Catálogo Aceno_2019

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Pernambuco. Secretaria de Cultura Aceno : uma publicação do 48º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco / Secretaria de Cultura ; Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco ; organizador Tiago Montenegro ; coordenadora geral Silvana Meireles ; coordenadores executivos Márcio Almeida e Ellen Meireles. – Recife : A Secretaria, 2019. 88p. : il. Inclui índice remissivo. 1. ARTES PLÁSTICAS – PERNAMBUCO. 2. SALÃO DE ARTES PLÁSTICAS – PERNAMBUCO – HISTÓRIA. 3. COMUNICAÇÃO VISUAL NA ARTE. 4. ARTISTAS PLÁSTICOS – PERNAMBUCO – ENTREVISTA. 5. ARTISTAS PLÁSTICOS – PERNAMBUCO – DEPOIMENTOS. 6. ARTES PLÁSTICAS – BRASIL – EXPOSIÇÕES – COMENTÁRIOS. I. Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. II. Montenegro, Tiago. III. Silvana, Meireles. IV. Almeida, Márcio. V. Meireles, Ellen. VI. Título. CDU 73(813.4) CDD 730

PeR – BPE 19-166

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ÍNDICE APRESENTAÇÃO

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ARTIGO “Salão de Pernambuco: Desafios entre processo e formas”, por José Rufino

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MERGULHO Textos especiais, a partir de entrevistas com artistas, por Renato Contente

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VISITA Resumo de projetos, por Renato Contente

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ARTIGO “Salões e Prêmios: a institucionalização da arte”, por Marcus Lontra

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ÍNDICE REMISSIVO EXPEDIENTE

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APRESENTAÇÃO Em abril de 2012, o Governo de Pernambuco, por meio da Secult-PE e da Fundarpe, anunciou os 26 projetos de pesquisa e produção artística selecionados para o 48º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Criado em 1942 - e com uma história marcada por hiatos em sua realização -, o Salão de Pernambuco foi incorporando perspectivas importantes para o fomento às artes visuais no Estado e no Brasil. Entre elas, o estímulo à pesquisa, a valorização do percurso criativo, e a premiação de trabalhos em progresso, não apenas de obras prontas para apreciação do público. Esta importante dimensão vinha se traduzindo, desde 2002, na oferta de bolsas para pesquisas orientadas por respeitados curadores e pesquisadores da arte contemporânea nacional, contribuindo sobremaneira para a formação cultural e artística dos selecionados. À época do 48º Salão, o investimento estadual na ordem de 350 mil reais contemplou todos os envolvidos, garantindo o desenvolvimento dos projetos. Contudo, alguns não puderam ser executados, pois dependiam da realização da Exposição Final do Salão, que não aconteceu. Esta publicação, cuja produção atende a uma recomendação do Conselho Estadual de Política Cultural - aprovada em reunião no dia 12 de julho de 2017, como produto final do Salão -, revisita projetos e artistas selecionados; investiga o percurso daqueles que se dispuseram a conceder entrevistas exclusivas ao jornalista Renato Contente; e sugere reflexões sobre caminhos para as políticas públicas para a arte em nosso tempo. Conta ainda com textos inéditos de dois pesquisadores e curadores de referência para a arte contemporânea brasileira: o paraibano José Rufino e o carioca Marcus Lontra. Resgatando sua experiência como orientador dos projetos de Pesquisa e Produção em Artes Plásticas selecionados pelo 48º Salão, Rufino destrincha o processo de criação artística, situando-o nos atuais cenários da educação formal para a arte, do próprio mercado e das políticas públicas e privadas de incentivo. A contribuição de Lontra, que encerra esta publicação, também joga luz sobre questões fundamen-

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tais para a atualização dos marcos norteadores da política para as artes, como o urgente - e cada vez melhor planejado - enlace entre arte e educação. No que diz respeito ao incentivo do Governo de Pernambuco às artes visuais, plásticas e congêneres entre os anos de 2011 a 2018, chegamos até aqui celebrando a destinação de quase 12 milhões de reais a 137 projetos contemplados com os editais do Funcultura. Além do fomento a dezenas de exposições que ocuparam, também nesse período, equipamentos culturais como a Torre Malakoff e o Museu do Estado de Pernambuco. Esta publicação, que encerra os compromissos do Governo do Estado com o 48º Salão de Artes Plásticas, é ainda um convite aos artistas pernambucanos. É a abertura de mais uma porta para que possamos, juntos - sociedade civil e poder público -, avançarmos na elaboração e no desenvolvimento de políticas e programas que respondam com mais eficácia às expectativas e aos desafios do setor. Quanto mais conscientes estivermos nesse percurso, maiores serão nossas chances de êxito. Por isto, agradecemos imensamente aos artistas e pesquisadores que dedicaram tempo, e partilharam conhecimentos que nos permitiram finalizar esta publicação. Que o pensamento artístico e as reflexões aqui presentes iluminem nossa trajetória!

Secretaria de Cultura de Pernambuco Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco

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SALÃO DE PERNAMBUCO: DESAFIOS ENTRE PROCESSOS E FORMAS O Salão de Artes Plásticas de Pernambuco foi inaugurado em 1942, seguindo os moldes dos salões tradicionais europeus, especialmente os parisienses do Século XIX. Desde então, passou por diversas mudanças de nomenclatura e conceito, migrando em 2002, em sua 45ª edição, para um formato de mostra resultante de processos criativos desenvolvidos a partir de bolsas de pesquisa. Os processos passaram a ser tão, ou mais relevantes que as obras “finais”. Essa transformação acompanhou uma tendência mundial, não apenas de salões, bienais e outras instâncias de eventos e projetos de arte contemporânea, mas também do estabelecimento de novas categorias de artistas, como a do artista-pesquisador, o artista que se insere no âmbito da pesquisa acadêmica (científica) e discorre sobre sua própria produção (Poéticas Visuais; Poiética). Como define Sandra Rey1 na pesquisa em Poéticas Visuais, o artista pesquisador orienta sua pesquisa a partir do processo de instauração de seu trabalho plástico, assim como a partir das questões teóricas e poéticas, suscitadas pela sua prática. René Passerón 2 define o campo da Poiética como sendo o conjunto de estudos que se dirigem ao ponto de vista da obra, notadamente

a obra de arte. Isso resulta em textos únicos, no estabelecimento de um “pseudo-sujeito” (a voz do objeto) e na contaminação do autor/pesquisador. O resultado é um texto científico sem precedentes, tendo em vista que resulta do pensamento do próprio artistapesquisador, de sua “conversa” com o processo de sua própria obra e das relações que porventura encontre entre esse “diálogo de dentro” e a teorética. Na esfera acadêmica, esse campo corresponde às Poéticas Visuais. Define especialmente o artista-pesquisador ou aquele que discorre sobre sua própria produção, de dentro dela, falando por ela. É a voz do processo criativo, ou, de alguma forma, da própria obra, tendo em vista que quem analisa, questiona, descreve é o próprio autor. Esse

por José Rufino Artista, professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba e Programa de Pós-graduação em Artes Visuais UFPB/ UFPE; curador da Usina de Arte, Pernambuco.

(1) REY, Sandra. Da prática à teoria – três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas visuais. Porto Arte, Porto Alegre: Revista de Artes Visuais, v.7, n.13, p.81-95, nov.1996. (2) PASSERON, René. Da estética `a Poïética. PORTO ARTE, Porto Alegre, IA/ UFRGS, v.8, n.15, nov.1997, p.103-116.

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formato de produção de conhecimento em arte, muito peculiar em relação às áreas mais tradicionais das ciências sociais, ainda está encontrando seu locus na estrutura acadêmica, ainda batalha por um lugar no planalto das ciências. Eu, particularmente, não vejo porque não chamar a produção de conhecimento em poiética de ciência: Ciência da Arte.

(3) Salles, Cecília A. Crítica genética: uma introdução. São Paulo: Educ, p 106. 1992.

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Ainda no campo da pesquisa, especialmente sobre os processos de criação, mas com reflexos nos partidos curatoriais e nos próprios procedimentos dos artistas, a Crítica Genética3 passou a ter papel preponderante. Idealizada como uma ferramenta para a análise teórico-crítica de processos de criação em literatura, a Crítica Genética logo foi abraçada pela crítica de arte e um verdadeiro fenômeno internacional tem se consolidado com exposições de cadernos de artistas, esboços e toda categoria de making of. Muitos artistas, por sua vez, embarcaram nessa tendência Poiética-Crítica

Genética e passaram a produzir (guardar/revelar), seus esboços, escritos, cadernos, roteiros, maquetes, copiões, provas de artista, coleções, documentos fotográficos e fílmicos e todo resíduo/elemento de percurso com novas intenções, muito além das gavetas do ateliê ou dos arquivos virtuais privados. Vemos cada vez mais o desencadear de processos de trabalho de artistas acontecendo como minisséries nos canais sociais. Suas viagens de pesquisa, dentro ou fora dos ateliês, passaram a ser acompanhadas muitas vezes em tempo real, gerando, inclusive, interações que resultam em mudanças de curso das obras. A crítica e a curadoria têm tentado ouvir essas vozes das obras, emanadas de artistas pesquisadores ou de artistas sem vínculos acadêmicos. Os processos passaram a ganhar forma e visibilidade, dentro e fora das academias, nos salões, bienais, nas exposições em instituições públicas ou privadas. Chegaram ao mercado e galgam cada vez mais


hierarquias antes atribuídas às obras ditas terminadas. Cadernos de esboços e anotações de artistas se imbricaram com as “obras finais”, passaram a ser parte delas ou mesmo seu todo.

parte de seu espectro. Todo processo de criação ocorre de forma imbricada com aquilo que se pensa, por exemplo, enquanto caminhamos de um ponto a outro ou mesmo enquanto tomamos consciência de que o processo de Dar visibilidade aos processos tem criação está em curso. Pensa-se sobre o gerado não apenas outras formas de pensamento e o artista também pensa interação com o público, como também sobre o próprio processo de criação. outras demandas e comportamentos de mediação, outras arquiteturas de A criação em arte deve ter uma exposição, novos formatos de textos matriz, primordial, totalmente livre, e documentação e, consequentemente, provavelmente da classe das ações tensões entre formatos de salões/ do inconsciente, do lugar das pulsões eventos tradicionais, baseados em básicas (eros e tânatos) definidas obras “finais”, e aqueles que incorporam por Freud. Independentemente das processos-experiências-laboratórios- variáveis que podem afetar a criação viagens e obras que não chegam a um (estímulos/influências, desejos, traumas, fim, da natureza de work in progress objetivos), a manifestação final como ou participativas e abertas à interação obra é uma decisão consciente e do público, desde o processo até o fim ajustada ao possível, às possibilidades do evento. culturais, técnicas, curatoriais e até financeiras do artista e/ou evento. Esse O ato criativo, desde suas primeiras “ajuste” ocorre na transposição da ideia vibrações até a concepção final de uma para a linguagem, da mente para a obra, é tão complexo quanto o próprio forma ou ideia exposta, compartilhada. pensamento, tendo em vista que é Não existe arte na mente dos artistas,

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(4) Adorno, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008, 555p.

(5) Goswami, Amit. Evolução Criativa: uma resposta da nova ciência para as limitações da teoria de Drawin. Editora Aleph.

