. A maneira como ambos os projetos podem produzir, politicamente, ruídos aos modelos consolidados de videodança, priorizando entre arte e política relações autorreferentes (arte-vida) que desestabilizem aquilo que impede um corpo de dançar no espaço público: a ridicularização segundo uma norma de performatividade cotidiana. Esse trânsito híbrido do corpo-câmera torna-se, também, uma proposta de resistência à dançalidade e ao panfletarismo problematizados

121


na dança contemporânea, ambas condições constitutivas da ontologia de um fazer cênico em dança. Afrontas à dançalidade e à arte panfletária... transbordança! O que se espera da dança ao designarmos critérios autênticos e utilitários de importância? Em circunstâncias contemporâneas de mundo e de arte, vidas pessoais e processos criativos se confundem, atravessando-se mútua e publicamente na rede mundial de computadores. Provocações das artes performativas e de experiências virtuais autorreferentes têm refundado a relação artista-obra e, consequentemente, o contexto da dança contemporânea. Pensando nas relações possíveis desta contemporaneidade com o cinema de dispositivo na internet, abrem-se caminhos da composição corpo-câmera a partir de um contexto de autorreferência no ciberespaço da web. Vidas tornam-se públicas em páginas pessoais e carregamos câmeras de bolso em dispositivos conectados em rede. De voyeurs passamos facilmente a narcisos de uma social media. Neste instante, dançar para uma câmera e tornar pública essa experiência na web ganha muitas variações. O corpo que dança se filma dançando no espaço público, desestabilizando esquemas simplificados da mise-èn-scene no jogo da representação que ainda constituí o cinema hegemônico (as dicotomias entre ficção e realidade). É o corpo que, além de dançar e filmar, também distribui as imagens na rede. Isso têm provocado alterações na maneira como fazemos cinema

e,

consequentemente,

em

seus

trânsitos

de

linguagem

com

uma

contemporaneidade da dança. Como, então, ainda aplicar sintaxes ordenadoras e categorizáveis às experiências do corpo em movimento, na busca pelas evidências de uma dança pura, verdadeiras propriedades de um território, como aponta Thereza Rocha em seu livro de prazeres? Ao pensar os hibridismos da relação dança-cinema instiga-se uma recusa às identidades fixas que a dança adquiriu de seu paradigma cênico ao longo de todo o século XX. Então, como os trânsitos híbridos tem reorganizado essas interfaces de linguagem para constituir uma recusa aos padrões atribuídos à dança? “A operação não é de soma, mas de subtração. Interessa o que a dança perde de sua dançalidade em favor de uma obra em trânsito de linguagens”.39 A partir de tessituras híbridas, a dança evita uma obrigação ontológica

39

ROCHA, 2016, p. 39.

122


consigo mesma e passa a alavancar o terreno do qualquer. Perde-se a dançalidade na perspectiva de uma dança contemporânea que tensiona as especificidades disciplinares. O sufixo “idade” tem sido, desde o início do século XX, um recurso de linguagem a cada vez em que nos damos a dizer aquilo que constitui a especificidade de um dado meio. Assim, uma picturalidade seria aquilo que constitui o específico da pintura como meio, isto é, aquele dado objeto é uma pintura e é de arte, não sendo portanto um objeto qualquer, dadas as condições em que nele se organizam as unidades mínimas constituintes de sua sintaxe, no caso, traço, cor e superfície. Da picturalidade (palavra vertida diretamente do inglês), poderíamos passar então à dançalidade (palavra inventada), caso estivéssemos na busca pelas marcas da dança pura, que teria o movimento e ausência de movimento como objetos de especificidade; na busca pelas condições sob as quais também nela se organizam as unidades mínimas constituintes de sua sintaxe. Não teria sido mesmo este o suporte de sustentação da dança em sua aventura abstrata no decurso do século XX? 40

Se as especificidades reunidas no século XX fundaram na dançalidade unidades mínimas da dança enquanto conhecimento e fazer, a bancarrota da “autenticidade” como episteme ou campo foi afrontosamente anunciada no mesmo século, com o pesar doloroso de uma morte pela técnica, diante da consolidação midiática das imagens em movimento. Com o paradigma da fotografia e sua reprodutibilidade, o aviso de Walter Benjamin na década de 1930 trouxe conflituosos apontamentos acerca das funções da arte, apropriando-se da obra em seu caráter reprodutível para pensar a política em detrimento do ritual. A subversão de algo “autêntico” ou puro pela noção híbrida de “arte-vida” no cotidiano, seja este real ou imaginário (ficção), desafiou perspectivas ideais de uma especificidade que, no caso da dança, se estabeleceu sobre um saber-poder-dançar, em cuja miríade de técnicas e sujeitos históricos se excluiu ou invisibilizou corpos dançantes alheios à hegemonia falologocêntrica europeia, dada, na linguagem da dança, pelas hierarquias técnicas. Da chapa fotográfica, pode-se tirar um grande número de provas; seria absurdo indagar qual delas é autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear no ritual, ela se funda, doravante, em outra forma de práxis: a política.41

A crise da dançalidade, entretanto, encontrou nos trânsitos de linguagem da dança contemporânea não só novas perguntas, como outros problemas. Diante dos hibridismos e suas experiências estético-polítcas, deu-se ao corpo em movimento variadas perspectivas, não apenas técnicas, mas ideológicas. Entre elas as experiências de arte

40 41

ROCHA, 2016, p. 42. BENJAMIN, 1975, p. 17.

123


panfletária, que propõem na relação de “figura-fundo” a possibilidade de uma “inspiração” política para a obra, ou seja, uma experiência estética manipulada pela política. Tal provocação reconstitui neste século outros enfrentamentos, que agora não apenas classificam um corpo ou uma obra segundo sua dançalidade, mas também ao supor uma “proposta” política. Em intenso diálogo com Jacques Rancière, a pesquisadora Marina Guzzo (2015) examina no artigo Arte, dança e política(s) dois modos de interseção a partir dos elementos que o intitulam. O primeiro oriundo da metáfora do plano de fundo, em que elementos secundários ornamentam o principal: a dança como adereço da política e viceversa, numa relação de causa-efeito; em suma, quase auto-explicativa. O segundo, mais interessante à reflexão deste paper, fundamenta-se na “arte como testemunha narrativa da política, da vida e da experiência”,42 e propõe à dança construções “dialógicas e performáticas”. Na dança-panfleto, a metáfora figura-fundo coloca a relação de dança e política em termos de plano de fundo ou de forma e conteúdo. A ideia de um artista que, por exemplo, dança por uma causa ou cuja causa faz a dança, numa espécie de mimese/representação. Na transbordança, em contrapartida, as experiências do corpo dançante seriam, a priori, imprescindíveis para pensar diálogos com a política.43

Ao abandonar posições hierárquicas, por isso verticalizantes, a amálgama “artevida” refaz o caminho da política como testemunha, recusando o palanque ou uma política hermeticamente identitária, universalista. Nessa perspectiva, o conceito de transbordança se alia ao pensamento de dança-política em Guzzo, acerca de uma testemunha em relação dialógica, para propor, no hibridismo, tensões com as estruturas de controle e reprodutibilidade técnica. Uma afronta aos paradigmas que o neoliberalismo global submeteu a experiência estética. Isso se traduz, portanto, numa recusa ao espetáculo e suas hierarquias de fazer-poder para o entretenimento. Assim, a transbordança se constitui a partir de “processos cuja dança transborda de si mesma, seja por um acontecimento no espaço público ou pelas ressignificações da dança com outras linguagens”,44 num desafio às normas da dançalidade e às expectativas da particularidade política. Esta crítica ao panfletarismo na dança se estende não apenas ao fascismo introjetado historicamente no corpo a partir de diferentes categorias ou

42

GUZZO, 2015, p. 6. AMATE, 2017, p. 4. 44 AMATE, 2017, p. 5. 43

124


técnicas de movimento, mas aos lugares-comuns da militância política, que é capaz de reunir no “urgente” e no “necessário” as justificativas plausíveis para a experiência estética, como alerta Daniel Guerra, no ensaio Fantasias Revolucionárias. “Então, não demora muito e lá vem o ‘urgente e necessário’, rápido como uma bala, firme como uma muleta. Ele serve para tudo. Principalmente para a adesão massiva”.45 Segundo o crítico baiano, ao passo que observamos a falência da representação nas artes cênicas, paradoxalmente acompanhamos a ascensão comercial de narrativas engajadas. Aos revolucionários, o capitalismo ofereceria não apenas estruturas sólidas disfarçadas de novidade, mas falsos modelos de revolução. “O capitalismo não age somente por metodologias de repressão. Por sua própria complexidade, ele é bem mais sútil: estimula oposições oportunas ao seu próprio funcionamento [...] e todos os dias põe mais lenha no teatro da rebeldia versus a reação ‘necessária’”.46 Diante disso, é preciso pensar como os acúmulos do capital, as exigências de consumo e de posicionamento político podem se indispor às experiências estéticas híbridas em dança contemporânea, como Aloka das Américas e Une minute de danse par jour. Sobretudo, quando estamos lidando com repetições de uma economia da arte idealizada a partir do entretenimento, operação centrada na gestão de espetáculos para uma cadeia da reprodutibilidade técnica e representação. Se não criticarmos o processo hegemônico que ainda capitaliza as relações artísticas, pensando arte apenas como ferramenta de uma ideologia, continuaremos reproduzindo modelos cuja utilidade está em evitar o dissenso e o acontecimento. “Quando a política passa a ser tema e não a estrutura, ou quando há cisões de forma e conteúdo que privilegiem este último”, 47 a arte torna-se, então, útil. Num pensamento de dança-cinema, a transbordança aparece quando a dança e o cinema tensionam suas especificidades, evitando um compromisso ontológico com a representação. Momento este em que a videodança também transborda a simplificação de uma finalidade. Dessa maneira, o hibridismo abarca, nos trânsitos de linguagem, caminhos ainda pouco mapeados pelas estruturas simbólicas de poder, que insistem em perpetuar operações de controle por meio de fazeres disciplinares, fixando uma economia de corpos e relações para chamá-la de arte.

