O espelho da metrópole

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O ESPELHO DA METRÓPOLE



fauusp, junho/2015 ana cristina niessner or. luĂ­s a jorge



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sumário

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apresentação / a busca por ordem

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desenvolvimento / de angústias a amenidades

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percurso / digital & analógico

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considerações finais / o desafio das restrições

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bibliografia


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1. apresentação

a busca por ordem


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não fosse isso e era menos n ã o f o s s e ta n to e era quase Leminsky

Intensificada por excessos, pressa e ruídos, a vida na metrópole é debatida há mais de século. Eu, como interiorana e em São Paulo há pouco mais de década, deparo-me ainda curiosa com a cidade patchwork1 que habito. Os experimentos de estudo deste trabalho surgem a partir da combinação de duas frentes: a primeira, refere-se aos efeitos plurissensoriais do ambiente metropolitano; a segunda, sobre o desafio gráfico de representar os padrões que ali emergem. Através de recursos que exploram a repetição e reorganização de elementos, busquei retratar a condição humana na metrópole, submetido a incessante recepção de estímulos. Gombrich, em O Sentido de Ordem2, coloca que o homem não seria homem se não aplicasse seu domínio de movimento a propósitos ulteriores. A cesta trançada, a roupa tecida, a pedra lascada ou a madeira entalhada registram e preservam o prazer no controle. E foi sem planejar muito, me guiando por sensações e

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recursos acessíveis, que me encontrei nesta busca por ordem.

1/ CANEVACCI, Maximo. A cidade polifônica. 1a ed. São Paulo, SP: Studio Nobel, 1993.


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A necessidade de padronizar e do repetível encontra-se especialmente nos elementos geométricos. Gombrich fala ainda de Franz Boas, investigador tribal, que indagou porque as sequências geométricas ocorriam com tanta frequência na ordem feita pelo homem, uma vez que são tão raras na natureza. E a conclusão a que chega é que é precisamente por este motivo que a mente humana escolhe tais manifestações de regularidade para destacar-se da aparência aleatória da natureza. Assim, as investigações que balizaram este trabalho surgem da tentativa de organizar situações e paisagens urbanas. Ao parecerem desconexas, fragmentando-as ainda mais, repetindo-as e espelhando-as, busca-se um resultado que as elabore com alguma lógica particular. Isto, contudo, também caminhou para o redundante. Assim como o padrão de camuflagem que imita uma distribuição aleatória de elementos, onde a desordem é experimentada como ordem, diante de tantas informações repetidas e pulverizadas, o embaralhado ou o organizado da cidade

2/ GOMBRICH, E. H. O sentido de ordem: um estudo sobre a psicologia da arte decorativa. Tradução: Daniela Pinheiro Machado Kern. Porto Alegre: Bookman, 2012.

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culminam para um síntese quase homogênea.


percurso 6


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2. desenvolvimento

De angĂşstias a amenidades


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Se o interesse desta investigação surgiu da sensação de esgotamento em relação à metrópole, estas questões tomaram outra direção durante o percurso do último ano. A partir de alguns questionamentos foi possível notar que os primeiros resultados gráficos não consolidam a ideia interpretada d’O Esgotado3, de Deleuze. Descobri este ensaio de Deleuze na peça A última palavra é a penúltima, durante a 31a Bienal de Artes, no fim de 2014. A peça é do grupo Teatro Vertigem, onde o cenário e o palco são a passagem subterrânea da Rua Xavier Toledo, no centro de São Paulo. Com direção de Eliane Monteiro, doze atores performam sobre o tema stress, inspirados n’O Esgotado. Alí, o público se espreme em bancos dentro das antigas vitrines que percorrem os lados do corredor subterrâneo. E a partir dai, os atores atravessam a passarela num fluxo interminável, interpretando transeuntes comuns da cidade, com atitudes que criam empatia e estranhamento ao público. Deleuze inicia dizendo: o esgotado é muito mais que o cansado. O estado de esgotamento não se confunde com a fadiga. A segunda, refere-se a incapacidade psicológica ou física de se realizar qualquer coisa além do já feito, enquanto o primeiro já exauriu, de toda maneira combinatória, as possibilidades. Ao explorar as dinâmicas de saturação na vida urbana contemporânea, depareime com a intenção de reconhecer graficamente os excessos a que se é submetido vivendo numa metrópole de pontas desatadas, como São Paulo, no que se refere

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a organização sócio-espacial.

p.11 imagem original sem fonte, via wikipedia.com 3/ DELEUZE, Gilles. O Esgotado. Tradução para o português de Lilith C. Woolf e Virginia Lobo. Paris: Munuit, 1992.


arquivo pessoal: A última palavra é a penúltima, 2014.

