Três três #1 - A Curva

Page 1

A curva | Literatura | Patrim贸nio | Arte

trimestral fevereiro 2013

01


S達o curvas, meus senhores, s達o curvas


a curva 3


Edição: Pedro Xavier Mendonça, Ricardo Norte e Rita Baptista Design: Nuno Fragata e Bruno Afonso Impressão: Várzea da Rainha - Impressores Dep. Legal 355130/13 ISSN 2182-7869 Colaboradores: Ana Rita Sobral, Ângelo Pacheco, Anselmo Caeiro, Joaquim Sebastião, Joel Henriques, Miguel d’Azur, Pad Ell Rey, Pedro Xavier Mendonça, Ricardo Norte, Rita Baptista, Nuno Fragata, Sandra Tirapicos. Convidados: António Barahona, Felipe Pathé Duarte, Fita-Cola, Gonçalo Fonseca, Isabel Xavier, Rahul Kumar, Rita Capucho, Rui Ribolhos Filipe, Sandra Rodrigues, Sérgio Martins. Capa: Fita-Cola

É reservado aos autores o respeito pela utilização do acordo ortográfico ratificado em 2008. Os textos e imagens utilizados na revista TrêsTrês são propriedade dos respetivos autores e não poderão ser reproduzidos ou utilizados sem a autorização prévia dos mesmos. Pode contactar os autores através da Electricidade Estética.

revistatrestres@gmail.com

APOIOS:

Núcleo Electro-Estético


1, 2, trêstrês

a curva

neste número da trêstrês

5

Pedro Xavier Mendonça

08 Arte e técnica, danças e rodopios

Pedro Xavier Mendonça

10 Coisalidades

Ricardo Norte

14 São curvas, Senhor! São curvas!

Rita Capucho

18 Relativismo não é o mesmo que relatividade ou

Rahul Kumar

A grande confusão

Literatura

Património Arte

21 A Direita pela Mão de Conservadores e Liberais

Felipe Pathé Duarte

24 Correspondência com Mário Cesariny

António Barahona

26 Para além da curva da estrada

Alberto Caeiro

28 A primeira curva da estrada

Joel Henriques

31 O suspiro dos pêsames

Miguel d`Azur

32 A vida é um sopro

Miguel d`Azur

34 Aforismos em forma de pensapoemas

Anselmo Caeiro

40 O próprio

Ricardo Norte

41 Para além da teoria do rio

Joel Henriques

42 Reviver as Invasões Francesas

Rui Ribolhos Filipe

Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro 44 A Institucionalização das Artes Contemporâneas: Uma Reflexão

Isabel Xavier

47 Art is art, everything else is everything else

Ângelo Pacheco

49 Estrada de Marraquexe - parte II

Gonçalo Fonseca e Sandra Rodrigues

52 Palavras em celulóide

Joaquim Sebastião

55 Topos

Ana Rita Sobral

índice

A curva

06 Nota editorial sobre a curva


Nota editorial sobre a curva

Começamos pela curva. Talvez fosse mais previsível uma reta, mas em frente não parece provável. Os tempos não estão para linearidades. Uma curva pode ser um desvio a que somos obrigados depois de uma reta, sem alternativas, ou uma opção entre muitas num cruzamento. Na curva, cola-se-nos o horizonte à cara. O futuro parece mais curto perante a incapacidade de prospeção. Só depois de a terminarmos vemos de novo o que aí vem. Até

lá, a dúvida. Também não sabemos se escolhemos, sobretudo quando somos um coletivo. A minha escolha pode valer bem pouco quando a maioria prefere outro caminho. O melhor da curva é a novidade. O pior é que podemos curvar de mais e ficar em rodopio ou escolher a reta que nos faz voltar para trás, isto para quem acredite na utopia do progresso. Podemos também ir para lugares que não é possível desejar, mas entretanto curvámos. Este primeiro número da revista três três, na prática um segundo depois do zero, decerto um número, traz a curva como temática múltipla ao mesmo tem-


a curva 7

po que a coloca como algo do seu tempo. Poucos duvidarão da sensação de curva que vivemos, ainda que eventualmente não efetiva. Por isso, trazemos pelo menos dois textos que são de modo direto políticos, ainda que todos o sejam em parte. Falam de esquerda e direita, tão óbvios como sentidos diferentes. Em termos de património, mostramos o Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro, marca da curva que Napoleão impôs à Europa. Outra curva possível

é a do corpo, daí que o erotismo tenha também lugar neste número. De resto, a arte marca os restantes trabalhos que fazem esta revista, não só servindo de temática, como em termos de prática literária ou visual. Talvez pelos colaborantes assim o entenderem, ou porque de facto é na arte que a curva pode ser mais subtil na sua revolução, e aí mais profunda nas mudanças que abre. Esperamos um encontro na próxima reta. Pedro Xavier Mendonça


Arte e técnica, danças e rodopios Pedro Xavier Mendonça

A arte e a técnica fazem-se numa lógica idêntica ao mesmo tempo que estão longe de ser a mesma coisa. É numa diferença entre ambas que se encontra um potencial para a inscrição no nosso tempo e não naquilo que as aproxima. Devido a esta pertinência é oportuno trazer esta questão, apesar de ser tudo menos nova ou original. Pode dizer-se que a arte e a técnica são semelhantes nos processos, até porque já os gregos as aproximam. Assumamos que a técnica é intrínseca à arte enquanto procedimento que utiliza instrumentos com vista a um fim de forma consciente e repetível. Quase todo o objeto artístico faz-se neste modo. A sua construção é também da ordem da tecnologia. Os métodos chegam a diferenciar artistas e capacidades de produção artística. Muitas obras são valorizadas porque possuem qualidade técnica que se revela no objeto artístico fechado. Mesmo alguma arte contemporânea, aquela que depende mais de escolhas do que de técnicas, comporta sempre uma tecnicidade, ainda que mínima. A técnica é intrínseca aos processos vitais. Por outro lado, se quisermos expurgar a técnica da arte considerando atividades como a engenharia, continuamos a encontrar elementos ilustração: Ricardo Norte

ditos artísticos nas tecnologias utilitárias. É comum dizer-se que o design explora este hibridismo. Não podendo identificar uma separação total entre ambas, é possível detetar radicais de afastamento, isto é, a maior diferença possível. É nesta que se encontra algo importante. Neste sentido, devemos pensar um dos aspetos que fazem o objeto artístico. Hannah


a curva

Arendt refere-se à obra de arte como uma entidade

em relação à sociedade, podemos pensar na fun-

que estabiliza a sua presença no mundo, remetendo

ção de negatividade que Theodor Adorno atribui à

o objeto de uso para a troca e a interação constantes.

arte como um elemento desta esfera, embora sem

Neste sentido, não será abusivo dizer que o objeto de

a fixação dialética deste autor. A curva pode ser o

uso é aquele que mantém a operação técnica mesmo

desvio que traz consigo o estado anterior para uma

depois de finalizado. Traz consigo como caracterís-

nova direção e um outro estado. Este horizonte

tica da técnica o permanente envio em relação a ou-

diferente tem a capacidade de colocar o novo muito

tros envios com os quais se interseta pragmaticamen-

para lá da inovação tecnológica. A curva técnica

te. Um objeto artístico, apesar de resultante de uma

apenas substitui processos ou cria novas possibilida-

técnica, tende a uma estabilização para lá dos proces-

des dentro de um quadro de desejo prévio. Mesmo

sos de construção. Digamos que o envio de carácter

quando parece criar desejos, eles são de alguma

técnico esbarra no estado final artístico, o qual tem

forma familiares. A arte, doutro modo, tem o poder

como únicos envios de princípio os elementos esté-

de criar estranheza. E quando esta começa a ser

ticos e simbólicos, possuidores de âmbitos sinestési-

familiar, algo se transforma a um nível muito mais

cos, cognitivos e mesmo transcendentais que não se

profundo do que aquilo de que a técnica é capaz.

