CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES CURSO DE JORNALISMO - BACHARELADO
O ENIGMA DO TEMPO NAS FOTOGRAFIAS DE VIVIAN MAIER
Tuane Maitê Eggers
Lajeado, junho de 2015 Tuane Maitê Eggers
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O ENIGMA DO TEMPO NAS FOTOGRAFIAS DE VIVIAN MAIER
Artigo apresentado na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso, Jornalismo, do Centro Universitário Univates, como parte da exigência para a obtenção do título de Bacharel em Jornalismo.
Lajeado, junho de 2015
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O ENIGMA DO TEMPO NAS FOTOGRAFIAS DE VIVIAN MAIER
Tuane Maitê Eggers1 Leonel José de Oliveira2
Resumo: É comum observarmos fotografias antigas, reveladas na época em que foram feitas, e muitas delas nos proporcionarem, a nosso ver, algum tipo de afeto. Mas, o que significa ver uma fotografia antiga sabendo que ela foi revelada somente agora, muito tempo depois de ter sido feita? Por meio da análise das obras de Vivian Maier, uma figura emblemática que surgiu, recentemente, no campo da fotografia, este artigo investiga as relações da fotografia com o tempo, o conceito de aura de Walter Benjamin e a forma com que as fotografias da babá americana sobreviveram como imagem. Elas encontraram, em sua reserva de futuro, uma reciprocidade do olhar. Sua obra se mostra hoje um universo vivo, pronto para ser habitado e correspondido. Como se pudesse guardar o tempo e a vida dentro de sua câmera, talvez Vivian Maier, em sua compulsão por captar o agora, mesmo que em segredo, diga mais sobre nós mesmos do que podemos imaginar. Palavras-chave: Fotografia. Tempo. Aura. Instante. Vivian Maier.
1 PRELÚDIO “Que horas seria? ninguém podia viver no tempo, o tempo era indireto e por sua própria natureza sempre inalcançável”. (Clarice Lispector)
Falar sobre a relação entre a fotografia e o tempo poderia parecer algo demasiado evidente e redundante, não fossem as multiplicidades de olhares e pensamentos que envolvem o assunto. A própria história da fotografia retrata as suas diferentes relações com o tempo, sendo que a primeira delas o teve apenas como um ingrediente problemático do registro fotográfico. Nos primeiros experimentos bem-sucedidos do francês Joseph Niépce, na década de 1820, por exemplo, o tempo de exposição de suas placas levava cerca de dez ou doze horas. O inventor faleceu em 1833 e deixou sua obra nas mãos do francês Louis Jacques Daguerre, que deu continuidade aos estudos, tornando-se o autor da primeira patente para um processo fotográfico, o daguerreótipo. 1 Acadêmica do curso de Jornalismo do Centro Universitário Univates, Lajeado/RS. tueggers@gmail.com
2 Orientador e professor do Centro Universitário Univates, Lajeado/RS. ljo@univates.br
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Conforme conta Walter Benjamin em “Pequena história da fotografia” (1985), os clichês de Daguerre eram placas de prata, iodadas e expostas na câmera obscura, manipuladas até que fosse possível reconhecer uma imagem em tom cinza-pálido. Como eram peças únicas e de alto valor, costumavam ser guardadas em estojos como jóias. Naquela época, os tempos de exposição recomendados ainda eram longos, variando entre quatro e meio e sessenta minutos. De acordo com o historiador e doutor em comunicação Mauricio Lissovsky (2003), a fotografia torna-se realmente instantânea somente na década de 1870, devido à utilização de substâncias mais sensíveis e, consequentemente, obturadores mais rápidos. Nesse contexto, entendemos por fotografia instantânea aquela capaz de captar pequenas frações de segundo. Assim, o acesso à velocidade se faz possível. Por volta de 1880, os inventores Eadweard Muybridge e Étienne-Jules Marey debruçaram-se sobre a nova possibilidade e criaram as cronofotografias, constituídas por registros de movimentos humanos e animais. É de autoria de Muybridge, por exemplo, a famosa sequência de um cavalo galopando. Seus experimentos revelaram o poderoso acesso à realidade que o instante fotográfico poderia oferecer. Abriam-se, assim, as portas de um novo campo de estudos para a ciência. E, mais do que isso, para uma nova concepção do tempo. A pesquisadora Cláudia Sanz (2014) afirma que o programa de instantaneização, realizado na metade do século XIX, foi responsável por entrelaçar definitivamente a fotografia à temporalidade cronométrica. Além de criar as bases da linguagem fotográfica do século XX, ela também foi responsável por formular uma temporalidade espacializada e micronométrica do corpo e do mundo, tornando opticamente legível a unidade do instante, de uma forma que o olho jamais poderia ver. O instante converte-se, assim, na figura expressiva da aceleração da vida e da fragmentação da percepção, motivando também a tentativa de sua análise e síntese. Sanz (2010) explica, citando o filósofo Henri Bergson, que a era moderna traz o desejo de homogeneizar a vida, o movimento e o tempo, fazendo acreditar que todas as unidades temporais sejam igualmente divisíveis, homogêneas e de
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mesma espessura. Parte desse pensamento deve-se à fotografia que, quando tornase instantânea, proporciona a sensação de que todas as unidades temporais sejam idênticas e sem subjetividades. Por muitos anos, a teoria da fotografia pairou sobre o conceito de que ela seria um registro histórico de um momento único no fluxo do tempo, de um instante que jamais poderia ser reproduzido novamente. Um recorte de um tempo que não existe mais, e que nunca poderia retornar. Conforme Barthes (1984), a fotografia é única e de caráter documental: o que ela reproduz ao infinito mecanicamente, nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Segundo o autor, uma foto é sempre invisível, pois apenas mostra o seu objeto – e seria em direção a ele que o nosso olhar aponta. Ao congelar em imagem um tempo que não retorna jamais, ela torna-se um atestado de presença, fixada na noção de “isso foi”. Já a escritora e crítica de arte Susan Sontag (2004) analisa que a fotografia, por cortar uma fatia de um instante e congelar o momento em forma de imagem, testemunha a dissolução implacável do tempo. Assim, fotografar seria uma forma de participar da mortalidade do objeto registrado, que torna-se tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência. Contudo, a imagem fotográfica parece não ser somente o registro de um tempo estático, preso ao passado. Na medida em que traz consigo a mortalidade da ausência, envolve também uma multiplicidade de tempos, que se reconfiguram a cada olhar. Cláudia Linhares Sanz (2009) acredita que quando a imagem ressurge no presente, leva consigo a presença do passado, entretanto, também é transformada por este seu ressurgir: a fotografia está parada no tempo, mas está em constante variação, pois nada para no tempo. Ela carrega consigo uma constelação de diferentes tempos e, no instante, supostamente paralisado, é que os sopros de tempo latejam. Citando o filósofo Georges Didi-Huberman, a autora (2009) acrescenta que, diante de uma imagem, mesmo que muito antiga, o presente jamais para de se reconfigurar. Da mesma forma, diante de uma imagem recente ou contemporânea, o passado também é constantemente modificado. Se a fotografia foi capaz de comprovar, cientificamente, o descontínuo do
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tempo, ela também traz consigo o contínuo, já que capta um instante de existência no mundo. Ela envolve, simultaneamente, o mínimo e o máximo de tempo que pode existir. O eterno jogo entre urgência e permanência. O mínimo e o máximo de instante, no mesmo instante. Ao representar a aniquilação do tempo, ela também condensa uma multiplicidade de tempos em si. Enquanto capta um fragmento de segundo que não conseguimos perceber conscientemente, a fotografia transforma-o em um tempo infinito. Ela parte de um lugar sempre situado no passado, mas aponta também na direção de novos universos e sensações quando ressurge no olhar de quem a observa. O ato de fotografar é, assim, uma forma de criar um espaço a ser habitado pelo olhar. Então, afinal, o que é o tempo diante de uma imagem? Nesse campo, surge uma figura emblemática: entre as décadas de 1950 e 1990, a babá americana Vivian Maier tirou cerca de 150 mil fotografias em segredo. Reservada e misteriosa, ela passou a vida toda sem contar a ninguém sobre o amor pelo ato de registrar seu cotidiano. Sua obra foi descoberta somente em 2007, pelo historiador e colecionador de arte John Maloof. O curioso em seu trabalho é que, quando suas fotografias foram reveladas ao público, proporcionaram um intenso interesse por parte dos observadores. E mais do que isso, a crítica especializada aclamou (talvez de forma um tanto apressada) o trabalho de Vivian como um dos melhores registros de fotografia de rua do século XX, resultando em exposições realizadas em países americanos e europeus, além do documentário intitulado “Finding Vivian Maier” (2013), que circulou pelos principais festivais do mundo. Entretanto, portas de instituições como o Museum of Modern Art (MoMA), nos Estados Unidos, e a Tate Modern, no Reino Unido, se fecharam para o trabalho de Vivian, pois não consideraram as fotografias como a visão da artista por não terem sido impressas por ela. Conforme conta a jornalista e documentarista Dorrit Harazim (2013) no site da Revista ZUM, vinculada ao Instituto Moreira Salles, Maloof presidia uma associação de preservação histórica em Chicago e garimpava materiais para a elaboração de um livro. Ao deparar-se com negativos guardados em um caixote, em um leilão, deu um lance de U$ 400 pelo material. Ele não fazia ideia da preciosidade que