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somente depois que estes transformam pensamento em obra, seja um desenho ou uma proposição conceitual não materializável, pois a obra de arte não está mais no objeto e sim entre esse possível objeto e aquele que o experimenta. Em sua Teoria Estética 4 , Adorno afirma que “a liberdade absoluta na arte, que é sempre a liberdade num domínio particular, entra em contradição com o estado perene de não-liberdade no todo. O lugar da arte tornou-se nele incerto”. Na contemporaneidade, essa contradição, que aqui chamo de ajuste, ocorre na inserção do artista e de sua produção no chamado Sistema da Arte, que envolve galerias, curadores e críticos, salões, feiras, bienais, colecionadores, editoras, produtores e tantos outros condicionantes (do todo). Para o artista, criar é vasculhar no íntimo aquilo que é tido como específico do indivíduo (particular). É, ainda, confrontar essa especificidade com o que já foi e está sendo criado. Referências, citações, apropriações, filiações a “escolas”,

manifestos, tendências ou ideologias estão no bojo daquilo que está fora do íntimo, que vem do coletivo. É como se o estabelecimento do novo, do autoral, precisasse de respaldo do antigo. O presente se suja de passado num ato entre dança/combate. Nesse embate, o inconsciente coletivo tem seu papel extremo, como uma nuvem de vírus que se espalha de forma pandêmica. Tudo caminha para o estabelecimento de paradigmas estéticos-conceituais-ideológicos. Nessa dança/combate, categorias de artistas orientam suas produções para um encaixe nessas camadas de paradigmas (tendências), enquanto outros, como se sofressem mutações genéticas, desobedecem regras, contribuindo para a sedimentação de outro momento-paradigma. O físico Amit Goswami 5, transpondo o jogo de acaso e necessidade do darwinismo, fala em saltos quânticos descontínuos de criatividade biológica.


Outro físico, David Bohm, americano que foi professor na USP, quando trata das relações entre ciência e arte, refere-se aos paradigmas nesses dois campos, indicando como a seleção de aspectos de um mundo que é infinito acontece, por exemplo, na física e numa pintura. Segundo ele, a ciência e a arte sempre estiveram profundamente associadas, pois ambas se preocupam, sobretudo, com a criação de paradigmas. Dentre as várias investidas no sentido de desvendar e sistematizar as fases ou estágios do processo de criação, opto pelo esquema do psicólogo social inglês Graham Wallas 6, publicado em 1926 e ainda válido para a compreensão básica do curso mental da criação. Wallas dividiu o desencadear criativo em quatro estágios: Preparação, Incubação, Iluminação (insight) e Verificação (manifestação). A Preparação corresponde ao momento em que estamos na frente de um problema, seja qual for, e partimos para a coleta do maior número de

informações sobre o assunto em questão (dados, números, fatos). Após o levantamento desses dados, passamos a pensar sobre o problema com base em todas as informações de que dispomos. É a definição da questão, observação e estudo. A Incubação é a fase do processo em que a pessoa se desliga do problema, deixa-o de lado por um tempo, mas mantém uma chama acesa, alertando que o problema ainda não foi resolvido. Nesse momento, o inconsciente liberto do consciente, procura fazer as diversas conexões que são a essência da criação. Aqui, todos os referenciais pessoais, isto é, tudo que aprendemos na vida e que está arquivado na memória, é vasculhado. É a etapa onde os criadores relaxam, fazem trabalhos manuais, esportes ou qualquer atividade distinta do problema. Autores mais recentes falam em etapa de Aquecimento, o limiar da criação, onde é possível trabalhar a incubação (brainstorming). A Iluminação (insight) ocorre nos momentos mais inesperados

(6) Wallas, Graham. The Art of Tought. Tunbridge Wells: Solis Press, 2014, 202p.

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(7) Ramos, Nuno. Cujo. São Paulo: Editora 34, 1993, 84p. (8) Derdyk, Edith. Linha de costura. São Paulo: Iluminuras, 1997.

de nossa vida. É o momento em que a nova ideia emerge repentinamente. É quando visualizamos a solução do problema. A clássica expressão de Arquimedes “heureca!”. As ideias afloram e se encaixam como se fossem peças de quebra-cabeças. A Verificação (ou manifestação) corresponde ao estágio onde intelecto tem que terminar a obra que a imaginação iniciou. Neste momento, o isolamento não é aconselhável, pois necessita-se das opiniões e das reações alheias, através de testes, críticas, julgamentos e avaliações. Portanto, não é aconselhável atropelar a sequência dos acontecimentos. Cada artista desenvolve seus próprios caminhos de criação, suas relações com o tempo, com os materiais e técnicas. Cada um cria suas próprias estratégias, seus roteiros, seus jogos, seus arquivos. Como tudo na vida, os processos criativos amadurecem, evoluem. Os artistas aprendem com o tempo e aprendem também a pensar sobre os meandros

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da criação, uns mais conscientemente, outros mais intuitivamente, solitária ou coletivamente. Artistas como Nuno Ramos 7 e Edith Derdyk 8 estabelecem relações muito especiais, metalinguísticas, com seus processos de criação, deixando aflorar partes desses percursos sob a forma de textos que pairam em categorias inclassificáveis entre os relatos de processos e literatura. Não tenho dúvida de que essa ontogenia da criação pode ser dramaticamente afetada pelas posturas de orientação, dentro e fora do ambiente acadêmico, como também por qualquer iniciativa catalizadora de processos, como aquelas que demandam organização, redação de propostas ou apresentações públicas de estágios de processos. Encontros com artistas mais experientes, programas de residências, rodas de conversa sobre processos, orientações e/ou tutorias breves ou mais continuadas e eventos resultantes de vivências em ambientes socioculturais distintos


daqueles do cotidiano dos artistas, têm grande poder de desencadear novos canais no terreno da criação, bem como de destravar possíveis bloqueios na cadeia preparação-incubaçãoiluminação-verificação. Uma experiência importante que aponta para a descentralização da relação produção-difusão e para a formação não hegemônica de artistas é o projeto do Departamento Nacional do Sesc, Serviço Social do Comércio, o ArteSesc Confluências, iniciativa para a formação, prática e difusão no campo das artes visuais. O programa opera como “incubadora artísticocultural para o desenvolvimento de propostas que impulsionem novos fluxos poético-geográficos...” através de “encontros imersivos colaborativos”. Juntando grupos selecionados de artistas, geralmente jovens em início de jornada, o ArteSesc Confluências organiza laboratórios com mediadores, submetendo os participantes a cursos, palestras, oficinas e algumas

consultorias necessárias para o desenrolar dos processos criativos dos artistas participantes. As temporadas de trabalho culminam com exposições. Por duas vezes tive a oportunidade de participar do programa, expondo na primeira um panorama sobre o Sistema de Arte e as relações de jovens artistas com seus múltiplos atores. Na segunda oportunidade, optei por uma discussão sobre processos de criação e meus próprios enfrentamentos, ao longo de mais de 30 anos de produção e exposições. Vários dos participantes eram meus exalunos ou alunos e os questionamentos, assim como acontece em sala de aula, se dividiam entre assuntos formais/técnicos e de compreensão ou classificação daquilo que produziam e dúvidas sobre como se posicionar diante do Sistema de Arte. Venho percebendo um desejo de profissionalização cada vez mais prematuro e independente das posturas ideológicas. Estou aprendendo como mediar (para os outros e para mim) esse

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desejo, como contribuir com a dosagem entre poesia e meta, para usar o termo da sociedade do empreendedorismo. No jogo da criação, não vejo os dois termos como conflitantes e tampouco acredito que o fenômeno é novo. Apenas a temporalidade e os estilos mudaram, assim como mudou a compreensão sobre arte, especialmente depois das transformações provocadas pelas vanguardas do Século XX, que resultaram na Arte Contemporânea.

trocas críticas e caminhos de difusão de suas produções. A escola ampara-se nos conceitos de processos, percursos formativos, (invenção poética); autonomia intelectual e criativa; experiências e partilhas simbólicas e rotas de criação (apresentações e avaliação dos processos). Os participantes recebem uma bolsa de igual valor e podem contar com mais uma bolsa para assistente, seja um produtor, assistente de ateliê, editor, assistente técnico para subsidiar o desenvolvimento da investigação poética. Além disso, indicam um tutor/orientador de qualquer parte do país ou até estrangeiro, dependendo do orçamento do programa. Cabe ao tutor, além da orientação do artista, em quatro visitas a Fortaleza e acompanhamento continuado à distância, a realização de encontros abertos e cursos em módulos para outros artistas.

Outro programa de incentivo à formação de artistas acontece em Fortaleza, o Porto Iracema das Artes, que foi inaugurado em 2013, como uma escola de formação e criação artística gerida pelo Instituto Dragão do Mar, entidade pertencente ao Governo do Estado do Ceará. Define sua ação como um “um fértil porto de experiências estéticas, um ancoradouro de ideias e pensamento, um lugar de trocas e de partilhas simbólicas”. Trata-se de uma escola de formação de jovens artistas, bem como para aqueles em busca de As exposições de final de edições

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das bolsas foram substituídas por apresentações finais dos processos, juntamente com cada tutor. Isso, segundo Bitu Cassundé, curador do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e curador do Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes, aliviou a pressão sobre os artistas para a conclusão de obras para uma pequena mostra ao final do período de aproximadamente oito meses de vigência de cada bolsa, em prol de aprofundamento dos processos. Tive a oportunidade de participar da seleção do primeiro grupo de artistas do Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema, juntamente com Janaína Melo e Tadeu Chiarelli, sob a coordenação de Bitu Cassundé. O processo de seleção passava por uma apresentação oral de cada artista, uma espécie de arguição em torno da proposta de trabalho.

artistas, a partir de um convênio entre a Universidade de Arte de Berlim e seu Instituto para Experimentos Espaciais (Institut für Raumexperimente). A parceria se deu como um projeto educativo e de pesquisa e ocorreu entre 2009 e 2015. Durante cinco anos, 36 estudantes, 10 estudantes convidados, 26 bolsistas e mais de 400 convidados participaram da experiência. Olafur os chamava de participantes, assumindo o papel de co-produtor e não de professor, tutor ou orientador.

Em entrevista ao site da editora Phaidon 9, Olafur afirmou que a educação artística falhou em reconhecer que a criatividade produz realidade, complementando que o sistema hierárquico da relação aluno-professor nas escolas de arte pode ser improdutivo e pode distanciar os alunos da produção de trabalhos reais na vida real. Sem dúvida, muitas No cenário internacional, o artista instituições formais de ensino de arte dinamarquês Olafur Eliasson manteve, mantêm o padrão predominante de em seu grande ateliê de Berlim, uma aulas de história e teoria da arte e experiência inédita de formação de aulas práticas, geralmente divididas

(9) http://www.phaidon.com/ agenda/art/articles/2015/ june/02/olafur-eliasson-onart-schools-and-the-art-market/ Acesso em 15/10/2018

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por técnicas, como pintura, gravura, Ações como a de Olafur, em certa escultura. medida, colocam em xeque o papel formador de artistas nas instituições Poucas experiências, especialmente tradicionais. Sintomas disso são no Brasil, promovem a produção facilmente percebidos nos alunos de conhecimento e a maturação do concluintes do Curso de Artes Visuais da arcabouço poético em práticas mais Universidade Federal da Paraíba, bem experimentais, não-hierárquicas e não como nos mestrandos do Programa de submetidas ao paradigma do ensino Pós-Graduação em Artes Visuais UFPBcalcado na divisão de atividades por UFPE, quando ainda perguntam como semestres letivos, disciplinas e avaliação elaborar um portfólio de trabalhos, por notas. Quando isso acontece, como proceder para apresentar um geralmente se dá em atividades projeto em um edital ou mesmo em pontuais de extensão universitária que categoria submeter obras para um ou em projetos vinculados a certos salão. professores que desempenham a função de artistas-pesquisadores ou que Encontrar meus próprios alunos em duas permitem interações de seus processos edições do Sesc Confluências, envoltos criativos com a atividade discente. em outra vibração e com uma espécie de Cursos livres, artistas que fazem autorização extramuros universitários orientação, coletivos e programas de para perguntas e questionamentos residência (Parque Laje, Rio de Janeiro; raramente feitos em sala de aula, Ateliê Fidalga, São Paulo; Maumau, me faz repensar os procedimentos Recife; ChãoSLZ, São Luiz) muitas didáticos, especialmente no que tange vezes subvertem ou complementam as na relação entre teorética e prática atividades acadêmicas mais formais. artística.