45

GUER RA, 2017, p. 42. GUER RA, 2017, p. 42. 47 GUERRA, 2017, p. 42. 46

125


Referências AMATE, Tiago. Transbordança: interseções entre dança, política e cinema no ciberespaço da web. In: Anais do Anais do V Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Natal: ANDA, 2017. ANDRADE, Sérgio. Laboratório de crítica: experimentos que se desdobram...Isto não é um prefácio (?).In: (org) ANDRADE, Sérgio. CHALUB, Silvia. Performar Debates: Labcrítica no Festival Panorama e outras dobras. Rio de Janeiro, Gramma: 2017. BADIOU, Alain. Pequeno Manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura.. São Paulo: Brasiliense, 1975. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. 1.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. DELEUZE, Gilles. O ato de criação. São Paulo: Folha de São Paulo, 1999. FERNANDES, Ciane. Em busca da escrita com dança: algumas abordagens metodológicas da pesquisa com prática artística. In: Dança. Revista do Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. Vol 2. n 2. Salvador, 2013. FERNANDES, Ciane. Entre escrita performativa e performance escritiva: o local da pesquisa em artes cênicas com encenação. In: V Congresso ABRACE. Belo Horizonte: Abrace, 2008. GUERRA, Daniel. Fantasias Revolucionárias. In: Revista Barril: Crítica em Artes Cênicas. Vol 1. n 1. Salvador, 2017. GUZZO, Marina. SPINK, Mary Jane. Arte, dança e política(s). In: Psicologia & Sociedade --Revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol. 27. n 1. Porto Alegre, 2015. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. PARENTE, André. Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo. In: MARA, India (org.). Estéticas do Digital - Cinema e Tecnologia. Rio de Janeiro: Livros LABCOM, 2007. PHELAN, Peggy. A ontologia da performance: representação sem produção. In.: Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Edição Cosmos, 1997, nº 24. PONSO, Luciana Cao. Formas de pensar o impossível - um salto do cinema de 1930 à videodança. 136p – Dissertação de Mestrado Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013. ROCHA, Thereza. O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Salvador, Conexões Criativas, 2016. SANTANA, Ivani. Esqueçam as fronteiras! Videodança: ponto de convergência da dança na Cultura Digital. In: Dança em foco. Dança e Tecnologia. Org.: P. Caldas, L.Brum. Vol.1 RJ: Inst.Telemar. 2006. SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Ed. Relum e Dumará, 2002.

Sobre o autor | Tiago Amate é artista-pesquisador do programa de Pós-graduação em Dança da UFBA, onde cursa mestrado. Graduado em Comunicação pela UnB (2013) e em Cinema & Audiovisual (2016) pela UFF, investiga as relações entre cinema de dispositivo e dança contemporânea. Sua pesquisa propõe revisões da linguagem da videodança a partir da autorreferência nas audiovisualidades. 126


G – DA EXAUSTÃO, INSTALAÇÃO? (FIRST)

PAISAGENS

E

ACONTECIMENTOS:

UMA

“i can't stop thinking of you the things we used to do the secrets we once shared i'll always find them there in my memories” Madonna, Inside of me 48 Bedtime stories (1994) Sigo com a diva pop e refaço um início similar aos ruídos direcionados para o Festival Panorama em 2015. Neste jogo de xadrez, reitero a jogada da rainha sem, no entanto, repeti-la. A iterabilidade, no caso, serve especialmente à diferença; ao deslocamento de uma Madonna outrora distante

49

àquela que agora começa próxima

demais para pensar solitariamente acerca dos acontecimentos cênicos. A ideia de que estou tratando aqui é a própria confusão em que me meti quando “senti demais” ou estive “perdida” nas exaustivas imagens e seus respectivos desdobramentos em dois espetáculos [se ainda assim os podemos chamar] exibidos na Mostra Panorama Br de 2017. Expresso-me ironicamente entre aspas para anunciar devaneios e divagações outrora descartáveis [e agora, ainda] pelo sistema logocêntrico de nossa gramática europeia. Por isso recupero a musicalidade de Madonna em 1994, a fim de trazer Inside of me e propor uma metáfora capaz de reconfigurar os sentidos deste texto para uma crítica menos seca: Eu sempre terei vocês dentro de mim 50 Sentimento inelutável. Assim me despeço da objetividade descritivo-narrativa homologada à escrita a fim de pensar noutras estratégias, que impliquem corporeidades dançantes

51

num texto de apenas duas dimensões. O verso da diva poderia, então, nos

dizer algo sobre alguns espetáculos [sic] de dança contemporânea? Tenho uma sugestão. Na mesma música, é possível ouvir o trecho: eu sempre vou encontra-los lá, em minhas 48

Música disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1hyeJ4CZgqE>. Acesso em: 15/11/2017 Texto intitulado Critérios de importância: “Isto não é importante, isto é importante?”. Disponível em: <http://labcritica.com.br/criterios-de-importancia-isto-nao-e-importante-isto-e-importante/ >. Acesso: 15/11/2017. 50 Livre tradução do autor para o seguinte trecho: “I will always have you, inside of me”. 51 Conceito usado por Thereza Rocha (pág. 82) em O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Salvador, Conexões Criativas, 2016. “Cada dança pede um corpo”. Assim, a pesquisadora reafirma uma poética da dança conformada às corporeidades dançantes em processo de pesquisa, alertando para suas multiplicidades em ação. 49

127


memórias 52. Se o corpo for entendido como memória, chegaremos aonde pretendo ir: às memórias [do/no/pelo] corpo. Vocês, aqueles que presenciei em cena, estão dentro de mim, do meu corpo-memória. Por isso quero retomá-lo(s), provocando dissonâncias e aproximações imbricadas às imagens cênicas das quais já não posso me apartar. Se aqui a herança burguesa do espetáculo cênico se confunde com a participação imprevisível do espectador [sic], caberão outras estratégias que não mais reproduzem a cisão discurso x corpo ou escrita x dança na crítica em artes da cena. A pretensão é buscar nas experiências desalojadas do palco italiano outros encontros dramatúrgicos, que não repercutem, necessariamente, a figuração ativo-passiva, trazendo também à escrita experiências que deslocam as funções artista x público. Entretanto, isto não nos é inédito. Alguns encenadores contemporâneos em dança há muito têm tentado se afastar de uma dramaturgia do conceito, em cujas estruturas fechadas há uma presunção de controle da espectação na obra, a fim de pensar processos em dramaturgia 53. Uma reconfiguração que multiplica protocolos de criação ao longo da experiência estética com os materiais (humanos ou não). Neste caso, vou me ater especialmente às variações na autorização de corpos em cena, divididos historicamente entre quem assiste e quem encena, sem qualquer risco de troca de papéis ou, no mínimo, de quaisquer interferências coletivas. E se não vamos falar do lugar-comum de um espectador [sic], falaremos de que, logo num festival de artes da cena que prioriza espetáculos? De corpos em movimento, inclusive o meu. De confusão. Inside of me Recorro à memória-corpo a fim de pensar na infinitude de imagens quando estive em relação direta com os experimentos [prefiro assim, vindo da ideia de uma experiência, teste ou dúvida, a chamá-los de espetáculos, pois apesar da etimologia – dar-se a ver - o que se convencionou do espetacular... aghr!]. Gosto dessa palavra pois me remete às imprevisibilidades que não cabem apenas na ideia de alguém que apenas observa, mas que também está implicado na obra, faz parte dela. Nesse aspecto, não só as percepções, que se dão a níveis pessoais e múltiplos, interessam. As reações, os corpos em jogo, materializam a partir do movimento em cena implicações mútuas, entre públicos e artistas. De maneira mais direta e objetiva, o espectador [sic] modifica a cena: um

Livre tradução do autor para o seguinte trecho: “I'll always find them there. In my memories”. A pesquisadora Lígia Tourinho dialoga com essas categorias de Marianne Kerkhove a partir das relações entre dramaturgia e dança. TOURINHO, Lígia. Crítica, uma poética de transcrição. In: (org) ANDRADE, Sérgio. CHALUB, Silvia. Performar Debates: Labcrítica no Festival Panorama e outras dobras. Rio de Janeiro, Gramma: 2017. 52 53

128


experimento jamais será igual ao outro. E, mesmo que essa ideia possa ser usada como justificativa para tudo que se faz em as artes da cena [porque muda e desaparece, o corpo da cena], há uma diferença. Inquietações reverberadas sobre os corpos sentados no conforto da relação palcoplateia não cabem na materialidade daquilo pode mover corpos em cena [e falo mais especificamente do público, não dos artistas a quem recaem as expectativas de movimento]. Imagine só se sou empurrado ou lambido por quem dança [o corpo autorizado em cena] e, por conseguinte, lambo e empurro. É muito diferente de ver alguém sendo empurrado ou lambido numa cena. O corpo não está sob a ameaça de um acontecimento. Pois o que acontece está sempre fora: uma outridade anunciada à distância, um acontecimento “espectatorial”, algo da ordem primordial do visível. Na ideia de sentido pela visão, funda-se a hierarquia do ver para ser. Então, quando recorro ao conceito dos experimentos falo, sobretudo, das imagens dos corpos que, de tão próximos, estão dentro de mim, reconfigurando minha presença de forma direta no espaço, numa constante atualização provocada pelos acontecimentos em cena. São corpos que me fazem andar, parar, correr, hesitar, desviar. Agir! Corpos que me assustam, me estafam ou me surpreendem, culminando numa ação/reação impensada/furtiva do meu próprio corpo. Assim, ao me instigarem sensações, me mantêm em movimento, mesmo quando estou parado. E é porque a qualquer momento podem voltar, estão a instantes do meu toque e...opa! Esses corpos, o meu corpo. Estão todos em cena. Inside of me, inside of you A difícil tarefa de recuperar tais dinâmicas, que interessam ao dentro-fora de mim, mas ao dentro-fora que também tento provocar na leitura deste texto, trará mais algumas cartas na manga. Sugiro movimento. Para dialogar com cada um dos dois experimentos exibidos na Mostra Nacional do Festival Panorama e que apresentam essa mesma condição cênica, propulsora de paisagens e acontecimentos, proponho alguns haicais. Desejo intercalar à formalidade quase descartável de um ensaio escrito na web intervenções ao sabor de meus respiros. Haicais (ou haikus) são poemas curtos de origem japonesa que se firmaram no Brasil ao fim do século XX. Concisos, costumam formar imagens por meio de três versos, a partir de elementos da natureza.

