Água Funda
Retiradas do livro Lendas e Fábulas do Brasil, selecionadas, prefaciadas e recontadas por Ruth Guimarães. [4ªed.]. São Paulo. Cultrix [Rio de Janeiro] INL [1972].
DIÁRIO DE SÃO PAULO 18 DE SETEMBRO DE 1946 NOTAS DE CRÍTICA LITERÁRIA “ÁGUA FUNDA” ANTONIO CANDIDO (PARA OS “DIÁRIOS ASSOCIADOS” A melhor qualidade do romance de estreia da sra. Ruth Guimarães, Água Funda, é o tom pessoal1. Num momento em que as nossas ficcionistas não resistem ao fascínio do livro de sucesso, à costumeira história neorrealista e sentimental, a jovem escritora ouviu apenas a sua vocação e, sem preocupar-se com moda ou tendências do público, escreveu uma obra que percebemos impulsionada por nítida exigência interior. Água Funda, graças a esta impressão, refresca agradavelmente a nossa sensibilidade e revela uma escritora que poderá atingir um nível literário de primeira ordem. Se a memória não me é infiel, foi o sr. Amadeu de Queirós quem comparou este livro a “Macunaíma”. Semelhante julgamento revela apenas a calorosa simpatia com que o ilustre escritor estimula os moços, porque, deixando de lado (é claro) a questão do respectivo valor, nenhum livro é menos parente da obra prima de Mário de Andrade. Aproveitando a ocasião, comecemos por uma análise comparativa, que nos levará a situar “Água Funda” com maior facilidade. Macunaíma é um livro de explosão do núcleo folclórico que o condiciona, se assim nos pudermos exprimir, nesta era atômica. Cada nótula folclórica é mergulhada numa certa concepção geral do homem brasileiro, trazida para a vida cotidiana e transformada em possibilidade de explicação dos atos de um brasileiro ideal, “sem nenhum caráter”. Inversamente, os dados da vida cotidiana – dados informativos, notícias, acontecimentos, fatos históricos, usos, costumes – são folclorizados, são despojados de sua coerência e da sua necessidade lógica por um tratamento poético que os transforma em focos irradiantes de magia e encantamento. Assim, é possível Macunaíma desfilar em carreirões loucos pelo Brasil a fora, num roteiro caprichoso que obedece, poética e não logicamente, à necessidade do poeta enfiar uma série de provérbios, fatos curiosos, lugares de lenda, com que traça uma geografia fantástica do Brasil, cada pedra ganhando um valor qualitativo que não tem na enumeração normal. Da mesma maneira, o trem de Proust, no “Temps Perdu”, faz, entre Paris e Balbec, o trajeto mais louco que é possível imaginar, apenas para que o narrador possa enfileirar nomes sugestivos de cidades.
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Dessa transfusão da realidade atual no folclore e na lenda, e deles na realidade atual, resulta o significado de “Macunaíma”, verdadeira encruzilhada a quem vêm parar tantas linhas de força da nossa realidade cultural e de onde se projetam outras tantas, para o infinito da virtualidade poética. Isto é Macunaíma, um livro aberto e além da realidade. Água Funda, pelo contrário, é um livro fechado. O folclore, de que usa a autora principalmente sob a forma de crendices, provérbios e ditos, concorre na qualidade de elemento pitoresco e não como dimensão poética. Ao contrário do que reza a orelha do livro, não vemos nele nenhum “estranho clima”; vemos um clima exótico para a sensibilidade dos leitores da capital e nada mais. Mesmo porque o terreno explorado pela sra. Ruth Guimarães pode ser novo apenas quanto à área e o material nela colhido, não quanto à maneira de aproveitá-lo. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, Água Funda é uma narrativa bem ancorada na realidade, com uma poesia chã e sem mistério. E é isso, justamente, que faz o seu encanto. A sra. Ruth Guimarães conta duas histórias, saborosamente entremeadas de pequenos casos e embelezadas por um rico acervo de comparações sertanejas: a história dos fazendeiros primitivos dos Olhos d’Água e a história do Joca, caboclo que vive na mesma fazenda, meio século depois. A primeira qualidade que notamos, ao encetara leitura, é o bom estilo. Estilo expressivo e vivo, muito adaptado aos movimentos da narrativa e dotado de uma bela faculdade de síntese. A sra. Ruth Guimarães concentra o seu pensamento em pequenos feixes de frases e ilustra-o com alguns