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Não acredito em orientação ou tutoria de processos poéticos capazes de conduzir um amadurecimento de métodos, técnicas ou estratégias de forma neutra. Uma simples pergunta já carrega um sentido de condução. Minha experiência como professor de arte tem me convencido progressivamente que não existe modelo de relação orientador-orientando no campo da produção poética, nem poiética. Novos arranjos na educação formal são urgentes, pois os mecanismos do sistema da arte mudam muito, radical e rapidamente.

de uma mostra inteiramente feita de obras selecionadas por uma comissão, de um panorama de produção, para um experimento de partilha entre criação/criadores e público, sendo esse também chamado à experiência criativa.

Sobreviverão as iniciativas verdadeiramente imbricadas naquilo que se processa na sociedade, nos novos arranjos e demandas socias, onde o poder simbólico das obras seja capaz de atravessar os aparatos sensoriais dos indivíduos, atingindo a vida de cada um. Um evento de arte, em Também são urgentes, portanto, qualquer escala, deve transcorrer as reinvenções dos programas como um ser vivo, com uma de incentivo a artistas de ontogenia partilhada, transmutante. entidades públicas e privadas e, consequentemente, as transformações nos padrões de José Rufino salões, bienais ou editais. Nesse João Pessoa. Novembro. 2018 sentido, a mudança no formato do Salão de Pernambuco vislumbrou essa necessidade de afastar-se

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Textos especiais, a partir de entrevistas com artistas, por Renato Renato Contente Contente Jornalista e mestre em comunicação pela UFPE. Atutou como repórter de artes visuais no jornal do Commercio e na Folha de Pernambuco.

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ADRIANA ARANHA Por uma arqueologia dos afetos Foi em uma caminhada despretensiosa por uma rua de Paris, capital francesa, que a artista plástica paraibana Adriana Aranha se deparou com o que viria a se tornar o mote do projeto “O caso dos encontros”, proposto para o Salão: uma agenda repleta de registros e memórias datada de 1884. O livreto continha uma foto e uma moldura de papel, além de alguns escritos propositadamente apagados. O conjunto despertou na artista uma necessidade de se aproximar de cada dimensão daqueles objetos, desde a caligrafia ao idioma que lhe eram estranhos, no sentido de clarificar, inclusive, sua estada na cidade. Do encontro com esses objetos até a sistematização de um projeto artístico, a artista se debruçou sobre o idioma francês, estudou cuidadosamente a caligrafia da pessoa que escrevia na agenda e digitalizou o material de que dispunha. Estava ali uma vasta matéria-prima para escavar memórias, reinterpretá-las e somar a elas outras tantas, inventadas ou vividas. Dessa maneira, foi possível construir uma espécie de memória partilhada com o autor, ou autora, desconhecido, em uma narrativa que borra as fronteiras entre realidade e ficção, mas também

entre o que foi vivido pela artista e o que foi vivido por esse Outro. Para Adriana, o projeto demarca em sua trajetória uma aglutinação de interesses específicos relacionados à memória. “Esse projeto marca um momento de maior interesse pelas pequenas narrativas, pelo trânsito entre realidade e ficção, pelas vozes anônimas, bem como uma reafirmação de um interesse por trabalhos que partem de situações comuns, dando visibilidade aos pequenos acontecimentos, e abrindo espaço

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para o acaso, uma vez que nasce Há uma disposição semelhante em de um objeto encontrado, um diário escavar afetos em obras como “Antes datado de 1884”, sublinhou. que eu me esqueça” (2013/2015), na qual a artista escreveu palavras A imersão no projeto chamou a e pequenas frases-devaneios em atenção da artista para a potência de 384 papeis-cartão, empilhados em uma série de elementos, entre eles o uma caixinha de madeira, como nós próprio ato da escuta, uma observação mesmos guardamos nossas próprias atenta ao nosso cotidiano mais vivências, memórias e expressões de prosaico e também uma negociação subjetividade. das vozes envolvidas no trabalho, de certa maneira, uma negociação de Ao olhar de maneira crítica para protagonismo entre a artista e seu sua produção atual, ela percebe interlocutor. Em suas palavras, ela uma tendência de se deixar afetar foi “transitando entre situações de por outras tantas subjetividades, ao multiplicidade de falas/discursos, de procurar reativar e construir memórias narrativas abundantes e entrecruzadas e narrativas. “É nesse trânsito entre ou vozes mais isoladas”, no sentido de realidade, fantasia e ficção, nos buscar “preservar espaços de silêncio espaços íntimos dos pequenos atos e dúvida como campo de potência de resistência, da pequena política, para o trabalho”. das pequenas falas, das falhas e dos lapsos, que procuro construir os Embora seja singular na trajetória meus trabalhos, mantendo-me num de Adriana, especialmente quanto estado de escuta e observação mais ao processo de feição, “O acaso dos lentas, atenta aos vestígios, às vozes encontros” não está conceitualmente anônimas, aos detalhes insignificantes, isolado dos demais trabalhos da artista. aos fragmentos e rastros dos nossos

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Carta 3

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CAROLINA CALIENTO Repórter de seu tempo A artista paulistana Carolina Caliento é uma exímia caçadora de zeitgeists. Vemos isso com clareza na série de pinturas “Todas as vozes” (2011), nas quais retrata cenas realistas de uma metrópole aflitiva tendo como base fotomontagens feitas com imagens de jornal. No enquadramento que propõe, há moradias periféricas em chamas suspeitas, entulhos e ruínas de construções históricas, acidentes de automóveis, demolições, uma poluição latente e um trânsito caótico. Pelas indicações em placas de ruas e outras sinalizações, facilmente identificamos São Paulo, mas são pinturas que extrapolam a realidade de qualquer grande cidade brasileira, mesmo as mais notadamente gentrificadas (na verdade, talvez correspondam ainda mais às cidades gentrificadas e seus encobrimentos sociais), e se alinham aos demais países situados no rol do subdesenvolvimento mundial. Mais fagulhas de zeitgeists surgem no 2010 e 2016, que têm em comum trabalho proposto para o Salão, em imagens de jornais como matéria-prima 2012, intitulado “Massa”. Ali, antes das de fotomontagens, visando composições manifestações de junho de 2013, Caliento feitas em impressão, colagem e pintura. já se voltava para a violenta repressão “Fui experimentando estes pontos de policial, sob ordem do estado, contra diferentes modos. Em ‘Massa’, pude estudantes que protestavam contra o explorar uma relação mais explícita aumento das passagens do transporte do trabalho com a tradição da pintura. público em diferentes localidades. A Quando o propus, queria me aproximar artista situa o trabalho dentro de um do significado da pintura histórica, uma conjunto maior de obras, feitas entre narrativa pictórica da história política”,

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contou a artista. Nas obras acinzentadas que compõem “Massa”, vemos diversos elementos significativos dispostos sob a fumaça espessa das bombas de gás lacrimogênio, vestígios de tiros e sprays de pimenta: há manifestantes rendidos ao chão, pessoas correndo em desespero, cartazes expondo as demandas daquelas manifestações e atos de violência perpetrados pela polícia, munida de escudos, cassetetes e armas de fogo. São cenas de pintura histórica capazes de aglutinar múltiplos elementos narrativos e outros tantos signos inteligíveis relativos ao “espírito dos nossos tempos”. “São imagens que evocam um sentido de ‘batalha’ no (e pelo) espaço público, mostram um aspecto da organização da vida política na cidade”, refletiu a artista, cujas seis telas de “Massa” formam um grande painel de nove metros de comprimento. O trabalho se desdobrou ainda nas séries “Horizonte daqui” (2014) e

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“Refugos” (2015-2016), nas quais a artista reelaborou sua combinação entre fotomontagens e pintura, como a seleção de menos imagens dentro de uma única pintura e a escolha do preto e branco para destacar outros elementos que não as cores. Atualmente, Caliento vem desenvolvendo trabalhos com monotipias e colagem, ainda em consonância com a cidade e o modo como ela se estrutura, mas mais voltados para as mobilizações e narrativas captadas via redes sociais. Em perspectiva, a autora enxerga “Massa” como um exercício de observação da cidade. Não deixa de ser também uma investigação política e estética acerca da cidadania, ou do impedimento de vivenciá-la com um mínimo de dignidade. Para ela, o trabalho tratou de um assunto que estava prestes a tomar outras proporções a partir das manifestações de junho de 2013, cujas consequências de suas apropriações por parte de diferentes setores políticos, sejam conservadores ou progressistas, são sentidas fortemente nos nossos dias.


Massa

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CHARLES DOUGLAS Em sua proposta de vídeo-documentário para o Salão, o artista e antropólogo pernambucano Charles Douglas se propôs a articular reflexões das mais diversas a partir de um único questionamento: o que é arte-tecnologia? Intitulado “Tecnodoc – explicando a arte-tecnologia em Pernambuco”, o projeto consistia em um estudo sobre os enunciados constituintes da produtiva zona de convergência entre o campo das artes visuais e das ciências computacionais. Em uma linguagem ligada à experimentação em arte-tecnologia, dentro de uma narrativa que dava conta da trajetória desse formato no Estado, o material permitia ao público série de interferências ao longo da exibição, através de receptores de dados manipulados pelos próprios espectadores. De acordo com o artista, no texto que apresenta o projeto, uma das ideias iniciais dava conta de traçar um perfil dos criadores e apreciadores desse tipo de linguagem artística, através do mapeamento dos coletivos que produzem obras de arte-tecnologia. “Focando em Pernambuco, o documentário se apropria dos conceitos antropológicos de cultura e tecnologia como ponto de partida para guiar o objeto do filme à conclusão, onde se estabelece um paradeiro para a ‘artetecnologia’, que poderá ser distante do próprio conceito que a concebeu.

