Literatura e Cultura EM TEMPOS DE PANDEMIA
FICHA TÉCNICA Título
LITERATURA E CULTURA EM TEMPOS DE PANDEMIA
Edição
UCCLA
Coordenação
Rui D’Ávila Lourido
Coordenação Técnica
Filomena Nascimento
Fotografia da Capa
@marjanblan do Banco de imagens Unsplash
Créditos fotográficos
Autores Alfredo Cunha Anabela Carvalho| UCCLA Ben Do Rosário Francisco Jr (VOA) Marlene Nobre Notícias de Coimbra Raquel Barata
Ilustrações
Henrique Castanheira
Design e paginação
Catarina Amaro da Costa
Revisão e edição de textos
Maria do Rosário Rosinha
ISBN
978-989-54881-0-0
Impressão
Imprensa Municipal – CML
Distribuição
Guerra e Paz Editores
Tiragem
750 exemplares
Depósito Legal 482102/21
Apoio
Câmara Municipal de Lisboa
Fevereiro 2021 [Os textos incluídos nesta obra, LITERATURA E CULTURA EM TEMPOS DE PANDEMIA, são da responsabilidade exclusiva dos seus autores. A presente edição segue a grafia do Acordo Ortográfico, exceto nos casos em que os autores quiseram manter a antiga grafia].
Literatura e Cultura EM TEMPOS DE PANDEMIA
Apresentação
A pandemia causada pelo vírus SARS-Covid-2 atingiu, de forma inesperada e dramática, toda a Humanidade, obrigando à adoção de planos de contingência, também adotados pelas cidades dos Países de Língua Oficial Portuguesa representadas pela UCCLA, que determinam constrangimentos de mobilidade e distanciamento. Temse revelado como uma crise de saúde pública com consequências sociais e económicas de enorme gravidade. A UCCLA não podia, logo no início da pandemia, deixar de fazer um apelo à reflexão sobre o papel da cultura no combate à Covid-19. Perante este flagelo, povos e países viram-se confrontados com novos desafios sociais e políticos sobre os quais importa refletir e encontrar novas respostas. Daí que, neste contexto, a UCCLA fez um apelo dirigido aos homens e mulheres da Cultura, em especial aos escritores, desafiando-os a contribuir para essa reflexão. O livro que agora se apresenta é o resultado desse nosso apelo.
De forma generosa, escritores conhecidos e menos conhecidos do grande público aderiram, enviando para a UCCLA as suas contribuições e reflexões que fizeram e que temos agora a honra de colocar em livro, conforme prometido. Fazemo-lo por entendermos que os homens e as mulheres de cultura contribuíram como o fizeram através da imaginação e do sonho. É que, como escreveu o poeta Sebastião da Gama, é “pelo sonho que vamos” na recriação da esperança no futuro. Sobretudo no período em que vivemos, tão nebuloso e incerto.
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Os nomes dos participantes que espontaneamente se prontificaram a colaborar com a UCCLA para que a publicação deste livro tivesse lugar, são referidos por ordem alfabética. Uma palavra final é devida a todas as famílias que viram desaparecer entes queridos vítimas desta pandemia, sem que, em muitos casos, pudessem manifestar-lhes o afeto sentido ou despedir-se deles. Porque temos confiança no futuro, não duvidemos que a Humanidade superará mais este desafio e que Portugal e os portugueses saberão, como sempre o fizeram, dobrar mais este cabo tormentoso.
Vítor Ramalho
Secretário-Geral da UCCLA
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Introdução
Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Desde os alvores da História e com a invenção da escrita, o homem pôde começar a registar não só indicações de teor mais ou menos pragmático, para a organização do seu quotidiano (como registos contabilísticos, listas de bens e de produtos), mas igualmente começou a registar as suas inquietações e emoções e indicações religiosas, artísticas ou literárias, de forma a sublimar e auxiliar a sua expressão espiritual e cultural. Os períodos históricos marcados por profundos cataclismos ambientais (erupções vulcânicas, terramotos, entre outros), disrupções sociais (como as motivadas por grandes guerras), ou catástrofes de saúde pública (como as pandemias), sempre provocaram alterações radicais no quotidiano das sociedades humanas. Se estes períodos de convulsão foram aterrorizadores, também foram muitas vezes potenciadores de inovação e da expressão criativa dos seres humanos, ainda que estas possam ter ocorrido muitos anos após estas catástrofes. Por exemplo, Mia Couto refere‑nos “Esse tempo [o da guerra em Moçambique] era demasiado cruel, demasiado próximo para que eu pensasse nesse drama em termos literários”. Essa expressão criativa pode desenvolver‑se de uma forma coletiva, revelando‑se como um movimento de expressão artística transformadora, ou expressar‑se a nível individual, num inventor ou artista específico, que transforma a sua perceção traumática num corte estilístico que transpõe em novas formas de expressão artística. Dependendo da sensibilidade do autor, essa criatividade pode também expressar‑se simultaneamente ao fenómeno pandémico, como podemos constatar pelos interessantes textos que publicamos neste livro. A COVID‑19 afetou de forma traumatizante todo o mundo e todos os países de Língua Oficial Portuguesa e, de
forma especialmente profunda, o setor cultural. A vocação cultural da UCCLA levou‑nos a sugerir aos escritores e outras pessoas ligadas à cultura em Língua Portuguesa que nos enviassem um texto em prosa ou poesia motivado pela pandemia ou sobre ela refletissem. Este livro é assim o resultado das contribuições de mais de 70 autores, a quem a UCCLA muito agradece. São cerca de 40 homens e 30 mulheres, naturais de sete países de língua oficial portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné‑Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe), a que se juntam a Galiza e Olivença/Espanha, Goa/Índia e Macau/China. De entre as mensagens veiculadas pelos textos aqui publicados, destacamos duas: a da esperança na capacidade de resistência à pandemia, como faz “o mais velho”, o decano dos poetas – Manuel Alegre, no poema que nos oferece, “Lisboa Ainda”: “… ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste e em cada rua deserta ainda resiste.”1 A segunda mensagem que realçamos refere‑se ao respeito pela ciência e ao espírito de missão e de abnegação, nas palavras enviadas por Mia Couto – “… agora sou apenas um cidadão que se junta à luta pela prevenção da epidemia. Faço parte da Comissão Técnica e Científica de Assessoria ao governo (de Moçambique) para a covid ‑19. O modo de fazer poesia, agora, é estar na luta pela defesa da vida e da verdade”.2 Consideramos fundamental a mensagem de respeito pela ciência e o incentivo à investigação, quando Mia Couto promove a noção de que o mal não é existirem vírus (pois fazem parte do mundo animal), mas sim a falta de sustentabilidade das nossas sociedades, bem como a carência de recursos investidos
Este excerto do poema de Manuel Alegre, escrito a 20 de março de 2020, reflete o radical confinamento da população de Lisboa. O autor quis que a sua contribuição para este livro fosse este poema, que pode ser lido na pág. 305. 2 Mia Couto autorizou‑nos expressamente a edição do texto, que apresentamos nas páginas 317. 1
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na educação e na ciência para o conhecimento e controle dos vírus e epidemias. Mia Couto refere que, durante esta pandemia, sentiu o impulso de reler A Peste, em que Albert Camus retrata uma epidemia fictícia. Esta obra foi o pretexto para Camus refletir sobre a condição humana, a sua imanente solidão, na angústia da busca incessante de cura, de liberdade e da impossibilidade de fuga ao seu destino. Os textos que ora damos à estampa, generosamente enviados pelos autores de língua portuguesa, inscrevem ‑se no contexto da pandemia do nosso século XXI, mas não são estranhos ao devir histórico e ao fluxo dos textos que no passado retrataram e refletiram sobre as anteriores doenças contagiosas, epidemias e pandemias. Neste sentido, será interessante reler alguns dos clássicos da nossa formação juvenil e revisitar alguns dos textos significativos que chegaram até à contemporaneidade sobre epidemias do passado ou doenças de proporções catastróficas, que por isso mesmo impressionaram a mente dos respetivos autores. Assim, destaquemos de Oriente ao Ocidente alguns textos: No Oriente, em especial na antiga China, as epidemias e graves doenças foram desde muito cedo analisadas, como na clássica obra fundadora da medicina chinesa – Huangdi Neijing3. Já um dos quatro célebres romances da literatura chinesa – o Shuihu Zhuan (The Outlaws of the Marsh – Os marginais do pântano) toma a peste, que eclodiu na época do imperador Ren Zong (1010/18–1063) e que desorganizou socialmente o império, como pretexto para uma lição moral, o reencontro com a sabedoria. Quer o panteão sagrado da China quer o do Japão possuíram deuses ferozes que desencadeavam doenças sobre os humanos. No caso da China – Xi Wang Mu, antes de se converter em deusa da sorte, fora a castigadora com doenças infeciosas; no Japão, os Oni eram os demónios responsáveis pelas doenças graves. Na literatura indiana, a tuberculose é referida como “yaksma” no Rig‑
Huangdi Neijing é um antigo texto médico chinês, considerado como a fonte doutrinária fundamental para a medicina chinesa por mais de dois milénios. É comparável em importância ao Corpus hipocrático na medicina grega ou às obras de Galeno na medicina islâmica e medieval europeia.
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veda, e como “balasa” no Atarvaveda, sendo neste último livro igualmente referida a lepra. Na Malásia, as doenças eram anunciadas pelo demónio Bajang. No Próximo Oriente tivemos várias civilizações com deuses responsáveis por infligir aos humanos a dor e a morte através de epidemias, como é o caso de uma das mais antigas civilizações do planeta, a civilização Suméria (entre os rios Tigre e Eufrates) com o deus Namtar; no antigo Egipto registados nos papiros; no Antigo Testamento, na Bíblia4, no Levítico e na Torá, encontram‑se inúmeros preceitos para a cura de doenças como a lepra e outras contagiosas. As narrativas islâmicas designadas de Hadith possuem referências à peste5. Em África são famosas as narrativas do povo Yoruba da Nigéria (fontes orais que passaram de gerações em gerações, pela voz dos mais velhos), que nos descrevem episódios de peste, como a que grassou no reino do deus Shango (dos trovões e relâmpagos), em resultado de desentendimentos entre Exu e outros Orixás. Exu é um dos Orixás/deuses mais importantes, mas também mais complexos, do panteão religioso Yoruba. Ele corporiza a mudança, as catástrofes imprevistas, mas simultaneamente é o deus mensageiro entre o deus supremo, os outros orixás e os humanos6. O livro sagrado do Islão – Al Corão – é um dos primeiros (surgiu na península árabe há cerca de 1300 anos) com difusão no Ocidente a propor frequentes medidas higiénicas diárias aos seus seguidores: “Se você ouvir um surto de peste em uma terra, não entre nela; mas se a praga eclodir em um lugar enquanto você estiver nele, não deixe esse lugar.” (Sahih Bukhari), “Quem está doente não deve ser colocado com quem está saudável.” (Sahih Muslim).7 No mundo Ocidental, o primeiro registo de uma pandemia de que temos conhecimento histórico é a conhecida por peste ateniense (crê‑se ter sido varíola ou febre tifoide), iniciada em 430 a.C., no decurso da guerra
“E feriu o Senhor os homens de Bete‑Semes, porquanto olharam para dentro da arca do Senhor, até ferir do povo cinquenta mil e setenta homens; então o povo se entristeceu, porquanto o Senhor fizera grande estrago entre o povo” (Samuel 1:6,19, A Bíblia Sagrada, 1981, pp. 287‑289). 5 Michael W. Dols, “Plague in Early Islamic History”, 174‑84 6 Lynch and Roberts, p. 43 7 https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos‑da‑fe/o‑islam‑as ‑pandemias‑os‑conselhos‑do‑profeta‑e‑a‑medicina‑dos‑imames 4
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do Peloponeso, na Grécia. Destacamos a modernidade da objetividade de Tucídides8 que, na História da Guerra do Peloponeso, descreve a gravidade das consequências da peste, referindo o caos: “Não havia memória de uma epidemia desta magnitude e com tão elevado grau de mortalidade. De nada serviram os físicos, ignorantes que eram da maneira adequada de tratar a doença. Ainda por cima, foram dos mais atingidos pela morte uma vez que eram as pessoas que mais vezes contactavam com os doentes. Nem houve arte humana alguma que conseguisse melhores resultados”9. O poder de observação do autor leva‑o a perceber o fenómeno da imunidade, que só muito mais tarde seria assimilado pela ciência: “...os que tinham recuperado da doença sabiam o que tinham experimentado e estavam confiantes na (sua) imunidade”, ajudando outros doentes, mas tal não evitou o desespero que conduziu à desestruturação social na cidade de Atenas (acima de tudo o respeito pelas leis foi posto de lado: seguros de que não iriam sofrer as consequências dos seus atos, os cidadãos caíram num hedonismo desesperado. Todas as coisas censuráveis que antes se faziam às escuras, faziam‑se agora às claras e a desordem era total). A morte de um terço da população no ano de 430 a.C. e a continuação da guerra muito contribuíram para o declínio da Democracia ateniense. Podemos ainda encontrar referências a epidemias em muitas outras obras literárias da antiguidade clássica, de que destaco os versos iniciais da Ilíada (século VIII a.C., atribuída a Homero), em Heródoto (484‑425 a.C., que foi considerado, pelo filósofo Cícero, o pai da História), onde é referido o alastrar de uma epidemia em Creta aquando da chegada dos guerreiros vindos de Troia (livro 7), e em Sófocles (497 ‑405 a.C., dramaturgo grego famoso pelas tragédias que escreveu), na peça Édipo Rei, em que a peste serve de ponto de partida para o seu enredo10.
Historiador, estratego e político grego, Tucídides (460 a.C.‑395 a.C), influenciado por Heródoto, descreveu a peste na sua monumental História da Guerra do Peloponeso. Nela utilizou, de forma precocemente moderna, rigor e método na busca de fontes fidedignas e baseando‑se igualmente na sua própria experiência da guerra entre Esparta e Atenas. 9 História da Guerra do Peloponeso, 2.47 10 E. Coughanowr, “The Plague in Livy and Thucydides”, pp. 152‑58. 8
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No Império Romano do Oriente, a peste na época de Justiniano (século VI d.C.) terá sido a primeira epidemia de peste bubónica e deu um golpe profundo na tentativa de reconstruir o império romano, mudando assim o rumo da história europeia. Segundo muitos historiadores, terá sido a causa da morte de entre um quarto e metade da população, entre 541 e 750. A varíola regressou ao Mediterrâneo nos séculos II e III, fustigando o império romano. Pensa‑se ter surgido na Índia (onde Sitala é, desde tempos imemoriais, a Deusa protetora), passado à China (durante a dinastia Han, c. 207 a.C.– 220 d.C.) através das Rotas da Seda, propagando‑se depois para a Eurásia. Só nos inícios do século XVIII a Europa Ocidental copia e desenvolve a prática de injetar o vírus vivo da doença em crianças, que era tratamento habitual na China e no Oriente Médio. Já no século XIX, a varíola surge no romance Nana de Émile Zola, vitimando a personagem principal. A própria cidade de Paris, cujos habitantes são retratados como estando doentes, está, tal como a personagem principal, prestes a perder definitivamente toda a sua beleza. Mas a maior mortandade da varíola seria espalhada pelos Europeus, no seu contato com os nativos do continente americano, a partir do século XVI, na chamada América Espanhola (tendo contribuído para a destruição das civilizações Asteca e Inca) e no Brasil (identificada em 1563 na Ilha de Itaparica). O Frei Toribio de Benavente (1482 ‑1568) escreveu, em História dos Índios da Nova Espanha: “quando a varíola começou a atacar os índios, tornou‑se uma pestilência tão grande entre eles, por toda a terra, que, na maioria das províncias, mais de metade da população pereceu…Morriam aos magotes como se fossem percevejos”11. Parte das populações ameríndias viria a ser dizimada por outras doenças levadas pelos Europeus (como a gripe, a malária, o sarampo e a varicela), o que facilitou a conquista do território americano e a destruição das civilizações autóctones.
Toribio de Benavente, O.F.M., igualmente chamado Motolinía, foi um missionário franciscano que chegou a Nova Espanha, em maio de 1524, tendo ficado conhecido como um dos famosos Doze Apóstolos do México e por ser o autor da Historia de los Índios de la Nueva España, iniciada em 1536, mas que só veio a ser publicada pela primeira vez em 1858. Teve depois inúmeras reedições e a edição crítica de 2014.
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Na Europa e na Ásia, a peste negra, ou bubónica, surgiu entre 1346 e 1353. A causa da doença parece ter sido uma bactéria12 transmitida por ratos, que terão viajado em navios mercantes genoveses vindos da Crimeia. A ausência de salubridade nas cidades italianas, primeiro, e no resto da Europa em seguida, favoreceu a sua rápida propagação como pandemia. Provocando sintomas de forte gripe com inchaço nos gânglios (bubões) e manchas negras na pele, a doença matou 2/3 da população da Europa e entre 75 a 200 milhões de pessoas no mundo. A peste negra revelou a mais grave das consequências que caracterizam as pandemias – a rutura social, seja pelo esmagador número de vítimas, seja por isolar ou restringir a comunicação de parte da população com o exterior. É neste contexto que surge na República de Veneza o termo “quarentena”, obrigação das pessoas cumprirem quarenta dias de isolamento em casa. A peste negra, que persiste ainda hoje em países sem salubridade adequada, como Peru, Congo e Madagáscar, tem vacina e o tratamento com antibióticos é eficaz. Na literatura europeia de meados do século XIV foi determinante o Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313‑1375) que, influenciando a literatura nos finais da Idade Média, representou a sua catarse, sugerindo uma nova ordem, com uma preocupação antropocêntrica, e constituindo ‑se como prenúncio do Renascimento. “A crueldade do céu, e talvez a dos homens foi tão rigorosa que a Epidemia grassou de Março a Julho com tanta violência, uma multidão de doentes foi tão mal socorrida, ou mesmo, em consequência do medo que inspirava às pessoas saudáveis, abandonada numa indigência tal, que se calcula com segurança em mais de cem mil o número de homens que perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença”13. Pessoalmente, tive o prazer de frequentar, como investigador, a “Villa Boccaccio”, em Fiesole, numa das colinas de Florença, onde, segundo a tradição, Boccaccio se refugiou com um grupo de amigos para fugir à peste e onde escreveu o Decameron. Enquanto para Boccacio a peste negra tinha uma expressão de radical
Yersinia pestis Giovanni Boccaccio, Decameron, na tradução de Urbano Tavares Rodrigues, pp. 9‑12
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alteração social, que ele sublima colocando o Homem no centro das preocupações e dando expressão a prazeres humanos, para o seu contemporâneo Petrarca (1304 ‑1374), a dor angustiante mantém‑se num plano individual. Mas a peste foi, para ambos, a grande inspiração para as suas obras principais14. Como exemplo da influência da peste na literatura portuguesa, destaco dois escritores, Fernão Lopes (1380/90 ‑1460) e Gonçalo Fernandes Trancoso (1520‑1596). Na Crónica de D. João I, o povo português é erigido à figura de herói coletivo que triunfa sobre o mal (os Castelhanos), os únicos que Fernão Lopes coloca a serem castigados pela peste: “Começou de se atear a pestelença tão bravamente em eles, assim per mar como per terra, que dia havia hi que morriam cento, e cento e cinquenta, e duzentos […] E era gram maravilha, per juízo a nós não conhecido, que em fervor de tamanha pestelença nenhum dos fidalgos portugueses que hi andavam, ou prisioneiros ou de outra qualquer guisa, que nenhum não morresse de trama nem era tocado de tal dor”15. Outra arrepiante e dramática experiência é a descrita por Gonçalo Trancoso: “Ficando eu nesta cidade de Lisboa o ano de 1569, a tempo que por causa da peste […] quase todos os seus moradores a despovoaram, vi tantas coisas que provocam os ânimos e a tristeza, que quem quisera escreve‑las teria matéria para escrever um grande e mui lastimoso livro […], que perdi no terrestre naufrágio uma filha de vinte e quatro anos, que em amor e obras me era mãe; um filho estudante; um neto moço do coro da sé. E, para mais lástima, perdi a mulher, que por suas virtudes era de mim amada, o que foi causa de grande tristeza”16. Se Trancoso foi influenciado claramente pelo estilo narrativo do Decameron (como notou João Palma‑Ferreira), já as lições morais a retirar são muito dissemelhantes. Onde Boccaccio era por vezes profano, eminentemente Humano
sparsa fragmenta anime no “libro di rime” (Citando o artigo “Boccaccio, Petrarca e i cronisti: immagini della peste” de Ilaria Tufano) Petrarca, Francesco. Le Familiari : [libri I‑XI]. Urbino: Argalìa, 1974 15 Cronica del‑Rei Dom Joham I, Vol. XXI, pp. 10 e 172 16 Contos E Histórias De Proveito Exemplo, p. 222 14
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e aparentemente imoral, o autor português era moralista e enaltecedor da fé e da segurança que encontra na força de Deus. As pandemias foram e são um dos fenómenos que mais traumatizam e impressionam a sensibilidade e a memória das sociedades, pelo que não podiam deixar de influenciar todas as formas de o ser humano se exprimir, seja pela escrita, como temos vindo a analisar, seja por qualquer outra forma artística. Em especial a peste negra, com o seu cortejo de horrores derivados do flagelo da morte, do caos, do irracional e do inexplicável, não podia deixar de afetar “[…] o universo artístico, com os dragões alados, as quimeras cuspindo fogo e os animais híbridos que Jerónimo Bosch pintará para aumentar o terror da Tentação de Santo António. […] A morte sempre presente, alimenta uma nova corrente artística que, para além do século XV, se prolongará até ao coração do século XVI […] Desenvolve‑se a arte macabra. A morte do Cristo e a descida ao túmulo são os temas sistematicamente explorados […] À procura do belo sucede‑se a do trágico […] Raramente encarada pelos artistas italianos a morte personificada irrompe na arte francesa, flamenga e germânica. Os primeiros gravadores em madeira exploram na Alemanha o tema brutal do espectro armado da foice
O triunfo da morte. Pieter Bruegel, o Velho, Museu do Prado, Madrid, óleo sobre madeira, 117 x 162 cm
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ou do cadáver comido pelos vermes enquanto pintores e escultores multiplicam através da Europa as danças macabras, onde se vêem indiferentemente encadeados, numa roda sem fim, os nobres e os burgueses, os reis e os camponeses e, sobretudo, os clérigos”17. A nível da pintura, poderíamos referir “O triunfo da morte” de c. 1562, de Pieter Bruegel, como um dos exemplos mais impressivos de uma pandemia – a peste negra –, inspirado no Apocalipse, no Eclesiastes e na cultura popular medieval, refletindo a reação contra a repressão espanhola dos protestantes, na Flandres. Neste âmbito, gostaria de destacar o contributo de Henrique Castanheira (escritor vencedor do Prémio UCCLA de Revelação Literária – Novos Talentos – Novas Obras em Língua Portuguesa, 2020) para este livro, com 16 imagens por si criadas em resposta a estes tempos de pandemia. Sendo eu um observador atento, mas leigo em crítica de arte, gostaria contudo de destacar, nas imagens de Castanheira, as cores vibrantemente intensas e as formas singularmente fantasiosas. A tensão que elas permitem percecionar entre o terror do desconhecido, da ameaça constante da contaminação e da morte. Da metamorfose dos seres e dos seus hábitos subitamente interrompidos, no retratar de máscaras e no sublimar da dor. Regressando à literatura e querendo referir‑nos à desenvolvida na América sob influência de surtos epidémicos, selecionámos Frei Diego Lopez de Cogolludo (1613‑1665), considerado o primeiro cronista a fazer uma descrição inequívoca dos sintomas da remissão da febre amarela no Brasil: “Na maioria, no terceiro dia, a febre parecia ceder totalmente; diziam que já não sentiam dor alguma, cessava o delírio, conversavam com juízo, porém não podiam comer nem beber coisa alguma, e assim duravam outro ou outros dias e, dizendo que estavam bons, expiravam”18.
Favier, pp. 121‑125. Citação a partir de Carlos Manuel Martins, “Peste e Literatura: a construção narrativa de uma catástrofe”, p.58 18 A febre amarela é viral, causada pela picada do mosquito Aedes aegypti contaminado pelo vírus flavivírus, e foi um grave problema de saúde pública no passado mas, hoje, com os avanços da medicina (vacinação) reduziu muito o seu perigo. Cogolludo foi igualmente o autor da Historia de Yucathan, Madrid, 1688. 17
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Sem ser de origem ocidental, assinalamos o manuscrito maia de Chumayll, que igualmente se referiu à febre amarela quando registou: “Ocorreu vômito de sangue começando a morte para nosso povo no ano de 1648”. Avançamos agora para o século XIX para referirmos o romancista brasileiro Machado de Assis (1839‑1908) que, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, coloca duas diferentes perspetivas sobre a febre amarela nas suas personagens (Brás Cubas assume a inutilidade do sofrimento e da morte sem racionalidade – “não cheguei a entender a necessidade da epidemia” e Quincas Borcas defende a utilidade biológica – “explicou‑me que as epidemias eram úteis à espécie”)19. De forma a abreviar esta viagem pelas repercussões sociais e literárias das epidemias vamos, sinteticamente, assinalar que a cólera teve em 1817 um efeito pandémico nas cidades de grande concentração demográfica, sem condições de salubridade, decorrente da Revolução Industrial. Nos séculos XIX e XX registaram‑se inúmeros surtos epidémicos com centenas de milhares de vítimas, segundo a OMS. Contudo, presentemente, a cólera é mais frequente nas regiões mais pobres do globo. Quanto à chamada “gripe espanhola”, ou “mãe das pandemias”, foi causada pelo vírus da Influenza A subtipo H1N1 e como epidemia/pandemia alastrou pelo mundo entre 1918 e 1920. É, no entanto, importante registar o fator de preconceito associado a cada pandemia e o aproveitamento político abusivo que habitualmente lhe está associado. Se não, vejamos, segundo a investigação científica comummente aceite, esta gripe surgiu, com maior probabilidade, em campos militares dos EUA e foi com a deslocação destes para a Europa, durante a Primeira Guerra Mundial (1914‑1918), que a doença se espalhou. Esta doença foi chamada “gripe espanhola” porque a Espanha, estando fora da guerra e não havendo censura nesse período, foi o primeiro país a noticiar os casos da infeção, pois a censura impedia a divulgação das infeções existentes nos outros países. A infeção provocava os sintomas de uma gripe forte e desencadeou reações semelhantes
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às do coronavírus. Após a pandemia, outras formas de gripe surgiram a partir de variações do vírus H1N1 – a mais recente e a primeira pandemia do século XXI foi a gripe suína, identificada no México em 2009. Em pouco tempo, alastrou‑se a todos os continentes e foi inédita por levar a uma quarentena global. A vacinação é hoje a forma mais eficaz de prevenir as gripes e suas complicações. A SIDA20 foi, das epidemias mais recentes, a que teve maior impacto social e psicológico e a que motivou maior preconceito e discriminação social. Foi identificada nos anos 1980 nos EUA e expandiu‑se pelo globo até hoje. A SIDA, causada pelo HIV21, afeta o sistema imunológico e, com recurso a antirretrovirais, pode transformar‑se numa doença crónica. Só com o avanço do conhecimento científico foi possível reduzir o preconceito e a discriminação social. Em jeito de notas finais gostaria de referir: Em épocas históricas sem epidemias, é habitual um certo fascínio pelas narrativas sobre pandemias, o que se explica pela dificuldade de um leitor vivenciar no seu quotidiano real, a uma certa distância temporal, o terror, a desordem generalizada, a doença inevitável e a morte certa. No entanto, ao longo da história, as epidemias foram sendo descritas e explicadas de formas muito diferentes, segundo a época, o espaço e o contexto sociopolítico e mesmo segundo os interesses individuais do autor. Encontramos explicações de cariz religioso, em que o surgimento de uma epidemia é atribuído ao mau comportamento da população que, por ser pecadora, é penalizada com o castigo divino da ira de um deus inflexível (ex: na Bíblia, na Torá,…). Explicações de caráter discriminatório contra comunidades, ou grupos étnicos minoritários (como os judeus, na Idade Média, que foram um bode expiatório da peste em várias regiões, servindo essa pretensa culpa de pretexto para serem espoliados e muitas vezes eliminados.
Síndroma da Imunodeficiência Adquirida Sigla em inglês do Vírus da Imunodeficiência Humana.
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O mesmo aconteceu aos ciganos, por desconhecimento dos seus diferentes costumes e cultura). Com o desconhecimento da diversidade de tradições, de culturas, e com a desinformação, é sempre mais fácil culpar “os outros” como agentes contaminadores. Foi assim que o novo coronavírus, o SARS‑Cov‑2, se tornou motivo para manifestações de racismo e xenofobia contra chineses e comunidades asiáticas em países ocidentais, e despertou ou encorajou forças de carácter fascizante na vida política europeia, e o apelo ao afastamento e/ou confinamento de grupos étnicos minoritários e marginais (como a comunidade cigana), voltou ao de cima. Também verificamos aproveitamentos de caráter mais ideológico/político, de forma a favorecer um grupo social, uma cidade ou nação (sobre o cerco de Lisboa, escreve Fernão Lopes que a peste grassou entre as tropas espanholas mas, estranhamente, nem um único português contraiu a doença). Por outro lado, temos na pandemia de COVID‑19 o desenvolvimento de grupos negacionistas das explicações científicas (habitualmente conotados com movimentos politicamente retrógrados e religiosos). Sabendo, pela experiência histórica (como a peste ateniense e a gripe espanhola, entre outras), que o local onde um vírus é identificado pela primeira vez, não significa, automaticamente, que foi nesse local que o vírus teve origem e se desenvolveu pela primeira vez, entre humanos. Assim, para evitar estigmatizações, a OMS decidiu utilizar uma designação da doença – COVID ‑19, que não remetesse para uma localização geográfica específica. Mas a administração de Donald Trump utilizou deliberada e sistematicamente a designação de “vírus da China”, para fragilizar e atacar um parceiro político e concorrente económico. Quase todas as obras históricas com narrativas sobre pandemias que referimos têm como elemento comum o registo da desorganização e rutura social e, muitas vezes, da alteração da ordem estabelecida nessas sociedades. O medo da doença e da inevitável morte e a falta de respostas dos poderes instituídos levou frequentemente ao caos, ao isolamento e a transformações sociais, económicas e políticas radicais. Por exemplo, a peste bubónica foi, na Europa, um dos fatores que impulsionaram a passagem UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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do feudalismo para um regime mais mercantil da economia. A radical diminuição da população conduziu à redução e carência da mão de obra, anteriormente na miséria, que passou a poder exigir melhores condições e alterações de estatuto. Culturalmente, impulsionou o Humanismo e o Renascimento. Podemos igualmente falar da varíola como tendo fragilizado os impérios e poderes autóctones no continente americano, facilitando a sua conquista pelos colonizadores. Recordemos que a febre amarela debilitou as forças ocupantes francesas, facilitando a sua expulsão do Haiti no século XIX. Uma consequência destas doenças, não muito falada, é a alteração do povoamento. É frequente, durante os períodos de pestes e outras epidemias, a retração urbana e mesmo o despovoamento, acompanhado do autoisolamento das elites e das classes médias nas zonas rurais. De uma forma genérica, como a evolução histórica tem demonstrado e os epidemiologistas vêm afirmando de há muito, as epidemias/pandemias são racionalmente previsíveis e vão continuar a ocorrer. Como Mia Couto igualmente refere, recorrendo à sua formação como biólogo: “… os vírus são os grandes maestros da orquestra da Vida (…) Nós somos feitos a partir deles. Os mamíferos não seriam capazes de desenvolver placenta se não tivessem incorporado geneticamente esses elementos virais. Falo de tudo isso porque essa pandemia não será a última. Já estávamos avisados que viria algo parecido. E ficamos à espera, embevecidos com nosso poderio tecnológico e com a ilusão da nossa omnisciência…”. A evolução natural dos agentes infeciosos transforma numa inevitabilidade a evolução das velhas em novas estirpes, ou o aparecimento de novos vírus e bactérias (que se apresentam como multirresistentes aos atuais antibióticos e para os quais o corpo humano ainda não criou imunidade). Como fator promotor agravante, o nosso planeta sofre sob a imparável deflorestação e redução e destruição dos habitat naturais das espécies (fauna e flora). Privada do seu habitat, o seu ecossistema destruído, a fauna selvagem aproxima‑se cada vez mais dos aglomerados humanos, transportando consigo agentes infeciosos, como os vírus Ébola e Zika, até aí confinados em zonas não habitadas. A probabilidade de infeções e epidemias é consequência lógica da ação destrutiva do ser humano. .22
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Outras características associadas às epidemias, nomeadamente com a gripe espanhola ou com a COVID‑19, resultantes do medo e da inexperiência, são a negação e a confusão, tanto por parte das autoridades públicas, que demoram a admitir a emergência, quanto pelas populações, que tendem a resistir a medidas de proteção da saúde limitadoras dos hábitos e dos direitos individuais (como obrigatoriedade da lavagem frequente das mãos, da utilização de máscaras e do isolamento/confinamento dos infetados). Não deixa de ser surpreendente constatar que, ao longo da história, sendo sempre as mesmas as medidas de proteção, tão frequente e estranhamente essas medidas tardem a ser tomadas como obrigatórias para limitar a propagação da doença epidémica (recordemos as orientações contraditórias a propósito da utilização de máscaras). Por outro lado, das pandemias surgiram igualmente elementos muito positivos como o terem motivado avanços na medicina e na saúde pública; a cólera e a varíola, por exemplo, nos séculos XIX e XX, deram a cientistas como Louis Pasteur e Norbert Hirschhorn o estímulo para desenvolverem substâncias hoje essenciais no combate a doenças, como soros e vacinas; e a COVID‑19 desencadeou a investigação e produção, em tempo recorde, de vacinas, algumas das quais inovadoras mesmo no seu método e tipologia. Para além de motivar, pela primeira vez, uma resposta conjunta da União Europeia para a compra de vacinas e para um inovador programa de apoio financeiro aos países membros. É importante a progressiva consciencialização das sociedades de que para problemas globais só soluções globais podem ter êxito. Como a consciencialização de personalidades influentes a nível mundial, como no caso da proposta de Bill Gates de a comunidade internacional dever encarar, conjuntamente, a defesa das futuras pandemias, como uma ameaça de guerra, investindo na investigação científica como investiria em armas e criando “uma força de reação rápida – os bombeiros da Pandemia”, pronta a atuar contra novas epidemias 22.
https://www.dn.pt/internacional/bill‑gates‑diz‑que‑mundo‑deve‑preparar ‑proxima‑pandemia‑como‑se‑fosse‑uma‑guerra‑13286378.html?utm_source=push&utm_medium=mas&utm_term=13286378 (consultado em 28‑01 ‑2021).
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Gostaríamos de concluir agradecendo uma vez mais aos escritores e autores que generosamente responderam ao apelo da UCCLA, destacando o espírito criativo patente nas suas contribuições. Bem como agradecer a toda a equipa da UCCLA envolvida. Esta obra, que reúne os textos recebidos, para além da originalidade do seu conteúdo, irá permitir a sociólogos e outros estudiosos estudarem as perceções de um número significativo de autores de todos os países e de muitos dos territórios que ainda hoje utilizam a Língua Portuguesa.
Rui Lourido
Coordenador Cultural da UCCLA, Historiador
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– Levenstein, Jesica,”Out of Bounds: Passion and the Plague in Boccaccio”s Decameron”, in Italica, 1976.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
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Máscara de Teatro Grego,
de Henrique Castanheira Aguarela e lápis 36 x 28 cm | 2020
Ensaios
Contos
Poesia
Reflexões
autores A. Pedro Correia | Angola-Portugal Adela Figueroa | Galiza-Espanha Afonso Dias | Portugal Águeda Lopes “Vanny Kaya Lopez” | Cabo Verde Alda Barros | São Tomé e Príncipe Alfreda Pinto | Portugal Amanda Lopes | Brasil Amosse Mucavele | Moçambique Ana Ferreira da Silva | Portugal André de Soure Dores | Portugal
Henrique Castanheira | Portugal João Fernando André | Angola João Nuno Azambuja | Portugal Joaquim Saial | Portugal John Bella | Angola Jorge Castro | Portugal José Carlos Matias Portugal-Macau
José Luís Hopffer Almada Cabo Verde
José Luís Mendonça | Angola
Andreia Tavares de Sousa
José Luiz Tavares | Cabo Verde
Cabo Verde
José Nascimento | Brasil
Antonino Vieira Robalo
José Pinto | Portugal
António Carlos Cortez | Portugal
Juvenal Bucuane | Moçambique
Cabo Verde
Antonio Carlos Secchin | Brasil António Carvalho de Miranda
Brasil
António Pascoal | Portugal Any Delgado | Cabo Verde Carlos Nelson Sebastião “Dadi Ngongo” | Angola Concha Rousia | Galiza-Espanha Delmar Maia Gonçalves Moçambique
Dina Guita | Moçambique Dorivaldo Manuel | Angola Eduardo Naharro-Macías Machado Olivença-Espanha Ernesto Dabo | Guiné-Bissau Ernesto Vazquez Souza Galiza-Espanha
Fernanda Hauptmann | Brasil Fernanda Nogas | Brasil Fernando Costa | Portugal
José Pires Laranjeira | Portugal Kátia Casimiro | Guiné-Bissau Lídia Jorge | Portugal Luísa Fresta | Angola-Portugal Madalena Brito Neves | Cabo Verde Madalena Mira | Portugal Manuel Alegre | Portugal Manuel S. Fonseca | Portugal Marciano Gualberto Nascimento | Brasil Maria Clara Costa | Portugal Mia Couto | Moçambique Olinda Beja | São Tomé e Príncipe Orlando Castro | Angola Ozias Filho | Brasil Paulo Coutinho | Portugal-Macau Paulù Salmoura | Cabo Verde Regina Correia | Portugal–Angola Sérgio Fernandes | Angola Sofia Delgado | Cabo Verde
Filipa Vera Jardim
Sônia Barreto Freire | Brasil
Moçambique-Portugal
Suélen Dominguês | Brasil
Gabriel Baguet | Angola
Timóteo Papel | Moçambique
Germano Almeida | Cabo Verde
Valentino Viegas | Goa-Portugal
Glória Sofia | Cabo Verde
Vasco Pinto Leite | Portugal
Goretti Pina | São Tomé e Príncipe
Viviane de Santana Paulo | Brasil
Guilherme Valente | Portugal
Yao Feng | China-Macau
Hélder Simbad | Angola
Zetho Cunha Gonçalves | Angola
A. Pedro Correia Angola-Portugal
A. Pedro Correia nasceu em Angola, em 1961, e ali residiu até 1975. Vive presentemente na cidade de Lagos. Tem nacionalidade portuguesa. É artista plástico, dedicando-se especialmente à escultura, à criação de objetos tridimensionais e à área de instalação multidisciplinar. Tem obra dispersa por diversos países. Participou em residências artísticas em Portugal, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe. O seu livro PRAÇAS venceu o Prémio Literário UCCLA – Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa, 2019.
