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RAP INDÍGENA

Povos originários se apropriam do som negro para denunciar racismo, genocídio, destruição da natureza e o apagamento da sua história

por_ Kamille Viola | do_ Rio

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Recorde de desmatamento na Amazônia e de queimadas no Pantanal, destruição do pouco que resta na Mata Atlântica, terras indígenas crescentemente ameaçadas. Vivendo em aldeias tradicionais ou em cidades, cada vez mais rappers indígenas abraçam o gênero musical que é uma principais expressões da cultura negra hoje no mundo, denunciando o racismo sofrido, o genocídio dos povos originários, os ataques à natureza e o apagamento da sua história.

Nascida em Mirinzal (MA), Kaê Guajajara vivia com a família em terras não demarcadas, e, ainda na infância dela, por conta de conflitos com madeireiros, eles se mudaram para a Maré (Rio de Janeiro). Segundo o IBGE, 36,2% dos indígenas vivem longe das aldeias onde nasceram. Foi na favela carioca que ela teve contato com o gênero musical e integrou um coletivo de rap, Crônicos, que tinha negros angolanos e brasileiros em sua formação. “Na Maré, eu tinha muitas referências no rap, os meus amigos me levavam a rodas de rima, de dança, as várias culturas que se juntavam no hip hop”, lembra ela, que hoje vive com a filha e o companheiro na comunidade.

Em suas músicas, Kaê fala sobre situações vividas por indígenas em contexto urbano, entre outros temas. Já em carreira solo, em agosto de 2019, lançou seu primeiro EP, “Hapohu”. No início do ano, foi a vez do EP “Uzaw”. Em setembro, ela soltou o terceiro da trilogia: “Wiramiri”. Em suas músicas, mistura o português à sua língua materna, o Ze’egete. “A identificação de indígenas com o rap vem por ser um movimento de um grupo que precisa se expressar, contando as suas lutas do dia a dia, falando das suas vivências, sejam na aldeia ou na favela”, analisa.

Embora sua música tenha influência do rap e do funk, que cresceu ouvindo, em seu EP mais recente Kae trouxe uma sonoridade mais pop. Ela diz que não gosta de se prender a rótulos e que ainda está em busca de uma sonoridade única. “Já passei por tantos estilos que nem tenho como definir. Para 2021, pretendo lançar um álbum que vai falar bastante sobre a Kaê como artista na música”, adianta ela, que elogia os trabalhos dos rappers Brisa Flow e Wescritor, com quem fez um feat em seu EP mais recente, na faixa “Vênus em Câncer”, ao lado de Nelson D.

Werá Jeguaka Mirim, o Kunumi MC, cresceu na aldeia Krukutu, no bairro rural de Parelheiros, em São Paulo, com cerca de 500 habitantes, onde ainda vive com a mulher e o filho. Seu nome artístico é a palavra em guarani que deu origem a “curumim” em português. Filho de um dos primeiros escritores indígenas a publicar um livro, Olívio Jekupé, ainda criança começou a escrever e tem dois livros publicados: “Kunumi Guarani” e “Contos dos Curumins Guaranis” (que assina com o irmão, Tupã Mirim). Gravou dois discos, “My Blood is Red” (2017) e “Todo Dia é Dia de Índio” (2018). Ao lado de Criolo, gravou “Terra, Ar, Mar”, em 2019. Em maio passado, lançou o vídeo “Xondaro Ka’aguy Reguá (Forest Warrior)”.

Cantando em guarani e em português, ele combina elementos como reggaeton e violino indígena com o rap. Conta que foi o irmão quem lhe apresentou o estilo musical. “O povo negro criou o rap, que usa para se defender, e a gente pegou emprestado para fazer da mesma forma: se defender, lutar espirutalmente contra o sistema. O rap é um sentimento, é um desabafo que a gente faz também. Fico muito feliz por ter essa união”, comemora. ANO DIFÍCIL PARA A CAUSA Até aqui, 2020 tem sido um ano muito difícil para a causa indígena e a natureza no Brasil. Em abril, uma mudança na Funai derivou na permissão de ocupação e até de venda de mais de 200 terras indígenas pendentes de homologação. Em julho, houve um crescimento de 76% no número de incêndios ilegais em territórios indígenas em relação ao ano passado.

“Já é difícil ser um índio no Brasil, em todo lugar. Mais difícil quando se é um artista indígena”, diz Kunumi. “Mas o importante para nós é levar aos poucos a nossa mensagem ao mundo todo, falar que a gente tem direito de ser ouvido, que a gente sofre e que está lutando por uma causa que vale para todos: preservar a natureza.”

ANO DIFÍCIL PARA A CAUSA

Até aqui, 2020 tem sido um ano muito difícil para a causa indígena e a natureza no Brasil. Em abril, uma mudança na Funai derivou na permissão de ocupação e até de venda de mais de 200 terras indígenas pendentes de homologação. Em julho, houve um crescimento de 76% no número de incêndios ilegais em territórios indígenas em relação ao ano passado.

A área desmatada na Amazônia Legal foi de 10.129 km² (o equivalente a metade do Estado de Sergipe) entre agosto de 2018 e julho de 2019, de acordo com dados oficiais do Inpe. O Pantanal também sofre, com 20 mil dos 194 mil focos de incêndio registrados no Brasil de janeiro a outubro. Segundo o Ibama, mais de 90% dos incêndios na região foram ilegais.

OUÇA MAIS | As seis canções de “Wiramiri”, de Kaê Guajajara | ubc.vc/KaeG

VEJA MAIS | O clipe de “Xondaro Ka’aguy Reguá (Forest Warrior)”, de Kunumi MC | ubc.vc/KMC

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