reduzem à tecnicidade como instrumento ou aparato. Mas podemos perguntar-nos se a arte tem exÉ verdade que a técnica não corresponde sempre

plorado este seu potencial. Se sim, é preciso saber

a uma condição de uso. Martin Heidegger chama a

com que matéria. É que por vezes é claro que ela

atenção para o facto de a questão da técnica não ser

só o faz com a sua própria matéria, deixando a sua

a da instrumentalidade, mas, entre outros aspetos, a

estranheza incapaz da revolução excêntrica. Tem

da emergência de uma espécie de aparato gigantesco

feito curvas sobre si própria, tem rodopiado sozinha,

(Gestell) que pode dominar os homens. Assim se

tem sido neurótica. Talvez precisemos de uma arte

pode dizer que o envio permanente técnico adquire

que saiba dançar. Quem rodopia na solidão não se

uma certa estabilidade estrutural. Todavia, esta esta-

relaciona. No máximo, fica tonto, eventualmente

bilização é da ordem da cobertura, isto é, acontece

confundindo isso com alegria e descoberta. Quem

num envolvimento sobre o humano, muitas vezes de

dança tem que aprender a dançar olhando o outro,

forma controladora e vigilante, e não enquanto algo

equilibrando-se com ele. Os seus passos podem ser

que está aí para o interpelar a partir de uma certa

ousados, mas o par também tem que segui-los. E

distância, como a arte tem o potencial para ser.

aí a ousadia é apolínia. Sempre que não é mais do que rodopio sobre si mesma, ainda que cumprindo

Este estar ao lado do humano dá à estabilização

a sua libertação da técnica, a arte salta para o va-

da arte uma outra virtude que a estabilização técnica

zio da fórmula que a tem reduzido a uma relação

não possui: a possibilidade da curva. Enquanto a téc-

sociologista. Mas não sobrem equívocos: dançar

nica pretende o envio no regime da reta, o caminho

não é esquecer a sociedade. Bem pelo contrário. É

mais curto e rápido de modo a atingir a eficiência

ter uma visão de mundo que o traz como conteúdo

máxima, muitas vezes numa lógica de estrutura, a

completo, nas suas mais variadas formas, e isso ser

arte dá-se à curva inútil, lenta, ou, se imaginarmos

sociedade. E não o fazendo como piadola, o cami-

uma subida seguida de uma descida no ar, àquele

nho mais curto. Talvez escolhendo o percurso mais

momento de suspensão entre a propulsão e a queda

difícil, através do qual a estabilidade é um passo de

no qual há uma estabilização de segundos. Mesmo

dança em lugar de uma comicidade categórica.

9


coisalidades

“A man will be imprisoned in a room with a door that’s unlocked

and opens inwards; as long as it does not occur to him to pull rather than to push it” Wittgenstein Ricardo Norte

Estamos constantemente em comércio com qualquer coisa. Desde que acordamos, até nos deitarmos. Levantamo-nos, abrimos a janela para ver o dia, calçamo-nos para ir à rua, abrimos a porta para sairmos, percorremos a rua para chegar ao café. Nas mais diversas situações usamos coisas que se referem a outra coisa. Sendo este, a maior parte do tempo sem nos darmos conta, o modo com que olhamos tudo o que

Seja como forma e matéria, como substância

nos aparece. Este modo de correspondência torna-

ou coisa criada (visão bíblica) e a maneira como

-se familiar e faz com que tudo apareça como coisa.

umas com as outras se intercalam, influenciam

Poderemos reduzir todas as coisas a existirem com

e se manifestam na gramática, as estruturas que

uma finalidade? O conceito de finalidade pressupõe

projectamos nas coisas nascem de um modo de

uma causa, de onde deriva a palavra “coisa” (como

pensar que pensa o ente como não encoberto.

coisa causada ou noutro sentido como o que está em causa), que no português antigo ainda se pode

Chegamos ao café para bebermos uma bica,

ler nas entrelinhas de cousa, podendo ser qualquer

sentamo-nos para descansar as pernas e enquanto be-

coisa excepto o humano que se poderia dizer couso,

bemos o café lemos um poema. Para quê? Podemos

que significa indivíduo. As coisas não são unívocas

responder de várias maneiras a esta pergunta, mas

e o modo como as olhamos depende de um mundo,

para já evidenciemos o facto de que o modo como

de um mundo entendido como uma certa unidade

é colocada reenvia sempre ao sujeito como portador

de sentido e não, como por vezes se entende, soma

de uma vontade perante um objecto (neste caso o

de todas as coisas, uma unidade interpretativa que

poema). O livro “Teorias da arte” de Arnold Hauser

determina todas as atitudes humanas possíveis.

começa do seguinte modo: “A arte é um desafio, ao interpretá-la, fazemos uso dos nossos próprios objectivos e esforços, dotamo-la de um significado que


a curva 11

tem origem no nosso modo de viver e pensar. Numa palavra, qualquer género de arte que, de facto, nos

Perante uma obra de arte saímos do mundo do

afecte, torna-se deste modo, arte moderna.” . Se uma

para e do mundo da coisa, perante uma obra saímos

obra é moderna porque é reduzida aos objectivos e

do sítio onde nos encontramos quotidianamente. O

modos de vida do espectador (que pelo contexto da

mundo onde a insipidez e o habitual temperam os

frase “moderno” se compreende como meramente

dias, onde à força de viver nos isolamos do contacto

actual), o que quer dizer ter uma experiência artísti-

com a vida. A arte traz à presença o que se afasta

ca, senão uma mera confirmação de um hábito? “A

com a força da maré vazante. Proust questiona-o

arte é um desafio”, então que se corram todos os

com a clareza que lhe é particular: “Mas essa desco-

riscos do duelo, e no combate quando se enfrenta

berta que a arte nos pode fazer fazer, não será ela, no

o “outro” é prudente não o reduzir a mim mesmo.

fundo, aquela do que nos devia ser o mais precioso,

Mais à frente o autor faz a salvaguarda de que a

e que permanece por hábito sempre desconhecido, a

arte permanece sempre como um cume inacessível,

nossa verdadeira vida, a realidade tal como a che-

mas o problema mantém-se: ou fica reduzida a uma

gámos a sentir e que difere tanto daquilo que nós

interpretação enraizada nos nossos hábitos, ou se

cremos, que somos preenchidos de uma tal felicidade

isola como uma coisa em si inacessível - a experi-

quando um azar nos traz a recordação verdadeira?”.2

1

ência enquanto estar a ser da obra fica por pensar. A estética enquanto disciplina metafísica vai ter o seu ponto alto em Hegel que com o rigor da dialéctica afirma: “ Para nós a arte não vale mais como o modo mais alto no qual a verdade procura a existência”. O que é que diferencia o conceito de verdade de Hegel da recordação verdadeira de Proust? A arte para Hegel é somente um momento dialéctico onde o sujeito ainda não é consciente do absoluto, a


verdade é pensada enquanto adequação do que dizemos (da nossa representação) à realidade, enquanto Proust pensa a arte como o lugar onde a verdade acontece. Na “Origem da Obra de Arte” Heidegger diz-nos que a origem da arte é a verdade, que a arte é o estar em obra da verdade, mas a verdade já não é pensada como adequação mas sim como a abertura que vai permitir que tanto essa como outra interpretação seja possível. Para Heidegger a verdade deve ser pensada a partir do termo grego aletheia, palavra formada através do verbo lanthano que significa escapar (manter-se inapercebido) com a junção do alpha privativo, ou seja, aletheia é a suspensão da reclusão do ser. Mas o léthe (substantivação feita a partir do verbo lanthano) é uma palavra que escapa a todas as tentativas de sistematização, não significa somente uma falta, mas é caminho, palavra mitológica que tem um papel central na vivência grega, e que não deve ser tomada de forma precipitada como algo negativo. Por exemplo, em Platão no livro X da Républica, depois das almas terem escolhido a vida que queriam ter, são forçadas a atravessar um deserto que se chama a planície do Lethes, a planície da dissimulação, do que é latente, onde nada cresce. A planície finda junto ao rio Améles (que significa “sem cuidados”) e as almas chegam tão sedentas de terem atravessado o Lethes que se lançam ao rio e esquecem-se de tudo o que viram e da escolha que fizeram nas suas vidas. Para ficarmos por Platão

ilustração: Fita-cola

1- HAUSER, Arnold,.Teorias da Arte, Lisboa, Ed. Presença, 1973. 2 -PROUST, Marcel,. Sodome et Gomorrhe, éd. Antoine Compagnon, Gallimard, «Folio», 1989


a curva 13

(pois o léthe aparece sobre diversas formas em

Para terminar, quando o longo caminho do para

diversos poetas), no Fedro, no mito do atrelado e

que fizemos ao início, quando a confusão ou a

dos dois cavalos aparece outra planície, mas desta

ausência de mundo, toma a arte por outra coisa e

vez a planície de Aletheia, que é o sítio para onde

começa a traçar projectos ou planos de acção para a

o cocheiro deve direcionar o atrelado através de

mesma, quando a eficácia obceca e fecha sobre si o

um equilíbrio do temperamento dos dois cavalos.