129


Trago como referência o trabalho da poetisa curitibana Alice Ruiz

54

e suas

múltiplas paisagens. Nesse exercício, o haicai acaba aproximando literatura e artes visuais, transformando poemas em fotografias 55. A forma é reconhecida por materializar imagens simultâneas num acontecimento, quase como se empregassem no conjunto uma única tela. Talvez porque no ocidente nossa escrita seja outra, ainda insistimos em justificar imagens pela escrita e vice-versa. Aqui, nesse experimento, o contrário. A escrita deve à imagem, a imagem deve à escrita. Não se explica, relaciona-se. Foi assim que encontrei uma maneira de devolver as provocações do meu corpo-memória em deslocamento e intensa confusão nas duas experiências away dos palcos italianos. parece um quadro e vou me enfiando até não sair mais [nunca] Apresentada no Centro de Artes da Maré, a instalação coreográfica da Antistatus Quo Companhia de Dança, grupo dirigido por Luciana Lara, configura essa primeira incursão à incerteza dos limites entre eu e o outro, público e plateia e, neste caso mais específico, entre humanidade e lixo (humano?). De carne e concreto

56

examina a

condição humana do corpo nas cidades, afundando-nos na dúvida ontológica do sujeitoobjeto a partir de metáforas cênicas para a utilidade, o consumo, a velocidade, entre outras formas de controle sobre a vida de concreto nas metrópoles. Essas imagens são contrapostas a exaustivos estados de corpo, negociando picos de intensidade com as instalações (in)umanas criadas ao longo do experimento. A divisão corpo-máquina é uma obviedade dramatúrgica desde que as revoluções industriais instalaram a reprodutibilidade técnica no cotidiano das cidades. Por essa via, De carne e concreto não anuncia uma novidade 57. A condição binária natural-artificial nos é insistentemente lembrada em nossas relações com a arte e com os dispositivos a que estamos sujeitos. O inesperado está, contudo, na maneira como essas imagens vão se

54

Sobre a autora. Disponível em: <http://www.aliceruiz.mpbnet.com.br/index.html>. Acesso em: 20/11/2017. 55 Sugiro algumas outras informações neste sítio: <http://www.recantodasletras.com.br/teoria-literariasobre-haikai/1135375>. Acesso em: 20/11/2017. 56 Ficha técnica disponível em: <http://panoramafestival.com/2017/de-carne-e-concreto-uma-instalacaocoreografica/>. Acesso em: 20/11/2017. 57 Agora mesmo me recordo, inclusive, de uma videodança que joga audaciosamente com esse abismo do chavão corpo-máquina, tão recorrente ele é em poéticas contemporâneas de dança. Gravity – um revê de demain, de Natalie Dufraisse, é um stop motion que contrapõe o peso das cidades à leveza da natureza. Mas também é uma provocação ao mito Adão e Eva. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l708jdxNlZs>. Acesso em: 21/11/2017.

130


construindo com as pessoas [público e artistas] em cena. Há sobreposições e disrupções, teceduras que nos fazem trafegar por imagens confusas, limítrofes entre o humano e o inumano. E, se em alguns instantes encontro vestígios de um corpo vivo, noutros me deparo com o desespero da pilha de lixo que avança como condição cênica dos corpos nus, tirando-lhes as roupas. O lixo fora dos sacos, os corpos fora das roupas. Em que medida não nos tornamos também sacos de lixo, amontoados de futilidades e acúmulos materiais? Há momentos em que a mesma imagem cênica serve à carne do corpo e ao concreto das cidades. Ainda seria possível dissociá-los?

Foto: Beatriz Veneu

Começo o experimento com uma sacola na cabeça

O Centro de Artes da Maré me parece uma das melhores cartadas do Panorama às coisas que fogem da configuração palco e pedem imersão em grupo. Um ambiente sem as reconhecidas hierarquias espaciais, lembra mais um galpão fabril. Aberto em 2010, o Centro é um projeto conjunto da Redes da Maré [organização da sociedade civil] com a Lia Rodrigues Companhia de Dança. O galpão à época sem teto, abandonado há mais de 15 anos na região da Nova Holanda, quadra da Avenida Brasil, passou por inúmeras reformas estruturais até sediar exposições, festivais, encontros e aulas de dança para a comunidade. Ali, o Festival Panorama tem organizado residências e apresentado trabalhos cuja experimentação cênica aproxima público e intérpretes. Teto altíssimo, paredes gigantescas e um largo horizonte. Minhas incertezas se instalam assim que entramos no espaço cênico, todos com sacolas de papel na cabeça [a 131


orientação é de que não as tirássemos até o desenrolar dos acontecimentos]. Antes da entrada, somos recebidos pela própria Luciana Lara, a quem aviso que meu cabelo vai engatar numa das ligas da sacola. Não deu outra [risos]. Enquanto chegavam mais e mais pessoas, vou ao banheiro arrumar o cabelo engatado. Então me vejo no espelho. [passado] – A sacola na cabeça inventava uma outra cabeça. E mesmo me reconhecendo, era naquele instante um anônimo de mim mesmo, já que minha face não era totalmente visível, meus sentimentos também não o seriam a ninguém. Outros tantos “ensacolados” me acompanharam ao banheiro. Engraçado conversarmos sobre as sacolas. Lá por aquelas horas já estávamos num universo outro: uma instalação da qual nossos corpos ensacolados faziam parte. olho no olho dente por dente sem sorriso a ver Alguns minutos depois, os ensacolados eram o preenchimento do espaço cênico. Espera, algumas grandes sacolas plásticas também. Sacolas humanas, sacolas de entulho, apenas sacolas... Sem saber quem era quem, quem ia dançar, quem ia assistir, quem assinava o experimento [todos estavam lá], fomos andando pelo espaço. Era possível recapitular apenas os conhecidos ou com quem nos deparamos antes de entrar. A quem não conhecíamos não havia como imaginar o rosto... era uma bela ladainha mental, imaginar os rostos debaixo dos sacos. Quantos anônimos! O anonimato da cidade, mas num nível mais hardcore. Bem possível que pessoas andem pelas ruas ensacando as cabeças de quem não querem ver, não duvido nada. De olhos nos olhos, tive alguns encontros estapafúrdios, como sempre 58. Lembro de uns bem verdes, difíceis de encarar. Pareciam até ganhar mais profundidade segundo o saco na cabeça. Nessa altura, a configuração cênica nos fazia andar em grupo. E podíamos nos encarar em roda. Alguns corpos pareciam organizar isso, encabeçando os acontecimentos. Sem que percebesse uma transição, fomos tirando as sacolas das cabeças. Uns dos outros. Era sempre alguém: um outro que vinha a nosso encontro. deitado no chão o corpo estafa em círculos Poema que surge neste instante da escrita refaz sentidos das minhas experiências de olhar. Disponível em: <http://dospedacosnajanela.blogspot.com.br/2017/11/anonimo.html>. Acesso em: 21/11/2017. 58

132


Sem as sacolas de papel, vimos corpos dançarem repetidamente uma célula coreográfica. No chão, foram se aproximando cada vez mais dos outros sacos, os de lixo cênico. Do encontro, a segunda instalação. Corpos insanos rasgavam os sacos atrás de mais e mais, a fim de enfiarem-nos nas próprias roupas. Enquanto isso ocorria, observava a natureza do entulho. Nada orgânico, apenas plásticos e papéis... objetos recicláveis. Penso sobre a condição mimética desse lixo selecionado, mas também sobre a segurança dos performers ao se fundirem com ele. Uma instalação de lixo pode ser higiênica? Ou não é lixo? Bem, o odor incomodava, alguns vestígios de chorume que viriam, também. Durante meus devaneios em cena, converso com Luis Garay 59 logo ao lado e isso ocasiona uma lembrança repentina de Futuros Primitivos, trabalho que pude assistir em São Luís no Conexão Dança 60. Lá, outra natureza de lixo. Um lixo muito sujo e arriscado, inclusive, a um triz de machucá-lo, ele e os outros performers. Com duas imagens distintas na cabeça refaço uma pergunta: a repetição do lixo deve ser higiênica ou arriscada? Ou ambas? Impossível materializar o lixão sem estar nele. Tudo seria mimético, no mais tardar, talvez, mais próximo de representá-lo segundo a finalidade dramatúrgica. de chorume nascem corpos perdidos, à sorte! Depois de virarem coisas de lixo, ficaram agressivamente nus. Digo agressivamente mas poderia dizer tranquilamente. Estados intercalados, a depender do instante. Quando tranquilos demais, me senti envergonhado de estar tête-à-tête, pois o grupo nu se afastou do público. Me afastei em seguida. Como somos vulneráveis...corpos desesperados num planeta abandonado à própria sorte. Talvez esta imagem me tenha sido mais apavorante do que qualquer outro momento da instalação. E a plateia...nesse momento havia plateia. Parecia mais um bando de abutres sobre o que restou do lixo, aqueles corpos perdidos. Não deixei de fazer algumas relações com... os urubus no lixão. Tão livres e dependentes dos restos, da vulnerabilidade. E a nudez brincou... nos entrelaçamentos de si, corpos acorrentados, lentas imagens foram se formando até que o grupo voltasse do canto onde se isolou. Aí já estava beirando a explosão. Foram vários Artista argentino que participava do Panorama 2017. Biografia disponível em: < https://luisgaray.hotglue.me/>. Acesso em: 21/11/2017. 60 Festival internacional de dança contemporânea realizado no Maranhão desde 2008. Informações disponíveis em: < https://www.conexaodanca.com.br/ >. Acesso em: 21/11/2017. 59

133


momentos em que estive diante de algum final, muito antes que ele acontecesse de fato. Mas uma imagem me foi audaciosa, brotou da mente como um emblema:

