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Mundo Hip Hop
Cultura nascida nos subúrbios de Nova York conquistou o planeta e, pela primeira vez, desbanca o rock nos Estados Unidos.
No Brasil, empreendedorismo e mistura de rap e outros sons — inclusive o sertanejo — catapultam artistas ao estrelato e criam uma cena que se esparrama pela moda e o estilo de vida
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por_ Roberto de Oliveira ■ do_ Rio e Alessandro Soler ■ de_ São Paulo
colaboração_ Lúcia Motta ■ de_ Nova York
Era uma vez um garoto que nasceu pobre na periferia de Nova York e queria mudar o mundo. Ele cresceu, apareceu e, de fato, mudou o mundo — pelo menos o da música. Depois de quatro décadas de existência e resistência, os gêneros que conformam a cultura hip hop se consagram como a primeira opção musical dos Estados Unidos, destronando o rock ’n’ roll e o pop. E isso não é pouca coisa.
Um estudo da Nielsen divulgado agora em janeiro mostrou que 24,5% de toda a música que se compra por lá são rap e outras variações do hip hop, além do R&B. O rock caiu para 20,8%, ficando em segundo lugar pela primeira vez em mais de seis décadas. No streaming, 29% são rap/hip hop/R&B, mesmo percentual de rock e pop somados.
“Foi o efeito (do megalançamento “More Life”, mais recente álbum do rapper e fenômeno musical canadense) Drake. Mas é também uma tendência que vem se consolidando nos últimos anos”, diz Maxwell Strachan, analista musical do HuffPost americano. O rap e os outros gêneros que compõem o hip hop parecem estar mesmo se tornando a sonoridade que melhor traduz o espírito jovem neste imenso país do Norte... e também no resto do globo terrestre.
DAS RUAS PARA O TOPO DO MERCADO
A cena hip hop (uma casa cujos “cômodos” são o rap, o grafite, a dança break, a discotecagem dos MCs e a moda) surgiu na década de 1970 nos bairros mais temidos de Nova York. Com fama de violentos, jovens negros e latinos sem perspectivas se enfrentavam e matavam ali, enquanto o poder público os abandonava à própria sorte. Percebendo o potencial criativo daquelas pessoas, um DJ iniciante — o hoje mundialmente famoso Afrika Bambaataa — reuniu os principais líderes de gangues e os pôs para chacoalhar (e criar e refletir e questionar o sistema) juntos. Hoje, não só minorias discriminadas são fãs do hip hop, mas pessoas de todas as classes. O estilo se espalhou por festas, roupas, vocabulário, artes visuais, cinema, TV, teatro. É como se o mundo tivesse cumprido o vaticínio de um famoso rap brasileiro: “seu filho quer ser preto, ah, que ironia”.
O empreendedorismo de alguns astros pode estar por trás do fenômeno de vendas no qual se transformaram o rap e os outros elementos do hip hop. O filme “Straight Outta Compton”, a história do extinto grupo californiano N.W.A. (Niggaz With Attitudes, ou Pretos com Marra, em tradução livre), dá uma pista de como o bom desempenho dos rappers nos negócios pode ter feito toda a diferença no salto que os levou do gueto para o topo do mercado do entretenimento. Eles se apropriaram do próprio trabalho e esnobaram — pelo menos a princípio — os contratos com gravadoras ou as equipes engravatadas de marketing. Investiram na relação com os fãs, no contato direto com suas comunidades.
O RAP E A ERA DIGITAL
O rap, como estilo jovem que é, se retroalimenta do sucesso na rede. O coletivo carioca 1Kilo, frequentemente no alto das paradas dos serviços de streaming e vídeo, é um exemplo perfeito disso. Assim como o rapper Filipe Ret. “Ter visualizações na internet é uma parte pequena da esfera de trabalho, mas, sem dúvida, a quantidade delas reflete o desejo do público pelo artista. E os contratantes precisam de artistas lucrativos”, raciocina Ret, com milhões de seguidores e uma audiência poderosíssima em quase todos os clipes que lança na rede.
Ele é dono da Tudubom Records, um selo que nasceu da necessidade de unir forças e habilidades. “ O trabalho na Tudubom é reflexo da nossa vivência. Facilita desde a troca de ideia até a grana gerada pelo canal. A loja é uma extensão do canal. É para os fãs terem a possibilidade de fazerem parte dessa história”, finaliza Ret, para quem o rap nacional nunca movimentou tanto dinheiro: “E isso é só o começo da brincadeira.”