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descobriria naqueles 30 mil negativos, com diversos rolos de filme sequer revelados. Fascinado com a originalidade dos registros, Maloof buscou informações sobre a autora daquelas imagens. No entanto, descobriu que Vivian Maier simplesmente não existia (pelo menos não para os tempos modernos, já que não havia nenhuma referência digital a ela). O primeiro rastro foi obtido somente em 2009, por meio de uma nota fúnebre publicada no jornal. Sabia-se apenas que sua origem era norte-americana, que passou sua infância na França e que retornou aos Estados Unidos ainda menina. Além disso, a referência apontava para a sua função de babá, exercida durante toda a vida, mesmo que sua principal razão de viver parece ter sido a fotografia. De acordo com Harazim (2013), Vivian fotografou compulsivamente, apenas para si mesma. Ao se aposentar, foi transferida para uma casa de repouso e estocou seus pertences em diversos guarda-móveis. Com o passar dos anos, parou de pagar o aluguel e boa parte de seu material fotográfico foi parar na mão de um leiloeiro – e, em seguida, nas mãos de Maloof, que decidiu disponibilizar as obras na internet, onde obteve sugestões, pistas e indicações sobre elas. Vivian não tinha marido nem filhos, e seu círculo de conhecidos era restrito. No entanto, ela estabelecia contato fácil com desconhecidos quando os abordava com sua câmera Rolleiflex – e os desnudava em pequenas frações de segundo. Em matéria de Antonio Muñoz Molina (2014), publicada no jornal El País, consta a informação de que Vivian sempre estava com uma câmera pendurada no pescoço, o que se tornou uma característica de sua presença, bem como suas roupas com traços masculinos. Apesar dos proprietários das casas em que viveu e as crianças das quais cuidou sempre a verem com uma câmera, nunca demonstraram interesse em saber o que fazia com ela. Para o autor, seu segredo é duplo, já que não se sabe o que a motivava a fotografar de forma tão frequente, nem qual era a sua formação. Outro mistério é o motivo que a fez manter em segredo uma atividade que estimava tanto. Os registros de Vivian Maier são, em sua maioria, registros do cotidiano. Estava atenta ao extraordinário e ao comum, contemplando o espanto e a beleza dos fatos corriqueiros. Da mesma forma que desejava preservar os mínimos
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detalhes materiais de sua vida, ela buscava preservar cada rosto com que cruzava em suas caminhadas, sendo que, muitas vezes, era seu próprio rosto, refletido em vitrines ou espelhos pelas ruas, que também buscava retratar. Por meio de revisão bibliográfica de autores como Walter Benjamin, Mauricio Lissovsky, André Rouillé e Claudia Sanz, investigamos o motivo dos registros de Vivian terem causado tão intenso interesse no campo da fotografia. Buscamos analisar as questões mais intrinsecamente relacionadas ao tempo na obra de Vivian Maier. Nesse percurso, compreendemos também o que significa olhar para uma imagem sabendo que ela foi revelada somente agora, sem guardar uma memória de olhares que a percorreram. Iniciamos a análise do tempo a partir da obra de Lissovsky, que teve a espera (ou a expectação) como o centro de seus estudos sobre a fotografia moderna. No momento em que a captação de uma imagem torna-se instantânea, o tempo que antes envolvia o ato direciona-se para a espera, que passa a revelar a essência da fotografia, considerada o resultado de um jogo de forças e tensões com infinitas combinações, onde o futuro se infiltra no instante, à espera de ser reconhecido. Qual seria a espera envolvida nos registros de Vivian Maier, com seu futuro reconhecido somente agora? A continuidade do tema se dá na análise da tese de Cláudia Sanz sobre a coexistência de tensões temporais na fotografia, compreendendo-a como um portal de simultaneidades. A partir da noção de espera de Lissovsky, ela reflete que, ao representar a materialidade da angústia diante do passar do tempo, a fotografia intensifica o presente do instante registrado, enviando mensagens para o futuro. Seu estudo também traz as diferentes relações da sociedade com os tempos passado, presente e futuro, e a forma com que a fotografia se envolveu neste processo, contextualizando a transição da fotografia moderna para a contemporânea. Já no quarto capítulo investigamos o que Rouillé considera a terceira temporalidade fotográfica: um passado-futuro. Passado das coisas e dos corpos, futuro do evento da imagem. A ideia da “imagem latente”, a imagem invisível à espera de ser quimicamente revelada, traz um paradoxo: “ainda não está e no entanto já está”; “ainda está e no entanto já passou”.
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Observamos, assim, por meio das leituras de Sanz e de Rouillé, o atravessamento de tempos realizado pelas fotografias de Vivian: em época de imagens produzidas e consumidas instantaneamente, surgem esses registros que ficaram, por décadas, no estado de “imagem latente”. Em sua espera pelo instante certo, Vivian eternizou em suas imagens uma duração no futuro, com um tempo que lateja nas fotografias pelos olhos de quem as observam. No último capítulo nos dedicamos a compreender tais conceitos diretamente aplicados à obra de Vivian Maier ampliando outros, como o de aura em Walter Benjamin. Percebemos, nesse percurso, a doce e sutil espera presente em suas imagens, propondo sua temporalidade como Aiôn: o tempo que se reconfigura como uma eterna presença. Daí sugerimos o que fez com que as imagens da babá causassem um interesse especial nos apreciadores de seus registros. Suas fotografias sobreviveram como imagem no futuro porque investimos nelas o poder de revidar o olhar: enquanto nós as olhamos, elas também nos olham, em uma teia sendo constantemente construída a partir desses encontros de olhares. E essa distância superada no olhar é o que parece nos proporcionar algo que, a nosso ver, torna sua obra tão afetuosa.
2 LISSOVSKY E O TEMPO NA FOTOGRAFIA No momento em que a fotografia torna-se instantânea, o tempo deixa de ser um problema intrínseco ao ato de fotografar e torna-se invisível. Antes, a duração que envolvia o registro fotográfico estava diretamente ligada ao tempo de exposição necessário para captar o momento. Mas, quando a fotografia torna-se instantânea, para onde vai o tempo que antes habitava este processo? Esta é a questão principal na obra de um dos principais pensadores da fotografia no Brasil, Mauricio Lissovsky. Em seu livro “A máquina de esperar”, Lissovsky (2008) traz conceitos de pensadores como Henri Bergson sobre o instante. Na concepção bergsoniana, o instante não existe - existe apenas a experiência da duração. Para ele, o instante é sempre artificial, resultado de uma operação de abstração que espacializa o tempo. Como vivemos em um tempo ininterrupto (a duração), ele seria a ilusão de poder
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paralisar esse tempo em movimento; de pensar o instável por meio do estável, o movente por meio do imóvel. Philippe Dubois, citado por Lissovsky (2008), sustenta o argumento de Bergson quando diz que a fotografia é incapaz de restituir a memória de um percurso temporal, sendo capaz apenas de resgatar a memória de uma experiência de corte radical da continuidade ou da duração da realidade (ação que fundamenta o próprio ato fotográfico). O ato de restituir essa lembrança, de tentar reinscrever-se no tempo da história, só seria possível fazendo-o de fora, tirando-se de sua fotografia e mergulhando em uma memória que não mais a sua. Lissovsky questiona, no entanto, o motivo de Dubois confinar essa experiência a um ato consumado. Por que insistir na ‘elipse do sujeito’, na ausência desse olhar entre um corte e outro? Por que não olhar a fotografia pelo avesso? Certamente é inútil restituir à fotografia sua duração quando ela já é um agora-passado. Tal restituição só pode ser uma doação daquele que a contempla. Mas se olharmos do outro lado, talvez reencontremos a duração, bem aqui onde ela ainda é um agora-futuro (LISSOVSKY, 2008, p. 61).