Dali (1943), Criança geopolítica observando o nascimento do homem

Brotou na parede, os corpos nus ainda dançando em conjunto. O chorume escorria por bundas, pernas, peitos, braços, sexos, mas aquela célula coreográfica de antes retornava lentamente com alguém suspenso no ar, apesar do corpo ainda imprensado pelo concreto. Um lapso sobre e com a brutalidade... Eram esses os corpos descartáveis? Mas quão sublime pode ser a existência, logo ela, tão suja! Não há sentido algum. Como algo divino e maravilhoso pode ser tão desimportante? Eternos retornos de estados mentais não equânimes. Morte! Nascimento! Úteros! Ignorância...ah! Eureca. Lixo... um dedo no umbigo inquieto Mais uma vez dissolvidos pela inconstância os corpos retomam o entulho, para ter com ele. E conosco. As pessoas são convidadas ao toque. “Você pode?”. Não sei se posso, ou se consigo. Senti nojo e fugi. Mas também nojo de mim, do inapreensível. Lembro de um cara segurando o quadril de uma performer...ela balançava intensamente ao toque dele. Uma dança esquisita, encontro de sujeito e objeto, do código com a pulsão. Afinal, não eram ambos a mesma coisa? Carne prestes a desaparecer? Qual o abismo ainda possível nesse jogo cênico que o público topou jogar? Não consigo ver esse gesto incutido apenas na representação. Corpos dançam e se afetam mutuamente. O toque, a sujeira, a nudez, de que mais somos feitos? Senti todos brotando do mesmo líquido. Um chorume comum, que me assaltou no instante seguinte, quando garrafas começaram a vir em minha direção. A ira do inapreensível e minha fuga contínua. Sai mais uma vez das proximidades para observar o devaneio raivoso sobre todos aqueles materiais descartáveis. Acho que a carne, ela ainda não aceitou sua própria condição... O concreto fica, a carne vai. O 134


concreto só se move com carne, mas permanece. A carne, ela apodrece. E morta, é engolida pelo concreto. Enquanto o entulho era lançado aos gritos na parede, vi minha garrafinha de água na mão. Já estava seca. Lancei-a ali mesmo, no lixão cênico. Mas o desejo...bem, queria mesmo, aos berros, jogá-la na parede. Conversei com algumas pessoas assim que o experimento acabou e encontrei algo em comum, a intensidade de identificação naquele instante de jogar o que não nos serve na parede, extravasar a raiva e o absurdo de estar nas cidades. Quanta coisa inútil. Para beber uma água, antes, o plástico. Para sair do lugar, antes, o automóvel. De que vida estamos falando nas cidades? Tecnologia, higiene e silêncio. E assim que os berros cessam, também a cena acaba. Despedem-se do lixo num abraço coletivo. Deixam-no conosco, com os aplausos que não vêm buscar. O que nos resta? Aplaudir o lixo a que também estamos submetidos como performers. De carne e concreto – uma instalação coreográfica encerra sua imersão num abandono, que fez de mim a cena de um acontecimento. A instalação sou eu. Um corpo também sou. Mas em que medida há cena? Instalação...estou confusa de novo. Haveria planejamento exato para o encontro de corpos que nunca se viram? Nem instalação, nem cena. Um risco coreográfico. Quanto menos palco, mais risco. A participação é imprevisível. E se eu ficar nua, aniquilar essa experiência escrota e burguesa de plateia em arte contemporânea? Não fiz. Mas sou dionisíaca [risos]. Cuidado com os corpos dionisíacos nas instalações. Não é um aviso, mas um ode à loucura. Se a tênue linha entre público e artista ainda exigir a polícia, há sempre o “louco” para peitá-la. E engraçado, a única polícia visível era a própria plateia [assim ela se tornava identificável]. Sempre na expectativa de um próximo acontecimento, como se não fossemos nós também a possibilidade do gatilho. O objeto é o outro, por isso esperá-lo surgir. Não posso pretender me tornar o outro, apesar de já sê-lo [sintaxe hipócrita]. [presente]Saio do Centro de Artes da Maré e não há nada mais inquietante do que se deparar com imagens da instalação mesmo que fora de cena. Na rua, vejo roupas, nudez camuflada e lixo. Alguns minutos se passam, pego um ônibus cheio, que será assaltado logo em seguida. Quatro adolescentes à mão armada. O que querem? Apenas os celulares, “ninguém precisa ser ferido”. Mas a carne, por vezes, também se torna um celular. E ao meu lado alguém desafia o assaltante, até levar umas porradas. O ladrão, inexperiente, vai embora, desiste da vítima. Talvez o medo de ser pego tenha sido maior. E de novo, a carne. Tudo muito ordinário e descartável. A tecnologia, contudo, prova seu avanço sobre 135


o corpo. Está acima da carne. Vale mais. Seu descarte cíclico sempre pode servir à economia das cidades. E não que sejam necessariamente antagônicos, corpos e dispositivos estão amalgamados num processo de substituição. Estamos tão alienados de nossos corpos que não me parece inédito pensar isso depois de duas guerras mundiais. No entanto, se entre nós e os dispositivos há uma série de sensações, quantas vezes damos vazão a isso, de fato? boa sorte no concreto, é pesado Depois do assalto, pessoas desconhecidas conversando dentro do ônibus – talvez não o fizessem noutra circunstância. O rapaz que apanhou do ladrão anda comigo alguns quarteirões. Na despedida, poucas palavras. Sigo pensando na Maré, naqueles corpos exaustos, em paisagens avulsas. Eu, apenas certa de que tantas imagens num único dia me deixaram nua, vestida naquela pouca roupa e cheia de concreto ao meu redor. [continua...]

H – Exaustos, paisagens e acontecimentos: a catarse! (second) “On and on, the beat goes…” Madonna, Beat goes on 61 Hard Candy (2008) Ainda ao som da rainha pop, seguimos. Não queremos perder o ritmo, ou queremos? Indo e vindo, a batida continua 62. Madonna aqui fala da repetição exaustiva e, apesar de Inside of me

63

, o segundo experimento pede outra fração de texto,

especificamente por sua dramaturgia ambígua. A exaustão da cena pode servir tanto à criação de imagens e acontecimentos quanto à sua impossibilidade. Pois se exausto eu continuo me exaurindo, tenho de lidar com o inferno da continuidade, quase como num transe de exaustão. A catarse de um corpo em repetição e disrupções pode, então, se desviar de uma ativa participação do público e dos acontecimentos em sequência, escapando às relações possíveis, mesmo que não as abandone por completo. Na verdade, ainda estou em dúvida se aqui o conceito de experimento consegue substituir, de fato, a ideia de espetáculo cênico. Se por um lado o público participa

61

Música disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=rRAV6eujO5I >. Acesso em: 28/11/2017 Livre tradução do autor para o seguinte trecho: “On and on, the beat goes”. 63 Antes de ler este texto, leia sua primeira parte: Da exaustão, paisagens e acontecimentos (first) 62

136


ativamente da experiência estética, reconfigurando os corpos em cena, não se assume, contudo, uma contiguidade. E se parecemos objetos de uma cena cujo ritmo está determinado, também nos tornamos, em alguma medida, sujeitos observadores de objetos cênicos: os performers. Mas tudo isso se confunde quando os corpos em movimento começam a se afetar mutuamente no espaço [inclusive o público]. Eles se tocam, apesar desta relação apenas subsistir. E, bem... ela se configura à beira do impossível! Porquanto os corpos que acabaram de chegar já estão a ir, escapando-nos por entre os dedos [dos pés], do entendimento, de qualquer associação. São corpos em fuga intermitente. Apenas a expectativa de uma catarse, numa tragédia, seria capaz de, mesmo tendo os performers ao nosso lado, ou aos nossos pés [fora do palco], impedir-nos de uma relação menos hierárquica com os corpos da cena. Ou seja, ao esperar por algo que vá romper com o clima de tensão instalado na dúvida, por meio da repetição de estados corporais, a obra fixa uma atmosfera cênica. Numa dramaturgia que resgata heranças da tradição grega, o que permanece, então, é uma estética da impossibilidade, o desatino de um corpo que luta contra o próprio destino em cena. A catarse chega, então, como uma finalidade dramatúrgica. Ela se concretiza enquanto plano de fuga para onde se projetam o drama ou o horror da experiência estética: Na poética de Aristóteles, [a catarse] designa um dos traços fundamentais da tragédia: ao inspirar, por meio da ficção, certas emoções penosas e malsãs, especialmente a piedade e o terror, a catarse nos liberta desses sentimentos dolorosos; o efeito moral e purificador despertado pela tragédia clássica, na Grécia Antiga, onde as situações dramáticas, de extrema intensidade, traziam à tona os sentimentos de terror e piedade aos espectadores, proporcionando o alívio ou a purgação desses sentimentos; purgação; purificação; catársis (TEIXEIRA, 2009: págs. 70 e 71) 64

A definição do crítico maranhense Ubiratan Teixeira demonstra como a estrutura trágica clássica propõe moralidade e catarse ao público. O resultado vem de uma intensa disputa de poderes, cujos personagens não possuem condições de vencer, culminando na desistência ou na morte. Estas figuras, que ascendem ao modelo dionisíaco clássico por meio dos arquétipos gregos, conduziram historicamente as experiências cênicas do ocidente a modelos mais brandos de espetáculos trágicos [vide o drama e o romance]. Interesso-me por contrapor essas configurações herdeiras da tragédia às relações experimentais estabelecidas entre os corpos na cena em questão. E por isso, continuarei com a imersão sensível às minhas experiências em jogo cênico, trazendo os haicais de

64

TEIXEIRA, Ubiratan. Dicionário de Teatro. São Luís: Instituto Geia, 2009. Obs.: Entre chaves palavra adicionada pelo autor desta crítica.

137


outrora, sem, no entanto, abandonar a ambiguidade intrínseca: espetáculo de uma tragédia ou experimento cênico? Ambos? Era Sísifo ou Orfeu? vi alguém descendo a ladeira da morte - [presente] Chove muito. A cidade completamente cinza. Ando pelas ruas do centro do Rio em busca da Escola de Cinema Darcy Ribeiro. No saguão principal, Cristian Duarte

65

exibe a coreografia Ó 66. Outro resultado da residência artística Lote 67, sediada em São Paulo. No experimento/espetáculo, o coreógrafo paulista se interessa em estabelecer o que chama de “dramaturgia tátil”, partindo de modulações afetivas e de uma ênfase no movimento como disparo sensorial. Em resumo disponível ao público, explica seu interesse pelo minimalismo na dança contemporânea, na tentativa de anunciar um afastamento do ideário trágico de que está impregnado o mito grego de Orfeu e Eurídice, base da criação de Cristian nesta cena específica. [Um afastamento. Será?] Por algum motivo, decide-se atrasar o experimento [sic] em algumas horas. Suponho que em busca de uma luz mais apropriada. A escola, localizada num antigo prédio dos Correios, possui grandes janelas verticais, por onde escapa muita iluminação. À medida que o crepúsculo se aproxima o espetáculo [sic] começa. Num cenário de abandono a la início do século XX, entramos num saguão cheio de colunas, com várias portas de madeira, todas fechadas. Logo que se forma uma aglomeração de público, surge um corpo feminino rodopiando pelo chão. O movimento cessa quando a performer esbarra em algo. Paredes, portas, pilastras. Ela se choca com qualquer objeto à vista. O movimento é interrompido várias vezes, mas o corpo insistente não demora a retomá-lo. Como um pêndulo, ela vai e volta em múltiplas direções. Em seguida avisto outro corpo, agora de um homem, repercutindo a mesma movimentação. Orfeu e Eurídice, dois pêndulos a nossos pés. Hades convida à exaustão um desejo de lhe escapar Então o desespero dos pêndulos aumenta, atropelando o que estiver pelo caminho. Ambos os performers se chocam com pessoas no saguão, criando loopings de esbarrões