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cenas do filme Koyaanisqatsi: Life Out of Balance. REGGIO, Godfrey. Estados Unidos, 1982


Em tempo, ao conversar com a professora Angela Rocha sobre o andamento

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deste trabalho, o comentário dela foi que ao analisá-lo criou a expectativa de ver ilustrações mais saturadas e incômodas. E, chegando aos meus resultados, tudo parecia muito ameno e resolvido. Pensar sobre isso levou a uma epifania parecida com a que tive numa das aulas da disciplina de história do urbanismo, quando me dei conta de que a vida na cidade é mais eficiente e sustentável que no campo, de que a cidade não é essencialmente hostil, como parecera, ao mudar de Boituva, em 1999, para São Paulo. As sensações descritas por Simmel em A metrópole e a vida mental 4 são sobretudo significativas. A base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos nervosos. E hoje, o indivíduo amparado de gadgets e afogado em informações de toda natureza, submete-se progressivamente a mentalidade intelectualística que Simmel, há mais de 100 anos, problematizou. Simmel já apontava que a divisão de trabalho imposta pela metrópole reduz o indivíduo a uma quantidade negligenciável, um mero elo numa enorme organização de coisas e poderes, sendo sempre substituível. Essa cultura metropolitana reclama do individuo sua delicadeza, espiritualidade e valores, regredindo-o de uma vida subjetiva a uma puramente objetiva. Por outro lado, a vida se torna mais fácil a medida que estímulos, interesses e emprego de tempo

4/ SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In O fenômeno urbano. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1993.

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lhes são oferecidos por todos os lados.


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Assim, a intelectualidade do homem da cidade grande e sua supressão sob o poder da vida metropolitana, questões essas também abordadas no tfg de Cristina Gu 5 (2012), suscitam investigações e um olhar sobre os padrões consolidados da relação indivíduo-cidade. Sob o efeito de repetições, formamos a hipótese preliminar de ordem, o que, segundo Gombrich, faz com que percorramos o conjunto da série e fixemos o olhar apenas num componente repetido. Este recurso foi bastante explorado por “artistas pop”, em referencia às tendências despersonalizadoras das mídias multiplicadoras. A desvalorização do motivo, assim como a Marilyn Monroe ou as latas Campbell’s de Wahrol (1962), retoma a ideia do Homem na Multidão 6, a personagem urbana de Edgar Alan Poe, em 1840. O registro, em primeira pessoa, aguçado pela consciência destes fenômenos, aborda uma versão londrina do flanêur de Baudelaire. Na Londres marcada pela industrialização e as consequências do taylorismo, ali, as condições urbanas automatizam os indivíduos. A partir de tais questionamentos, reconheci que o discurso e a essência das primeiras experimentações não eram sobre angústias como eu verbalizava, mas sobre uma paisagem recorrente, repetida, até monótona e, por diferentes lógicas desencontradas, coerente. Afinal, como praticamente urbanista, seria muito infeliz

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me formar reiterando a ideia de que as cidades não são solucionáveis.

5/ GU, Cristina. Disforia urbana e os espectros do anonimato na metrópole contemporânea. Trabalho final de graduação, orientação Luís Antônio Jorge. São Paulo: FAUUSP, 2012. 6/ POE, Edgar A. The man of the crowd. Charlottesville, Va: University of Virginia Library, 1840.