Todas as vozes

O documentário explica o que é artetecnologia para o público, apresenta aos artistas o conceito de forma mais técnica, dando parâmetros adequados para se entender onde reside esse campo de estudo”, explicou Charles. Esse mote inicial se desdobrou no projeto de videoarte “Isto não é um vídeo”, uma série de programas veiculado na TV Universitária de Pernambuco (TVU) dedicado à produção independente nessa seara. O recorte escolhido por Charles abrangia artistas de diferentes países

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e gerações, em uma tentativa de aproximar o público geral de uma linguagem audiovisual que costuma ter sua circulação restrita a determinados circuitos artísticos. Para o artista, o programa foi uma oportunidade rica de introduzir novas narrativas dentro de um meio (o televisivo) pouco afeito a novidades e a uma reflexão artística crítica, um movimento, portanto, potente e significativo no tangente à formação de público para obras artísticas construídas em linguagens semelhantes.

no movimento de descida, o autor propõe uma experiência sensorial através dos diversos cenários sobre os quais caminha. Vai construindo uma ampla cartografia da cidade em seus aspectos afetivos, políticos e sociais. O artista mapeia, assim, cantos que tocam fortemente na memória coletiva dos espectadores, entre pisos, arquiteturas, texturas e padrões que nos remetem a um não-lugar repleto de familiaridade. A obra é sinal da pulsão e do fascínio que Charles Douglas cultiva pela videoarte, seja através de uma (importante) Foi durante esse processo que perspectiva pedagógica, seja através Charles desenvolveu a obra “Recife de projetos autorais que fomentam a abaixo” (2015-2018), uma série rica produção do formato no Brasil. de videoartes na qual o artista se registra percorrendo dezenas de escadarias da capital pernambucana. Cada vídeo remete a um bairro ou a um prédio significativo para o criador, como o edifício California, em Boa Viagem, e o Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, na Várzea. Filmando sempre seus pés

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Escada mar

Escada de serviรงo

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CLAUS LEHMANN No projeto “De volta ao fim”, o artista paulistano Claus Lehmann não volta seu olhar para um “desfecho” das coisas, como pode sugerir o título. O fim de que fala não é exatamente a conclusão de algo, mas a constatação de sua decomposição, de seu apagamento parcial. Ao invés de explorar um desaparecimento “bem resolvido”, ele explora as evidências de uma existência que, ainda que em ruínas, insiste em se apresentar. Uma presença resistente e, por isso, incômoda. Sob essa perspectiva, ele registrou em imagens antigas, áreas públicas de São Paulo que foram continuamente deterioradas, ou simplesmente destruídas, para dar lugar a grandes construções privadas. São Paulo é o Recife porque também é o mundo. As imagens foram captadas em 360º, em filme de película, formato utilizado propositadamente para se trabalhar um outro “fim” inacabado, que é o dessa tecnologia fotográfica. “Já tinha participado de exposições e mostras, mas foi o primeiro projeto escrito mesmo para ser produzido e mostrado. A partir de então, passei a considerar novas possibilidades profissionais, através do meu próprio discurso, e não só como fotógrafo, que mesmo com uma linguagem artística,

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trabalhava focado para projetos de terceiros. Passei a dedicar mais tempo de trabalho para meus projetos e para a aplicação da minha experiência e linguagem fotográfica em um discurso poético”, contou o artista. O projeto marcou o reencontro de Claus com a fotografia analógica, tendo estimulado, inclusive, a criação de um laboratório especializado em imagens em preto e branco. Desde então, ele vem ampliando


sua poética em consonância com as novas possibilidades técnicas que experimenta, como é o caso da série de imagens “Numerografias” (2014), em que mescla desde arquivos digitais impressos refotografados, projeções digitais e revelação química. O processo resultou em imagens potentes e enigmáticas, que destacam, em paleta de cores azulada ou em preto

e branco, elementos como borbulhas d’água, estranhas paisagens e partes do corpo em expressão de desconcerto. Como em “De volta ao fim”, trabalhos mais recentes de Claus se apropriam de paisagens paulistanas para discorrer acerca de questões políticas mais amplas. Vemos isso se manifestar especialmente na videoinstalação

Numerografias

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“Arqueologia involuntária” (2014) e na videoarte “Parcialmente nublado” (2018). A primeira reúne registros da seca atravessada pelo estado de São Paulo, em 2014, com as fotos projetadas sobre espelhos d’água, procedimento que dá movimento às imagens. A última, por sua vez, consiste em um experimento estético-sensorial sobre o rio Tietê e seus altos índices de poluição. Em uma sobreposição de imagens em movimento, inicialmente enxergamos uma paisagem com

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árvores e nuvens atravessando-a apressadamente. Logo descobrimos que as “nuvens” na verdade são resíduos de poluição, uma espuma branca espessa e tóxica fixada à paisagem do rio. Esse trabalho exemplifica que a poética de Claus se potencializa justamente na experimentação de novos olhares vinculados a técnicas desafiadoras, através das quais o artista se inscreve no mundo e abre espaço para discussões que são caras a todos nós.


De volta ao fim

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JIMSON VILELA “Mas os livros que em nossa vida entraram são como a radiação de um corpo negro apontando pra expansão do Universo” Livros – Caetano Veloso

Acho pertinente começar esse texto com a citação de uma canção que, acredito, dialoga intimamente com o projeto artístico de Jimson Vilela. E não apenas porque o objeto livro é um componente central na trajetória do artista carioca, radicado em São Paulo, mas porque ele e o autor da composição que destaquei parecem partilhar de um entendimento semelhante acerca da função simbólica dos livros. Ambos sublinham, um em versos, o outro em experiências plásticas, a capacidade do livro de transcender uma forma material determinada: do contato das palavras (antes guardadas em folhas de papel) com o mundo exterior, nasce uma entidade radioativa em constante e incontrolável expansão no espaço. Na verdade, dentro da lógica proposta por Vilela, o livro não ocupa ou expande o espaço: ele é o próprio espaço. O artista vem desenvolvendo essa linha conceitual desde pelo menos 2012, ano em que propôs para o 48º Salão uma instalação intitulada “Um horizonte, as mesmas imagens”. Vilela não chegou a executar a instalação de acordo com o planejado inicialmente,

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por conta da não realização do evento, mas, a partir das premissas trabalhadas no projeto, concebeu uma série de instalações com livros que se tornariam uma espécie de assinatura de sua produção artística mais recente. Muitos livros e suas múltiplas páginas ocupando o espaço, tomando o espaço, tornando-se o espaço.

Infiltração


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Nos trabalhos de Vilela, os livros possuem uma natureza de confronto, se considerarmos as páginas já queimadas em fogueiras, restringidas a determinadas populações ou proibidas em situações de anulação da democracia. “O livro não ocupa o espaço, ele cria o espaço. Tento trabalhar essa questão ao instalá-lo no espaço expositivo, que é por ele subvertido, expandido e ocupado. Ele pode perfurar a arquitetura para constituir seu próprio espaço, por vezes ‘vazando’ para corredores ou salas, ou pode subir rente às paredes e se misturar a elas. O livro se torna espaço ao tatear o espaço. Simbolicamente, isso corresponde ao processo de passagem da experimentação para um conhecimento mais solidificado. O livro, em expansão, busca no mundo uma narrativa que preencha suas páginas, seja ela científica, histórica, política ou ficcional”, comentou o

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criador. Se antes o objeto livro lhe interessava por suas particularidades individuais, em uma visão plástica “micro”, como nas obras “para fazer a tua voz” (2011) e “Depois do nome” (2012), o artista passou a buscar respostas a partir de uma perspectiva “macro”. Em trabalhos como “Introspecção” (2013) e “Infiltração” (2015), Vilela voltou seu olhar para o “coletivo” dos livros, para a beleza e a verborragia visual de seu excesso exposto, sobreposto, intercruzado, continuado e descontinuado. Suas páginas descem da mesa ao chão, serpenteiam no piso, sobem às paredes (e também podem atravessá-las), simulam erupções violentas. O que sugerem se não a própria expansão de um corpo negro, apontando para a expansão do Universo, com a potência sobrehumana de lançar mundos no mundo?

Para fazer a tua voz


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LUIZ SANTOS Tecnologia e encenação são termos-chave na trajetória artística de Luiz Santos. A maior parte dos seus trabalhos modula uma relação muito própria entre esses dois eixos distintos, como vemos em suas incursões nos retratos em lambelambe, nas imagens (e, portanto, subjetividades) produzidas via smartphones e no próprio projeto proposto para o 48º Salão, também na seara da fotografia, intitulado “Painel de controle”. São trabalhos que se utilizam da tecnologia – que aqui não faz menção a algo necessariamente recente, mas a uma atividade que tenha impactado uma cultura de maneira significativa – para estimular encenações do cotidiano, mobilizando para tal agentes humanos e não humanos. Em “Painel de controle”, por exemplo, Luiz se propõe a subverter o olhar cotidiano sobre a cidade a partir de intervenções em lugares de grande circulação, mas sob a ótica das câmeras de monitoramento que nos circundam. Um procedimento que faz de uma tecnologia, portanto, agente de uma encenação pública. Para o artista, seria uma maneira de substituir o caráter controlador e potencialmente punitivo desses objetos por uma nova perspectiva do espaço urbano. Além da reprodução de obras de arte nos cenários captados pelas câmeras, o projeto previa um mapeamento

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dos pontos de vigilância em um painel interativo e ações educativas com os profissionais dos órgãos de monitoramento. Interessava ao fotógrafo inverter a ordem hierárquica estabelecida entre as câmeras, ou seja, o Estado, e os cidadãos. “Hoje, diante da invasão dos drones e do Google Maps, o espaço passa por novo olhar. Mas, ao contrário, não significa que o tema tenha se esvaído. Se eu tivesse que realizar o projeto agora, creio que daria maior atenção às encenações. Possivelmente os argumentos se

Simulação 2 - Gioconda


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enveredariam por novos caminhos, mas a força de encenar para as câmeras até cresceu em importância, embora talvez não mais com o propósito de fazer referência a imagens clássicas da arte, mas mais como uma crítica social, uma alusão ao cenário político mundial e brasileiro”, visualizou o artista. A relação especial que Luiz estabelece entre a encenação e a tecnologia reverbera desde pelo menos 2005, quando ele iniciou uma produtiva parceria com o retratista popular Tonho Ceará. Durante onze anos, produziram trabalhos no formato lambe-lambe, um caixote móvel que produz imagens quase instantaneamente, a partir de uma técnica desenvolvida no século XIX. Ultimamente, o artista vem se aprofundando justamente nessa tecnologia para a criação de novos trabalhos. Outro formato popular experimentado por ele foi a fotopintura – uma imagem “enfeitada”, ou melhor, recriada, a partir de intervenções ao

Simulação 3 - Vênus

gosto do cliente –, ao lado de Mestre Julio Santos. Juntos, lançaram luz sobre uma população invisibilizada: os pacientes de instituições psiquiátricas brasileiras. Luiz voltou a relacionar esse público à sua verve de encenação entre 2012 e 2014, quando trabalhou no projeto Hotel da Loucura, no Instituto Nise da Silveira, no Rio de Janeiro. Por lá, conviveu com pacientes e encenou com eles peças de Shakespeare. “Eu levei a ideia de trabalharmos também numa perspectiva de cinema. Realizamos em 2014 um simpósio sobre cinema e psiquiatria transcultural. Acredito que o meu interesse pelo teatro, inclusive, foi reforçado pelos envolvimentos que tive ao longo desses anos que separam a idealização do ‘Painel de controle’ e aquilo que sou hoje”, refletiu. Também em 2012, o artista explorou um tipo mais recorrente de encenação do cotidiano, que são as fotos tiradas através de smartphones. O trabalho

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lhe rendeu uma série de 50 imagens, hoje expostas no Museu da Fotografia, em Fortaleza. São fotos que reforçam a disposição do fotógrafo de captar as camadas de encenação que constituem o cotidiano. Olhando em perspectiva, ele parece estar sempre buscando, com seus trabalhos, o registro de um momento único. Em outros termos, está constantemente atrás das encenações irrepetíveis do cotidiano, seja qual for a tecnologia envolvida no processo de captá-las.