65

Trabalho e biografia do artista disponível em: < http://www.cristianduarte.net/ >. Acesso em: 22/11/2017 Ficha técnica disponível em: < http://panoramafestival.com/2017/o/ >. Acesso em: 22/11/2017 67 Informações disponíveis em: < http://cinco.lote.site/no-lote/ >. Acesso em: 22/11/2017 66

138


e encontros. Ao tocar esporadicamente nas pessoas, elas também tomam iniciativa: umas se colocam no caminho, como obstáculos, outras fogem da aparição repentina, algumas assustadas. Noutras tantas vezes, o público também é surpreendido de costas, sem observar a chegada do pêndulo-humano. Criam-se pequenos acontecimentos dos esbarrões, entre sustos e surpresas. O público está em movimento com os performers, numa configuração cênica que se dá pelo toque. É t-á-t-i-l. A cena parece ir se projetando num estado de construção coletiva. As direções dos performers estão diretamente relacionadas a quem se interpõe em seu caminho [ou não]. Todos estão em movimento no saguão, decidindo ou se abstendo sobre o destino de Orfeu e Eurídice [ou apenas daqueles corpos em cena, como preferirem chamar]. De obstáculos, também passamos a ser respiros, desvios de caminho. Pessoas se juntam a fim de parar e estabilizar os corpos em desespero. É angustiante vê-los sem direção. Na repetição exaustiva, surge um som underground que toma o ambiente. Não lembro que horas começou a tocar. A ascensão da penumbra aumenta os vultos e, de repente, talvez estivéssemos no submundo do qual Orfeu e Eurídice tentaram escapar. Sim, o inferno!

Adaptação do mangaká japonês Masami Kurumada para o mito de Orfeu e Eurídice, na publicação de Saint Seiya (1986 -1991, 28 Tankōbon).

O impactante da imagem crepuscular acompanha a repercussão da cena de Ó a partir da proposição de Cristian sobre dramaturgia tátil. Toda sorte de obstáculos para os corpos em movimento resgatavam a paisagem deslumbrante e cíclica do mito de Orfeu e Eurídice. Nós, as pernas, os braços, as paredes, colunas, portas, qualquer coisa que não fosse capaz de estancar as repetições exaustivas e os gatilhos sensoriais de movimento dos performers. Qualquer coisa que não fosse capaz de lhes escapar ao toque. Nós, o inferno deles. Ou nós, todos no inferno. Difícil chegar a conclusões. Mas esta chave [o encontro da trágica atmosfera em que se dá a coreografia com as paisagens formadas com a participação do público naquele saguão macabro] parece delinear imagens além daquelas planejadas pelo diretor. E se a dramaturgia intenta um afastamento da tragédia mitológica, como atesta Cristian em sua sinopse, refuto-a neste texto recontando 139


brevemente a história do casal de amantes. A cena trágica, então, mais uma vez anunciada. um apego plástico ao defunto Orfeu perde sua amada Eurídice picada por uma cobra. Por amor, desce ao mundo dos mortos a fim de buscar a esposa. Eurídice era muito bela e morreu durante uma fuga, perseguida por um homem que não aceitou sua recusa. Ao chegar ao trono de Hades, a melodia da lira de Orfeu é capaz de amolecer até o coração de ferro do deus da morte, que concede a permissão de trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Mas com uma condição: que o belo rapaz não olhe para trás, a fim de se certificar da presença de Eurídice. Entretanto, quando está perto da saída do mundo dos mortos, Orfeu sente medo de ser enganado por Hades e tenta espiar atrás de si. Assim, vê apenas o vulto de Eurídice, que lhe escapa do horizonte. Com a desaparição da amada, o trágico fim de Orfeu se sucede no assassinato que sofre no mundo dos vivos. Mas, por ser filho de Apolo e esplêndido argonauta, é enterrado no monte Olimpo. O belo casal se encontra, enfim, nos Campos Elíseos, onde vive feliz após a morte. Ah, os gregos e suas histórias... Muito difícil não se remeter ao mito se ele está na sinopse do trabalho e é base para o acontecimento cênico. Por mais que a ambiência trágica seja recusada, os símbolos que permeiam a aventura de Orfeu e sua perda repercutem na relação dramatúrgica criada entre os corpos para a cena. A ideia de “não olhar para trás” aqui, ganha outras dimensões, talvez ao não prever o tempo ou o que vem em seguida. Sempre na expectativa de um acontecimento [ou catarse], seguimos os corpos rodopiantes no chão num eterno interlúdio – a saga vazia, sem começo nem fim. Daí, percebo os símbolos formando uma atmosfera a partir da exaustão, da repetição da célula coreográfica. Estar no inferno talvez seja a própria tentativa de escapar sem olhar para trás. O tempo demora a passar enquanto estamos nessa fuga ou tentativa. É um estado cênico, que ativa operações de corpo e paisagens, composições. Mas não as deixa fruir, pois fixa-se nessa atmosfera, que nos impele ao desejo de saber quando enfim acaba, ou muda. A repetição é exaustiva. Os corpos não param de rolar pelo chão na penumbra. Uma verdadeira suspensão. Olhar para trás, então, passa a ser uma metáfora usada por Cristian como um estado de interrogação do tempo, de sua matéria e consequente passagem. Passamos muitos minutos da cena centrados na angústia de “não olharmos para trás”, evitando uma possível surpresa ou à espreita dela. E assim que olhamos [para 140


trás], acaba [catarse]. Acaba ou continua? Bem, no caso de Orfeu é seu fim... Antes do fim, contudo, estamos cenicamente inseridos numa pergunta sobre a duração do tempo. E a penitência não se afirma em seu início. Ela dura em sua reiteração. Doravante, tudo aquilo que tenta impedir os performers de continuar sua saga não os afeta a uma mudança de estado corporal. Pois não causam o fim, a finalidade cênica. Lembro-me do instante em que uma roda se forma em torno dos dois performers [ainda rolando pelo chão] e de lá eles não conseguem sair. Um cerco, até que um deles para de rolar, senta, e abre espaço na roda, a fim de voltar a seu estado corporal longe daquela configuração. Todos se afastam e a roda se desfaz. Senti como se, às vezes, o público estivesse interrompendo alguma coisa. E estava, ao limitar os movimentos dos performers à roda. Mas, talvez, também estivesse atrapalhando um cenário trágico prestes a se instalar, mesmo que este nunca tenha se consolidado de fato. Uma brincadeira entre o controle da dramaturgia e a possível abertura aos acontecimentos com o público. Dúvida, agonia. Símbolos mitológicos formando uma atmosfera cênica, corpos coadunando-se em acontecimentos. Contratempo. Em vários momentos me afasto dos performers, noutros dou minha perna como consolo [sinto a resposta e a pancada/carinho na pele, não penso muito antes de decidir, afinal, vem alguém vindo na minha direção], ou sou eu mesmo o obstáculo. Depois de algum tempo, sento ao chão e espero que o corpo venha até mim. Mas não há uma expectativa pela chegada. Quero um pouco de paz do rolo compressor, de todo aquele desespero elétrico que se repete. E repete. Tantos estados emocionais quanto múltiplas as inconstâncias ativadas pela aparição seguinte. Fujo o quanto posso. Mas, mesmo isolado, vem alguém vindo, está rolando em minha direção. E me toca. É t-á-t-i-l o

d-e-s-e-s-p-e-r-o e a d-ú-v-i-da. solta-me a perna ao chão numa leve carícia

Algumas pancadas, de tão potentes, abrem portas de madeira que estavam fechadas no início da apresentação. É assustador. Num choque específico, a performer talvez seja a causa de um problema de som, ao esbarrar nas fiações dos sonoplastas. E alguém vai tentar proteger a moça, que poderia ter se machucado. Mas o estado de corpo não cessa. Continua, exaustivamente. Parece até proposital que nem mesmo uma sinfonia dê conta daquilo que os corpos podem fazer. E a música para. No caso de Orfeu, nem sua

141


lira foi capaz de lhe salvar do inferno. A cena, ela mesma em risco desde o início. Várias ações não coordenadas e, daí, acontecimentos. Estados invernais. Não imagino quão duro deva ser manter um estado de corpo como aquele, exaurindo-se catarticamente. Sinto pena do esforço, me angustia não ver outra alternativa de movimento. Quando acaba? Não dói, não machuca? Qual o limite? Não poder fazer nada e ao mesmo tempo ser pino disso tudo. Ser o pé que, de pé, vira o pontapé inicial do corpo em rodopios pelo chão. Sinto pena de Orfeu e Eurídice, sinto pena dos performers, sinto pena de mim, naquele in[f/v]erno. Pena? Não é seu problema, but its inside of me. rompe o fio que os ligava e a luz se foi Quando penso que qualquer coisa seria muito irrisória ou devastadora [extremos] para romper com tanto tempo imersos na mesma composição, eis que os performers se levantam do chão. Estão rijos e tensos, apenas um fio os liga. Até que não mais. Fim. A penumbra toma o rosto de Eurícide, a qual todos somos conduzidos para olhar no final. Eu estou de costas, tenho de virar para trás. Sem luz, o corpo se transforma num vulto diante daquelas grandes janelas do saguão. O fio está com ela. E se vai. Não há dúvidas do mito em cena. Também não há dúvidas de que é outra coisa. Talvez por ser dança mesmo e, em si, não se operar com o lugar comum da dramaturgia, uma dramaturgia tátil faça mais sentido. Tátil e espectral, at the same time. Tátil e trágica, althought your scene thoughts. Vejo apenas várias imagens em fuga. Quero eu também fugir. Esvaziado, exaurido, exausto. Paisagens de novo, agora fruindo, pois acabou a repetição exaustiva. Acabou... que saguão sombrio! Os vultos se foram... Mas ainda intimamente ligado, atravessado, como parte de acontecimentos que não se repetirão, pois a mimese é o que menos importa nessa experiência estética. O espaço e a relação com os espectadores [sic] serão outros da próxima vez. Os corpos em cena estão em deslocamento e toque, apesar do desajuste no encontro entre eles. E configuram qualquer outra coisa entre quatro paredes, menos um palco. Entretanto, não há ilusões: o controle de cena se sobrepõe ao acontecimento. Gera catarse. Mas nem mesmo esta é o que ousa a tradição. Uma catarse comedida, crepuscular, duvidosa de si mesma. Nela, há vazios, silêncios, conjecturas, espera. Não há tragédia clássica, mas há tristeza. Talvez, apenas relances trágicos numa dramaturgia de corpo. Vestígios que confundem o diâmetro espetáculo-experimento. 142