Assim, o autor (2008) propõe a conciliação do instante com a experiência da duração, afirmando que ele não deve ser pensado apenas como uma exterioridade que se abate sobre o tempo contínuo. Lissovsky sugere admitir a existência efetiva do instante, já que toda fotografia sempre dura o tempo da exposição, mesmo que o instante seja apenas uma abstração. Quando a fotografia torna-se instantânea, na década de 1870, para onde vai o tempo que antes habitava o ato fotográfico? Na opinião de Lissovsky (2008), a duração desta experiência foi direcionada para um lugar paradoxal, onde sua ausência passou a se fazer presente. Assim, a fotografia moderna adquire uma duração própria, que acontece no lugar em que o refluir do tempo tem curso: a espera. Por meio dela, o fotógrafo busca imprimir na imagem o tempo que se ausenta. É importante perceber que a espera proposta por Lissovsky (2008) na fotografia não é como uma espera cotidiana qualquer: ela é repleta de expectativa. É uma espera que aguarda ansiosamente pelo momento de apertar o botão - e ali eternizar a imagem. É por essa diferença que Lissovsky chama a espera de
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expectação. O cone se movimenta, ele se contrai: eis a expectação, o durar diferenciado dos fotógrafos, seu modo de favorecer o devir dos instantes. Para que o instante advenha, é necessário que o tempo, afinal, se retire da imagem, para que dele reste apenas o resultado de uma certa combinação de rotação e translação do cone; para que dele reste apenas um seu aspecto. De todas as ‘variações virtuais’, como as chama Deleuze, correspondentes aos diferentes níveis do cone, a contração encontra, na expectação, seu ‘aspecto de atualização’. A fotografia se faz da expectação para o aspecto, assim como o movimento do sujeito bergsoniano: ‘Nós não nos movemos do presente para o passado, da percepção para a lembrança, mas do passado para o presente, da lembrança para a percepção’ (LISSOVSKY, 2008, p. 107).
O conceito de aspecto comentado no trecho é, segundo Lissovsky (2008), o vestígio deixado na fotografia pelo tempo, no ato de seu ausentar-se, pelo seu modo de refluir. É o resultado do próprio modo de durar, que não se pode eliminar, justamente, por ter sido a condição e a essência do ato fotográfico. E o papel do expectar, neste processo, é instalar a diferença para que a imagem possa ganhar forma. O aspecto é algo que exibe essa diferença, quando o tempo se retira e fica visível na imagem apenas por meio dele. Sua presença, no registro fotográfico, torna-se virtual. Quando o fotógrafo está disposto a fotografar, se dispõe também a um modo próprio de estar, perceber e durar. Um modo distinto de estar presente no tempo e no espaço. Sobre a constante angústia presente no ato fotográfico, o renomado fotógrafo Henri Cartier-Bresson expressa algo semelhante: diferente de um desenho ou de uma pintura, a fotografia seria uma espécie de luta contra o tempo. A gente olha e pensa: Quando aperto? Agora? Agora? Agora? Entende? A emoção vai subindo e, de repente, pronto. É como um orgasmo, tem uma hora que explode. Ou temos o instante certo, ou o perdemos…e não podemos recomeçar. O desenho é uma meditação…enquanto que a foto é um tiro. Pode apagar um desenho e fazer outro. Não está lutando contra o tempo. Tem todo o tempo pela frente, é uma meditação. Mas com a foto, há uma espécie de angústia constante… Pelo fato de estar presente. Mas é uma angústia muito calma (CARTIER-BRESSON, 2015, texto digital).
O fotógrafo é citado por Lissovsky (2008) como um exemplo em sua análise dos diferentes modos de expectar, que podem apresentar latitudes largas ou estreitas, passivas ou ativas. O tempo em Cartier-Bresson, por exemplo, é posto como Kairós, que significa ocasião e oportunidade, o máximo de saber no mínimo do tempo. A relação proposta pelo autor é facilmente percebida na obra do fotógrafo, que lidava com o imediatismo da ocasião em suas criações.
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Já o tempo na obra do brasileiro Sebastião Salgado possui um caráter distinto, emergindo como Akme, que seria a culminância, o ponto mais alto e visível de uma trajetória. As fotografias de Salgado trazem um caráter significativo de contemplação, ao contrário de Cartier-Bresson, que se preocupava mais em reconhecer e captar avidamente a cena, em uma fração de segundo. Roland Barthes (1984), em seu livro “A Câmara Clara”, coloca a fotografia como um indicador de “isto foi”. Um atestado de presença de algo que aconteceu no mundo, no espaço e no tempo, mas que jamais poderia ser capaz de restituir tal presença. Lissovsky (2008) vai além: propõe pensar a fotografia como uma duração no futuro, com um tempo que lateja dentro da imagem pelos olhos de quem a vê. “Sem essa sobrevivência do passado no presente, não haveria duração, mas somente instantaneidade” (BERGSON apud LISSOVSKY, 2008, p. 107). Trata-se de pensar a fotografia como um portal de tempos em diferentes relações: futuros passados, passados presentes, presentes futuros. Como um processo de descontinuidades, repleto de durações e intensidades. Ao mesmo tempo em que a fotografia está diretamente ligada ao passado, ela também está relacionada ao futuro. Sua possibilidade de duração acontece quando ela ainda é um “agora-futuro”. É justamente porque os fotógrafos esperam, pelos vestígios dessa expectativa presente no ato, que as fotografias são orientadas para o futuro. Nesse sentido, o autor (2008) traz o pensamento do filósofo Walter Benjamin sobre o desejo de correspondência existente na vontade da fotografia de tornar-se imagem no futuro, de sobreviver como imagem. Walter Benjamin foi o primeiro pensador a debruçar-se sobre a questão da correspondência, de uma certa reciprocidade do olhar na fotografia, como um sinal que permitia conectar passado e futuro. Quando ele se volta para o acontecimento histórico, é a esta reciprocidade que se refere numa passagem famosa das ‘teses’ sobre a história: ‘A verdadeira imagem do passado perspassa veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido’. O esquecimento, para Benjamin, é a pena de que padeceria toda imagem no qual essa reciprocidade não encontra lugar: “irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que este presente se sinta visado por ela’ (LISSOVSKY, 2008, p. 125).
Enquanto em “A Máquina de Esperar” os estudos são focados no tempo da espera/expectação, manifestações recentes de Lissovsky revelam pensamentos
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direcionados para uma nova relação da fotografia com o tempo. Em uma entrevista concedida para a COMUNICOLOGIA - Revista de Comunicação e Epistemologia da Universidade Católica de Brasília, Lissovsky (2011) traz a ideia de que a fotografia teve três relações com o tempo. A primeira foi com o tempo da exposição, a segunda relação foi com o tempo instantâneo, e o terceiro tempo da fotografia é este que vivemos agora, mas que ninguém sabe exatamente qual é. Nesse tempo, a fascinação pelo instantâneo desaparece e, entre as buscas da fotografia, está o tempo próprio das coisas. Lissovsky (2011) acredita que cada coisa que acontece no mundo possui uma duração própria, mas não a percebemos porque nossa duração prevalece sobre a duração das coisas, já que é sempre em função de nossa consciência que tudo se organiza. Para o autor, uma das questões da fotografia sempre foi sobre o tempo e a vida própria das coisas, os ritmos próprios do mundo - coisas que a fotografia sempre perseguiu.