O Discurso
Disporia de três minutos e meio para dizer aquilo, talvez de quatro com o beneplácito do presidente. Por uma vez, desde que estava na política, ia falar por si, apenas por si, guiado pela sua cabeça, com o coração nas mãos, como os discursos dirigidos ao povo deveriam realmente ser. E com coragem! Coragem, bravura, espírito de luta, sentido de estado, precisamente o que o momento exigia. O partido? O partido que se lixasse, as regras, a fidelidade, os votos, tudo isso era agora menor, irrelevante face à guerra que se travava. Temos uma longa tradição de homens lúcidos, pensou, a Renascença, o Iluminismo, as Luzes, a Civilização, a Modernidade, a própria cabeça de Maria Antonieta para demonstrar que o mundo não se compadece com meias-tintas. Isto ia discorrendo o deputado perante o papel em branco, o mesmo em que, à medida que a caneta avançasse, fixaria para a História tamanhas resolução e clarividência. Habitualmente, escrevia as intervenções ao computador, mas agora salvar-se-ia um documento que o seu próprio punho assinaria e a posteridade guardaria. Haveria que cuidar do estilo. Frases simples que o povo entendesse. Defender-se-ia do kitsch e da pompa pretensiosa em que tantos, por mera vaidade e falta de humildade, caem. Após os habituais salamaleques, Senhor Presidente, Senhor Primeiro-Ministro, e tudo isso, falaria para os cidadãos. A primeira frase seria, portanto, “Estimado Povo Português”, tudo com maiúsculas. Estimado? Pensando bem, talvez não fosse acertado. Demasiado distante, formal, pouco amor implícito. “Amado Povo Português”. Hum, excessivamente próximo, .31
| A. Pedro Correia
piegas até, para um país como este. Os portugueses, ao contrário de outros, não andam I love you para cá, I love you, para acolá, gostam de gatinhos fofinhos mas rejeitam certas melices. “Caro Povo Português”. Parecia bem. Valorizava, não embaratecia a gente, era uma fórmula ajustada. Não seria uma abertura extraordinária mas a parte substantiva, o sumo do discurso, viria a seguir. O sumo, a visão do estadista perante a pandemia, a salvação nacional, a humanidade contra a brutalidade da natureza, a força que dissipava o desalento, a recusa do medo, a resposta final perante o desconhecido. Ficaria assim. A segunda frase? Obviamente “A hora é grave.” Ficava tudo dito e convocava as atenções. Nas entrelinhas, quem entendesse, perceberia que se apelava à acção, à união, à resistência, até. Mas, a hora? A hora, assim dito, poderia confundir-se com sessenta minutos e, sessenta escorreitos minutos raramente são decisivos para a História. Sugeria uma transitoriedade que retiraria ênfase ao propósito. Mas, calma!, era preciso não confundir transitoriedade imediata com derrota definitiva. Havia uma luz ao fundo do túnel, uma vitória por alcançar, uma onda de fundo por levantar. A História não guarda discursos que desdenham a esperança. “O momento é grave”? Igualmente passageiro, vai-se a ver e psst, já era. Escolheria entre “situação” e “circunstância”. O povo, não se cansava de o repetir aos colegas de bancada, não é burro e entenderia. Como se estivesse no hemiciclo, declamou o que escrevera:
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O Discurso |
Caro Povo Português, A circunstância é grave. Nada a apontar, a prédica prometia e estava esclarecido o contexto. O contexto, essa realidade tantas vezes submetida à ideologia e aos interesses imediatos, precisamente o que o discurso obliteraria. A seguir, portanto, viria o apelo que os anais registariam. Original. Único. Citável. Apreensível pelas criancinhas nos seus bancos de escola. Sim, porque ninguém negaria que estamos perante um momento único, perdão, uma circunstância única na História. O mundo parara como não havia memória, confinara-se, fechara-se a sete chaves. Liga-se a televisão e escutamos o silêncio continental da China, entram-nos pelos olhos as ruas desertas de Madrid, testemunhamos os corredores entupidos dos hospitais nova-iorquinos, observamos os caixões amontoados em Milão e não há quem aponte uma direcção na continuação da ponta do seu dedo, não vemos um Vasco da Gama afrontar oceanos inóspitos, um Magalhães encontrando a saída num mar de dúvidas. Daí a necessidade de um discurso motivador. Daí a urgência deste discurso. E, por tudo isso, havia que prosseguir. “Temos de nos unir” parecia perfeito. Não soava como “Temos de caminhar juntos” que apelava ao espírito de manada, “Só temos um caminho” sugeriria memórias maoístas que urgia evitar nesta hora, perdão, circunstância, “Somos uma grande Nação” seria acusado de salazarento e dividiria, “Juntos venceremos” estava fora de questão e desuniria. Nada de facilitações, portanto. Estava o deputado perante um caminho sem saída quando lhe ocorreu que poderia continuar a frase anterior. Um ovo de Colombo que fazia sentido para aqui trazer. UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| A. Pedro Correia
Não o ovo, bem entendido, mas Colombo, esse herói de quem, passados quinhentos anos, a História ainda guarda segredos e mistérios penumbrosos. Assim sendo, teríamos: Caro Povo Português A Circunstância é grave, mas temos mil anos de História. Exactamente! Camões, o próprio, talvez o dissesse com maior lirismo mas nunca com maior propriedade. Além disso, alguém teria de o vincar, os tempos não estão para líricos. Viessem de lá os grandes oradores do passado, os gregos, os troianos, os romanos, os… enfim, viesse quem pudesse contrapôr e rapidamente desistiria. Bom, resumindo, se a hora é grave, se temos mil anos de História, a próxima frase, para ser forte, pode condensar-se numa palavra. “Sobreviveremos”. Sobreviveremos? E os mortos? As famílias dos mortos? E a superação? A entreajuda? A solidariedade? “Vamos resistir”. Boa, bem pensado. E, ainda assim… Resistir é passivo. É estar aqui e esperar que o inimigo tome a iniciativa. “Vamos vencer”, aí está. Não importa que haja baixas, venha o que vier, alguém sobreviverá, alguém vencerá. Aqui estão duas palavras que sintetizam tudo, duas palavras que o futuro, por traiçoeiro que seja, jamais desmentirá. A esperança, portanto, a confiança na vitória. E isso dispensaria acrescentos inúteis, meros penachos na alocução. As questões hospitalares, o desemprego, a crise, as falências, os outros deputados que se lhes referissem. Aliás, analisando, esse tipo de referências seria depressa ultrapassado, rapidamente se veria datado e atirado para o esquecimento. .34
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O Discurso |
Aqui chegado, tanto havido cogitado e sopesado, nenhuma outra palavra mancharia a sua declaração. O essencial, o mais profundo, o imarcescível brilhava agora no papel, limpo, claro, sem necessidade sequer de riscos ou correcções. Um pensamento elucubrado de cabo a rabo sem que se lhe adivinhassem hesitações. Ou dúvidas. Ou incertezas. Perante isto, não fosse macular o original, assinou, pondo no acto toda a concentração. E foi assim munido que fez o discurso que a História, em não se distraindo, preservará. Talvez não já, é sabido que a História, a que permanece, colhe olhando a partir do futuro. Levantou-se, ajeitou a gravata, apertou o botão do casaco e procurou não exagerar na entoação, não soasse a falsete. Havia algo de perverso nestes discursos de estado, o valor exacto das palavras, a densidade das ideias, o estilo, tudo com peso e medida. Caro Povo Português, A Circunstância é grave, mas temos mil anos de História. Vamos vencer. Ufa, não lhe tremera a voz, não titubeara. Não se ouviram aplausos mas os colegas estariam a digerir a profundidade da declaração e da oposição não se esperaria admiração que ultrapassasse o tacticismo. Sentava-se gozando o triunfo quando o presidente o interpelou: – Informo-o, senhor deputado, de que ainda dispõe de três minutos e cinco segundos se pretender utilizar o seu tempo de forma útil.
* O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Adela Figueroa Galiza - Espanha
Adela Figueroa Panisse é bióloga (Professora reformada, Catedrática de Biologia-Geologia), escritora, ativista no âmbito da Ecologia, da Educação e da normalização da língua galega. Publicações (poesia): Vento de Amor ao Mar, 2005, Xanela Aberta, 2007, Memoria de Pés Sem Sombra, 2016. Teatro infantil: O Misterio da Escada Interior, 2014. Pingas (Premio 2018 Ass. Cultural O Facho). Contos para Crianças: O Rei da Floresta (livro-disco, relatos e canções, 2012), Cloe a Amiguinha das Flores (livro-disco, 2017). Relatos de mulheres: Madeira de Mulher (2010), Mulher D’Água (2018). Numerosas publicações coletivas de poesia no Brasil, Galiza, Espanha. Em 1987, participou na primeira reunião do Acordo da Ortografia Simplificada, convidada pela Academia Brasileira de Ciências e Letras, e tem participado em diferentes encontros de Educação Ambiental na Lusofonia (Santiago, Aveiro), representando a ADEGA (Associação para a Defesa Ecológica da Galiza), de que foi cofundadora e Presidente (2006-2010). Na atualidade, é Presidente da Fundação Eira (Para a recuperação dos saberes populares e do património cultural e ecológico da Galiza).
A Terra... pouco se importa com as nossas torpezas A invasão dos nossos ecossistemas por um organismo novo, a COVID-19, domina toda nossa vida. Os informes mais recentes dão para Galiza, a 3 de abril, 5219 casos com uma taxa provável de contagio de 296 casos por 100.000 habitantes, que é muito alta. Mas para o ecologismo, a Terra, como um grande sistema integrado, está no centro do problema. Terra e vida mantêm um namoro eterno e intenso que dura mais de 4000 milhões de anos. Nós, humanas, invasoras por excelência, estamos a livrar batalha contra este microrganismo mínimo em tamanho, mas eficaz no processo da sua colonização de nossos corpos. Os parasitos são exitosos na medida em que não matem o hóspede no que vivem. Esta tolerância mútua é produto da evolução conjunta das duas espécies. Mas a COVID-19 é uma enfermidade nova e por isso tão mortal. Na semana seguinte a termos declarado a Emergência Climática nos diferentes países, foi declarado Estado de Alerta pela COVID-19. Uma crise sobrepus a outra. A espécie humana, a maior invasora, tinha ultrapassado os limites do capital ecológico do Planeta. Dominada polo sistema económico-social capitalista, que fornece de cousas em grandes quantidades e por pouco dinheiro, conseguíramos desarranjar o mundo em seu conjunto. De súpeto, tudo ficou estagnado. Chegou a COVID-19 e mandou parar. A poluição atmosférica baixou como se a Terra estivesse a se “purgar”. Temos um modelo que desenha “Territórios Escuros” invisíveis, habitados pelo trabalho escravo que se desenvolve entre a insalubridade da miséria e a indignidade humana, junto “Territórios Luminosos” visíveis, ocupados por humanos a comprar, movimentar-se e usufruir do Mundo sem qualquer inibição e com insolente maltrato ao ambiente comum. No preço dos objetos fabricados .37
| Adela Figueroa
nos territórios escuros não ficam inclusas as emissões de gases devidas ao transporte, a poluição das águas e a insalubridade. Hoje, no colapso social, podemos dizer: Que caras nos saíram aquelas roupas ou aqueles telemóveis vindos do outro lado do Planeta, aquele alumínio que consume mais energia que toda Galiza junta! Ironicamente os objetivos marcados na declaração de Emergência Climática estão hoje mais perto de serem alcançados. Mas, como na guerra, a custo de muitas vítimas. Falta ainda sabermos como afetou, nas doenças respiratórias, a descida da poluição atmosférica em gases e micro partículas sobre as grandes urbes. Segundo a OMS, a poluição do ar matou cerca de nove milhões de pessoas em 2015, responsável pelo 20% da mortandade chegando a ser causa de mais de 10.000 mortes anuais em Espanha. O caso de Madrid pode ser paradigmático. Para além do descontrolo que representa ser uma cidade capital dum estado e duma autonomia (sinalizada, digamo-lo, pela corrupção), as más condições ambientais previas podiam ter contribuído para piorar o efeito da COVID-19. O grande desarranjo ambiental do mundo chamado mundialização e a deslocação das empresas é também responsável pela rápida invasão do vírus e uma consequência do capitalismo desbocado em que estamos. Segundo o PNUMA, as zoonoses (doenças transmitidas de animais para seres humanos) estão em aumento devido a destruição dos habitats selvagens e ao confinamento de animais em macrogranjas. A província de Hubei, grande produtora de carne, é caracterizada por ter muitos estabelecimentos deste tipo. Tudo parece indicar que a COVID-19 é uma zoonose. Escandaliza também a perda de autossuficiência do Ocidente, dependendo dos envios de material sanitário desde a China. Na procura do .38
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A Terra pouco se importa com as nossas torpezas |
consumo e do lucro rápido perdemos a capacidade de autoabastecer-nos. Não é terrível? É obrigado reconduzir o modelo económico mundial para a procura da soberania alimentar e industrial. Para as pequenas produtoras que preservam a variabilidade genética de plantas e animais e reduzem os transportes. Não é certo que seja mais barato produzir longe do consumo. É um engano. O novo modelo tem que incorporar custos ambientais e sociais nos produtos ou fracassaremos como espécie inteligente. A Terra, em seu conjunto, pouco se importa com as nossas torpezas. A vida seguirá sem nós. De outra maneira.
*Artigo de opinião de Adela, no âmbito COVID 19, publicado no NÓS diário (24/4/2020) da Galiza. https://www.nosdiario.gal/opinion/adela-figueroa/saude-e/20200423114114095831.html
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Afonso Dias Portugal Afonso Dias é cantor, compositor e letrista de canções, poeta intermitente, ator e encenador de teatro, dizedor de Poesia. Vive no Algarve há 34 anos. Deputado à Assembleia Constituinte em 1975-1976, foi um dos signatários da Constituição da República, que votou favoravelmente a 2 de abril de 1976. Militou contra a Ditadura, e cantou nos anos 60 e 70 em inúmeras sessões a solo ou ao lado de Zeca Afonso, Francisco Fanhais e muitos outros. Com Fausto, José Mário Branco e Tino Flores, fundou, em 1974, o GAC – Grupo de Acção Cultural, onde participou na produção e gravação de 3 LP's e 8 EP's. Em 1979 gravou o primeiro álbum a solo, "O que vale a pena", com músicas de sua autoria e poemas seus, de Hélia Correia e de José Fanha. É membro do Conselho Consultivo da AJA – Associação José Afonso. Realizou, no Algarve, nestes 34 anos, quase 2000 espetáculos e recitais de música e poesia e também como ator na ACTA, e encenador na Companhia de Teatro do Algarve. Colabora com entidades autárquicas e Direções Regionais de Cultura e de Educação, entre outras. Colaborou com a Direção Regional de Educação do Algarve, entre 2001 e 2013, nos projetos de promoção da poesia nas escolas algarvias "Ao sabor da poesia" e "A Poesia está na Escola". Publicou os livros de poesia: Grande angular (2001), Geometria do Sul (2003), Alto Contraste (2017), Largo do Mercado (2018), Navegação à vista (2019), Manifesto (2020). E os CD's de poesia: "Lendas do país do Sul" e "O Perfume da Palavra" (1999); "Cantando espalharey", em parceria com a Direção Regional de Educação do Algarve (2002); Coleção "Selecta" de poesia em CD (iniciada em 2006) que, em 2008, mereceu a Declaração de Interesse Cultural do Ministério da Cultura. As suas produções trazem inscrita a legenda FEITO NO ALGARVE.
nada
a fantasmagórica besta irrompeu do ventre dos erros enraizou nos ventos asfixiou a luz e emudeceu os coros e um mar de nada calou tudo o que valia a pena e tinha cor e uma aragem de peste e sombra e cinza alagou jardins de palácios e templos franqueou tugúrios e apartamentos penetrou frinchas voou varandas e aspergiu de pavores o sonho de cada qual de cada dia o manto insalubre abriu as asas sobre o tempo todo e fez-se cinza (ainda-mais-negra) no cerne da pobreza irmanou no pesadelo bruxas e astronautas .41
| Afonso Dias
cortesãs e namorados gravatas e carrosséis algemou as danças e calou os arraiais de anunciadas festas sábios e heróis acorreram à aflição das surpresas e viram de caras os olhos da besta nos caminhos do medo e foram muralha e peito aceso e franco vestido de louros que assim se vestem as vitórias agora ora agora... após este daninho nada estará aí daqui a nada um tudo outro a pedir outros termos e modos e bússolas
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nada |
pressa é aprender e aproveitar a abandonar o nada reinventando tudo a idade os sapatos a harmonia o acorde o acordo a pose o adereço o carinho o tempero o cultivo a ideia o ideal as armas os desarmes o caminho a verdade a ocasião (e xico braga chegou ao poema agora mesmo fazia aqui falta) indispensável a poesia a condizer com os brilhos
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| Afonso Dias
naftalina
há um ofício de espera que fede a naftalina uma inércia interesseira no coalho das amêndoas ó sô dona conceição cruzes credo que diabo onde guardou o sacrário que não vejo o pad”cruz nem acerto a sintonia do debate da nação ainda mal rapei a cara e já azeda o mata bicho tripa abaixo à reboleta pelo vale do kilimanjaro e diz de lá a doutora abusas nos formulários por isso é que te prescrevo gargarejos de água benta agacham-te a glicémia que nem dás pelo aeroporto à porta do município algemas-te ao cortinado até que toque o badalo da carreta dos finados pões bétadine nas feridas que ostentas na paciência vais ver como é bom cantar o fadinho marialva na marcha do correeiro
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
naftalina |
desde que a ecologia me prendeu o sono solto amargos tenho de boca que a unha até se me encrava quando me chega a cantata do edil palavreado isto anda tudo ao contrário e já lá não vai com rezas quem inventou o parágrafo havia de ir às acelgas que era pra ver s”aprendia ai de ti ó pinochet qu”inda te capo as virilhas e nem com o halibut te escapas do purgatório o marcelo rebelo de sousa tem sete sílabas métricas e até sabe engenharia hidráulica vejam lá que prendado que saiu ao pai já ouvi dizer aquilo é que é um regalo dizia a ti josefina quando eu era inteligente quem disse que a pandemia tinha nome de menina baldes de cal a magana despeja em cima das horas afinfa-lhe com a vacina digo-te eu que sou amigo já tenho o ombro empinado tu vais ver
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| Afonso Dias
longa súplica por umas pantufas ou a subversão do confinamento senhor presidente é urgente – preciso pantufas novas tenho as velhas no fio e desconfio que a minha depressão não é senão do desconforto podológico que é maçador quase tanto quanto a coprologia caceteira e fedorenta que ora me chega da extrema direita e não me ocorre que alguém logre diligentemente competentemente cuidar da boa gente e do ambiente e dos mares e das florestas e da coisa cultural ó valha-me deus com os pés a passarem mal como os meus
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
longa súplica por umas pantufas ou a subversão do confinamento |
as pantufas qu”inda tenho estão senis e cambadas e tortas e puídas feias e incompetentes não aquecem os pés não confortam o andar entristecem a vista deprimem a cidadania desatentam das notícias anulam a criação desapegam do ambiente desatentam da beleza com franqueza senhor presidente mande lá o primeiro ministro olhar por isto ele que mande um vice encomendar a um secretário de estado que ordene a um chefe de gabinete e que esse oficie e intime intimamente discretamente urgentemente da câmara o presidente para que se exare que se lavre se despache um despacho (pertinente) que imponha ao chinês que me abra a porta a mim que sou freguês me faculte a alcofa a das pantufas e me permita mitigar o penar UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Afonso Dias
o sofrimento o tormento dos meus pés exaustos infaustos acabados exauridos desvalidos e gelados senhor presidente certamente não verá – porque não há – nesta minha pretensão uma intenção de inconstitucionalidade na verdade sou respeitador da lei porque sei que a lei é o cimento o fermento da coesão a social pois então e tal mas senhor presidente seja lá condescendente é só uma lei pequenina de excepção que consinta ao figurão do meu chinês apenas por uma vez abrir a alcofa para eu de lá tirar um par de pantufas fofas o mundo fica a ganhar pode crer
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propósito
estou nu neste meu tempo e partirei nu quando a vez vier por isso o meu propósito não pode ser a economia dos haveres ou a liturgia pontual dos orçamentos que teimam crescer bolores e expandir pesadelos infinitos mais altos que a balbúrdia de babel a impossível nesta minguada condição pretendo porque posso e agora sei iluminar o caos que habita o cerne da bondade – o íntimo dos bons virei provocar as estações na marcha solidária do crescimento que sabe a hora das coisas
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| Afonso Dias
apaziguar a rebeldia das tempestades incitar à temperança dos equinócios e plantar a calma sem disfarces ou gravatas de nó cego a asfixiar o coração dos homens como os índios hei-de invocar a chuva e serei obedecido porque virei de rosto aberto e vestirei o respeito dos templos a água que desvendar há-de purificar as raízes que florescem o alimento a luzir nos filhos em todos os filhos de todas as mulheres seio farto e firme belo e quente
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
propósito |
sei que assim será porque assim tem que ser e caminho outro não tem a bússola das descobertas será orientada para os serões com lareira e beijos ao relento a maldade e a indiferença
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Vanny Kaya Lopez (Águeda Lopes) Cabo Verde
Vanny Kaya Lopez é o pseudónimo literário de Águeda Lopes, cabo-verdiana de Santa Catarina, ilha de Santiago, e francesa, residente em França. Vanny Kaya Lopez é escritora, poeta e autora publicada na Antologia Mulheres e seus destinos, de 2019. Aos 12 anos, começou a escrever poemas em português e em língua cabo-verdiana e a fazer das folhas a sua almofada. Viajou para França aos 14 anos, e ali encontrou harmonia, uma casa próspera com páginas em branco para desenhar cada letra dos seus escritos. Além da poesia, a escritora gosta de cantar, pintar e viajar para descobrir as riquezas do mundo. O seu projeto atual é escrever um livro de poemas para compartilhar com o mundo.
O rio verde da humanidade
Floresta negra Uma lágrima escorre do seu cabelo Uma longa estrada polvilhada com rosas negras Reduz a alma a pó Minha garganta desprovida de cordas vocais ficou presa no vento silencioso, morreu a minha alma Quero fechar os olhos Enterrar cada lágrima E destruir este buquê de tristeza que afunda a beleza da aparência Velas acesas, rostos desfigurados tantos gritos que meu coração está sangrando, tantos sofrimentos que meu coração está anestesiado A luz, a alegria nos olhos dos narizes vermelhos, os mestres das gargalhadas se foram tornou-se cinza Quero remover a poeira dos colares gastos de tanto tempo esperar sentado em um banco, Risos esquecidos Filhos sem pais Viagens sem retorno Famílias destruídas Lamentável, doloroso como o adeus atrás da cortina
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| Vanny Kaya Lopez
Sonho de uma varinha mágica Para apagar essa linha desenhada, essa linha que desenha a pandemia Uma varinha mágica para o sorriso, Um olhar doce que pode ser a chave para uma vida Eu quero dar esperança Quero ver a lua cantar novamente, Flores e paixão Chega de estradas vazias! Basta de anéis no caixão Voz de amor, canção do mar Mãe da terra e do céu Eu imploro que a escuridão não nos engula
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
O rio verde da humanidade |
Meus pés estão queimando As minhas mãos e os meus olhos imploram, Rezam e mantêm a pedrinha verde no peito, Anjos semeiam o mundo com a esperança Ajoelhado no chão Limpando as lágrimas Com o meu cabelo O ramo da fé vencerá Unidos como uma árvore frutífera Juntos seremos mais, Humanos Unidos de Mãos dadas Agasalhando Na glória do pai Imortal Deseja a clareza Ama com toda a força Do coração Eu me levanto.
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Alda Barros
São Tomé e Príncipe
Alda Barros nasceu em São Tomé e Príncipe. Fez os estudos primários e secundários em São Tomé, estudou Jornalismo e Relações Internacionais na Universidade Lusíada de Angola, em Luanda e concluiu o curso de Gestão da Administração pelo UN Staff College. Fez parte do grupo inicial de jovens jornalistas fundadores do primeiro jornal da República Democrática de São Tomé e Príncipe, o Revolução. Reside atualmente na Guiné-Bissau onde trabalha como funcionária internacional da ONU. Em 2017 lançou a sua primeira obra literária – A Flor Branca do Baobá – poesia, no Auditório da UCCLA. "A referida obra é o extracto de um mundo de palavras, sentimentos, sensações que quer se queira quer não, retém qualquer animosidade e pode nos conduzir a um estado de divagação inadvertida. É composta por vários mundos num universo desigual ou plural que nos transporta do sonho à realidade ao ponto de nos sentirmos num mundo abstrato em que nele exteriorizamos o lado oculto de sentimentos refletindo os vários países onde viveu e trabalhou." É autora do poema "Liberdade", publicado no Volume I da Antologia da Poesia Livre, intitulada Liberdade, da Chiado Books, em 2019 em Lisboa. O seu segundo livro, Chuva de Prata (Chiado Editora, 2019), foi lançado em março 2020 no Centro Cultural Brasil – Guiné-Bissau, em Bissau.
E sem me dar conta…
E sem me dar conta, o mundo parou as ruas ficaram desertas e os sorrisos hibernados escondemo-nos uns dos outros de alma despida confinados na esperança e nas canções de embalar perdi-me nas andanças. E lá se foi a alegria pelas ruas abandonadas de carros parados perante rostos incrédulos adultos e crianças chorando por desprazer atrelados à janela estamos em tempos de lazer ao luar, há gente lavando as mãos, sem saber o que fazer. Amargurados pela agonia do silêncio inquietos pela dor do confinamento andamos todos em abraços fictícios quantos idosos contrariados deixados à deriva na idade para morrer aventam os imprudentes haverá julgamentos no forte e no firmamento. Acabaram-se as caminhadas lado a lado juntos estamos desassossegados e sozinhos fugindo do Covid-19, cambaleando sobre ninhos passos incertos em largos sorrisos perdidos por aí no despropósito das ausências das despedidas. E sem me dar conta, o mundo parou na nossa presença e não nos abraçamos olhando para a lua embalados na rotina forçada pelo Covid-19 que a todos impôs uma surda melancolia fugindo da rua às custas de uma simples gritaria. .57
| Alda Barros
Sem que me desse conta marquei pontos para embrulhar as quarentenas vividas em sonhos muitos deles serão deixados nos passeios se na calçada encontrar um mendigo alheio sonâmbulo de máscara de cores diversas encostado a um canto pedindo pão e água. Do pão matará a fome e o Covid-19 e da água lavará os olhos, as mãos e os ouvidos sedentos que baste, as mesmas mãos estendidas à multidão um suspiro ofegante rompendo a madrugada contra o meu fôlego intermitente assobiando de desânimo por uma mente inocente. A mente que guia as minhas alegrias e impede que se note que o mundo parou perdeu o comando e as fronteiras do sossego pelo Covid-19 que nos impôs a sua presença rondando matreira invadindo o silêncio deixado para trás, amarrado a um lenço.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
O dinheiro e a pandemia do covid‑19!
No momento em que estamos todos mais vulneráveis do que nunca, ponho‑me a pensar na forma mais eficaz para combater o COVID‑19 no mundo e em África em particular, por forma a evitar que o número de infectados e, consequentemente, de óbitos, continue a aumentar de forma assustadora. Acredito plenamente que todas e quaisquer acções com o propósito de combater e vencer a Pandemia do COVID‑19 no mundo deverão enquadrar‑se em intervenções conjuntas que nos permitam envidar todos os esforços possíveis em primeiro lugar e, seguidamente, acções tendentes à promoção de programas educativos nas comunidades mais vulneráveis e não só espalhadas pelo mundo fora, pois a responsabilidade é comum, portanto é também nossa e, sendo nossa, temos de nos unir neste momento tão crítico das nossas vidas. Não basta apenas o isolamento se não mudarmos os nossos hábitos, costumes e comportamentos. Estamos todos apreensivos com a situação e por isso quero aqui aproveitar para partilhar o seguinte: – acredito que a forma rápida como o COVID‑19, esse tal inimigo invisível e comum, “galgou” os caminhos do mundo e tomou as direcções que bem quis e se instalou no nosso quotidiano sem pedir qualquer permissão a ninguém, deixa‑me sérias e suficientes margens para uma reflexão tão cuidadosa quanto o momento bem o exige, pois defendo categoricamente que uma das melhores formas para combater o COVID‑19 é, primeiramente, pararmos e repensarmos a forma como manuseamos o dinheiro no dia‑a‑dia, sim, o dinheiro de que todos tanto gostamos e do qual, se pudermos nunca prescindiremos, já que embora haja quem diga que o dinheiro traz felicidade, pois tal e qual o COVID‑19, .59
| Alda Barros
também circula nas nossas mãos e nas dos outros seres humanos mas não está trazendo a tal felicidade que tantos anseiam e aguardam e, presentemente, tenho a certeza de ser o maior e o mais “potente” vector do vírus que nos está a tramar a vida a uma velocidade inacreditável! Digo que o vírus nos está a tramar pela maneira como a Pandemia se propagou, apanhando‑nos desprevenidos e, como nunca é tarde, a responsabilidade de mudar urgentemente de comportamento e contrariar o quadro actual é nossa pois, como sabemos, infelizmente nem todos têm a facilidade de ter um cartão de crédito e usá‑lo a seu bel‑prazer, sobretudo em alguns países africanos em subdesenvolvimento, e, para além disso, nem todo o cidadão comum tem rendimentos que lhe permita ter uma conta bancária, logo, o dinheiro que neste momento é, a meu ver, o maior disseminador do vírus, continua e continuará a circular e a ser manuseado sem grandes precauções. Sabemos que em alguns países existem várias opções de transferências, como o Moneygram, o Mobile Money ou o Western Union que, de alguma forma, descartam a necessidade de contacto directo com o dinheiro em numerário. Acerca disso, aproveito para aconselhar todo o ser humano de boa vontade a lavar o dinheiro, sim, lavar as moedas e as notas que recebam antes de o guardarem ou de o misturarem com os outros pertences que tenham nas carteiras, pois o dinheiro é, foi e sempre será o maior portador de todo o tipo de vírus e/ou de outras doenças passíveis de contágio por “andar” de mão em mão, da mais asseada à menos limpa ou suja. Pessoalmente, já tenho agido e partilhado este ponto de vista com algumas pessoas, mesmo correndo o risco de ouvir outras exclamarem que exagero, esta é a mais pura verdade, pois desde bem antes da primeira informação sobre o vírus que mudou as nossas vidas, a nossa rotina, hábitos e costumes, quando tenho de ir ao banco, com particular realce para os nossos dias, para além de ir de máscara e de luvas, também levo um pulverizador com álcool a 70º, um par de luvas de reserva (caso se rompam ao calçá‑las ou ao descalçá‑las), um frasco com gel desinfectante e também levo um saco plástico onde ponho o dinheiro que recebo, pulverizo‑o com álcool e só depois amarro o referido saco plástico. Chegando a casa, depois de todas as precauções e de desinfectar tudo quanto trago da rua, depois de me des.60
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
O dinheiro e a pandemia do covid-19 |
calçar e deixar os sapatos desinfectados à porta de casa e entrar (em casa), tomo um bom banho, trato da roupa com que cheguei a casa e que entretanto embrulhei num saco plástico e amarrei quando me despi e, a seguir, ocupo ‑me da mais dolorosa, ou seja, do dinheiro – preparando uma bacia com água e sabão (como se fosse para a loiça) e coloco na tal mistura (de água e sabão) todo o dinheiro com que cheguei a casa, deixo por 15 minutos e, sem enxaguá‑lo, distribuo‑o por uma outra bacia limpa e deixo secar ao ar livre de forma segura; porém, terão de ter em atenção se a qualidade das notas em uso permitem que sejam lavadas desta forma, pois as que uso não se deterioram e nem se desfazem, portanto, meto‑as em água e sabão sem qualquer receio. A seguir, depois do dinheiro seco, guardo‑o, lavo as bacias e desinfecto‑as com álcool e recolho o dinheiro que será guardado no lugar habitual. Para o bem de todos nós e por forma a estancarmos o vírus que continua a ter uma rapidez record na sua propagação no nosso meio, façamos bom uso das melhores práticas por forma a garantirmos a implementação das medidas necessárias e urgentes com vista a um combate eficaz e à erradicação total do COVID 19, sobretudo a nível das comunidades mais carenciadas e/ou vulneráveis, tais como os vendedores ambulantes, as quitandeiras ou bideiras, estando bem atentos à forma como guardam o dinheiro, por vezes no soutien ou segurando as notas entre os lábios enquanto, apressadas para não perderem a oportunidade de aproveitar vender mais este ou aquele artigo de forma impensada, apressada e ingénua! Bem haja! Os Povos agradecem enormemente!
A Autora não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Vou à rua disfarçado, de Henrique Castanheira Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
Alfreda Pinto Portugal
Alfreda Pinto vive no Funchal, na Ilha da Madeira. Tem 27 anos e é estudante de Línguas e Relações Empresariais. Casada e com dois filhos, vê a sua família como sua principal fonte de motivação e inspiração. Iniciou a sua aventura literária em 2019, quando publicou de forma independente o seu primeiro livro. Nele compilou vários textos, entregando aos leitores um pouco da sua sensibilidade. Espera que seja apenas o primeiro de muitos. Capta momentos e sentimentos em seu redor e na escrita encontra liberdade para os expressar.
Que culpa tenho?
Amanheceria na correria citadina Compraria um jornal na tabacaria da esquina Recordo-me de um dia normal Café quente e um pastel Sem pensar em álcool gel Tubo, cama, ventilação Volto à realidade Não me pares coração! Que culpa tenho? Se por um momento não lembrei Como um vírus apanhei… Terá sido nas compras, no elevador, no autocarro? Foi ao tocar no dinheiro ou na maçaneta? Eu sei lá… Ele entrou em casa, afetando a minha família Eles aguentaram, mas eu não Já estou como os antigos, A pensar em superstição Em divinos castigos Ou numa mera maldição. Que culpa tenho?
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| Alfreda Pinto
Ar puro da montanha Contrasta com oxigénio hospitalar Dificuldade em encher os meus pulmões Via respiratória afetada Demasiado fraco Sobram-me recordações. Sofre a minha árvore brônquica Tanto quanto ou mais do que sofreram as florestas Sem árvores, sem animais. Já estou como os antigos, Peço apenas por saúde numa espécie de prece. Que culpa tenho? Respiro mecânica ventilação Entre paredes de concreto num hospital Mas ainda passeio na imaginação Entre as flores do meu quintal. Peço que o meu sopro de vida ainda não acabe. O invisível entrou em mim, entrou na minha casa Na cidade também e tudo mudou. Lembrando-me do quão frágil sou, Fragilmente forte, parte da natureza. Aquela que visivelmente descuidei descansa Enquanto eu anseio por uma recuperação ou cura Que me permita reabraçá-la. Que culpa tenho?
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Que culpa tenho? |
Não me julgues, não me vejas diferente Sou tão humano como tu. Desejo que isto nem te afete Que permaneças tranquilo no teu lar. Enquanto isso as minhas células lutam mas sonho que logo, logo… Estaremos juntos nas ruas a celebrar.
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Amanda Lopes Brasil
Amanda da Silveira Lopes nasceu em 1988, no Brasil, e é formada em Artes Cênicas e em Dublagem, ou Dobragem. Lançou o seu primeiro livro aos dezoito anos e atualmente já tem oito livros publicados, de variados gêneros, sendo os mais recentes o romance Seus Abraços, editado no Brasil e em Portugal pela Editora Chiado, e o Farol das Palavras – Debaixo do Sol, segundo livro da sua Coletânea Farol das Palavras, pela mesma editora. Escreveu também vários textos para teatro, incluindo o Menino Espelho Homem, um espetáculo que produziu e dirigiu. Amanda Lopes criou o projeto "Farol das Palavras", no You Tube, que consiste na apresentação de textos de sua autoria interpretados por atores, e do I Projeto de distribuição gratuita de livros de novos autores Brasileiros e Portugueses. Para acompanhar um pouco mais os seus trabalhos acesse: @faroldaspalavras @eusouamandalopes.
De repente
De repente o dia amanheceu com pressa, mas não a habitual pressa, aquela de todo dia. Com a pressa urgente da alma, do gozar de bom espírito! De sentir-se mais que amado, abraçado, importante nas searas do coração. De sentir os detalhes sutis, antes nunca tão apercebidos como agora, provocando saudade! Saudade se universalizou! Todo mundo agora sente. Todo mundo dela é um pouco carente. Todo mundo entende o que a distância provoca, do que a presença verdadeiramente é capaz! De repente, a privação do ir e vir. Alguns dias parecem anos e de repente significam mais. A rotina é devidamente colocada num posto importante. É bandeira hasteada com mais respeito e valor. Há quem já sofra de outras urgências, daquelas que se encontravam esquecidas. Quem somos nós quando estamos em companhia de nós mesmos?
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| Amanda Lopes
Os aplausos já não moram ao lado, os conselhos já não cedem colo ou ombro. E a presença virtual antes tão corriqueira, largamente comum, agora ganha outros entendimentos, outros tons, outros tônus! Os diálogos mudos que pairavam sobre as mesas postas... Os almoços e jantares rodeados pelos celulares, hoje clamam por uma presença menos virtual. Queremos o toque, o olhar, o cheiro até mesmo do silêncio, mas que provoque barulho! O isolamento em outros tempos tão desejado por quem queria afastar-se da multidão, hoje parece brincadeira que perdeu a graça. Um boicote natural da vida que apresenta um belo dia de chuva, de sol, convidativo a correr sem destino, abraçando o mundo todo. E agora, tudo que mais se teme, é abraçar.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
De repente |
Um esbarrão quase parece crime, tamanho medo que avassala. A espera iguala quem imaginava dominar o mundo. Nos tira a atenção única do próprio umbigo A espera arranca os cabrestos, as manias de se perder o tempo sem tempo. E neste agora, todos nós temos tempo para tudo, até para olhá-lo de frente! De repente o dia provou-se inteiro. É preciso ser inteiro! E os dias caminham enquanto todos esperam... É hora de voltar-se para dentro para se aperceber melhor o mundo de fora!
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Fotografia de Anabela Carvalho
Amosse Mucavele Moçambique
Amosse Mucavele nasceu em 1987, em Maputo, Moçambique, onde vive. Poeta, ensaísta e jornalista da área da Cultura, coordenador do projeto de divulgação literária "Esculpindo a Palavra com a Língua", foi chefe de redação de "Literatas – Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona", curador da Feira do Livro de Maputo (2016-2018), colaborador do Jornal Cultura de Angola e Palavra Comum da Galiza (Espanha). É membro do Conselho Editorial da Revista Mallarmargens (Brasil), da Academia de Letras de Teófilo Otoni (Brasil) e da Internacional Writers Association (Ohio,EUA). Representou Moçambique na Bienal de Poesia da Língua Portuguesa em Luanda (2012), nas Raias Poéticas, Vila Nova de Famalicão (2013), no Festival Internacional de Poesia de Córdoba (2016) e, em 2017, participou em Portugal, nomeadamente: IV Festival Literário da Gardunha, no Fundão; VI Encontro de Escritores Lusófonos, no âmbito da Bienal de Culturas Lusófonas, Odivelas; Conversa sobre a poesia moçambicana, no Centro InterculturaCidade, em Lisboa, entre outras. Tem textos publicados em diversos jornais do mundo lusófono: A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua – Antologia Poética, Revista Literatas, 2013 (coordenação) e Geografia do Olhar: Ensaio Fotográfico Sobre a Cidade (editora Vento de Fondo, Córdoba, Argentina, 2016), livro premiado como Livro do Ano do Festival Internacional de Poesia de Córdoba; no Brasil (Dulcineia Catadora Edições, Rio do Janeiro, 2016); em Moçambique (Cavalo do Mar, Maputo, 2017), vencedor da bolsa de criação literária da Câmara Municipal de Lisboa em parceria com o Instituto Camões, 2019, Portugal.
Registo das sombras (Cinzas sobre Coronavírus)
Ressoa em nós a anatomia da melancolia Um nome digitado na tosse Reveste-se de gota lúgubre Indistinta sinfonia Toca por detrás do tempo E nós com a guitarra na mão Testemunhamos à distância sonoridades de ruínas Hoje enegrece o encanto funesto Tal como a paisagem deserta de Wuhan Caindo em nossos olhos Observando, enfim, a mecânica das trevas Inflexíveis Sombras da morte vão mastigando o mundo
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| Amosse Mucavele
Do destino extinto pela dor ou pelo susto Brota em nós o oásis Esta quente alegoria Descrita na fome da nossa ansiedade E assim Relançamos o temor da nossa embriaguez Cuja ressaca nasce da febre assinatura Que se acolhe na ternura diária A sul um coração interdito Tem na desaparição muitos nomes Ausência, dor, esperança ou invisibilidade
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Registo das sombras |
E quando Subtraídos em chamas Adormecem no meio do caminho Que emerge do grito anterior Onde há ausência de um abraço O silêncio se desfaz em mil oferendas
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Ana Ferreira da Silva Portugal
Ana Ferreira da Silva, natural de Lisboa, licenciou ‑se em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina de Lisboa, tendo desempenhado funções docentes na área de Biofísica e Fisiologia Geral durante o curso e o Internato Policlínico. Após um percurso enriquecedor pela periferia (Hospital Distrital de Torres Vedras), especializou‑se em Anestesiologia nos HCL (Hospital de Sto. António dos Capuchos). É assistente graduada do quadro civil do Hospital das Forças Armadas. Desde muito cedo atraída pelas Letras, iniciou‑se na poesia e no conto na adolescência, tendo abraçado então um projeto de pesquisa intensiva que viria a dar forma ao seu primeiro romance histórico Quando os Lilases Tornarem a Florir. Tem, até à data, quatro obras publicadas: Os Algozes de Nenhures, Trova de Caio e Benilde, Quando os Lilases Tornarem a Florir (Chiado Editora) e 1002ª Noite – A Mercadora de Sonhos (juvenil, Editora Alfarroba). Participou em diversas antologias de conto e poesia. É sócia da SOPEAM (Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos). A evolução do seu trabalho pode ser seguida através do site www.anaferreiradasilva.pt
Quarentena
Bom dia, melro! Estava à tua espera para o pequeno-almoço! Dormiste bem? Ouvi-te cantar de noite!... O velho Manuel espalhou umas migalhas de bolacha no parapeito da janela e sentou-se no cadeirão a observar o melro que, de cauda empinada, o olhava de través enquanto debicava a guloseima. De quando a quando, Manuel deitava a mão ao copo de leite morno ou ao pacote de bolacha-maria que aguardavam pacientemente sobre a camilha disfarçada de mesa de refeições, ao lado de uma fotografia gasta de outros e felizes tempos enquadrada numa moldura a fingir talha dourada. Sempre lhe agradara o cantar melodioso dos melros e desde criança se habituara a arrebanhar migalhinhas de pão para oferecer aos seus amigos emplumados; agora que se encontrava fechado em casa como um recluso, a companhia dos melros tornara-se o mais precioso dos tesouros. Lá fora, a Primavera hesitava: soprava uma aragem fresca, encastelavam-se nuvens no céu pálido, as flores começavam a desabrochar. No jardim onde costumava deixar escoar tardes inteiras a cavaquear com os amigos ou a jogar à bisca, as mesas e os bancos continuavam vazios, envoltos em fitas vermelhas e brancas como se estivessem estragados. As ruas, igualmente desertas, à excepção de um corredor ocasional ou de um desconhecido a passear um cão. Ecoando de longe chegava o som distinto das badaladas da igreja, habitualmente abafado pelo ruído do trânsito e pelas vozes que costumavam encher de vida a cidade. A fonte do lago cantava para os patos adormecidos sobre a relva. Dir-se-ia uma cidade fantasma. Manuel suspirou e olhou em redor. À excepção do relógio de pêndulo, cujo tiquetaquear regular continuava a .77
| Ana Ferreira da Silva
marcar o ritmo da vida, o próprio quarto parecia mergulhado num sono irreal, quase moribundo. Nenhum detalhe de conforto fora descurado pelos filhos: a estante recheada de livros e filmes, a televisão orientada para a cama, meia dúzia de embalagens de pilhas sobressalentes para os vários comandos, a roupa lavada e arrumada nas prateleiras, o telemóvel carregado, a caixinha da medicação organizada, a lista de números de emergência replicada e afixada um pouco por todas as paredes, dinheiro para as encomendas do “super” e do “take-away”. Isolado havia mais de duas semanas no pequeno apartamento de segundo andar sem elevador, Manuel cumpria a quarentena que lhe fora imposta pela própria família com o argumento de que os seus oitenta e dois anos, aliados a uma vaga insuficiência cardíaca e uma bronquitezeca de velho o tornavam um alvo de excelência para o malfadado vírus. Os três ou quatro primeiros dias, passara-os ao telemóvel a conversar com a família e a discutir a situação com os amigos da bisca que, tal como ele, permaneciam fechados em casa; com o passar do tempo, contudo, o isolamento começou a pesar e a dar frutos nefastos. Eram os dias que não havia meio de passarem; eram as saudades da algazarra e da confusão dos bisnetos que o visitavam tarde sim, tarde não; eram os joelhos que emperravam, a coluna que dava sinal; os suspiros e os lamentos cada vez mais frequentes; era o drama do amigo Henrique, o mais idoso do grupo da bisca, cuja única visita era uma voluntária de máscara e luvas de borracha, e que por tudo e por nada desatava a chorar ao telemóvel, ora porque se esquecia do dia da semana, da hora ou da medicação, ou ainda do nome dos amigos ou de aquecer a comida, ora porque passava a vida a tropeçar nos tapetes que teimava em não enrolar e guardar… Manuel e os outros parceiros da bisca combinaram entre si não desamparar o velho Henrique, chegando a estabelecer uma escala de telefonemas ao longo de cada dia. Por vezes era a voluntária quem atendia a chamada, o que constituía um grande alívio para os velhotes, pois sabiam que podiam contar com a ajuda da prestável senhora para organizar um pouco a vida do amigo. Certo dia, o telemóvel de Henrique emudeceu. Talvez se tivesse esquecido de pedir à voluntária que o carregasse… Ao cabo de dois dias de silêncio, os amigos, desesperados, ligaram para os hospitais, para a polícia… Nada! Que .78
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Quarentena |
fazer, se Henrique não tinha, que soubessem, familiares na cidade? Ainda se algum deles se tivesse lembrado de pedir o contacto da simpática voluntária… Depois de muito matutarem no assunto, decidiram encontrar-se no jardim e tocar à campainha do amigo, que morava do outro lado do quarteirão. Com um esforço sobre-humano, Manuel pegou na bengala e lá foi descendo as escadas, sem cuidar de que teria de tornar a subi-las… Tocaram e tocaram. Nada. A certa altura chegou uma vizinha carregada de sacos de comida, e eles desviaram-se para a deixarem entrar. – Que fazem aqui? – perguntou a senhora. – Não sabem que deviam estar em casa? Oh! São os amigos do senhor Henrique, não é verdade? Pois… O senhor Henrique faleceu há dois dias! Ataque cardíaco, parece… Estava sozinho em casa! Quem deu o alarme foi a voluntária, que o encontrou caído na sala… Uma tristeza! Deus o tenha em descanso! Vá, vão para casa, protejam-se, que o vírus não é para brincadeiras! A vizinha apressou-se a fechar a porta do prédio, fugindo deles como se fossem leprosos. Os três amigos entreolharam-se. O medo que se agigantava dentro do espírito de cada um, tinha uma e a mesma causa: podia vir a acontecer-lhes o mesmo… Um bando de andorinhas cruzou os ares como uma lufada de esperança. – Ouve lá, Zé – lembrou Manuel –, tu não tens um cão? – Sim, tenho… Costumo pedir ao vizinho do lado que mo traga à rua… – Pois a partir de hoje, passas tu a trazê-lo, e nós fazemos-te companhia! Eu espanto os outros cães com a bengala, e o Miguel, que tem melhores joelhos, fica encarregado de apanhar os cocós… Satisfeitos com o plano de contingência, os três amigos abraçaram-se efusivamente e sentaram-se na beira do lago a ultimar detalhes. Aos oitenta e tal anos de vidas bem preenchidas, não seria um vírus mortífero que os obrigaria a abdicar da que talvez viesse a ser a última Primavera. E as andorinhas continuavam a cruzar os céus.