provérbios ou comparações e arremata com uma fórmula feliz. E com isso, muito simples, sem ceder à facilidade dos termos locais, dos sertanejismos, dos barbarismos. A este estilo harmonioso, corresponde uma narrativa igualmente feliz, muito animada e bem dirigida, que prende a atenção sem esforçá-la. As descrições são, por vezes, belíssimas na sua concentração discreta: “Nessa hora, o cálice brilhou como um sol, lá em cima. Era a elevação. Como se não pudesse suportar o brilho e o peso daquela hora sagrada, o povo abaixou a cabeça. Já viu quando o vento passa e abaixa o capim alto, florescido? Ficou tudo quieto na manhã milagrosa. A campainha tiniu, um som claro de ouro. Dali a pouco o quadro se desmanchou de repente. Sabe quando a gente atira uma pedra na água parada e a paisagem do fundo se desfaz e se mistura e treme e confunde tudo, num movimento ligeiro? O povo começou a levantarse e a descer. Tinha acabado.” São dez linhas, em que a autora descreveu toda a missa ao ar livre, devendo-se notar que a cena é sugerida com duas ou três impressões, centralizadas por duas
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comparações que dão todo o movimento e convidam a imaginação a construir. Trechos dessa natureza não são raros no livro da sra. Ruth Guimarães, que sabe vencer, com eles, o perigo da monotonia que apresentam os períodos curtos, de sua predileção. Terminada a leitura, ficamos com a impressão de que, se a sra. Ruth Guimarães possui duas qualidades básicas de ficcionista – estilo e capacidade narrativa –, falta-lhe uma outra, porventura mais importante: composição. Por isso, essa boa escritora, essa esplêndida narradora, não é uma boa romancista. Tenho a impressão de que ela não sentiu plenamente as possibilidades do seu livro, pois desperdiçou totalmente alguns dos personagens mais ricos. Nem se diga que preferiu justapor, como retalhos, várias histórias organizadas em torno do destino da fazenda, pois do segundo terço em diante concentra-se apenas na história de Joca. Será porque a sra. Ruth Guimarães transpôs histórias acontecidas, como insinua no início, não tendo tido força para plasmá-las à sua vontade? Como quer que seja, vejo em “Água Funda” certa incapacidade de avaliar as possibilidades da ficção, ao lado da incapacidade de equilibrar as partes da narrativa numa urdidura mais sábia. O resultado – me parece – é que a sra. Ruth Guimarães não aproveitou plenamente o belo material que teve na mão. Encarado em conjunto, Água Funda decai do meio para o fim, descaída que coincide com certa inflexão na narrativa. Até aí, com efeito, a autora sugere mais do que descreve, apresentando a realidade em escorços por vezes admiráveis, num estilo sintético, incrustado de comparações e provérbios. Daí por diante, dá mais seguimento à narrativa, descreve com maior minúcia, estabelece continuidade sensível na técnica de narrar. O narrador do livro é um anônimo que o ponteia de observações e tira a moral dos casos. Na primeira parte, vêm juntar-se ao narrador alguns interlocutores, anônimos ou indicados, que aparecem e desvanecem , formando com ele uma espécie de coro, cujo efeito é de primeira ordem. Na segunda parte, o caráter coral do narrador é atenuado, os coreutas desaparecem, ou quase, e a história de Joca é apresentada de modo mais ou menos direto. Penso que a solução literária da primeira parte é mais bela e pessoal, supondo no leitor maior capacidade poética. Quanto ao desperdício mencionado acima, queria referir-me, sobretudo, ao personagem de Sinhá Carolina e os satélites que a cercam. Na primeira parte do livro, ao tempo dos velhos fazendeiros, as relações dos personagens se articulam numa unidade mais rica, formando um todo que deixa perceber a intenção ordenadora da romancista. A partir da história de Joca, a narrativa perde em coesão, os personagens não se ligam em profundidade, porque o intuito criador