3 VERTIGEM E PARADOXO A questão do tempo e seu elo intrínseco com a fotografia tem continuidade na tese de Cláudia Linhares Sanz (2010), intitulada “Tempo e Fotografia: vertigem e paradoxo”, que esmiuça o tema sob a ideia de uma coexistência de tensões temporais. Desde o seu advento até as primeiras décadas do século XX, a fotografia torna-se uma amálgama de tempos, onde coexistem o mortal e o eterno, o descontínuo e o contínuo, o heterogêneo e o homogêneo, a memória e a lembrança, a experiência e seu declínio. Sanz (2010) afirma que uma fotografia antiga, quando ressurge no presente, é transformada por este seu ressugir, tornando-se um portal de simultaneidades. Assim, a temporalidade do instantâneo fotográfico não se encontra no infinitamente divisível, numa medida cada vez mais ínfima do tempo proposto pelas máquinas, mas sim no intervalo que constitui o momento em que o fotógrafo se dispõe a produzir o registro até o momento em que essa fotografia é novamente atualizada. Trata-se de pensar que a fotografia envolve tanto uma noção de tempo
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homogêneo e espacializado (o tempo das máquinas), quanto um desejo de tempo que extrapola essa concepção: a vontade de restituir a presença, de produzir descontinuidades, acontecimentos e mergulhos na simultaneidade do tempo. Constitui-se a partir do desejo simultâneo de repouso e de devir, de frear e intensificar uma presença no tempo. Não que a fotografia seja uma representação temporal. É como se ela fosse a própria apresentação do paradoxo de dois sentidos da experiência no tempo: uma dobradura. Ela se aproxima do tempo como experiência, distanciando-se, portanto, de seu domínio. Ela se aproxima do domínio e da medida, e, assim, se distancia da experiência, simultânea e vertiginosamente. Afirma o tempo da intensidade e se distancia do tempo dos relógios; aproxima-se do instante como fração e se distancia da virtualidade. [...] Um sempre à sombra do outro, e viceversa. Coexistentes. Uma identidade em variação; um instante que dura e que para, uno e múltiplo (SANZ, 2010, p. 17).
Enquanto a fotografia representa a materialidade da angústia diante do passar do tempo, envia também mensagens para o futuro, configurando-se como uma intensificação da vontade no tempo, de uma memória da vontade. No entanto, citando o filósofo Deleuze, a autora (2010) lembra da necessidade de analisar os agenciamentos coletivos dos quais as máquinas fazem parte, pois elas sempre são sociais antes de serem técnicas. Por isso, Sanz (2010) propõe pensar a fotografia sob a ótica de uma transversalidade entre máquinas e produção intelectual, artistas e cientistas, práticas e teorias. Para contextualizar, ela explica que, no início do século XIX, o homem moderno vivia entre o amor pelo progresso e o desejo de estabilizar o tempo, que parecia cada vez mais veloz. Ao mesmo tempo em que havia uma inclinação ao futuro do progresso, o homem buscava uma aspiração ao eterno. “A fotografia surge, então, entre uma miragem de duração e a promessa do instante de aniquilamento” (SANZ, 2010, p. 24). Essa ambiguidade parece ser, justamente, a condição do surgimento do instante fotográfico, aquilo que move seu desdobramento e a sua própria história. Considerando as diferentes concepções e relações entre passado, presente e futuro ao longo do tempo, a fotografia configura-se capaz de reter esse sentimento coletivo de aceleração imposto pelo capitalismo, a partir do século XIX. Entretanto, esse sentimento trouxe consigo o desejo de ter momentos de ruptura, de contrabalançar significativos.
a
homogeneização
temporal
com
momentos
especiais
ou
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Mas, enquanto a fotografia desenvolve sua linguagem como modo de romper o tempo homogêneo, por outro lado, a sua escala de produção alimenta o contínuo, equalizando possíveis diferenças temporais e homogeneizando, cada vez mais, os instantes. Nesse sentido, Sanz (2010) afirma que a linguagem fotográfica foi sendo vivenciada como uma experiência de presente adensado, em que a expectação não se refere apenas ao presente, sendo sobretudo uma profunda conexão com a passagem do tempo, em uma inclinação para o futuro. No entanto, a modernização da fotografia também estimulou que todos se tornassem “repórteres fotográficos da vida privada” e, ao contrário da promessa de destacar momentos especiais, a imensa quantidade de fotografias teve como resultado a impressão de uma vida sem acontecimento ou ruptura, além da ideia de que cada instante fosse tão potencialmente fotografável quanto o próximo. Em sua pesquisa, Sanz (2010) também aborda o papel da fotografia como expressão de um desejo de memória - uma maneira de fixar lembranças que não desejamos esquecer - e sua relação com o imaginário iconográfico da crise da memória. Uma ansiedade coletiva impulsionava, durante o século XIX, uma produção permanente de memórias individuais e coletivas. No entanto, o mundo em constante mudança e aceleração fez com que qualquer alteração do presente fosse conectada à escrita da história, pública e privada. “[...] caso contrário, corria o risco de ser atropelada pelo ‘próximo acontecimento’ e, enfim, esquecida” (SANZ, 2010, p.162). É o que parece acontecer, cada vez mais, no mundo contemporâneo. Citando a ideia de Bergson, entretanto, a autora (2010) explica que a memória nunca poderia ser recuperada por um instantâneo fotográfico, já que a memória-lembrança estaria sempre nos acompanhando ao longo da nossa vida, presente em virtualidade, sendo acessada e atualizada em função de determinadas situações e interesses. Assim, não teria sentido o medo do esquecimento e nem a necessidade de arquivar o máximo de lembranças por meio de fotografias. Já o escritor Marcel Proust, citado por Sanz (2010), pensava que as memórias relevantes seriam as memórias involuntárias e imaginativas, que possuem sozinhas sua “marca de autenticidade”, e que seriam capazes de nos devolver as coisas numa dose exata de memória e de esquecimento. “Como se os homens
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tivessem realizado uma troca: no lugar da experiência, no lugar do ‘trabalho imaginário da memória’, instantes fotográficos para registrar nossa ‘existência no tempo’” (SANZ, 2010, p. 167). Por meio do pensamento de Benjamin, a autora (2010) traz a noção de que a fotografia possibilitou a fixação, em uma perspectiva cronológica, de eventos para a posterioridade, integrando-os ao alcance de uma memória progressiva e voluntária no entanto, reduzindo o âmbito da imaginação. Com sua capacidade de ser antecipação, expectação e imaginação do que está por vir, a fotografia possibilita uma reciprocidade do olhar - um entrecruzamento que exige que o passado também vise ao presente. “É na história que a fotografia se manifesta como intensificação da vontade no tempo, insistente em retornar, maturada e alterada pelo próprio tempo” (SANZ, 2010, p. 204). A
autora
(2010)
também
comenta
sobre
a
fotografia
no
mundo
contemporâneo, e o fato de seu estudo ter sido realizado diante de um mundo em que o excesso de fotografias constrasta com a falta de tempo para durar. Enquanto é cada vez mais comum o desejo de acumular imagens de nossa vida, também tornou-se cada vez mais difícil de selecionar, e até mesmo de rever essas imagens, dificultando, assim, reter a lembrança de qualquer uma delas. Dessa forma, o tempo deixa de ser um agente de mudança, sem se mostrar apto a rupturas ou transformações. Enquanto isso, a ampliação do presente também não nos causa mais a sensação de maior duração do tempo, já que sentimos apenas instantes sem densidade, que se sobrepõem aceleradamente. Assim, a fotografia parece ter se tornado uma forma de “salvar” os instantes para vivê-los. Relembrando o pensamento de agenciamento de Deleuze, a autora (2010) questiona o motivo de nos parecer importante produzir câmeras que possibilitem essa simultaneidade de imagens. “Fotografar e ver (imediatamente) é um modo fotográfico inédito, absolutamente em consonância com nossa experiência temporal e certas expectativas culturais hoje socialmente compartilhadas” (SANZ, 2010, p. 209). A fotografia na contemporaneidade converte-se em uma forma de “realizar o agora”, e até mesmo de intensificá-lo, torná-lo mais vibrante e interessante. Além
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disso, Sanz (2010) relaciona o prazer de ver as fotos no mesmo momento em que foram feitas com um rito de celebração do presente, vivido individual ou coletivamente, através da tela. A autora (2010) propõe pensar que talvez exista um modo próprio de experimentar o tempo por meio das fotografias contemporâneas, que acontecem na maneira de estar presente em um presente reduzido e veloz e, simultaneamente, ampliado. No entanto, ela acredita que talvez a inclinação para o futuro (percebida por Benjamin como um aninhamento do tempo na imagem) já não se efetue em um mundo que não se fundamenta mais em projetos de futuro. Qual é a ideia de futuro que existe no efêmero? Esse parece ser o paradoxo da fotografia contemporânea.