Ocidente, podemos supor que o poema que líamos

Em Heidegger aletheia é traduzida por “unvergesse-

no café seria o poema “argumento” de René Char, e

nheit”, uma palavra construída pelo próprio que faz

para usar uma expressão do próprio, a pergunta que

o mesmo movimento de privação do verbo grego

fizemos (para quê?) seria uma embolia dialéctica da

com a partícula “un” junto ao verbo “vergessen”

qual a leitura do poema nos libertaria:

(esquecimento). François Fédier descreve a etimologia do verbo “vergessen” através do inglês “forget”

Como viver sem o desconhecido diante de si?

(pois de “gessen” de “ver-gessen” não há registo do

Os homens de hoje querem o poema à imagem da sua vida,

que signifique enquanto verbo), sendo a sua tradu-

feita com tão pouca atenção, tão pouco espaço e queimada de

ção de “for-get” a de tomar uma coisa por outra,

intolerância.

agarrar um rouxinol a pensar que é um ruivo, numa

Porque não lhes é mais permitido agir supremamente com a

palavra, perceber a entidade como sendo o ser.

preocupação fatal de se destruir pelo seu semelhante, porque a riqueza inerte deles os trava e aprisiona; os homens de hoje, o instinto enfraquecido, perdem, mesmo conservando-se vivos, até a poeira dos seus nomes. Nascido do apelo do futuro e da angústia da retenção, o poema, elevando-se do seu poço de lama e estrelas, será testemunha em quase total silêncio, que não há nada nele que não exista verdadeiramente noutra parte, nesse rebelde e solitário mundo de contradições. 3

3- CHAR, René, Fureur et mystere, Gallimard collection Poésie, 1967 Traduções do francês por Ricardo Norte


São Curvas, Senhor! São Curvas! Rita Capucho

Ensaio as palavras para começar a dispor as linhas e rapidamente surge o milagre: são curvas, senhor! São curvas! As linhas da literatura licenciosa são curvas, respondo sem hesitar. Linha curva, livre e sensual que nos enlaça no mais íntimo de nós, querendo curvar-nos ao desejo e ao amor. É uma linha sedutora que nos sussurra ao ouvido o anseio que lhe desenha a sinuosidade, que arde inflamada pelo prazer que é o impulso do seu traço. Pensando melhor as linhas também poderão ser rectas mas só no caso de apontarem o caminho da liberdade de expressão. Pois falar de literatura erótica é falar de liberdade. As linhas são livres e não se curvam perante moralidades e convenções sociais. Vejamos o caso da “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” com selecção, prefácio e notas de Natália Correia1. O livro foi censurado, apreendido e julgado em Tribunal pois foi considerado uma obra “ofensiva do pudor geral, da decência e da moralidade pública e dos bons costumes»2 . A capa do livro da 3ª edição de 1999, com desenhos de Eduarda Feio e Paulo da Costa Domingos sobre o desenho de Hans Bellmer (1965), parece sustentar a minha pequena teoria, da linha curva da literatura licenciosa, a ilustração da capa realça o corpo feminino com uma série de linhas curvas. Linha que nos envolve no nosso próprio corpo que tem uma natureza curva. David Mourão Ferreira, no texto que figurava nas badanas da primeira edição, dizia que este era um livro necessário e já há muito esperado, elogiando Natália Correia por o ter feito. Melhor ainda, ele diz: Não ter medo das palavras é não recear as realidades que elas exprimem; é, sobretudo, evitar o trânsito pelo consultório do psiquiatra. Os maiores dos nossos poetas conheceram, desde sempre, esta forma de terapêutica.


a curva 15

ilustração: Sérgio Martins

Difundi-la, eis o que importa, eis o que pode contribuir, de maneira decisiva, para encaminhar muita gente nessas ou noutras vias de redentora libertação.3 E hoje? Será que este livro ainda é necessário? Ainda existe censura? Precisamos de linhas rectas que nos levem para as linhas curvas, pois ainda existe reprovação. Num artigo do jornal I 4, editores e autores, afirmam que o pudor e o preconceito ainda existem em relação a este tipo de livro. Alguns autores dizem que usam pseudónimos pois não sabem quais serão as consequências de assumirem a sua verdadeira identidade. Regressando à antologia, observo a pouca presença da voz feminina: em mais de noventa autores, só temos quatro autoras. Talvez seja um sinal da existência de rectas formatadoras e castradoras que negavam e talvez ainda neguem a liberdade às mulheres. Na continuidade da reflexão surge uma velha questão da dita linha que separa o erótico do pornográfico. Aqui, afirmo que não há linha possível que separe pois tudo depende da sensibilidade da pele de quem lê, e nem a qualidade literária poderá salvar um livro de ir parar à fogueira se a pele do leitor tiver uma epiderme de moral inquisidora.


Mas como é que aparece a curva nos textos eróticos? Será que a curva está mesmo lá? Sim, a Curva, está lá! Os textos eróticos podem não ter objectivamente a palavra “curva”, mas falar de corpo é falar de muitas curvas. Aliás se pesquisarmos a palavra “curvas” na internet, as imagens que surgem são de corpos, esse ser curvo de natureza instintivamente ondulante. Se transpusermos para linhas um poema erótico, que tipo de linhas representam a referência aos seios, às nádegas, aos lábios e à vagina? Uma linha curva, certamente. No livro “As Palavras do Corpo” de Maria Teresa Horta5, a palavra “curva” surge algumas vezes, dizendo isso mesmo “a curva”, e também surgem outras palavras da mesma família. Mas, além destas escassas referências, a curva está presente na curva das palavras e por isso digo que o livro está cheio de curvas, como podemos ver neste poema: Digo do corpo o corpo e do meu corpo digo do corpo o sítio e os lugares de feltro os seios de lâminas os dentes de seda as coxas o dorso em seus vagares Lazeres do corpo os ombros as lisuras

o colo alto

a boca retomada no fim das pernas a porta da ternura dentro dos lábios o fim da madrugada digo do corpo o corpo e do teu corpo as ancas breves ao gosto dos abraços os olhos fundos ilustração: Sérgio Martins


a curva 17

e as mãos ardentes com que me prendes

Maria Teresa Horta in “As Palavras do Corpo”.

em súbitos cansaços Este é um poema que nos abraça como só um bom Vício de um corpo

amante sabe fazer. O livro de Maria Teresa Horta está repleto

o teu

de poemas assim. Leio o poema e não consigo visualizar rectas,

com seu veneno

pelo contrário vejo curvas acentuadas a cada “corpo”.

que bebo e sugo até ao mais amargo

As linhas da poesia licenciosa também são simples e complexas. Complexas pois muitos de nós ainda precisam de ir ao psiquiatra e simples pois muitos de nós já não precisam de ir, pois já vivem bem com os

ao mais cruel grau

libertinos e com o seu próprio eu, também ele libertino e liberto.

do esgotamento onde em silêncio nado em cada espasmo

Não tenhais medo de ler estes textos, os autores não querem que o leitor seja como as suas personagens, querem apenas e só falar abertamente dos desejos e das fantasias sexuais. Mas, por outro

Digo do corpo o corpo o nosso corpo

lado, também devo ser sincera e dizer que muitos textos são deveras entusiasmantes, por vezes temos que parar, respirar fundo e apanhar um pouco de ar. Além de que existe o perigo de descobrirmos que somos ainda mais

digo do corpo

libertinos do que aquilo que nos julgávamos. Tudo

o gozo

depende da curva do nosso cérebro pois no fundo

do que faço

está tudo lá, nas curvas do nosso cérebro.

