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Miguel Rebelo de Sousa - Diretor Executivo da APEF Transporte ferroviário de mercadorias tem (quase) todas as condições para crescer
Transporte ferroviário de mercadorias tem (quase) todas as condições para crescer
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Em entrevista à Revista APAT, Miguel Rebelo de Sousa, diretor executivo da Associação Portuguesa das Empresas Ferroviárias (APEF), fala do momento do setor do transporte ferroviário de mercadorias, do impulso que poderá representar a entrada de novos players e das perspetivas otimistas para o desenvolvimento da atividade. Pelo meio deixa alguns recados, desde logo, sobre a necessidade de garantir a sã concorrência entre modos.
APAT – A APEF escreveu, em março, aos ministros das Infraestruturas e Habitação, da Economia e do Ambiente e da Transição Energética a manifestar a sua preocupação pelo impacto da subida dos custos energéticos no transporte ferroviário de mercadorias. Chegaram a receber respostas? Miguel Rebelo de Sousa - Aguardamos a transição entre governos, para restabelecer o contacto com os diferentes membros do Governo. A subida de custos que tem ocorrido nos últimos meses é uma grande preocupação de todos. É preciso compreender que a subida de custos faz-se sentir de uma forma muito imediata e os operadores têm menos flexibilidade para alterar preços junto dos seus clientes, dado que não é possível acomodarem uma subida tão grande de custos. Para além disso, a subida do custo do transporte será mais um contributo para uma aceleração da subida generalizada dos preços, o que
terá impacto na economia portuguesa. Gostava de destacar ainda que os apoios ao transporte rodoviário surgiram de forma quase imediata, o que promoveu um enviesamento do mercado de transportes, dado que o transporte rodoviário concorre diretamente com o transporte ferroviário. É um pouco difícil defender a necessidade de se implementarem medidas de apoio financeiro à rodovia para fazer face à subida de custos que temos vivido, e não fazer o mesmo com a ferrovia quando, ainda por cima, é um modo de transporte mais sustentável. Estas medidas acabam por promover a concorrência desleal entre modos, contra as regras da concorrência, e contrariam o atingimento das metas de descarbonização com que o Governo português se comprometeu a nível internacional.
APAT – Também em março, a SNCF anunciou a aquisição da Takargo e a sua integração na Captrain. Como avaliam este interesse por um operador nacional, e o que esperam possa daí resultar para a competitividade do setor? Miguel Rebelo de Sousa - Vemos com o maior interesse o investimento realizado pela SNCF na Takargo. É investimento direto estrangeiro no país, com um operador de referência no setor a nível europeu, o que é um bom sinal, de confiança na competência e ferrovia nacionais. Penso que o setor só tem a ganhar com esta entrada no mercado e vejo com grande expetativa a capacidade que trarão em termos de investimento e de competitividade. O mercado do setor do transporte ferroviário de mercadorias assumir-se-á ainda mais como sendo o mercado ibérico.
APAT – A APEF nasceu com a Medway e a Takargo, a que se juntou a Captrain, que agora absorverá a Takargo. Justifica-se uma associação com apenas 2-3 membros? Estão a tentar “recrutar” mais? Miguel Rebelo de Sousa - A APEF nasceu da vontade destes operadores em se juntarem numa Associação, que permitisse que houvesse uma entidade que representasse os interesses do setor como um todo, mais do que cada operador procurar defender os seus interesses. Uma Associação que representa a totalidade do setor de transporte ferroviário de mercadorias justifica-se plenamente, ainda para mais quando tem por objetivo garantir que existem as condições necessárias para a existência de um mercado competitivo, sustentável e mais eficiente. É uma Associação aberta, num mercado aberto e liberalizado, que não está limitada ao transporte de mercadorias e contamos, naturalmente, aumentar o número de associados. APAT – Considera haver condições para a entrada de mais operadores no mercado de transporte ferroviário de mercadorias? Nomeadamente, condições de concorrência, regulação, infraestrutura, material e equipamento? Miguel Rebelo de Sousa - O mercado do transporte ferroviário de mercadorias é um mercado liberalizado desde 2008, que tem funcionado de forma competitiva desde então, pelo que existem condições para qualquer outro operador entrar no mercado. No entanto, todos sabemos que é um setor que obriga a níveis de investimento elevado e que tem algumas condicionantes. Dito isto, acabámos de testemunhar a entrada da SNCF no mercado português, o que significa que identificam potencial no mercado nacional. Em termos de concorrência e de regulação, não há nada que impeça a entrada de novos players no mercado. Com o investimento que se pretende efetuar na infraestrutura ao longo desta década, haverá condições para haver mais disponibilidade de canal para aumentar a circulação de comboios de mercadorias.