4 FOTOGRAFIA: UM PASSADO-FUTURO Quando a luz ultrapassa o visor da câmera e chega à película fotossensível, no caso da fotografia analógica, ela altera para sempre aquela superfície. Dessa forma, o disparo de uma câmera sempre irrompe em duas direções, delimitando o que André Rouillé (2009) chama, em seu livro intitulado “A fotografia: entre documento e arte contemporânea”, de terceira temporalidade fotográfica: um passado-futuro. Passado das coisas e dos corpos, futuro do evento da imagem. Suas imagens estão, ao mesmo tempo, inscritas no instante sempre-já passado, e rejeitadas no futuro. Sua captação e sua aparição estão separadas por uma fase de latência - aliás, chama-se de “imagem latente” essa imagem invisível inserida pela luz nos sais de prata, à espera de ser quimicamente revelada. Ainda não está e no entanto já está: assim se poderia exprimir a temporalidade passado-futuro da imagem fotográfica em seu estado de imagem latente. Imagem em evolução, a imagem latente está aberta em direção ao futuro: em direção à própria imagem (ROUILLÉ, 2009, p. 209).
Já a outra porção da temporalidade fotográfica cai, para o autor (2009), na angústia que lida com tudo aquilo que desaparece, na ideia de que “ainda está e no entanto já passou”. Assim, ele acredita que o presente da captação é duplamente perseguido, tanto pelo futuro da imagem que está por vir, quanto pelo passado que guarda as coisas e os corpos. Operada por uma cisão do tempo, a imagem transforma o fotógrafo em espectador de seu próprio trabalho. “Esse momento particular, que abre uma quarta
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temporalidade, une as duas facetas do fotógrafo: operador e espectador” (ROUILLÉ, 2009, p. 210). O momento da percepção de suas imagens envolveria dois tempos: o presente da percepção coexistiria com o passado contemporâneo do momento em que elas foram feitas, intermediados pela memória que intercala o passado ao presente. Sobre as temporalidades do espectador, Rouillé (2009) fala sobre o pensamento de Barthes relacionado à ideia de que a fotografia é um dispositivo munido de um poder misterioso de ressucitar o que o tempo eliminou, de inverter o curso. Para ele as imagens não passam de ponto de partida para percursos regressivos intermináveis e difíceis, de infinitas retomadas: retomada do tempo, retomada de uma vida, retomada da morte para a vida, ou então retomada das aparências para a essência (ROUILLÉ, 2009, p. 211).
De acordo com Rouillé (2009), a fotografia estaria perpassada por dois grandes modos: um afirmativo e outro interrogativo. O primeiro seria referente à ideia de “isto foi”, enquanto o segundo estaria relacionado à pergunta “o que foi que aconteceu?” - o modo dos incorporais, da escrita, da memória. Dessa forma, o autor acredita que a imagem torna-se uma espécie de encarnação de uma memória voluntária, que segue de um presente atual a um presente que já foi. Algo que opera no presente vivo da ação e tenta recompor o passado por meio da sucessão de presentes suspensos, fixos e paralisados, que são os instantâneos. Rouillé (2009) ressalta que a imagem fotográfica não possui como único passado um presente que foi, mas sim diversos presentes que coexistem com um “passado em geral”, que habitamos e que nos habita, orientando nossas ações no tempo e nossas percepções no espaço. E esse passado não cronológico é o passado da memória, que se entrecruza com o tempo da matéria em cada momento da imagem fotográfica. É neste tempo - o “passado em geral” - que nos movemos.
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5 O CASO VIVIAN MAIER “Eu acredito que fotografo coisas que ninguém veria caso eu não as mostrasse”. (Diane Arbus)
No mundo contemporâneo em que vivemos, onde os feitos são divulgados tão logo que acontecem, é difícil compreender o que leva alguém a atravessar a vida sem deixar pistas sobre quem realmente foi. Descoberta por acaso, a obra da babá norte-americana Vivian Maier é considerada um dos principais tesouros fotográficos do século XX. Sua surpreendente obra de cerca de 150 mil fotografias veio à tona somente após a sua morte, em 2009, virando tema de livros, exposições e filmes. Ela, provavelmente, jamais imaginou que sua maneira discreta de viver e de fotografar fosse provocar tanta curiosidade em seus admiradores. O jornalista, curador e crítico de fotografia Rubens Fernandes Junior (2011) observa, em uma análise publicada no site Icônica, que as fotografias de Vivian exploram com emoção o cotidiano dos cidadãos anônimos que dinamizavam e movimentavam sua cidade. Contudo, elas requerem um olhar mais demorado e afetivo dos observadores. Para o autor, a babá desenvolveu um gênero narrativo espontâneo, construído a partir de uma percepção própria da ideia do sagrado no cotidiano. O jornalista Molina (2014) acrescenta, em matéria publicada no jornal El País, que Vivian foi o resumo de toda a grande fotografia americana do século XX e que possuía um olhar somente seu, com uma especial curiosidade por realidades sociais diferentes da sua. Enquanto empurrava carrinhos de bebês e carregava crianças pelas mãos, ela costumava ir até os bairros mais pobres, sem se importar em deixar uma avenida charmosa para entrar em um beco que abrigava os sem-teto da cidade, como podemos ver nas imagens a seguir.
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Figura 1 – Registros de New York. Setembro de 1953
Fonte: Maier (2011, p. 67).
Figura 2 – Registros de New York. Setembro de 1959
Fonte: Maier (2011, p. 113).
A jornalista e documentarista Harazim (2013) conta que a babá saía de sua zona de conforto para abordar os desconhecidos que queria retratar – e quanto mais baixa fosse sua posição na escala social, maior parecia ser o seu interesse e mais
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fácil a sua conexão para o ato de fotografar. “Uma das singularidades de Vivian Maier é ter sido uma pessoa tão afastada da sociedade e, através da câmera, tão próxima da humanidade” (HARAZIM, 2013, texto digital). Muitas imagens da babá foram clicadas com uma câmera Rolleiflex de médio formato e isso facilitou a espontaneidade dos registros, pois a câmera ficava posicionada na altura do quadril e não dos olhos, bastando inclinar o rosto para ver o visor. “Vistas deste ângulo, de baixo para cima, as pessoas adquirem uma presença dominante, e o espetáculo da rua se observa desde o lugar aproximado do olhar de uma criança” (MOLINA, 2014, texto digital). Podemos perceber a influência do ângulo no exemplo de fotografia abaixo. Figura 3 – Registros de New York. Outubro de 1954
Fonte: Maier (2011, p. 26).
Por meio da observação de suas folhas de contato, os atuais proprietários do acervo de Vivian perceberam que os momentos decisivos captados por ela não foram fruto de muitas tentativas. Para muitos deles, inclusive, bastou um único clique, o que mostra seu olhar peculiar para registrar as coisas que lhe chamavam a atenção no mundo. Podemos verificar o fato no exemplo abaixo, que traz somente uma cena repetida (a do bebê no carrinho) em um único filme 120mm que, geralmente, conta com 12 poses.
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Figura 4 – Folha de contato com registros de New York
Fonte: Site oficial de Vivian Maier.
Vivian tinha um apreço especial por fotografar seu cotidiano, como se quisesse guardar em sua câmera todos os momentos vividos e as pessoas com quem cruzava na rua. Esse gosto por fotografar desconhecidos também é algo que chama a atenção para o seu trabalho, possivelmente, pela curiosidade gerada pelas vidas e histórias dessas pessoas por parte dos espectadores. O fotógrafo e pesquisador Ronaldo Entler (2006) explica que é comum a sedução pelo desconhecido, não apenas por quem faz a fotografia, mas também por quem a observa. [...] às vezes nos deparamos com uma imagem mais distante, uma fotografia perdida, ou esquecida no meio de um livro que compramos num sebo, ou jogada no meio dos objetos herdados de um parente que sequer conhecemos. Quando nos deixamos fisgar por essas imagens, somos envolvidos por uma história latente que já não se pode recuperar. A realidade em questão nos é ainda mais alheia do que aquela contada por nosso amigo ou parente. Mas aqui, a inexistência do relato cria um paradoxo que nos detém: há ali um passado, e a imagem só é capaz de nos lembrar que ele está definitivamente esquecido. Há, portanto, a presentificação de uma ausência (ENTLER, 2006, p. 38).