Lisboa, 12 de abril de 2020 (Domingo de Páscoa)
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Infância suspensa
Nelita empurrou a cadeira para junto da janela e trepou com a agilidade dos seus cinco anos para espreitar para a rua. Uma chuva fininha salpicava os vidros. Lá fora, um vento tímido agitava os ramos verdejantes da grande árvore do parque, semeando de folhinhas tenras o chão que nenhuma criança pisava. Obstinado, o baloiço embalava ‑se a si próprio num esforço infrutífero para despertar o escorrega e o castelinho de atividades, mergulhados havia semanas num torpor de abandono deprimente. Mais adiante, do outro lado da rua, a vasta mancha do cemitério refugiava‑se por detrás de um muro branco fechado por um imponente portão de grades pintadas de verde‑escuro, vigiado do alto por duas feias gárgulas, dois dragões de pedra de cujas bocas negras escorriam delicados fios de chuva. Nelita nutria grande curiosidade por aquele imenso jardim de árvores frondosas que ensombravam uma estranha cidade de casinhas semelhantes a minúsculos palácios com pórticos de colunas trabalhadas, sem janelas nem chaminés, dispostas em quarteirões separados por canteiros de onde sobressaíam pedras brancas que decerto marcavam os limites de várias propriedades. Era ali, estava convencida, que moravam os reis e as princesas dos contos que a mãe lhe lia à noite, assistidos por uma multidão de anõezinhos jardineiros; e os dragões permaneciam vigilantes dia e noite no seu posto para impedir que alguém viesse importunar os reis e as princesas. Nelita gostaria de pedir à mãe que a levasse a visitar as princesas, uma vez que o parque infantil estava vedado, mas o receio de irritar os dragões haveria sempre de sobrepor‑se à vontade de conversar e lanchar com Rapunzel e a Bela Adormecida. Assim, a menina limitava‑se a UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Ana Ferreira da Silva
contemplar o reino encantado de trás dos vidros da janela do 4º andar… No quarto ao lado, o irmãozito choramingou, despertado pela fome que nele era acontecimento mais pontual do que as badaladas do relógio da parede. A mãe acorreu com um biberão morninho e uma enxurrada de palavras carinhosas que não faziam mais sentido do que um arrulhar de pomba. Nelita suspirou, fincou os cotovelos no parapeito da janela e apoiou o queixo nas mãos. Que aborrecimento, fechada em casa como se tivesse febre, sem poder jogar à apanhada nem brincar no parque com os amiguinhos da escola! Recordou com saudade a Maria, a Tété, o Tonico, a Janeca, o Luís, o Carlitos – como ela fechados em casa, resguardados de uma doença misteriosa que andava espalhada por toda a cidade, sabe‑se lá se por todo o mundo… Os noticiários da televisão não falavam de outra coisa, as conversas dos pais acabavam sempre por encalhar na mesma coisa, a escola estava fechada, o café da esquina onde costumava comprar gomas com a Tété estava fechado, até a sapataria em cuja montra aguardavam as suas futuras sandálias de Verão estava fechada, nas ruas não se via quase ninguém… Parecia que, de um dia para o outro, a própria vida resolvera hibernar, como o ursinho de peluche que ela pusera a dormir no fundo de uma gaveta no início do Inverno e que em breve teria de despertar… O pai chegou a casa, mascarado como um bandido; e antes de beijar distraidamente a família, dobrou a máscara com todos os cuidados e poisou‑a na mesinha do telefone, ao lado de um frasquinho em que Nelita estava proibida de tocar e que, pelos vistos, continha um líquido mágico que substituía a água e o sabonete e espalhava pela casa um aroma adocicado. Jantaram com a televisão ligada, como se tornara costume desde o princípio da estranha hibernação da cidade. E lá vinham outra vez as mesmas notícias, números e mais números, senhores encasacados com ar preocupado, nada de desenhos animados. Nelita ainda abriu a boca para pedir que mudassem de canal, mas o pai mandou‑a calar com um gesto. Ferida na sua sensibilidade, Nelita procurou concentrar‑se na sopa para não desatar a chorar. Lembrou‑se então de que faltavam poucos dias para a Páscoa… Graças a Deus! Com a Páscoa havia de chegar a avó Mila com o habitual pacotinho .82
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Infância suspensa |
de amêndoas e, quem sabe, um coelhinho de peluche para fazer companhia ao ursinho… Nelita sabia que podia contar com a avó Mila para os segredos, as brincadeiras, os docinhos, a colher de mel na sopa e os miminhos; a avó Mila era uma fada disfarçada de velhinha que lia pensamentos e fazia milagres, por muito difíceis de realizar que pudessem parecer aos olhos dos pais e das pessoas crescidas em geral... – Ainda falta muito para a avó Mila?... – Nelita lançou a pergunta para o ar. Inexplicavelmente, a mãe levantou‑se sem dizer palavra e recolheu os pratos já vazios, refugiando‑se na cozinha para secar as lágrimas. O pai sentou Nelita ao colo. – A avó Mila não vem visitar‑nos este ano, filha – começou a explicar. – Está muito doente! – Então, se calhar, podíamos ir nós visitá‑la, não é verdade, paizinho? O pai engoliu em seco e não respondeu de seguida. Levantou‑se da mesa e dirigiu‑se à janela. Lá fora, o crepúsculo descia sobre a cidade. Os contornos das nuvens cintilavam com os reflexos dourados emprestados pelo sol poente. Os passarinhos chilreavam à porfia nos ramos da grande árvore do jardim. As casinhas brancas e as flores do cemitério, lavadas pela chuva da tarde, destacavam‑se da penumbra que se adensava. – A avó Mila foi para o Céu, Nelita. Os anjos vieram buscá‑la... – E ela foi‑se embora sem nos dizer adeus, paizinho?! – Nelita nem queria acreditar. – Sabes, é que... os anjos estão sempre cheios de pressa! Não foi por mal, acredita!... – E ela volta? O pai abanou a cabeça. – É capaz de não voltar, Nelita! Lá no Céu há muitos meninos a precisar de miminhos! Tenho a certeza de que os anjos vão pedir‑lhe para ficar a tomar conta deles... – E ela vai ter uma casinha lá no Céu? Bonita como aqueles palácios, mas maior?... – S... sim, tenho a certeza disso! Vamos, está na hora de lavar os dentinhos e dormir! Nessa noite, Nelita sonhou com a avó Mila sentada nos degraus de um alpendre de colunas muito brancas, a contar histórias encantadas a Rapunzel e à Bela Adormecida... A Autora não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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André de Soure Dores Portugal
André de Soure Dores nasceu em Lisboa, Portugal, em 1977. É licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduado em Museologia pela Universidade de Évora. Membro individual do ICOM (International Council of Museums) e do seu comité internacional DEMHIST (Casas Históricas). Exerceu atividade profissional desempenhando as funções de técnico de apoio científico (equiparado a técnico superior de história) no Palácio Nacional da Ajuda/ Museu, de assessoria à presidência da Fundação para a Ciência e a Tecnologia na área da cultura científica e tecnológica, de técnico superior (conservador) do Palácio Nacional da Pena e assessoria da Assembleia da República, contando-se estas experiências profissionais entre as mais relevantes. É colunista na "Patrimonio.pt", projeto de comunicação on-line na área do Património Cultural.
A criação
A criação que cria mais criação A criação que queria ver espalhada A criação de força, dá força, dá-nos forças A criação que junta passado e futuro A criação que não queria ver maltratada A criação que cria homens e mulheres A criação que queria valorizada por todos Que queria vivida por todos. De dentro para fora E de fora para dentro A criação que escreve. Que pinta. Que esculpe. Que cria No papel, na tela, na pedra. Na mente. Nas mentes. A criação, a criatividade que nos faz ver. Mais além, qual Homero. Que nos faz ser o que sempre fomos e o que desejamos ser.
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A Fénix e os tocadores de lira
Do palácio apenas restaram as paredes exteriores enegrecidas pelas labaredas e pelo fumo denso. Do museu foram resgatados alguns objectos, testemunhos de processos evolutivos e realizações da acção humana, durante uma operação morosa e delicada que reduziu um pouco a dimensão, indubitavelmente devastadora, da tragédia anunciada. Afinal nem tudo foi reduzido a cinzas, embora a intensidade destas tenha sido causadora de um sufoco agonizante. E triste. Muito. Contudo, quebrou-se a agonia e delas nasceu uma esperança. Uma fénix renascida das cinzas? Esta ave mitológica que encerra em si uma ideia de perenidade e regeneração, o próprio mito que, à semelhança de outros, atravessa épocas e civilizações, desde o Antigo Egipto, passando pela Antiguidade Clássica, na Grécia e Roma Antigas, do Cristianismo perpetua-se pelo Renascimento, com um simbolismo de ressurreição e eternidade. Será suficiente encararmos “o mito (o nada que é tudo”, nas palavras de Fernando Pessoa) como a regeneração necessária e o cumprimento de um destino incontornável? Creio que a dúvida será legítima. Bem como uma outra: será possível restabelecer confiança (será que alguma vez foi verdadeiramente estabelecida?) nas pessoas e nas instituições que, por incúria, por desleixo, por falta de visão e noção, deixaram que património cultural, em muitos casos único e insubstituível, fundamental na construção da Memória e na afirmação de identidade(s) ficasse reduzido a cinzas? Por um lado, a persistência e resiliência da condição humana face às adversidades e às tragédias. Por outro, um pessimismo prudente que a mesma condição humana vem proporcionar e, em simultâneo, justificar. O Património Cultural, no seu significado mais contem.87
| André de Soure Dores
porâneo e lato, gerador de uma cultura de paz e de coesão entre povos, cuja diversidade e diálogo devem ser factores de desenvolvimento, de criação e criatividade. Reduzi-los, por acção ou omissão, a cinzas é de evitar a todo o custo. A preservação, protecção, salvaguarda e valorização da herança cultural é missão de todos, uma vez que o património é de todos e para todos, o que não isenta, obviamente, de responsabilidades acrescidas aqueles que estão devidamente mandatados para tais funções. Aqueles que, num incêndio global, como foi e ainda está a ser esta pandemia, devem ter a consciência para assumir as diversas áreas do sector cultural e criativo como uma das formas de combater as chamas e um dos rescaldos mais recomendáveis. Sem mencionar, à cabeça, as propriedades preventivas. Que as cinzas que se vão acumulando nestes meses sejam, pelo menos em parte, fertilizante para fomentar um ressurgimento, uma mudança que o mundo vem clamando. Há quem mencione uma revolta da Natureza. Outros, uma punição da Providência. Interpretações à parte, indivíduos que assumam de pleno direito a sua condição de cidadãos, seja de cada nacionalidade, seja da Europa, seja na Lusofonia, seja do mundo inteiro, que tenham condições para assumi-lo e praticar a sua cidadania activa. Com liberdade, responsabilidade, com consciencialização de si, dos seus direitos e deveres, com noção do/ e respeito pelo outro, com espírito crítico, com participação construtiva na comunidade. Com efeito, urge mais e melhor investimento na cultura, na educação e na ciência. No combate a uma pandemia é vital, desde logo, a ciência, uma cultura científica que deve crescer e revestir-se de contornos humanistas. Sem uma interconexão entre estes três campos, tão vastos quanto .88
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A Fénix e os tocadores de lira |
fundamentais, teremos mais cinzas, daquelas inconsequentes e nada promissoras. Queremos, enquanto o incêndio lavra, ficar a assistir e dedilhar uma lira, como Nero perante Roma em chamas? O distanciamento social preventivo deverá dar, a seu tempo, lugar a uma maior proximidade real. Se as plataformas digitais e as ferramentas virtuais foram importantes para convivermos e superarmos esta fase, se foram um suporte útil na produção e fruição culturais, em alguns casos factor de inovação, também deverão ser encaradas enquanto complementares de uma vivência presencial insubstituível. De um universo cultural que terá de ser, necessariamente, forte, sob pena de mais incêndios que, mais do que regenerar, destroem e fazem desaparecer para sempre traços de humanismo e humanidade que não devem, não podem, ser dissociados da condição humana e do seu percurso histórico. Pessoas, indivíduos, cultos, educados e conscientes que também são cidadãos. Bons intérpretes da realidade múltipla, fluentes numa linguagem universal assente na diversidade, tocadores de lira cientes das harmonias e melodias que se articulam com os restantes elementos da orquestra, que respeitam os seus instrumentos enquanto veículos de comunicação indispensáveis. Com aplausos, se merecidos, com assobios se adequados, mas nunca assobiar para o lado, nem recusar tocar lira por acharmos que não é para nós ou por nos termos furtado a ter formação para tal ao longo da vida.
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Máscara de Teatro Grego,
de Henrique Castanheira
Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
Andreia Tavares de Sousa Cabo Verde
Andreia Sofia Tavares de Sousa nasceu em Cabo Verde, Santa Catarina, na ilha de Santiago, em 1987. Reside em França desde 2005, é escritora, poeta e autora publicada em dois livros, Poetas do ano 2019 e Mulheres e seus destinos. Vencedora do concurso "Poetas para o Ano Novo" promovido pela Associação Txon-poesia, foi publicada na antologia Poetas para o Ano Novo II (2019), da Editora Urutau. Escreve poemas em português, crioulo cabo-verdiano e francês, e os seus trabalhos integram várias antologias. Atualmente, está a preparar um livro de poesias na língua cabo-verdiana, bem como um livro infantil com canções tradicionais. Andreia Tavares de Sousa estuda música clássica e guitarra.
Gritos da minha alma
Ondas de tormentos, vagas de sofrimentos Do maldito tempo, a fúria dos ventos Atormenta o meu peito no profundo desespero Nas noites negras de desgraça Meu coração sangrado de dor Alma dolente e sofredora Mágoas e saudades, uma triste realidade Vivemos uma tempestade Nas noites escuras de chuvas finas E nos dias frios sem alegria Há tanta e tanta gente que morre O mundo está doente e triste Hoje a luz já não existe Será um sinal dos céus? Será o sinal da natureza? Será o ciclo da vida? Será a sentença de Deus? Essa pandemia global que nos intimida Sozinha com a lua, choro a triste angústia As quedas e as dificuldades desta vida As doenças e as sociedades destruídas A dor do meu peito é tanta Dor colada na minha alma Ninguém verá a minha tristeza Escondida por trás das máscaras
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| Andreia Tavares de Sousa
As nuvens carregando lágrimas Meus olhos tristes, sem abrigo de paixão Meu coração ferido com toda a emoção e frustração Enfrentando as vagas e o drama de dor Essa epidemia de terror O demónio mais sinistro do nosso tempo Nas profundezas pretas do coronavírus Meus sentimentos presos no vento Atormentado e desenhado pelo destino Seres humanos dormindo num sonho sem fim O cruel veneno, o infinito pesadelo Almas carregadas pelo vento do hospital Condenadas à amargura eterna Os médicos podem dar a sentença da morte Mas a vontade de viver está sempre Por isso rezo a Deus, peço a luz Com a fé e o amor, na luta com esperança Peço a cura para os hospitalizados Impondo uma nova visão do mundo Vou enterrar os lamentos A dor do ferimento e saudades
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Gritos da minha alma |
Para alegrar e confortar o meu coração Vou escrever contos da felicidade Mergulhando nas fantasias de palavras Com linhas de amizades Vou cantar a força do vento Vou pintar o mundo com meus versos Versos coloridos, com atitude e coragem Vou dançar nas ruas, com flores da primavera Beijarei a terra e as estrelas Saltarei os vales e as colinas Gritarei bem alto com alegria Gritos com lindas melodias Acariciarei a preciosa mãe natureza Com carinho branco da pureza Afastarei de qualquer dor que seja Um dia tudo será diferente Admirarei o magnífico céu E escutarei a cantiga da chuva Chuva fina de felicidade Num cântico de amor
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Antonino Robalo Cabo Verde
Antonino Vieira Robalo, residente na Cidade da Praia, Cabo Verde, é mestre em Engenharia Eletromecânica. Desde muito jovem, ainda na escola, sente gosto pela composição de poemas mas só a partir de 2010 vem compondo mais intensamente. Já publicou alguns poemas em páginas do Facebook desde 2012 e participou nas seguintes obras: Antologia da U.L.L.A. – União Lusófona das Letras e das Artes, em 2014; Antologia Palavras da Alma, em 2015; Antologias Nau da Lusofonia, Abraço Poético Cabo Verde/Galiza e Raiz da Poesia, em 2017 e Antologia Poética TAACTO1, em 2020. Tenciona brevemente publicar alguns livros já organizados.
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TAACTO – Tertúlia Associativa de Arte e Cultura Torrejana
Esperança em tempos de pandemia Andando a pandemia ainda no adro, Tão terrível e desolador está o quadro Dos que salvam e dos que lutam pela vida, Todos longe de suas famílias queridas. A passos rápidos avança a pandemia, A Covid, ceifando vidas, cria feridas, O mundo está triste e em desespero, Uma mensagem deixar aqui eu quero: Iremos de mãos dadas o vírus vencer, Se cada um de nós aos alertas obedecer, Esperançosos vivamos com brio o presente, Cada um conta, velhos e novos, somos parentes. Andando mascarados o vírus não nos apanha, Não ao ajuntamento com gente estranha, Desinfetando ou lavando as mãos a toda a hora, São medidas sábias para o vírus mandar embora. Em dois meses aprendemos com o vírus conviver, A nossa casa em nossas escola e igreja converter, A cesta básica, nos países ricos e pobres, Muita miséria, muita fome e miséria descobre. A esperança é sairmos da pandemia mais globais, Solidários, mais realistas e mais iguais E aprendermos quão duro é viver na pobreza, Quando em poucas mãos está quase toda a riqueza.
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António Carlos Cortez Portugal
António Carlos Cortez nasceu em Lisboa, em 1976. Poeta, crítico literário e ensaísta, é professor de Literatura Portuguesa e de Português, e colaborador permanente do Jornal de Letras e outras publicações. É membro da direção do PEN Clube Português, consultor do Plano Nacional de Leitura, conselheiro para a leitura do Clube UNESCO, doutorando da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) daquela Faculdade. Publicou o primeiro livro de poesia em 1999 (Ritos de Passagem). Entre outros, publicou em 2016: A Dor Concreta (ed. Tinta da China) e Animais Feridos (ed. Dom Quixote). Em 2017 publicou no Brasil e em Portugal Corvos Cobras Chacais (ed. Gato Bravo). É ainda autor de Voltar a Ler (2019), compilação de ensaios e crítica literária, e do livro de poemas Jaguar (ed. Dom Quixote, 2019). Em 2020, publicou Poética com dicção, uma obra de ensaios e recensões, uma celebração do encontro entre a poesia portuguesa e a brasileira. O autor está traduzido em inglês, castelhano, italiano, francês e alemão no site lirikline european poetry observatory. Em 2011, foi‑lhe atribuído o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para melhor livro de poesia de 2010, com a obra Depois de Dezembro.
Nosso tempo
...por vezes despedimo-nos tão cedo... Gastão Cruz ...para o nosso tempo um céu de nuvens baixas Gastão Cruz
1. Tinhas percorrido Lisboa, suas sanguíneas ruas agitadas. O outrora já não era agora. Um vírus insidioso, camuflado de grandes razões tinha-nos deslaçado as mãos, desfeito a fala. Era noite. A grande noite com um muro altíssimo, sem fogo a adivinhar-se dum qualquer outro lado da realidade. Acantonados, metidos nos redutos frágeis de sombras e fantasmas, os olhos injectados, não havia ninguém subindo as colinas de Lisboa. Sua dicção marinha, sua clara e lábil língua, onde estava? Que época nefasta, de mágoas circulando nas avenidas largas, tracejadas de enormes lugares vazios. Lisboa sem a noite e sem o frenético turismo... Não sei que preferir. Correm turvas as águas destes rios... Esta realidade antecipa o declínio de uma boca aberta ao desespero? Um verso vem e despedimo-nos tão cedo.
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| António Carlos Cortez
2. Parei o carro num miradouro cego. Um velho corvo grasnava profecias e mistérios. As luzes da cidade rodaram sobre as horas e de madrugada uma e outra e mais uma ambulâncias um sol de cemitério. Nas televisões, monstros e o hábito novo: Lisboa e seu fogo, tudo extinto. Apenas o grito lancinante de uma luz azul a uma velocidade de loucura nos fez acordar do torpor da dor de que não era já possível fugir. Pelos ecrãs da moda, inculcando o venenoso discurso em jovens decapitados, a carnificina do silêncio. Ó nosso tempo! Um céu de nuvens baixas, decerto. Neste deserto, terei sido o único a ver que o outrora agora era mesmo outrora?
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Antonio Carlos Secchin Brasil
Antonio Carlos Secchin é professor emérito de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutor em Letras pela mesma Universidade. É poeta, com livros publicados, entre eles Desdizer, de 2017, com sua poesia reunida. Em 2018 publicou, na área da literatura infantil, O galo gago, que recebeu o "Selo 10" da Cátedra de Leitura da UNESCO. Ensaísta, publicou em 2018 Percursos da poesia brasileira, do século 18 ao 21, ganhou o Prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) como o melhor livro de ensaios publicado no país. Autor de mais de 500 textos (poemas, contos, ensaios) publicados nos principais cadernos literários brasileiros e internacionais. Já proferiu inúmeras palestras em quase todos os estados do Brasil e no exterior, como Professor convidado em Espanha, França, Estados Unidos, Portugal, Itália, Venezuela e México. Foi eleito em junho de 2004 para a Academia Brasileira de Letras. Em 2013, a editora da UFRJ publicou Secchin: uma vida em letras, com 88 artigos, ensaios e depoimentos sobre a sua atuação como professor, escritor e bibliófilo. Em 2019, recebeu o Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro, da Academia Carioca de Letras, pelo conjunto de sua obra.
Soneto profético
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A bola de cristal é opaca e preta, nela pouco se vê ou se pressente. O vidro estilhaçado de uma greta libera a luz noturna do presente. Antevejo um plantio da semente incapaz de dar paz a este planeta, pois você, o jasmim e a violeta florescem contra mim feito serpente. Enxergo nada além desse horizonte, onde ao escuro sucede o mais escuro. O certo é não prever nenhuma ponte que possa me levar para o futuro. Na bola opaca eu leio, transtornado: seremos bem felizes no passado. Hoje, o invisível inimigo virótico está em toda parte, especial e perigosamente no “você” de nosso contato mais próximo. O desalento nos faz ver apenas a escuridão após a escuridão, e desejamos estar vivos quando alguma luz, enfim, se acender. Cercados pelas serpentes do obscurantismo, o caminho se torna mais perigoso. E, como antídoto ao pessimismo que fecha o poema, resta-me convocar um verso de Carlos Drummond de Andrade, desejando que ele também seja profético: “Havemos de amanhecer”.
*2017
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Antonio Miranda Brasil
Antonio Lisboa Carvalho de Miranda é maranhense (Estado do Maranhão, Brasil), nascido em 5 de agosto de 1940. É membro da Associação Nacional de Escritores e foi colaborador de revistas e suplementos literários como o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e também o La Nación (Buenos Aires, Argentina) e Imagen (Caracas, Venezuela). Professor e ex‑coordenador do Programa de Pós ‑Graduação em Ciência da Informação do Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília, ministra aulas e cursos por todo o Brasil e países ibero‑americanos. Aposentado, é professor Colaborador Sênior, e orientador de teses e pesquisas. Também é consultor em planejamento e arquitetura de Bibliotecas e Centros de Documentação. Foi o organizador e primeiro diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, de fevereiro de 2007 a outubro de 2011, e de fevereiro 2015 a maio de 2017. Doutor em Ciência da Comunicação (Universidade de São Paulo, 1987), fez mestrado em Biblioteconomia na Loughborough University of Technology (LUT), Inglaterra (UK), em 1975. Sua formação em Bibliotecnologia é da Universidad Central de Venezuela, (UCV), Venezuela, datando de 1970. (in Portal de poesia ibero‑americana. http://www.antoniomiranda.com.br/Iberoamerica/poesia_de_iberoamerica.html)
Contaminación Ambiental (Poema visual)
El hombre es un depredador que siembra en el aire. Lenin se quejaba de los libros inútiles. Mao los quemaba en plaza pública y nosotros los sacralizamos con oscuras metáforas. Los hombres se multiplicaban como panes y los peces en la Biblia y cada día hay menos pan y peces. Como larvas y como marabuntas devoramos nuestro planeta y lo vomitamos asqueados.
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| Antonio Miranda
Tres billones y quinientos millones es tan solo una cifra para las abstraciones de la ONU, para la política de insumo y consumo para el fantasma de la renta per capita. Confucio tuvo un hijo plantó un árbol y escribió un libro. Al parecer tomaron muy en serio su parecer. Lenin tenía razón: los millones de ejemplares del Reader”s Digest están desmatando nuestro planeta. Por eso escribo en el aire imprimo mis versos en el tiempo como en la arena. Este poema pasará como pasa el viento.
Valencia, Venezuela, 01.1973
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Contaminação ambiental |
Contaminação ambiental
O homem é um depredador que semeia no ar. Lenine queixava-se dos livros inúteis. Mao queimava-os na praça pública e nós sacralizamo-los com escuras metáforas. Os homens multiplicavam-se como os pães e os peixes na Bíblia e a cada dia há menos pães e peixes. Como larvas e como marabuntas devoramos o nosso planeta e vomitamo-lo, enojados. Três bilhões e quinhentos milhões é uma estatística para as abstrações da ONU, para a política de insumo e consumo, para o fantasma do PIB per capita. Confúcio teve um filho, plantou uma árvore e escreveu um livro. Parece que não tomaram a sério a sua opinião. Lenine tinha razão: os milhões de exemplares do Reader”s Digest estão a desflorestar o nosso planeta. Por isso escrevo no ar e imprimo meus versos no tempo como na areia. Este poema passará como passa o vento. Valencia, Venezuela, 1973
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Natal Fechado,
de Henrique Castanheira Aguarela e lápis 36 x 28 cm | 2020
António Pascoal Portugal
António Jacinto Pascoal nasceu em 1967, em Coimbra, e é poeta, contista e ensaísta. Mestre em Literaturas e Culturas Africanas, com uma dissertação sobre José Craveirinha e Nicolás Guillén. Professor do ensino médio, vive em Arronches, no Alto Alentejo. Tem publicado crónicas de reflexão no jornal Público. Autor de vários livros de poesia e conto, como Pátria ou amor (1991), Mover-se o fogo (2018) e Os joelhos do meu pai e outros contos (2018), e antologias de poesia de mulheres: As mulheres visíveis e Violeta Parra, o canto de todos (org. e trad.). Dinamizador cultural, publicou um álbum fotográfico e organizou um livro escrito pelos estudantes, com os quais tem encenado teatro, inclusive apresentando-o na Fundação Calouste Gulbenkian.
Lugar: C-19
Eu minto tanto que escrevo: piores coisas eram de acontecer. Vivia-se até à última, Passámos a não ter idade para sair – a morte no ar é uma máquina de alta precisão consola ver números no ecrã – quantos mais? Eu minto tanto que digo: nada se passa, nós somos migalhas, membros da classe sem classe juntos, movemo-nos como se ela não o fosse. Atiram as redes e ela coleciona os corpos. Eu minto tanto que não escrevo: também não gosto dela. Nada há a dizer a seu favor – a sua voz é sufocada pela máscara. A morte tem máscara e amplifica o silêncio na terra.
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| António Pascoal
Eu minto tanto que digo: quem já chegou tem o caminho todo pela frente tem luvas na pontas dos olhos com que pega no coração – era o que eu queria dizer – liquefeito dos velhos. Eu minto tanto que escrevo: cada despedida é uma folha gigante de saudade. Então o palco ocupa o mundo o palco move-se onde secámos o leite às mães, onde dissecamos o vírus infuso no corpo. A morte, quando a apanhámos, aflorou-nos de punhos engomados, no palco da história: difícil é acreditar no grande comício invisível. Esta não é a forma de morrer.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Lugar C-19 |
Eu minto: esta é a forma de morrer. O tempo espreita, estreita dia após dia como a cobra suspensa no rato. De cada homem só a pele. Onde há mulheres e homens o mundo é de névoa. Eu minto tanto que escrevo: Eram poucos os caixões, uma fileira encantada. Era o amor da morte.
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Any Delgado Cabo Verde
Any Delgado nasceu na Belavista, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, a 11 de setembro de 1971. A vida difícil em Cabo Verde levou o seu pai a fazer‑se ao mar e trabalhar nos navios cargueiros, obrigando‑o a longas viagens que o fizeram perder momentos importantes da vida familiar. Coube à mãe a tarefa de educar e criar os filhos. Por força das circunstâncias, emigraram para Portugal, na Primavera de 1973, viajando no navio "Niassa". Em casa, a família falava crioulo e ouvia mornas e coladeiras. A história de Any Delgado é igual a imensas outras de filhos de cabo‑verdianos emigrantes que cresceram na diáspora. Fala orgulhosamente um crioulo aportuguesado... Cresceu em Portugal mas o sangue que lhe corre nas veias é cabo‑verdiano e, apesar de ter hábitos lusitanos, a sua essência é cabo‑verdiana. Em 2018 criou o projeto "Orgulho Nacional", que serviu de plataforma de apoio à candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade. Durante todo o processo da candidatura, Any Delgado pesquisou sobre a história de Cabo Verde e o enquadramento da música, nomeadamente da Morna, em todos os períodos mais marcantes. Any Delgado escreve com o coração e promove o patriotismo e orgulho nos símbolos que caracterizam a identidade cabo‑verdiana. https://www.facebook.com/orgulhonacional1/
Confinamento
Inspirar Expirar Dia Acordar Mesa Cadeira Comer Tempo
Inspirar Expirar Sofá Parede Vazio Horas Tempo
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| Any Delgado
Inspirar Expirar Janela Rua Vazio Silêncios Depressão Horas Tempo
Inspirar Expirar Sofá Saudade Tristeza Dor Horas Tempo
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Confinamento |
Inspirar Expirar Noite Mesa Cadeira Comer Quarto Pensamento Horas Tempo
Inspirar Expirar Insónia Tortura Dormir Horas Tempo
19 de abril 2020
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Carlos Nelson Álvaro Sebastião “Dadi Ngongo” Angola
Carlos Nelson Álvaro Sebastião "Dadi Ngongo", 35 anos, angolano, é licenciado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Relações Internacionais "Venâncio de Moura", Luanda (2011). É professor do 2º Ciclo do Ensino Secundário. Menção honrosa do prémio Sonangol de Literatura em 2015 e Prémio Literário Acácias Rubras em 2018. Não tem nenhuma obra literária publicada.
Marés de amores
Nos rastos dos rostos Retrato de um mundo desolado Com lágrimas nos asfaltos Nas ruas, Monumentos, Em todo lado A luta contra o covid-19 A luta, na III Guerra Mundial ‒ Levanta a cabeça mundo! Brada forte o vento Esvoaçando por todos cantos, Desencantados e desacreditados pelos vírus Renasça cantos com encantos De Angola Da Guiné-Bissau De Cabo Verde De Moçambique De Portugal ‒ Ao mundo! Grita forte e a vida continua Numa contínua luta Ainda que lágrimas continuem a jorrar Nos rostos, nos rastos Nas ruas Nos retratos ‒ Levanta a cabeça mundo!
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| Carlos Nelson Álvaro Sebastião “Dadi Ngongo”
Grita a vida. No há guerra que perdure Não há guerra que não se supere Se a pandemia ataca pelos ares Mundo ataca com amores Amores espalhados Criando vagas Como ondas dos mares Como marés de amores Agora com máscaras… ‒ Venceremos! A guerra contra o óbice e sórdido Covid-19. Os versos unem-se numa luta universal. Unir versos, pode até certo ponto, desafogar tensões existentes no mundo afectado pela III Guerra mundial (como eu considero), e os desafios do novo normal. E é nas lágrimas esparsas por todos edifícios, casas e ruas de todas as cidades do mundo, afectadas pela nefasta pandemia, que vozes se reergueram, mais fortes do que nunca, para pintar essa nova fase, com tintas coloridas de esperança e certezas. O que o mundo precisa é maré de amores, que devastam costas de todos os continentes, limpando todos os males e receios. Não um dilúvio extintor, como do Noé, que varre homens e traz dor e bandeiras a meia-haste. Essas ondas de amores devem ser revestidas de sais de solidariedade. Salgar o mundo com amor. Doar-se em prol dos mais desfavorecidos será sem dúvida a melhor maneira de amortecer o impacto das crises financeiras, consequência do stop que o vírus deu ao mundo, levando ao confinamento, e lavando as contas bancárias dos governos com despesas imprevistas. .120
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Marés de amores |
O molde que se deve seguir é o do camponês agricultor, lá no quimbo1, que pondera, com as mãos trémulas, abandonar o cultivo. Não há lucros imediatos. As empresas escoadoras dos produtos do cultivo também estavam bloqueadas, como medida de segurança pública. Mas o velho sabe que parar não é opção. Já enfrentou o conflito civil de Angola, já enfrentara períodos de fome. Cultivar vai permitir que os alimentos básicos do campo cheguem às famílias. Nem que seja da sua aldeia e das aldeias vizinhas. Por isso o velho levanta todas as manhãs, antes dos raios do sol, e vai cultivar. No reerguer do camponês está o ganho. Com seu gesto vai ajudar uma aldeia. É esse espírito do agricultor, o espírito de entreajuda que vai fazer Angola e o mundo regressar aos poucos com marés de amores que vão tapar os focos crescentes da crise da III Guerra mundial, em que as classes médias são engolidas nos nevoeiros dos problemas financeiros, dos disparar dos preços dos bens, e dos crescentes desempregos. Por isso, no final da tarde, o agricultor no quimbo, ouvindo o som dos ngoma2 que voltaram a solar3, sorri de alegria, com os dentes amarelados com a luz da labareda em baixo do imbondeiro, com esperança que coisas melhores virão. Pena é que os abraços vão continuar nas cadeias das vontades, esperando o mandato de soltura, vindo de ventos fortes de lutas científicas. Mas o velho agricultor sorri mesmo assim, com vontade de unir versos para trazerem um mundo melhor.
Aldeia rural Batuque na língua Kwanyama. 3 Executar um solo (música). 1
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| Carlos Nelson Álvaro Sebastião “Dadi Ngongo”
No raiar do quimbo O campo desperto para o mundo As mãos trémulas do camponês, lá do quimbo Do quimbo distante. Traz palavras de esperança Das lavras cultivadas Esperanças avivadas Com enxadas de palavras sem pandemias No negrume das noites arquivadas Recordações de vários amplexos recebidos Dos seus netos, da sua aldeia E a lágrima cai Cai no Pim, Pim Pim Pim Limpando tristeza, Pois agora, a certeza rasga a cidade Com rios, com correntes solidárias Com ricos partilhando ONG”s de feliz cidade diárias Com riscos enredados com medidas Alerta cidade Alerta mundo Máscaras desmascarando fragilidades Em casa, o idoso preserva a idade Na rua, nos largos, velho monumento Vaidades encostadas por enquanto No entanto, Os anjos da terra
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Marés de amores |
Sô doutor, senhor médico Na frente de combate ao Covid-19 Com auxílio eclético Com asas quiméricas E milagres de salvação. E nas ruas tristes Canções alegres Nos Palácios Planos de contingência E o poeta Animando com versos Ver só O verso viajando Por clicks distantes Agitando as ondas do amar Vagas e maremotos Só o verso Solidário com todos Todos nós, ó mundo Ansiosos por derrotar a pandemia Mas só tempo tem tempo Traz tempo a vacina Trás tempo o mundo em cima De Angola, meu quimbo O camponês, o velho, ensina: ‒ Meu neto. Saiba ajudar. Com esse pequeno gesto Mundo transforma É a melhor forma de abraçar.
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Concha Rousia Galiza-Espanha
Concha Rousia (Santiago de Compostela, Galiza) é cultivadora da terra e da palavra: poeta e psicoterapeuta. Livros publicados, entre outros: Nantia e a Cabrita d’Ouro (Através Editora, 2012); A Língua de Joana C (vencedor do Certame Literário Feminista do Condado em 2006); As Sete Fontes (2005). Poesia: Se os Carvalhos Falassem (Através Editora, 2016) e, no prelo com a editora Urutau, O Sapo e a Margarida. Integra numerosas obras coletivas na Galiza, no Brasil e em Portugal, sendo as duas mais recentes: Blasfêmeas: mulheres de palavra, com outras 63 poetas1, em 2017; e, em 2020, no volume 13 da Revista Literária Pixé. Colabora em jornais digitais com poesias, crónicas, artigos de opinião. É arquiveira2 da Academia Galega da Língua Portuguesa. Membro fundador da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia. Membro da Associação Galega da Língua desde 2004. Presidente pela parte galega do Instituto Cultural Brasil‑Galiza. Membro da Junta Diretiva da Ordem dos Psicólogos da Galiza, e Coordenadora da Comissão Cultural, onde, entre outras atividades, criou o Prémio Literário "Rosa de Cem Folhas". Publicou ainda Agora já não é Nada: Narrativa da Desfeita (Lethes, 2007) e ensaios, como "Um dia", "Mudança de Narrativa Lingüística", e "Língua Materna e Psicoterapia".