Assim que acaba, não consigo aplaudir. Apenas com os performers à vista. Sigo com provocações de toda ordem. Me pergunto se o diretor se submeteria ao mesmo estado de corpo e a tantas provações físicas. Mas sem moralismos, afinal, Ó é resultado das residências do Lote, espaço que “tem por princípio estimular práticas de trabalho compartilhado”68. A questão ética é apenas uma provocação em forma de devaneio: submeter um corpo àquilo que eu não aceitaria fazer, ainda mais se for arriscado, faz parte da economia secular da dança. Economia de coreógrafos sobre bailarinos. Mas não é só trabalho: é corpo. Lembro bem das tiras de esparadrapo, aparentemente para não machucar as mãos. Será que não machucam mesmo? Tanto tempo rolando...algumas vezes parece doer. Mas será a cena? Eurídice e Orfeu? A tragédia em seus esconderijos contemporâneos? Corpos exaustos? Ou o problema sou eu? Its me, only inside of me? Estive exausto do esforço. E dessa exaustão vi imagens. Estive no inferno, chovia, Eurídice e Orfeu, ninguém. Eu mesmo sozinho e o corpo daquele moço acariciou a minha perna. Eles estavam se chocando inúmeras vezes na parede, pareciam se machucar. Estou na rota deles de novo, quero fugir. Meu corpo também vai à parede. E dói. Espetáculo, será ainda? Maybe. Quem sabe nas expectativas trágicas da catarse. Experimento? O que nos resta, toque. Only inside of me, inside of you. t-á-t-i-l… De uma coisa não há dúvidas. A dança contemporânea tem se despedido dos palcos, mesmo que não pretenda abandoná-los. Parques, galpões, praças, saguões, praias... o paradigma cênico se redistribui por qualquer lugar onde a vida pulsa (ou não). E o regime de representação se vê ameaçado. Artes performativas, acontecimentos e imagens. Provoco, com Thereza Rocha, algumas dissonâncias a mais para pensar como outros tecidos dramatúrgicos compõem dança não necessariamente para criar uma “cena”. Segundo a pesquisadora da Universidade Federal do Ceará, isso se dá numa passagem das hierarquias do óptico para experiências hápticas [da sensibilidade do tato], que desprivilegiam a medida histórica de um olhar separado de espectador/observador para um o-l-h-a-r t-á-t-i-l. E assim pensar como “as obras que mais nos perturbam e que mais perturbam a cultura [...] são aquelas que estão sempre se perguntando acerca dessa relação entre intérprete e espectadores mediada pelo olhar, mas como alguma coisa que se dá entre” 69, devido às separações e economias históricas entre quem vê e quem dança na cena.

68

Texto retirado do sítio: <http://www.cristianduarte.net/available-works/lote/>. Acesso em: 29/11/2017 ROCHA, Thereza. O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Salvador, Conexões Criativas, 2016. – pág. 57 69

143


Não obstante, ambas as experiências investigadas na Mostra Panorama Br de 2017 se relacionam com essa fissura. “Se na vida não há mesmo como observarmos, senão mergulhados, imersos e confusos (confundidos)”70, talvez não possamos falar em cena apenas de observações, mas de tudo que está implicado em nossos corpos naquele instante. E isso é acontecimento conjunto com o público. De carne e concreto propõe esses experimentos na ideia de instalação, enquanto Ó amálgama à catarse uma investidura tátil, de múltiplos toques. A exaustão de corpos é o ponto convergente entre estas cenas hápticas. Formam-se paisagens e/ou atmosferas, configuradas por sobreposições, devaneios e células coreográficas. E se ainda há alguma ideia de controle, perde-se em detrimento da cena e suas hierarquias (in)visíveis. Passamos de espectadores [sic] a compositores: Nada restará ao público, a não ser a desconcertante assunção de seu próprio desaparecimento como sujeito-espectador e correlativo reaparecimento como motivo da composição – suas expectativas, seu lugar, seu papel no regime da representação (ROCHA, 2016: pág. 43)71

Com este desconcerto sou, então, capaz de compartilhar a presença cênica noutras configurações espaço-temporais em conflito com a representação. Entrando num circuito outro, mas sem reduzir isso a uma ficção que se opõe à “realidade cotidiana”. É corpo, experiência: corpo-pensamento-presença. Não seria tudo isso v e r dade... ? Sigo confusa. Lá, lá, lá, lá, lá! Assim damos o xeque mate no estado obsoleto da crítica. Sinto. Sinto muito, sinto tanto que preciso falar. E danço escrevendo, pois m-e-x-e c-o-m-i-g-o qualquerumqueapareçanaminhafrente e me note como CORPO eM mOvImEnTo. Nesse xeque, é apenas o rei logos que vai “à lona”. Nos canta [entre aspas] outra diva pop, a maranhense Pabllo Vittar. Mas deixo essa música para um próximo encontro. Madonna tem de tocar outra vez. E ela adora desestabilizar o logocentrismo. [com o coração] This complicated life I try to do my best I always tell myself It's all just a test For me it's an escape 'Cause dancing makes you feel beautiful Madonna - Heartbeat 72, Hard Candy (2008) 70

Idem, pág. 57 Idem pág. 43 72 Música disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Zub_06BQqXU >. Acesso em: 29/11/2017 71

144


I – COM QUANTOS NÚMEROS SE FAZ PESQUISA EM ARTES?

Tiago Amate (Universidade Federal da Bahia)

Atendendo a um incômodo não apenas pessoal, mas nítido a alguns metros de distância, nas várias poltronas enfileiradas do auditório do Museu de Arte do Rio, proponho algumas provocações à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Durante a mesa de encerramento do Trans-incorporados, em que se enunciaram as possibilidades de disseminação mundial das pesquisas brasileiras em artes, concluiu-se a fatídica e desanimadora redução numérica à qual ainda recorremos no campo dos estudos em artes e humanidades para qualificar não apenas programas de pósgraduação, mas o desempenho e produtividade de pesquisadores e estudantes nas universidades. O desânimo se dá na medida em que o paradigma de avaliação ainda recorre aos rankings e publicações validadas pelos já conhecidos centros de poderio econômico e acadêmico: as universidades de países desenvolvidos, cujos modelos estão centrados, a priori, no eixo Europa-América do Norte-Oceania. Entretanto, se essa fosse a única questão, ainda estaríamos isentos de um problema muito pior: a maneira como o conhecimento científico se validou e se estruturou institucionalmente pelas universidades mundo afora na primazia das ciências exatas e naturais, utilizando-as, doravante, como métrica de desempenho e produtividade para os modelos de investigação em artes e humanidades. O construtivismo inerente à organização científica, em seus espaços de poder e negociação, onde se concentram a maioria das operações numéricas de mais-valia que nos fazem determinar o decurso das pesquisas, é responsável por nos distanciar (especialmente nós, na América Latina, e nos países africanos e alguns asiáticos) de toda sorte de informações utilizadas para qualificar cursos como melhores ou piores, dotando de rótulos de excelência/decadência universidades e seus programas ensino e pesquisa. A fim de rebater algumas colocações da Capes em Perspectivas para a internacionalização da pesquisa em artes e humanidades, inoportunamente interessadas em reiterar uma supremacia científica do eixo Europa-EUA nas universidades brasileiras, considero importante começar por uma questão levantada durante a mesa. Determinados rankings são capazes de computar cursos que sequer existem em universidades de grande 145


porte, apenas para assegurar a tradição de que determinadas instituições têm reputação confiável nessa espécie de computação numérica internacional. E isso não ocorre apenas em instituições onde há ausência de lisura ou seriedade nas avaliações. Existe um amplo senso-comum que se dá acerca de uma supremacia acadêmica, instalando formas de “controle de qualidade” que reproduzem, a partir de números, um suposto modelo de excelência. Não obstante, estas operações se parecem muito mais com o contexto de especulação numa bolsa de valores do que com os espaços universitários democráticos pelos quais costumamos trafegar. E por que isso acontece? Tenho uma resposta. Talvez porque os números ainda se sobreponham às relações na construção coletiva de conhecimento. A produtividade é alçada ao nível mais alto de importância diante das inúmeras possibilidades que constituem os fazeres das instituições de pesquisa, nos fazendo

perder,

portanto,

a

viabilidade

de

instaurar

novos

regimes

de

formação/investigação que deixem de reproduzir a lógica hegemônica das publicações e congressos científicos, bem como seus fac-símiles. Nessa perspectiva, então, como seria possível determinar, num contexto global, quais as melhores ou piores instituições para se desenvolver uma pesquisa? A minha possível resposta se transforma noutra pergunta. Ainda precisamos desses esquemas obsoletos de comparação numérica entre universidades e pesquisadores? Se premeditarmos uma consideração pelos números, as pesquisas em artes e humanidades seriam as primeiras aniquiladas nesse jogo piramidal, pelas condições inerentes a que se estabelecem como áreas/campos de conhecimento dentro das universidades. São estudos culturais, envolvem relações humanas, corpos, sensações, pensamento, sociabilidade. Ainda mais se estivermos falando de artes, dança, etc. Ou seja, se os números se mantêm mais importantes do que as relações e suas possíveis dobraduras, continuamos a investir num modelo falido de predicação do conhecimento artístico, social, político e filosófico desenvolvido no campo das artes e humanidades. Isso, no Brasil, não é necessariamente uma novidade. Provoco esse dissenso, sobretudo, na perspectiva de uma recusa aos modelos objetivos de avaliação e classificação das pesquisas em artes. A tais investigações não compete uma limitação às expectativas númericas, rankings e afins, porquanto dadas numa relação dialógica, num entrelugar cultural, em dissonância às disposições que normalmente somos submetidos como símbolos de uma economia de saberes: estruturas. Afinal, se não fossem a variedade de estudos pós-estruturalistas nas pesquisas em artes durante a segunda metade do século XX ainda estaríamos corroborando nos cursos de 146


