O CRIME DA POÇA DAS FEITICEIRAS

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O Crime da Poça das Feiticeiras de Paulo Bruno Alves

13 de Outubro de 2012

APRESENTAÇÃO Dr. Alberto Correia


O

romance “O Crime da Poça das Feiticeiras”, de Paulo Bruno Alves, constituiu-se como primícias de um género literário que o autor intenta prosseguir, afortunado que foi nesta aventura seleccionando como matéria do seu romance um tópico que, pelo menos em Viseu, se oferece ainda como sensacionalista – o crime acontecido em 1925 na Quinta de S. Caetano, sem que, até hoje, se tenham desfeito as dúvidas acerca dos seus verdadeiros autores, pese embora a condenação dos réus então indiciados. Razão que contribuirá para o seu êxito, dada a eficácia que a mesma apresenta para o leitor, será a estratégia adoptada na narrativa que o autor recupera do cinema ou da banda desenhada, fazendo intercalar duas narrativas paralelas construídas, cada uma delas, por capítulos relativamente


curtos que, identificando, cada um deles, uma determinada situação que fica por resolver, seduzem o leitor para o encontro, no capítulo posterior, da chave do mistério deste romance que podemos chamar romance de enigma. Duas histórias paralelas correm no romance. A primeira é a história real, a do crime acontecido de 16 para 17 de Julho de 1925 na Quinta de S. Caetano, espaço marginal de Viseu localizado na freguesia de Ranhados, então núcleo residencial da família de João Alves Trindade, o Africanista assassinado. João Alves Trindade obtivera por compra, nos inícios do século XX, a Quinta de S. Caetano que integrava o velho solar tardo-setecentista e vastos espaços de propriedades fundiárias que num passado relativamente recente haviam


pertencido a uma das mais nobilitadas famílias de Viseu, os Silva Mendes, acrescentados posteriormente com a compra das Quintas de Santa Eufémia e Areais, logo vizinhas, também elas da antiga pertença dos Silva Mendes. João Alves Trindade, roceiro em S. Tomé, cujo enriquecimento suspeito de duvidosas práticas lhe mereceu o título de Africanista, solteiro, pai de Silvina, a filha que legitimara aos 21 anos, rico, como se disse, esbanjador e mulherengo, suspeito, às vezes, segundo alguns, de conduta desviante, conflituoso, maculado mercê de ilícitas relações, tido por sedutor de uma das filhas do seu caseiro, parecia não acarretar a simpatia nem dos familiares directos que se abrigavam sob o mesmo tecto, nem de caseiros ofendidos e cobiçosos. Silvina, a filha que entretanto casara com Claudino Lopes Ribeiro, também ele com favoráveis negócios em África que dirigia desde Lisboa onde o casal se fixara após o casamento, terá regressado a S. Caetano devido a insistência do pai, mau grado a perda dos negócios com África vendidos por Claudino ao desbarato. Uma vez em Viseu, estabelecem com o pai e sogro um contrato de arrendamento da Quinta cujo cultivo projecta melhorar, mas, cinco anos volvidos, o não pagamento de uma parcela da renda estatuída motiva um esquisito processo judicial de despedimento que integra esse intrincado contexto de vidas no âmbito do qual se deu o crime pelo qual é condenada Silvina, como parricida, Claudino Ribeiro, seu marido e Albina Correia, uma serviçal devotada, enquanto encobridora. No decurso do longo processo, duas vezes revisto, sempre com o mesmo desfecho, gera-se uma emotiva reacção, jeito de onda que se alarga, originando uma dupla versão do acontecido. Veemente a que sustentava a tese da parricida, de imediato incriminada pelos irmãos de João Trindade com intervenção de causídico ao seu serviço, um lote de testemunhas duvidosas e, na envolvência, um sombrio



corpo de gente sobre o qual se teceu uma estranha teoria de conspiração. Apaixonada a outra tese, a que a requeria inocente, como ela e seu marido se reclamavam, como parecia prová-lo a defesa dos advogados constituídos, como acreditava um solidário corpo de gente que até se quotizara para suportar os custos de uma defesa de que não houve real proveito. Sustentando e ampliando os argumentos das duas teses saíram a lume algumas edições, cinco ao todo, compassivas quase todas, excepto uma, que ligava a autoria do crime, não inocentemente, aos réus entretanto já cumprindo pena. Não associo a estes textos o mais tardio romance de Agustina Bessa Luis, Eugénia e Silvina, cuja tessitura não se propõe, naturalmente, como objectivo, ainda que o pareça, conduzir aos gestos homicidas de Silvina, antes assenta a construção do seu enredo à volta do carácter singular das mulheres Silva Mendes e de Silvina, a parricida, que incarna o papel de anti-herói, derradeira habitante da Malhada, heterónimo da Quinta