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Poetisas Arquivista
Chaves mágicas Um ensaio poético
“Educar a mente sem educar o coração não é educação”. Ecoando em vão desde há mais de 2000 anos nos nossos pouco atentos ouvidos, as palavras de Aristóteles. Os seres humanos a diferença dos outros animais, levamos um pensante incorporado. O nosso super desenvolvido córtex cerebral permite razoar, poderar e avaliar toda a situação. Ora bem, que tenhamos esse fantástico equipamento cerebral não significa que tenhamos menos no nosso cérebro meio, no nosso sistema límbico, nem que portanto, nós, animais racionais, devamos ignorar essa parte do nosso cérebro, e cultivar apenas os extensos territórios do córtex. Como temos também um cérebro reptiliano, mas esse vai encriptado na base do cérebro não permitindo aceso verdadeiramente a ele com a nossa consciência. Ele, permanentemente escaneando o mundo à nossa volta, actua para salvar a vida ante todo perigo descoberto, ou perigo percebido, embora não sexa real. A dia de hoje nas nossas sociedades continuamos a produzir imenso número de analfabetos emocionais, por priorizar, quase em exclusiva, a educação intelectual da mente e deixar sem atenção o vasto território das emoções, permitindo crescer qualquer cousa que decida nascer nesse pouco accessível território, como é a nossa mente emocional. A pessoa se passa depois a vida tentando conviver com aquele mato do que não gosta ou mesmo desgosta, ou teme até. É por isso que as pessoas necessitam da arte, porque a vida, como afirma o poeta Ferreira Gullar: a vida não basta. A arte, a literatura, vem atrás da gente cuidando, costurando os rotos que o viver nos deixa dentro. Ali onde a razão não alcança com o olhar, ali a poesia entra a fazer a sua cirurgia. Por vezes será na arte da psicoterapia, mas .125
| Concha Rousia
nem sempre é requerido um técnico. A literatura, e a Arte em geral, consegue abrir as portas da nossa mente emocional, as portas do nosso coração. E se isso é verdade para a nossa vida cotidiana, o que não será quando nos vemos ameazados por uma pandemia do tamanho da Covid‑19? Quando o nosso reptiliano se superactiva pola percepção de perigo constante, e a nossa mente emocional se faz gigante ativando todo tipo de alarmes. Neste caso a pessoa integrada, a pessoa com educação emocional, a pessoa que sabe como regular o que sente, fica em ótimas condições para agir. Mas a pessoa que não tem prática em apaciguar‑se, sossegar ‑se, e conduzir‑se enquanto o nosso pensante toma decisões, essa pessoa reage, sem control real do que faz. Aí a nossa habitual lagartija se converte em crocodilo a se coaligar com a nossa parte emocional, hiper‑reagindo e bloqueando o córtex. Só vemos o que fizemos realmente quando já não tem remédio. É claro que as catástrofes, as pandémias, passam deixando um rasto enorme de catástrofes internas, durante as quais não apenas deixamos crescer de tudo salvagemente no terreno das emoções, mas alguns plantaram nele eucaliptos, ou ervas ainda mais venenosas. Muitos ficarão lá presos nesses anti‑jardins culpando os Billgates, os Chineses, os governos de esquerdas ou de direitas ou as vacinas inexistentes… A maioria das pessoas saem da pandemia, logo de serem curtidos pelo medo, o estresse, a ansiedade, com a vida um bocado arrasada. Algumas pessoas nunca poderão extirpar completamente a toxicidade, carregando muito sofremento emocional, muito sofremento psicológico, que tingirá as salas da vida. Agora estamos na hora de .126
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Chaves mágicas. Um ensaio poético |
curar as feridas e renascermos, e como a Amalia Correia nos avisou, não poderemos nascer sem sentir as próprias dores. É hora de abrir as portas do emocional e deixar‑se sentir… Mas as portas podem ficar fechadas. Por vezes essas portas foram trancadas sem consciência do fato, e intencionadamente não conseguimos mais abrir. Devemos buscar chaves mestras porque sabemos que levamos dentro cousas que queremos tirar para fora, cousas que devemos despedir, e vamos ter que pedir à nossa psicóloga ajuda no fabrico dessa chave à medida para nós. E podemos também tentar com as chaves mágicas da poesia. Pois como bem disse o próprio Freud: “em todo o lugar a que vou, descubro que um poeta esteve lá antes de mim”. Freud usou “poeta” em sentido mais amplo, que incluía também a ficção em prosa. A literatura tem a capacidade de surfar sobre as ondas da razão sem afundir‑se nelas, chegar lá ao meio e meio do mar dos saberes ocultos. Ahá! Aí vemos o que não vemos. Abrimos janelas e portas a emoções aparentemente insondáveis, submarinos deixados atrás após o final da batalha. Magicamente abrimos: choramos, rimos, soltamos as pedras que tanto nos pessam, o irmão que não pudemos abraçar durante a doença, a avó que não pudemos visitar por tanto tempo, o pai vivendo sozinho, a tia que partiu sem despedida mesmo… e mais além, muito mais além. Vamos necessitar muita poesia, muita música, muita arte que entre em nós e exploda dentro suas artes, ou então que nasça dentro e saia transformando escuras crisálidas em borboletas de brilhantes cores a avivar as nossas vidas de novo.
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Fotografia de Anabela Carvalho
Delmar Maia Gonçalves Moçambique
Delmar Maia Gonçalves nasceu em 5 de julho de 1969 em Quelimane, na República de Moçambique. Venceu o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro em 1987 e o Galardão de Literatura África Today, de 2006, em Luanda. É Professor Honorário de Literatura e Filosofia no Cypress International Bible Institute University (EUA) e no Jerusalem International Academic Research Institute (Malawi) desde 2019. É Doutorado em Educação no Cypress international Bible Institute University (EUA) e no Jerusalem International Academic Research Institute (Malawi) desde 2019; Academician‑Secretary (Diretor) do Departamento (Geral) da República de Moçambique e membro do Conselho Editorial da Editora International Mariinskaya Academy (Rússia) e membro do Conselho Editorial do Scientific Journal "Mariinskaya Academy" desde 2020. É Presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD) desde 2010.
Poema
I
As sombras retomam o lugar que nunca foi seu onde as brasas são chão e a serenidade se evola num arco de relevos.
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| Delmar Maia Gonçalves
II
No princípio era a luz Inundou-se o chão de musgo bom Apaguei-me então na reclusão do silêncio para dar voz aos falsos magos Depois vieram as trevas e a terra orou em estilhaços E eu que me havia aniquilado renasci das cinzas num corpo inóspito decidindo acordar do sono anterior a mim!
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Poema |
III
Longe de mim impor a minha luz Há um sono colectivo com sombras cinzentas a que me oponho Por isso convoco as luas antigas as fogueiras ancestrais e reivindico a estrela polar para a apoteose da salvação.
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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As horas é que contam, de Henrique Castanheira Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
Dina Guita Moçambique
Dina Guita de 27 anos, nascida na província de Inhambane, Moçambique, trabalhou como bancária durante 8 anos e acabou desenvolvendo problemas de saúde que a fizeram descobrir a paixão pela escrita e pelas artes. Fez o curso de saúde integral em Portugal. E, no âmbito da terapia ocupacional, teve os primeiros contactos com as telas descobrindo assim o seu novo percurso. Decidiu criar um blog para partilhar as vivências dela e contar a história de superação da ansiedade e assim poder ajudar outras pessoas que se encontram a ser devoradas pela ansiedade e depressão, que se tornaram o mal deste século. Encontrou-se no mundo da escrita e pintura, agora trabalha como sócia da casa de Moçambique em Lisboa.
Não sei se morro de covid-19 ou morro à fome Viver numa sociedade em que não se vive mas sim se sobrevive, nunca foi fácil, e hoje torna-se mais difícil ainda. Em meio ao caos em que nos encontramos, foi-me dito para ficar em casa, sim, me foi dito que seria seguro para mim, juntamente com a minha família . Sinceramente, tenho muita vontade de ficar, mas o meu estômago e as lágrimas de fome que escorrem no rosto do meu filho zezinho não me permitem. Sou mãe solteira de 5 filhos. Até que consegui cumprir com a quarentena durante 3 dias, foi o tempo máximo. Disseram-me para usar água, sabão e máscara, mas não tenho dinheiro para comprar, apenas tenho cinza e uma máscara feita de tecido da minha capulana. Não tenho televisão, internet, luz, muito menos água canalizada. Junto os meus 5 filhos no meio da esteira, e conto histórias da minha infância, mas sou mãe e tenho todo o amor e calor para dar aos meus e, apesar das dificuldades, me torno uma mãe melhor, a covid-19 permite que a minha família esteja mais unida, volto mais cedo do mercado aonde tiro o meu ganha pão, abraço e dou beijinhos a eles e sem esquecer de agradecer ao universo por mais um dia. Sim, essa sou eu, uma mãe solteira lutando para sobreviver apesar das lutas, mas não deixo de sonhar com pão a mesa à matina, e sem dúvidas de que amanhã quando tudo isto acabar o sol voltará a brilhar.
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Dorivaldo Manuel Angola
Da Sophia, mais conhecido por Dorival, pseudónimo de Dorivaldo Manuel, é angolano. É professor do ensino médio e formado em Ciência Política, na Universidade Agostinho Neto, Faculdade de Ciências Sociais. Formou ‑se em Escrita Criativa e Literária na Editora Azul e tem poemas publicados na Antologia Comemorativa do V Encontro de Poetas de Língua Portuguesa, A Poesia do Fado e dos Tambores. Ama ler e escrever artigos científicos relacionados com a sua área de formação superior e fazer um casamento prático entre os textos literários e não literários.
O Evangelho palpitante I
Antes do ano zero, alguém disse que viria como ladrão... Talvez seja ele, o vírus palpitante do século XXI. Se refletirmos bem, naquele tempo, os Sacerdotes, Profetas, Reis e seres destinados falavam com ele e tinham privilégio de vencer as guerras através dele. Se lermos bem aquele livro pouco lido pelos muçulmanos constataremos que, depois do ano zero, o privilégio de falar com ele pereceu. Até Vossa Santidade, que vive lá no Estado-embrião da Itália não tem poder de falar com ele? Só ora tanto, beijando o metatarso da estátua que simboliza a salvação, mas não recebe mensagem depois da oração, nem luzes, nem nada, assim como José, o bisneto de Abraão, recebia, pelo menos por meio do sono, salvando o povo Africano e do mundo por causa da fartura produzida para rematar a fome, durante 7 anos. Meus queridos e imperfeitos irmãos do templo capitalista, o meu evangelho é mais propagável que a pandemia do coronavírus – Amém! Meus irmãos! Saibam que nós vivemos num tempo diferente daquele, nós pensamos que vivemos, nós não vivemos, nós tentamos brincar de viver. Decerto os que viveram já não existem, pois tinham o privilégio de falar com o autor do céu e a terra, ou seja, o ser que nos fez para viver e, quiçá, morrer, mas o primeiro a morrer não pereceu com vírus. Segundo algumas interpretações ficcionais do livro em que transparece o surgimento de apocalipses, foi alvejado com faca pelo seu irmão, o livro só diz que foi alvejado e revela o primeiro homem que partiu desta terra que já se cansou de nos ver a viver. Esse vírus que chamamos covid-19 não é um mero poema com quiméricas palavras e métricas que limitam os versos, é uma realidade palpitante e (in)questionável, porque está bem nos olhos sistémicos do universo, ceifando .137
| Dorivaldo Manuel
sexos e os sexos que comiam sexos, ceifando a desigualdade, ressuscitando a igualdade entre os sexos grandes e pequenos que, através da covid-19, sujeitam-se a ficar na uretra, fechando o furo que extrai águas oceânicas... Assim é complicado, a vida que pensamos que vivemos dá muitas voltas e cada volta palpita-nos diferentes formas de viver. Temos que dar razão ao segundo parágrafo, a nossa forma de viver é esotérica, só um ser compreende-nos porque somos obra dele, nós pensamos que nos compreendemos, nós pensamos que este planeta ainda nos quer vivos mas, para mim, depois do ano zero, o melhor seria vivermos num outro planeta, porque a terra que nos traz é a terra que nos leva. Estamos apavorados e a verdade deve ser dita neste templo, esse vírus tem dono, se não é o autor do céu e a terra, é um dentre nós, seres que pensamos que vivemos, é só olharmos bem atrás dos tempos, veremos que através da ira do pai, o pai castiga, o pai toma as medidas coercivas, não importa se és mandachuva ou mandatário ungido por ele e pelos votos eleitorais, o destino é a terra, porque da terra viemos e somente viverá quem mais crer do que despender dinheiro no templo. Meus irmãos, eu não sou o Martinho, que revelou os padres que se masturbavam no templo, somente saibam que é a vida assim-assim, é como a política, morre no fim do mandato, mas há mandatos que morrem no meio do mandato, como também há humanos que ceifam no meio da eternidade sem chegar o destino da morte – quem conhece o destino da morte? Ninguém, senão o pai, o único que sabe a origem do vírus e que dará sabedoria a um ser para descobrir a vacina, que só será descoberta depois de matar milhões, sim, a vacina ou um exato medicamento para velozmente curar os propagados, só vai aparecer depois de morrerem milhões e bilhões. Alguns políticos que vocês costumam ver e acreditar, são os protagonistas das mortes e são mais que o vírus que nos fecha na casca sem a banana, a inabilidade deles ceifa e gera lobos que ceifam lobos, são capazes de construír em cima do mar uma cidade só para as famílias deles, eles são como eu, sem vocês não vivemos. Irmãos! Todos que estão aqui no templo são lobos, pagam dízimos e contribuem para eu ficar rico, evitem dar-me o que não têm e creiam somente na palavra. Pois o dinheiro que vocês sacrificam para o templo tem sido um meio que me enriquece, e por causa de vocês, sou o .138
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
O Envagelho palpitante I |
mais rico do país. Isso é pecado, irmãos! Talvez deva ser por causa dos pastores e políticos que estamos a morrer. Meus irmãos! a missa acabou, como sabem, a porta do templo é a interpretação, não saiam do templo conforme entraram, acreditem, nós não vivemos, nós brincamos de viver. Essa nossa vida que está ser levada pelo coronavírus é uma vida que não vale nada, a pessoa ou ser que produziu a covid-19 não ama a vida, não quer nos ver a viver, odeia-nos, anda irado e está a vingar-se, ele pode ser o ladrão que disse que viria como ladrão, mas se for mesmo ele, então, que me perdoe, mas entender-me-á, porque também lhe entendo. Pois sei a dimensão da ira dele, sei como ele é tão bom, como também sei como ele é, quando está nervoso, ele ama e desama. Quando desama, o mundo testemunha que sanciona moralmente, religiosamente e coercivamente. É só imaginarem o que aconteceu no dilúvio e os efeitos do poder que deu a José, Moisés, Davi, Sansão e ao filho mais poderoso do mundo que disse que viria como ladrão. Como é óbvio, o ladrão pode não ser o descendente de Davi, entre nós há muitos ladrões, o ladrão pode ser um terrorista bioquímico, um produtor de vírus fulminante, palpitante, fulo, esquálido e impiedoso como o coronavírus, que está comer até o sexo dos políticos e pastores utópicos deste planeta cansado. Venerados irmãos! Vamos continuar a missa no outro dia, obrigado por me darem a vossa máxima atenção, somente saibam que este evangelho é palpitante. Portanto, já que estamos fechados em casa, podem depositar o dinheiro no Banco, mas saibam que o vosso dinheiro enriquece-me, por causa do vosso dinheiro na minha casa não falta pão, meu trabalho é falar-vos o que vocês também podem falar, é só lerem aquele livro pouco lido pelos muçulmanos e xinguilarem, verão que aldrabar-vos que curamos por meio de milagres é muito fácil [...]. O pastor não terminou de falar, uma irmã levantou-se para o ofender: – Pastor! Você é um caralho! Se o templo cura doenças, por que não cura o coronavírus? Só esses burros é que vão depositar dinheiro no banco! Esquece-me, seu aldrabão, vou comprar comida para os meus filhos e partirei para o outro templo [...]. – Queridos irmãos, a vossa irmã tem razão, os pastores de hoje não curam doenças e alguns não são sérios, desculpem-me pela ousadia, mas é só para palpitar [...]. UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Eduardo Naharro-Macías Machado Olivença - Espanha Eduardo Naharro-Macías Machado, oliventino de adoção e coração, é bilingue português-castelhano, tem dupla nacionalidade, portuguesa e espanhola, e estudou Filologia Portuguesa na Universidade da Extremadura. Atualmente leciona Língua e Cultura Portuguesa na Universidade Popular de Olivença, é gestor de atividades culturais e, ao longo das últimas duas décadas, em inúmeros outros locais da Extremadura. Cofundador da Associação Cultural Além Guadiana de Olivença (2008), que nasce com o desejo de preservar a peculiar identidade cultural de Olivença, cinco séculos portuguesa e dois séculos espanhola, e contribuir para que não se perca a memória portuguesa de Olivença. É igualmente interlocutor nas relações da Câmara Municipal de Olivença com diferentes organismos de Portugal. Eduardo Naharro-Macías Machado coordena, com outros colegas, a publicação do projeto de recuperação e recompilação do português de Olivença "Muito Frágil", com base nos protocolos assinados com a Câmara Municipal de Olivença e a Universidade de Extremadura (2013). Com mais colegas, encaminha e atua como interlocutor, junto do Estado Português, dos oliventinos que pretendem adquirir a nacionalidade portuguesa. Participou no Projeto de Recuperação dos antigos nomes das Calles / Ruas de Olivença, e é membro da Comissão Educativa da Língua e Cultura Portuguesa de Olivença. Galardoado com o Prémio Percurso Iniciativa da Revista Mais Alentejo, Eduardo Naharro-Macías Machado é cofundador e Presidente da Associação Cultural "Português em Movimento". Adicionalmente é gestor de visitas culturais a Portugal, promotor do Projeto de Integração da Câmara Municipal de Olivença na "Rede de Judiarias de Portugal" e do Projeto de Integração da Câmara Municipal de Olivença na UCCLA.
Olivença respira e inspira
Verdejantes são os campos que me rodeiam, Cristalinas as minhas águas, Puro o ar das minhas serras, Majestosas as minhas muralhas, Aliciantes os meus monumentos, Sublime a minha gastronomia, Deleitosa a minha música, Hospitaleiros os meus filhos, Harmoniosa a minha parentela, Honrosa a minha língua, Tudo isto é o que todos anseiam. Afinal, quem sou eu? Para uns sou do Alentejo, Outros dizem que da Extremadura, Não sou tua, não sou de ninguém, Escorregadia como o leve Guadiana, Sou dos Oliventinos que partilham a alma, Que com doçura todos anseiam. Decerto é a minha singularidade o que inspira a todos e eu com esse oxigénio respiro, quer venha o bafejo da Extremadura, quer venha o bafejo do Alentejo. Quem chegar para me visitar e respirar, logo na planície que verdeja ao meu redor, assomando seja pela porta que for, nela encontrará o espelho da cor da esperança como a que vivem os meus rebentos. Muito rica é a memória da minha herança que muito sobeja: património monumental, cultural, gastronómico, religioso, musical, linguístico e singularmente o humano. Precisamente, são os meus rebentos que outrora conheceram a língua dos tempos do rei amante das artes e le.141
| Eduardo Naharro-Macías Machado
tras, trovador, com o cognome de “Lavrador”. D. Dinis já representava nessa época o abeiramento dos povos aquém e além Guadiana, filho de pai lusitano e mãe castelhana. Assim são muitos dos meus filhotes, que ainda mantêm a língua que chegou com “Alcanizes” e que traçou uma linha indelével, mas que hoje nada nos separa e tudo nos une. Seria essa mesma língua, após um século, a que os Oliventinos levámos aos “quatro cantos do mundo”, quer a oriente com Vasco da Gama, descendente de cá, quer a ocidente com o intrépido belmontense Pedro Álvares Cabral, e entre eles o bispo de Ceuta que se encontra sepultado na nossa deslumbrante catedral de Santa Maria Madalena. Também foi Frei Henrique o primeiro religioso a oficiar nos quatro continentes. Seria a mesma língua que aplicava a “academia oliventina de ensino” da época, após criação do Bispo, a que foi uma espécie de precursora da Universidade Eborense. Seriam esses mesmos ventos que sopravam sob as cintilantes estrelas da planície oliventina, já sendo virtuosa a língua de Camões, os que levariam a ilustre obra do meu filho Sebastião do Couto à China, foi graças a ela que Aristóteles, sobretudo no campo da lógica, lá chegou. A língua portuguesa que outrora se desencadeou do galego-português, é a que os meus rebentos conseguiram preservar até hoje, é a mesma que se misturou a partir de 1801 com outra de relevância semelhante, a língua do egrégio Miguel de Cervantes. Isto é, hoje os meus filhos são do produto desse entroncamento singular. E quando digo singular é simplesmente diferenciar o que se pode dissociar e o que não. Se pretendermos misturar a água e o azeite será impossível, dado que não se atraem. Água e azeite não formam uma mistura homogénea porque o azeite repele a água. O mais correto, na verdade, é dizer que o azeite não se dissolve em água, já que formam uma mistura heterogénea. Outro motivo de não ser possível dissolver o azeite na água, é o facto de a água ser mais densa que o azeite, e por isso, faz com que o azeite flutue sobre a água. Mas se misturarmos café com leite, dificilmente se podem separar, a não ser através de processos químicos, e nomeadamente é a química oliventina que nos atrai a todos nós e que serve para mostrar tudo o que nos une e que nada nos separa. A comunidade oliventina é um manifesto exemplo de convivência que poderia ser modelo para outras latitudes que têm mostrado algumas .142
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Olivença respira e inspira |
convulsões internas. Prova disso são a dualidade cultural, linguística, identitária, e até duas nacionalidades, o que engendra um único sentimento, a sensibilidade oliventina. Tem sido a afeição entre irmãos o que nos tem conduzido até aqui, enaltecendo os nossos valores e conhecedores do nosso potencial. Após a construção da nova ponte da Ajuda, junto a um processo de sensibilização e revitalização do nosso valimento, outras pontes se têm construído ao longo da última década. Pontes que são elos intangíveis e que serviram para reviver que o carinho é mútuo. Da minha janela comecei a ver além Guadiana e hoje vejo além-mar. Até me atreveria a dizer que “da minha língua vê-se o mar”, tal como proferiu Vergílio Ferreira. Eu, “Princesa do Guadiana”, posso asseverar que na atualidade os meus filhos são todos iguais, mas com antepassados de línguas diferentes; as mesmas línguas que tinham Gama, Aires Tinoco, Pizarro, Núñez de Balboa, etc. quando deixaram lá no Novo Mundo as línguas de Camões e Cervantes ou vice-versa. É essa marca que os meus filhos e conterrâneos deixaram nas terras de ultramar, a que serve para nos aproximarmos ao mundo da Lusofonia e da Hispanidade, ao qual eu pertenço. Prova disso são a minha aderência à UCCLA, assim como as afeições à América Latina. É esta a nossa parentela. Cá no meu lar, eu Olivença, digo aos meus filhos de agora que ao longo da história sempre houve tempos de incerteza e desventura, que aprendam dos pais, ainda que estejamos num impasse, têm sido eles que têm dado mostra da fortaleza perante as vicissitudes da vida, os mesmos que ouviram os antepassados falar da febre pneumónica, e hoje estão numa situação quase semelhante. É com a sua resiliência e sabedoria que os descendentes irão construir o tempo vindouro. São tempos de mudança e devemos estar preparados para as novas oportunidades. Já nos anunciava Camões que o mundo está em constante mudança: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Eduardo Naharro-Macías Machado
O poder de mudar reside nas pessoas, mostrando o que verdadeiramente somos. É precisamente com a vontade de evoluir e coadunando com as nossas valências, que a nossa alma ultrapassará as adversidades e entrará na era da digitalização com grande vigor. O nosso vime cultural será a vacina perfeita para mitigar as atuais contingências e que faz com que sonhemos com o desejado cesto da igualdade e um mundo convergente. E sendo Olivença fulcral na convergência da Lusofonia e da Hispanidade, quer cultural e histórica, quer geográfica, não esquecendo a nossa invejável localização, é justamente com embalo que as nossas empresas e o empreendimento devem ir mais à frente. Olivença hoje caminha com firmeza, fazendo o caminho ao andar, como proferia o poeta Machado, e seguindo os rastos no mar que os meus filhos deixaram. Está na hora de eu finalizar e quero cativar-te com as mesmas palavras que comecei. Levanta-te no verdor da minha planície, mergulha nas águas do meu Guadiana, seca-te com o sol hospitaleiro dos meus rebentos, enche a pança com os meus monumentos, regala os teus ouvidos com a minha língua, respira nas encostas de Alor e Amaro e à noite suspira sob as minhas estrelas cintilantes. Agora que sabes quem eu sou, se ainda não me vieste ver, cá te espero. Se já o fizeste, a beleza está em voltar.
Aula de Língua e Cultura Portuguesa da Universidade Popular de Olivenza
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Ernesto Dabo Guiné-Bissau
Ernesto Dabo é poeta, escritor, dramaturgo, cronista, fotógrafo, colunista dos jornais O Gazeta de Notícias da Guiné-Bissau e Tornado, em Portugal, ativista cultural, compositor e músico, jurista, membro honorário do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD) e seu Embaixador para a Guiné-Bissau.
Um pensamento e um poema em tempos de pandemia:
Mostra-me a cor do coronavírus, mostrar-te-ei outra humanidade na Terra.
Que mundo virá?
No jardim do largo frente à minha casa demasiado largo se tornou o silêncio Tão largo silêncio que já nem dá para ver os extremos da vida: crianças e velhos Estarão numa quarentena de metros no fundo de um virulento lago sem resposta ainda à mesma questão? Que mundo virá? Igual, pior, melhor? Mais que o silêncio me importa a resposta
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Ernesto Vazquez Sousa Galiza - Espanha
Ernesto Vazquez Souza (A Crunha, Galiza, 1970). Doutor em Filologia galega (UdC 2000), é autor de diversos artigos e livros sobre história, contexto político e cultural do livro galego das primeiras décadas do século XX. É sócio da Associação Galega da Língua e membro da Academia Galega da Língua Portuguesa; entre 2016 e 2019 foi Diretor do Portal Galego da Língua. Atualmente colabora no blogue "A viagem dos Argonautas" (https://aviagemdosargonutas.net).
Totentanz
Acontece, por vezes. O mundo derruba-se arredor, a morte reina e tudo traslouca na baila. Tal e como na história, nas gestas, nos romances e nos filmes de sci-fi ou de catástrofes. É cíclico, dizque. Sempre vai sucedendo ante os olhos. Passo a passo. Mas eclode de jeito inesperado. Nunca estamos preparados quando chega. Nem mesmo que tenhamos por motto em brasão ou num poster mind‑ fulness, zen na parede da cozinha. O pessoal no comando é incapaz de deduzir corretamente as advertências, sinais e indicadores de contexto. Nunca atende vozes agoireiras, confia em aduladores e conselhos mais otimistas, sopesando numa mão o bolso próprio, noutra as perdas em vidas humanas alheias, em que tudo passará ligeiro e sem consequência. A prevenção é cara, as gentes críticas incomodam e a saúde pública, o investimento social e a educação nunca resultam baratas; mas mais custoso é, quando toca, o remédio e as soluções. Quem não atende e corre à pingueira lamenta e chora a casa inteira. Infelizmente, deixa-se à sorte, o que virá mau será; o ouro sempre pesa mais antes, e cega a razão o seu deslumbre. Os poderosos, considerando-se infalíveis por terem alcançado dacavalo dos acasos os altos poleiros nos que assentam, nunca pensam que as ondas chegarão até a porta das suas casas. Em consequência contemplamos a dança da morte em plena espiral enlouquecida: ouvimos os prantos e as lamentações muito antes do pessoal compreendermos ou reagirmos. É curioso como o mundo que enxergamos hoje corre uma e outra na mesma trama. Trilhando caminho a Sísifo, récuas de líderes ineptos, figurões solenes ou esperpén-
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| Ernesto Vasquez Sousa
ticos1 , como adoito dirigindo; conduzidos por doutores indoutos, e assessorados em todos e cada um dos postos principais e secundários de mediocres e miseráveis. Gentes sem sentido, nem lógica, ou escrúpulos, sem capacidade crítica, com nenhuma empatia e com menos imaginação, cheios de soberba, sempre à moda, gerindo o desconcerto habitual do mundo para próprio benefício. Agora, resulta interessante comprovarmos como os que não são quem de gerirem ou deixarem obra pública eficaz para gerações construída, nos tempos bons haviam fazer nas más. Contemplamos o K.O. ao vivo dos grandes dignitários do momento, dignos sucessores de largas gerações de imprudentes; verificamos o sorpasso pela realidade dos políticos e líderes de programa, aparato e marketing; e constatamos a fragilidade das grandes metrópoles e do modelo habitacional e de consumo promovido. O grande capitalismo em batamanta, atento os mass média por eles configurados bopassa2 na espera agitada de que os seus números e apostas caiam no bingo da grande bolsa. Os académicos, intelectuais e agentes comunicativos queimam tempo em roupa de treino fazendo de eco das consignas e palavras de ordem; aplaudindo a raivar como torcidas as fantasias ideológicas dos grupos que os seguem. E a gente, reaprendendo a fazer pão na casa, tele-interatuando e pensando já com medo quem vai pagar as faturas, atrapalhada numa festa amarga de pijamas. Um presente “sobrevindo” de tragédias “inimagináveis”, um futuro de misérias “inevitáveis” e mudanças “obrigadas”, construído, tijolo a tijolo com a argamassa das inúmeras vozes críticas feitas cal e tanta champanha consumida por guieiros a la Churchill, sobre passados imediatos de imprevistos, de presentes a fantasiar com retórica das soluções improvisadas e de futuros a servir como propaganda as arroutadas3 como heroísmos. Leio July 1914 de Emil Ludwig, numa bela edição inglesa (London, New York: G. P. Putnam”s Sons, 1929), ilustrada com fotografias dos principais protagonistas, qualidade de papel e elegante tipografia de entre guerras. “Um estúdio4
Esperpéntico – Grotesco Bopassar – Bem-estar 3 Arroutadas – Impulsos arrebatados, coléricos. 4 Estudo 1 2
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Totentanz |
– como salienta mais ou menos a publicidade impressa que acompanha e anuncia também All quiet on the Wes‑ tern front5 de Remarke – da estupidez dos homens que eram todo-poderosos em 1914 e o instinto certo daqueles que naquele tempo estavam nas margens”. A trepidante narrativa cronológica daqueles poucos dias, descreve as principais personagens, recria os feitos e os momentos decisivos justo antes, durante e depois do assassinato em Sarajevo que arrastará, contra o protesto dos povos e das massas, numa borracheira de diplomacia, maus entendidos, alianças, cheques em branco, orgulho aristocrático desfasado, propaganda patriótica, colaboração de intelectuais e da imprensa à serviço de umas classes dirigentes apenas atentas a conservação dos seus privilégios e carreiras individuais, desprezo absoluto pelas massas, liderados pessoais, obcecação no presente, grandes negócios de uns poucos, velhas tensões territoriais e revanches seculares, Ocidente num massacre de dimensões devastadoras e de consequências globais. Enfim, quem contava…
Nota do autor: Totentanz (Baile das Caveiras, Dança da Morte, Dança Macabra) é o nome de uma obra para piano solo e orquestra de Franz Liszt, notável por basear-se na melodia gregoriana do “Dies irae”, bem como em inovações estilísticas. Foi interpretado pela primeira vez em 1838, concluído e publicado em 1849 e revisado em 1853 e 1859.
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Obra de Erich Maria Remarque, publicado em Portugal com o título A Oeste Nada de Novo.
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Apetece-me beijar-te, de Henrique Castanheira Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
Fernanda Hauptmann Brasil
Fernanda Hauptmann de Almeida é brasileira, nascida e criada em Curitiba. Bacharelanda em Sistema de Informação pela Universidade Tecnológica do Paraná, aos 24 anos, ainda sem livros publicados, encontra na literatura (prosa e poesia) um refúgio desde a infância.
O tom e a cor da pandemia
Se perguntamos a alguém na rua o que é cultura, explicam-nos muito provavelmente que se trata de arte, como a dança, o teatro ou a literatura. Mas a cultura é como ar e está em tudo. Rege nossas relações como o ar enche nossos pulmões por todo o tempo em que estamos vivos. A cultura é o nosso conjunto de valores, os quais nos ajudam a entender quem somos e como podemos ser nesse mundo tão cheio de culturas distintas. A cultura nos delimita, queiramos nós ou não, ela nos ajuda a definir nossas fronteiras pessoais numa contemporaneidade onde podemos ser diversos. Através da arte, a cultura encontra de como se expressar, sem precisar de explicações. No tom do azul, na letra do funk, no passo da dança ou naquela fala bem colocada no roteiro. E em contexto onde tudo é tão novo que precisa ser explicado, justificado e comprovado cientificamente, a cultura encontra em suas expressões artísticas um respiro de normalidade. Se não podemos ser fisicamente sociais, como intrinsecamente somos desde a primeira busca desesperada pelo toque de nossa mãe, então agora nossas decisões devem ser socializadas para que possamos o quanto antes buscar de novo e em segurança o abraço caloroso de quem amamos. E, nessa jornada pelo desconhecido, nos ajuda quem permanece como sempre conhecemos, a arte. Então, em sua expressão máxima, a cultura se flexibiliza, se reinventa, se apropria dos meios que pode, quase que por instinto, para que possamos sentir que estamos um pouco mais juntos. A cultura une, porque um só não faz cultura. A cultura aprende, porque nós estamos aprendendo como podemos ser nesse novo normal. Se há um papel para a cultura no combate a pandemia, é o de nos guiar pelo novo com ar de normalidade. .155
Fernanda Nogas Brasil
Fernanda Nogas nasceu em Curitiba, no sul do Brasil, em 1978. É jornalista (graduada pela Universidade Federal do Paraná), escritora, fotógrafa e contista. Sua primeira obra de contos, 42 Dias (sem publicação no momento), foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura, um dos mais importantes do país.
Inumeráveis do Brasil
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Numa terra de cinquenta mil mortos, ela respirava entre as cinzas. Ainda estava viva. Ainda era capaz da imortalidade. Ainda era chamada a contar histórias. Mas agora era a história dos mortos. Agora era a história das vítimas. A história dos invisíveis de uma nação guiada por mãos genocidas. A história de pessoas sem respiradores, sem funerais, sem medicamentos. A história de Joões, Josés e Marias; de Abeis, Augustos e Abadias. Do avô que ganhara um neto; Da moça que adorava dançar. Do mecânico de São Lourenço da Mata; da enfermeira do Chuí; do pajé da aldeia indígena. Vidas sem direito à vida. Vidas que não importam ao genocida. E aqui não se fala do genocida-vírus. Fala-se do genocida do planalto; Do genocida da república; Do primeiro a abrir as feridas. O genocida que respondeu às mortes: “E daí?”.
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| Fernanda Nogas
Mas ela ainda estava viva. Ainda era capaz de contar histórias. E imortalizou cada um dos cinquenta mil invisíveis. Com o nome de “Inumeráveis” foi batizada. Ela, a arte de contar histórias. A arte tão imemorial quanto a origem da própria vida. E assim ele foi erguido. O memorial de palavras, O memorial das almas perdidas. Almas que viraram palavras, Palavras viraram arte. Arte sobre a qual a realidade está escrita.
*Poema em homenagem à iniciativa “Inumeráveis”, que se dedica a contar a história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil.
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Fernando Costa Portugal
Nasceu algures neste retângulo, vai nos oitenta bem medidos, e teimosamente continua a resistir ao vírus. Fez muita coisa na vida; e uma das coisas que mais lhe agradaram foi a coisa de professor primário em Moçambique, já lá vão décadas. Começou a escrever porque não gostava dos textos que vinham no livro oficial de leitura: que o trabalho dá virtude, dá riqueza e dá vigor, heroísmos do portuga no passado, gravura aqui e ali com o menino nas palhas, querubins à volta, e dísticos de catecismo em fitas ondulantes. Entendia o autor que tudo isso era estopada que os miúdos só engoliam porque eram obrigados; e passou a substituir por pequenos textos de sua lavra, suscetíveis de suscitar mais interesse do que heroísmos do portuga no passado. Por vezes acontecia que as avós de pé descalço e capulana rota se cruzavam com ele na picada, paravam, logo diziam: "Profêssô, bem me ri com aquela história da escola que a minha neta contou em casa". E dessas apreciações gostava – porque ao autor mais agradava (e agrada) o apreciar das velhas de pé descalço e capulana rota do que o apreciar de algumas academias do bem‑falar e bem‑escrever. O autor não é, infelizmente, graduado ou pós‑graduado por universidade alguma, ficou‑se pela 4ª classe dos tempos do Salazar – uma 4ª classe que não dá para escrever livros. E isso explica que ainda não esteja traduzido em mandarim, nem galês, nem letão, nem hieróglifo. Também não é Presidente do Conselho Editorial de organização alguma, nem membro efetivo, suplente ou virtual de Academia do que quer que seja. Verdade que viajou no ano passado para o Fundão, mas ia só provar a cereja temporã, não ia participar no Festival Literário da Gardunha. Não pendura ao peito medalha, comenda ou grã‑cruz de coisíssima nenhuma, o que muito lamenta. Não pela honra em si, antes pela selfie que gostaria de ter tirado em Belém ao lado do sorridente e afetuoso inquilino. O autor evita mostrar fotografia para não obrigar o leitor a fugir a sete pernas e sete pés.
Em tempo de pandemia
Os senhores1 nem imaginam quanto para mim tem sido azarenta esta sexta ou sétima semana (já lhes perdi a conta) de confinamento obrigatório por causa do vírus. Cada dia pior que o anterior. Hoje acordei muito cedo. Não era minha intenção acordar cedo (gosto de dormir manhã na cama, pouco mais tenho para fazer), mas aí pelas oito ou oito e meia comecei a ouvir pimpins, um a cada segundo. Torneira mal fechada, deduzi. E deduzi porque não era a primeira vez nem a segunda que isso acontecia. O som parecia vir da cozinha, lá fui, vi aquela grande mancha de água no chão. Pois era isso mesmo: torneira mal fechada, válvula deixada no ralo do lava‑louça, o pingo encheu o lava‑louça, a água extravasou. Agi rápido de esfregona na mão porque a água já estava a entrar no buraquinho entre o mosaico e a parede deste velho primeiro esquerdo. Velho, e de renda que a segurança social me ajuda a pagar (depois de muitos requerimentos e provas de pobreza, qual delas mais dramática). Ainda eu não tinha acabado de esfregonar, bate‑me à porta a Dona Arlete do rés‑do‑chão. Ela vem sempre reclamar, palpitei logo mais uma reclamação. A Dona Arlete vinha de máscara cirúrgica e ar zangado. Não disse bom ‑dia, o que disse foi: ‒ Ouça lá, você sabe que estamos em pandemia e tem o descaramento de abrir a porta sem máscara que me proteja das suas tosses e espirros? Recuei prontamente, foi enfiar a máscara, reapareci. ‒ Já imagino ao que vem, Dona Arlete. Desculpe lá, dei-
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(N.A.) E as senhoras. Defeito de fabrico, estou sempre a esquecer‑me delas.
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| Fernando Costa
xei outra vez a torneira mal fechada, deve haver um pouco de água a escorrer pela sua parede abaixo. ‒ Um pouco de água? Diga antes um rio! ‒ As minhas desculpas, Dona Arlete. Vou já limpar a sua parede, dê‑me só uns minutos para tirar o pijama e vestir qualquer coisa. ‒ Entrar em minha casa? É o entras! Eu sei lá se você está infectado? Lançou‑me um olhar esconso, desandou, e manteve o ar esconso a descer a escada. Começava mal o dia. Já que estava à porta avancei para a caixa do correio à procura daquela carta da segurança social a anunciar o aumento mensal de dois euros na pensão. Havia quase um mês que o aumento tinha sido aprovado em parlamento ‒ e o raio da carta nunca mais aparecia a confirmar, tranquilizar. Também não apareceu hoje, na caixa só vi a fatura da luz. O dia continuava mal. Vesti‑me a preceito (não sei bem para quê, não tinha plano de saída), fiz café que bebi sem leite porque o leite tinha acabado ‒ e eu não iria conseguir outro pacote porque a lojinha aqui do bairro continua fechada. Não gosto deste café se não lhe misturar um pouco de leite. Porque este café é desses cafés de plástico que vêm em frasquinho e saberão certamente a qualquer coisa ‒ mas não a café. O dia piorava a olhos vistos. Mas, já que estava vestido a preceito, saí para uma daquelas voltas curtas que ainda se autorizam. Ia para onde? Não fazia ideia. Nestas dúvidas costumo rumar à paragem do autocarro e esperar o primeiro que passe. Se for o que vai para Oeiras, vou para Oeiras; se for o que vai para a Amadora, vou para a Amadora. E na Amadora apanho comboio até Lisboa se me sinto tentado a viagem mais longa. Nada de planos prévios, tudo a decidir na hora. Porque planos prévios em tempo de pandemia não se devem fazer, o mais certo é saírem furados. Passou primeiro o autocarro da Amadora, fui para a Amadora. Que tinha eu a fazer na Amadora? Nada, absolutamente nada. Foi talvez esse nada que me decidiu a entrar no comboio para Lisboa. E que tinha eu fazer em Lisboa? Também nada, absolutamente nada. Em tempos de pandemia viaja‑se bem no comboio: máximo de 10 ou 15 passageiros por carruagem, e bem afas.162
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Em tempo de pandemia |
tados uns dos outros para evitar contaminações (norma em letras gordas na estação). Na Amadora só entraram dois na carruagem vazia: eu e um sujeito que se preparava para sentar mesmo a meu lado. Sou de poucas palavras, encostei o indicador da mão esquerda ao indicador da mão direita, depois afastei‑os aí uns vinte centímetros. O homem percebeu o convite a afastamento, avançou duas fileiras, instalou‑se numa das muitas cadeiras vazias. Estava agora a quase três metros, cumpria a regra. Sou de poucas palavras, só lhe atirei um gesto de agradecimento. Mas o homem queria falar. Virou‑se no assento, disse: ‒ Desculpe lá, eu sei que não posso sentar junto, mas só queria falar um pouco. Já há dias que não falo com ninguém por causa desta porcaria do confinamento. E eu gosto de falar, trocar umas ideias. ‒ Troque. ‒ Bom, na verdade não tenho nada de especial para dizer, só queria desenferrujar a língua. ‒ Desenferruje. ‒ É uma chatice esta coisa de termos de ficar confinados em casa por causa do vírus, não é verdade? ‒ É. ‒ A vida já estava mal; e agora com este confinamento pior ficou, não acha o senhor? ‒ Acho. ‒ Com este confinamento tudo me passou a correr às avessas porque agora até tenho de aturar vizinhos que anteriormente pouco via. Imagine o senhor que ainda não eram sete da manhã e já eu me via obrigado a deixar a cama para atender a fulana do segundo esquerdo ‒ reclamação por causa da janela que eu tinha deixado aberta e a bater toda a noite. Veja o senhor que a fulana até me chamou descarado por lhe ter aparecido à porta sem máscara. Então o senhor acha que uma pessoa que acaba de se levantar da cama já tem de andar de máscara? ‒ Não acho. ‒ Vi logo que o dia estava a começar mal. E mal continuou porque quando me preparava para matabichar verifiquei que o pão tinha acabado. Onde ia eu arranjar2 pão com todas as lojas fechadas por causa da pandemia? Não matabichei, o
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Tomar o pequeno-almoço.