artes paradigmas recusados há décadas por artistas visionários, que afrontaram toda a lógica clássica da representação na produção artística e simbólica no ocidente. Nesse sentido, minha crítica também se estende a pesquisadores que ainda incentivam a transformação do conhecimento artístico em ciência. Arte não é ciência. Relaciona-se, mas não é. Pensando na transdisciplinaridade e na permuta de conhecimentos permitida pelos trânsitos entre áreas, é imprescindível que a universidade não se limite apenas à produção de ciência. A coexistência e troca entre as diversas formas de conhecimento cria um espaço em cuja diversidade cultural produz novos saberes. A ciência, nesse sentido, precisa dialogar com a experiência estética a fim de enfrentar o método científico ainda hegemônico nas pesquisas em artes e humanidades. E não é limitando ou mantendo o formato disciplinar que vamos chegar ao avanço necessário. Deixar a pesquisa em artes restrita à pós-graduação “profissional” ou “prática” recusa o próprio campo conquistado nas últimas décadas, com os avanços de investigações híbridas à experiência estética. A escrita performativa e a prática como pesquisa têm, por exemplo, refundado os modelos de produção discursiva, notadamente ainda devedores de uma lógica centrada no saber científico quantitativo. E se por um lado a miríade de avanços e atualizações infiltra a pesquisa em artes nos campos hegemônicos do saber, por outro os métodos de avaliação da área não se transformam com a mesma velocidade. Se a pesquisa em artes provoca ruídos ao método científico, isso significa que a coexistência de saberes na universidade precisa reconhecer novas maneiras de analisar a produção de conhecimento, não mais replicando as formas devedoras ao monopólio dos países ditos desenvolvidos e muito menos à soberania das ciências exatas e naturais. Estamos falando de arte, não de números ou testes. Não é sobre quantos professores brasileiros estão fazendo doutorado no exterior, ou sobre quantos estrangeiros somos capazes de receber em nossas universidades. É sobre se essas relações funcionam e constroem experiências estéticas, multiplicando as trocas culturais, repensando linguagens artísticas e firmando parcerias, afectos, perceptos. Não adianta esperarmos uma mudança contábil: o eixo Europa-EUA continuará seu monopólio impenetrável, alicerçado no neoliberalismo de uma globalização unilateral. Lá, as maiores universidades do mundo não vão parar de receber pesquisadores e estudantes de todo o planeta. E por isso precisamos continuar com as perguntas. Será que nessas universidades as trocas culturais realmente funcionam ou simplesmente replicam a verticalidade de uma recepção desinteressada? O que nos faz ter tanta certeza 147


de que seus modelos dão certo? Se analisarmos o contexto da internacionalização acadêmica essa resposta se torna, no mínimo, complicada. Até língua universal nós já temos. O império apenas mudou de nome e de facetas político-econômicas, mas se mantêm o mesmo: plutocrático e autocentrado. É esse o resultado da mais-valia do conhecimento de matriz europeia. Sigamos com as dúvidas. Poderíamos acreditar que o conhecimento investigado no Brasil é respeitado e, de fato, reconhecido nos países de herança imperialista? Ainda há muito a construir e, diante desse cenário, o Trans-incorporados trouxe profícuas provocações acerca dessa estrutura, incidindo especialmente sobre o cenário da pesquisa dança a partir da palestra de Cristina Rosa – Heranças e diásporas afro-ameríndias nos estudos de danças brasileiras nos EUA e na Europa: fluxos e refluxos. Um contraponto necessário aos distanciamentos culturais que os números não fazem ver, mas os corpos que dançam nas universidades, sim. Segundo a palestra, nas pesquisas em dança inseridas no eixo hegemônico, o arcabouço ontológico se remete a uma historiografia da dança europeia, bem como suas matrizes e variações “artísticas”. Pelo paradigma cênico instaurado secularmente na dança apartou-se da “arte” toda a experiência do corpo em movimento fora do palco e do consumo histórico da tríade realeza-nobreza-burguesia. A toda dança extemporânea aos modelos e técnicas legitimadas como arte rotulou-se a reprodução de uma perspectiva antropológica em dança, pressupondo pelo olhar eurocêntrico uma avaliação de estranheza, ou de outridade, às danças populares. A matriz antropológica de pensamento sobre as corporeidades dançantes, fora da hegemonia clássica-moderna do campo artístico, vem de uma segmentação política do saber-dançar, abarcando o que, na cultura brasileira, constitui prioritariamente a experiência do corpo que dança. Isso significa que, para a internacionalização da pesquisa brasileira em dança, precisamos, primeiro, romper com a estrutura solidificada de uma episteme determinada sobre os nossos fazeres, pela perspectiva do colonizador, na tentativa de convencê-los de que a dança no Brasil não se limita ao reconhecimento antropológico das matrizes de corporeidade/ movimento aqui desenvolvidas. Ou seja, precisaríamos persuadir o eixo EUA-Europa, monopolizador da legitimidade de uma internacionalização, de que, no Brasil, a dança também se dá como experiência estética. Não apenas como objeto de pesquisa da antropologia. Apesar disso, localizando as diferenças à reprodução dos modelos de dançalidade que legitimaram o fazer artístico na

148


Europa e nos EUA (acúmulos históricos e técnicos, reforçados no século XX, sobre o saber-poder dançar). Como dialogar, então, se epistemologicamente não há equiparação entre os saberes produzidos? Faz-se necessário um deslocamento, uma interlocução cujo esforço e “jogo de cintura” é muito mais dispendioso ao pesquisador brasileiro, que vai precisar traduzir sua cultura para um sistema global de internacionalização. E, ao lembrarmos a estrutura construtivista de um monopólio institucional, falo de um circuito não exatamente aberto nem interessado em entendê-la. Apenas as aproximações humanas, entre pesquisadores e estudantes, corpo docente e discente, serão capazes de refazer os caminhos hegemônicos, estes ainda direcionados pelos números. No caso da dança, especificamente, o corpo em movimento e suas trocas simbólicas serão imprescindíveis para desfazer percursos obsoletos. Enquanto isso não acontece, ou infelizmente torna-se invisível, diante dos fluxos numéricos de mais-valia em publicações, títulos, congressos, condições materiais e afins, artistas-pesquisadores se deflagram com o hermetismo de um sistema que não reconhece suas investiduras educacionais e simbólicas na universidade, perpetrando uma separação que não cansa de ser repetida. Artistas para um lado, pesquisadores para outro. Até quando vamos continuar impedindo artistas de reinventarem a pesquisa acadêmica no Brasil? Existiria arte, de fato, na universidade? Ou podemos apenas esperar dessa instituição as barreiras concernentes aos vícios de linguagem de um período histórico ao qual não devemos mais? Logo agora, quando o cenário da arte contemporânea se torna um dos maiores imbróglios institucionais com o qual o Império (lê-se os mais ricos, as realezas, as nobrezas e, mais recentemente, a burguesia e seu universo bilionário) teve de lidar no campo das artes nos últimos séculos? E se o professor/pesquisador é artista? Como reinventar a falida roda de obsolescência, contribuindo para uma universidade mais democrática em sua produção de saberes no século XXI? Deste agora, vejo as barreiras à informação sendo derrubadas feito uma fileira de dominós. Quem ainda vai à sala de aula ou aos laboratórios das universidades numa expectativa acrítica de ensino-aprendizagem? As instituições não podem continuar subestimando a resistência dos corpos que ali habitam e constroem conhecimento, especialmente na pesquisa em artes. E, nesse conjunto, são os órgãos reguladores e de financiamento à pesquisa (por exemplo, a Capes), ensino e extensão os principais responsáveis por uma alteração nos mecanismos de legitimidade acadêmica no Brasil. 149


Esqueçam os números, a produtividade e toda a distopia a que fomos condicionados pelo capitalismo financeiro no jogo da internacionalização. Na pesquisa em artes, precisamos de experiência estética, sobretudo relações que valorizem a criação e o processo como metodologias para a troca de saberes e culturas. Mas até que isso aconteça me parece tarde demais. Talvez porque o monopólio da ciência se recuse a dialogar com a arte nos termos em que esta existe: experimentação não condicionada a conclusões. Talvez porque as instituições vagueiem cambaleantes com os atrasos que lhes são característicos, reincidindo terminantemente na recusa por atualizações que acompanhem seu tempo. Talvez porque ainda não tenhamos saído de uma conjuntura colonial, cujas reverberações apenas mudam de nome no tempo segundo o objetivo de fala: neocolonialismo, neoliberalismo, neoimperialismo? Talvez porque com muitos números se façam ainda mais números e a pesquisa em artes aumente, mas, paradoxalmente, continue se esforçando por uma legitimidade recusada pelo método científico. Talvez... Nesse cenário distópico para a pesquisa em artes, como fica o artista-pesquisador, figura imprescindível para o campo? A pergunta precisa ser feita aos artistas que ainda resistem às estruturas de pesquisa nas universidades. Mas antes precisamos encontrá-los. Ainda não descobri como sobrevivem aos números.

150


9.2 Projeto Cine da da danse

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

TIAGO AMATE

CINE DA DA DANSE Projeto de cineclubismo dançante

Id: Elisson Tiago Barros Amate Matrícula: 216122466

SALVADOR - BA Setembro de 2017

151


CINE DA DA DANSE Projeto de cineclubismo dançante

ÍNDICE

1. CINECLUBE QUE DANÇA 2. Projeto 3. FILMES e artistas 4. CRONOGRAMA 5. Equipe e materiais 152


1. CINECLUBE QUE DANÇA

O que pretende um cineclube dançante? Compartilhar referências fílmicas e provocar corpos em movimento. Se assistir a filmes também nos faz pensar em mover, por que não nos faria dançar? Afinal, as imagens em movimento são a condição prioritária da existência da sétima arte, momento em que a fotografia passou a ser dotada de cinética. Ao longo do século XX vimos vários corpos moventes se multiplicarem nas mais variadas telas, entre salas, tvs, shoppings, centros, computadores, museus, noticiários, nickelodeons, celulares, internets, projeções urbanas, holografias, etc. O filme é uma das linguagens que consolidaram formas de entender e desejar o mundo no século passado, contextualizando a experiência de pensamentos dos corpos na atualidade, segundo palpite de Paula Sibilia em O show do eu: a intimidade como espetáculo (2008). Numa vida cada vez mais influenciada por narratividades e imagens audiovisualiens

73

, este projeto de

encontros entre cinema e dança pretende usar as imagens em movimento a favor da criação movente dos corpos. E seu propósito é fazer da relação cinedanse uma festa.