32 Campbell’s Soup Cans e Marilyn Monroe, Andy Warhol, 1962

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a esquerda: ilustrações de Moonasi [Coréia do Sul, 2010]; a direita: Jon Koko [Suécia, 2014]


acima: tira de Paul Kirchner em The bus [EUA, 1987] e abaixo: da mexicana Rachel Levit [2014]

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duplaexposição de Geraldo de Barros, em Fotoformas, 1950.


acima, Cidade, de Clรกudio Tozzi; 1984 abaixo, peรงas de Jogo de Dados, Geraldo de Barros.1991

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3. percurso

DIGITA L & ANA L Ó GICO


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fotografia digital. centro de s達o paulo, 2009


As experimentações em diferentes técnicas surgiram naturalmente, com forte

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teor pessoal em todas as frentes. Meu interesse por fotografia é de infância, na época em que cada clicada era uma expectativa a ser revelada. Até hoje registros com câmeras digitais, analógicas e celulares fazem parte da minha rotina. Daí para os vídeos foi um passo curto. Utilizo aplicativos de compartilhamento de fotos e vídeos desde que adquiri um smartphone e a técnica de registrar microvídeos de até 15 segundos, limite permitido pelo aplicativo e rede social Instagram. Acabou sendo uma forma espontânea e concomitante ao tfg que encontrei para registrar meu cotidiano, a cidade e minha busca por um assunto significativo. A formalização deste hobby para uma possibilidade de desenvolver o trabalho foi despertada pelo Luís Antônio Jorge, meu orientador, e gerou uma sequência de

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reflexões sobre a paisagem e as sensações experienciadas na cidade.


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seleção de frames de alguns dos vídeos feitos no celular. + vídeos podem ser visualizados aqui: http://desobra.tumblr.com


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Os registros em desenhos surgiram enquanto eu lia o São Paulo: três cidades em um século6, indicação do Marcelo Maia Rosa, na tentativa de entender a história da cidade e sua construção. Enquanto anotava trechos, rabisquei intuitivamente alguns elementos citados no

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texto e meu interesse por padronagens timidamente reapareceu.

6/ TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo, três cidades em um século. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1982.


o pilão, o frontão, o tijolo, a telha e a janelas colonial. primeiros desenhos, sobre a construção da cidade na leitura de são paulo: 3 cidades em um século

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Neste meio tempo também fiz um workshop de cianotipia no LPG da FAU, afim de explorar novas formas de representação. Fiquei empolgada com as possibilidades de revelar objetos e fotos em papel com características tão peculiares e aspecto das blueprints. A cianotipia é possivelmente o primeiro sistema de copiagem de documentos e foi utilizada para reproduzir desenhos de arquitetura feitos à mão. Acabei fazendo algumas revelações de fotografias urbanas, imprimindo as originais invertidas em papel translúcido. É um processo delicado, exige materiais específicos e não muito acessíveis. Além de depender, neste caso por não ter uma

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mesa de luz negra, da luz direta do sol. Então várias tentativas não vingaram.

revelações em cianotipia: processo de queima, resultados e montagem de padrão digital


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Demorou para eu entender que tantas linguagens diferentes convergiam para um mesmo assunto. Achei, por mais tempo do que gostaria, que estava sem objetivos e cada vez mais perdida atrás de um “tema” para o tfg. Essa angústia não me deixou parar de buscar, mesmo que obtivesse resultados aparentemente desconexos. Aos poucos, o Luís, que sabiamente me deixou livre de cronogramas rígidos, me salvava deste sufoco e encontramos o sentido para tantos devaneios autônomos: os elementos que se repetem na paisagem urbana. Com isto em mente, no começo do segundo semestre, foquei em retrabalhar o material que tinha esboçado: as pessoas esperando, aglomeradas, as fachadas que se fundem num imenso pano, a enchurrada de informações e gadgets que entopem nossos sentidos, o sistema viário que engolimos e em que somos engolidos dia-a-dia, a poluição sonora e visual das ruas, os postes, os fios, os meio-fios, as calçadas apertadas... Com essa intenção clara, desenvolvi desenhos à mão que foram digitalizados e trabalhados para se tornarem rapports. Utilizei o e-book “Repeat after me” sobre o

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assunto, como tutorial, e softwares como Adobe Illustrator e Photoshop.

*rapport é um padrão mínimo de composição que se encaixa lado a lado, de forma corrida, se repetindo ordenadamente.


E aqui inicia um primeiro momento de consciência sobre o óbvio: as possibilidades

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infinitas que a digitalização proporciona - replicar os elementos desenhados, o tratamento da imagem, como correção de possíveis imperfeições, alteração e

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aplicação de cores, redimensionamento, rotação etc.