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MARCELA CAMELO O quanto de beleza e de tragédia cabem numa dedicatória de um disco antigo? O que essas dedicatórias podem transmitir de um senso coletivo sentimental? O quão efetiva pode ser a tentativa de traçar uma espécie de “estrutura do afeto” a partir de fragmentos dispersos de mensagens carinhosas e/ou magoadas inscritas sobre discos populares? São algumas questões a se pensar quando nos deparamos com o projeto “Lado C”, da artista garanhuense Marcela Camelo, aprovado no 48º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. O projeto passou por diversas experimentações ao longo dos últimos seis anos, chegou a ser exposto algumas vezes, vislumbrou novos formatos e maneiras de execução. E ainda pode ser retomado pela artista, que continua a se intrigar pelas questões que enumeramos. A ideia inicial consistia em compor um “quebra-cabeça delicado e sutil da personalidade humana”, como descreveu a autora, a partir de dedicatórias inscritas em discos de vinil coletados em sebos de Garanhuns. As imagens seriam reunidas e expostas em dois formatos: uma instalação interativa com as imagens inseridas dentro de uma máquina de jukebox e uma intervenção urbana com as imagens impressas em lambe-lambes. “Era uma pesquisa sobre a memória sonora coletiva de uma cidade que

se desdobrou em muitos elementos. Comecei a visitar moradores, a ouvir seus relatos acerca da memória de discos assinados e cheguei a acompanhar um programa na Rádio Difusora que, até ser fechada há poucos anos, era a grande transmissora de canções da cidade”, contou a artista, que apresentou o projeto tanto em espaços expositivos quanto em lambe-lambes pela cidade. Marcela considera voltar seu olhar para o projeto com outras abordagens,

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mas, atualmente, mais do que uma experiência sonora compartilhada, interessa a ela a potência do visual, da palavra escrita. Em trabalhos recentes, a artista vem distendendo a palavra “afeto” para percorrer caminhos que fogem ao sinônimo de “ternura”. O “afeto” que busca no momento corresponde àquele que nos afeta,

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atinge, mobiliza e desestabiliza. Vimos isso com clareza em trabalhos como “A verdade sobre a arte” (2017), no qual a artista dispõe em nove páginas a transcrição invertida de um discurso sobre a “verdade” da arte proferido por um deputado ultraconservador, que atacou as exposições “subversivas” que sofreram grave censura em 2017.


buscando na dispersão dos discursos em circulação, e também naqueles que simulam silêncio (os “já-ditos” que não costumamos questionar), narrativas que não só elucidem esses fenômenos, mas que também nos forneça alguma resistência. “O afeto permeia todo meu trabalho. Não podemos nos distanciar de algo que nos afeta constantemente. Tento usar a minha memória e as minhas vivências pessoais como substrato para discutir questões comuns a todos. Acho que estou sempre atrás de uma partilha do sensível possível”, concluiu. Esse movimento não deixa de ser um retorno a uma inquietação percebida em “Palavras-chave em cadeia nacional” (2010), onde imagens destacavam, e propunham novos sentidos, a expressões oriundas de programas eleitorais exibidos na televisão, como “Conto com você” e “Eu olho pra trás”. Nesse sentido, e desde o início de sua trajetória artística, Marcela vem atuando como uma arqueóloga daquilo que nos afeta,

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MARIA MATTOS Ao pensar no projeto “Nem tudo é verdade”, proposto para o 48º Salão, a artista carioca Maria Mattos decidiu assumir uma abordagem histórica visando um componente fundamental para a estruturação da sociedade brasileira e, em especial, da pernambucana: o açúcar. Pensando na visão fetichizante acerca da especiaria por parte dos colonizadores europeus, a personagem escolhida pela artista para urdir essa narrativa foi um soldado holandês do século XVII, auge da exploração açucareira europeia no Nordeste brasileiro. “Concebi o projeto pensando em uma possibilidade de instalação que abrangesse fotos, vídeos e sons, especialmente o registro de uma performance protagonizada por um homem simulando um soldado holandês em Pernambuco, caminhando ao redor de um monte de açúcar. Acho importante pensar em um personagem para minhas narrativas porque eles são responsáveis, em certa medida, por mediar a comunicação da obra com o público. Me interessam especialmente os temas históricos que apresentam ressonâncias atuais”, observou a artista. Se

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pensarmos

no

açúcar,

as

ressonâncias de que fala Mattos permanecem palpáveis e urgentes na nossa realidade, tendo em vista a exploração dos trabalhadores rurais em situação análoga à escravidão, por parte de grandes empresários do ramo açucareiro, e a perpetuação do racismo fundamentada pela lógica social e econômica da esquematização “casa-grande e senzala”. “Acho pertinente trabalhar com uma arte ligada a outros tempos históricos porque nos permite refletir sobre nossa posição enquanto integrantes de uma cultura em comum. Não creio que seja possível desvincular esse traço político da arte que produzimos. Cada vez mais, sinto que o viés da história é


fundamental”, pontuou. O vídeo-performance “Nem tudo é verdade” (2013) destaca a sensibilidade com que a artista trabalha questões grandiosas com ideias aparentemente simples, em que a potência do lúdico, assumido com propriedade pela artista, revela uma complexidade preciosa. O mesmo pode ser dito de outros trabalhos mais recentes também no formato de vídeo-performance,

mas com abordagens mais sombrias, que beiram o suspense, como no caso de “De noite no parque” (2014), ou propostas que tateiam temáticas referentes a políticas do corpo e questões de gênero, como sugere “La dame blanche” (2017). A partir de sua trajetória como um todo, também fortemente em sua produção fotográfica, entendemos que Mattos tem pleno domínio criativo sobre suas ficções críveis e pouco confortáveis.

La Dame Blanche

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MARIANA GALENDER Parece haver um certo “deslocamento urgente” nos trabalhos de Mariana Galender que culminaram em “Fuga nº 2”, projeto proposto para o Salão. Um deslocamento também vital, no sentido de que as mudanças de espaço-tempo nas quais incursiona são impulsionadas por situações-limite, assim imaginamos. Grosso modo, é como se ela dispusesse do recurso mágico de, em um piscar de olhos, se teletransportar para uma situação segura e minimamente confortável. As “fugas necessárias” que empreende quase sempre nos coloca em cenários vastos e silenciosos, também incomuns e bizarramente pacíficos. Esses “deslocamentos urgentes”, portanto, são menos escapismos convenientes do que estratégias de sobrevivência em tempos que nos exige singular resiliência. Assim percebemos as séries “Reversos”, “Respiradores” e “Parônimos”, focadas, respectivamente, em vastos terrenos com piscinas de fibra em exposição, telhados que destacam saídas de ar de aparelhos e máquinas e paisagens urbanas inabitadas. São esses alguns dos lugares para onde a artista nos leva após o seu “piscar de olhos emergencial”. Em “Fuga #1” e “Fuga #2”, há uma maior assertividade da fotógrafa nesse sentido. São imagens prosaicas, como uma vitrine de museu, uma poltrona de hotel e um aquário, que nos “convidam a uma

experiência do abandono, do silêncio, de escapes, de inversões”, como escreveu à época. A “fuga” a que Mariana se refere também toma o sentido musical do termo: uma estrutura que retorna de maneira modificada, atualizada a cada nova volta. “Reuni imagens de tempos e espaços distintos para essas duas séries. Queria construir uma constelação de cenários e objetos, um conjunto que criasse uma experiência de fuga, de evasão, que me levasse para um outro lugar. Em

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uma das fotos, por exemplo, há um quadro com uma paisagem. É como se, já dentro de um ambiente de fuga, eu pudesse encontrar uma nova passagem de escape e me transportar pela obra. Nesse sentido, empreendi tentativas de justapor essas imagens e aproximá-las, através de procedimentos de edição e síntese”, definiu a artista paulistana. “Hoje entendo esses trabalhos dentro de uma investigação da fotografia enquanto linguagem de construção e interpretação da realidade, que provoca estranhamentos e reflexões sobre o que vemos”, complementou. O ímpeto de deslocar-se foi atenuado nos trabalhos seguintes. Ao invés de produzir possíveis rotas de fuga, Mariana optou por explorar a potência da palavra a partir da imagem fotográfica em potencial, ou seja, da imagem ainda não materializada. Em “Coleção de fotografias não tiradas” (2011/2014), a artista reúne descrições de cenas que ela e outras pessoas presenciaram, mas que não foram registradas em imagens.

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Uma delas: “Num posto de gasolina tem umas garças caídas feitas de cerâmica”. Para ela, essas imagens/descrições não são memórias ou lembranças, mas enquadramentos. Dessa maneira, tem a generosidade de nos mostrar que uma imagem em potencial pode ser justamente uma poesia, e que palavras podem muito bem constituir imagens potentes. Ainda ligadas à palavra escrita estão as séries “Obrigada, volte sempre” (2013/2014) e “Trabalhos maravilhosos” (2013/2014). A primeira menos do que a segunda, já que dialoga mais diretamente com as séries “Fuga” e suas antecessoras. O letreiro-título, no entanto, é o ponto central das imagens que retratam um território obscuro e pouco convidativo. Já “Trabalhos maravilhosos” foi baseado em uma antiga enciclopédia voltada para uma educação tradicionalista de mulheres. Em outros termos, um livro-guia de como ser bem-sucedida na empreitada de atingir o “ideal” moralista de “bela, recatada e do lar”.


Mariana ressignificou as frágeis representações de feminilidade sustentadas pela publicação a partir de diversas intervenções. A recontextualização destacou justamente o caráter surreal da enciclopédia a partir de uma perspectiva contemporânea. Com isso, a artista não deixa de empreender um “deslocamento urgente”, mas dessa vez não no sentido de uma fuga da realidade. Agora o deslocamento consiste em um readequamento epistêmico, que compreende não apenas as políticas do feminino, mas também as demais representações minoritárias que se opõem ao masculino, à branquitude e à heteronorma enquanto leituras de mundo hegemônicas. Não há fuga; há afrontosidade e enfrentamento.

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MATEUS SÁ A memória é uma ilha de edição Talvez o traço mais sobressalente no trabalho de Mateus Sá seja os diversos usos que ele faz da memória. Se já temos como pressuposto a fotografia enquanto possibilidade imediata de materialização dessas memórias, as imagens que o fotógrafo pernambucano produz estão constantemente a sublinhar essa característica sob nossos olhos. Para além disso, há um subtexto presente em suas obras que as estruturam e as conectam com coesão: a potência da memória reside na possibilidade de ela ser recriada, redesenhada, reescrita à luz do presente, este que, tarda nada, vira ele próprio mera memória. “Pasta das ideias”, projeto proposto para o Salão, está inscrito nessa linha de raciocínio. Entre 1997 e 2008, Mateus captou imagens analógicas quase que de maneira obsessiva. Era uma produção que borrava as fronteiras entre diferentes tipos de memória, se pensarmos em memórias individuais, coletivas e sociais. As imagens, acompanhadas de rascunhos de ideias para projetos futuros, geraram uma espécie de acervo desordenado, chamado pelo artista de pasta de ideias. Após quatro anos afastado desse material, Mateus o

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revisitou e nele descobriu memórias e ideias desarticuladas à espera de ressignificado. Na perspectiva de Mateus, esse reencontro demarcou um novo início pessoal. “Foi um marco na possibilidade de me utilizar das imagens que normalmente produzia dentro de uma objetividade documental, para construir outros discursos conduzidos pela memória, subjetividade e a forte relação que sempre tive com o meio ambiente. Minha produção sempre foi conduzida pela intuição e emoção.


Mesmo quando me concentrava num discurso mais documental, me envolvia com temáticas que faziam sentido para mim na perspectiva emocional. O afeto sempre esteve presente nisso tudo”, detalhou o fotógrafo.

A trajetória pavimentada até “Pasta das ideias” é mesmo permeada por uma perspectiva afetiva da memória, como vemos nas imagens de seus primeiros anos de vida retrabalhadas em projeções na tela do Cinema São

Lugar das incertezas

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Luiz (“Minha vida como num filme”), composições criadas a partir de antigos slides produzidos ao lado de seu pai (“Memórias da paternidade”) e interferências com tinta acrílica sobre imagens diversas, em uma tentativa de encobrir memórias indesejadas (“Pá de cal”). Expostas na mostra individual “Antes de ontem, ontem e hoje” (2012), essas três séries travam diálogo direto com trabalhos como “Paisagem inexistente” (2010), “Reflexões” (2010) e “Retorno” (2017). Há um passo adiante nesse forjar de memórias em “Lugar das incertezas” (2016). Nele, Mateus retoma uma memória nebulosa e insistente: a manhã em que, aos cinco anos de idade, se perdeu da família no Vale da Lua, no litoral sul de Pernambuco. Ele voltou ao lugar para compor imagens de situações que vivenciou e outras que imaginou, dado que, ele pontua, acabamos criando imagens mentais de coisas que na verdade não vivenciamos. “Trabalho com esse limiar.