Digo do corpo o uso dos meus dias a alegria do corpo sem disfarce

1 - Natália Correia (selecção, prefácio e notas), Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Dos Cancioneiros Medievais à Actualidade), 3.ª ed., Lisboa, Antígona e Frenesi, 1999 2 - Disponível em http://editora-afrodite.blogspot.pt/2009/03/antologia-de-poesia-portuguesa-erotica.html 3 - Ferreira, David Mourão. In: Natália Correia (selecção, prefácio e notas), Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Dos Cancioneiros Medievais à Actualidade), 3.ª ed., Lisboa, Antígona e Frenesi, 1999, p. 9 4 - Garrido, Diana. “Escritores eróticos procuram-se”. IOnline. 9 de Dezembro de 2009; Disponível em http://www1.ionline.pt/conteudo/36594-escritores-eroticos-procuram-se . Acedido em 18 de Outubro de 2012. 5 - Horta, Teresa. As Palavras do Corpo (Antologia de Poesia Erótica). Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2012


Relativismo não é o mesmo que relatividade ou A grande confusão Rahul Kumar

Como quase tudo nos nossos tempos, também os conceitos de esquerda e direita são relativos. Aliás, quanto mais relativos parecem ser mais à frente parecem estar nas sondagens. Como dizia James Murphy – o filósofo dos LCD Soundystem – num desses retratos da contemporaneidade que é Losing my Edge: all my friends are more relative than yours.

A política hoje, tal como o amor nos anos noventa,

Lembram-se do Trainspotting? Qualquer dia já não

é paranóica. Podemos ouvir, um pouco por toda a

há gajas nem gajos. Só pessoal. Girls who are boys,

parte, entre pessoas sensatas, independentes e inteli-

Who like boys to be girls, Who do boys like they´re girls,

gentes “eu não sou de esquerda, nem de direita”. Es-

Who do girls like they´re boys, cantava Damon Albarn,

sas coisas já nem querem dizer nada, para recorrer à

em 1994. Os versos que antecediam o refrão deste

irónica formulação de José Mário Branco no seminal

hino hedonista dos Blur talvez adquiram hoje um

FMI. De pessoas ainda mais inteligentes podemos

outro significado. Street is like a jungle, So call the police,

ouvir coisas como “queremos todos o mesmo, temos

Following the herd, Down to Greece. Talvez já não seja

é diferentes formas de lá chegar”. Hoje um sushi,

em Holiday, para muita pena dos fans de Madonna.

amanhã uma chanfana. Afinal, o rock and roll está

ilustração: Fita-cola


a curva 19

morto e a comida é que está a dar e nós somos todos omnívoros culturais cosmopolitas a viver no Fim da História. Logo, tudo é permitido. A maior parte das pessoas a quem estes conceitos dizem pouco, que

A construção desta evidência gestionária, para

não são supostamente, e de acordo com os políticos,

a qual muito contribuiu a chamada Terceira Via,

os comentadores e os jornalistas, assim tão inteligen-

assente na naturalização das desigualdades sociais e

tes, só quer que as coisas se resolvam. Isto é, querem

na indiferença perante elas, foi, nos últimos cin-

ser felizes, porra! É a historieta da racionalidade das

quenta anos, o maior triunfo da direita, das forças

elites contra a delírio da turba, la foule, para falarmos

conservadoras, ou o que se lhe queira chamar. É

um pouco de francês. Mas, e perante o relativismo,

no apego às palavras, ao debate nominalista, por-

a tal liquidificação de tudo o que era sólido, a ques-

tanto, que se perde o sentido das distinções políti-

tão passa a ser a competência de quem governa e

cas e do antagonismo entre diferentes grupos que

acessoriamente a sua honestidade. Mas eles são todos

elas expressam. Esqueçam-se as chamadas guerras

uns ladrões, lá está. E na falta de alternativa lá va-

culturais, cujas batalhas mais recentes em Portugal

mos, inevitavelmente, alternando. Outra vez o sexo,

foram o casamento entre pessoas do mesmo sexo

portanto. E bem sabemos como faltam, como pão

e a legalização da interrupção voluntária da gravi-

para a boca, uns escândalos sexuais sumarentos que

dez. Naquela que será, porventura, a mais cristalina,

envolvam os nossos políticos. Se não a abundância,

poderosa, profunda, influente e sintética proposi-

aquilo que os antigos chamavam de pão, pelo menos

ção de todos os tempos, no que à realidade social

o entretenimento, aquilo que os mesmos chamavam

concerne, Marx e Engels anunciavam no Manifesto

de circo. Ora, hoje, nem pão nem circo. Submersos

Comunista, escassos meses antes das insurreições de

no tédio e na inconsequência do discurso político

1848, que “a história de toda a sociedade até aqui é a

oficial e dos chavões que quotidianamente são repe-

história da luta de classes”. E se o significado desta

tidos estamos todos fartos deste paleio de sanzala e

interpretação da estrutura profunda das relações

ritmo de pop-xula. Valham-nos, ainda assim, as reais

sociais é inquantificável, não foi ela que inventou

e estreladas mamas da Duquesa de Cambridge.

a luta de classes. Simplesmente nomeou-a, e nesse gesto problematizou as condições em que se pode desenvolver, oferecendo aos mais fracos armas para a interpretação das modalidades de inscrição do poder nas sociedades. Não no plano do idealismo filosófico, mas na materialidade das relações sociais.


É precisamente no terreno da luta de classes, no seu reconhecimento, e na posição - sempre relativa - perante ela que se pode estabelecer a diferença mais estritamente política entre as esquerdas – socialistas, anarquistas, comunistas, social-democratas - e as direitas – liberais, conservadoras, monárquicas, fascistas. E a luta de classes, se quisermos simplificar ao extremo, pouco mais é do que a definição do valor, da função e da divisão social do trabalho. Deve ele servir a economia, como qualquer outro factor de produção, ou deve ele ser fonte de satisfação das necessidades humanas? Encontramo-nos mais uma vez na esfera dos valores, sempre tão caros à direita. Neste caso o valor de uso contra o valor de troca. A esquerda entende que nem tudo é mercadoria. E, acima de qualquer outra coisa, a vida humana não é uma mercadoria. As direitas procuraram sempre, inexoravelmente, como se de uma lei da natureza se tratasse, submeter o trabalho, como qualquer outro bem, aos desígnios da reprodução da propriedade e da multiplicação do lucro. Hoje, a questão não é outra. Para resumir, convém não confundir hedonismo com badalhoquice.


a curva

A Direita pela Mão de Conservadores e Liberais Felipe Pathé Duarte

Assim nos dizem: esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda, direita. Volver! Volvamos então para nos focarmos com mais

O termo “conservador” talvez seja a melhor forma

precisão e perceber o que difere o último pas-

de definir a direita. Por oposição, e para nos confun-

so do primeiro. Dissequemos a direita moderna

dir neste esquisso, temos ainda o termo “liberal”.

ocidental, expondo os seus elementos balizado-

Agora a questão impõe-se: de que forma é que o

res para nos ajudar a superar o rótulo da reac-

esmiuçar de duas noções aparentemente tão antagó-

ção, do atavismo ou do esquecimento social.

nicas nos ajudará a perceber o que é hoje a direita? Para este exercício intelectual aportaremos então na cultura política anglo-americana, cuja vantagem para esta análise reside na recusa da utopia e na directa assunção da imperfeição relativamente a todo o empreendimento humano - dois princípios fundamentais para perceber a direita à luz do liberalismo e conservadorismo. Neste registo, por oposição estará a cultura política francesa, ou continental, tendencialmente mais “progressista” e associada à mudança. Para além de todos o laissez faire, o liberalismo deverá ser aqui entendido como a pura crítica ao poder do Estado. Ou seja, como a crítica a um poder “executivo” canalizador de determinados modelos que levem a uma interacção sociopolítica, não conseguida entre cidadãos que gozem plena liberdade. Historicamente, não deixa de ser interessante atestar que, durante todo o

ilustração: Fita-cola

século XIX, este registo tenha sido adoptado pela esquerda opositora a Estados poderosos e confessionais. Há, portanto, uma base contestatária na acção do “liberal”. Ressalta então aqui a valorização de um certo jusnaturalismo que se contrapõe a

21


e/ou inevitáveis. O conservador, na tradição moderna política ocidental, é aquele que nunca acreditou em engenharias sociais utópicas que apresentassem uma solução para os grandes males da humanidade. Temos então uma prudência que, no limite, é um leviathan hobbesiano não legitimado no exercício

motivada ou pela fé cristã ou pelo cepticismo. Pas-

do seu poder, e regedor da vida dos indivíduos.

samos a explicar: há os que o são pelo simples facto de encararem a dinâmica política como um fruto

Continuando. Este tipo de atitude, na Europa,

da providência divina; ainda há os que, cépticos da

passou a ser adoptado entre aqueles que se situavam

condição humana, aceitam a inevitabilidade da nos-

no espectro político mais conservador. Note-se que,

sa natureza; e, por fim, estão aqueles que também

por oposição ao liberalismo, ser conservador sempre

cepticamente põem de parte grandes soluções para

teve como identificação a defesa do status quo. Mas,

grandes problemas. Nos três casos a política e o

neste caso, a ambivalência do conceito remete-nos

exercício de poder surgem então não como possi-

para um sentido mais específico. Dito de outra forma,

bilidade de transformação social, mas tão-somente

a tradição política conservadora ocidental definiu-se

como mero instrumento de gestão da polis.