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Para o autor (2006), quando nos deparamos com uma fotografia de um anônimo qualquer, somos tocamos pelo fato de que essa pessoa atuou, um dia, no palco que chamamos de realidade. Então, nosso interesse poderia ser explicado por algum tipo de identificação, já que o anonimato é também nosso destino mais provável. “Sendo sua história inapreensível em sua totalidade, resta-nos preencher com dados de nosso imaginário as brechas sempre existentes entre os fragmentos coletados, quem sabe, aprofundando ainda mais nossa identificação” (ENTLER, 2006, p.39). Figura 5 – Registros de Chicago, sem data
Fonte: Maier (2011, p. 18).
Trata-se de pensar a questão da possibilidade de esquecimento, muito presente na obra de Vivian Maier, como uma potência na fotografia. As histórias daquelas pessoas retratadas, apesar de pulsantes, jamais poderão ser contadas. Assim, o autor propõe pensar na questão da “falta estrutural” de Lacan, que é uma condição de existência do ser humano. O objeto é desejado exatamente porque falta e, diante disso, não é difícil dimensionar a sedução – gozo, nas palavras de Lacan – gerada pela manutenção de sua ausência. Essa relação paradoxal com o objeto do desejo já sugere positividade: trata-se de “uma falta que se presentifica” (ENTLER, 2006, p. 47).
No caso das fotografias de Vivian, são muitos detalhes que nos chegam e que
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nos faltam. Não apenas as histórias dos desconhecidos retratados por ela, mas a sua própria história também é nosso objeto de desejo. Uma ausência paradoxal, presentificada por suas imagens.
5.1 O tempo em Vivian Maier O tempo é um ingrediente essencial e emblemático na história de Vivian Maier. Durante os anos em que suas fotografias ficaram guardadas, escondidas em caixas espalhadas por guarda-volumes da cidade, uma parte delas sequer foi revelada. Podemos relacionar o fato com as ideias de Benjamin, citado por Lissovsky (2008), quando diz que o passado só se deixa fixar no momento em que é reconhecido. No caso de Vivian, suas fotografias quase padeceram sob a pena do esquecimento, não fosse a descoberta ao acaso por um historiador. Conforme as ideias de Mauricio Lissovsky, o que a fotografia congela é o espaço e não o tempo - ele ali continua pulsando e produzindo experiências. Nesse sentido, as obras de Vivian Maier congelaram, como qualquer outra fotografia, o espaço em que foram feitas. Contudo, mesmo redescobertas décadas depois de sua captação, o tempo nelas continua surtindo efeito como uma dobradura, permitindo ao observador habitar aquele espaço novamente. O caráter curioso na obra de Vivian é, justamente, a forma com que o tempo age sobre essas imagens, tornando-se uma potência para a curiosidade dos olhares dos apreciadores. De acordo com Lissovsky (2008), a expectação existente na fotografia possui sempre uma relação de correspondência com o futuro e é o que diz respeito, inclusive, ao seu desejo de tornar-se imagem no futuro, de sobreviver como imagem. Baseada nas ideias de Benjamin e de Lissovsky, Sanz (2012) acredita que a temporalidade de que tratam as imagens fotográficas é sempre o futuro, que se infiltra nas imagens como um segredo que nos convida, de modo permanente, a ser desvendado. “Uma grande arca de futuros pretéritos possíveis, a fotografia arquiva os vestígios não só dos fatos ocorridos, mas também dos sonhos que constituem a materialidade de nossas vidas” (SANZ, 2012, texto digital).
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Figura 6 - Registros de New York. Outubro de 1954
Fonte: Maier (2011, p. 15).
De acordo com Sanz (2012), as imagens fotográficas envolvem todas as histórias que poderiam ter acontecido e também as que se perderam no caminho, além das que não venceram e as que poderiam não ter vencido. Todas elas estariam à espera do leitor capaz de desvendá-las. O gesto dessas fotografias nos faz indagar que horizontes de transformação habitavam aquele tempo; que projetos foram esquecidos, enfraquecidos, afogados; que expectativas sobreviveram, foram guardadas ou substituídas; de que sonhos, afinal, éramos feitos nos tempos já passados? (SANZ, 2012, texto digital).
Todas essas questões mostram-se curiosidades sem um desfecho claro no trabalho e na história de Vivian Maier. Se as imagens são fundamentalmente baseadas no futuro, à espera de serem desvendadas por um olhar de reciprocidade, qual foi o desejo de Vivian ao guardar grande parte de suas imagens, inclusive, de si mesma?
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Complementando a ideia, a terceira temporalidade fotográfica proposta por Rouillé (2009) traz o conceito de que o disparo de uma câmera sempre irrompe em duas direções, fazendo da fotografia um passado-futuro, um passado das coisas e dos corpos e um futuro do evento da imagem. Vivian revelou alguns de seus rolos de filmes no banheiro da casa em que trabalhava como babá. Outros, no entanto, ficaram por muitos anos sob essa condição: inscritas no instante sempre-já passado, e rejeitadas no futuro. Percebemos que sua obra permaneceu, até o século seguinte ao de sua criação, no estado de “imagem latente”, à espera de ser quimicamente revelada, aberta em direção ao futuro. Como diria Rouillé (2009), “ainda não está e no entanto já está; ainda está e no entanto já passou”. Mas, de acordo com o autor, o momento após a captação seria operado por uma cisão no tempo, que intervém na transformação do fotógrafo em espectador de seu próprio trabalho. Esse momento, no entanto, não foi comum na história de Vivian que, por muitas vezes, não foi espectadora de seu próprio olhar. Outro aspecto curioso em seu trabalho é que, quando suas fotografias foram reveladas ao público, depois de ficarem esquecidas durante tantos anos, sem uma reciprocidade do olhar, proporcionaram um especial interesse por parte dos observadores em relação àquelas imagens. Podemos rememorar aqui o conceito de aura proposto por Benjamin (1955), que afirma que o conceito passa, ao longo da história da fotografia, por três etapas diferentes. Nos primórdios da fotografia, a aura é concebida como autêntica. Na segunda fase, a aura primitiva entraria em crise e, por meio de alguns artifícios, os fotógrafos tentariam restaurá-la, estabelecendo uma falsa aura. Já a terceira etapa seria a de destruição da aura, quando o objeto é retirado de seu invólucro e reproduzido para o infinito. Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter
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único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade (BENJAMIN, 1955, p. 3).
No entanto, percebemos que Benjamin assume uma posição um tanto ambígua em relação ao conceito de aura e à sua decadência relacionada com a fotografia. Nesse sentido, Barthes (1984) considera que, o que se inaugura na era da reprodutibilidade técnica, não altera em nada o que era considerado como obra de arte, já que aquilo que se fotografa não deixa de ser único, com uma aura particular. Embora reproduzível ao infinito, o que se fotografa é irrepetível, um instante único no tempo. Assim, a fotografia seria apenas a ferramenta para perpetuar uma memória e sua aura particular. Para investigar o poder da imagem de se “apoderar do olhante”, o filósofo e historiador Didi-Huberman (1998) também se apropria do conceito benjaminiano de aura, mas desloca a ideia de que ela estaria presa à obra de arte única. Segundo ele, a aura é uma teia em constante construção, sendo desenvolvida a partir do encontro do olhante com o olhado. Ela seria como um atributo visual das obras de arte, manifestado na dinâmica entre o objeto olhado e o olhante, além de estar diretamente ligada a uma potência de inquietação provocada pelo próprio objeto. O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do ‘dom visual’ para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 77).
É comum observarmos fotografias antigas, reveladas na época em que foram feitas, e muitas delas nos causarem, a nosso ver, algum tipo de afeto. Mas, o que significa ver uma fotografia antiga sabendo que ela foi revelada somente agora, muito tempo depois de ter sido feita? É como se tivéssemos o privilégio de ter o “primeiro acesso” a esse novo mundo que se revela. Nossos olhares tocam vestígios de instantes que sonhavam em ser imagens no futuro. E que, enfim, sobreviveram como imagem.
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Figura 7 - Registros de New York, sem data
Fonte: Maier (2011, p. 63).