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Agora essas memórias compõem uma espécie de fábula, dentro dessa dualidade”, definiu. A série retrata crianças com máscaras de bichos folclóricos (La Ursa e Monga), uma cobra na areia, um pedaço de coral trazido pelo mar. Sinalizam possíveis perigos, mas também o ímpeto de se aventurar plenamente.


RICARDO BRAZILEIRO Podemos dizer que o miolo conceitual desenvolvido pelo artista pernambucano Ricardo Brazileiro é atravessado por uma relação singular entre ecologia, tecnologia e espaço urbano. As diversas possibilidades dessa interseção englobam não apenas questões políticas e sociais mais abrangentes, mas também reflexões existenciais, através de estratégias e mecanismos, propostos em seus trabalhos artísticos, que visam promover uma conexão mais sensorial entre o indivíduo e o seu meio. Talvez possamos dizer que parte significativa dos esforços de Brazileiro enquanto artista resida justamente aí: na reelaboração constante das maneiras de se vivenciar essa relação tão fundamental e reveladora que é a conexão entre nós e o espaço que ocupamos. O trabalho proposto para o Salão, “3c0: ecossistema do sensitivo”, dialoga de maneira direta com esse viés de sua obra. O projeto consistia em uma intervenção urbana interativa que propunha a coleta de dados ambientais e sinestésicos, em tempo real, de forma a produzir ecossistemas híbridos que reagissem com a dinâmica dos centros urbanos. Qualquer alteração no ambiente, fosse produzida naturalmente ou por força humana, era rapidamente captada e convertida em movimentos de guarda-chuvas equipados com sensores analógicos e digitais. Assim, os

transeuntes adquiririam consciência de determinadas alterações do meio que tendemos a ignorar cotidianamente, ao exemplo de variações de temperatura, ruídos e sinais sonoros, gases e poluições. Para Brazileiro, o trabalho dialoga com as investigações artísticas que vem propondo desde então, dado que a obra expressa a necessidade de pensar uma ecologia sobre os objetos e sobre sua experiência em rede. “Olhar o objeto do ponto de vista filosófico e sobre sua dimensão política. Qual

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o papel dos dispositivos embarcados no cotidiano? Vale observar o ponto de vista sobre panótico, vigilância e controle? Contudo, interessa os seus agenciamentos enquanto devirobjeto”, pontua o artista, evocando questões filosóficas contundentes, como a potencialidade de ação por parte do próprio meio e dos dispositivos artificiais a esse meio dirigidos. Sob sua perspectiva, a tecnologia se manifesta cada vez mais no sentido de normatizar seus dispositivos e efeitos com a intenção de penetrar em nossos corpos e vivências para além de nossa consciência.

variados, em geral, digitais, e estão em consonância com uma preocupação fundamental do artista: uma apropriação consciente e emancipadora da tecnologia, frente à dominação dos meios digitais, e das grandes empresas do setor, sobre nosso cotidiano. Assim, não deixa de ser um convite para que mais pessoas se apropriem, como ele, dessas ferramentas de maneira criativa, no sentido de criar e produzir narrativas críticas. Afinal, a tecnologia continuamente se lança sobre nossos corpos e consciências, uma vez que esses dispositivos e aplicativos estão presentes, e por vezes definem, nossos aspectos mais íntimos (os aplicativos Atualmente, Brazileiro se volta para de encontro, por exemplo) e prosaicos trabalhos que envolvem as relações (uma singela busca no Google ou a entre a Internet e a sociedade, limitação ao Netflix para consumir interações humano-computador (HCI), produtos audiovisuais). criptografia, análise de dados e o desenvolvimento social e urbano. Isso Para Brazileiro, a tendência é de que se dá através de laboratórios abertos fiquemos cada vez mais encurralados e da ocupação de espaços urbanos por dispositivos que promovem e experiências em ambientes rurais. diferentes formas de produzir enganos, Os formatos de que lança mão são ou simulações da realidade. “Como

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fugir desta caça? Acredito numa perspectiva da apropriação crítica das tecnologias. Como práxis: produzir os nossos próprios laboratórios, estudar sobre criptografia, refletir sobre o comum (commons) etc. O algoritmo é

uma expressão de uma inteligência coletiva. A inteligência artificial pode tomar decisões discriminatórias, seus dados refletem uma sociedade injusta. É urgente desenhar, experimentar e refletir as próximas interações

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Resumo de projetos, por enato RenatoContente Contente

Visita 63


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AMANDA MEIRELLES Arqueologias urbanas – Inserções em Recife

Resumo: O projeto é descrito pela artista como uma proposta de investigação e produção baseadas nas características específicas do ambiente cotidiano do Recife, especialmente no que diz respeito a modos de organização do ambiente urbano. Diferentes recortes da cidade seriam montados, entre imagens de paisagens e objetos, para dimensionar a percepção afetiva e política da artista em torno da cidade. O resultado final seria exibido em uma exposição, que englobaria diversos formatos que dialogassem com sua proposta, ao exemplo de objetos, pinturas, instalações e colagens. Nas palavras da artista, o intuito seria aproximar diferentes técnicas e apresentar outros modos de perceber os espaços que nos circundam, onde se revelam sintomas das importantes transformações presentes no ambiente urbano. BRUNO FARIA Monjope

Resumo: “Monjope” é uma proposta de vídeo-arte que apresenta as ruínas do engenho de mesmo nome, erguido no século XVIII, localizado em Igarassu. Como em outros trabalhos do artista, ao exemplo de “Elevação 01.Hiato” (2005) e “Versão oficial” (2017), explora a relação entre som e memória. Diante de imagens do antigo engenho, hoje tombado, um áudio reproduziria trechos de um programa de rádio dos anos 1970, narrando acontecimentos cotidianos dos moradores da cidade: uma espécie de “ocupação simbólica” no sentido de

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ressignificar a memória e as ruínas de um outro tempo. O engenho, enquanto um símbolo de decadência e violência, seria um elo entre o período colonial escravocrata, a ditadura militar e a contemporaneidade. Também seriam desenvolvidos outros trabalhos paralelos, nos formatos de desenho, fotografia e livro de artista. BRUNO VIEIRA Post Mortem Photos

Resumo: O projeto é baseado em uma pesquisa histórica referente a uma antiga prática fotográfica que consistia em tirar retratos com/de pessoas mortas. O que motivava essa produção imagética, geralmente, era a possibilidade de se registrar uma última imagem ao lado do/do ente querido. O que o artista se propôs a fazer foi uma releitura fictícia desse costume, revivendo cenas com não atores que interpretariam pessoas falecidas. Além disso, seria produzido um vídeo com depoimentos dos participantes do projeto. O artista pensou em selecionar pessoas que considerava conviverem com a possibilidade imediata da morte, ao exemplo de motoqueiros, enfermeiros, taxistas, policiais, aviadores e paraquedistas. Para o proponente, o projeto seria uma maneira de mesclar fatos reais e históricos com acontecimentos irreais, a partir de um ponto de vista melancólico e existencialista da presença do homem no mundo.

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DAVID DA PAZ Narrativas Cartográficas: artes, outros espaços e mídias locativas neogeográficas

Resumo: O projeto tem como objetivo mobilizar mídias locativas, especialmente celulares, no sentido de cartografar artisticamente a cidade. O artista propôs quatro “intervenções ciberurbanas” em paisagens e mapas virtuais da Região Metropolitana do Recife, que seriam executadas através de um sistema operacional próprio capaz de conectar as produções dos participantes das ações. O processo de feição de cada etapa seria registrado em um site e cada intervenção geraria um aplicativo para dispositivos móveis específico. As intervenções que foram propostas foram as seguintes: “A procura – Heterotopias do percurso”, “Traços da subjetividade”, “Acionautas/ Navegantes de ações” e “Concerto nômade”. Em comum, uniam a tecnologia GPS a uma visão poética e problematizadora da cidade, entre trabalhos com poemas visuais e música, por exemplo. O projeto integrava o coletivo de arte cearense Curto-Circuito, especialista em trabalhos que interligam performances artísticas e tecnologia. EDUARDO SOUZA Inserção Obcínica

Resumo: O artista, agitador cultural e referência nacional da expografia, falecido em 2018, propôs um projeto com o intuito de refletir sobre o campo da arte. O objetivo era construir uma ação coletiva envolvendo vários agentes desse campo, desde os profissionais técnicos aos curadores, críticos e os próprios artistas. O planejamento incluía pesquisas, debates e uma exposição final que deslocaria o protagonismo desses últimos para os técnicos, comumente invisibilizados quando as exposições abrem ao

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público. A ideia era se apropriar dos recursos expográficos utilizados em exposições no circuito profissional de arte, desde o texto na parede até o tipo de luz específica. Os profissionais técnicos assinariam a autoria da mostra ao lado do grupo Obcínico, fundado por Eduardo e André Doria em 2000. O grupo, como pontuou o proponente, tinha como meta refletir sobre o sistema de arte e suas lógicas imagéticas e clichês midiáticos. HERON DE BARROS DÓRIA Grafite: do piso ao teto

Resumo: O projeto tem como proposta realizar uma intervenção em grafite em um muro de uma casa localizada no bairro de Casa Amarela, no Recife. O local teria seu exterior integralmente grafitado, o que possibilitaria, de acordo com o artista, uma maior expressividade aos desenhos, dado que esses trabalhos tendem a se restringir a pequenos muros e tapumes da cidade. Heron também propôs o registro do processo artístico em um minidocumentário, que incluiria depoimentos de moradores da região a respeito de questões urbanas. Nas palavras de Heron, o projeto pretendia estimular os artistas urbanos a propor intervenções mais ousadas no cenário urbano, diferindo-se, portanto, dos padrões estipulados pela construção civil atual, que valoriza fachadas monotemáticas e sem identidade própria. Com o projeto, o artista também pretendia trabalhar a desestigmatização do grafite perante a população e promover a própria autoestima da comunidade em questão.