(define-se!) na recusa de modelos transformadores das sociedades em nome de soluções únicas, “científicas”

Será então fácil verificar a articulação entre liberalismo e conservadorismo como principais elementos definidores da direita: a prudência e jusnaturalismo levam necessariamente à ideia de um Estado reduzido. Mas não à sua ausência ou incapacidade interventiva em determinadas matérias de soberania. Reforçamos pois a ideia de que na direita moderna ocidental há uma suspeição permanente em relação ao uso do


a curva 23

poder político para a resolução dos males da humanidade e problemas sociais. Assume-se assim uma política da imperfeição, em que um governo limitado surge como impulsionador de uma perspectiva pluralista da sociedade civil que não é subsumível à acção política. A esta ordem civil espontânea, não comandada politicamente, Karl Popper chamou de

do Estado, maior liberdade tem o indivíduo. Porém,

“Sociedade Aberta” - um índice de acção democrática,

é claro que se os homens fossem anjos, os gover-

ou, se quisermos, a derradeira reserva de liberdade.

nos não seriam necessários, dizia James Madison.

A utilidade destas articulações (conservadorismo,

Para a direita moderna ocidental, a reposta pela

liberalismo, e agora sociedade civil) será agora me-

liberdade surge então na dispersão de poder, na

lhor compreendida se se repescar um outro con-

ausência de coerção e na prudência quanto ao papel

ceito. Falamos portanto do conceito de liberdade.

do Estado como condutor político-social. Em suma,

Sem grandes deambulações filosófico-políticas, resta

a direita, lida à luz do liberalismo e conservadorismo,

dizer que a direita, à luz definidora do liberalismo e

exerce o poder partindo de uma disposição cépti-

do conservadorismo, tende a ler a liberdade políti-

ca relativamente a projectos políticos de perfeição,

ca não de uma forma metafísica, mas como a não

dando por isso margem a uma ordem de liberdade,

coação por terceiros. Temos assim uma liberdade

defendendo-a a todo o custo quando ameaçada.

negativa (daquilo a que chamamos de “modos de vida”), por oposição a uma liberdade positiva (que pode ser coadunada com um plano político racional e “libertador”). Naturalmente, que, em abstracto, na cedência contratual que o individuo faz ao Estado a condição pura de liberdade como não coação esvai-se. Logo, quanto mais limitada for a intervenção


CORRESPONDÊNCIA COM MÁRIO CESARINY Loira, curva, espontânea é a zona que atravesso no meu cavalo de espelhos À luz do vidro e do metal mato pulgas de oiro azul, prestando preito ao António Maria e dele não me esqueço Já ganhei a idade das barbas: agora sou um barbo a violinar, como diria o Herberto, no rio poluído Toco bem fundo o botão entre os limos, Mário, mas olho muito depressa como se fosse de moto e não posso em ti deter-me por mais tempo Acelero a lucidez,


a curva 25 25

a alâmpada e a luva: a estrada é muito larga sob a chuva, o meu chapéu de sol acende a água: intensamente álacre a minha mágoa recusa-se a ser triste e desço ao inferno pleno de esquizofrenia e alegria Loira, curva, espontânea é a zona que atravesso no meu cavalo de espelhos, de todos me despeço, dos novos e dos velhos e solitário amanheço António Barahona


Para além da curva da estrada Talvez haja um poço, e talvez um castelo, E talvez apenas a continuação da estrada. Não sei nem pergunto. Enquanto vou na estrada antes da curva Só olho para a estrada antes da curva, Porque não posso ver senão a estrada antes da curva. De nada me serviria estar olhando para outro lado E para aquilo que não vejo. Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. Se há alguém para além da curva da estrada, Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada. Essa é que é a estrada para eles. Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos. Por ora só sabemos que lá não estamos. Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva Há a estrada sem curva nenhuma. Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”


a curva 27


A Primeira Curva da Estrada Joel Henriques

Contemplara colinas de breve cômoro e a altura da sua ideia não era mais do que marco geodésico. Voara de falésias sobranceiras ao mar, mergulhara nas ondas em voo idêntico ao de uma gaivota. Saboreara palavra a palavra o seu próprio esquecimento e soubera condensar todas num só vocábulo.

Enquanto viajava de comboio, na companhia de poucas pessoas (quase nin-

guém o utilizava no domingo à noite), jurou fidelidade a si próprio. Ainda que fosse pessoa de corpo nítido, nunca olvidaria a sombra que era nesse instante.

Terminara o dia na papelaria onde era colaborador. Não tivera outra opção,

depois de perder o trabalho em conhecida empresa de seguros, por onde ainda se movem espetros. Ainda se lembra da despedida e da garrafa de Porto que lhe fora generosamente oferecida em sorteio de Natal. De regresso ao seu quarto, por muito tempo, não hesitou antes em oferecê-la ao primeiro sem-abrigo que encontrou na rua.

No comboio costumava ir um amigo da infância. Viajava todos os fins-de-

-semana para Lisboa para visitar centros comerciais. Muito importuno, tinha uma conversa pueril que não terminava. Felizmente, depois de ter respondido com poucas palavras, descobriu-se de novo sozinho a admirar as luzes das povoações.

Tinha sido um bom estudante, contudo à custa de um esforço hercúleo. De-

pois ainda se formara em tradução, mas não criara raiz entre os colegas que tinham mais experiência e por isso eram escolhidos para o curso. Penava de trabalho em trabalho, anos a fio.

Percorria a linha férrea, no tempo em que as estradas deixaram de ter desti-

no. Movia-se por entre fantasmas de outra época. Moravam em lugares perdidos que desaparecerão do mapa no dia em que o comboio deixar de os ligar.

Sei que posso escrever sobre tudo. Basta fazê-lo com a identidade que cons-

truí e elidir o que for demasiado pessoal, inventando a linguagem. A personagem do texto sentia apenas a ausência e não sabia como a corrigir. Posso retocar uma frase, construir o conto de modo peculiar. O protagonista desconhecia como edificar milhares de pedras que lhe anunciavam uma bênção inverosímil.


a curva 29

Não saiu na terra onde morava, mas na paragem anterior. Queria visitar a

academia onde aprendera expressão dramática e abandonara com o projeto de triunfar na Comunicação.

Deixara o comboio. Encontrava-se agora no cais. Mergulhou no traçado de

ruas que não percorria há muito tempo, mas pareciam ilusoriamente familiares. Entrou na escola de teatro. Já ninguém o conhecia. Tentou conversar com alguém, mas na azáfama das aulas só conseguiu obter palavras breves e de circunstância. No meio de muitos alunos, reviu um antigo colega que, de sorriso triunfante, lhe anunciara o seu doutoramento já muito próximo para neurocirurgião.

Procurara a resposta cada vez mais longe: primeiro na cidade vizinha da aca-

demia; depois na mais distante da licenciatura; depois ainda na comunicação-mundo. Nada o contentara e lera algures que o seu Deus garantia a dor mas não a vida.

Agora queria regressar a casa e, por ela, quem sabe se não voltaria a abraçar

o mundo? Se por meio do si próprio não se reconciliaria com o horizonte distante? Se nem precisaria de chamar mundo ao mundo como se de um autor metafísico se tratasse, apenas de dar um nome a cada objeto, a cada ser? Se pouco lhe custaria dar ao curso de um rio a denominação de fado? Quem sabe?

A sua reputação atingira cada recanto, cada esquina. A inconfidência era

como um exército que espalhava o rumor com o zelo de um São Paulo. «O mais importante de tudo é o amor»; e ele perdera-o com a sua demência.

No entanto, sentia a agitação na cabeça repleta de paradoxos, comparável

apenas à natureza em convulsão.

Ainda tinha receio de escrever, de se deixar levar pelas palavras, de não

conseguir voar; mas em si vibrava a força de um universo que reclamava por existir. A sua professora de literatura asseverara que jamais seria um poeta. Da sua competência na Comunicação nem ele próprio acreditava. Todavia, sentia um ímpeto que nem ele poderia deter sob pena de se autodestruir. Recordava Emily Dickinson (em memória inexata): «Tens o poder de matar sem o poder de morrer».