de S. Caetano inspirado na pejorativa denominação dada à liberal baronesa Eugénia Cândida Fonseca, fundadora da dinastia Silva Mendes. Ora é sobre a densidade histórica destes aconteceres textualmente representados pelo romancista - investigador que, cauteloso e atento, manuseou com cuidada demora o extenso processo de milhares de páginas relativo ao crime, que leu os vastos textos da imprensa da época e a meia dúzia de livros entretanto editados que o investigador, agora romancista, vai construir a narrativa ficcional, naturalmente ancorada nessa arqueologia que permanece sepultada sob o pó do tempo, a permanente dúvida sobre os verdadeiros autores do crime suscitada e mantida no decurso da instrução e desfecho de um processo de suspeitos meandros. A intriga que o autor constrói parte naturalmente, creio, dessa humana necessidade de procura do conhecimento, a mesma busca do conhecimento que intentou Adão no original tempo do paraíso e lhe acarretou o desfecho do exílio numa terra nova e estranha onde os seus herdeiros prosseguem idêntica, arriscada


e inatingível missão, parece. Parte-se de “O Crime da Poça das Feiticeiras” e da permanente dúvida pousada sobre Silvina e Claudino: Inocentes ou culpados. Onde a verdade? Como atingi-la? Se é que o intento se torna ainda possível?! Por três vezes se intentara o conhecimento da mesma através de uma via institucional e o mesmo resultado se obtivera, sem que inteiro convencimento ficasse, uma forte réstia de dúvida permanecendo. E este permanente ensejo de prosseguir no seu encalço, da verdade, do seu conhecimento! E eis que se oferece a figura do historiador Abel Pereira cujo trajecto, no romance, permanece como tutelar memória para o neto a quem, reconhecendo a proximidade da morte, mercê da idade, 84 anos feitos, mais ainda de pressentimento de desastre próximo, confia, como herança, o projecto em que se empenhara: - descobrir os verdadeiros culpados do crime a partir de novos e claros indícios fornecidos por documentos que lhe haviam chegado às mãos e que,


inquieto, suspeitando ameaças sobre a sua pessoa, deixara escondidos em resguardado lugar cujo caminho, ao jeito de jogo de pista de escuteiro, seria decifrado através da interpretação de secreto código cuja chave se ofereceria. Gabriel Malafaia, inspector da Polícia Judiciária da Directoria do Porto, neto de Abel Pereira que entretanto falecera em acidente de viação de mal conhecidas causas, recebe a caixa que o avô lhe confiara em testamento e que, uma vez aberta, lida a mensagem contida na carta a si dirigida, eis que se entrega, mercê da formação profissional que o atrai e da devoção à memória do avô que o convoca, à descoberta dos verdadeiros autores do crime. Gabriel está no esplendor da idade, como cabe a um protagonista de uma arriscada missão que vai ter o seu quê de heróico, não fora o romance filho longínquo da tragédia, traz o rigor do desempenho de suas específicas funções, é dotado da calma e da contenção que ao seu trabalho convém, do sangue frio em que fora treinado e fica assim apetrechado


para que retire êxito da missão que o destino lhe entrega e ele aceita. Filipa, sua irmã, com trajecto na Medicina Legal, servir-lhe-á de apoio num quadro de ciência e de encosto amorável enquanto irmã, mas será Rita, jovem como ele, livre de afectos, parece, de bonita presença, nada bisonha, impulsiva às vezes, quem vai, mais tarde de mão dada, ser ajuda, conforto ou estímulo numa aventurosa busca de um segredo, o achamento da caixa de Pandora (designação premonitória) que conterá a resposta, a solução, para a questão eternamente em aberto – culpados ou inocentes missão de risco que se torna mais concreto à medida que a investigação progride. Sinal ainda de que a questão do crime ficara em aberto é o aparecimento, no romance, dos sérios e indispensáveis antagonistas desses primeiros pesquisadores da verdade já ao tempo confrontados com uma pretensa armação de cabala, uma rede de mafiosos construída pelos longínquos