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LORENA TAULLA Iniciativas coletivas de artistas (Recife-Olinda, 1930-2010)

Resumo: O projeto de monografia da proponente buscava investigar o processo de formação e concepção de mais de 40 ações coletivas de artistas plásticas nas cidades de Olinda e Recife entre 1930 e 2010. As ações englobariam grupos, coletivos, sociedades, cooperativas, movimentos, espaços, ateliês, eventos e exposições que surgiram nesse período, em resposta também, como sustenta a autora, às limitações das instituições de arte governamentais. Assim, buscava investigar as formas de atuação desses grupos, seus espaços e as maneiras como foram articulados. A feição da monografia previa não apenas pesquisas em jornais, livros e catálogos, como também entrevistas com os participantes das iniciativas coletivas investigadas. Entrariam nesse escopo a Sociedade de Arte Moderna do Recife, o Atelier Coletivo, o Gráfico Amador, a Oficina Guaianases e a Oficina 154, entre outras dezenas de espaços e ações produzidas em conjunto. LUCIANA ALMEIDA O filme de artista em Pernambuco: cinco décadas do audiovisual como suporte

Resumo: O projeto de monografia proposto tinha como objetivo investigar a produção audiovisual dos artistas multimídias que tiveram sua produção relacionada às ações de vanguarda e experimentalismo em Pernambuco, nos formatos super-8, 16mm, VT U-Matic, vídeo e digital, desde os anos 1960. O enfoque da análise recairia sobre as dicotomias envolvidas no processo de feição desses filmes, como câmera/olho, câmera/ imagem e artista/câmera, além dos conteúdos e mensagens veiculados nesses produtos audiovisuais. Entre os artistas/grupos pesquisas, estão Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Amin Stepple, Jomard Muniz de Britto, Geneton Moraes Neto, Marcelo Coutinho e o

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Núcleo de Artes Visuais e Experimentos (Nave). NATASCHA LUX Criando antes que o mundo acabe

Resumo: O conjunto de crenças e teorias que previam o fim do mundo para a data de 21 de dezembro de 2012 inspirou o projeto da artista pernambucana Natascha Lux. Vinte e uma obras inéditas produzidas pelo estúdio de ilustração e projetos gráficos SuperTerra integrariam a exposição final. As peças mesclariam elementos da arquitetura urbana do Recife com eventos extraordinários, na intenção de criar uma atmosfera futurista, de fantasia, e em diálogo com aspectos regionais. Técnicas de desenho, pintura e tipografia retratariam o extraordinário cotidiano recifense, sugerindo reflexões sobre transitoriedade e as múltiplas possibilidades de vida e criação no espaço urbano. NICOLE COSTA 48º Salão em ação

Resumo: A arte-educadora Nicole Costa propôs uma atividade pedagógica para ser executada no período de realização do próprio Salão. As ações seriam propostas na medida em que os projetos artísticos fossem sendo desenvolvidos, de maneira a trabalhá-los de maneira articulada. Nicole soma experiência em mediação e ações educativas em espaços como o Instituto Ricardo Brennand, tendo participado, inclusive, de edições anteriores do Salão de Artes Plásticas, na função de mediadora, em 2000 e 2002. Foi dessa experiência que surgiu a proposta de explorar de maneira mais livre e criativa as possibilidades pedagógicas de um evento no formato do salão.

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REBECA MATOS Uma perspectiva intercultural da mediação de obras de arte

Resumo: A geração de diálogo entre público, artistas e obras de arte era o cerne da proposta de mediação cultural proposta por Rebeca Matos. O projeto previa o desenvolvimento de fichas ilustrativas, com diferentes graus de complexidade, que contemplassem as muitas referências estéticas, sociais e culturais dos trabalhos em exposição. Partindo da compreensão da arte como construção histórica e social, a ideia era enriquecer o momento de visita sugerindo uma “preparação afetivo-intelectual”, que não entendesse o visitante apenas como mero contemplador, mas como um potencial “leitor” das obras, capaz de se apropriar de novos conhecimentos sobre arte, estética e sociedade. REVOLUÇÃO ATRAVÉS DOS MUROS – R.A.M CREW. 4º Só Letras: Conexão Fortaleza e Recife

Resumo: O grupo propunha trazer ao Estado o evento de grafite Só Letras, realizado anualmente em Fortaleza. O evento tem como objetivo enfatizar a produção das letras dentro do grafite, destacando suas variadas possibilidades de forma, formato e significado dentro desta cultura urbana. Tradicionalmente, os organizadores do evento elegem uma localidade para uma grande intervenção artística, como uma maneira de revitalizar e ressignificar áreas urbanas descuidadas pelos governantes através da produção coletiva de painéis de grafite. Em Pernambuco, o lugar escolhido foi a avenida Ribeiro Pessoa, em Camaragibe. Para além da intervenção de 30 grafiteiros cearenses e locais, o grupo também propunha a realização de oficinas em escolas públicas e centros culturais localizadas na Região Metropolitana do Recife. A edição

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pernambucana do evento seria o primeiro passo de uma expansão regional e, posteriormente, nacional do coletivo R.A.M. Crew. SÉRGIO VASCONCELOS Terapias

Resumo: O projeto tem como objetivo a criação de um vídeo que dialogue com cinco formas de terapia citadas pelo artista: cromoterapia, audioterapia, tatoterapia, aromaterapia e alimentoterapia – cada uma articulada a um dos cinco sentidos humanos. A proposta era abordar de maneira performática situações da vida diária que, através de sua conceituação estética, modifique de alguma maneira o significado de valores e visões de mundo estabelecidas. Segundo o artista, o projeto seria um caminho para ritualizar a vida cotidiana, no sentido de propor uma tomada de consciência da nossa participação como elemento transformador e harmonizador no mundo. “Este trabalho pretende estabelecer um novo conceito simbólico de caráter terapêutico para as ações do cotidiano. O trabalho tenta despertar para nossa capacidade de transformar a realidade, ressignificado elementos e situações de forma sensível para o nosso bem-estar”, escreveu o autor. THELMO CRISTOVAM Sub(i)mersão

Resumo: O trabalho daria continuidade a um projeto homônimo apresentado em 2011 no Spa das Artes, no Recife. Nele, o artista propunha uma pesquisa sonora a partir de gravações subaquáticas feitas em pontes da cidade. O equipamento

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registraria os sons ouvidos por baixo d’água, em diversos horários, em um processo acompanhado pelo público interessado e transeuntes. Para Thelmo, o projeto tinha como objetivo revelar as diversas faces sonoras da cidade e seus meios, objetos e corpos, englobando desde os movimentos das pessoas e veículos que transitam pelas pontes até os sons que possam ser originados internamente no próprio rio. O produto final seria exposto em uma instalação sonora hexafônica (seis canais), além de ser registrado em mídia física limitada a cem exemplares do objeto sonoro. TRAPLEV Esquecidos dos trabalhos deles MESMO - 5

Resumo: No projeto, o artista ressignifica objetos ordinários em reencenações que lhes acrescentam potência política, além de letreiros com a mesma característica. Em uma mesma imagem, por exemplo, vemos enquadrados um pente, um talão de nota neutra e rasgos de jornal harmonizados com uma ratoeira, o que nos aproxima, talvez ainda mais do que há seis anos, da realidade brasileira, entre processos burocráticos, midiáticos e suas respectivas armadilhas. Seguindo a tônica das imagens, os letreiros propostos contêm as frases/palavras “INSUSTENTÁVEL”, “PLANOS, VALIDADES E FRUSTRAÇÕES” e “APROVEITAR O CAPITALISMO NO NEGÓCIO DA CULTURA”. O projeto trava forte diálogo com a trajetória do artista, dedicada a experimentações visuais e plásticas que discorrem sobre as diversas nuances da trajetória política mais recente do Brasil.

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SALÕES e prêmios: a institucionalização da arte “A gente não quer só comida A gente quer comida, diversão e arte” “Comida” Titãs

Salões de arte surgiram na França no século XIX com o intuito de apresentar um panorama da produção artística de determinado período e, através da premiação, formar um acervo que pudesse preservar a excelência artística de obras capazes de sintetizar os costumes sociais de sua época. Tais salões atendiam aos anseios de uma burguesia inquieta e curiosa e que, em plena belle époque, encantava-se com obras artísticas capazes de refletir e ampliar o gênio humano. Tais competições exigiam critérios de julgamento definidos por especialistas que baseavam suas escolhas na capacidade técnica e na adequação temática de acordo com os postulados clássicos da arte acadêmica. Claro está que esta definição de critérios seria perfeita se o mundo fosse algo estático e permanente. Na verdade, a arte é exatamente o oposto da estabilidade: ela é a instância transformadora do homem, ela impulsiona a tecnologia para novas descobertas e busca projetar o mundo, os seus sentidos e a sua inteligência, para o futuro. A arte foi, é, e sempre será algo misterioso, que transcende aquilo que chamamos de realidade e cria novos conceitos e novas interpretações do mundo. Por isso, já em 1863, Napoleão III foi

obrigado, por pressão dos artistas, a promover o Salon des Refusés que definiu as bases de uma nova proposta artística, o Impressionismo, que de início despertou a chacota e o desprezo, mas que na verdade acabou por se afirmar como a arte de uma burguesia disposta a valorizar a crônica, o cotidiano, a beleza dos pequenos momentos em contraponto à arte tradicional, épica, aristocrática e excessivamente alegórica.

por Marcus Lontra Crítico de arte e curador independente. Foi editor da revista Módulo; diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage; crítico de arte de importantes periódicos e dirigiu os Museus de Arte Moderna, de Brasília, do Rio de Janeiro e de Recife. É curador do Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas.

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No Brasil, mesmo antes de sua independência, foram promovidas ações oficiais em prol do desenvolvimento artístico que se inicia com a Missão Francesa de 1815. Desde o início do Segundo Reinado, competições artísticas foram promovidas no sentido de valorizar a arte como instrumento importante de aproximação do Brasil com as nações europeias. A definição do projeto imperial de fazer do Brasil uma grande nação europeia transplantada nos trópicos entendia a arte como agente de conquista e sedimentação de valores que uniam a humanidade ocidental à abundância e luxúria da paisagem tropical. Por isso, o prêmio principal, Prêmio Viagem ao Exterior, definia esse compromisso: permitir ao artista eleito o contato com centros mais avançados, modelos de civilização para que pudesse, no seu retorno, contribuir estética e filosoficamente com o projeto civilizatório proposto pelo Império. Grandes eventos artísticos eram essenciais à vida cultural da

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Corte: em pleno regime escravocrata, numa sociedade patriarcal dominada por grandes proprietários de terras, começa a surgir no Rio de Janeiro uma pequena burguesia essencialmente composta por funcionários públicos, agentes do estado dispostos a participar da vida nacional e a usufruir, como em Paris, das benesses da vida cultural. Esse é o público que passa a consumir e a participar das acaloradas discussões sobre as obras apresentadas nos salões, quase todas diante do desafio de integrar uma estética oficial de origem europeia à realidade tropical. As grandes batalhas são, nesse sentido, também, metáforas precisas dessa busca de heroísmo e glória acadêmica diante de uma verdade miserável e marginal. A proclamação da República e o desenvolvimento urbano de várias cidades pelo Brasil provocaram anseios modernistas que acabaram culminando com ações institucionais, em especial nas cidades do Recife, São


Paulo e Rio de Janeiro. A disputa entre forças artísticas antagônicas, entre a academia e o modernismo, manifestouse de maneira mais evidente na capital do país e a criação dos salões de arte moderna, já na década de 1930, acabou por reconhecer a importância dos modernistas como um importante agente transformador da sociedade brasileira. Depois da segunda guerra mundial, a criação de museus de arte moderna e, principalmente a criação da Bienal de São Paulo, reflete a ação de parceria entre o público e o privado no projeto de modernização do Brasil. A construção do conjunto da Pampulha em Belo Horizonte define o perfil da arte brasileira, integrando postulados da modernidade internacional com elementos oriundos do nosso passado colonial e a posterior construção de Brasília concretiza o projeto modernista como instrumento maior de identidade nacional. Além do salão nacional, diversos estados acabam por criar salões de alcance regional, formando uma rede de divulgação e

comunicação artística. A sofisticação e complexidade do circuito artístico nacional se acentuam com a oficialização do mercado de arte através da criação de galerias de arte que começam já nos anos 60 a atuar intensamente, valorizando diversas trajetórias artísticas e contribuindo efetivamente para a ampliação da arte no contexto social. Ao mesmo tempo, surgem novos colecionadores e a arte moderna brasileira passa a ter reconhecimento, numa rede que aproxima a imprensa, através dos críticos de arte, as instituições e o mercado. Os salões passam a refletir essa nova realidade e, mesmo diante de certas definições anacrônicas, continuaram a contribuir para a democratização artística, em especial, para a apresentação de variados painéis da complexa realidade artística nacional. Para muitos artistas, em especial aqueles que trabalham fora do eixo RJ/SP, o salão nacional contribuiu