De regresso à estação partilhou um dos dois bolos que comprara com um

conhecido de ocasião. Pouco tempo depois, chegou o comboio e embarcou.

O seu professor também utilizava esse transporte e, de passeio pela carru-

agem, sentou-se no mesmo banco. Falaram longamente do passado e de um futuro que ambos consideravam imprescindível.

Na altura não conseguia dizer uma palavra sem gaguejar. Apesar de anos e

anos a estudar expressão dramática, tinha a linguagem completamente perturbada. O professor, de forma involuntária, refletiu (com razão) a perplexidade no seu discurso:

− Não basta a interpretação, é necessário saber falar e escrever...

Tivera muito de classificações e diplomas; no entanto, parecia que nada lhe

ofereciam. Por outro lado, do realmente (ou ficcionalmente) importante sabia que tinha tudo desde o início e, por mais que se esforçasse, não seria maior no final da outra curva da estrada.

Ainda pensou em citar uma passagem de conhecido autor com firmeza

(pensou num texto de Santa Teresa de Ávila, apesar de não ser da sua predileção); mas retorquiu em voz segura, já de partida:

− Não escrevi um poema e tenho já toda a poesia.


a curva

O suspiro dos pêsames Miguel d’ Azur

31

Na dolência dos dias o sono afaga o desgosto da dor parida. É um queixume. É um vagido nascido da terra molhada, onde o fogo exala os seus sonhos de menino. Onde um olhar chora, outro sorri. Nada pertence ao tumulto das vozes. O silêncio é rei sonâmbulo das madrugadas mestiças. A lembrança consome horizontes que se evolam em asas de Outono. É belo. É um espectáculo pungente porque sentido. É uma chama molhada a caminhar mais além. E mais além é regressar à derradeira promessa. O sonido das profundezas é uma melodia misteriosa. Queima. Queima as cores da mariposa. Mas não arde caminhos percorridos nem trilhos ainda por percorrer. É suave. É lesto no seu dever, um encanto para a harpa da fiandeira; que fia e fia e fia suspiros enredados de pêsames. A fiandeira prossegue o seu mister, sorrisos oblíquos que o homem teima em não acalentar.


A vida é um sopro Miguel d`Azur

Do meu mundo eu consigo ver as estrelas. E elas brilham. E elas cantam. E elas existem mesmo que o seu tempo já se tenha finado. A vida é assim, um sopro, sem escafandro ou armadura capaz de o deter. Do meu mundo eu consigo esculpir estrelas e casas, muitas casas, pois até as estrelas precisam de um lar. E os teus olhos são os meus olhos a erguer a imanência dos dias. O amanhecer das promessas é um berço para aqueles que consentem o verdadeiro olhar. E há tanta verdade por desvendar, tanto mistério nas coisas pequenas que as grandes se tornam grandes na sua incerteza. Do meu mundo eu consigo avistar o teu mundo, que é o mesmo mundo a acalentar o mesmo lume, o de uma criança que descobre e explora e expande e ri e chora e se comove com a essência que a envolve. Do meu mundo que agora também é o teu mundo eu consigo encurtar as distâncias que nos separam e ver os ramos de luz que nos ligam, os ramos de alba que tudo ligam. O visível e o invisível tornam-se unos, a noite e o dia já não se estranham, o espírito e a alma confortam-se na serenidade de um sopro, solto e frágil na sua existência, perene e firme na sua substância. Do meu mundo, agora e sempre, eu posso estender a minha mão e acolher a tua mão e ir ao encontro da luz curva do mundo, sem temor, sem receio de me perder no meio de tanta escuridão.


a curva 33

ilustração: Pad Ell Rey


AFORISMOS EM FORMA DE PENSAPOEMAS Anselmo Caeiro

I Dá-me a tua mão, não a tua força E ouve a lamúria dos que não ousam receber O fio-de-prumo que vai de um coração ao outro II Conheces a falena que atravessa a janela do meu quarto? Todas as noites até a mim voa, todos os dias em mim a sinto É sempre a mesma borboleta a querer esvoaçar Por sítios e caminhos que não sabia existirem Por estares e sentires que outras almas guiam Se também tu ousares conhecer a falena do teu quarto Sentirás que há portas e janelas por destrancar, espaços por descobrir III Um dia vi um homem estiolar-se como uma flor Vi seus olhos desaparecerem do mapa do ser E quando a minha boca conseguiu articular uma palavra Já nele se tinha sumido a liberdade de ouvir os sonhos dentro de si Já nele se tinha sumido a razão que o levava a querer viver

IV Se sabes que o destino é um relógio sem horas Por que continuas a dar-lhe corda? Por que buscas o tempo que ainda não sucedeu? Eu não tenho horas porque nunca tive relógio Eu não quero relógio porque cultivo as desoras


a curva 35

ilustração: Pad Ell Rey


V Porquanto a medida do que somos está na medida do que sonhamos VI Em menino e moço brincava com bolas de sabão Meus dedos rebentavam com alegria as esferas que voavam Hoje, tenho sonhos dentro de mim como bolas de sabão Mas não as arrebento porque são elas que me fazem voar VII Também a alma conhece a alegria da infância Também ela se nutre de rebuçados e chocolate É pena o espírito não lhe dar ouvidos É pena termos o mundo à nossa frente e não o vermos

VIII Com a ponta do meu dedo posso tapar o sol Com o pulsar do meu coração posso abraçar o mundo IX Não digas: Não tenho Deram-te luz e não a aproveitaste X Sempre que ouço um passarinho cantarolar É toda a natureza que vem até a mim Alegre, serena, sem pressa de existir Sempre que vejo um passarinho Sei que é com ele que posso aprender


a curva 37

ilustração: Pad Ell Rey


XI Se te tens, dá-te Se te dás, recebe Se recebes, ama

XII Há dias conheci um místico que pretendia não o ser Falava das coisas que nos rodeiam e dos seus propósitos Falava, sem se aperceber, da grande irmandade E espantava-me tanto saber na simplicidade do seu ser Porque o verdadeiro místico é-o em coração, nunca em inteligência


a curva 39

ilustração: Pad Ell Rey


O próprio Ricardo Norte

O próprio do muro é segurar as terras ou os ventos e fazer ecoar as vozes sobre si próprias escavando umas nas outras um interior a mais o impróprio chove-me no quarto sem ter por onde escoar enche dia e noite o pequeno lago da minha embriaguez ouvi dizer que nos limites da minha propriedade habitava um homem que não fazia nada e que impropriamente se passeava sem palavras pelo exterior


a curva

Para além da teoria do rio Joel Henriques

41

O que salva um poeta não é clangor eterno (ou pedra preciosa na escuridão): Não acenderei qualquer lâmpada no paraíso ou no inferno. Por vezes a poesia sem o rumor de um rio revela o pior da indigência. Por vezes sinto que me redime da penumbra a sua própria existência. Porém, o que revela o poema não é o píncaro ou o abismo, a morte ou a vida; é dar com uma ténue sombra o meio-dia. Não há candeias de madrugada e para ir além de Cronos violento basta ser teu e um momento.


“Reviver” as Invasões Francesas Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro Rui Ribolhos Filipe

Wellington, havia desembarcado na Figueira da Foz O Centro de Interpretação da Batalha do Vi-

e, poucos dias depois, juntar-se-lhe-iam unidades

meiro (CIBV) foi inaugurado no ano de 2008

militares portuguesas, originando o famoso Exército

aquando das comemorações do bicentenário da

Luso-Britânico. São estas tropas que a 17 de Agosto

Invasão Francesa de 1807/1808. Com equipa-

vencem a Batalha da Roliça e, a 21, batem o General

mento do Município da Lourinhã, idealizado pelo

em Chefe francês Jean-Andoche Junot no Vimeiro.

Arquiteto Augusto Silva, o visitante tem um raro vislumbre da totalidade do campo de batalha

À vitória aliada do Vimeiro segue-se uma rendi-

permitindo-lhe avistar o mesmo cenário onde, 200

ção honrosa para os franceses, que culminará na

anos antes, os exércitos Luso-Britânico e Fran-

famosa, e de má memória, Convenção de Sintra,

cês “escreveram” parte da história Europeia.

pondo fim à denominada 1º Invasão Francesa.