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dia continuava mau. E pior ficou quando fui à caixa do correio e vi que ainda não tinha chegado a carta da segurança social a anunciar aquele aumento de dois euros que os tipos andaram a discutir no parlamento. Uma chatice. Um tipo ganha tão poucochinho e depois nunca mais aparece o aumento que lhe andaram a prometer. Um problema que o senhor não terá porque a sua reforma deve ser aí uns mil, não? ‒ Dois. ‒ Dois mil euros? Porra, isso é um balúrdio! Quem me dera! Mas não pense que tenho inveja. Ganho pouco porque só fiz a 4ª classe, enquanto que o senhor deve ter tirado cursos… ‒ Vários. ‒ Olhe, isso de ganhar um balúrdio acaba por não ser lá muito bom porque quanto mais se ganha mais se desconta. A si também lhe devem tirar logo um balúrdio em descontos, não? ‒ Um balúrdio. (Afundei‑me mais no assento, evitava que ele reparasse bem no casaco coçado. No sapato cambado e na calça de feira não podia ele reparar porque lhe ficavam fora do ângulo de visão). O homem continuava a dissertação sobre balúrdios e descontos: ‒ A mim não fazem desconto porque a minha pensão não chega ao salário mínimo. Com isso tenho sorte. Mas, por outro lado, ganhar abaixo do salário mínimo é tão pouco, não é? ‒ Deve ser. ‒ Pois, continuando a nossa conversa, eu já estava tão farto de estar fechado em casa que hoje resolvi sair, ir até Lisboa. Não é que eu tenha alguma coisa a fazer em Lisboa. Nada, absolutamente nada, vou só espairecer. Mas quando cheguei aqui à estação já estava a ficar arrependido. Sabe, é que eu sou muito esquecido, estou na dúvida se deixei ou não deixei a luz da cozinha acesa. Mas que se lixe, resolvi não voltar atrás, vou mesmo espairecer. O senhor também vai espairecer? ‒ A negócios. ‒ Pois negócios é coisa a que me não dedico, tirante as couves e as batatas que de vez em quando compro ao Chico Espinha, aquele que tem lojinha de hortícolas na minha rua. Por acaso ainda não me deu os vinte e cinco cêntimos de troco da compra da semana passada. Dizia .164
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Em tempo de pandemia |
ele que não tinha moedas. Aldrabice. O senhor conhece o Chico, não conhece? ‒ Perfeitamente. ‒ Pois eu não vou a Lisboa a negócios, vou só espairecer na rua. Digo na rua porque às vezes também espaireço em casa. E, porque simpatizo consigo, até lhe vou dizer como espaireço em casa: escrevo. Só fiz a 4ª classe do tempo do Salazar, mas mesmo assim gosto de escrever coisas, é a maneira como espaireço em casa. O senhor por acaso será como eu, também costuma escrever coisas? ‒ Nunca. ‒ Pois então aceite o meu conselho, escreva umas coisas de vez em quando. Ajuda a passar o tempo, distrai, e é bom para a saúde da cabeça, não acha? ‒ Talvez seja. Ele não chegou a dizer‑me que coisas costumava escrever porque o comboio já chegava ao Rossio. Atirei‑lhe um aceno de despedida, raspei‑me rápido. Sou de poucas conversas e palavras. Não queria mesmo mais conversa com aquele companheiro de desgraças. E lá estava eu em Lisboa a espairecer sem programa. Para o lado dos Restauradores ou para o Chiado? Não tinha razão especial para optar pelo Chiado, mas optei pelo Chiado. Subi a Rua do Carmo, não ouvi aquele fado da Amália que costuma sair do camião muito antigo que lá costuma estar parado (e agora também está, mas sem disc‑jockey), olhei com pouco interesse os tipos de trança e as tipas a condizer que se sentam no passeio de mochila ao lado, espreitei (só por espreitar) a montra de uns Armazéns do Chiado fechados, subia a Garrett, vi que na montra da Bertrand (fechada) já estava exposto o último romance de um desses tipos da televisão que escrevem romances, na Brasileira vi muito poucos turistas a “selfar” com o Pessoa, depois fui inspeccionar os pombos do Camões, desci para o Cais do Sodré, voltei ao Rossio por aquela rua onde há as casas do bacalhau (onde não comprei bacalhau porque estavam fechadas; e mesmo que estivessem abertas não compraria porque ainda não recebi carta da segurança social a certificar os dois euros de aumento). No Rossio pareceu‑me que já tinha espairecido o suficiente, já podia voltar ao comboio para o regresso, subi a escadaria da estação. Não fui pela escada rolante, não. O UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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diabo tece‑as, e eu sei que há sempre uns tipos apressados que ultrapassam e se encostam demasiado quando o fazem. Melhor usar a velha escadaria: em tempo de pandemia homem prevenido vale por dois e meio, diz o meu vizinho Jeremias. Eu a entrar na carruagem e a ver lá aquele palavroso companheiro de desgraças que até já tinha esquecido. O homem aproximou‑se logo, fiz o tal sinal dos indicadores a afastar ‑se, ele cumpriu, recomeçou a conversa interrompida: ‒ Olhe, ainda bem que saí de casa, consegui realmente espairecer um pouco em Lisboa. O senhor é que não deve ter podido espairecer porque vinha tratar de negócios. Bem proveitosos esses negócios, suponho… Não sei se era pergunta ou não, mas respondi: ‒ Muito. ‒ Pois eu não sabia que direcção tomar, acabei me decidindo pela Rua do Carmo, que é a que fica aqui mais perto. De modo que subi essa rua. Não gosto muito de a subir porque por ela acima vejo sempre aqueles vadios de tatuagem, trança, e brinco na orelha, muitas vezes com uma gajas que não parecem melhores do que eles. Acho que o governo devia era espantá‑los dali para fora, obrigá‑los a trabalhar, não acha também o senhor? ‒ Acho. ‒ Pois continuei rua acima, virei depois para a Garrett, frente à Brasileira lá estavam umas gajas e uns gajos da estranja a tirar selfie com o homem de ferro que está sentado na cadeira. Vejo sempre isto. A propósito: o senhor tem alguma ideia de quem seja o homem de ferro? ‒ Nenhuma. ‒ Depois andei mais uns cem metros, cheguei à estátua daquele fulano que escreveu uns versos que os miúdos da escola são obrigados a estudar. Já ouviu falar desses versos, não ouviu? ‒ Não. ‒ É pena, porque o Gervásio até diz que esses versos são coisa boa. O senhor conhece o Gervásio, não conhece? Aquele que mora junto ao Minipreço e é casado com a Catarina da papelaria, não conhece? ‒ Perfeitamente. (Quem diabo será esse Gervásio?) ‒ Pois o Gervásio diz que os versos são coisa boa. Mas não era do Gervásio que eu queria falar, eu queria era .166
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Em tempo de pandemia |
continuar a contar o meu passeio de espairecimento. Da estátua do homem dos versos desci até ao Cais do Sodré, depois voltei ao Rossio por aquela rua onde há as lojas do bacalhau. Mas nem gosto de passar por aí, confesso que tenho sempre inveja daquele bacalhau grosso. No tempo do Salazar também havia um bacalhau fininho, chamavam‑lhe de terceira, coisa tão barata que toda a gente podia comprar. Hoje não: bacalhau grosso ou fino é tudo caro, tudo comida de rico. Eu gostava de voltar a ter aquele bacalhau barato dos tempos do Salazar, por isso não percebo porque é que há para aí tanta gente a dizer mal do homem nos jornais e nas televisões. É feio, não acha? ‒ Acho. ‒ E também achei feio aquela coisa de os comunas lhe tirarem o nome da ponte, até parece que foram eles, os comunas, a construí‑la à pressa na noite de 24 para 25. O senhor acha isso bem? ‒ Não acho. Estávamos a chegar à Amadora, o homem levantou‑se para sair, pensei que ia finalmente libertar‑me dele. Mas não, ele ainda tinha mais para dizer: ‒ Pois, meu caro senhor, nem imagina como gostei da nossa troca de impressões. O senhor faz pouca pergunta e responde curto, não é como essa gente que passa a vida a tagarelar. Nunca gostei de gente que fala pelos cotovelos, falam muito porque não sabem ouvir. E quando respondem a alguma pergunta dão voltas e mais voltas até chegar àquele ponto que nos interessa. E sabe o senhor mais? Depois de muita conversa veem que não arranjam resposta de jeito, põem‑se a divagar, falam disto e daquilo, parece que têm corda. Enfim, gente que fala muito e diz pouco. Mas consigo é mesmo bom falar. Faz pouca pergunta e dá resposta curta. Isso é que é saber conversar. Foi um prazer esta troca de impressões, muito obrigado e proteja‑se do vírus. O vírus só devia atacar os que falam demais, mas ataca a todos, por isso proteja‑se. Na plataforma lembrou‑se de mais qualquer coisa. Mas a porta já tinha fechado, o comboio partia, e ele corria plataforma fora ao lado do comboio, estava a dizer‑me mais qualquer coisa. Mas não percebi, sou mau leitor de lábios. Cheguei ao meu prédio, vi a Dona Arlete de máscara à janela do rés‑do‑chão, atirei‑lhe aceno amável (a que só UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Fernando Costa
respondeu com ar esconso), procurei a chave, quando entrei em casa corri a ver como estavam as coisas na cozinha. Tudo legal, como dizem os brazucas: não ouvi pim….pim, mosaicos bem secos, nada de água a espraiar, alegrei‑me. Mas logo me desalegrei quando entrei no quarto: luz deixada acesa por umas quatro horas e a electricidade está tão cara! Dia mau até ao fim, vi que precisava de sair outra vez, espairecer mais um pouco. E então lembrei o sujeito que tinha desenferrujado a língua à minha custa e me confidenciara que também espairece em casa escrevendo coisas. Fiz mais café daquele que sabe a outra qualquer coisa, arregacei as mangas, peguei a bic de ponta fina, e comecei a escrever esta história para que os senhores (e as senhoras) se possam entregar a um pouco de espairecimento caseiro em tempo de pandemia. Certo que não será espairecimento muito cultural porque a minha 4ª classe não dá para isso ‒ vem do tempo do Salazar, tal como a do meu companheiro de viagem. Mas se a dele dá para espairecer em casa ‒ também a minha há‑de dar. Pena é que eu ainda não tenha conseguido adaptar‑me (ou adatar‑me?) a esse novo acordo ortográfico que anda aí pelas esquinas. Fim
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Filipa Vera Jardim Portugal – Moçambique
Filipa Vera Jardim, portuguesa, natural de Tete, Moçambique, e residente em Lisboa, começou a publicar no suplemento "DN Jovem",do Diário de Notícias, onde escreveu sob vários pseudónimos. Tem participado em inúmeros eventos de poesia, tertúlias, encontros, revistas, com trabalhos em poesia e prosa, com trabalhos integrados em várias coletâneas em Portugal, Brasil, África do Sul, Angola e Moçambique. Tem participado em projetos conjuntos de poesia e prosa com fotografia e artes plásticas. Tem publicado em Portugal com o Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD), do qual é membro. Publicou nos Contos Capitais, obra que marcou o início das Edições Parsifal. Mantém o blogue literário " Chez George Sand" onde escreve regularmente (http://chezgeorgesand.blogspot. pt) e ocasionalmente, a convite, noutros espaços. Publicou em 2015 o livro São Martinho do Porto – Momentos, em coautoria com o fotógrafo Pedro Soares de Mello. Tem colaborado com o Jornal Tornado, onde escreve regularmente. É membro do PEN Clube Português
O bicho
Breve reflexão sobre o bicho (pandemia de Coronavírus 2020)
Chegou de repente, o bicho, e invadiu tudo. Um bicho redondo, sem arestas definidas nem olhos para ver. Sem orelhas para ouvir nem pernas para correr, sem asas, sem braços, sem quase existência. Um bicho redondo que se insurgiu e se acomodou sem pedir licença. Sabe-se pouco do bicho, dos seus hábitos, muito menos a forma de o combater. O bicho chegou e invadiu tudo o que havia. Diz-se que se cola aos sapatos, emaranha pelos cabelos, transpõe a fronteira das pálpebras, da boca, do tracto respiratório de cada um, do tracto existencial de todos. Das paredes da alma, até. E vive em todo o lado na sua omnipresença de quase não existência, esse bicho. Chegou de repente, o bicho, e invadiu tudo o que havia e todos. Há quem jure que sobrevive a qualquer clima. Afinal, nesse lugar de quase não existência, “qualquer” significa quase nada. É um bicho preparado para o calor, o frio e a intempérie. Um bicho que não teme ser arrastado pela chuva grossa que escorre lá fora de encontro à vidraça. Um bicho que trata a neve e o vento com o à vontade de quem os conhece por inteiro. E o bicho chegou de repente e invadiu mesmo tudo. Diz-se que o bicho, microscópico, que ninguém vê, tem poderes. São poderes enormes, quase absolutos. Trata-se afinal, de um rei minúsculo, esse bicho que atravessou os mares, os continentes. Um rei solitário e viajante que ontem era só uma ameaça e hoje se torna numa realidade cada vez mais constante, cada vez mais presente. Um bicho que chegou e invadiu tudo com a vontade firme de permanecer. .171
| Filipa Vera Jardim
Todos os dias, o espaço do bicho cresce mais e mais. Outros bairros, outras gentes, outros pontos do mundo. O bicho persiste dentro e fora. Avança destemido pelo ar e à boleia de quem corre, de quem fala, de quem existe, de quem se mexe, de quem transpira, de quem trabalha e de quem é gente. Não fosse dar-se o caso de haver gente e, porventura, nem haveria bicho. É da humanidade e do afecto, da proximidade e da convivência que o bicho se alimenta. Uma companhia tóxica, inoportuna e insidiosa que a pouco e pouco nos confina o espaço e nos alarga o tempo. O bicho é afinal a própria transcendência na sua plenitude maldosa e alimenta-se da característica mais plena que lhe garante longa vida: a nossa completa ignorância. Cada vez que não sabemos nada desse bicho ele ganha mais um espaço. Desta vez, diz-se que entrou pelas janelas, pelas frinchas, pela conversa amena que tivemos sem pensar. Ou então, diz-se que se senta à mesa e se cola às nossas mãos… Não podemos é deixar de pensar. Não pensar é abrir a porta ao bicho que se alimenta dos nossos descuidos e do nosso desespero. Disso, já temos já praticamente a certeza. Ontem deixei de me desinfectar e o bicho ganhou espaço… Ontem dei-te um abraço e o bicho galgou um infinito… Ontem, chorei as lágrimas da tua ausência e o bicho aproveitou a torrente que me escorria da cara para nadar em contraciclo, através dos cantos abertos e agora vazios dos meus olhos. Não pensei…No entanto, se pensasse sempre talvez também não fosse espontâneo. A espontaneidade é pois um perigo com este bicho. Não sabendo nós nunca onde ele está, é como se estivesse em toda a parte. O espaço, ocupa-o ele, sobretudo, de cada vez que temos medo, de cada vez que nos encolhemos e não saímos, não fazemos, não permitimos, não agimos na nossa plenitude de humanidade. O tempo é agora longo e vazio. O espaço imenso que o bicho ocupa confinou-nos a um absurdo onde nada mais existe porque nada mais é importante. De todas as nossas rotinas, agora suspensas, ficaram .172
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
O bicho |
apenas aquelas que não nos definem e não nos diferenciam. Somos seres vivos, alimentamo-nos, dormimos e somos apenas isso, diz-nos o bicho todos os dias do alto da sua omnipresença encapotada. Numa pandemia, aprendemos por isso a ter saudade daquilo que já fomos e não sabemos se alguma vez voltaremos a ser. O tempo curto dos nossos afazeres, que foi substituído por este acumular de angústia, desapareceu. E o espaço, o nosso ínfimo espaço, agora ficou reduzido na nossa mera existência porque o bicho levou com ele a nossa essência. Tem-na lá escondida por detrás de toda a nossa ignorância e sobretudo do nosso medo. Um dia, o sol pode até queimar este bicho ou alguém desistir da sua existência ou alguém provar que é possível combate-lo. Até lá, temos esta invisibilidade omnipresente e sufocante, cada vez maior, que mal conhecemos e não antecipamos. Por agora, ficamos nesta espécie de dormência sem saber se algum dia nos cruzaremos a sério com este bicho e com as suas consequências. Estamos à espera e vigilantes. Somos mortais, isso aprendemos logo no dia em que o bicho chegou. E o bicho chegou e invadiu tudo!
A Autora não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Gabriel Baguet Angola
Gabriel Baguet é luandense das Ingombotas, autor, ensaísta e jornalista de profissão. Trabalhou no jornal O Primeiro de Janeiro, na RTP – Porto, no Diário Económico e integrou a fundação da RDP-ÁFRICA, estrutura do Grupo RTP, onde permanece como quadro do departamento internacional. É autor de diversos ensaios e fotobiografias, cronista no semanário angolano O País e foi o primeiro autor de um programa radiofónico dedicado à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, com o título “Rostos da CPLP”. Integrou ainda a equipa da Nações Unidas em Angola. Os mais próximos chamam-lhe o “poeta diplomata” e dizem ser um dos últimos românticos de Angola. Homem de sonhos e de causas, acredita que a Cultura é e será o grande fator de mudança no século XXI.
Se a cidade fosse um livro
A trágica Pandemia Mundial que tem marcado o compasso dos nossos dias e das Cidades trouxe ao nosso imaginário e à nossa Memória individual e coletiva múltiplas questões, mas igualmente muitas e diversas respostas não conclusivas face ao nosso quotidiano. O COVID-19 tem deixado a cada um de nós e a nível planetário esta infeliz narrativa. O extraordinário apelo da UCCLA para refletir a Cultura em Tempos de Pandemia é de uma coragem e um desafio que fica na História da nossa existência e em pleno Século XXI. Por essa e outras razões e no quadro do Paradigma de Um Novo Mundo, aceitei comovido namorar com algumas palavras e incorrer nesta caminhada tão fundamental e necessária que é a Cultura. A minha reflexão ao longo deste tempo Novo Tempo tem implicado a observação mais detalhada das Cidades, e da Cidade em si, como um todo que percorremos no domínio da Arquitetura, da palavra Cultura, da História, da Cidade e das Cidades como espaços de Arte, de Diálogo Humano e de construção também de territórios culturais tão imprescindíveis ao Desenvolvimento Humano, mas inquestionavelmente uma ponte para fixar no Tempo, na Memória e na Escrita, a partilha de Saber e do Conhecimento. Este texto começou a ser desenhado há muito tempo e continuado no silêncio dos meus Dias, observando e sentindo o silêncio dos Dias do mundo. As Ruas, as Avenidas, os Museus, as Livrarias, os lugares habituais de Diálogo e de Falas Culturais nos diferentes domínios da Criação e da Expressão Artística ficaram em Silêncio. A Pandemia, infelizmente para todos Nós, reteve-nos no Tempo da nossa Memória e das nossas variadas inquietações, interrompeu o decurso natural da vida e passou a chamar-se um “Novo Normal”. .175
| Gabriel Baguet
E das imensas citações e pensamentos que poderia fixar nesta fala com a Escrita, há uma que me ocorreu deixar nesta análise pela coincidência da primeira letra do Alfabeto ser a Letra A e referir Angola, meu espaço urbano de nascença e meu cais de embarque para o Mundo é lembrar Luanda, a minha Cidade berço e como disse o Escritor e Etnógrafo Angolano Óscar Bento Ribas, “Luanda é a luz dos meus olhos que a minha cegueira não retirou”. Desta lindíssima citação do Autor de múltiplos livros sobre a Identidade cultural Angolana, acrescentaria a do histórico estudioso do Jazz em Angola que é Jerónimo Belo e que escreveu de modo sábio e romântico e que cito que “é possível amar uma Cidade como se uma mulher”. É verdade. Por isso, “Se a Cidade Fosse um Livro”, cada página teria os nomes de todas as Vítimas do COVID-19 e as futuras Avenidas da nossa Cidade, das Existentes e das Imaginárias, teriam igualmente uma inscrição toponímica como forma de Homenagem a quem viu subitamente a sua Vida interrompida. “Se a Cidade Fosse um Livro”, cada capa e contracapa teria o nome de todos os Museus, Galerias de Arte, de Músicos, de Pintores, de Escultores, de Bailarinos, de Cineastas, de Poetas e de todos os fazedores de Arte e da Cultura. Num memorável e inesquecível Poema, o histórico Vinícius de Moraes recorreu à Cidade e lembrou-a como ponto de partida a Amar e escreveu o “Crepúsculo em Nova Iorque”. Nova Iorque é, entre outras Cidades do mundo, uma das capitais atingidas por esta brutal Pandemia. E por isso reafirmo nestas humildes palavras que brotam do meu coração que “Se a Cidade Fosse um Livro”, cada janela teria um Poema de todos os Poetas do mundo inteiro e .176
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Se a cidade fosse um livro |
cada parágrafo de cada Livro teria o nome de todos, Mulheres e Homens que ao longo da História da Humanidade escreveram, fixaram as suas palavras e sonhos para que de forma natural e romântica deixassem para o devir dos nossos Dias. “Se a Cidade Fosse um Livro”, cada palavra falaria da importância do Amor, dos Abraços fora e dentro da Pandemia, mas da necessidade Afetiva de um Beijo, da desejada Cultura e dos seus troncos de Falas multidisciplinares e de Cidadania Inclusiva. “Se a Cidade Fosse um Livro”, cada Glossário, Prefácios e Posfácios falariam de Humanismo, cada vez mais importante nos Novos Dias da Humanidade, de mais Cultura e Conhecimento, mas também de mais Partilha, Fraternidade e Solidariedade porque a Cultura, a Cidade e as Cidades precisam destes laços e desta Insustentável Leveza da Cultura. “Se a Cidade Fosse um Livro” registaria para Memória presente e futura o nome de Escultura que fortalece o nosso Amor pela Arte e pelos laços que são necessários recriar em Tempos de Pandemia, apesar das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação Global permitirem reinventar as nossas Vidas. Criar é preciso. “Se a Cidade fosse um Livro”, cada Livro continha páginas traduzidas com as palavras Abraço, Amor, Paz, Tolerância, Respeito pela Diferença, Desenvolvimento Humano e necessariamente a minha apaixonada palavra Cultura em termos locais e globais. “Se a Cidade Fosse um Livro”, cada página não deixaria de conter múltiplas referências aos nomes de todas as Mulheres e Homens que ao longo da História da Humanidade estiveram e continuam ligados ao Devir da Cidade, UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Gabriel Baguet
das Cidades e dos Livros, num processo de contínua construção cultural no plano das Artes, da Cultura e claramente no domínio das Artes Plásticas e das suas outras Artes, como a Pintura, a História de Arte, a Escultura, o Desenho, a Fotografia, a Música, a Literatura, a Poesia, a Arquitetura, o Cinema, e do necessário caminho de encontro dos Espaços Museológicos e da consulta imperativa dos seus Acervos. Os Acervos, quaisquer sejam, são lugares e gavetas de Memória permanente e que estão inscritos na narrativa da Cidade, das Cidades e, necessariamente, “Se a Cidade Fosse um Livro”. Porque a Cidade é um espaço de Memória e os Territórios que a compõem são páginas de diversas Histórias feitas de passados, de presentes variados e múltiplos futuros. A Cultura é uma das chaves para suavizar o Pensamento, mas igualmente a Cultura permite e alerta-nos para os fenómenos reais do quotidiano e é um palco aberto e dinâmico à práxis dos Novos Tempos. A Cultura é também o Oxigénio de que tanto precisamos para viver, mas também para respirar. A Cultura tem essa dupla responsabilidade e os seus desafios e desígnios abraçam-nos em tempos de incógnitas, mas desafiam-nos a interpretar os dias, os nossos Dias, os dias dos Outros e a beleza que a Cultura comporta em qualquer Cidade ou território do Mundo. Segundo Le Goff (2013, p.437), “A memória, a qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro”. Enquanto geradora da identidade, a memória pode ser vislumbrada como sendo participante de sua construção, uma vez que a própria identidade de uma sociedade realiza certas seleções da memória e ainda dá forma às predisposições que vão conduzir o indivíduo a incorporar alguns aspetos .178
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Se a cidade fosse um livro |
particulares do passado. Pollak (1992, p.01-03) destaca como característica da memória, tanto individual como coletiva, o caráter mutante. Tais elementos mutáveis são, sobretudo, episódios vividos pessoalmente ou pelo grupo no qual a pessoa se relaciona. A memória também pode sofrer flutuações, dependendo do momento em que ela está sendo abordada. O autor analisa ainda os elementos constitutivos da memória e ordena-os em: acontecimentos, pessoas e lugares. Os acontecimentos podem ser vividos pessoalmente ou ser acontecimentos vividos “por tabela” (vividos em coletividade); as pessoas podem ser categorizadas por personagens encontradas durante a vida e também vividas indiretamente, ou “por tabela”. Por fim, os lugares da memória, lugares de comemoração, que ficaram marcados na memória pública do indivíduo, os vestígios datados da memória.
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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O bobo,
de Henrique Castanheira Aguarela e lápis 36 x 28 cm | 2020
Fotografia de Anabela Carvalho
Germano Almeida Cabo Verde
Nasceu na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1945. Licenciou‑se em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Foi Procurador da República de Cabo Verde e exerce atualmente advocacia em São Vicente. As suas primeiras estórias foram publicadas sob o pseudónimo de Romualdo Cruz na revista Ponto & Vírgula, da qual foi um dos fundadores. Germano Almeida é ainda coproprietário e diretor do jornal Aguaviva, e sócio da Ilhéu Editora, responsável pela publicação dos seus livros em Cabo Verde. A sua obra de ficção representa uma nova etapa na história literária de Cabo Verde e está publicada em vários países, como Brasil, França, Espanha, Itália, Alemanha, Suécia, Holanda, Noruega, Dinamarca, Cuba, Estados Unidos, Bulgária e Suíça. O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo (romance de estreia, 1989), foi adaptado ao cinema, no filme intitulado "O Testamento do Senhor Napumoceno", galardoado com o 1º Prémio do Festival de Cinema Latino ‑Americano de Gramado, no Brasil, e distinguido com os prémios para o melhor filme e melhor participação como ator no 8º Festival Internacional Cinematográfico de Assunción, no Paraguai. Foi o vencedor do PRÉMIO CAMÕES de Literatura 2018, com a obra O Fiel Defunto (2018). Assumidamente um "contador de histórias", o autor considerou então O Fiel Defunto, o seu "primeiro romance".
Quarentena
‑ a cestinha básica
Da sua varanda para a minha o Zé cumprimenta‑me com um sonoro bom dia! Mas depois baixa a voz para me perguntar quase num sussurro se não há por aqui nenhuma “cestinha básica” para ele. Somos vizinhos desde sempre, as nossas relações tiveram muitos altos e baixos, mas melhoraram consideravelmente desde que ele passou a beber só aos fins de semana, dedicando os restantes dias à exploração comercial da casa dos seus pais que transformou num estabelecimento de aluguer de quartos por dias ou por mês. Já lá vão alguns meses que está nessa atividade, aparentemente com proveito porque está com muito bom aspeto físico, limpo e asseado, e também deve andar a alimentar ‑se e a beber com moderação. Tem voz de trovão, tal qual aliás o pai já tinha, porém trata os seus hóspedes com estima, ouço‑o rir com eles, contar piadas, ouvir música, enfim, estão familiarmente em casa. As únicas vezes que o ouço gritar é quando berra “Ou pagas já, ou rua!” Desde a primeira vez que ouvi esse brado impiedoso que passei a tratá‑lo por empresário. Antes disso passava o tempo a pedir‑me coisas: Dr. estou sem água em casa, preciso encher uns garrafões; dr, está a faltar‑me um dinheirinho para completar o almoço… Cortei isso tudo: Hoje em dia és um empresário estabelecido na praça, no ramo modernamente chamado de hostel, tendo tu a vantagem de não pagar impostos, disse‑lhe, eu, pelo contrário, sou um catador sem salário garantido, eu é que devia estar a pedir‑te, não o contrário, assim não há mais nada para ti! Isso já foi há uns tempos e, zangado e orgulhoso, deixou ostensivamente de me cumprimentar e nem água voltou a pedir. Porém, aproveitou agora o covid‑19 e o estado de emergência com a cidade fechada para voltar à carga .183
| Germano Almeida
precisamente com a “cesta básica”, que é a expressão que mais se houve no presente tempo. Na verdade, desde que a decisão foi lembrada e começou a entrar na vida e no vocabulário das ilhas que muito mais gente do que se supunha vem‑se achando com direito a uma cesta básica. Sobretudo porque, logo nos primeiros e alarmantes dias da pandemia, quando a imediata e urgente palavra d”ordem foi “lavar as mãos”, com a televisão, em demorados e repetidos programas, mostrando as melhores e mais infalíveis técnicas de as manter asseadas, diligentes grupos de cidadãos do centro da cidade se juntaram para solidariamente recolher sabão variado e destinado a ser distribuído pelo povo dos bairros periféricos: sabonete, sabão de barra, sabão de potassa, sabão clarim, sabão de glicerina, enfim, qualquer tipo de sabão com capacidade para fazer espuma. Que os destinatários aceitaram e receberam alegremente, não só mostrando especial apetência pelos sabonetes com cheiro tipo palmolive ou nívea, como também lembraram que um dos principais dramas das casas de tambor dos bairros de lata é a falta d”água, e sem ela é de todo impossível lavar as mãos. E os nossos citadinos, reconhecendo a justeza e a verdade dessa injunção, estavam ainda em busca de uma solução para resolver o problema da água, tipo, por exemplo, afretar camiões com tanques e mandar distribuir pela periferia, quando um repentino e exponencial acréscimo de covid‑19 levou à declaração da segunda e mais premente palavra d”ordem, “ficar em casa”, por sinal mais enérgica que a anterior “lavar as mãos”, porque agora acompanhada da imposição constitucional e policial do “estado de emergência” solenemente declarado pelo presidente da República via televisão, ele de fato completo e gravata escura e sem sorriso, tudo a condizer com a gravidade da situação. E então a água foi, se não esquecida, pelo menos banalizada, sobretudo quando, a seguir à normal euforia de, após quase 45 anos de independência, termos finalmente ascendido à categoria de países com pergaminhos de exército nas ruas, se lembraram que, para grande parte do nosso povo, ficar em casa significava passar fome, a menos que fossem socorridos com urgência e sem delongas, porque a sua vida decorre na rua em busca de expedientes que acabam possibilitando que à noite possam levar a panela ao lume e alimentar os filhos, mesmo que seja apenas com chá e bolacha, o famoso .184
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Quarentena - a cestinha básica |
“bife de caneca” que ao longo dos anos mais tem alimentado o nosso povo. Mas de novo o centro da cidade não desmereceu. Num esforço solidário e conjunto, diversos grupos da Morada, alguns apoiados pela Câmara Municipal, outros por conta própria, voltaram a organizar a recolha de bens junto de empresas e pessoas, dando assim origem às famosas “cestas básicas”, que acabaram sendo distribuídas com alguma largueza. De tal modo que, quando há dias um jornal indiretamente atacado pelo covid‑19 e em feroz luta pela sobrevivência, me convidou a colaborar com eles através de uma assinatura digital anual, não tive dúvida em dizer à Filomena, Vou oferecer uma “cesta básica” ao jornal tal. Ao jornal, estranhou? Sim, subscrevendo uma assinatura. E custa quanto? Disse‑lhe. Bem, isso são pelo menos dez cestas. De modo que o Zé também quer, mas ele contenta‑se com uma cestinha. Tu não, Zé, digo‑lhe peremptório, tu és um empresário de sucesso, tu devias estar a distribuir cestas para os mais precisados. Mas ele continua a falar baixo: os quartos estão todos alugados, diz, mas os meus inquilinos estão todos em casa, ficaram mesmo desempregados, ninguém tem dinheiro para pagar, assim como assim não lhes posso pôr na rua. Mas como, pergunto, e o apoio do Governo de que tanto se está a falar? Por enquanto só em palavras, diz ele, só conversa, estamos todos à espera. Bem, assim fica difícil não inventar uma cesta básica para o Zé!
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Glória Sofia Cabo Verde
Nasceu em Cabo Verde em 1985 e formou-se em Engenharia do Ambiente na Universidade dos Açores. Desde sempre fascinada pela escrita, brinca com as palavras desde criança, trocando a boneca por um tesouro chamado "diário", ao qual confiou os seus segredos de adolescência. Em 2013 publicou o seu primeiro livro de poesia, Poesia das Lágrimas. Escreveu o prefácio do livro Florescer, de Teresa Ruas, e participou em várias antologias internacionais. Possui diversos poemas musicados pelo cantor Américo Brito e tocados pelos grupos de batuque Lantuna e batucadeiras da Casa Tibérias. Participou nos Festivais Internacionais de Poesia em Curtea de Arges (Roménia, 2016), Istambul (Turquia, 2017), Ditet & Naimit (Macedónia/Albânia, 2018). Em abril de 2019 foi convidada pelas Universidades de Boston, Harvard e Tufts para uma leitura e representou Cabo Verde numa conferência organizada pelo Instituto Camões (UMASS, Boston, EUA). Tem poesia traduzida em mais de 15 línguas e em diversas revistas e sites. É representante de vários grupos literários, como, "immagine & poesia" e "unión mundial de poetas por la paz y la libertad", "world literature academy", nos Países Baixos, onde atualmente reside, acreditando que "para além de escrever sentimentos precisa de falar ou mesmo gritar realidades, agindo."
Amor em tempos de corona Falsos toques furaram o céu Uma gota de sangue cai nos meus ombros Alice olha a imensidão E não vê sequer uma estrela. Gabriel sopra dos meus olhos o lume da lua Para que as minhas palavras se reduzam a cinzas. Quando tudo isto passar Vou tomar banho e ponho um perfume Olho para o chão e sonho Sonho como uma criança Sonho que toco nas tuas mãos Lentamente, sem pressa. Depois misturo no teu cheiro O cheiro da morte da nossa poesia Abraços não, porque vão manchar o mel. Flores bebem sol e poemas bebem vírus Danças de respiração num feixe de luz Beijos e apertos de mãos numa gaveta trancada Os meus soluços, apenas os meus, na triste cidade Infectada pelo Coronavírus.
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| Glória Sofia
Chuva verde
O vírus abandonou-me por aí Num grito acorrentado pelo vento A mastigar a voz do isolamento A sangrar a âncora que cai O vírus sonhou, e a morte amou Como eu, por beijos e toques ansiei Como pássaro triste flutua pelo céu Como falso amigo, o vírus actua Procurou na vida o respirar O pulmão, como uma pessoa Procura o amor sem esperar No corpo o vírus se amontoa Nos caixões a rima perdoa Esse verso que perde o ar
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Amor em tempos de corona | Chuva verde | Esperança mortal |
Esperança mortal Subitamente caminhei Por ruas de calor desertas De medos reflorestadas. Do alarme ecoa um grito inaudível Espantos esticam as rugas Deixam rastos desconhecidos Abandonados no pavor E não de repente Minhas caminhadas pelo rio Tornam-se pregos que ferem Meus sensíveis calcanhares. A primavera acinzenta-se Nuvens de solidão apõem-se Nas minhas costas e meus olhos Entulham-se de poeiras. Num tom inesperado Escondo o meu largo sorriso Aquele sorriso que por vezes odiei Rabisco que neguei e quis apagar. Hoje, este sorriso está amarrado Atrás das orelhas Pendurado no brilho dos olhos. Abruptamente, alastra-se P”los berços da cidade Uma cor, um mistério Uma tonalidade salpicada Pelo pavor da mudança Este verde que é esperança! Revisão: Maria Clara Costa A Autora não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Goretti Pina São Tomé e Príncipe
Alice Goretti Dias Xavier de Pina nasceu na cidade de Santo António, na ilha do Príncipe. Tirou o curso de Formação de Empresários e integrou a direção da Associação de Jovens Santomenses com Iniciativa Empresarial até ao ano de 2000. Em 1996 levou a público a sua primeira coleção de Moda, seguindo-se diversas exposições individuais e coletivas por vários países. Veio para Portugal em 2000 e em 2003 concluiu o curso de Marketing Internacional para a Indústria do Vestuário pela Escola Profissional de Moda de Lisboa, Magestil. Tem formação em Escrita Criativa para Televisão, Liderança e Gestão de Equipas, Socioeconomia Política e Cultural do Mundo Contemporâneo e Agentes Qualificados no domínio da Prevenção, Sensibilização e Combate ao Tráfico de Seres Humanos e no Apoio às suas Vítimas. Licenciada em Direito e pós-graduada em Criminologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa. Representou São Tomé e Príncipe no concurso de literatura Prémio PALOP do Livro/98 e ganhou dois concursos promovidos pelo Centro Nacional de Cultura e DireçãoGeral do Livro, Arquivo e Bibliotecas. Tem vários livros publicados (poesia e contos) e, atualmente, tem em processo de escrita dois romances. O seu mais recente livro, As Gargalhadas de Mestre Juju (poesia), foi publicado em 2019. Tem participado em diversos Encontros de Escritores em Portugal, Brasil, Luxemburgo e Suíça.
Beijos e abraços amanhã Não falemos de abraços delgados e moldantes e de em sentido pôr os sentidos de ternura ou de paixão. Agora não. Falemos de braços recolhidos resguardando a vida que de frágil tudo tem, a vida que cuidando se reergue e se renova amanhã. De beijos dissolvendo ânsias, erguendo doçuras por vezes enganosas, falaremos. Falaremos depois que surgir o oásis, límpido oásis, a galgar triunfante, verdejante, todas as margens, reinventando a paisagem. Falaremos depois dos beijos, sim, dos beijos do próprio sol sobre as esmeraldas vivas que serão o nosso olhar nostálgico mas sereno sobre a força da vida que vencerá todas as sortes ou artimanhas. Os abraços recolhidos porque sim serão berços, serão mantos de luz pura, serão lírios silvestres nos campos de amor revigorados então. De ébano, de néon e de orvalho cheirando a jasmim serão os beijos. Belos. Como se desenhados, se programados com carinho e com cuidado para depois. Falemos sim dos abraços que podemos ganhar como prendas de pessoas de almas limpas. Abraços como uvas maduras, como o obóbó quente sobre a mesa num dia de chuva na ilha, Abraços com encanto como o Tejo, Esses muito bons. Abraços que podemos ganhar quando o sol voltar sem sombras feias .191
| Goretti Pina
sobre as nossas cabeças. Não falemos ainda. Ainda não. Falaremos. Fiquemos em casa com os melhores desejos e com a fé mais carregada de amor e de gratidão carregada por quem em casa não pode ficar. Guardemo-nos como tostões amealhados a todo o custo para comprar a liberdade. Deixemos encontro marcado para depois das dúvidas, das dívidas, do pavor, das afrontas, do deserto onde Deus nos irá colocar porque Deus! Lá não haverá mais receios destes nem candongas, nem contrabando sequer de coragem. Lá falaremos dos beijos e dos abraços. Com propriedade falaremos. Sobretudo da falta sentida. Viveremos os beijos e os abraços. Com a alegria equiparável à de uma ressurreição. Mas, ainda não. E esperança será promessa cumprida. Viveremos os beijos e de qualquer formato que possam ser, vivê-los outra vez será folia, será como festa nas avenidas! Como um sorriso rasgado, uma gargalhada desregrada, de um rosto cheio de rugas!
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Beijos e abraços amanhã |
Viveremos os abraços como se de seda a mais suave carícia, como banho de sal grosso banindo todos os enguiços. Agora ainda não. Depois. Os beijos que viveremos serão luar e flauta e cantos de anjos e de sereias furtando o ar, pintando de estrelas cintilantes o raiar do nosso amanhecer alternando sem quebra de fogo nem de doçura imitando as vozes de Anastácia e de Lura. Amanhã.