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desenhos pré-digitalização


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aquarelas pré-digitalização


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Paralelamente, encontrei na fotografia uma forma de buscar e consolidar um repertório sobre a vida urbana. Fotografo com câmera digital, Canon T3i, analógica, Minolta X300 35mm, e a câmera do celular, Iphone 4S - esta última foi especialmente impulsionadora, pela facilidade de tê-la comigo sempre. A partir de algumas destas fotografias desenvolvi espelhamentos digitais no Adobe Photoshop e no aplicativo Layout, do celular. Primeiro, rebatendo trechos retangulares de fotos em dois eixos (X,Y) - como o recorte de uma vista do centro de São Paulo, sem qualquer respiro, apenas fachadas amontoadas. Também fiz experimentos com deslocamentos e sobreposição e, depois, empiricamente, dentro da mesma metodologia, trabalhei com recortes menos óbvios, começando por rebatimentos em dois eixos ortogonais e, em seguida, preenchendo os vazios destes trechos com recortes selecionados quase que manualmente, pensando em

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eixos que tornassem os conjuntos de imagens sempre contínuos.


fotos e montagens de celular, feitas no aplicativo layout, 2015

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matrizes dos padr천es de espelhamentos com fotografias digitais


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Usei também um aplicativo de celular chamado Kaleio. Ele utiliza a câmera do celular para criar caleidoscópios instantâneos. É possível se divertir por algum tempo com as variações e recortes, porém, como Gombrich já esclarece, o caleidoscópio não se tornou um substituto de designers como previa seu criador, David Brewster (1781-1868) e ele acaba se tornando monótono depois de um tempo - tanto que a triangulação de espelhos não basta para o divertimento e é recorrente o uso de pedrinhas coloridas para incrementar a imagem final. Particularmente, acho que essa chatice agrega ainda mais as superfícies a que cheguei. A paisagem urbana, afinal, é uma repetição de fórmulas e, apesar de todos efeitos mirabolantes que as composições de fachadas, equipamentos e elementos dispersos da metrópole colocam, o efeito de rapport camuflado é predominante. E este argumento é uma conclusão aplicável a todas as frentes de experimentações aqui exploradas, em que a repetição cria um pano monótono. Inspirada pela experiência com o Kaleio, desenvolvi padrões a partir da geometria do caleidoscópio, que é fundamentalmente a composição de 3 tiras de espelhos criando um triângulo equilátero. Primeiro, no plano bidimensional. Depois, na procura de tridimensionalizar a geometria euclidiana.

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Neste caso, desenvolvi 3 objetos modulares que partem de 6 tetraedros e formam, bidimensionalmente, um hexágono, trabalhando com rebatimentos nesta mesma lógica.


padrĂľes obtidos atravĂŠs do aplicativo de celular Kaleio, 2015

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o caleidosc贸pio


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espelhos

esquemas de espelhos e eixos de reflexos do caleidosc贸pio

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reflex玫es


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matrizes de reflex玫es inspiradas no caleidosc贸pio


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primeiros ensaios e estudos de composição final


m贸dulos para montagem dos prismas

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processo de montagem de 72 tetraedros para 3 objetos.


objetos finalizados

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Uma das consequências destes experimentos foi especialmente importante. Conversava com uma colega estilista, Claudia Toledo, que possui uma marca própria de roupas femininas, perguntando sobre como funcionava a impressão digital de estampas. Ela contou que gostaria de ter estampas exclusivas mas, para uma empresa pequena como a dela, as impressões em larga escala, a partir de 400m de rolo (por 1,40m), eram inviáveis tanto pela quantidade de material quanto pelo alto custo envolvido.

Algum tempo depois, me escreveu dizendo que um contato seu de uma estamparia do Bom Retiro conseguiria imprimir a partir 50m para ela. E assim pensamos numa parceria, em que dividiríamos os custos e o produto, eu cederia a estampa para suas peças e ela divulgaria meu nome. Enviei uma seleção de 20 padrões e ela escolheu o que mais se adequava em termos de cor, modelos de roupa e tendência de moda.