Uso a junção da palavra “alien” a audiovisual na perspectiva irônica de que alcançamos condição quase inimaginável de audiovisualidades na contemporaneidade. Somos verdadeiros alienígenas para os antepassados, quase como num filme de sci-fi. O desenvolvimento dos dispositivos e das tecnologias ao longo da transição das plataformas analógicas para as digitais fez do audiovisual a linguagem mais próxima das virtualidades de controle e circulação de informação no século XXI. Filmes e modos de vida viraram quase que a mesma coisa, aliens das múltiplas telas. “Valorizamos a própria vida em função da sua capacidade de se tornar, de fato, um verdadeiro filme”. (SIBILIA, 2008: 49) 73

153


Partindo de uma pesquisa sobre o dadaísmo de Hugo Ball e Tristan Tzara, passando pela zona autônoma temporária de Hakim Bey, a ideia é fazer do cineclube um espaço de experimento relacional que não tenha um propósito ou uma objetividade em si. O acontecimento e a festa, então, tornam-se atualizações viáveis no não planejamento, ao dispor vários corpos críticos e em crise diante das experiências estéticas audiovisualiens. Atravessando as danças de Vera Mantero e Kazuo Ohno, os cinemas de Maya Deren, Thierry de Mey e Pina Bausch, as reflexões de Gilles Deleuze e Alain Badiou, a proposta do cineclube dançante pressupõe resistência, sensibilidade, pensamentos, corpos e afetos, colocando tudo em jogo segundo os desejos críticos dos cineclubistas. Portanto, este é um experimento colaborativo e anárquico, sobretudo na medida em que prioriza exibição de filmes, rodas de conversa, danças cujas experiências ritualísticas de redenção e pensamento corporal forjem outras relações com o corpo, experiências diversas de espaço-tempo, festividades, brincadeiras. Enfim, aleatoriedade total. O cine da da danse é uma experiência temporária, sem fins lucrativos, que pressupõe a possibilidade de um experimento crítico-criativo na partilha sensível de filmes, vídeos, trailers, documentários, live streaming, especialmente criações audiovisuais da interseção dança-cinema. A ideia é utilizar a linguagem da videodança e do filmedança (mas não só, o cinema narrativo, a videoarte, a performance, a instalação também podem entrar em jogo) para desencadear debates e, consequentemente, experiências de corpo. Da exibição, culminar em conversas sobre os filmes, cenas, corpos e, em seguida, propor jams de movimento, ouvindo músicas variadas, segundo o dj convidado ou o grupo de pessoas que estiver presente na sessão. Se isso pode virar uma festa ou não, eis o experimento dadaísta de uma Valesca Poposuda: dá, dá, dá, dá! dá, dá, dá, dá, danse! Danse com s porque rolou uma confusão de inglês, francês e português. Cada um que pronuncie como quiser.

Ficou

assim,

esquisito,

aleatório,

rebuscado,

talvez

risível.

CINEDÁDÁDÁDANSE...cinedanse

2. projeto

O projeto consiste em exibições semanais e noturnas às quintas-feiras, na área externa ao Teatro Experimental da Escola de Dança da UFBA. Serão utilizadas a área do gramado e a parede branca externa. É necessário que seja à noite pois só assim é possível projetar imagens. A ideia é que as exibições durem entre uma e duas horas, com mais uma ou duas 154


horas de debate e experimentação. A sugestão de horário é início às 18h00 e término às 22h00. Serão utilizados um projetor, um notebook e uma caixa de som, com suas respectivas extensões elétricas.

3. Filmes e artistas

O repertório traz clássicos do cinema experimental, grandes nomes da linguagem de filmedança, documentários, atualidades em videodança/filmedança e experimentos diversos de performance filmada.

1. Loie Fuller

Serpentine dance (1896)

2. Analívia Cordeiro

M3x3 (1973)

155


3. Maya Deren

Meshes of the Afternoon (1943) The Witches' Cradle (1943) At Land (1944) A Study in Choreography for Camera (1945) Ritual in Transfigured Time (1946) The Private Life of a Cat (1947) Haitian Film Footage (1947-55) Meditation on Violence (1948) Medusa (1949) The Very Eye of Night (1952-55) Season of Strangers (1959)

4. Pina Bausch

O lamento da imperatriz (1990) Pina (2011) direção: wim wenders

156


5. DV8 Physical Theatre

Dead Dreams of Monochrome Men, 1988 Strange Fish, 1992 MSM, 1993 Enter Achilles, 1995 The Cost of Living, 2000

6. Thierry de Mey

1984: Floréal (documentary) 1993: Love Sonnets 1996: Rosas danst Rosas 1996: Tippeke 1998: 21 études à danser 1998: Musique de tables 1999: Barbes Bleues 2000: Dom Svobode

157


2001: Ma mère l'Oye 2002: Fase 2004: Counter Phrases 2006: One Flat Thing

7. Anne Teresa de Keersmaeker / Rosas

Répétitions / marie andre (1985) Hoppla! (1989) Monoloog van Fumiyo Ikeda op het einde van Ottone, Ottone (1989) Ottone / Ottone I and II (1991) Rosa (1992) Mozart / Materiaal (1993) Achterland (1994) Tippeke (1996) Rosas danst Rosas (1997) Fase, Four Movements to the Music of Steve Reich (2002) Rain / Olivia Rochette and Gerard-Jan Claes (2012)

158


Rosas / Olivia Rochette and Gerard-Jan Claes (2012)

8.Wolfgang Kolb

MUURWERK (1987) Hoppla! (1989)

9. La la la human steps La la la human sex duo no 1 / Bernar Hébert (1987) Wrap Around The World / NAM JUNE PAIK (1988) Velásquez' Little Museum Bernar Hébert (1994) Inspiration / Michael apted - documentário (1996) Amélia – édouard lock (2004)

10. Sasha Waltz Allee der Kosmonauten (1996) Dido & Aeneas / HENRY PURCELL (2005) Dialoge 09 - Neues Museum (2009) Trilogie: Körper / S / nobody (2011) Sasha Waltz: A Portrait / Brigitte Kramer (2014)

159


11. Jorge Alencar (Salvador)

Menino, menina (1999) Carry on (2001) Sensações contrárias (2007) Máster class (2009) Vídeos postais (2010) pinta! (2014)

12. Cia. Etc. (Recife)

Sobre (2009) Involuntário (2010) Maxixe (2010) Bokeh (2010) Suspiro (2011) Rebu (2012)

160


Estelita fight the power (2014) Dança macabra (2017)

13. Aloka das Américas (Tiago Amate)

PIN, WIM E CADEIRAS (2015) αλoκA No MAΣπ (2015) K. lor ✹ (2015) SOL EM CAPRICÓRNIO (2016) LUA EM CAPRICÓRNIO (2016) PAREDE? PAREDES (2016) ITACOA BALANCE (2016) FESTA, SOMBRAS (2016) KOQUERO! (2016) VULTOS DE BR (2016) MURO )( ÁRVORE (2016) ÁRVORE )( MURO (2016) MERGULHE (2016) Ê, CANTAREIRA! (2017) IÊ-MAR-JÁ (2017) DA DA DASEIN (2017)

14. Une minute de danse par jour (1001 danças/vídeos)

161


15. 100 lugares para dançar (100 danças/vídeos)

16. Vídeos exibidos em festivais de videodança (screendance) Mostra ip curta dança festival foda dança em foco d’olhar

(etc.)

4. cronograma

Periodicidade: semanal/quinzenal / Quintas-feiras 18h às 22h O cronograma pode ser alterado segundo as demandas do realizador. É possível que haja mais sessões do que apenas aquelas que foram planejadas. OUT 1ªsem. 2ªsem. 3ªsem. 4ªsem.

NOV ✹

✹ ✹

✹ ✹

DEZ ✹

JAN

FEV

MAR ✹ ✹ ✹ ✹

ABR ✹ ✹ ✹ ✹

MAI ✹ ✹ ✹ ✹

JUN ✹ ✹ ✹ ✹

162


5. equipe e materiais Inicialmente as projeções serão executadas pelo proponente do projeto. Sua equipe será descrita segundo os voluntários que surgirem no processo. A direção da Escola de Dança e a coordenação do respectivo programa de Pós-graduação serão informados dos nomes assim que forem designados. Mas, caso haja colaboradores, não serão em grande número, visto que a operação é simples. Exibição fílmica seguida de discotecagem para improvisação em dança nos gramados. Sobre os equipamentos necessários, segue abaixo uma lista simples com as demandas que possivelmente existirão no espaço de fora da Faculdade de Dança. Precisaremos, sobretudo, de extensões, projetor e caixa de som. ✹ EXTENSÕES (AO MENOS DUAS, OU UMA COM VÁRIOS INTERRUPTORES); ✹ PROJETOR DIGITAL, COM CAPACIDADE PARA LONGAS DISTÂNCIAS; ✹ COMPUTADOR (NESTE CASO POSSO USAR PC PRÓPRIO); ✹ CAIXA DE SOM (AMPLIFICADOR) E RESPECTIVOS CABOS DE CONEXÃO. ✹ ALGUMA ESTANTE OU MESA PARA APOIAR O PROJETOR; ✹ PLÁSTICO PARA PROTEGER MATERIAL DA CHUVA (A NEGOCIAR);

A ideia é conectar os equipamentos à energia do Teatro Experimental ou da entrada não mais utilizada pela Escola de Dança. Caso sejam necessários outros equipamentos, encaminhar-se-á nova lista de especificações. Em caso de chuva que possa danificar o material, as atividades serão encerradas imediatamente.

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Dança SALVADOR, 27 DE SETEMBRO DE 2017 163


9.3 Currículo Lattes Por conta da extensão deste memorial, sugiro que acessem o conteúdo de forma online. Ele está disponível no website. Seguem link e QR CODE, para acesso móvel. Ambos os links estarão disponíveis apenas temporariamente. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4361189P3

9.4 Certificados Devido à extensão deste memorial, sugiro que acessem o conteúdo de forma online. Criei uma pasta pública no Google Drive, com as três cartas de aceite dos congressos científicos por onde circulou a pesquisa. Seguem link e QR CODE, para acesso móvel. Ambos os links estarão disponíveis apenas temporariamente. https://drive.google.com/drive/folders/1F9QwhWzmuK9XRSKpMdzw8mMS6Ig17hXZ

9.5 Histórico Escolar A extensão deste memorial me levou a abrir publicamente, na web, este documento do Mestrado, para acesso via computador ou celular. Seguem link e QR CODE, para acesso móvel. Ambos os links estarão disponíveis apenas temporariamente. https://drive.google.com/drive/folders/11oXoL5lNj-I93tmJ5b74lmLiOzDyCzLl

164


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.