Em Agosto de 1808 a região Oeste foi palco de

Este importante momento da história foi come-

grandes operações militares durante a Guerra Penin-

morado em 1908 com a inauguração de um monu

sular/Invasões Francesas. O exército Britânico, sob

mento e em 2008 com a construção do CIBV.

o comando de Sir Arthur Wellesley, futuro Duque de

ilustração: Nuno Fragata


a curva 43

ilustração: Nuno Fragata

O CIBV está localizado na Memória, alto da colina do Vimeiro, junto ao monumento de 1908 e envolvido no parque memorial constituído por uma coleção de painéis de azulejos alusivos a vários aspetos cro-

Medicina e Farmácia no tempo das Inva-

nológicos da batalha. O equipamento CIBV tem dois

sões Francesas é a temática patente na sala de

pisos, onde foram instaladas duas salas de exposições

exposições temporárias, a qual acompanha o

permanentes, uma sala para exposições temporárias,

lançamento do livro com o mesmo nome. É

um Centro de Documentação e uma sala multiusos.

ainda possível, através de uma marcação prévia, uma visita ao campo de batalha, percor-

A exposição permanente, intitulada Batalha do

rendo os locais mais emblemáticos da ação.

Vimeiro, apresenta não só os vários momentos da ação, bem como a arte da guerra no tempo de

Desde a sua abertura, o CIBV recebeu cerca

Napoleão – as armas, os uniformes, as táticas etc.

de 40 mil visitantes, sendo um grande número

É de realçar um importante destaque para os ar-

deles de origem inglesa, tornando o campo de

tefactos recolhidos ao longo dos anos no campo

batalha do Vimeiro e seu Centro de Interpreta-

de batalha, objetos que permitem estabelecer uma

ção uma importante atração turística na região

ligação direta aos soldados que ali combateram. As

Oeste. O facto de se tratar de um tema bastante

exposições temporárias procuram não só temáticas

especifico, de cariz militar, continua a suscitar um

relacionadas com as Invasões Francesas, mas tam-

enorme interesse por parte do grande público.

bém outros temas culturais – pintura, fotografia, etc. Para mais informações: www.cm-lourinha. pt ou batalhadovimeiro@gmail.com


A institucionalização das Artes Contemporâneas: Breve Ref lexão Isabel Xavier

Na sequência da Revolução Francesa, bem como

renovado dos homens, o seu protesto recriado, a

das revoluções congéneres noutros países, os mu-

sua luta sempre retomada. (…) O monumento não

seus assumiram-se como lugares públicos “onde

atualiza o acontecimento virtual, mas incorpora-

visitantes solitários e passivos vêm encontrar a

-o ou encarna-o: dá-lhe um corpo, uma vida, um

solidão e a passividade de obras despojadas de

universo.” (Deleuze, 1992, 156). Por isso a arte

suas antigas funções de ícones de fé, de emblemas

contribui decisivamente para a construção de um

do poder ou de decoração da vida dos Grandes.”

espaço público com significado e com vida própria.

(Rancière, 2005, 3). É então que se criam as condi-

Como nos diz Deutsche, “A arte pública gera espaço

ções para que a “estética” se defina como o “novo

público no coração da democracia.” (1996, 274).

regime da arte” em que o destino ou a hierarquia que deu origem aos objetos de arte são secunda-

A arte contemporânea tem promovido novas

rizados e as obras de arte valem por isso mesmo,

formas de utilizar o espaço público enquanto campo

num regime de igualdade e de liberdade que passou

de intervenção direta. Desde logo pelas potenciali-

a imperar no espaço paradigmático da estética.

dades de qualificação que desempenha em relação a espaços degradados, assumindo a memória e a

Nesse contexto de afirmação da esfera pública bur-

sustentabilidade do território, criando dinâmicas

guesa considerava-se a necessidade de uma “repúbli-

de intervenção junto da comunidade, dinamizando

ca do gosto”, de uma cidadania democrática da arte,

acontecimentos de carácter cultural mais abrangente

réplica da estrutura política republicana composta

que desestabilizem o estabilizado, numa perspetiva

de cidadãos livres e ativos. Ambas as repúblicas, a

de paisagem integral. Há que salientar, de entre as

da política e a da arte, se baseavam em princípios

formas de arte contemporânea, a arte relacional pelas

sólidos: o bem comum. As origens destas conceções

potencialidades de intervenção no espaço público,

situavam-se na Antiguidade grega e romana e nas

através da realização de projetos que impliquem

repúblicas italianas do Renascimento, consideradas

e integrem a comunidade. Deixar uma inscrição,

exemplos de uma esfera pública unificada, que o

modificar o existente, viabilizar acontecimentos

tempo se encarregou de desmistificar e esvaziar de

que produzam situações novas que constantemen-

sentido, emergindo cada vez mais a necessidade de

te interfiram junto das pessoas, incorporando-as,

considerar uma diversidade de esferas públicas.

no sentido de as interpelar e de causar nelas uma expansão da consciência, é o objetivo fundamental.

Por outro lado, à arte cabe o papel fundamental na definição e identificação de espaços públicos em

No caso português, o afastamento relativamente

meio urbano. As praças e lugares foram tradicional-

às modernas tendências artísticas, evidenciado pela

mente demarcados pela existência de um monumen-

(quase) perpetuação da estética naturalista, acentuou-

to, ou pela presença de uma escultura identificadora

-se com a ditadura vivida ao longo de praticamente

do espaço envolvente. “Um monumento não come-

metade do século XX, coincidindo com o período

mora, não celebra algo que se passou, mas confia

em que se deram as maiores ruturas em termos das

ao ouvido do futuro as sensações persistentes que

artes contemporânea (anos sessenta), num fenómeno

encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre

extremamente vigoroso das sociedades europeia e


a curva 45

americana a que Portugal permaneceu alheio. A cons-

sujeitas essas instituições reequacionando-as en-

ciência dessa falta quanto às artes contemporâneas

quanto possiblidades e tentativas de envolvimento

torna-se assim um dos aspetos mais significativos

e compromisso mais geral com a sociedade, com a

da consciência mais vasta de um atraso cultural do

política e também ao nível do autoquestionamento

país, que muitos consideravam urgente ultrapassar.

relativamente ao papel que desempenham. Está em causa a criação de práticas (instituintes) que conju-

A institucionalização das artes contemporâneas co-

guem crítica social, crítica institucional e autocrítica,

loca, em termos gerais, e não especificamente quanto

estabelecendo uma relação com as práticas políticas

ao caso português, novas questões e desafios que,

e os movimentos sociais, mas sem dispensar as estra-

partindo das artes, atingem a sociedade como um

tégias e as competências artísticas, sem dispensar os

todo. Nos anos 60 e 70 do século XX procurava-se

recursos e os efeitos no campo da arte (G. Raunig in

que as instituições de arte contemporânea ultrapas-

VV, sd, 11). Raunig lembra a propósito a asserção de

sassem o discurso da arte como objeto, concedendo-

Paolo Virno que, partindo do conceito marxista de

-lhes mesmo o estatuto de elemento crucial no

“intelecto geral”, e adaptando-o, propõe o conceito

processo artístico, ao considerar que a elas cabia uma

de “intelecto público”: “Segundo Virno, esse intelec-

função crítica no cenário mais vasto da arte contem-

to geral, se não se transformar numa república, numa

porânea (Nina Montmann, in VV, sd, 155). Entretan-

esfera pública, numa comunidade política, evolui

to, esta tendência crítica foi-se esbatendo, tendo-se

para formas de submissão.” (Raunig, VV, sd., 8).

perdido inteiramente devido à preponderância da economia neoliberal a que essas instituições passaram a estar (também) sujeitas a partir dos anos 80/90.