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parece falecer ante a dispersão, dos apropósitos e digressões. Nas mãos da sra. Ruth Guimarães, o caso de Sinhá Carolina é apenas uma narrativa abandonada; do que poderia ter sido, caso a escritora fosse dotada de maior poder criador, vemos na síntese admirável do seu destino. Por ali veio a desgraça de Sinhá. “Não é dizer que veio de uma vez. O que chegou foi o arremate, pois, dês que nasceu, ela já começou a cumprir o seu destino. A vida de toda gente tem altos e baixos. A de Sinhá, não. Tomou uma direção só. Foi uma ladeira que só tinha descida. E Sinhá desceu firme, de cabeça em pé. Tudo o que fez foi seguir, sem querer, o mesmo rumo. Tudo o que aconteceu foi a favor do tombo. Tal qual, na estrada nova, que a turma de engenheiros está abrindo, direito daqui até a várzea, e que vai removendo tudo o que atrapalha o andamento do serviço, os acontecimentos foram na frente dela, de batedores, como varas de caititus, derrubando o que podia servir de estorvo, adiante, na trilha. Para não chegar a esse fim, podia se apegar ao marido, o marido morreu. A filha era um estorvo, e saiu por si mesma do caminho. O dinheiro também era um estorvo, mas Sinhá tinha que se perder e se perdeu. As coisas, quando têm que ser, Deus não revoga.” Este belo trecho, esboçando um destino que a romancista estudou apenas em parte, nos dá, ao mesmo tempo, a filosofia do livro. Com admirável capacidade de simpatia humana e artística, a sra. Ruth Guimarães teceu-a com a própria concepção do caboclo. À maneira do primitivo, para este nada na vida tem causalidade lógica; o mundo é povoado de forças misteriosas, que precisam ser aplacadas; cada doença, cada desgraça, é fruto de mau olhado. Em Água Funda perpassa, tema constante, a fatalidade das pragas, das maldições e dos feitiços. Todos, como Sinhá Carolina, marcham para a sua tragédia com inflexível precisão: é questão apenas de tempo, para os homens morrerem de tiro, veneno de cobra, desastre; para as mulheres se perderem. Ainda indeterminada na primeira parte, essa força se concretiza na segunda, com a obcessão permanente da Mãe de Ouro, que atrai Joca, misteriosamente, levando-o a perder a razão. Loucos são os dois personagens principais do livro – Sinhá e Joca; desgraçados, todos os demais. Em face do destino terrível que, pensando bem, é o personagem mais forte do livro, a romancista narra com placidez – e a atmosfera de Água Funda se torna interessante devido ao contraste de uma fatalidade sobrenatural, misteriosa, com o tom habilmente natural. Não creio, como se disse e se escreveu, que a sra. Ruth Guimarães tenha feito, neste livro de estreia, obra
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forte como poesia e realização literária, mas não há dúvida que o seu romance (se for romance) encanta pelo equilíbrio da narrativa e o puro sabor das coisas naturais. Quem começa desta maneira irá, certamente, muito alto na carreira de escritor.
PREFÁCIO PARA ÁGUA FUNDA ANTONIO CANDIDO Este livro exprime bem o equipamento cultural e a visão de mundo de Ruth Guimarães, prosadora de qualidade e conhecedora profunda da cultura popular brasileira. É um romance, mas escrito como se fosse prosa fiada, como se fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos. Esta primeira impressão é justa, mas não deve esconder do leitor o que há neste livro de composição deliberada, de técnica bastante complexa, rica em elipses, em saltos temporais, em subentendidos. O que à primeira vista pode parecer meio solto vai se revelando bem travejado, regido por um intuito fabulativo que dá ao todo a necessária coerência, sem a qual não se instaura a verossimilhança. Isso, quanto ao modo de contar. Quanto à linguagem, a construção talvez seja ainda mais elaborada, porque Ruth Guimarães consegue produzir um discurso de tonalidade espontânea, mas de fato carregado de estilizações bem conduzidas. Aqui não há o desagradável cacoete de muitos regionalistas: o de querer imitar com ânimo de exotismo pitoresco os modismos caipiras foneticamente sugeridos, do tipo “bamo ino” por “vamos indo” ou “entonce num havera de sê?”