Nesse sentido, Benjamin (1989) aborda a relação de Marcel Proust com a questão da aura e o pensamento de que os objetos sempre conservam algo de todos os olhares que um dia os apreciaram. Desnecessário ressaltar o quanto Proust era versado no problema da aura. Ainda assim é digno de nota que ele, ocasionalmente, se refira a conceitos que contêm a teoria da aura: ‘Alguns amantes de mistérios sentem-se lisonjeados pela ideia de que alguma coisa dos olhares lançados sobre os objetos, neles permaneça’. (Talvez exatamente a capacidade de retribuílos.) ‘Eles acreditam que os monumentos e os quadros se mostrem apenas sob o tênue véu tecido à sua volta no decorrer dos séculos pelo amor e pela devoção de tantos admiradores.’ Esta quimera — conclui Proust evasivo — transformar-se-ia em verdade, se eles a relacionassem com a única realidade existente para o indivíduo, a saber: o mundo de sua sensibilidade (BENJAMIN, 1989, p. 140).
Assim, com uma dose de sensibilidade, percebemos a clara a diferença de sensações entre um olhar que observa uma fotografia antiga, revelada há décadas, que já foi apreciada por incontáveis olhares observadores, e outro olhar que observa
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uma imagem “nova” - mesmo que antiga, mas revelada somente agora. É um mundo novo que se abre e, por isso, parece ser o motivo de tanto afeto por parte dos observadores do trabalho de Vivian Maier. De acordo com Benjamin, parte do observador a vontade de procurar nessas imagens “a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos [...]” (BENJAMIN, 1985, p. 94). Esse momento de reconhecimento é sempre um agora, como afirma Lissovsky (2011), em uma reciprocidade entre passado e futuro. O agora de uma correspondência, o agora de um reconhecimento. É desde um agora-futuro que a fotografia que contém nossa imagem do passado está à nossa espera. Desde esse agora ela nos visa, nos encara. Aguarda pelo gesto de reconhecimento quando será então redimida. Toda fotografia, insiste, confia, pois tão seguro quanto estaremos todos mortos um dia, nada está perdido para a história. Tudo que foi dito, feito e sonhado tem um encontro marcado conosco (LISSOVSKY, 2011, texto digital).
Trata-se de pensar que as imagens de Vivian Maier somente sobreviveram como imagem porque encontraram, em sua reserva de futuro, uma reciprocidade do olhar. Assim, sua obra se mostra hoje um universo vivo, pronto para ser habitado e correspondido.
5.2 Atravessamento de tempos As aproximadamente 150 mil imagens captadas pela babá americana mostram que Vivian Maier fotografava compulsivamente. Seu modo peculiar de registrar o cotidiano, as pessoas com quem cruzava na rua ou as mais diversas situações que lhe chamavam a atenção pode ser comparado com algumas características da fotografia contemporânea, quando a fotografia se torna uma forma de “salvar” os instantes para depois vivê-los. Mas, mesmo com algumas semelhanças, por que os seus registros geraram tanto interesse para os observadores de hoje? A época era outra, assim como a relação da fotografia com o tempo. Nesse sentido, podemos pensar que nos surpreendemos, justamente, com o atravessamento de tempos realizado pelas fotografias de Vivian - pela relação da fotografia, na época em que seus registros
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foram clicados, com os tempos passado, presente e futuro, conforme a ideia proposta por Sanz (2010); e pela relação da fotografia com o tempo hoje, na época em que essas imagens foram reveladas, no estado em que nos encontraram, no tempo em que foram correspondidas. Se pensarmos nos três paradigmas da imagem propostos por Lúcia Santaella (2001), podemos observar que Vivian fotografou durante o paradigma fotográfico, marcado pela inauguração da automatização na produção de imagens por meio de máquinas (ou de próteses óticas). Nessa época, a imagem era resultado do registro sobre um suporte químico ou eletromagnético do impacto dos raios luminosos emitidos pelo objeto ao passar pela objetiva. No entanto, suas imagens chegam aos olhares apreciadores somente no paradigma pós-fotográfico, quando as imagens tornam-se digitais, derivadas de uma matriz numérica e produzidas por técnicas computacionais. De acordo com a tese de Sanz (2010), a fotografia na modernidade existiu sob a inscrição do tempo como um agente absoluto de mudança, sendo ela uma técnica capaz de “apreender o real”. Ao mesmo tempo em que é fruto de determinada experiência, ela mesma também é agente de intensificação, desdobramento e alteração de tal experiência. Enquanto a fotografia moderna tornava-se uma maneira de fixar lembranças que não desejamos esquecer, ela também foi tomada por uma ansiedade que impulsionava uma produção permanente de memórias. Para a autora (2010), a fotografia moderna experimentou uma antecipação do que seria a fotografia contemporânea: quando torna-se comum acumular imagens de nossa vida na mesma medida em que nos falta tempo para rever e selecionar essas imagens. Ainda assim, os tempos eram outros. Podemos pensar nesse atravessamento de tempos realizado pelas fotografias de Vivian, desde o momento em que foram feitas até o seu reconhecimento: do paradigma fotográfico ao pósfotográfico; da fotografia moderna à contemporânea. Observamos que, passado o problema da fotografia com o tempo da exposição, ela fotografou em uma época em que a fotografia passou a ser regida sob a duração da espera, teorizada por Lissovsky (2008). Seus registros
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instantâneos foram feitos com o que ele chamou de expectação: uma espera repleta de expectativa, aguardando pelo momento de apertar o botão. As próprias folhas de contato mostram que os momentos decisivos captados por Vivian não foram fruto de muitas tentativas. Para muitos deles, bastou um único clique - sugerindo, assim, uma espera delicada e criteriosa. Enquanto a temporalidade da espera das fotografias de Cartier-Bresson é classificada por Lissovsky (2008) como Kairós - a experiência do momento oportuno - e sua latitude é considerada estreita, nas obras de Sebastião Salgado, a temporalidade do instante é Akme - a culminância, o ápice - com uma larga latitude de espera. Se compararmos as fotografias de Vivian com tais características, chegamos à ideia de que a babá estaria entre essas definições: nem demasiada Kairós, nem muito Akme; não somente oportunidade, nem o extremo ápice. Sua temporalidade de espera pode ser classificada como doce, sutil e delicada. Ao mesmo tempo em que ela aproveita a oportunidade da ocasião, fotografando a espontaneidade do cotidiano ao seu redor, não podemos equiparar à extrema sagacidade e à angústia presente em Cartier-Bresson. Suas composições não são sua preocupação central. Da mesma forma, não podemos igualar a profundidade e a emoção de suas fotografias com as de Salgado, que captou com sua câmera registros intensos da condição humana. Figura 8 - Registros de Vancouver, sem data
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Fonte: Maier (2011, p.14).
Não estamos falando de ápices, de esperas largas; tampouco de esperas tão estreitas quanto os instantes únicos de Cartier-Bresson. Nesse sentido, podemos classificar a temporalidade de Vivian Maier como Aiôn. De acordo com a definição da doutora em educação Angela Raffin Pohlmann (2006), no artigo “Intuições sobre o tempo na criação em artes visuais”, o tempo de Aiôn configura-se, segundo os gregos, como uma eterna presença, que nos faz ter a sensação de que, por alguns momentos, é possível paralisar o tempo e viver um “tempo em suspenso”. Enquanto Chronos é o deus do tempo cronológico e Kairós o deus das encruzilhadas, o tempo de Aiôn é o deus do acaso, do jogo, da brincadeira, que nos faz acreditar na inexistência do tempo. No livro “O vocabulário de Deleuze”, François Zourabichvili (2004) explica alguns conceitos utilizados pelo filósofo e, entre eles, o tempo de Aiôn. Esse tempo significa, para Deleuze, um entre-tempo em que o acontecimento não se relaciona a uma diferença entre estados, mas a uma diferença que afeta o sujeito. Aiôn classifica-se como uma paradoxal temporalidade em que o acontecimento nunca termina, afetando a subjetividade e inserindo a diferença. Podemos pensar nas fotografias e no modo como Maier fotografou seu cotidiano, com um olhar que contemplava a beleza das coisas comuns, da
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banalidade cotidiana. Vivenciando o tempo como uma eterna presença, a fotografia era uma forma de ter a sensação de “viver um tempo em suspenso”, desterritorializando o tempo e detendo-o dentro de sua câmera. Figura 9 - Registros de New York. Março de 1954
Fonte: Maier (2011, p. 30).