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efetivamente para impulsionar as suas carreiras e, dentro de suas limitações naturais, acabou por refletir a vida nacional ao longo de toda a sua história. A ausência de uma política de aquisição de obras de arte por parte do Governo Federal fez com que as maiores coleções brasileiras fossem de origem privada e as obras oriundas das premiações dos salões acabaram por constituir a parte mais relevante desse patrimônio artístico e cultural. A importância desse conjunto de obras justifica a existência dos salões de arte em nosso país e é necessário compreendê-los como ferramentas essenciais para que possamos entender o Brasil, a sua história, os seus processos culturais e a complexidade de seus problemas. Assim, além dos salões nacionais, os salões regionais tiveram fundamental importância para a ação artística local, valorizando a atividade criativa como elemento essencial para se respeitar e valorizar a formação cultural, preservando-a quando necessário, mas também permitindo

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que ela se contamine com novas influências, garantindo assim esse processo dialético de transformação permanente que embasa a ação artística. Nas últimas décadas do século passado, os salões de arte foram as principais ferramentas de divulgação da arte brasileira que surgia depois da ditadura. Os anos de chumbo tinham silenciado os principais canais de comunicação artística; entretanto, a criação da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) restabeleceu pontes de diálogo nacional e, com a abertura política, essas ações foram ampliadas. Grande parte da arte jovem dos anos 80 teve presença marcante não só no salão nacional como também em vários salões regionais. Graças a grande presença das artes na imprensa nacional, identificadas com o momento de retomada democrática e otimismo nacionalista, permitiu também a sedimentação de um mercado de arte voltado diretamente para a produção


contemporânea. Esse processo teve continuidade na última década do século e, apesar do declínio do salão nacional, vários salões foram se destacando, em especial, o salão da Bahia que, anualmente, premiava artistas nacionais permitindo assim que o Museu de Arte Moderna do Estado formasse um valioso acervo de obras desse período. A evidente defasagem entre a ideia de um salão como amostragem de obras relevantes e as expectativas da arte contemporânea faz com que, já no início do novo milênio, exposições coletivas e premiações ocupem espaços cada vez maiores no cenário artístico nacional. Assim, prêmios e residências artísticas estão cada vez mais presentes na agenda de exposições das mais importantes instituições artísticas nacionais. Dentre elas, destaca-se, por sua longevidade e seu aspecto nacional, o Prêmio que a Indústria Nacional, através da Confederação Nacional da

Indústria (CNI) e do grupo Serviço Social da Indústria (SESI)/Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) promove desde 2002 e que homenageia o galerista Marcantonio Vilaça. O Prêmio aprimora a ideia tradicional da premiação artística adaptando-a às necessidades e expectativas dos agentes e produtores culturais envolvidos no setor das artes visuais. Os artistas são analisados por uma banca de jurados composta por curadores de várias regiões do país. Os portfólios examinados trazem imagens das obras, além de informações fundamentais sobre a trajetória profissional do artista. Os trinta artistas selecionados participam de uma grande exposição na cidade de São Paulo, principal centro cultural do país. Na noite de abertura, um júri nacional indica os cinco premiados que, além de receberem um valor financeiro considerável, comprometemse com a realização de exposições em cinco capitais brasileiras, numa itinerância poucas vezes realizada na

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arte brasileira. Ao longo desses anos, o Prêmio já realizou 36 exposições em 16 estados brasileiros, difundindo a produção de 67 artistas, entre trajetórias premiadas e artistas homenageados e convidados. Mobilizou também a participação crítica e reflexiva de mais de 35 curadores, entre nomes nacionais e internacionais, numa articulação diversa e potente do ecossistema da arte contemporânea brasileira. Durante toda a nossa história, a arte serviu a propostas ideológicas nacionais, tanto no Império como na República. O ensino formal sempre desprezou a atividade artística, compreendendo-a somente pelo seu lado “espiritual” e jamais pelo extraordinário potencial de pesquisa, criatividade, inovação e transformação. Por isso, acervos ainda hoje tendem a ser vistos como “elefantes na sala”, elementos complicadores que acarretam problemas variados para um estado

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burocrático, inchado e incompetente. Numa certa medida, o ensino formal brasileiro reflete a mentalidade conservadora de parcela ponderável da sociedade brasileira para a qual o papel histórico do trabalhador é apenas repetir tecnologias, sem tentar transpor as barreiras do ofício e de suas técnicas. Entretanto, mesmo diante desse quadro estático e conservador, o mundo contemporâneo está a exigir atores capazes de enfrentar e se adaptar as constantes transformações tecnológicas. Nessa nova etapa da revolução industrial em que vivemos, regida pela velocidade da comunicação, a escola tradicional não responde às expectativas do mundo onde vivemos, por isso, devemos propor que todos os agentes, públicos ou privados, se empenhem na formação de trabalhadores capazes de enfrentar e responder aos desafios do mercado de trabalho. As atividades artísticas devem ser compreendidas como ferramentas indispensáveis de incentivo à velocidade de raciocínio,


capacidade de enfrentar situações inesperadas, entendendo a inteligência como aliada da sensibilidade. A automação do mundo exige do homem muito mais do que gestos repetitivos; o homem contemporâneo trabalha na administração desses sistemas de linguagem, editando informações, pesquisando territórios inexplorados e se afirmando assim como personagem único e intransferível. Nesse quadro atual, ações direcionadas ao fomento das atividades artísticas, sejam elas públicas ou privadas, devem considerar o papel dos agentes institucionais como instrumentos capazes de estabelecer canais de comunicação com várias esferas sociais, em especial com as atividades educacionais. O mecenato tradicional, que tem pautado as relações com o setor artístico, deve ser substituído por investimentos mais articulados e produtivos. A consolidação de um mercado de arte que, a partir da década de 1980, conquista público

e reconhecimento internacional, incrementou o surgimento de galerias e colecionadores que hoje circulam com desenvoltura pelas feiras de arte ao redor do mundo. Essa parcela opulenta do mercado de arte, que mesmo em épocas de crise sobrevive, confronta-se com a crise endêmica do estado e com a consequente ausência de recursos, o que faz com que a maioria dos museus e centros culturais brasileiros vivam à beira do estado de calamidade pública. Vandalismos, furtos, e mesmo incêndios que destroem o patrimônio cultural e a memória do país refletem a incapacidade atual dos agentes públicos de preservar acervos artísticos de qualidades indiscutíveis. Sem vitimizar ou satanizar a administração pública, é preciso unir esforços e oferecer propostas que colaborem para reverter esse quadro atual. Assim, é fundamental que salões de arte, bienais e premiações contribuam para a formação e divulgação de obras de arte que venham a ser utilizadas

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como ferramentas fundamentais para construção de metodologias pedagógicas conectadas com as exigências do mundo contemporâneo. Nessa direção diversas ações em vários quadrantes do planeta buscam práticas de integração de conhecimento que permitam formar cidadãos e trabalhadores com capacidade criativa e desenvolvimento de raciocínio rápido. E entre eles destacamos o STEAM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia, arte/design e matemática), que tem como conceito definidor a articulação direta entre essas áreas e seus conteúdos, fazendo desses pontos de intercessão o caminho para construção de uma aprendizagem significativa. Qualquer conjunto de obras é fonte inesgotável de pesquisa, geradora de saberes e reflexões. A heterodoxia dos materiais e conceitos que caracterizam a arte contemporânea acaba por revelar caminhos a serem pesquisados nos quais a objetividade

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estabelece um instigante diálogo com a subjetividade e a fantasia. A arte deve ser potencializada em suas instâncias de pesquisa e inovação, entendendo a obra apenas como resultado de um processo criativo que envolve razão e sensibilidade. Em consonância com as premissas do STEAM, um grupo formado por pedagogos, curadores, artistas, antropólogos e professores das mais diversas áreas do conhecimento criou o A.C.E.S.S.E. , programa que parte de determinada situação artística para criar conteúdos e conceitos que extrapolam os limites físicos da exposição, criando exercícios que comunicam diretamente as escolas com as exposições de museus e centros de cultura de sua cidade ou região. Ele atua diretamente com os professores, dando-lhes subsídios e material pedagógico através de ações práticas e teóricas, fazendo com que experiências de conhecimento artístico possam ser replicadas nas salas de aula. Trata-se de um projeto inovador desenvolvido no âmbito das ações


do Prêmio Indústria Nacional/Marcantonio Vilaça e que atua hoje em escolas de quatro estados brasileiros (Ceará, Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul), gerando um farto material cujo conteúdo será disponibilizado para as instituições interessadas ainda em 2019. Essas estratégias de integração são fundamentais para fazer da escola um verdadeiro palco gerador de conhecimento a partir da prática permanente da pesquisa e da criatividade. A arte é cada vez mais fundamental no processo de conhecimento e aprendizagem, e salões e premiações devem ter esse desafio como ação determinante para o desenvolvimento de suas atividades. Marcus de Lontra Costa São Paulo. Novembro. 2018

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ÍNDICE REMISSIVO Adriana Aranha 23 Amanda Meirelles 65 Bruno Faria 65 Bruno Vieira 66 Carolina Caliento 27 Charles Douglas 31 Claus Lehmann 34 David da Paz 67 Eduardo Souza 67 Herón de Barros Dória 68 José Rufino 9 Jimson Vilela 38 Lorena Taulla 69 Luciana Almeida 69

Luiz Santos 42 Marcela Camelo 47 Marcus Lontra 75 Maria Matos 50 Mariana Galender 53 Matetus Sá 56 Natascha Lux 70 Nicole Costa 70 Ricardo Brazileiro 59 Revolução através dos Muros - R.A.M 71 Sérgio Vasconcelos 72 Thelmo Cristovam 72 Traplev 73 Rebeca Matos 71

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EXPEDIENTE GERAL GOVERNO DE PERNAMBUCO Governador do Estado | Paulo Câmara Vice-Governadora | Luciana Santos SECRETARIA DE CULTURA Secretária | Gilberto Freyre Neto Chefe de Gabinete | Anita Carneiro Secretária Executiva | Silvana Meireles Gerente Geral de Articulação Institucional | Aníbal Aciolly Gerente de Formação e Capacitação | Tarciana Portella Gerente de Planejamento | Fernanda Matos Gerente de Administração e Finanças | Manoel Araújo Gerente de Política Cultural | Diego Santos Coordenador de Artes Visuais | Márcio Almeida Assessora de Artes Visuais | Ellen Meireles Gestores de Comunicação | Rodrigo Coutinho Coordenador Jurídico | José Libonati FUNDARPE Presidente | Marcelo Canuto Coordenadora de Gabinete | Patrícia Reynaldo Bandeira de Mello Vice-Presidente | Severino Pessoa

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Superintendente de Planejamento e Gestão | XXXXXXXXXX Superintendente do Funcultura | Sônia Costa Gerente Geral de Preservação do Patrimônio Cultural | Célia Campos Gerente de Produção | Júlio Maia Gerente de Ação Cultural | André Brasileiro Gerente de Administração e Finanças | Jacilene Silva Coordenador Jurídico | Silvano Vila Nova EXPEDIENTE DA PUBLICAÇÃO Coordenadora Geral | Silvana Meireles Coordenadores Executivos | Márcio Almeida e Ellen Meireles Editor | Tiago Montenegro Repórter especial | Renato Contente Articulistas | Marcus Lontra e José Rufino Projeto Gráfico e Diagramação | Denizá Rodrigues

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Secretaria de Cultura

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