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| Goretti Pina
Essencial E fez-se noite de repente em todos os cantos depois da China. A fina poeira que somos em duas classes novas encontrou-se: a da bravura e a do medo. sem cores, sem credos, apenas a bravura e o medo. De repente. Rebentaram em estrondos de enfins o surdo mundo que a serenar obrigou-se. E ainda assim a noite cantos há que não abafa nem na trincheira onde armado até aos dentes está o inimigo valente. Berreiros há que desperta, vergonhas há que descoberta a noite, essa incerta.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Essencial |
Fez-se noite sem um raio que o pudesse anunciar com tempo de se acender lamparinas nem cafucas nem pirilampos com ou sem magia. Não se carregam as armas para matar a noite não se matam noites comprando armas nem sequer as das artes do oculto. Não se matam noites banindo estrelas pois que sempre uma fina luz que reste sustentará de beleza o arco-íris adiante!... A noite fez-se senhora de todas as trevas para afrontar a todos sem excepção ou quase. Tendo chegado sem véspera é uma serpente, uma anaconda com tentáculos gigantes de pota, é um monstro essa noite! Fez-se então noite e o mundo travou suas pressas e quem sabe terá entendido o essencial. O essencial é só a vida! UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Guilherme Valente Portugal Guilherme Valente, editor e ensaísta, é licenciado em Filosofia e pós-graduado em Relações Interculturais. Integrou, entre outras instituições, o Conselho Nacional de Educação e o Conselho de Opinião da RTP. Fundou e dirige a Gradiva, uma editora de grande prestígio cultural que deu um contributo singular para a promoção do conhecimento e da cultura, particularmente da cultura científica, sendo responsável pela edição de um vasto conjunto de notáveis autores nacionais e estrangeiros. Publicou inúmeros artigos, sobre temas de cariz cultural e educativo. No âmbito da sua ligação a Macau, criou, nos anos 80, a revista bilingue Administração, ainda hoje publicada. Trabalhou na Fundação Macau, deu aulas na Universidade de Macau e, enquanto assessor do último Governador, ficou ligado a iniciativas culturais no Território. De regresso a Portugal, integrou a Comissão Instaladora do Centro Científico e Cultural de Macau e assumiu a iniciativa de criação do primeiro Mestrado em Estudos Chineses, encontrando na Universidade de Aveiro, no espírito empreendedor do então Reitor Professor Júlio Pedrosa, e no entusiasmo dos seus colaboradores, a parceria perfeita. Esse Mestrado, ao qual o Governador Rocha Vieira proporcionou os recursos financeiros necessários, pôde ser dirigido por um reputado sinólogo norte-americano e integrar professores europeus qualificados, como em Portugal não havia. Um modelo nunca igualado. Foi condecorado por dois Presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio, sendo Comendador e Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique. Foi distinguido com o Grande Prémio Ciência Viva, na sua primeira atribuição.
Os livros provam que os seres humanos são capazes de fazer magia A leitura, o livro, a liberdade, a democracia cresceram juntos. O mapa da expansão do livro e da leitura é o mapa do milagre do desenvolvimento. Ainda hoje uma linha divisória separa, na Europa, os países que aprenderam cedo a ler dos que aprenderam tarde. Estamos, Portugal está, infelizmente, do lado errado da Europa. O livro, a educação para o conhecimento, a consciência cívica e a liberdade foram sempre uma ameaça para os tiranos. Num livro luminoso que emocionou milhões de pessoas por todo o mundo, Cosmos, Carl Sagan, cidadão do universo, ensinou-nos que os seres humanos são capazes de fazer magia. Magia com livros, ciência, conhecimento, solidariedade. E disse mais, disse que o conhecimento e a solidariedade são o único futuro possível para a Humanidade. Os livros transportam os seres humanos de todas as épocas e lugares para junto de nós. Ouvimo-los agora na intimidade da nossa consciência, da nossa inteligência e sensibilidade, a falar para cada um de nós. Pela escrita e pelo livro somos o eco de todo o conhecimento humano, das criações literárias e artísticas de todos os tempos e latitudes, portadores e retransmissores e multiplicadores das aspirações, alegrias e sofrimentos, inconformismo, generosidade, do melhor da nossa comum humanidade. Registo e exaltação do melhor de nós. Estamos a viver hoje uma experiência terrível. Temos de acreditar nessa convicção exaltante que animou a vida de Carl Sagan. Tem de animar também as nossas vidas. Com a razão, a solidariedade, a fé que eleve, vamos vencer esta ameaça. Vamos fazer magia. Todos. Juntos. Agora.
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Hélder Simbad Angola
Hélder Simbad, pseudónimo de Helder Silvestre Simba André, nasceu aos 13 de agosto de 1987 na província de Cabinda, Angola. É licenciado em Línguas e Administração pela Universidade Católica de Angola. Autor dos livros Enviesada Rosa (poesia, prémio António Jacinto 2017); Insurreição dos Signos (obra finalista do prémio DST/CAMÕES) e Tradução Literária. Em 2019, publicou a novela digital A Palanca de Chifres Dourados É professor, escritor e crítico literário, com diversos artigos publicados em jornais, sites, revistas, entre outros.
A voz do isolamento
É inaudível a voz do isolamento o intestinal grito do estômago da democracia o medo esmurrando as grades na cabeça abre-se a garganta em seu invisível presídio solta o questionário filosófico ou um tratado de fome Deus e homens e vírus em seus distintos laboratórios indecifrável vírus o homem o eco se dilui nas paredes da saudade E segue a voz isolada na ausência dos homens invisíveis também as ruas nas crianças com sorte natalícia é uma voz que se não via em nós escutando perscrutando voz de memória voz professora voz sem voz porque se ouve no silêncio
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| Hélder Simbad
Invisível barreira
Porém prevalece o tédio o tempo infinito amargos dias uma batalha existencial na roda do globo Eis o homem das imponentes torres o das viagens interplanetárias prostrado diante do minúsculo ser terráqueo multiplicador menos que um grão de areia menos que uma gotícula de saliva tão enorme como a arrogância Pede o Estado a mão do pão lá fora a fratricida história ressuscita brinquedos da infância acordam gigantes: militares e tanques lutando contra o invisível Aqui habita o mar de alcatrão que me separa do amor portanto eis-me aqui sem mamas para extrair orquídeas observando a preguiça das horas enquanto o mundo seleciona habitantes Puta merda: tenho poesias fervendo na garganta
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
A voz do isolamento | Invisível barreira | Desconfinar-se | A razão dos árabes |
Desconfinar-se?
Tenho de sair para recolher lírios uma desértica rua espia-me o soldado o vaso azul ENORME repele-me Regresso corpo desalmado como a vasta solidão da casa que assombro como garfos com facas e lambuzo-me Beija o copo a fúria do azulejo cristais kryptonianos mordem pés Esquizofrénico procuro por mim não estou o que queres de mim Covid 19 Abre a vizinha as pernas gaiola e solta o vagipássaro mas eu escrevo apenas mamas e nos cus dos Judas outra parte de mim ama menta-se
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Hélder Simbad
A razão dos árabes
Nesta convalescente era de todos árabes parar marchar viajar ramadão meditar pelas infinitas galáxias de mim lá fora habitam invisíveis legiões de demónios e homens de bem mascarados de terroristas os tanques os soldados as armas de grande porte o emergente Estado de Emergência espraia seus conturbados desertos a revolta dos intestinos a seca na garganta os milhões da Assembleia Nacional insensíveis deuses temendo a morte
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
A minha beleza é maior que a tua, de Henrique Castanheira Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
Henrique Castanheira Portugal
Henrique Reinaldo Castanheira nasceu em Lisboa, em 1959. Concluída a licenciatura em História, em 1987, partiu para os EUA onde residiu até 1988. No regresso e até 1991, colaborou com o Jornal Tempo, com o Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, com publicações periódicas e lecionou a cadeira de Geografia Económica e Social no Instituto de Arte e Design de Lisboa. Em 1991, ingressou na Administração Pública. De 1995 até 2008, foi destacado para missões, enquadrado em Organizações internacionais, que lhe permitiram o contacto com uma pluralidade de povos, culturas e diferentes realidades. Nesse período, a escrita e o desenho, como forma de reter imagens, sensações, histórias, reforça-se e afirma-se como uma necessidade no quotidiano. Por volta de 2015, surge um tempo de maior entrega à escrita, sempre complementada por esquissos, pois há palavras que rabiscam desenhos e desenhos que libertam palavras. Em 2020, Henrique Castanheira ganhou o Prémio Literário "UCCLA – Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa", com a obra O Heterónimo de Pedra, um livro de contos completados por desenhos, numa tessitura entre a viagem física e a jornada interior.
Vilpania
Crónica de um herói e da sua luta em prol do sopro*
Régis Dutra, senhor absoluto dos espaços entre as margens este e oeste do Reino do Grande Lago, do Luar que brilha a norte e do Sol que desponta a sul, aboliu a liberdade do sopro e todo o povo se conteve nos seus fôlegos. Os dias tornaram‑se tóxicos, lentos, o andar pesado e o olhar baixo. Tinha passado o Tempo de Todo o Ar. Através da Carranca Doseadora, ou CD, como o povo lhe chamava, respirava‑se aos poucos, doseando gota a gota cada fração de ar. Uma pequena torneira, colocada junto ao ouvido esquerdo e controlada remotamente, permitia a inalação, uma vez a narina esquerda, outra vez a direita, e raramente se abria a boca. Não mais se podia soprar de mágoa ou de desilusão ou de desejo. Tudo reduzido ao mínimo ar. Foi, por decreto, estabelecida a escravidão respiratória e o seu incumprimento era punido com o entupimento das fossas nasais e a colocação de uma avantajada bola de borracha nas amígdalas do infrator. Quem transgredisse era, imediatamente, marcado no Grande Ecrã do Controlo Singular. Uma ardósia negra, que sinalizava com pontos de luz as desobediências. Foi então que, da penúria e do sofrimento de todos os viventes do Reino, quando já nada fazia esperar e todos se prostravam cansados e azulados pela falta de oxigenação, se ergueu um herói. Destemido, voraz de ar, sedento de aventuras do aroma, decidido a morrer pela causa da liberdade do sopro. Chamava‑se Rato‑Mais. Aqui se vão registar as suas derrotas e feitos até à conquista da liberdade total de soprar e de inalar, profunda e .207
| Henrique Castanheira
docemente, o vento, o ar, o cheiro, a placidez desse oxigénio rasando as águas do Grande Lago. Oxigénio Fugindo à perseguição pelo Bosque de Azeitona, Rato‑Mais inalava quantidades desproporcionais e interditas de ar. Borbulhava‑lhe nos cantos da boca uma mistura de cuspo, oxigénio, água e ódio. Os Costumes‑OX, como eram designados os agentes do controlo do sopro, seguiam‑no em veículos elétricos, de muito baixo consumo de ar, vestindo capas largas de verde‑floresta, onde o ar circulava viciado e inebriante, provocando cansaço e alucinações. Viam Rato‑Mais como um gigante, cuja sombra obscurecia todo o bosque, embrenhando‑se com passos desumanos cada vez mais arvoredo adentro, deixando confusos e desorientados os Costumes‑OX. Junto ao Rio Défisis molhou a face, bebeu água pela concha da mão e soprou um uivo de angústia e frio. Decidiu, então, pernoitar numa cova na margem. Despiu‑se. Cobriu o corpo com lama, para se confundir com o lodo do fundo do Rio e adormeceu. O sono trouxe‑se‑lhe o destino numa visão de tempestades, gentes de gargalhadas largas, engolindo ar até se desfazerem em partículas de vento. E havia odores no seu sonho. Eram de ervas do campo, das mais rasteiras, daquelas com que se afastam os maus olhados e as invejas. Ervas de chá aromático com que aquecemos as mãos, quando olhamos alguém e nos vem o desejo de ter, de possuir, de dormir junto. Os aromas espargiam todo o Bosque… até homens, animais, casas e árvores serem só aromas de ervas rasteiras. Quando acordou viu‑se rodeado de abelhas como se néctar se tivesse libertado do sonho e lhe velasse todo o corpo. Deixou‑se ficar…depois mergulhou. Libertou‑se da lama e do odor da noite e o Rio Défisis levou para longe uma mancha de pólen e lama que desenhava uma vaga silhueta humana. Ouviram‑se chicotadas na água. Eram os Costumes‑OX castigando a água, pensando ver Rato‑Mais fugindo na corrente do Rio. O Bosque de Azeitona era tão protetor como uma mãe. Dava‑lhe a confiança para lutar e caminhar só. Perseguido por todos os cantos do Bosque, ouvia o silvo dos chicotes e a dor das árvores. – Deixa‑o respirar, deixa‑o sentir o som do vento a .208
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percorrer‑lhe o sangue; deixa que o sopro o encha de vida – assim chorava a Árvore Eterna. – Régis Dutra não o permite! – gritaram os Costumes‑OX. O Senhor‑de‑Todo‑o‑Sopro, doseador do vento e dos aromas, não o permite. A lei doseia o ar em partes iguais, ninguém respira mais do que lhe é consentido: O mínimo. Rato‑Mais sabia agora que tinha na Árvore Eterna um aliado. Guardava o desejo do Bosque nele. Sentia‑o nas pontas dos dedos, quando tocava as urzes e arranhava as pernas até ao joelho com as silvas que, sussurrando, lhe pediam perdão. Descalço, sentia a força da terra, regada com o suor e com os lanhos do corpo e da alma. Abrigou‑se no fundo do Bosque. Ali, ninguém viria. Demasiado longe do Reino, inóspito na planura do verde e protegido por Entes que a mente dava à realidade e ao medo. Sentado, ofegante e perdido na sua luta pediu proteção a Pedra Némesis. – Que posso eu dar‑te que já não te tenha dado no teu sonho? – No meu sonho, vi tempestades, risos e ventos que traziam dissolução e morte. – Será, então, esse o teu destino, Rato‑Mais. Verás a hora do sino, replicando a alegria do mundo, dos homens e das coisas, verás o nascimento de mais árvores no Bosque de Azeitona, crianças felizes ao colo de suas mães, mendigos cansados de mendigar repousando no Grande Lago, cheiros alegres vindos dos cantos de toda a cidade e a exaltação dos outros. – E eu? Pedra Némesis! Onde estou? – Na margem de tudo, como testemunha. Olhado e depois esquecido e depois, talvez, lembrado. – Mas a luta pela liberdade do sopro é a luta pela liberdade da vida, não pelo esquecimento. Pedra Némesis adormeceu, fazendo com que o breu mais negro descesse sobre o Bosque de Azeitona. Entretanto, no palácio Sibilo, Régis Dutra convocara a Corte. A sala régia era luz e vento. Ouvia‑se o uivo das correntes de ar. As duzentas e vinte longas e quase transparentes cortinas do grande salão adejavam como bacantes rodopiando em transe, de uma brancura de pele virgem e sedutora. Dragões de porcelana azul sopravam fumo anilado e aromas almiscarados que enchiam Sibilo de doUCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Henrique Castanheira
çura, volúpia e ambição. Vieram todos os confrades e senadores, governadores e edis. Todos inebriados pela arrebatadora brandura do espaço, tocavam‑se, beijavam‑se e prometiam romances vibrantes e sem‑par a quem estava ali mesmo ao lado. Ecoava música vinda de longe, como se os clarinetes soltos e livres dos jardins de Sibilo tivessem vida e improvisassem sons tão adocicados como flores Dentes‑de ‑Leão. Régis Dutra, de pé, no centro da sala, a todos sorria e lançava beijos com os seus enormes e vermelhos lábios. Sem tocar ninguém. Régis, o Senhor‑de‑Todo‑o‑Ar, era Pai eterno do nosso folgo e só as criaturas sujas e não‑gente que povoavam o Bosque de Azeitona teimavam em não venerar a sua sublime presença. Com um som estridente de arreios roçando a pedra, Vílpio entrou na sala. Era o chefe da Guarda Real. Aproximou ‑se do Rei, beijou‑lhe o manto vermelho de pelos hirsutos, olhou os convivas e tomou a palavra, depois de escarrar violentamente para o chão: – Senhores, o Reino do Grande Lago sofre de um mal de enormes dimensões. Um dissipador de ar tem vindo a destruir o equilíbrio do sopro mínimo, roubando lufadas de brisa que armazena, ostensivamente, no sangue e nos pulmões. A audiência gelou de pavor. – Quem é ele? – gritaram! – Rato‑Mais – disse Vílpio, entre dentes, quase como um sussurro. A audiência suspendeu a respiração e em uníssono proferiram: Morte! Que se cumpra a lei! Que lhe entupam as fossas nasais. Que a bola de borracha seja tão grande que demore um dia até lhe chegar às amígdalas. E depois que o lancem aos lodos do pântano do Bosque, onde vivem os proscritos, assassinos, viciosos e não‑gente. Vílpio olhou para Régis Dutra que, com um sorriso e um leve abanar de cabeça, pois a sua coroa erguia‑se até às nuvens, sancionou. – Os Costumes‑OX já estão no encalce do miserável e muito em breve o tereis a vossos pés – exclamou Vílpio, com a segurança dos juízes, ditando uma sentença grave e definitiva. A sua certeza fê‑lo crescer, uns 70 centímetros. Alongou ‑se como uma serpente, mas logo refreou o ímpeto, pois .210
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que quase tocara a coroa de Régis Dutra. E, para mostrar a sua enorme e sempre presente subserviência ao Rei, voltou a encolher até ficar ao nível da pedra preta e branca do chão, impercetível. O Rei deu‑lhe a mão e puxou‑o à sua cintura. Régis Dutra tinha toda a confiança no seu chefe dos Costumes‑OX. Sempre haviam mantido os súbditos na submissão aos mínimos no consumo de ar. Não o havia de desiludir nesta caçada a Rato‑Mais. Era necessário eliminar a fatal ocorrência, a falha esculpida na Lei, o corte na obediência. Suor Enquanto Rato‑Mais se deixava levar pelo sono no fundo do Bosque, o Rio enchia‑se com os rufos dos tambores de guerra dos barqueiros dos Costumes‑OX. Os sons, ao ritmo do batimento cardíaco, faziam vibrar o ar, como uma descarga elétrica em noites quentes de verões tardios e secos. As árvores alongaram os seus ramos pelo Bosque, abafando o som de guerra até nada mais haver senão negrume. De pé, na proa do barco‑Almirante, Vílpio. O elmo dourado irradiava fogo como um archote. Brandia o chicote, rasgando a escuridão e vociferando ao Bosque: – Estás condenado Rato‑Mais. A noite não será ventre para o teu refúgio e, em breve, o Sol do sul te trará até mim. Foge, enquanto podes, da dor do meu chicote e do rigor da minha lei. Terás terra sobre os teus olhos e da tua boca não mais sairá um ténue suspiro. Cairás no pântano dos imperfeitos, regressarás aos que sem dono procuram no limbo rasto de vida. Amaldiçoado sejas, desertor da regra. Levar‑te‑ei aos pés de Régis Dutra, Senhor‑de‑Todo ‑o‑Ar. Enquanto repetia cem vezes a sua certeza, os barqueiros remoíam uma melodia entre dentes, à cadência dos remos na água: Défisis que corres pelo Bosque, corre também pelas minhas mãos e que seja água de louvor a Régis Dutra, Rei do sopro dos vivos e das coisas. Condena quem falta, condena quem trai, condena quem foge. UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Henrique Castanheira
Eram tantos os barcos que as águas pareciam paradas e o que se movia era um nevoeiro de oleado negro, sob o brilho rasante da Lua. Essa Lua, dona do norte e da luz da noite, sobre o Bosque de Azeitona. Um risco de luar passou pelo rosto de Rato‑Mais. Acordou, levando a mão à face e estremeceu ao toque de uma quase indelével cicatriz dolorosa e incandescente. Ouviu uma brisa que parecia dizer: foge! foge! E Rato‑Mais ergueu‑se e correu para o arvoredo mais denso e viu ao longe o elmo dourado e ardente de Vílpio. Os Coisa‑Nenhuma acolheram‑no na sua casa nas margens do pântano. Lugar onde nem os Costumes‑OX se atreviam a ir. Viviam na margem de tudo, quase sem nada. Com as mãos arrancavam algas verdes e castanhas das entranhas do pântano, eram esguios, feios e translúcidos e cheiravam a podridão do pântano. Mas Rato‑Mais sabia agora que os tinha como aliados. Olha, tens uma cicatriz na face direita Rato‑Mais! e admirados, os Coisa‑Nenhuma viram que não era sangue que dela escorria, mas sim a luz da Lua. O Sol ergueu‑se a sul e fez transbordar de luz todo o Bosque e até o pântano tomou todos os tons de verde, como uma paleta de pele de rã. A noite tinha partido e com ela o esconderijo íntimo e cavado no Bosque. Tudo parecia agora exposto, aberto e livre às mãos dos Costumes‑OX. Rato‑Mais sentia‑se mais nu do que nunca. Com uma tristeza que o Sol do sul acentuava, Rato‑Mais acocorou‑se numa pedra lisa entre a margem negra e o profundo verde daquela curva do pântano. Parecia não haver ninguém. Mas uma canção soou, não muito longe. Estava ali mesmo ao lado, depois do emaranhado alto de juncos: Sou do pântano e coisa nenhuma, sinto livres os meus pesares. Abraço o Bosque em meu redor E adivinho o fim no teu furor. Rato‑Mais levantou‑se, rasgou a parede de juncos até abrir um buraco do tamanho de um postigo antigo, como os das portas de madeira vermelha da infância nas aldeias felizes, e viu… serena, apoiada no tronco de uma árvore, Vincência, a filha mais nova dos Coisa‑Nenhuma. Roçava duas canas de bambu até arrancar um sopro contínuo que se libertava no vento…e era música. .212
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Vincência era como uma pena de pássaro caída no chão do Bosque… frágil e perdida. De tez esquálida e translúcida como todos os Coisa‑Nenhuma. Não se inquietou com a presença de Rato‑Mais e sorriu. – Trazes a ferida da Lua – disse. – É a maldição dos heróis. Dos que estão destinados a grandes feitos e depois a serem levados ao esquecimento. – Pedra Némesis disse‑me o mesmo – acrescentou Rato‑Mais. – Não sei se devo ter medo, sofrimento ou aflição. Ou deixar tudo e viver sozinho nas margens do Défisis, olhando, todos os dias, o ir das águas e contar as pedras que arrasta. – Se o fizeres, só encherás de pedras uma taça de barro cozido. Todas as outras ser‑te‑ão invisíveis. – Que queres tu dizer com isso, Vincência? Que devo seguir o destino de morte e tortura que me reserva Régis Dutra e os seus lacaios? E, se por acaso vencer a luta da liberdade do sopro, ser esquecido e nem a minha memória ser amada e engrandecida? – Há heróis que são como as pedras que não vês no rio, mas que passam, rolam e alisam o leito lodoso e escuro e, por isso, trazem mais água ao rio. Pedra Némesis traçou‑te o destino e a tua vontade ou medo de nada valem. Simplesmente cumprirás. Rato‑Mais pousou a face entre as duas mãos e esqueceu, por momentos, a dor da cicatriz no rosto e chorou…
*Primeiras páginas de uma obra a aguardar publicação.
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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João Fernando André Angola
João Fernando André é escritor, ensaísta, crítico literário, bailarino de semba e kizomba e professor de língua portuguesa e literatura. É licenciado em Letras, Língua e Literaturas em Língua Portuguesa, mestrando em Literaturas em Língua Portuguesa, pela Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto e membro da Academia Oeirense de Artes (Brasil). Vencedor, nas categorias de Conto e Crónica, do 26º Concurso Internacional de Poesias, Contos e Crônicas e menção honrosa nas categorias de poesia e conto nas 27ª, 28ª e 29ª edições daquele Concurso, (realizadas pela Academia Internacional de Artes Letras e Ciências, Brasil, RS). João Fernando André é autor da obra Evangelho Bantu e coautor das antologias 5 Sentidos, e Entre Palavra (Portugal). De entre várias revistas, blogs e jornais, tem textos publicados no Jornal Cultura, na revista Palavra & Arte (Angola) e na revista eisFluências (Portugal/Brasil). Foi monitor da cadeira de Crítica Literária no curso de Língua e Literaturas em Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto e é professor de PLE – Português Língua Estrangeira, na Alliance Française de Luanda.
Ponto a ponto
Aprendi com o velho Francisco: Na luta de elefantes quem sofre é o capim. Apontamento 1 O Corona é um vírus previsto pelos bonecos Astérix e Obélix e pelos Simpsons. Por meio de partituras invisíveis, os donos do mundo anunciavam-nos o actual e actuante problema da humanidade. Ninguém percebeu, porque andamos todos mais no virtual do que no real. Há vários vírus matando o mundo, mas ninguém vê. Há o vírus da fome, o da seca, o das poluições, o do trabalho exagerado, o da falta de amor ao próximo, o da exploração do outro, o da malária e tantos outros que conhecemos, porém fazemos de conta que não existem, que nunca os vimos, que não ouvimos os que deles padecem a gemer.
Apontamento 2 A mundialização foi/é boa mas, a partir de agora, os governos deviam pensar em melhores políticas para a saída e a entrada de pessoas e bens nos seus territórios.
Apontamento 3 A ser verdade que o homem é o lobo do próprio homem, é uma vergonha, pois todos os que patrocinam guerras e ajudam dados indivíduos em detrimento da maior parte da população da maioria dos países do mundo estão mais para lixo do que para humanos. .215
| João Fernando André
Apontamento 4 Antes que seja tarde, que os que possam melhorar o mundo cessem os seus vícios, cessem os seus egoísmos, cessem os seus luxos. Que haja mais amor pelo próximo. Que haja menos dívidas externas e mais cooperações. Que se crie ajuda aos países pobres para saírem da pobreza em que estão.
Apontamento 5 Ante a tal COVID-19, que se aposte mais na produção nacional. Que se pense no mundo que queremos deixar para os futuros humanos. Que se aposte mais na arte e num progresso que não mate ninguém. A bem da humanidade!
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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João Nuno Azambuja Portugal
João Nuno Azambuja nasceu em Braga, em 1974, e é licenciado em História e Ciências Sociais. Participou, por sua iniciativa, em diversas explorações arqueológicas pelo país ao longo de vários anos. Militou, mais tarde, nas tropas paraquedistas como comandante de pelotão, após um breve período como professor de História. Regressado à vida civil, dedicou-se à escrita e fundou, em Braga, um bar de inspiração celta, onde se realizaram concertos memoráveis das melhores bandas ibéricas desse género musical. O seu primeiro romance, Era uma vez um homem, ganhou o Prémio Literário UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2016. Em 2018 publicou, na editora Guerra & Paz, Os Provocadores de Naufrágios e, em setembro de 2019, saiu, com a mesma chancela, o romance Autópsia.
Soneto à redescoberta
Talvez nunca soubesse a luz de um rosto, O toque de uma mão, a cor de um beijo. Talvez não percebesse quanto vejo, Debaixo da poeira de um só gosto. Nunca foi nossa a escolha do imposto, Mas esta imposição deu-me o ensejo De perscrutar a fonte do desejo, Saldando em liberdade o meu desgosto. No diário da peste fui escrevendo Esta palavra firme em linhas tortas: Todo o céu desfraldado em horizonte. No toque dessa mão fui aprendendo O quanto num abraço me confortas, Alma Mater, minha sede, minha fonte.
Braga, 6 de maio de 2020.
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Joaquim Saial Portugal
Joaquim Saial (1953, Vila Viçosa) é mestre em História da Arte e licenciado em Ciências Humanas e Sociais. Bolseiro da FCG e docente dos ensinos médio e universitário (INP e UCP-Lx), publicou Estatuária Portuguesa dos Anos 30. 1926-1940 (1991); Manuel Gamboa. A Arte por Vida (1998); Capitania, Romance de Cabo Verde (2001); Seixal. Arte Pública (2009) (esgotados) e Poemas para a Hora de Ponta (2020). Participou em outros sete livros e escreveu centenas de artigos em publicações de Portugal, Cabo Verde, Espanha e Roménia e em catálogos de arte. Realizou dezenas de palestras sobre arte, cultura e história e diversas outras atividades, na área da cultura e das artes, em Portugal e no estrangeiro. É cidadão honorário de Ribeira Grande de Santiago, Cabo Verde.
O maldito
Ei-lo, não o vejo mas ele está ali, atrás daquele carro, nas pedras da calçada, junto à linha do rio, após o arvoredo. Ei-lo, não o vejo mas ele está acolá, no velho hospital, naquela máscara, nas luvas cirúrgicas, colado à vidraça. Ei-lo, não o vejo mas ele está além, nos rostos do povo, nos ecrãs da televisão, nos caixões em fila, frente ao crematório. Ei-lo, não o vejo mas ele está aqui, eterno na nossa vida, já dentro das almas, no percurso do Homem, escrito na sua História. Para sempre!
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| Joaquim Saial
O FIM Tinham sido os dias da grande pandemia. O último homem, que vivera num recôncavo frente ao oceano, já muito fraco, saiu nessa manhã para ver o mar. Em rocha próxima, que emergia da água, estava pousada uma gaivota. O homem sorriu, pensou que afinal não morreria sozinho e finou-se. Instantes após, o pássaro levantou voo e dentro em pouco estava no meio do seu bando, participando em concorridos voos picados, na apanha de alimento. Por aquela praia, nunca mais se viu ninguém.
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Fotografia de Anabela Carvalho
John Bella Angola
John Bella, nome literário de Jorge Marques Bela, nasceu em Luanda, Angola. É sociólogo, membro da União dos Escritores Angolanos, Secretário‑Geral‑Adjunto da Brigada Jovem de Literatura de Angola (BJLA) e professor Pré ‑Universitário em Luanda. Publicou em 1995 o seu primeiro livro de poemas, Água da Vida. Em 2001, lançou Panelas Cozinharam Madrugadas (poesia) na cidade do Porto (Portugal), durante a 2ª Bienal de Jovens Criadores da CPLP. Em 2003, publicou Cântico Romântico (à Paz), em 2006, A Lenda do Gato e o Rato, em 2007, o conto A Esperteza dos Animais, dedicado à criança africana. Em 2008, lançou Nzamba – O Rei Sou Eu! Publicou o romance Os Primeiros Passos da Rainha Njinga, em 2011 e O Regresso da Rainha Njinga, em 2012. Ainda em 2011 publicou As Lágrimas do Rei ‑Sol, para crianças. Em 2017, a Federação Brasileira dos Académicos das Ciências, Letras e Artes (FEBACLA) outorgou‑lhe a Ordem dos Benfeitores Culturais da Humanidade, o Prémio Caneta de Ouro 2017 e o Prémio Filósofo Honorário. Em 2018 lançou na Feira Infantil de Taubaté o livro A Palanca dos Chifres Curvados e foi convidado a tomar posse como Membro Correspondente da Academia Taubateana de Letras. Os seus poemas têm sido amplamente divulgados, levados à cena e musicados. Como deputado na II Legislatura, fez parte dos legisladores que assinaram a nova Constituição do país. Foi Diretor de Comunicação e Imagem na Fundação Dr. António Agostinho Neto. É atualmente Diretor de Cultura e Turismo na Administração Municipal de Talatona (Luanda).
Para a escritora Maria Salomé Alves
Digo-te palavras dóceis neste confinamento Para que o sentimento se vista de razão Abro alas ao par desta pandemia para que o amanhã aos olhos verdes do mar nasça como pétalas distribuídas Digo-te palavras dóceis neste confinamento para que a luz dos teus lábios rejuvenesça no calor perdido nos trópicos Co(n)vid(o) os lençóis brancos do teu olhar quebrar como gaivota perdida a rua 19 do meu andar Digo-te e mais não te digo palavras dóceis neste confinamento sabes, querida calamidade nos braços do vento entrou na idade do templo perdido naquele balaio escondido mas sairemos desta madrugada navegada em mãos da alvorada
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Total desalento,
de Henrique Castanheira Aguarela e colagem 36 x 28 cm | 2020
Jorge Castro Portugal
Jorge Castro nasce no Porto, em 1952, em casa dos seus avós paternos e tendo, como primeiro berço, um cestinho do pão. Passa a infância em Trás-os-Montes, por terras de Miranda do Douro, onde aprende a crescer. Na juventude regressa ao Porto, e vem completar o seu crescimento na região de Lisboa, em Carcavelos, concelho de Cascais, que o mar faz-lhe falta. Frequentou o curso de Direito, nos anos 70, pela Universidade de Lisboa, mas não lhe achou graça, decidiu não o levar a cabo e pôde libertar os progenitores do fardo complexo de filho, mantendo com eles apenas a relevância do afeto. Teve a oportunidade de viver o Abril em estado de graça e a plenos pulmões. Desenvolveu intensa militância política, antes e depois de Abril de 1974, em regime de exclusividade, o que lhe preencheu o espírito de incertezas, condescendências e bastantes anticorpos em paralelo com uma larga experiência na arte subtil de ser-se humano. Um dia começou a ensaiar a nobre arte de juntar palavras, com algum sentido, de si para os outros… e leva atualmente dezassete obras publicadas, mormente em poesia. É coordenador e/ou coautor de outros vinte e nove projetos literários e já concluídos, sempre com um apelo forte à participação dos seus pares. Recebe a Medalha de Mérito Cultural da Câmara Municipal de Cascais em 2009. De Jorge Castro se poderá dizer que, tendo começado a andar pelos seus pés com a idade de um ano, ainda não parou.
Poema
Era um dia sem ninguém era um dia sem ninguém e a terra ardia no silêncio que em todo o mundo se ouvia um silêncio mais tremendo mais profundo bem maior que o tamanho deste mundo só brilhavam no céu umas estrelas que ainda ontem por lá não as havia e brilhavam tanto mais por cintilarem no mais negro universo e mais profundo no entanto o seu brilho anunciava que outro dia a nascer acontecia
30 de março de 2020
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Poema para o dia de amanhã |
Poema para o dia de amanhã certo dia plantei uma metáfora no húmus de vaga ideia que sem saber me aflorara adubei-a a réstias de inspiração e protegia-a de agruras de ventos crus ou de fera maresia quando vi que enraizara enxertei-lhe um soneto lento de rima cadenciada a meia altura da base até um ponto incerto algures entre o desconhecimento e coisa nenhuma só para ver se florescia cerquei-a de vivências torpes de mal-queridas verdades de atropelos e más sortes mas também de três sorrisos um de papoila outro estrela e outro de ouvir o mar onde o tempo esmorecia e quando chegou Abril já muitos anos depois de um tempo de clausura vi a aventura crescer direita ao céu perturbante em cada folha uma pena em cada fruto um poema e Abril acontecia. 16 de abril de 2020 (em tempos de covid-19)
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José Carlos Matias Portugal - Macau
José Carlos Matias é jornalista, investigador e docente baseado em Macau desde 2003. Licenciado em Jornalismo pela Universidade de Coimbra e Mestre em Estudos Europeus (Relações Europa-China) pela Universidade de Macau, é professor visitante na Universidade de Macau e na Universidade de São José. Iniciou o seu percurso como jornalista na Rádio Universidade de Coimbra, tendo passado pela TSF em Lisboa antes de rumar a Macau, onde trabalhou na Rádio Macau e, posteriormente, no serviço em língua inglesa da televisão. Em 2018 assumiu as funções de diretor do semanário luso-chinês Plataforma Macau e, desde maio de 2020, passou a dirigir as publicações do Grupo Project Asia Corp., sendo diretor da revista Macau Business. José Carlos Matias é também, desde 2017, presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau.
Destino Comum
Eric Hobsbawm foi um dos mais argutos historiadores do século XX. Em A Era dos Extremos, olhou para os desastres causados pelas experiências do nacionalismo militarista e fascista, socialismo de estado totalitário e capitalismo selvagem. O “breve século XX” de que fala no livro é balizado entre o início da I Guerra Mundial e o fim da União Soviética, seguindo-se a um “longo século XIX”. Hobsbawm refletia também sobre falhanços crassos das previsões de políticos e intelectuais. Todas as “bolas de cristal” são demasiado embaciadas para projetar com clarividência o futuro. Ainda assim arriscava que o mundo no terceiro milénio continuaria a ser marcado por mudanças políticas violentas, alertando que a humanidade só teria futuro se este não fosse um prolongamento das práticas do passado e presente. Estaremos nós nesta encruzilhada do início da década de vinte do século XXI perante o fim do interregno entre duas Eras dos Extremos? A pandemia da COVID-19 – que fustiga o mundo há um ano – impôs-se como uma espécie de acelerador da História. Acentuando tendências, erguendo muros, testando a humanidade a uma escala para a qual não estávamos preparados. É importante, por isso, não sucumbir à ilusão da “desglobalização”, melhorar os mecanismos de cooperação na governação global ao nível da saúde pública e construir em conjunto uma fórmula mais sustentável, equilibrada e humana. Uma chave para esta questão tão complexa passa por um novo entendimento global sobre o conceito de saúde como um bem público que deve ocupar absoluta centralidade nas relações internacionais e organizações multilaterais. Paralelamente, a crise que vivemos traz à tona a importância de uma equação entre direitos individuais e coletivos que não seja espelhada em lógicas .233
| José Carlos Matias
de soma zero, mas que tenha uma dimensão e dinâmica orgânica. O destino comum da humanidade não é meramente um slogan; é o caminho mais sensato que implica um reforço da transparência, de mecanismos partilhados de alerta e de recursos que não podem estar reféns das vistas curtas dos populismos e interesses eleitoralistas domésticos ou ambições geopolíticas desmedidas. Isto passa por uma aprendizagem das boas práticas no combate à pandemia, por um sentido de responsabilidade social e de bem público coletivo, em que sejam valorizados os bons exemplos de controlo da pandemia na China e noutros países da Ásia Oriental, ao mesmo tempo que se adequam as medidas à realidade específica de cada sociedade e cultura. O risco de sairmos desta crise com um mundo em maior turbulência, mais desigual e com bombas-relógio sociais e geopolíticas é real. A forma como individual e coletivamente vamos lidar com essas contradições será determinante. Numa perspetiva Hegeliana uma síntese emerge da contradição entre opostos. E assim, a História prossegue, qual espírito da razão e do tempo (Zeitgeist). Mas nos processos existem homens (e mulheres), indivíduos que, no concreto, podem ser determinantes. Poder esse que, no ideal Confuciano, deve ser exercido com virtude, benevolência e sentido de tempo (cósmico), com a sensibilidade moral para encontrar o caminho (Dao). Sem extremos e com a força que advém da humildade perante a vida.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
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Fotografia de Marlene Nobre
José Luís Hopffer Almada Cabo Verde
José Luís Hopffer Almada, poeta, jurista, ensaísta, analista e comentador político, nasceu na ilha de Santiago, Cabo Verde, em 1960. É licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós ‑graduado em Ciências Jurídicas, em Ciências Políticas e Internacionais e em Ciências Jurídico‑Urbanísticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Foi Diretor da revista Fragmentos, cofundador da Spleen‑Edições e dirigente da Associação de Escritores Cabo‑Verdianos. Foi membro da Comissão Nacional para a Apreciação do Acordo Ortográfico do Rio de Janeiro sobre a Língua Portuguesa (1986), da Comissão Nacional da Língua Caboverdiana (1990) e do Grupo para a Padronização do Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo‑Verdiano (1994). É, atualmente, Vice‑Presidente da Direção da Associação Caboverdeana de Lisboa e responsável do seu Departamento de Cultura. Colabora em vários jornais e revistas culturais e jurídicas, está representado em inúmeras antologias poéticas nacionais e estrangeiras. Publicou: À Sombra do Sol, Volume I e Volume II (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna (Poema de NZé di Sant’ y Águ) (2005); Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009), Rememoração do Tempo e da Humidade (2015/2016), Germinações e Outras Restituições de Março (2019). Tem utilizado os seguintes nomes literários: Zé di Sant´y Águ, Nzé di Sant' y Águ (agora grafado Nzé de Sant´y Ago), Ezeami di Sant´y Águ, Alma Dofer, Alma Dofer Catarino e Erasmo Cabral de Almada (na poesia), Dionísio de Deus y Fonteana (prosa literária em português e em crioulo), e Tuna Furtado (em artigos e ensaios de intervenção cultural). Foi condecorado com a Medalha de Mérito Cultural de Primeira Classe, do Governo de Cabo Verde, e com a Medalha da Ordem do Vulcão, outorgada pelo Presidente da República de Cabo Verde.