As instituições de artes contemporâneas em Portugal têm uma história recente, o seu boom deu-se na última década do século XX e na primeira

Atualmente, o caminho vai no sentido de pôr em

do século XXI. Em 2012, olhando à nossa volta ou

causa as instituições, nomeadamente as culturais,

escutando e vendo as notícias diariamente veicula-

enquanto estruturas fixas ou meros elementos do

das pelos meios de comunicação, apercebemo-nos

sistema dominante e procura-se pensá-las como

do crescente desinteresse do Estado pelas insti-

processos, como construções em curso. Do debate

tuições culturais em geral e pelas instituições de

instaurado emergiu um novo conceito: o das cha-

artes contemporâneas em particular. Como quase

madas “práticas instituintes” de que nos fala Gerald

todas têm o estatuto de fundações, atualmente sob

Raunig (VV, sd., 174). No âmbito de desenvolvimen-

mira dos cortes orçamentais e também da chamada

tos teóricos contemporâneos, como os de Foucault

opinião pública, assistimos por exemplo à proposta de

e Deleuze, questiona-se o confinamento a que estão

encerramento da Fundação da Casa das Histórias


de Paula Rego em Cascais, por parte do Governo, que é contestada pela autarquia a que a fundação está ligada, e ficamos a saber dos cortes, muitas das vezes acrescentados a cortes anteriores, a fundações como a que gere o Museu Berardo e a de Serralves. Naturalmente, muitas pessoas concordam com este tipo de medidas dada a crise financeira em que o país se encontra e as críticas que sempre podem ser feitas às instituições em causa, mas não tenhamos dúvidas de que essas medidas se integram num desígnio mais vasto de negligência cultural de que as artes contemporâneas são as primeiras a ressentir-se. E que não se trata de uma estratégia ocasional e nem sequer inocente.

Bibliografia: Deleuze, Gilles e Guttari, Félix (1992) O que é a Filosofia? Lisboa: Editorial Presença Deutsche, Rosalyn (1996) Evictions (Art and Spatial Politics) Cambridge, Massachusetts, London: The MIT Press Habermas, Jurgen (1989) The Structural Transformation of the Public Sphere. The Mit Press, Cambridge, Massachusetts, London Rancière, Jacques (2005) Política da Arte. Portal SESC-SP, São PauloVV (sd) Art and Contemporary Critical Practice. Gerald Raunig and Gene Ray (eds) mayflybooks.org


a curva

Art is art, everything else is everything else

Ângelo Pacheco

projecto artístico. O workshop de cerveja tradicional é o workshop de cerveja tradicional. O workshop de cerveja tradicional não é um projecto artístico. A red dancing é a red dancing. A red dancing não é um projecto artístico. O projecto 79 é o projecto 79. O projecto 79 não é um projecto artístico. A banca de arte e cultura é a banca de arte e cultura. A banca de arte e cultura não é um projecto artístico. A procissão do fá-lo é a procissão do fá-lo. A procissão do fá-lo não é um projecto artístico. A cervejaria do it yourself é a

Art is art, everything else is everything else

cervejaria do it yourself. A cervearia do it yourself não é No artígo “Everything is happening at once”,

um projecto artistico and so on. O CLN cheira mal.

do nº 0, terminei o mesmo com a interrogação se a cidade conseguiria aguentar o ritmo de

Através desta edição, o mundo da arte descobriu

acontecerem vários acontecimentos culturais ao

ainda novas categorias como jogo, comida, pimba,

mesmo tempo. A resposta não merece, talvez,

corrida, entre outras que de ridículo têm tudo e de

nem o sim nem o não. Debrucemo-nos sobre

arte não têm nada. Um projecto artístico requer

um evento que nos acompanha há alguns anos

tempo, trabalho, pensamento e preocupação. Con-

nas Caldas da Rainha: o Caldas Late Night.

tinuam a existir projectos que não foram realizados ou não começam à hora prevista no mapa, reve-

Decorreu nos passados dias 25 e 26 de Maio,

lando falta de amadurecimento, um dos objectivos

mais uma edição do evento, a décima sexta. Mas

da organização, assim como falta de compromisso.

correu mal. O CLN não precisa de ser repensado,

Desde 2008, ano em que se fez um excelente pro-

mas sim enterrado. Não esquecido, não apaga-

jecto, o Rebobina, se esperaria que existisse por

do. Relembrado. Pelo que se deve e não fazer.

parte das futuras organizações, assim como dos participantes, um outro olhar, um outro brio na

Arte é arte, tudo o resto é tudo o resto. O CLN é o

forma de apresentar os seus trabalhos. Não tem

CLN. Um projecto artístico é um projecto artístico.

sido feita a ponte desde então. Ou então existe o

A pillows fight é a pillows fight. A pillows fight não é um

medo de a atravessar. Afinal de contas, são estudan-

projecto artístico. O caldas é o caldas. A festa é a

tes de arte, e terão uma palavra a dizer. A crise não

festa. A festa não é um projecto artístico. A corrida

deve ser desculpa. A arte precisa da crise, tem de

do caralho é a corrida do caralho. A corrida do cara-

saber sobreviver com ela, viver e beber da mesma.

lho não é um projecto artístico. O arraial é o arraial. O arraial não é um projecto artístico. O isla late night

O CLN teve uma curva ascendente, assim como

é o isla late night. O isla late night não é um projecto

passou pela decrescente. Esta curva transformou-se

artístico. A lambreta, tinto e bifana é a lambreta,

num círculo vicioso que teima em ser abandonado

tinto e bifana. A lambreta, tinto e bifana não é um

ou novamente aberto, dando oportunidade a novos

47


eventos baseados no CLN, criando precisamente a dinâmica cultural necessária nesta cidade, não ficando confinado ao mês de Maio. O espírito deve ser alargado a todo o ano. O Bettencourt falou em português, aquando do projecto acima citado, que a cidade precisa de mais projectos como este. Onde estão os novos notáveis? Existiram projectos interessantes para toda a população, mas completamente descontextualizados do CLN. Devidamente encaixados noutro tipo de evento, fariam sentido. Aqui não. Arte é arte. Tudo o resto é tudo o resto.


a curva 49



a curva 51


Palavras em celulóide SHI – Poesia (2010) realizador: Chang-dong Lee Joaquim Sebastião

Um rio. Uma ponte. Nas águas a mobilidade de um sentido sempre a descobrir. Na ponte a instabilidade de uma direcção, uma interrogação no seu estar suspensa, o caminho desconhece o que atravessa, escuta no seu correr um movimento sinfónico que condensa e dilata o tempo. Do centro da ponte às águas do rio um infinito intransponível. No rio um eco luminoso que esconde o seu leito. A vida entregue à quotidianidade mais banal, ao hábito que já não é habitado, nem forma de habitar porque não tem mundo, asfixia a inocência, retira-lhe a possibilidade e desenraíza-a com a naturalidade de um jardineiro, a cultura é efectivamente cultivo e pode chegar a preciosismos de cuidado aterradores.

A violência quando chega desvela um excesso, o qual é impossível não nos implicar, e assim como os

É no desenrolar do tédio, do amor desampara-

abutres surgem sobre o cadáver, os pais das crianças

do, que uma avó cuida do seu neto, e neste sem

surgem como cegos bêbedos dentro de um templo,

margens o cuidado repete-se e a convivência

as suas palavras dilaceram e destroem, esmigalham

ritualiza-se num desconhecimento, no pão nosso

sem piedade, erigem a mais alta das desmesuras, o

de cada dia da separação, da não afecção diária.

não reconhecimento do crime e a humilhação do que não se pode defender. Humilhação gratuita onde

A avó atravessa a ponte, debruça-se sobre o imprevisto da poesia. Mas ao que parece nada escapa ao

nem a paixão da vingança existe, como o niilismo extremo, onde tudo se apaga com a mesma facilidade.

poder de sucção do simulacro. “Se a sabedoria fosse de tal natureza que escorresse do mais cheio para o

Mas até quando a desordem superficial de ser

mais vazio...”, diz-nos Platão, e no entanto da aula de

espectador da sua vida, da tendência da psicologia

poesia ao karaoque dos sentimentos, só a gaguez e a

a explicar o mal, a torná-lo plano, a extingui-lo na

impossibilidade de escrever da avó parece responder

mais fácil redução? A contextualização absoluta

inteiramente. Qualquer coisa ecoa do fundo do rio, e

desemboca na mais terrível solidão, a que não se

enquanto uma memória se afunda outra parece emer-

reconhece, pois anula o outro que a diferencia.

gir, como se o alzeihmer de que a personagem padece fosse como pequenos peixes que lhe comem as peles mortas, palavras que não indicam nada de essencial.

No interior da personagem principal algo sobe de forma incontrolável, a necessidade de responder.


a curva 53

Responder do latim re-spondere é um compromisso solene, la sponsa é a filha que um pai se comprometeu perante os deuses a dar em casamento. A poesia é esse movimento montante que se despenha nas águas, a resposta que escuta a sua origem.


Topos Ana Rita Sobral



Composição: Nuno Fragata Fotografia: Rita Baptista


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.