Por aqui, essa atitude foi replicada desde as origens do estilo, ainda na década de 1980, primeiramente na periferia de São Paulo e, depois, nas quebradas de Rio, Baixada Fluminense, Brasília, Belo Horizonte ou Porto Alegre. Nomes como Sabotage, Racionais MCs, MV Bill, Emicida, Flora Matos, Thaide, DJ Hum, Negra Li, Afro-X, BNegão e muitos, muitos outros, trilharam seu caminho à base de shows nas periferias, misturas de estilos, mais recentemente o uso esperto da internet e das redes sociais e, claro, mensagens poderosas.
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Releia a entrevista com o DJ Hum publicada na edição 27 da Revista. ubc.vc/EntrevistaDJHum
Aí vieram a popularização para além das “fronteiras” dos subúrbios, a sincronização de raps em filmes e novelas, o licenciamento de nomes, o lançamento de marcas de roupas e acessórios, canecas, chaveiros, objetos em geral... Em outubro passado, só para citar um em muitos exemplos, o astro paulistano Rappin’ Hood se tornou um dos mais recentes a emprestar seu nome a uma coleção de moda urbana.
QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA
Um dos mais destacados rappers da atualidade no país, o brasiliense Hungria — 4,1 milhões de inscritos e mais de 800 milhões de visualizações de seus clipes no canal oficial do YouTube — é um símbolo deste novo momento. Com uma sonoridade eclética e flertes até com o sertanejo, ele chuta para lá os purismos e diz que atingir a elite não é demérito ou traição às origens; é questão de sobrevivência. “Nas baladas de baixo padrão ou alto padrão, todo mundo dança. As pessoas ficam presas mentalmente às questões originais. Claro que a voz da periferia é protesto, mas a gente tem coisa boa para ser falada também”, ele prega. “Eu canto rap por amor. Mas o reconhecimento e o retorno financeiro são importantes. Não temos que ser quebrados de grana para fazer o que fazemos.”
RESPEITA AS ‘MINA’
Não precisa nem de pesquisa. Basta olhar os lançamentos, as reportagens, os canais do YouTube para saber que o rap brasileiro tem mais manos do que minas na linha de frente. Apesar de ter no DNA a luta por direitos iguais em todas as instâncias, é comum ouvir raps que falam apenas com os manos ou assistir a clipes em que o papel das mulheres é corroborar o poder dos MCs machões, pegadores e milionários.
Algumas iniciativas, como o projeto “Homens do Hip Hop pela Não Violência Contra as Mulheres”, chamam os rappers para conversar sobre machismo e tentam conscientizá-los em questões que vão além da música. Enquanto isso, minas como Karol Conka, Flora Matos, Kmila CDD e Bebel Du Guetto não esperam cortesia masculina e metem o pé na porta para dizer que a visão feminina é necessária para que a cultura hip hop continue em crescimento.
Elas não estão sozinhas. Mulheres como Mikaelli Pinna, a Mika, de 26 anos, também querem parte desse bolo bilionário. Há nove anos no hip hop, Mika abriu uma microempresa e um estúdio de criação para estampar canecas, blusas, calças e outros produtos customizados com as cores do grafite. “Vi que alguns caras faziam roupas e vendiam camisas. Eram legais, mas enormes e direcionadas aos homens. Decidi criar a minha marca com roupas para o público feminino”, diz a grafiteira.
Coruja BC1
Coruja BC1, paulista de Osasco e outro fenômeno do rap nas redes, faz coro: “Cada artista deve lutar e buscar o que quer. Uns querem transformar vidas e denunciar injustiças, outros querem ganhar dinheiro e curtir. Eu quero transformar vidas, denunciar injustiças e, por que não?, ganhar dinheiro e curtir.” Para ele, a marcha do estilo ao topo da música e da cultura não tem volta. “A música rap é o exército mais poderoso que já existiu, e o rap nacional é mais alma e coração, mais sensibilidade do que o que vem de fora.”
Com clareza, talento e perseverança, ele já caiu no radar de Emicida — “Coruja BC1 é um cara do qual sou fã. Ô, menino talentoso, viu...”, escreveu numa rede social o veterano, um dos nomes mais importantes da cena no país e que sempre se cerca de rappers que têm o que dizer, como Drik Barbosa, Rico Dalasam e Muzzike, entre muitos outros que participam de suas músicas e clipes.
No Rio, as misturas e a atuação transversal também marcam o grupo 3030, 200 milhões de visualizações no YouTube e uma fusão interessante de rap e MPB. Eles gravam e produzem as próprias músicas, vendem os shows, editam os videoclipes e têm uma grife, que, segundo Rod, um dos vocalistas do grupo, é uma extensão do estilo de vida deles. LK, outro vocalista do 3030, diz que a tática dá resultado: “Foi o jeito que a gente achou para a nossa música chegar às pessoas.”
Ouça mais!
Uma playlist com hits de alguns dos principais nomes da cena rap nacional e associados da UBC. ubc.vc/PlaylistRAP