O rapport selecionado origina de uma foto feita com celular da vista de uma janela do 27º andar do Copan. Tirei durante uma das primeiras experimentações em vídeo, quando visitei o Luis Pompeo. Lá, num entardecer de sábado, gravei algumas cenas da vista para a Av. Consolação, por trás da lona azul, de quando

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acontecia a reforma da fachada do edifício.


Meu foco, naquele momento, eram investigações sobre as lonas de obras. Me

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instigavam pelo fato de esconderem uma intervenção bruta na paisagem que estava prestes a ser revelada. E, ao mesmo tempo que expressam uma delicadeza esvoaçante, por trás destas cortinas de espetáculo abrigam-se obras pesadas,

matriz, rapport pronto para impressão digital em tecido e repetição.

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barulhentas e empoeiradas, nada leves, recorrentes no centro expandido.


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tecido impresso


vestido finalizado

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Em paralelo, achei que precisava retomar os desenhos. Uma técnica que me interessava, mas não tinha tido contato, foi a de carimbos. Associei que o gesto burocrático da repetição seria conveniente para a ideia que queria passar. Foi difícil encontrar o material adequado. A placa de linóleo custa relativamente caro (em torno de 800 reais/m²) e as primeiras goivas que adquiri eram terríveis. O corte exigia muito esforço, as lâminas como eram importadas, não vieram afiadas, então perdi muito tempo até descobrir como contornar as dificuldades. Conversando com meu amigo Fernando Riccioppo, artista plástico, ele me indicou as melhores goivas do mercado, a japonesa Tombo, e explicou a importância da oleosidade da tinta tipográfica ou de gravura, para melhores resultados. E meus primeiros testes foram carimbos sobre o rio poluído, em que trabalhei com alguns objetos meio-submersos (sofá, garrafa pet, pneu e capivara). Com os materiais que tinha em casa não consegui bons resultados, principalmente as tintas, o que foi muito frustrante. Mas numa consulta com os técnicos do LPG, com o Ricardo, em especial, aprendi sobre a diferença que faz a gramatura do papel ser menor, criando melhor aderência, e as particularidades da tinta de offset. Então, com mais ânimo, fiz desenhos mais retilíneos: como casas e prédios, e depois com algumas curvas, como as pessoas esperando, que vieram da primeira etapa desta pesquisa. Adiante, busquei os elementos que marcaram minha vinda para São Paulo, como os tickets de metrô, cadeados, a idéia de multidão e a pressa,

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simbolizada pelo café.


experimentos inciais com lin贸leo em papel vegetal.

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processo de produção com linóleo


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Resolvi em dado momento consultar alguém com domínio na técnica dos carimbos e encontrei a professora Clice Mazzilli, por indicação de colegas. Ela foi muito solícita e, cuidadosamente, me orientou com a produção geral. Me indicou os livros ilustrados de Bruno Munari7 e de Fernando Vilela8. Nossa conversa me encorajou a digitalizar o que eu já tinha feito até ali. Foi um momento decisivo, já que abriria mão das qualidades puras da técnica do linóleo: a textura, o brilho, as imperfeições irretocáveis, os caminhos sem volta, em favor das diversas possibilidades que o computador pode oferecer no tratamento de

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cor e imagem.

7/ MUNARI, Bruno. Na noite escura. São Paulo – Cosac Naify, 2008. 8/ VILELA, Fernando. A busca do cavaleiro. Brasil: Escala Educacional, 2009.


carimbos digitalizados

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Afinal, esta experiência de digitalização me levou para além do que esperava. Afim de criar composições mais complexas do que conseguia com as limitações de tintas e da própria técnica, somado ao meu domínio de softwares, descobri caminhos e meios novos. O Luís me incentivou a ir atrás de algo que já esboçava: um site portfólio. A sobreposição de técnicas acaba limando propriedades fundamentais dos trabalhos. Digitalizar o manual, trabalhá-lo no computador e depois imprimilo novamente, diante das inúmeras variáveis das impressoras, papéis e tintas, poderia reduzir tais atributos. E, obviamente, as qualidades do material finalizado digitalmente são preservadas na própria tela, seu meio originário. Na plataforma do squarespace [www.squarespace.com], criei um template e o carreguei com as imagens produzidas. Adquiri também o domínio com meu nome [www. tinaniessner.com] e, mesmo sem divulgá-lo inicialmente para muitas pessoas, percebi que o número de visitas e a acessibilidade que um trabalho online permite é surpreendente. Torna-lo público virtualmente o tornou mais real, já que de