A imortalidade em tempos de pandemia Apontamentos avulsos de um confinado por mor da vigente situação de calamidade pública sanitária III
TERCEIRAS ANOTAÇÕES Em modo dramático‑intimista e quase‑metafísico As atrocidades em potente latência e aqueloutras já causadas em todos os continentes pelo novo coronavírus (SARS‑CoV‑2) e pela COVID‑19 e de que vamos dando conta e tomando mais exaustivo conhecimento através das notícias (são já mais de trezentos mil mortos em mais de cinco milhões de infectados, afora os assintomáticos não testados), sendo já comparáveis aos morticínios provocados por guerras localizadas, de grande ou média dimensão, ou por grandes fomes a nível continental e mundial, às mortandades provocadas pelas secas e estiagens e pela incúria do poder colonial no nosso antigo e famigerado arquipélago da fome, e por outras tragédias históricas e catástrofes naturais (ou naturalizadas) que assolaram o nosso vasto e lato mundo, nele incluindo o martirizado povo das nossas ilhas, primam por uma característica sui generis: o silêncio e a sigilosa intimidade na morte que envolvem as suas vítimas, a pouca ferocidade aparente com que labora o agente da morte, a relativa baixa abjecção que a sua aparição pública suscita nos sobreviventes (afora, é claro, os parentes e amigos próximos e/ou mais chegados) e a diminuta repugnância dos cenários fúnebres, se comparada com os cenários de morte de outros, passados, surtos epidémicos e pandemias, tais a peste bubónica (também chamada peste negra), a cólera, a malária, o paludismo, a tuberculose, a varíola (também chamada bexiga), o sarampo, a gripe suína, a peste bovina, a gripe das aves, a gripe espanhola, a doença do sono, a febre amarela, a febre zica, a icterícia, a difteria, o tifo, a sida, o ébola, o dengue, os coronavírus (os antigos e o novo, .237
| José Luís Hopffer Almada
dos tempos de agora, com as suas novíssimas mutações) e outras pragas infecciosas que hão‑de vir com os vírus, os bacilos e outros invisíveis inimigos transmissíveis pelo mero acto de respirar, de falar e de tocar pessoas, bichos e objectos, e outras forças da natureza que hão‑de irromper com os micróbios, as bactérias, as secreções anais e vaginais, os ratos, as pulgas, os mosquitos e outros parasitas, e outros seres predilectos da sujidade, da insalubridade, da promiscuidade, da pobreza extrema e da miséria, servem também para nos relembrar, enquanto seres humanos falíveis, da nossa muitas vezes impotente, conquanto amiúde vaidosa e jactante insignificância num mundo indiferente à miséria e às gritantes desigualdades sociais, e a inexistência em vastos espaços do nosso mundo globalizado das condições necessárias e suficientes para a condução de uma vida humana digna, livre da pobreza, da doença, do medo, da ignorância, da discriminação e de outros muitos malefícios e infernos do subdesenvolvimento e da opressão. Talvez porque no caso vertente se trate de um inimigo invisível que, como nos casos de outros conhecidos coronavírus, se propaga no ar e tem na própria respiração humana (ou, melhor, nas vias respiratórias das criaturas humanas), nos espirros, nas gotículas de saliva e em outras secreções mucosas o seu foco e o seu veículo difusores e obriga, nos seus efeitos e repercussões imediatos enquanto foco e veículo de contaminação e da morte (o seu sempre possível sucedâneo) à invisibilidade no quotidiano dos espaços públicos das suas potenciais vítimas, por via do seu confinamento preventivo ou profiláctico no mais íntimo e privado dos lugares, o lar, locus da domesticidade, baluarte da salvaguarda da intimidade da vida privada (agora levada ao extremo, também na morte e na despedida fúnebre, na ausência de verdadeiras e públicas exéquias e cerimónias mortuárias), lugar de reprodução da família e das suas alegrias, de congeminação dos seus .238
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A imortalidade em tempos de pandemia |
projectos individuais e colectivos de uma vida feliz, de troca das mais inconfessáveis confidências e de selagem de muitas outras cumplicidades privadas, mas também lugar de saturação dos laços conjugais e familiares e, assim, de germinação dos seus conflitos e da sua possível derrocada enquanto loca da família. Deste modo, o silêncio, de todos visível e a todos audível e apreensível, parece ser a atmosfera mais característica do actual surto pandémico. Silêncio nas ruas, nas alamedas, nas avenidas, nas praças, nos jardins, nas escolas, nas universidades, nas repartições públicas, nos restaurantes, nos quiosques, nas igrejas, nas mesquitas, nas sinagogas e em outros lugares de culto, nos botequins e esplanadas, nos cinemas e teatros, nas praias, nos estádios, nos recintos de espectáculos, nos santuários, nos amplos relvados e em outros recintos abertos para a realização de comícios, de missas campais, de festivais de música e de outras grandes, festivas e altissonantes aglomerações de pessoas. Silêncio em todos os lugares de exposição pública e privada dos corpos, das almas e dos espíritos, propiciando infinitos tempos de meditação adentrados no confinamento desse sucedâneo de prisão domiciliária em que, por vezes imaginada, se tornou o lar, esse útero da casa de cada um, e no qual os companheiros de cela são os parentes mais chegados do núcleo familiar mais restrito e/ou da família alargada, consoante as circunstâncias de cada um, da sua opulência, da sua riqueza, da sua mediania, da sua normal ou extrema pobreza de meios de condução da vida quotidiana, dos hábitos e tradições da sociedade em que vive e/ou cresce. Propiciador de calado e ansioso temor, de desviantes e aterrorizadas atitudes (mesmo se pautadas pela discrição) em face do outro, visto sempre como eventualmente contagiado, e tornado ainda mais suspeito na sua potenUCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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cial ameaça e latente periculosidade porque virtualmente infectado por um vírus invisível nos seus sintomas e nas suas marcas exteriores, como nos casos mais evidentes dos assintomáticos ainda não detectados e com a actual obrigatoriedade, ainda que somente cívica em Portugal, salvo as devidas excepções dos casos do uso obrigatório de máscaras, o silêncio que rodeia e acompanha a insaciável voracidade da disseminação do novo coronavírus (SARS‑CoV‑2) e da COVID‑19 torna‑se ademais mais virulento porque indelevelmente marcado pela paciência. Não sei se por mor de uma paciência chinesa, neste concreto circunstancialismo ainda assim, e mais uma vez, pejada de sabedoria em face, por um lado, de uma certa e pouco prudente pressa com que alguns vêm encarando a chamada reabertura da economia numa sociedade de mercado marcada pelo consumismo e pela intrínseca necessidade da correlativa contínua expansão da oferta da produção e da procura dos consumidores e dos advenientes ganhos e lucros, aliada à obtusa e abstrusa celeridade (também no sentido próprio psiquiátrico de loucura var‑ rida de celerados, isto é, de seres humanos também céle‑ res na difusão das suas pouco sensatas e potencialmente genocidas acrobacias mentais) de alguns políticos tresloucados nitidamente de má memória futura e, por outro lado, a lentidão com que marcamos os passos nas filas dos mini (e super) mercados, das farmácias, dos mercados e feiras municipais, dos autocarros, dos restaurantes e cafés take away e de encomendas domiciliárias alinhavadas do fundo solitário e apto para a sobrevivência do confinamento, das padarias (incluindo as agora tornadas epidémicas Padarias Portuguesas, se bem que também os benfazejos quiosques de distribuição dos jornais e das revistas da nossa predilecção, tão imprescindíveis agora na melhoria da literacia sanitária dos cidadãos e no combate sem tréguas aos fake news, por vezes equiparados, na sua .240
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A imortalidade em tempos de pandemia |
capacidade danosa e na pretendida criminalização da sua disseminação, aos antigos e convenientes boatos e rumores dos tempos de outrora, no agora relembrado antanho severamente punidos). Essa mesma lentidão com que nos demoramos nas leituras e nas reflexões sobre as muitas e sempre surpreendentes voltas que o mundo dá e dá ao mundo nosso circundante privado, nos augúrios sobre o que nos anos vindouros há‑de vir nas nossas ilhas, no nosso continente, no nosso comum mundo do planeta Terra, da trágica, mortífera e actual comprovação da sua natureza como a nossa casa verdadeiramente comum, de todos os seres humanos sem excepção, com as infecções e os morticínios provocados pela planetária e universal disseminação do novo coronavírus (SARS‑CoV‑2) e da COVID‑19 e com a anunciada e indesmentível crise económica e social do gradual e muito cauteloso pós‑desconfinamento e da pós ‑pandemia dos tempos vindouros … Mas também dos eventuais planos B, C, D, etc., a serem congeminados, caso efectivamente vier a Humanidade a confrontar‑se com uma Guerra infinita ou de muito longa duração por impossibilidade de se encontrar uma vacina para, fora dos laboratórios de virologia de alta segurança, erradicar e extirpar o vírus, e finalmente, e de forma longeva e duradoura, curar a doença.
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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José Luís Mendonça Angola
Poeta de profissão, José Luís Mendonça nasceu em 1955, no Golungo Alto, Angola, e assume-se como membro efetivo do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, fundado em Luanda, em 1948, e cujo rico e inextinguível legado encontra hoje, na Angola independente, a oportunidade e o ambiente para o seu resgate pleno. É jornalista e professor de língua portuguesa e desenvolve projetos de fomento da leitura e da aprendizagem da língua veicular nas escolas e junto de organizações juvenis. Publicou várias obras de poesia e prosa, a última das quais com o título Se os Ministros Morassem no Musseque (romance, 2019) .
Vergonha
Eu sou o único homem com vergonha de ser homem. Vergonha de ter posto o cadáver do colono na minha cama. Vergonha de ter bajulado pra ser hoje o grande profeta da minha própria ressurreição. Vergonha de ter cuspido na cara de um anjo mendigo. Vergonha de me ter prostituído em nome da amizade. Vergonha de me ter calado na morte do inocente. Vergonha de ter erguido estátuas a quem sangrou a esperança de um povo. Vergonha de ver como Trump fatiga demais Xi Jin Ping por causa da economia. Vergonha de ver como os sírios se comem com unhas e dentes afiados pelas potências que desgovernam o mundo. Vergonha de ver o Ruanda vender o coltan dos zairenses para eu escrever meus poemas em direto no Facebook. Vergonha de ver os filhos de África no porão do barco negreiro outra vez. Vergonha de ver os políticos darem o ar de outra graça .243
| José Luís Mendonça
desde que entrou em Angola o Covid dezanove. Eu sinto tanta vergonha que nem quero me ver ao espelho da cara do meu irmão. Eu sou o único homem com vergonha de ser homem.
Luanda, 17 de abril de 2020
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Gritar poesia em tempo de covid‑19
Em tempo de Covid‑19, impõe‑se, com a maior das impaciências, uma reflexão sobre a Cultura global, e sobre as Artes em particular, pois que são as Artes a ponta mais expressiva do Kilimanjaro cultural. Da parte que me toca, a Literatura, da qual sou cultor, direi que o tempo de confinamento é uma excelente prisão, portanto, abre‑se o coração para fazermos aquilo que o tempo normal, a rotina diária ‒ serviço‑casa, casa ‑serviço ‒ mais os deveres socialmente úteis nos impediam de praticar. Deus pôs a mesa aos poetas e romancistas. Sirva‑se o manjar de palavras! Um manjar pronto a ser degustado nas redes sociais – Email, WhatsApp, Youtube, Facebook e outros tubos electronicalíricos, porque a apresentação de obras em eventos públicos está provisoriamente interdita. Assim como interdita está também a impressão do livro. Uma penosa pena de penúria bibliotecária. Este estado de coisas não obsta, porém, a que se exercite a nossa inicial pronúncia lírica, à entrada da caverna Neolítica, lugar onde começaram as artes plásticas e a arte de cantar e contar. Advogo, pois, o retorno definitivo à Oralitura, ao grito, não apenas esse grito aterrorizante de Edvard Munch, mas todo o conjunto, o de terror perante a fera besta imaginária, num verso poético que ataque o comércio da alma nestes tempos de hiperconsumismo e de desumanos corpos gerentes da sociedade, o grito de vitória perante a besta‑fera dente de sabre, o grito de paixão, o grito de dor e pena, o grito silencioso dentro da alma pensante debaixo de um céu estrelado, enfim, todos os gritos do sangue humano. Comecei a exercitar esse universo de gritos da poesia dos nossos ancestrais e o resultado foi a família me olhar .245
| José Luís Mendonça
com desconfiança, pensando que agora é que o Zé Luís está a ficar desaparafusado pelo confinamento, é normal nestes casos um artista perder a noção do sensato, embora tivesse prevenido esposa e filhas. De modos que desci ao quintal da casa e, lá fora, comecei a dar os meus gritos, como num festival de Spoken Word. O resultado foi alarmar a vizinhança. Pum‑pum‑pum, bateram no portão, a mulher foi abrir, Ó vizinha, o vizinho Zé Luís está doente? Gargalhadas. Não, vizinha, a vizinha sabe que ele é poeta, está só a treinar prá quando o Covid acabar, vizinha. Ah, está bem, mana, pensei Ponto de ordem: saibam os leitores ocidentais que, aqui em Luanda, vizinho é família, é intruso na nossa quase intimidade, não estranhem, pois. E agora, José? Agora, camaradas da pena, concluí que a Lei do Eterno Retorno, tão querida dos antigos filósofos indianos e egípcios e até dos judeus do tempo de Moisés, sem descurar Pitágoras e os estoicos gregos, para emergir no século XIX, com o autor de Assim Falava Zaratustra, o não menos genial e louco Friedrich Nietzsche, é lei universal. Vejam só como voltaram os cortes de cabelo à Viking, mais as suas extintas tatuagens da cabeça aos pés, para não abrir o cinto e mostrar tatoos em lugares de intenso odor passional e erótico, vejam o retorno da tortura sem quartel e da peste negra. Estou com Zaratustra (aliás Nietzsche), que traçou esta norma: «os homens não têm de fugir à vida como os pes‑ simistas, mas como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, e dirão à vida: uma vez mais». É que estamos a viver um tempo de euforia publicista. Todo o mundo, mesmo os que não têm sensibilidade para a Arte, estafam‑se para publicar um qualquer escrito. O importante é aparecer com o rótulo de escritor. Sabe‑se, de antemão, que muitas das pessoas, amigos, familiares, curiosos, pagam o preço do livro no lançamento, depois arrumam‑no num canto da casa e nunca, mas nunca mesmo, o leem. Estamos pois, a viver este tempo altamente contraditório, em que quanto mais se publica, menos se lê. Uma vez mais, dizemos a vida através do Spoken Word, a poesia futurista. Uma vez mais, todo o poeta que se preze deve ser capaz de defender, oralmente, a sua arte. .246
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Gritar poesia em tempos de Covid-19 |
Isto não cheira ao suor criptogâmico das cavernas da Idade da Pedra Polida? Estamos, ou não, a retornar à era primitiva do grito? O Covid está aí para o confirmar, meus camaradas!
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José Luiz Tavares Cabo Verde
José Luiz Tavares nasceu a 10 de junho 1967, no Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Portugal, onde vive. Entre 2003 e 2020 publicou catorze livros espalhados por Portugal, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Colômbia. Recebeu uma dezena de prémios atribuídos em Cabo Verde, Brasil, Portugal e Espanha. Não aceitou nenhuma medalha ou comenda, até agora. Traduziu Camões e Pessoa para a língua cabo‑verdiana. Está traduzido para inglês, castelhano, francês, alemão, mandarim, neerlandês, italiano, catalão, russo, galês, finlandês e letão. Sobrevive ao tempo do mundo sem estar conectado a nenhuma rede social. (Crioulo) José Luiz Tavares nase 10 di junhu di 1967, na Tarrafal, ilha di Santiagu, Kabu Verdi. El studa literatura i filuzufia na Purtugal, undiki el ta vive. Entri 2003 i 2020 el publika katorzi livru spadjadu pa Purtugal, Kabu Verdi, Brazil, Mosanbiki i Kulônbia. El resebe undizena di prémiu na Kabu Verdi, Brazil, Purtugal i Spanha. El ka setaninhun midalha o kumenda, ti gosi. El traduzi Camões i Pessoa pa língua kabuverdianu. El sta traduzidu pa inglés, kastelhanu, fransés, alemon, mandarin, nirlandés, italianu, katalon, rusu, galés, finlandês i leton. El ta subrive tenpu di mundu sen el sta konektadu naninhun redi susial.
Finda
[Litania em tempos de coronavírus]
A que não aguentamos esperar vai nos ensinar. In Música do Futuro, Hans Magnus Enzensberger
Depois, sim, que agora estamos vivos. Depois – quando o espirro expirar. Depois – quando tiveres pó na goela. Não agora – que agora estamos vivos, mesmo se nos interditam a livre ciência do abraço. Antes, sim, com os braços portentosos. Antes – sim – de o torpor (n)os desemparelhar, com uma vénia, pois, sim senhor, que nunca é cedo para o terror de, em campo aberto, se desp(ed)ir do disfarce da vida. .249
| José Luiz Tavares
Depois, sim, porque a catástrofe caminha, os monstros se desfazem em ternurenta ladainha, dizendo à vida enclausurada que não tarda a primavera, mesmo se a morte subterrânea viaja pelo éter, e nas florestas da alma o som da peste mais do que simples rima a atafulhar, sonolenta, os ouvidos é um rude ininterrupto canto. Antes não, que te falta a trela e o apito, e a cara é sem rugas, e a morte concorda contigo, e tudo é mão de amigo mesmo se te espreita o tempo inimigo. Depois sim, que estar vivo é cedo encarquilhar-se; não, não agora, porque estás no imperscrutável interior, e desconheces o limite ulterior, e não sabes pedir por favor o socorro amplamente sufragado.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Finda [Litania em tempos de coronavírus] |
Agora sim, que é antes de toda a dor, e ainda no corpo tens tanta cor, e sobe-te à boca cento de sabores. Mas ainda não ao grande sim, porque maravilha-te estar aqui (só mais um instantinho), embora penses na mão da eternidade ou como é doce o despenhamento. Antes não – porque há a verdade que desconheces, e porque verdadeiramente nada sabes tudo desejas devotamente. Não ainda – que os teus ossos não sabem a alcatrão, nem depois – que o esqueleto é pertença do patrão. Não depois, mas agora sim, porque tens fogo nas ventas, mascas pó e polenta, e o tempo inimigo te diz que tudo se há de compor.
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| José Luiz Tavares
Na Finda
[Ladainha na tenpu di koronaviru]
Kel ki nu ka ta aguenta spera ta nxina-nu. In Múzika di Futuru, Hans Magnus Enzensberger
Dipos, sin, ki gosi nu sta bibu. Dipos – ora ki spiru kaba [di da tiru]. Dipos – ora ki bu tene puera na guela. Gosi nau – ki gosi nu sta bibu, sikre sta[-nu] proibidu siensia livri di abrasu. Antis, sin, ku brasu xei” di forsa. Antis – sin – di frakeza dizuni-s(-nu) ku ruspetu, npos, sin sinhor, nunka é ka sedu pa, na txada abertu, teror di dispi(di) di disfarsi di vida.
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Na Finda [Ladainha na tenpu di koronaviru] |
Dipos, sin, pamodi disgrasa ta ba ta bai, monstrus ta dismantxa na ladainha karinhozu, ta fla vida txikradu/aprizionadu ma primavera ka ta dura, sikre morti baxu txon ta viaja na notísia, i na florestas di alma son di pesti, más ki sinplis rima gatiadu ta stiba obidu, é un kantiga brabu ki ka ta para. Antis nau, ki sta falta-u pitu ku korda, i rostu ka tene ruga, i morti sta di akordu ku bo, i tudu é mo di amigu, sikre tenpu indimigu ta spreta-u. Dipos, sin, ki sta bibu é ruga sedu; nau, gosi nau, pamodi bu sta dentu dundi ka ta da pa spreta, i bu ka konxe limiti ki ta ben dipos, i bu ka sabe pidi pur-favor djuda ki tudu mundu seta.
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| José Luiz Tavares
Gosi sin, k”é antis di tudu dor, i inda bu sta xeiu kor na korpu, i gostu di mundu ta intxi-u boka. Mas inda nau, inda ka ora fla kel grandi sin, pamodi ta enkanta-u sta li (so más un kuzinha), enbora bu ta pensa na iternidadi o modi ki dismamanta kai é sabe. Antis nau – pamodi izisti kel verdadi ki bu ka konxe, i pamodi nada bu ka sabe verdaderamenti bu ta dizeja tudu ku grandi krensa. Inda nau – ki inda bu[s] osu ka tene gostu di alkatron, nen dipos – ki bu skiletu pertense patron. Dipos nau, mas gosi sin, pamodi bu ta kuspi lumi, bu ta nheme téra ku xerén, i tenpu indimigu ta fla-u ma tudu ta konpo.
Para o que (não) serve a poesia em tempos de calamidade? Pode ser um intolerável privilégio escrever poesia por estes dias, mas nunca será mais intolerável que a dominação dos dias comuns e sua hábil, opressiva funcionalização e mercantilização da vida. Mesmo em tempos de pânico, uma espécie de justificativa para a cessação de um pensamento de rebelião face aos dogmas instalados pela doxa comunicacional e civilizacional — poesia sempre.
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A Sombria Febre,
de Henrique Castanheira Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
José Nascimento Brasil
José Nascimento nasceu em 1992, no Brasil. É estudante de Letras – Língua Portuguesa e trabalha no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte. Em 2019, recebeu do júri da 4ª edição do Prémio Literário UCCLA – Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa, uma Menção Honrosa pelo seu livro de contos Cidade de Cinzas.
A fogueira
Sei escrever, sim, mas prefiro falar, é mais fácil para mim. Ainda me sinto confuso. Não me lembro de algumas coisas, delegado. Nunca tive armas. Não, senhor, não uso drogas. Experimentei maconha e não gostei. Meu vício é uma cachacinha. Por volta das três da manhã daquele domingo, o barulho de uma porta de carro sendo fechada me acordou. Fazia muito frio. Mendigo tem sono leve. Fome, sede, susto, dor, acordamos por qualquer motivo. Em seguida, escutei uns passos se aproximando e movi a mão por baixo do lençol até encontrar o punhal. Não se pode confiar em alguém que desce de um carro e caminha de madrugada. Senhor, apareceram dois sujeitos. Não me lembro bem da fisionomia deles, sou ruim de memória e enxergo pouco. Pararam na calçada onde eu estava e derramaram em mim o líquido de uma garrafa. Parecia álcool. Disse, nervoso, para me deixarem em paz e apontei o punhal. Usaram um isqueiro para atear fogo no meu corpo e rapidamente virei uma fogueira. Pulei de dor, era um inferno. Não imaginava ser possível sentir tanta dor. Rolei no chão, mais por instinto do que por reação mesmo, tentando apagar o fogo, e berrei por socorro. Pensei que iria morrer. Acho que desmaiei. Não sei o que aconteceu depois. Me contaram que alguém chamou uma ambulância. Perdi os documentos. Não tenho filhos. A mulher me roubou e me abandonou alguns anos atrás. Não tenho parentes. Meus pais são falecidos. Sozinho, delegado. Ser humano se acostuma com tudo. Eu sabia que poderia acontecer, não sou o primeiro nem o último, mas quem iria adivinhar? Consigo assinar, sim. As feridas não param de coçar. Não sei o que fazer .259
| José Nascimento
quando receber alta, tenho medo de dormir na rua de novo. Aqui no hospital, apesar do corpo machucado, já consigo comer e tenho cama para dormir. Só não me deixam beber. Os médicos me falaram que uma doença obriga as pessoas a se manterem distantes umas das outras e com máscaras, mas não sei se a notícia me assusta. Agora que todas suas perguntas foram respondidas, delegado, me desculpe, preciso ficar sozinho por um momento.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Não sei quanto é setenta vezes sete
Bebo quase diariamente, senão fico nervoso. Às vezes, bebo tanto que a pressão sobe e passo mal. Dias depois, me arrasto de novo à procura de algum bar para repetir a bobagem, como se expor minha miséria de homem fosse um dever. Passei dez anos sem beber. Vivia para a família. A demissão, o desgosto por ter o carro tomado pelo banco e o relacionamento de Natália, minha filha, com um homem casado me fizeram retornar ao álcool. Não consigo perdoar Natália. É mais forte do que eu. Não sou santo, não é isso. Mas não consigo. Por outro lado, reconheço que exagerei ontem no bar de Juarez, um amigo de infância. Além de Juarez, um sujeito desconhecido bebia comigo e me ouvia com certa atenção. Eu me sentia tonto e não conseguia mais beber, apesar de manter dicção razoável, uma das coisas que a bebida não me rouba. “Foi expulsa de casa por mim mês passado... não merece mais ser chamada de filha. O único fruto que tivemos. Bem-educada. Não tenho culpa. Juarez, uma infelicidade... sacudi suas roupas fora. Não tem mais pai... a vizinhança nos incomoda com zombaria. Virgínia anda mais triste do que eu, acredita? Chora por mim, chora pela filha.” Creio que os demais beberrões não me davam ouvidos. Afinal, era só mais uma conversa de bêbado que não sabia beber. Juarez retirou a garrafa vazia. “Roupa suja se lava em casa.” Com dificuldade, me movi para fora do bar. “É verdade, Juarez. É meu defeito, começo a falar e não paro mais.” Não acerto sempre o caminho de volta para casa e uma calçada, um banco, qualquer canto meio abandonado à noite me serve de colchão. Me conformaria em dormir na rua. No entanto, a minha esposa costuma me procurar nos .261
| José Nascimento
bares quando passa das onze e me encontrou na metade do percurso. “Juarez não deveria abrir o bar e você não pára de beber.” Pedi uma pequena pausa para vomitar. “Virgínia... não brigue comigo. Não aguento mais ficar confinado o tempo inteiro. E nunca saio sem máscara. Não se preocupe.” Mesmo muito irritada, ela me ajudou a caminhar e tentou disfarçar como pôde minha embriaguez. Por sorte, não vimos nenhum vizinho. “Precisa entender de uma vez que o correto é permanecer em casa.” Virgínia esquentou comida para mim. Eu não quis. Comer iria me fazer vomitar mais. Dormi até o início da tarde de hoje. Ela encontrou uma garrafa de bebida escondida na bagunça do guarda-roupa e me acordou. “Você quer beber até morrer?” Ainda atordoado, fiquei calado por um momento, pensando em uma resposta. Ela não entende. Se tenho uma boa bebida diante de mim, esqueço o mundo parado, a contagem de doentes e problemas mais particulares. Em casa, é impossível. Virgínia não me deixa beber em paz. “Não me lembrava da garrafa. Juro. Por favor, não seja dura. Não me lembrava.” Eu a olhava e a achava tão bonita e tinha vontade de lhe dar um beijo, mas não sabia como. Sem me olhar, esvaziou o conhaque na pia. “Natália quer voltar a morar aqui. Não acha que já é hora? O que aconteceu, aconteceu. Ela é nossa filha.” Fingi não ouvir. Me perguntava onde esconder as próximas garrafas.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
José Pinto Portugal
José Pinto nasceu em Vila Real, Portugal, em 1988. Psicólogo, escritor, dramaturgo, tradutor e performer, foi publicado na Corpos Editora (Porto), 2015, com o livro de poemas Humanus. Colabora com a revista TR3SREINOS (Pontevedra, Galiza) e a revista Palavra Comum (A Coruña, Galiza), e tem sido publicado em revistas do universo lusófono. Maestro, pianista e compositor, Filipe Pinto, formado na Hochschule für Musik und Theater Felix Mendelssohn Bartholdy, em Leipzig, Alemanha, adaptou poemas seus para dois melodramas compostos pelo próprio, um deles o Tríptico para piano, voz e viola d'arco, e estreou quatro textos para teatro. Atualmente , José Pinto, trabalha como dramaturgo no UMCOLETIVO (Portugal). É ainda responsável e diretor artístico da Associação Txon-poesia (Cabo Verde). Mantém o website entreabruma.wordpress.com.
Venceriam um fogo com fogo, um invisível com invisível O que é distanciamento social? Prometeram beijos paternalistas mas o invisível estalou. Não há tempo para makeup, no precipício. É ao natural. Uns líderes encetavam fugas heroicas para o mistério, outros profetizavam desgraça, da qual, viria a descobrir-se, afinal não haviam saído. Atravessaria a rua, onde muitas vezes viu os dois submersos um no outro, entre o último raiar do sol, a primeira queda para a noite e a luz amarelada do candeeiro da rua onde ela mora. Alheios, o rapaz costumava conversar com ela e os dois sorriam nos olhos um do outro. Ela não descia o degrau da porta de casa para o passeio mas a dada altura achou-os abraçados. Atravessava a rua pelo passeio oposto, com passos rápidos e olhos no caminho. O medo é um regime. Depende do que se acha que se tem a perder. Ontem, depois de transes sucessivos para pagar, decretado o isolamento social, atravessa a rua de todos os dias pelo passeio oposto, com passos rápidos e, pelo canto do olho, vê que ele e ela estão à porta de casa dela, ela em cima do degrau, os dois submersos em conversas ondulantes e risos cósmicos, alheios.
21 de março de 2020
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| José Pinto
Cabo Verde temporariamente fechado
esticar a rocha à calma lonjura de uma raiz de onde vertem sóis em flor desvanecidos no tempo que virá feito árvore 19 de março de 2020
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Venceriam um fogo com fogo, um invisível com invisível |
No coração duma ficção
Avanço pelas ruas de Europa. Aqui, o desejo é realizado num estalar de néons e só tem de seguir os hologramas que são projetados dentro da íris. Olhos abundam no meio do ar e cheira a nostalgia sebastiana, anunciando o fim dos pássaros no peito: são eles que guardam os museus e trocam diariamente de turno com os cães. A calçada esventrada pro sol contido no seu pico vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, na cidade onde a noite não há. Limpam os passeios e as estradas, esterilizam corações, como sorrisos plastificados por máquinas espectrais alimentadas a emoções. A expressão é sinal de cosmos derramado no brilho metálico dos pequenos jatos intimistas. Também há jatos de grande porte, em particular para os fora-de-era – explicara-me um funcionário público que outrora lhes chamavam “atrasados para o trabalho”. O funcionário explicou-me aquilo através de uma aplicação exclusiva para residentes e visitantes de Europa. Ninguém verbaliza com ninguém e tudo se passa entre smartphones. Introduziram a lei do não diálogo, após tentativa de revolução de uma minoria que se encontrava em segredo debaixo da cidade, tirava as máscaras e conversava sobre ética e flores. A aplicação deverá ser descarregada depois de receber o visto de visita e obrigatoriamente antes de passar a fronteira para a cidade. Nada é secreto, tudo é visível na memória mantida em dezenas de elefantes especializados em receber e guardar informação, numa colaboração nunca antes vista entre humanos e animais. Chegado à fronteira para entrar em Europa, deram-me um afago no cabelo e uma máscara de cavalo preto, que de imediato coloquei. Ninguém tira as máscaras. Justificam a lei, dizendo que é para resguardar o eu-universal e em UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| José Pinto
troca de mensagens com os residentes no chat, percebi que uma vasta maioria dá a entender que a empatia é o inimigo número um da tecnocracia. Os cheiros fortes, antigamente característicos dos grandes mercados e bazares de Marrocos e da Turquia, são produzidos em laboratórios construídos para o efeito e libertados no ar de trinta em trinta minutos. Há oito horas que percorro as ruelas de Europa e a fadiga começa a entranhar-se no nariz, até que observo um holograma de vários metros que me recorda a primeira vez que senti vida nas veias e nas artérias. Percorro semiconsciente o caminho até à porta por baixo da jovem que dança e olha pros meus olhos, pela fresta da máscara. Bato à porta e pedem-me que tire a máscara e mostre o meu eu-universal. Peço para entrar. Em troca, pedem empatia: a única forma de pagamento.
Reportagem literária, 6 de fevereiro de 2020, experimentação em oficina orientada por Luís Carmelo
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Venceriam um fogo com fogo, um invisível com invisível |
Morna para um mundo
De costas suadas para o Montara, lavava a roupa numa piscina natural. Voltou-se e perguntou à montanha se NÃO ERA SUPOSTO VIGIAR ETERNAMENTE HOMENULHERES, PARA QUE A TRAGÉDIA NÃO SE REPITA. Ah ah ah, riu um homem mascarado de Platão, enquanto se aproximava delas. Se o vulcão entrar em erupção, kel primer koza k tá bai é sê nariz, disse uma companheira. Escutava Platão com o assombro de quem assiste à telenovela: o Benfica ganhou quatro zero, dizia ele, um emproado, só porque o seu clube favorito havia ganho o campeonato. Tal coisa, respondeu-lhe, acrescentando que descendentes de Atlântida importam-se com sabedom, trabork e paciênce. Daí a riquezância, rematou. Suspendeu a respiração e concluiu, observando a cidade, que homenulheres se haviam tornado indolgent, orgulhoud e fratricide. E quanto mais ardia, mais o Montara a transformava em rocha e nham! Platão Platão, gritou pra ele, vem.
Paródia mimética de James Joyce, 19 de dezembro de 2019, experimentação em oficina orientada por Luís Carmelo
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José Pires Laranjeira Portugal
José Pires Laranjeira é professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na área de Literaturas e Culturas Africanas, desde o ano letivo de 1980-1981. Dirigiu uma pós-graduação em Literaturas Africanas e da Diáspora e é docente de cursos de mestrado e doutoramento. Faz crítica literária desde 1972 e tem colaboração variada, desde 1965, em mais de 120 jornais e revistas locais, regionais, nacionais e internacionais de vários países. Tem textos traduzidos para espanhol, catalão, francês, inglês, alemão, holandês, hindi, coreano e mandarim. Proferiu conferências, deu cursos e tem publicações em quatro continentes, com especial incidência em vários Estados do Brasil. Organizou algumas obras e coordenou coleções de livros e números de revistas. Mantém diversificada atividade cultural (jornais, rádio, vídeo, desenho, poesia). Foi militar em Angola e viveu no Brasil e ainda jornalista profissional. Alguns livros publicados: Antologia da poesia pré-angolana (1976); As portas do corpo (1980); Literaturas africanas de expressão portuguesa (1995); A negritude africana de língua portuguesa (1995); Ensaios afro-literários (2001); Máximas mínimas e outros textos. Um caminho para alguns (2003); O vento que passa (2013).
Buraco negro ao jeito de BB
Ainda estamos vivos no bairro de onde não saímos. O sol queima sem a dor da noite. Que esplendor! A chuva rítmica sob os cobertores de tamborilar a língua como é benquista. E é isso que conta ou que canta. Alguns bisavós andam por aí completos incomensuráveis como quando não havia grandes novidades na música e no mais da calmaria. Mas têm falta de ar e couves em altos quintais suspensos e perfumados pela tuberculose. Os pais dos ancestrais já não moram cá e ninguém ilustrou os seus olhos delicados no murro da memória. Cortamos as mãos às biografias e nada acontece. Apenas alguns retratos .271
| José Pires Laranjeira
esvaídos em cinzento e o sorriso do foguetório ritual. Não queremos não não queremos mas aqui na margem insistimos sentados a tarde inteira a vida toda sem remédio. Seguimos sem saber. Ninguém no outro lado sabe. A vizinha portanto não sabe porque de súbito chora. Esqueceu tudo lá atrás e agora sozinha pensa mal. Não pensa mesmo nada. Ninguém se aproxima devagar com muito medo de chegar. Não há ruas. Já se sabe mas pouco importa porque a intriga se repete sem intriga. O zero existe. O nada não. Não há ninguém. Apenas médicos e engenheiros mentais. Não há nada. Mas o zero existe igual ao infinitamente nada. Apenas palavras lentas e flores de circunstância desfolhadas sem nexo. Como um filme negro infinitamente branco. Como a garganta com musgo e os olhos moídos como vidro ou como se a terra apodrecesse comovida .272
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Buraco Negro |
pela lancinante levadeza. Morrer só de só morrer e mais nada. Nada mais. Mas os netos? Será que escrevem? Tenho muitas dúvidas. A ave que voou do egito pernoita e não vai a bar nenhum há quanto tempo porque ninguém vai. Perdeu a noção de ser e nunca mais se alevanta nunca mais das colheitas do alentejo. Não vamos a rio nenhum sem saber se há turismo. Não digas nada ao Edgar absolutamente nada a esse grande filho de uma cadela! Sujeito perigoso de todos os poemas que serve apenas ao poder de abocanhar o nosso desejo a desejar. Vamos ao egito piramidal vamos ao egito. Vamos lá desanuviar com chuva ensolarada e felinos negros ancestrais. Vício das maravilhas vírus da vida à luz do nilo que o buraco negro inspira. Vamos lá sair daqui.
Coimbra, Vale das Flores, maio/junho de 2020
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Juvenal Bucuane Moçambique
Juvenal Bucuane é um linguista e jurista moçambicano, formado pela Universidade Eduardo Mondlane Moçambique) e Doutor Honoris Causa em Literatura e Filosofia, pela Cypress International Institute University. Poeta e escritor, Bucuane é membro efetivo da AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos) e membro honorário da CEMD (Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora). Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia e prosa.
O templo
Nunca pensei que a minha boca, o meu nariz, os meus olhos, fossem as entradas prediletas do Templo aonde um rei impostor e invisível vai fazer sem se ajoelhar as suas rezas satânicas no grande altar que são os meus pulmões! Pensei que a minha boca fosse o grande transmissor de mensagens de bem; das grandes e boas novas que as pessoas querem ouvir; que o meu nariz, sensitivo meio olfativo, fosse o príncipe dos cheiros aromáticos da natureza; dos eflúvios vitais que o mundo emana e os meus olhos fossem as janelas amplas que me permitissem apreciar as belezas naturais do mundo!
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| Juvenal Bucuane
Equivoquei-me!... Eles são, afinal, a porta funérea do meu corpo, este Templo das virtudes divinas; eles são a esteira rolante pela qual o mafarrico entra para destruí-lo. E estas mãos que sempre as elevo em oração a Deus; com que cumprimento os que me rodeiam; com que abraço em aconchego, todos os que amo, são, afinal, os alcaides do Templo que livremente deixam passar a morte!...
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Anjos da esperança (Aos médicos, enfermeiros e todos os auxiliares de saúde)
Quem são esses, sem relógio no pulso e muitas vezes sem rosto que a toda a hora, minuto e segundo, dão de si, esquecendo-se que têm lar; fazem dos outros a aposta da sua vida! Quem são esses iluminados que manejam os meios de vida às vezes de escafandro trajados para assegurar a imparcialidade, também, a imunidade, senão os nossos anjos da esperança! Não são anjos virtuais, não têm asas de luz que os elevem ao céu e dele os desçam São, simplesmente, gente igual à gente...; os sacrificados da nossa travessia pelo mundo!
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Kátia Casimiro Guiné-Bissau
Ivanilde Kátia Rodrigues Casimiro nasceu em 1979 na cidade de Bissau, Guiné-Bissau. Participou na 88.ª Feira do Livro de Lisboa com a obra infantojuvenil Íris e o jogo das cores, Chiado Editora, 2018, e no 1.° Festival Infantojuvenil de Língua Portuguesa – Travessia das Letras, Templo da Poesia, Oeiras, 2019, como contadora de estórias. Foi ainda representante da Guiné-Bissau no 1.° e no 2.° Encontro de Culturas Poéticas –Tertuliana, 2018 e 2019. Kátia Casimiro foi autora do "Tributo a Tony Tcheka"– I Volume da obra: Tributo – Homenagem a Autores Marcantes da Literatura Universal, da Chiado Books, 2019, do Conto de Natal "O par de sapatinhos", na coletânea Natal em Palavras, também da Chiado Books, 2018, e de "Uma carta de amor" na coletânea 3/4 de um amor, da mesma editora, 2019. Escreveu ainda textos de microficção para a coletânea SMS da Chiado Books, 2019. A escritora representou a Guiné-Bissau no "Maio – Mês da Lusofonia", Fábrica Braço Prata, com o tema "A literatura guineense: contribuição para a identidade de um povo" e também no IX Encontro de Escritores da Língua Portuguesa, organizado pela UCCLA, com o tema "Contos tradicionais infantis – a sua importância", 2019. Está incluída na Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea – Entre o sono e o sonho, da Chiado Books, 2019, com o poema "Amor", e publicou O abutre vaidoso, Editorial Novembro, 2019. Kátia Casimiro foi a vencedora do prémio Dama de Ferro, na categoria de Literatura, Guiné-Bissau, 2020.
Coração lavado
Lavar as mãos, lavar a alma e lavar o coração Promovendo a higiene, a serenidade e a oração Maldito vírus, sem princípios Sem nenhuma educação Chegou, entrou, não avisou Todas as portas arrombou… Do oriente ao ocidente Do norte para o sul Foi ocupando a casa toda Sem diplomacia, completamente nu. Lavar as mãos, lavar a alma e lavar o coração Não temos outra alternativa Não existe outra solução Como se ainda não bastasse, Todo o mal que nos causou Ainda exigiu a solidão, pois a todos isolou De onde vem, para onde vai? O que nos quer ensinar? Além de lavar as mãos, lavar a alma e lavar o coração? Parece que veio nos lembrar que somos todos um povo irmão Nem o crente, nem o ateu Nem o pobre, tão pouco o rico Conseguiu prever esta sina Em que este tão maldito vírus A todos intimidaria Não houve raça nem cor que lhe pudesse enganar Este vírus não quis saber de nada, Veio mesmo para matar! Seja alto, seja baixo Seja gordo ou seja magro O melhor sempre será .279
| Kátia Casimiro
Lavar as mãos, lavar a alma e lavar o coração E ajudar o meu vizinho que afinal é meu irmão. Este vírus de nome corona Sem timidez, sem humildade, Com muito pouca vergonha na cara, Também é mesquinho e malandro Não mostra forma nem cheiro Não presta para nada! Lavar as mãos, lavar a alma e lavar o coração Ficar em casa, parar o mundo, Para travar o que de mal vem Só repetimos a frase, em que temos de acreditar Isto um dia vai passar, Vamos todos ficar bem!