APAT – A guerra na Ucrânia, com as mudanças nas cadeias logísticas e no abastecimento energético que impõe, poderá ter algum impacto positivo no transporte ferroviário nacional de mercadorias?
…o Ferrovia 2020 está numa fase crítica, vai ser necessário concluir as obras que estão em curso nos próximos dois anos (…) pelo que o cumprimento dos prazos das empreitadas é crucial, para não penalizar em demasia a operação e circulação ferroviária.
Miguel Rebelo de Sousa - Do ponto de vista estratégico, foi um erro a Europa não ter procurado diversificar as suas fontes de energia e a própria cadeia logística de distribuição de gás e eletricidade no espaço europeu. Penso que aos dias de hoje isto é unânime, dentro da Europa, e que agora estará reunida a vontade política necessária para permitir que essa diversificação se verifique, e que exista uma estratégia bem definida que promova uma rede de abastecimento energético mais eficiente, menos dependente da Rússia. O transporte ferroviário está sempre ao dispor da economia, como esteve ao longo da pandemia, garantindo o pleno funcionamento da cadeia logística, e penso que sim, que o transporte ferroviário de mercadorias pode ser útil nessa missão. É importante, contudo, que o reconhecimento estratégico do transporte ferroviário seja refletido em medidas concretas, onde, por vezes, temos assistido a algumas contradições, como a decisão de encerramento do maior terminal de mercadorias do país, sem se apresentar uma alternativa. A própria inexistência, até à data, de medidas de apoio à ferrovia, como já referi, derivado do aumento dos custos energéticos, quando verificamos que no caso da rodovia já foram aplicados apoios. Ou, ainda outro exemplo, as medidas de fomento das regiões interiores do País, através da redução das portagens para o transporte rodoviário, sem uma aplicação equivalente para o transporte ferroviário de mercadorias. É importante ter uma visão estratégica relativamente ao transporte ferroviário e, para isso, pretendemos contribuir com a nossa experiência e conhecimento para esse desígnio, que deve ser nacional.
APAT – Que expectativas têm relativamente ao novo Governo, e que medidas - conjunturais e estruturais - esperam sejam tomadas em benefício de uma maior resiliência do setor? Miguel Rebelo de Sousa - A nossa expetativa é que continue o forte investimento na ferrovia, com a conclusão em tempo do Ferrovia 2020 e a implementação do PNI 2030. É importante destacar que o Ferrovia 2020 está numa fase crítica, vai ser necessário concluir as obras que estão em curso nos próximos dois anos, que irão aumentar a sustentabilidade e a eficiência do transporte de mercadorias, em particular no Corredor Internacional Norte e no Corredor Internacional Sul, pelo que o cumprimento dos prazos das empreitadas é crucial, para não penalizar em demasia a operação e circulação ferroviária. É importante continuar a promover medidas que permitam garantir a competitividade do setor, no sentido de viabilizar a transição entre modos de transporte, tal como o definido nos compromissos estabelecidos para as metas de descarbonização a atingir até 2030. Consideramos que existem condições para o setor crescer, ser mais competitivo e eficiente, com infraestrutura e condições de segurança mais adequadas à operação, com operadores motivados e competitivos, promovendo uma maior concorrência entre operadores e melhorando os níveis de qualidade de serviço a prestar à economia nacional.
APAT – Como antevê a evolução do transporte ferroviário de mercadorias em Portugal durante a próxima década? Miguel Rebelo de Sousa - A próxima década mudará por completo o estado da ferrovia em Portugal. Cumprindo-se os objetivos definidos por Portugal em termos de transição climática, pretende-se que até 2030 o transporte ferroviário represente 30% do transporte de mercadorias, sendo que hoje representa cerca de 14%. Para além disso, as intervenções previstas ao nível da infraestrutura permitirão um aumento de capacidade grande, o que viabilizará uma melhoria da qualidade de serviço a prestar, quer no transporte de passageiros, quer no transporte de mercadorias. Haverá lugar à digitalização da ferrovia, aumentando por essa via a eficiência e uma maior competitividade do setor para fazer face às necessidades do mercado e do país. Estamos confiantes e motivados para esse grande desafio que é o da evolução da ferrovia nos próximos anos.