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qualquer lugar do mundo com internet é possível acessa-lo.


visuzalição do site

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Já numa retomada do analógico, trabalhando as limitações do carimbo, veio a ideia de usar um suporte transparente me ocorreu. Dessa forma poderia trabalhar com as duas faces do acrílico, obtendo o espelhamento do carimbo - que em si já é um espelho da imagem primária - rompendo uma de suas limitações. E, além disso, a possibilidade de compor com layers cria uma pequena variação de escalas, um caminho para lidar com a rigidez das dimensões que o carimbo estabelece. Planejei, a partir disso, um suporte de madeira com canaletas para deslocar estas camadas e obter variações de ordem e composição. Foi necessário fundamentalmente lidar com a sustentação das placas, através de sulcos mais profundos e placas de acrílico rígidas com espessura de 3mm. Curiosamente, ao comprar as placas de acrílico, conversando com a vendedora, ela comentou de um trabalho que havia sido feito lá e poderia me interessar. A obra “Um segundo”, 2013, do artista plástico e arquiteto da FAU Fabio Miguez, explora as camadas de transparência com serigrafias de elementos arquitetônicos,

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num objeto de porte similar, e acabou servindo como referência no meu produto final.


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acima: “Um Segundo”, Fabio Miguez para Galeria Carbono, 2013 abaixo: projeto para suporte de 7 camadas de acrílico.

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suporte de madeira angellim para placas de acrílico. produção do objeto no laboratório de marcenaria da FAU, com auxílio do técnico Emílio.


processo de experimentos em acetato e acrĂ­lico.

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preparação de carimbos, testes em acetato e, na terceira imagem, o espelhamento a partir do rebatimento da imagem carimbada.


acima, a pintura de linhas retas, remetendo a fios de eletrecidade, com auxílio de fita adesiva; abaixo, o uso da tela de construção para criar textura.

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6 camadas finalizadas


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objeto completo composto por 7 camadas de acrĂ­lico em base de angelim


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A princípio, diante de um percurso tão intenso e com experimentações de variadas técnicas, veio a ideia de apresentar este trabalho sinteticamente, selecionando 3 objetos que o representassem o resultado das técnicas aqui exploradas. Porém, uma conversa, que não sei ainda porque adiei tanto, com o Professor Chico Homem de Mello – que definitivamente me deu grandes orientações não só no âmbito gráfico - me fez decidir. Bastou um olhar externo e sem muitas amarras, para reconhecer a importância do trajeto frente a um produto final. Ficou claro aí que todas as experimentações não foram apenas testes, como eu salvava em algumas das 26 pastas no desktop do meu computador, e sim o meu trabalho de fato. A ideia de mostrar tudo isso já não caberia mais em slides duma apresentação convencional, seria necessário expor o caminho do ano inteiro. E o lugar da FAU que mais conversa com esta proposta é o caracol. Sob conselhos alarmados do Luís, me dei conta de que começaria aí um novo projeto: de uma exposição. Neste meio tempo, em busca de um convidado externo a FAU para a banca, reencontrei Marisa Mello. Nunca tivemos contato, na verdade, mas sabíamos da existência uma da outra. Marisa é carioca, produtora cultural de exposições e livros de arte e professora do Programa de Pós Graduação em Cultura e Territorialidades, no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF. Não poderia esperar alguém tão acessível e disposta, me indicou leituras e soluções técnicas que só alguém da área acadêmica

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e com experiência em produção de arte poderia.