Sanz (2010) considera que a imagem fotográfica possui uma capacidade de gestar encontros entre múltiplas temporalidades, em uma inclinação para o futuro. No entanto, ao mesmo tempo em que possibilita uma reciprocidade do olhar, a fotografia contemporânea coexiste com um tempo que deixou de ser um agente de mudança, que não se mostra mais apto a rupturas ou transformações. A “ampliação do presente” significa apenas uma sobreposição acelerada de instantes sem densidade. Enquanto a fotografia torna-se uma maneira de “realizar o agora”, e até mesmo de intensificá-lo e torná-lo mais vibrante, as obras de Maier nos causam certa perplexidade pela forma com que nos atingem, como espectadores contemporâneos. Sanz (2010) reflete sobre o prazer atual de ver as fotos no mesmo momento em que são feitas, como se fossem um rito de celebração do presente vivido através da tela. Ao mesmo tempo, chega até nós a história dessa mulher que fotografou milhares de pessoas, cenas, paisagens e situações, e sequer viu muitos desses
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instantes congelados ao infinito. No entanto, fez questão de guardar todos os seus negativos, na possível expectativa de que um dia fossem reconhecidos. Nesse sentido, podemos pensar a teoria da aura proposta por Benjamin (1994). É, contudo, inerente ao olhar a expectativa de ser correspondido por quem o recebe. Onde essa expectativa é correspondida (e ela, no pensamento, tanto pode se ater a um olhar deliberado da atenção como a um olhar na simples acepção da palavra), aí cabe ao olhar a experiência da aura, em toda a sua plenitude. ‘A perceptibilidade é uma atenção’, afirma Novalis. E essa perceptibilidade a que se refere não é outra senão a da aura. A experiência da aura se baseia, portanto, na transferência de uma forma de reação comum na sociedade humana à relação do inanimado ou da natureza com o homem. Quem é visto, ou acredita estar sendo visto, revida o olhar. Perceber a aura de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o olhar (BENJAMIN, 1994, p. 139).
Hoje, percebemos a aura das fotografias de Vivian Maier, porque investimos nelas o poder de revidar o olhar. Assim como nós as olhamos, elas também nos olham. E essa distância capaz de nos atingir, de nos tocar, produz uma forma específica de sentir. De acordo com Benjamin, “um olhar poderia ter efeito tanto mais fascinante quanto mais profunda fosse a distância daquele que olha e que foi superada nesse olhar” (BENJAMIN, 1994, p. 141). Trata-se de pensar, assim, que as fotografias de Vivian causam tanto afeto hoje porque chegam até nós em um tempo, descrito por Sanz (2010), em que a inclinação para o futuro talvez não mais se efetue, já que vivemos em um mundo que não se fundamenta mais em projetos de futuro, mas sim, na intensificação do presente. Ainda assim, fomos capazes de perceber nelas a centelha do acaso, do aqui e do agora, e revidar o olhar. E elas nos olham com tanta intensidade, justamente, porque reduzimos essa distância espacial e temporal. Podemos aqui trazer à tona as ideias de Didi-Huberman (1998), que reavalia o conceito de aura de Benjamin como uma “única aparição de uma lonjura, por mais próxima que esteja, [...] uma visualidade sentida como a aparição estranha, única, de algo ‘que devia permanecer em segredo, na sombra, e que dela saiu’” (DIDIHUBERMAN, 1998, p. 230). As fotografias de Vivian Maier permaneciam em segredo, na sombra, até que... Como se pudesse guardar o tempo e a vida dentro de sua câmera, talvez Vivian Maier, em sua compulsão por captar o agora, mesmo que em segredo, diga mais sobre nós mesmos do que podemos imaginar. E é daí que parece surgir tanto
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afeto por suas imagens.
6 EPÍLOGO O tempo foi (e continua sendo, porque o tempo é da ordem do inalcançável) o intrigante e misterioso tema que motivou este estudo, desde os primeiros pensamentos que o envolveram. Já a fotografia sempre foi uma vontade e uma necessidade, com todos os esforços e olhares direcionados a ela. Em meio a isso, surge um trabalho enigmático de toda uma vida registrada pela fotografia: Vivian Maier, com suas cerca de 150 mil imagens, completava o jogo a ser iniciado nessas páginas. Perto de serem completamente esquecidas - e por algum tempo, de fato foram -, as fotografias da babá americana causaram um intenso interesse no campo da fotografia quando foram observadas e reconhecidas. Atenta ao extraordinário e ao comum, Vivian contemplou o espanto e a beleza dos fatos corriqueiros. Mas, o que em seu trabalho motivou todo esse apreço por parte dos olhares observadores de hoje? Por meio de estudos sobre a espera de Lissovsky, percebemos a doçura e a delicadeza da expectação presente nos registros de Vivian. Sugerimos, inclusive, sua temporalidade como Aiôn: o tempo que se configura como uma eterna presença, que nos dá a sensação de ser possível, por alguns momentos, paralisar o tempo e vivê-lo em “suspenso”. No entanto, a época em que suas fotografias foram feitas era outra, assim como a relação da fotografia com o tempo. Nesse sentido, podemos pensar que nos surpreendemos, justamente, com o atravessamento de tempos realizado pelas fotografias de Vivian: em uma época de imagens produzidas e consumidas instantaneamente, surgem esses registros que ficaram, por décadas, no estado de “imagem latente”, inscritas no passado, aguardando pelo futuro de tornar-se imagem. Em sua espera pelo instante certo, ela eternizou em suas imagens uma duração no futuro, com um tempo que lateja dentro das fotografias pelos olhos de quem as observam. Apesar das diferenças, também percebemos algumas semelhanças entre o
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ato fotográfico compulsivo de Vivian Maier e o que parece ser a essência da fotografia contemporânea. Como se pudesse guardar o tempo e a vida dentro de sua câmera, o modo que Vivian fotografava parece ter sido uma amostra do que vivemos hoje, dessa vontade de “realizar o agora” e de torná-lo mais vibrante. Compreendemos também que o caso de Vivian pode ser relacionado à tese de Cláudia Sanz no sentido da vertigem e do paradoxo existentes na fotografia. A vertigem do momento de observar as imagens e poder habitar novamente aquele tempo e espaço, como um portal de simultaneidades; no entanto, o paradoxo existente na ideia de não haver um tempo que conduza a observação de uma fotografia e, simultaneamente, perceber a diferença de olhar para uma fotografia antiga revelada somente hoje. É como se tivéssemos o privilégio de ter o “primeiro acesso” a esse novo mundo que se revela. Nossos olhares tocam vestígios de instantes que sonhavam em ser imagens no futuro. E que, enfim, sobreviveram como imagem. Poderíamos afirmar que a beleza captada pelas fotografias de Vivian Maier foi o que atingiu, de fato, os olhares dos observadores. Mas, isso não seria o bastante. São muitos os aspectos que colaboram para tornar interessante aos nossos olhares a obra deixada pela babá. Os próprios desconhecidos registrados por ela - e a provável pena de esquecimento sob a qual padeceriam, não fossem seus sutis registros - influenciam no sentido de promover um apreço por essas fotografias. No entanto, nada seria das imagens de Vivian se não houvesse uma reciprocidade do olhar. Por meio da análise do conceito benjaminiano de aura, repensado por autores como Didi-Huberman, compreendemos a forma com que as fotografias de Vivian Maier sobreviveram como imagem no futuro. Fomos capazes de nos espantar com o aqui e agora proporcionado pela observação de suas obras. Enquanto nós as olhamos, elas também nos olham, em uma teia sendo constantemente tecida por múltiplos olhares. Porque ver é sempre uma operação inquieta, agitada e aberta, de forma recíproca, entre aquele que olha e aquilo que é olhado. E essa distância superada no olhar é o que parece nos proporcionar tanto afeto.
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THE ENIGMA OF TIME IN VIVIAN MAIER'S PHOTOGRAPHS Abstract: It's common to see old photographs, revealed at the time they were made, and many of them provide us, in our view, some sort of affection. But what does it means to see an old photograph knowing it was revealed only now, a long time after it was made? By analyzing the works of Vivian Maier, an iconic figure that appeared recently in the field of photography, this paper investigates the relations of the photography with time, the aura concept by Walter Benjamin and the way the pictures of the american nanny survived as images. They found, in their future reserve, a reciprocal look. Her work shows today a living universe, ready to be inhabited. As if she could keep the time and the life within her camera, perhaps Vivian Maier, in her compulsion to capture the now, even in secret, tell more about ourselves than we can imagine. Keywords: Photography. Time. Aura. Instant. Vivian Maier.
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