herdeiros daquelas personagens que teriam originado o curso que o processo levou. Travestidos de defensores de uma verdade que não passa de mentirosa farsa, “Guardiães da Verdade” como se designam, actuando num sub-mundo de disfarce e crime, intentam todos os meios, que levam ao limite, para impedir que surjam à luz do dia esses documentos em tempo retirados do processo e que, ao aparecerem agora, já que pressentem que alguém os procura, desmontariam a mentira construída por seus avós, maculando de vez a honra da família que desejam a todo custo salvaguardar. É a eterna luta do bem e do mal, desiguais elementos em presença, incerto por muito tempo o resultado, nem sempre acontecendo o triunfo do bem como seria de justiça. Gabriel e Rita, que se orgulha da ajuda prestada na decifração dos códigos que conduzem ao achamento dos documentos roubados do processo e que, se não tivessem sido dele retirados teriam ocasionado uma diferente sentença dos juízes, escapam a insidiosos ataques levados a efeito


por capangas ao serviço dos herdeiros dessa espécie de seita que alguma vez terá arriscado o nome de Mão Negra e que depois se auto-denominou de Guardiães da Verdade, como foi dito, responsáveis que tornaram pela morte de Abel Pereira, o corajoso avô de Gabriel que, através do neto, acaba por trazer à luz os documentos anteriormente furtados e que agora resgatam a verdade. Ou tão só em parte a resgatam. Ruídos pelos seus ódios, ou mortos, subvertido o conceito de honra que lhes suportava a resistência, duvidando já da natureza da validade da missão que a si próprios se confiaram, pouco restaria para condenar por uma justiça tardia que nem sequer já poderia julgar. Quem poderia ser julgado agora?! Agustina, em Eugénia e Silvina, ela que fizera de Silvina uma parricida impiedosa, acaba por verificar que os adversários, os que a tinham condenado, com o tempo teriam deixado de acreditar nos princípios que


antes defenderam, os incertos ditames da honra. Com o tempo, diz ela, os inimigos acabaram por se retirar, levando com eles as reacções emotivas e a rigidez de pareceres. Disseram “Ela – Silvina, que se declarara inocente – ela talvez tivesse razão…” Parecia que a verdade mais uma vez estava perto de se achar mas, mais uma vez, isso não acontecia. Gabriel, esse, cumprira até ao fim o seu papel. Fora perfeito. Mas reconhece, são palavras suas: Tudo isto apenas serviu para adensar o mistério que rodeou o Crime da Poça das Feiticeiras. Paz a quem morreu nesta história, independentemente de se saber inocente ou culpado pelo crime cometido. Estas são também as palavras do autor do romance. Gabriel e Rita erguem um copo. Brindam. É já um outro tempo. O que fazem já só tem a ver com o fragmento de felicidade a que eles têm direito nesta terra dos homens onde nem todos puderam ser felizes.


E isso lhes concede o autor do romance, Paulo Bruno Alves, que tomou sobre os ombros a restituição deste campo de memória que se conforma também com a identidade da cidade onde o episódio aconteceu, mesmo que numa arquitectura de tragédia. História e ficção convivendo num tempo e lugar próximo de nós e que, simultaneamente, nos aproxima e distancia de um facto que poderia ser tomado como lição se o romance pudesse ter um fim moral, que nunca tem. Para terminar, permito-me saudar o jovem autor que nos cativa ao longo das muitas páginas do seu livro que percorre geografias a que afectivamente também nos ligamos, que nos restituiu fragmentos de um tempo antigo traduzidos por curtas biografias e desenho de obras dos construtores da cidade, que nos reconstrói uma mitologia imprecisa que se herda dos avós, um imaginário sedutor de subterrâneos caminhos que também fundamentam o passado, que percorre um tempo dual que temos de


assumir como nosso, queiramos ou não, o da memória, esmaecido, como que perdoado de seus pecados, e o tempo de hoje, psicológico ou cronológico, ambos nos inquietando, que nos faz amar ou odiar as personagens que ali se enredam movidas por fria racionalidade ou tocadas por emotivo sentir, perigoso campo este onde nem sempre seremos cautelosos na escolha que fizermos. Obrigado ao autor a quem desejo rumo feliz para o seu romance. Boa leitura. E obrigado a vós pela atenção dispensada.

Alberto Correia


www.edicoesesgotadas.com facebook.com/ocrimedapocadasfeiticeiras


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