Com ajuda da Fernanda, minha parceira desde a primeira semana de aula em 2010

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– ela, com repertório prático da exposição do Guignard no MAM, projeto que se desenvolve no Andrade Morettin, onde trabalhamos - pensamos na organização espacial do caracol, do formato das impressões à cor da pintura da parede. Dispondo de materiais encontrados na própria faculdade, criou-se um eixo com 3 mesas dos estúdios, onde se apoiarão os objetos e materiais usados no processo (como os carimbos, tinta, as versões originais que foram digitalizadas, objetos que me inspiraram como o caleidoscópio etc). O percurso é cronológico, começa com a projeção dos vídeos (numa lona de obra), apresenta 20 impressões de padrões (20x20cm, coladas em papel pluma), chega então a 3 faixas de lambe-lambe (de 90cm cada), ideia da Marisa, que recuperou a premissa de imprimir em grande escala os padrões fotográficos. A linha termina nos prismas de caleidoscópio e no suporte de vidros, este sobre a mesa. As mesas ali definem o espaço de duas fileiras de cadeiras e a apresentação

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será com fundo de lambe-lambes, no canto mais íntimo do ambiente.


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projeção

tecido

mesas

apresentação

patterns

caleidoscópios

percurso

lambe-lambes


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4. considerações finais

o desafio das restrições


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N o m e i o d e s ta s d e s t r u i ç õ e s , r e m a n e s c e m a p e n a s vínculos inúteis da cidade anterior: os limites do terreno e alinhamentos com as vias públicas (antes coerentes com os volumes edificados, agora cada vez menos). Benedito Lima de Toledo São Paulo: 3 cidades em um século.

Na cidade, como Benedito Lima de Toledo coloca, as limitações se enraizaram de maneira ilógica. Os desenhos de lotes e vias, que já não fazem sentido com as necessidades contemporâneas, definem vínculos, padrões e comportamentos. Gombrich, no capítulo O desafio das restrições - em O sentido de ordem, comenta a cartilha de Gretl Zimmermann, sobre a metodologia de produção de estrelas de palha. Nesta, o autor oferece instruções para se adquirir familiaridade e controle do material e técnica, ou seja, explorar as possibilidades inerentes ao material diante das limitações que o definem. Em paralelo, acredito que o que me motivou a alternar técnicas continuamente, entre meios digitais e analógicos, foram as restrições. Se antes possam ter surgido como frustrações inconscientes que geravam um esforço atrás de algo que suprisse barreiras específicas, durante o trabalho e contando com orientações do Luís, especialmente, ficou cada vez mais claro que tais limitações eram o que mais definiam as formas de expressão escolhidas. Contorná-las e explorá-las como

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último objetivo decorre ainda dos princípios da busca por ordem.


Minhas primeiras tentativas partem da seleção e organizarção de elementos da

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paisagem caótica, como se estivesse irritada com tal conformação. As descobertas deste percurso, como já comentadas anteriormente, consolidam a aceitação de uma situação que é regida por distintas ordens simultâneas e, por vezes, descompassadas. Os resultados das experiências, no entanto, somam propriedades que, semelhante a paisagem urbana, conformam uma síntese, um pano único, onde de relance não se reconhece a unidade de origem, seu começo ou fim. Os postes, os fios, as lonas, as janelas, os homens da multidão se embaralham e se camuflam, perdem o sentido, como quando repetimos uma mesma palavra inúmeras vezes em um mantra. Inserta numa cidade camuflada em si mesma, meu trabalho foi uma busca por sintetizar as aprendizagens, belezas e aflições absorvidas nos últimos 5 anos nesta faculdade. E diante das diversas problemáticas que os professores, lúcida e humanamente, nos expõem, a necessidade de encontrar tecnicamente uma forma que pudesse extrair o máximo de mim, foi parte do desafio. Afinal, como retribuir e apresentar esta experiência? Qual a maneira mais justa de expor a oportunidade de integrar uma faculdade pública? O meu último ano foi baseado nestas expectativas e, posso dizer agora que, definitivamente não há uma resposta única. Esta procura foi um teste de limitações que não se restringem a técnica gráfica em si, mas também a desafios pessoais e profissionais. Foi um caminho definido por

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restrições e a quebra de algumas destas técnicas.



bibliografia


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certamente este trajeto não seria o que foi sem o luís, que me manteve cuidadosamente descontrolada; a minha mãe, meu espelho; o felipe, meu melhor e maior amigo; a vera, que me incentiva; a fernanda, que me faz ir mais longe; a débora, que me inspira; a bruna, que me acompanha;

obrigada!

e é, especialmente, para erika.


o espelho da metr贸pole ana cristina niessner fauusp/2015


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