. Nada disso em Água funda, caracterizado pela elaboração arte-ficial de uma linguagem que obedece à disciplina da gramática e, ao mesmo tempo, parece sair da boca do povo rústico. Isso se chama literatura e consiste em inventar uma linguagem suspensa entre o popular e o erudito, fazendo do livro obra que tem o timbre das realizações cheias de personalidade. A interpenetração popular-erudito existe na própria concepção do livro, que é a história de um pequeno grupo rural de onde emergem certos personagens selecionados, sobretudo o par Joca e Curiango, sendo, ao mesmo tempo, uma espécie de afloramento do estrato mágico e lendário. De tal maneira, que a história do par central pode ser lida tanto como conseqüência das vicissitudes comuns da vida, quanto como produto de forças misteriosas encarnadas nos mitos intemporais. Há superposição, da qual resulta uma dupla leitura, cuja última instância seriam figuras como a Mãe de Ouro, entidade perigosa do tipo das Iaras, que pode assumir formas diversas
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no populário e aparece aqui sob o aspecto sideral de luminosidade fatídica. Essa comunicação das esferas, do real ao fantástico, enriquece o texto e está ligada ao próprio teor do discurso. De fato, o livro é narrado por alguém que não se identifica, dotado de perspectiva onisciente e, parecendo membro do grupo descrito, é capaz por isso mesmo de assumir uma taxa de credulidade que justifica as discretas invasões do pensamento mágico. Esta voz penetra todos os refolhos das pessoas e do mundo e, ao deixar suspensa a possibilidade do fantástico explicar o real, assegura, ao mesmo tempo, a integridade deste. E nós podemos sentir, assim, a realidade viva de uma região, com a sua natureza, os seus costumes, os seus tipos humanos e também a magia insinuante dos mistérios que a mitologia popular exprime. Por isso, talvez sejam felizes entre todos os momentos em que o narrador fala diretamente, porque então sentimos a fusão da escritora culta e da voz que ela inventou para animar o relato. É o caso do começo do livro, por exemplo, e também de muitos outros trechos, como a descrição da missa campal. O que estou procurando sugerir é a complexidade dessa narrativa despretensiosa, que sabe fundir os planos e passa com tanta maestria do individual ao
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coletivo, do natural do social, do real ao mágico. Voltando ao começo, é bom insistir no fato de Ruth Guimarães ser não apenas uma escritora bem dotada para a ficção, mas uma autoridade nos estudos da cultura popular, cultura que em Água funda constitui verdadeira rede de sustentação. Livros da autora como Os filhos do medo, como os contos que compendiou, como o belo estudo infelizmente ainda inédito sobre o ciclo de Pedro Malasarte, Calidoscópio, mostram grande saber folclórico servido por uma expressão clara e elegante, própria dos bons escritores. O leitor verá, neste livro, que a fluência da narrativa, a felicidade dos achados estilísticos e a densidade humana do todo fazem da leitura uma experiência válida e um grande prazer.
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Nota final: Água funda foi publicado em 1946 pela Editora Globo, de Porto Alegre. Esta reedição merece aplauso, porque põe de novo em circulação um texto que vale a pena conhecer. Para mim (se me permitem o toque pessoal), o interessante é que naquela ocasião,
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sendo eu crítico titular, como se dizia, do Diário de São Paulo, escrevi sobre ele um rodapé que infelizmente perdi e portanto não posso agora reler para comparar com este prefácio. O que terei dito? Fiz restrições? Fiz elogios? A vaga lembrança diz que a resenha era positiva, porque ficou em mim depois tantos anos a impressão de uma obra de valor, que me impressionou bem e definiu uma autora que passei a admirar. Com isso, pude ter essa alegria rara que é ler de novo um bom livro como se nunca o tivesse lido e, portanto, ter uma experiência praticamente inédita. Ruth Guimarães nos prende porque tem a capacidade de representar a vida por meio da ilusão literária, graças à insinuante voz narrativa que inventou e desperta a credibilidade do leitor, introduzindo-o no mundo dos “Olhos d’água”, com a sua história de fazendeiros, empresários, trabalhadores, ao longo das gerações, segundo o ritmo eterno de prosperidade e decadência, alegria e tristeza, guiados pela mão cega de um destino que regula o jogo de todos nós entre o bem e o mal.
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