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Tenho máscaras para todos os dias, de Henrique Castanheira Aguarela e lápis 36 x 28 cm | 2020
Lídia Jorge Portugal
Lídia Jorge nasceu no Algarve, em 1946. Licenciada em Filologia Românica, foi professora durante alguns anos em Angola e Moçambique, durante a última fase da Guerra Colonial. Tem vasta obra publicada, desde O Dia dos Prodígios, o seu primeiro romance (1980), principalmente romances, mas também contos, peças de teatro e livros para a infância. O livro A Costa dos Murmúrios (1988), sobre a sua experiência na África colonial, veio consagrar Lídia Jorge como um nome de vulto na Literatura Portuguesa. Pela obra já publicada, a escritora foi galardoada com inúmeros prémios, entre os quais o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, os Prémios Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano, Correntes d"Escrita, Sociedade Portuguesa de Autores e vários outros em França, Alemanha, Itália, Espanha, União Latina. Os livros de Lídia Jorge estão traduzidos em mais de vinte línguas e algumas obras foram já levadas à cena. Lídia Jorge https://www.portaldaliteratura.com/autores. php?autor=63
A língua portuguesa Resposta aos estudantes da Universidade de Genève
Cada língua tem o seu corpo e o seu espírito. Basta pensar que entre a língua espanhola e a portuguesa é grande a coincidência semântica, sintática e morfológica, mas na fonética e na expressividade verbal são duas línguas muito distintas. Cervantes disse que a língua portuguesa era o espanhol sem ossos, Español sin huesos, certamente porque a considerava uma língua modulada, de textura suave. Trata-se de uma síntese muito interessante. É que o castelhano avança para o final das frases galopando, como um cavalinho. O cavalinho da língua espanhola trota, avança triunfante por entre as frases, e o português ondula, como se os seus ossos fossem feitos de água. Acho muito curiosa essa expressão de Cervantes. Já com o francês a comparação é outra. Línguas mais afastadas entre si, dentro do espectro das línguas românicas, a língua francesa tem jardins de Versailles dentro dela. É geometria, racionalidade, compostura, altivez grave, feita de pompas triangulares. Basta pronunciar Allons enfants de la Patrie…, para se sentir essa esquadria dentro da qual existe um camponês que tem alma de rei-sol. Mesmo falando de vacas e centeio, o francês é pronunciado a partir de um palácio. O português é marítimo, e é rural, do campo e da igreja, a igreja de granito ou de cal, e não tem palácio na sua estrutura, tem palheiro e flores silvestres. Heróis do mar, nobre povo/ Nação valente e imortal? Boas intenções, as do seu hino. Mas a língua portuguesa não acredita na nobreza nem na bravura. Acredita só na terceira categoria, a imortalidade. É uma língua feita para cantar melodias mansas, transcendentais – Vem saber se o mar terá razão/ Vem cá ver bailar meu coração... Estamos a falar das línguas latinas, que têm menos vocábulos do que a língua inglesa. Pensemos então no inglês e no português. .285
| Lídia Jorge
Este livro em inglês teria menos um quarto das páginas. Porquê? Porque o inglês tem mais vocábulos que o português, bastantes mais. O português, para as mesmas ideias, precisa de encontrar metáforas. Como a metáfora exige muitas palavras, o texto torna-se mais longo. Mais longo em português do que em espanhol. O espanhol tem mais palavras do que o português. Para sermos francos, a língua portuguesa é maravilhosa, mas não podemos mentir sobre o seu número de vocábulos. Nós temos menos vocábulos do que os espanhóis, menos vocábulos que os franceses, menos vocábulos que os ingleses. Mas, em compensação, temos agilidade na criação de expressões. E, nesse campo, ninguém nos bate, a língua portuguesa é mais criativa do que a língua francesa e a inglesa, porque estamos treinados para a metáfora e, por isso, o português é eminentemente poético e transfigurador. Esse é o segredo da nossa riqueza expressiva. Este tipo de linguagem explica que a nossa escrita literária seja litúrgica e repetitiva. Os textos dos portugueses, dos melhores escritores portugueses, são textos repetitivos. Vejam, por exemplo, José Saramago como repete. Também Agustina Bessa Luís repete. Lobo Antunes, repete, repete... Quer dizer, há construções nas páginas dos escritores portugueses que parecem orações. Na escrita portuguesa há alguma coisa de tautológico, o vício do emparelhamento, como nos textos religiosos. A nossa poética é repetitiva. Os nossos livros são repetitivos. Alguns deles deliciosamente repetitivos. Quem usa a língua portuguesa sabe que a repetição é a forma de declarar que nenhuma língua tem os instrumentos necessários para exprimir a totalidade do desejo. Então, podemos e devemos repetir à vontade. Como não amar esta língua?
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Fotografia de Anabela Carvalho
Luísa Fresta Angola – Portugal
Luísa Fresta, angolana e portuguesa, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal desde 1993. Publicou uma série de crónicas sobre as décadas de 70/80 da vida em Luanda, no jornal Cultura – Jornal Angolano de Artes e Letras, e em revistas on-line (a moçambicana Literatas e as brasileiras Samizdat e Subversa). A autora publica artigos de opinião sobre cinema no site de crítica de cinema Africiné, portal BUALA, revista Awotele, e manteve, até 2015, duas colunas na revista METROPOLIS: "A 7ª arte em África" e "Filmes da lusofonia". Em 2016 integrou o júri do comité de pré-seleção da representação pan-africana do Festival l"Arbre d"Or (filmes documentários – Gorée/ Senegal). Luísa Fresta recebeu vários prémios pelos contos, poemas e crónicas apresentados a concurso e publicados em antologias, em Portugal, Brasil, Angola e Cabo Verde. Livros publicados: 49 Passos/ Entre os Limites e o Infinito (poesia), Chiado Editora, 2014 Contexturas (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, co-autora), Livros de Ontem, 2017 Março entre meridianos (poesia, 1º prémio "Um Bouquet de Rosas para Ti"), MAAN, 2018 Março entre meridianos (reedição), Livros de Ontem, 2019 A Fabulosa Galinha de Angola (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020
Almas gémeas
— Trago um recado da Ceifeira Sou o seu homem de mão Ando de qualquer maneira Mato a fome em qualquer nação — Muito prazer senhor Esbirro Chegue mais perto de mim Sou a Pobreza, não espirro Só tusso vagas tristezas [sem fim] — O meu nome é Vírus, sou o devir [Corona Vírus, muito prazer, na verdade] Procuro um lugar onde dormir Para me instalar na cidade — Tem logo ali um mercado Estava guardado o seu posto Fique à vontade, é nosso convidado Acomode-se a seu gosto — Minha senhora, é profundo O meu respeito e reconhecimento Diga-me: como extrai deste mundo Tão misteriosa dama o seu sustento? — Ah, ah, ah, ah, descanse e espalhe Veneno por outros mais desatentos Talvez a sorte lhe sorria e calhe Aos seus infaustos intentos
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| Luísa Fresta
Saiba o senhor que eu vivo da guerra Do desemprego e da exploração Até o céu é dos pobres [donos da terra] Ninguém suplanta a minha intervenção — Como contrariá-la? Ou desiludi-la? Talvez nos pudéssemos unir… A humanidade anda cega — em fila Vamos acabar o que ajudou a destruir… — Não faço alianças com arrivistas Reconheça o meu poder sobre a vida Conheço à légua oportunistas Campeões de ambição desmedida … Nessa noite o Corona aconselhou-se Com a patroa. — Essa Pobreza é atrevida E refilona; mas ainda não me trouxe Em vidas a dívida assumida A partir de hoje viajas sem parar Pelos turistas, pelos emigrantes Pelos transeuntes, onde calhar Pelas famílias pobres e errantes Conhecerás a fundo todos os países E entrarás também nas zonas abastadas Cumprirás as ameaças e o que dizes Mesmo nas mansões mais resguardadas
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Almas gémeas |
Corona Vírus acatou e engravidou mulheres Contaminou homens de todas as línguas e credos Conspurcou mesas, portas, roupas e talheres Penetrou em caucasianas e berberes Mas um dia acordou fraco e enjoado Sem forças para entrar no corpo De quem quer que fosse. Apagado E inofensivo como um retrato morto Um dos seus filhos foi o causador Do seu torpor e decadência [O vírus moribundo emudecido pela dor Entregou-se, num gesto de decência] O troféu que não soube conquistar É da Pobreza e dos parceiros mais leais Malária, Zika e Ébola voltaram a brilhar Fotografados em todos os jornais.
11 de outubro de 2020
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Madalena Brito Neves Cabo Verde
Madalena Brito Neves, nascida na ilha do Sal em 1956, é economista e consultora. Professora do ensino secundário, Diretora do Gabinete de Estudos da Indústria e Energia, integrou o Governo da República de Cabo Verde de 2001 a 2011, e foi Embaixadora em Portugal e Marrocos (2012–2016). Cofundadora do Cais da Palavra (iniciativa de leitura poética), membro da SOCA (Sociedade Cabo-Verdiana de Autores) e com poemas publicados na Revista Artiletra e no extinto Jornal Horizonte. Em 2017 publicou o primeiro livro de poesia, Flor de Basalto, pela Rosa de Porcelana Editora.
Tempo aberto
I
Um pincel à sombra, raio de luz Dádiva! na estação vidas marcando o compasso à direita do ser, à esquerda do Tempo! Templo no Tempo! Do outro lado do ano, assim vaticinou Paz Poeta Dia primeiro, de celebração “in Peace” Luzes – cores dançando aos pés d” Racordai1 Nesse instante sombra – cor – dor, vidas à margem Na margem … vidas Sons & Tons Claro – Escuro SU KU RU2 Tempo! Giza na Djiza3 – tradiçon d” Finaçon4 Canto d” Esperança!
Racordai – termo cabo-verdiano que designa um responso cantado na noite de Fim de Ano e um instrumento tradicional de música, feito de pequenas latas e tampas de garrafas, que se agita pelas ruas na noite de 31 de dezembro (in https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/racordai). 2 Escuro, em crioulo de Cabo Verde, variante da ilha de Santiago. 3 Djiza – termo cabo-verdiano que significa choro, utilizado também para designar o choro ritmado das carpideiras. 4 Conjunto musical. Designa também um género musical. 1
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II
Mulher de olhos rasgados Nas cores do teu leque guardas força púrpura para Grilhões quebrar e na dança colorida fazer renascer Branco – alvo – dourado, o Mar. Mulher bonita como Nova Sintra d” Eugénio5, na carícia do Mar Fechada na Concha-Medo, na tua hora d” aflição Mulher-Mãe de muitos amores, teu colo Adormeceu e, ao despertar, pétalas espalhou. Mulher-Meninas, abraço do Atlântico Sonho montado na ponte da tragédia, na tua cápsula Descrença, desparamenta a sombra, soletra ondas de grandeza, deixa ouvir galope de cavalos de felicidade. Menina de Saia Colorida, encomendaram-te a Mortalha Esqueceram-se de convocar o Poeta do Epitáfio à la Mer6, Mar que te Abraça e te chama Mamãe!
Eugénio Tavares – poeta, escritor, compositor, jornalista, nasceu a 18/10/1867, em Nova Sintra, sede do concelho da Ilha Brava. Celebra-se a 18 de outubro o Dia Nacional da Cultura. 6 Mário Fonseca – poeta cabo-verdiano, nascido na Praia, em 12/11/1939, autor de La Mer A Tous les Coups, Imprensa Nacional, Praia. 5
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Tempo aberto |
III
Senhora das tempestades e dos mistérios originais … Tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma. Manuel Alegre (Senhora das Tempestades)
De Praia Town a New York City, noite passeia pela cidade A carpideira de Balzac7 e suas irmãs … dormem de sono solto, Encomendam com o olhar (os bolsos minguaram) e os gritos Gritos Lágrimas, djiza entoada, presente de um tempo ausente, Um nome no silêncio ruidoso, entre nomes tantos Silêncio bailando na pena do Poeta! com Ovídio8 perguntamos: Quem morreu quando A vala abriu os braços para acolher um mar de almas, irmãs e irmãos, destino fechado na arca azul, dor fechada “Nôs tude morrê um c’zinha” (Morreu um pedaço de cada um de nós) Quem morreu quando Ficou suspensa …a carícia na dispidida “ Nôs tude morrê um c’zinha” Quem morreu quando Na solenidade da hora, palco cheio, taça d”azeite, ofertada com papel-sorriso na mão esquerda, luminária levantada, na direita “Nôs tude morrê um c’zinha”.
Referência ao livro Le Père Goriot, de Balzac. Referência ao poeta cabo-verdiano Ovídio Martins, nascido a 17/9/1928, e ao poema “Nôs morte”.
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IV “…imaginem! …alguém se lembrasse, … de propor a constitui‑ ção de uma comissão para estudar medidas de combate ao tempo, … ao Tempo … Para se viver sem Tempo, nem mais!” Jorge Carlos Fonseca (O Albergue Espanhol)
Invisível, Indefinido, Indiferente Ecos da perda, pedra suspensa à espera do Tempo Templo Lugar de Partida do Tempo Supplicationes!9 Coliseu! abriu o tempo, tempo Lamentazioni10 , preces à janela, preghiere chiuse, Santa, Rainha, Deusa, nas preces, Súplica em nome dos … sem Nome. Ano Novo fechado num casulo, fechado na Cidade Proibida, Museu de Silêncio erguido, em homenagem à Senhora do Medo. A castanhola despiu-se de ritmo e, no degelo do Palácio, segue passeando pelo Prado, frio & nos degraus crescem, quentes, palmas no coração da Nação. Torre, dois passos à direita, roqueou, na evocação da guerreira, luminária à procura de mãos certas, seta apontada à tristeza, que desliza, em direcção ao vazio Arco. No Castelo d” estória, desenhada, no ruído silencioso da praça, nos tambores d” Cova da Moura, nos passos de Nhô Santo Amaro, no olhar do rio na hora d” sôdade. Na casta e na raça? Na cor da Dor? Vila Morena, mensageira à janela das avós, entre a ideia e o olhar, em notas CêPêLPianas, Serena - Teia Mamãe Velha
A Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença, possui um manuscrito extraordinário: uma antologia de textos and imagens devocionais intitulada Su‑ pplicationes variae, datado de 1293. 10 Referência ao “Livro das Lamentações”, do profeta Jeremias (Antigo Testamento). 9
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Peregrina no meio da cidade, pétalas – suspiro do passado No compasso da súplica, movimento colectivo, olhar no meio do caos, Estátua! em busca do céu. Matrochka perdeu a saia, na Praça sem cor, com o lenço vermelho-sangue guarda, no Samovar, o Tchai-quente, para entardecer Instantes da Primavera. Opera, opereta, convés iluminado nos degraus da beleza, salto certeiro na magia da criação, troca as voltas ao esboço de drama e faz brilhar o amanhecer. Na casta e na raça? Na cor da Dor? A cidade dorme, rapsódia de silêncio nos pilares da ponte, na Central Station … Dinossauro empalidecido na presença ausente do bulício. No Corcovado, de coração partido, de mãos estendidas aos génios da música e da história, performance trocada, no palco, trancada. Na evocação do grito liberdadi! Número à janela da ilha, ergue-se a Voz-Profecia, que te indaga e te incomoda: [His day is Done?] NEFERTITI – Rainha, do alto do pedestal, sorrindo para o raio de Sol, que ilumina o caminho para o Vale dos Reis, in Lockdown. Na casta e na raça na cor da Dor? Sombras de Shiva no ninho do DÔDÔ, que descansa à beira mar e soluça na saudade – segas11. Nas amarras da piroga, pedaços de rima, pintando o ponto de partida: Cabo na ilha, verde na raiz de um Sahel Atlântico.
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Ceifas
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Convento d” STÓRIA, joelhos d”Europa, América, África pedindo a bênção a Nossa Srª do Rosário. Coração da Ilha-Montecara, búzios da Machamba, ressuscitando nos pés D”Mandinga d” R”BÊRA-BOTE. Areia suspensa na gota cristalina, Swing d” Me Too, rugido do Tempo, miragem de visitante na boca da Natureza a guardar o sorriso da Lua. Na casta e na raça? Na cor da Dor? Ecos no Templo! Lugar de Chegada Do Silêncio a Si! Tempo Supplicationes! Silênciiio… Na Piazza
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Tempo aberto |
V Quero sair andar Gritar chorar … Pois o amanhã será de luta E as forças não se podem eterizar pelo caminho Vera Duarte (Amanhã Amadrugada)
Pincel! Estação – Luz! Manto Azul, Azul imensidão Azul, Assim … Entram no Tempo End of SU KU RU Deusas & Rainhas Pés descalços, na Pedra Símbolo, Vida Nomes Graça, Maria, Luzia, Joana Isabel, Fátima, Cize, Brígida Yemanjá, Nácia, Miriam, Pilar, Teresa, Tina, Amália Nomes Rainhas & Deusas No aroma a flor de Lis, deslizam
Contam Dançam Cantam Cantam Dançam Contam A Dança da Deusa Dança D”Esperança Deslizam Assim Azul Azul, que desagua do lado esquerdo do Tempo Aberto!
A Autora não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Madalena Mira Portugal
Nasceu em Moura, 1966. Trabalha e estuda na Universidade Autónoma de Lisboa. É investigadora na área da História. Cidadã ativa interessada nas dinâmicas globais.
A conquista do mundo
Acordou sem saber onde estava. Espreguiçou‑se e acordou outros como ele. Saltitaram cada um para seu lado deixando‑se levar como se estivessem numa corrida onde nada era controlado por eles, mas que lhes garantia transporte. Mãos, pés, roupa, carros e bicicletas, qualquer coisa lhes servia, e se havia bicicletas!, que apesar de não serem velozes como outros veículos eram seguras no caminho. Iam, e era quanto bastava. Ou nem isso, porque nem sabiam que estavam a ir. Mas foram. Foram da Ásia para a Europa, América, África e Oceânia. Foram a pé e de avião, de carro e de barco. Foram a grandes cidades e a pequenas aldeias. E em todo o lado encontravam terreno fértil para se instalarem e reproduzirem. Confundiram‑se com a essência do mundo atual, em permanente movimento, e com a essência de mundos passados, colonizando, e transformaram o planeta num enorme desfiladeiro por onde passava uma invisível manada em debandada. Cegos perante classes sociais, surdos perante diferentes línguas de diferentes países e mudos na resposta a todas as preces, instalaram‑se, criando o caos. Ao longo da sua história a Humanidade não se lembrava de ter trabalhado em uníssono. Já tinha feito vários projetos em equipa, tomado decisões continentais, mas nunca se tinha ouvido o mesmo grito lançado dos diferentes fusos horários: Fica em casa, enquanto se rezava aos médicos. Os presidentes, ministros e reis uniram‑se fortemente ordenando o encerramento do mundo, que se fechou entre quatro paredes, numa ação comum que, se pensada .301
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anteriormente, dir‑se‑ia que todos tinham que estar juntos. E estavam! Mas afastados. Abandonaram‑se os lugares de trabalho e as escolas, as fábricas, as empresas, as economias fecharam. Os cidadãos agiram civicamente, numa atitude impensável, como quem fala baixo para passar despercebido, a gigante multidão cerrou portas para impedir a entrada a quem não viesse por bem e assim se mantiveram, sabendo que a proteção era mais vital que o colapso financeiro que se lhe seguiria. O movimento que esvaziou ruas, praças e estradas, acotovelou‑se nos wi‑fis, o ar que se deixou de partilhar robusteceu‑se, a água que se poluía cristalizou‑se, e percebeu‑se que muitas, muitíssimas tarefas podiam ser feitas à distância. A adaptação começou a ganhar contornos de transformação. Porém, a vaga invisível torneava tudo e todos, escapava ‑se nos intervalos da chuva, sobrevivia em qualquer superfície e lançava uma febre miudinha, um mal‑estar que, a muitos, não passava disso. A outros, matava‑os. A Morte, que andava sempre ocupada e desconhecia o significado de fins de semana ou férias, mantinha um negócio próspero, mesmo em épocas de poucas guerras, e havia uma ironia na sua existência que lhe causava até vontade de rir: ela, Morte, tinha vida eterna. Estava presente para todos, grandes, a quem chamavam adultos, e pequenos, a quem chamavam crianças. Não importava o tamanho, o peito subia e descia, ela chegava e o movimento parava. De início não percebeu muito bem o que passava, mas estranhou a diminuição de trabalhos na estrada, não havia acidentes de sangue nas ruas, não havia criminosos à vista. Porém, os hospitais revelavam uma atividade invulgar. A Morte estava habituada a lidar com surtos e a deslocar‑se em velocidade fantasmagórica de qualquer .302
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A conquista do mundo |
lado para todos os sítios onde o seu negócio florescesse, sem deixar de atender a velhos em aldeias perdidas ou a novos em vielas escuras. Ninguém a queria, mas todos a tinham. Via a Humanidade a agir de forma bizarra: batia palmas, elevava valores esquecidos, agia em sentida solidariedade, ponderava com cientistas rigorosos em várias línguas como se fossem vizinhos ou família, exigia rigor e ética, esbanjava precaução e cuidados. Fazia‑se mea culpa, e compensava‑se com empréstimos, ofertas, doações, perdões, ventiladores e máscaras. A Morte, atenta, franzia o sobrolho com a quantidade de trabalho nos hospitais, com os carros pretos das agências funerárias a darem lugar a camiões brancos de refrigeração. Os mortos acumulavam‑se sem funerais, sem famílias, lágrimas ou choros, embora se ouvissem à distância. Onde estavam as manifestações de saudade pelos desaparecidos? Pela primeira vez na história da vida da Humanidade, a Morte entendeu que não tinha condições de trabalho. Cenários de guerra ou gulags eram locais concentrados, picos de atividade no espaço e no tempo, mas isto… Com o mundo num caos económico e social, depressivo e angustiado, enlutado, mas unido, a Morte, cansada e determinada em voltar ao antigo patamar de trabalho, decidiu não colaborar na loucura que testemunhava, virou as costas à Humanidade e afastou‑se arrojando o seu manto negro. Nos dias seguintes, as portas abriram‑se lentamente, e a Cultura, que tinha mitigado a distância com livros, música, com atores e protagonistas vários a cantarem, dançarem, interpretarem, tocarem para um mundo que os recebia através das janelas dos telefones, dos computadores e das televisões, saiu à rua abraçada às pessoas e a gritar Liberdade! UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Fotografia de Notícias de Coimbra
Manuel Alegre Portugal Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu em 1936 em Águeda. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, onde foi um ativo dirigente estudantil. Chamado para o serviço militar, em 1961, devido à sua oposição ao regime de Salazar e à guerra colonial, esteve nos Açores e, em 1962, foi mobilizado para Angola, onde dirigiu uma tentativa de revolta militar. Preso pela PIDE em Luanda, em 1963, conheceu na cadeia escritores angolanos como Luandino Vieira e António Jacinto. Colocado com residência fixa em Coimbra, acabou por sair para o exílio em 1964. Passou dez anos exilado em Argel, como dirigente da Frente Patriótica de Libertação Nacional. Poemas seus, cantados, entre outros, por Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e Luís Cília, tornaram-se emblemáticos da luta pela liberdade. Manuel Alegre foi deputado à Assembleia da República desde 1975 até 2009 e Conselheiro de Estado durante vários mandatos. Em 2010, a Universidade de Pádua inaugurou a Cátedra Manuel Alegre, destinada ao estudo da Língua, Literatura e Cultura Portuguesas. Eleito sócio efetivo da Academia das Ciências em 2016, Manuel Alegre foi galardoado com o Prémio Camões e um Doutoramento "Honoris Causa" pela Universidade de Pádua (2017) e um outro Doutoramento "Honoris Causa" pela Universidade de Lisboa (2018). Pela sua obra, nacional e internacionalmente reconhecida, Manuel Alegre recebeu múltiplos e importantes prémios literários. A sua vastíssima obra, em especial a poesia, tem sido reeditada sucessivas vezes. O livro Senhora das Tempestades (14000 exemplares vendidos num mês) inclui o poema com o mesmo nome, que Vítor Manuel Aguiar e Silva considerou "uma das mais belas odes escritas na língua portuguesa". O romance Alma teve 15 edições, A Terceira Rosa foi duplamente premiado e o livro Cão como nós vai na 27ª edição. in http://www.manuelalegre.com/101000/1/,000021/index.htm, recolhido a 31 de janeiro de 2021. Este site inclui a lista das obras de Manuel Alegre em poesia e em prosa.
Lisboa Ainda
Lisboa não tem beijos nem abraços não tem risos nem esplanadas não tem passos nem raparigas e rapazes de mãos dadas tem praças cheias de ninguém ainda tem sol mas não tem nem gaivota de Amália nem canoa sem restaurantes, sem bares, nem cinemas ainda é fado ainda é poemas fechada dentro de si mesma ainda é Lisboa cidade aberta ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste e em cada rua deserta ainda resiste
(Manuel Alegre escreveu este poema sobre Lisboa sob a pandemia e autorizou expressamente a sua publicação neste livro da UCCLA - Literatura e Cultura em Tempos de Pandemia. 20 de março de 2020)
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Fotografia de Alfredo Cunha
Manuel S. Fonseca Portugal
Manuel S. Fonseca, nasceu a 27 de julho de 1953, e a sua carreira profissional está desde o começo ligada à Cultura. As suas áreas de intervenção foram ou são a edição de livros, a imprensa, a televisão, o cinema e a rádio. Cronista, é autor das monografias sobre Francis Coppola e Michelangelo Antonioni. É também autor do Pequeno Livro dos Grandes Insultos, Revolução de Outubro, Pequeno Dicionário Caluanda, bem como dos ensaios críticos que acompanham as edições do Manifesto Comunista, Mein Kampf e Pequeno Livro Vermelho. Participou na fundação da Cinemateca Portuguesa, da SIC, da SIC Filmes, da Valentim de Carvalho Filmes. Fundou duas editoras, a Três Sinais e a Guerra e Paz. Para que conste: não fuma nem inala, é um sereno bebedor de vinho tinto, mas nada que o impeça de ler poesia, romance e ensaio, paixão que o inibe de escrever mais, como por delicadeza lhe sugerem. Ainda vê filmes em sala, de preferência em ecrã gigante. Tem saudades da Luanda do final dos anos 60, dos Beatles e da primeira vez, seja lá o que isso for.
Em defesa do livro: não deixem o vírus matar Camões Autores, editores e livreiros estão em perigo. Tolstói ou Dostoievski, Shakespeare e Camões, Camilo ou Eça vivem, como Portugal, como o mundo, a situação calamitosa que afecta dramaticamente a nossa forma de vida, as pessoas e as empresas. Sim, os grandes romances, os grandes ensaios, os livros de ciência ou de filosofia, tal como os editores e livreiros que são a sua casa, acabam de sofrer um violento abalo. Fragilizados pelas crises económicas de 2008 e de 2011, editores e livreiros são agora, como resultado directo desta pandemia, confrontados com a mais dura ameaça que o livro já experimentou em Portugal. A espada de Dâmocles, que é a insolvência de editores e o fecho definitivo de muitas livrarias, paira sobre as nossas cabeças, sobre a cabeça dos grandes livros e dos grandes autores, o que o empobrecimento salarial dos leitores, já de si uma minoria da população, mais reforça. E esqueçam os choradinhos e peditório economicista, por mais legítimo que ele seja. Não vos estou a falar só de uma actividade económica. Ao falar do livro, estamos a falar de um sector estratégico para o futuro de Portugal, de um sector fundador para todas as outras actividades económicas. Como as neurociências cada vez mais atestam, o livro, a leitura de livros, é imprescindível para a obtenção e solidificação do conhecimento. Se o futuro de Portugal passa, como todos acreditamos, pelo conhecimento, pela ciência, pela matemática, pelo avanço tecnológico, então o livro é a pedra basilar desse edifício. É a mais avançada ciência do mapeamento do cérebro humano que o afirma, garantindo que esse livro a que os cientistas se referem não é apenas o livro escolar ou técnico, de pura aprendizagem. São todos os outros livros, a literatura, poesia e romance, o Dom Quixote e As Mil .307
| Manuel S. Fonseca
e Uma Noites, Fernando Pessoa e Walt Whitman, que alimentam a inteligência emocional dos leitores, oferecendo ‑lhes uma cultura e uma experiência que, só pela vida, seria impossível colher e que lhes dá empatia humana, vacinando‑os contra autoritarismos e contra a arrogância do imediatismo de tuítes e redes sociais. O livro – os livros de António Lobo Antunes, de Jorge de Sena, Agustina, Sophia – é vital para conferir a Portugal o conhecimento de que o nosso futuro precisa e é crucial para a expansão do imaginário e da identidade emocional da comunidade que somos, identidade essencial à construção de um desígnio comum. Por alguma razão, afinal, o Dia de Portugal tem como patrono um poeta e a sua obra, denominador comum para os portugueses. Essa escolha não pode, apenas, ser uma flor de retórica. E quem ama a literatura junta‑lhe, num gesto ecuménico, as novas gerações de escritores de língua portuguesa, de África, das Américas e da Ásia, vencedores alguns do Prémio Camões, signo do ideal de universalidade a que aspiramos e que nos empolga. Cartas na mesa: sem o livro, todas as actividades económicas se empobrecerão. Sem o livro, o futuro das nossas ciências e da nossa tecnologia perde competitividade. Se não escolher a defesa vigorosa do livro, Portugal perde voz no concerto das nações. E esse é o Portugal resignado e sem ambição que todos recusamos. Salvar o livro deve ser, pois, desígnio dos portugueses, dos cidadãos, do Estado, dos sectores do conhecimento – e de todos os sectores económicos, que, com esse salvamento, estarão a proteger‑se e a enriquecer‑se. O livro tem de merecer um tratamento de excepção. Não deixemos que, com esta água do banho, se deitem fora esses embriões do conhecimento e do imaginário que são os livros, todos os livros. Há duas acções imperiosas a desenvolver. Uma a montante, restaurando, junto das novas gerações, o hábito da leitura e o tremendo e poderoso prazer que nela se ganha. Cabe ao sistema educativo repensar métodos de atracção e sedução, cabe aos pais a descoberta do poder lúdico do livro para reforço dos laços afectivos familiares. Cabe ao sistema educativo reparar a catástrofe de tantas opções facilitistas que afastaram as novas gerações do livro. Essa é uma acção a médio e longo prazo. Mas para que ela possa ser bem‑sucedida há uma acção imediata, a jusante, que tem de ser já concretizada: é .308
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Em desfesa do livro: não deixem o vírus matar Camões |
preciso salvar as edições d”Os Lusíadas, de Hamlet, d”O Principezinho, de Amor de Perdição, que estão nas estantes. É preciso salvar os editores e livreiros portugueses, única forma de garantir a preservação do livro. Salvando ‑os, salvam‑se milhares de autores, de tradutores, de revisores, de tipografias. E salva‑se a diversidade, liberdade e independência do livro, contra hegemonias privadas ou estatais indesejáveis. Consciente de que para tempos excepcionais são necessárias medidas excepcionais, há acções urgentes que precisamos de fazer como quem faz respiração boca‑a ‑boca em emergência crítica. Dou exemplo de uma medida que valeria por mil, podendo injectar no sector várias dezenas de milhões de euros: Criação de um cheque‑livro familiar, adoptando uma forma simplificada: permitir que cada contribuinte, após a finalização do IRS, possa ainda, e além das deduções já existentes na lei, fazer a dedução integral de 100 €, contra a apresentação de facturas de compra de livros em livrarias. Esta medida tem a vantagem de deixar na mão dos leitores a decisão de compra dos livros, sem dirigismos e sem desvirtuar regras de concorrência. Mais ainda, esta medida não exige investimento do Estado. Dir‑se‑á que o Estado perde receita no IRS. No entanto recupera‑o directamente, quer no IVA do livro, quer no IRC das livrarias e editores, quer no IRS dos autores e de toda a cadeia de tradutores e revisores. Mais ainda, recupera‑o indirectamente poupando nos custos sociais, de pendor negativo, que o Estado terá de suportar se editores e livrarias entrarem em insolvência e uma vaga de despedimentos se abater sobre o sector. Esta é uma acção forte e necessária para garantir que as novas gerações, com as ferramentas que só o livro e a leitura lhes põem nas mãos, dominem o pensamento e a linguagem, criando a ciência, o saber, a beleza, os valores e a democracia que farão de Portugal um país com futuro. É esta a missão a que todos os autores, editores e livreiros querem entregar‑se. Vamos salvar Camões, Eça, Hemingway, Kant, Wittgenstein, Virginia Woolf ou Clarice Lispector do vírus fatal. Salvando‑os, projectamos Portugal para um caminho de conhecimento, ciência e riqueza emocional. Não deixem o vírus matar Camões.
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Não fui ao baile,
de Henrique Castanheira Aguarela e lápis 36 x 28 cm | 2020
Marciano Gualberto Nascimento Brasil
Marciano Gualberto Andrade Nascimento Junior (22/01/1995). Filho de uma grande mulher: Conceição (Baiana), e de uma musa litorânea, Parnaíba-PI. Escreve desde os 12 anos inspirado pelos escritos de Nietzsche e Augusto dos Anjos, pois mostravam que ele tinha de seguir o seu próprio caminho e converter a dor em palavras, pois sua poesia sempre brotou da reação à dor. Dentro do seu ofício de historiador, se interessou por temas como africanidade, pensando as representações construídas sobre a África a partir do Brasil em virtude das lutas dos negros e as marcas culturais da Mãe África no solo que pisamos regado pelo sangue, suor e força de nossos ancestrais. Assim, o autor segue pontuando a virtude na tragédia e a coragem, pois a alegria só vai sorrir para os corajosos. Se você não for corajoso, a alegria não vai sorrir para você.
Olhar sobre as pestes
Covid-19, peste que não só reflete a morte, Mas o mal caráter dos seres humanos O mundo tá acabando e você aí, Cada vez mais arrogante, orgulhoso e egoísta É mais fácil o ser humano acabar com o mundo Do que um vírus proliferado Deixe máscaras para contaminados, E não para esconder seu “pandemônio” facial Dentre a peste negra (século 14), a gripe espanhola pós ‑Grande Guerra, E todos os outros surtos, você não ampliou sua percepção Sobre o valor da vida, E me faz surtar ainda mais.
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Maria Clara Costa Portugal
Maria Clara Andrade Soares Pedro da Costa nasceu na Amadora, Portugal, em 1940, onde sempre viveu. Desde 2002 integra uma tertúlia poética, "Tertúlia Sempre Acontece Poesia", que lançou, de 2003 a 2014, quatro antologias, Tempo per Verso 1, 2, 3, 4, onde tem diversos poemas publicados. De 2011 a 2019, publicou prosa e poesia em nove Antologias, Estórias e Vivências, da Academia Cultural Saudação; em 2003, quatro poemas na Antologia Poiesis, volume IX, da Editorial Minerva e, em 2015, poemas e prosa na Antologia Palavras da Alma, da Editora Brial. A autora gosta de viajar e, de 2009 a 2019, publicou vinte e duas crónicas de viagens em Portugal e no mundo na Revista Fugas, do Jornal Público. No 15º aniversário desta revista entrevistaram os cinco colaboradores com mais publicações até à data, entre eles, Maria Clara Costa. Pode ver a entrevista em: http://fugas.publico. pt/DicasDosLeitores/348741_a-fugas-e-uma-fuga-paramim-e-para-os-meus-sonhos#2 Pode ainda ler a crónica de uma viagem no estrangeiro e a última em Portugal em: http://fugas.publico.pt/DicasDosLeitores/353029_grand-canyon-uma-viagem-que-nao-se-esquece#.Vf2R4alBYCE.email https://www.publico.pt/2019/09/07/fugas/noticia/arouca-esplendor-natureza-1885203
Pandemia da primavera do século XXI
Atravessei o jardim Sem ver gente ou animais Gelei dentro de mim Por fora ouvi meus ais Sem uma paisagem humana Senti-me um vagabundo E vi como o mundo abana Quando o silêncio é profundo Ninguém está preparado Pra viver esta loucura Mas se é a fé que nos salva Há que ter calma e bravura Dias brilhantes virão Pra aquecer as nossas almas E dizermos com emoção: Vamos todos bater palmas!!!
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Fotografia de Francisco Jr (VOA)
Mia Couto Moçambique
Mia Couto (1955), pseudónimo de António Emílio Leite Couto, nasceu na cidade da Beira, em Moçambique. Escritor, poeta, jornalista e biólogo, iniciou o seu percurso literário aos 14 anos com a publicação de poemas no jornal Notícias da Beira. Mais tarde, viria a escrever as suas obras em prosa. Em 1972 foi para Lourenço Marques, hoje Maputo, estudar medicina. A partir de 1974 enveredou pelo jornalismo, tornando-se, com a independência, repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique (AIM). Em 1985, abandonou a carreira jornalística e reingressou na Universidade Eduardo Mondlane, onde se formou em Biologia, especializando-se na área de Ecologia, matéria que leciona em diversas faculdades. Como biólogo tem realizado pesquisas em diversas áreas, com incidência na gestão de zonas costeiras e na recolha de mitos, lendas e crenças que intervêm na gestão tradicional dos recursos naturais. Mia Couto usa uma linguagem extremamente rica e fértil em neologismos, sendo o único escritor africano membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998. É o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. A sua vasta bibliografia está traduzida e publicada em 24 países e várias obras têm sido adaptadas ao teatro e ao cinema. O seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, recebeu o Prémio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra, em 2007 o Prémio União Latina de Literaturas Românicas. Em 2013 venceu o Prémio Camões. Em 2014 recebeu o Prémio Internacional de Literatura Neustadt, em 2020 o Prémio Jan Michalski de Literatura pela trilogia As Areias do Imperador e, pela mesma obra, em janeiro de 2021, o Prémio Literário Albert Bernard, da Academia Francesa de Ciências do Ultramar. https://www.miacouto.org/biografia-bibliografia-e-premiacoes/
“Os vírus são os grandes maestros da orquestra da Vida: aprendam a sua língua porque nós precisamos de falar com eles” *
Sem nunca duvidar da força da literatura para manter viva no povo a capacidade de sonhar, em especial num povo tão fustigado como o povo moçambicano, Mia Couto (re) inventa e (re)visita tempos e espaços de pura magia através da sua prosa poética. No entanto, escrever sobre a pandemia está, por agora, fora dos seus objetivos, e “sente quase pudor de pensar nesses termos sobre a tragédia” que assola o mundo. “Aconteceu o mesmo com a guerra. Esse tempo era demasiado cruel, demasiado próximo para que eu pensasse nesse drama em termos literários”. “O modo de fazer poesia, agora, é estar na luta pela defesa da vida e da verdade.” A pandemia da Covid-19 levou Mia Couto, reconhecido e premiado escritor moçambicano, a ceder o lugar a Mia Couto, biólogo e jornalista. Também ele a recuperar da infeção de Covid-19 em sua casa, em Maputo, o cientista acompanha a evolução da doença com preocupação. Como biólogo, não se conforma com a ignorância existente sobre vírus e bactérias que se deve, nas suas palavras, à nossa “visão antropocêntrica do mundo e da vida. …Sabemos mais sobre o urso panda do que sobre os vírus ou sobre os morcegos que são os hospedeiros da maior parte dos coronavírus. E, no entanto, os morcegos desenvolveram mecanismos imunológicos que os protegem mesmo * Mia Couto autorizou-nos expressamente a publicação de um texto resultante da adaptação das duas entrevistas por si concedidas a: Estadão Con‑ teúdo, O Estado de S. Paulo, publicado em 13/05/2020, e à – TSF © Jorge Amaral/Global Imagens, Artur Carvalho e Catarina Maldonado Vasconcelos, 09/07/2020. Entrevistas adaptadas por Maria do Rosário Rosinha.
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com grandes cargas virais, impedindo as respostas imunes agressivas que, no caso deste coronavírus, desencadeiam um fenómeno conhecido como “cascata imunológica”, que leva muitas vezes à morte do hospedeiro. “Os vírus”, diz, “são os grandes maestros da orquestra da Vida, são os mensageiros e agentes de troca entre o mais diverso património genético.” Os vírus “não vivem nos laboratórios […] estão onde está a vida, estão dentro de nós. O nosso genoma incorpora elementos virais. [...] Os mamíferos não seriam capazes de desenvolver placenta se não tivéssemos incorporado geneticamente esses elementos virais. [...] Já estávamos avisados que viria algo parecido. E ficámos à espera, embevecidos com o nosso poderio tecnológico e com a ilusão da nossa omnisciência.” Premonitoriamente, Mia Couto alerta-nos para a inevitabilidade de uma nova epidemia, confrontando-nos com a necessidade de os poderes públicos e privados se prepararem para aprofundar o seu conhecimento e aumentar o investimento em ciência, saúde e educação, “porque essa pandemia não será a última”. Nesta altura, Mia Couto integra o grupo de apoio ao Governo do seu país para a mitigação do impacto da pandemia e trabalha “com os meios de comunicação social e com as lideranças comunitárias para difundir mensagens educativas para a contenção da doença.” Este trabalho significa comunicar com pessoas “que não falam português”, pelo que a mensagem a transmitir “tem de ser traduzida para as línguas locais.” Mas “Como se diz “vírus” nas línguas locais? Como explicar que [os vírus] existem, quando há pessoas que não têm a perceção de que há organismos dessa dimensão invisível? Como se traduz “assintomático”?” Mas para a tradição africana “…haver criaturas invisíveis não é […] nada de sobrenatural, aqui não é nada de extraordinário”, analisa o escritor. “A mensagem foi bem transmitida, e os médicos tradicionais e os curandeiros apresentaram-se no Ministério da Saúde dizendo que queriam colaborar. Não sabiam o que era a doença, mas estavam ali […] para se sujeitarem ao que fosse necessário.” Foram os prestadores de cuidados de medicina alternativa a transmitir uma lição que “parece quase da ordem da poesia”, diz Mia Couto: “Aprendam a língua desse vírus porque nós precisamos de falar com ele.” “Isto resume de forma muito feliz a forma de lidar com o vírus. Temos uma visão militarista da medicina, de .318
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que precisamos de atacar e destruir o vírus, mas temos de saber conversar com o vírus porque o vírus também está muito assustado, como eles dizem.” “Moçambique é um país com muitos países dentro, com situações muito contrastantes. As reações das pessoas a algo que todos nós recebemos com surpresa, com uma mistura de medo e de insegurança, são por vezes muito curiosas.” O que servirá de inspiração para um conto de Mia Couto sobre “estes tempos de solidão, é uma história sobre uma pessoa velha, isolada, que recebe uma visita – coisa que não acontecia há muito tempo, e percebe-se ao longo da história que ele toma esta pessoa como um assaltante, como um ladrão”. Contudo, “A pistola que ele traz serve para tirar a temperatura à distância. É um profissional de saúde, está de visita a alguém que vive num lugar remoto, e que toma com uma grande ternura a visita de um assaltante que afinal é tão gentil que quer saber dele.”1 Mia Couto está pouco otimista quanto à hipótese de o mundo despertar desta pandemia com uma nova mentalidade, mais solidária e humanista, mas quer acreditar que poderemos ficar “com uma perceção mais clara da importância do Estado e dos sistemas públicos de saúde e educação, do ideal da cooperação solidária em vez da competição e da exclusão ….”, que se torne mais clara “a falência das receitas neoliberais que, em países como Moçambique, acabaram destruindo as conquistas sociais dos primeiros anos da Independência. Não será por causa da medicina privada, inspirada no capitalismo selvagem, que nos iremos proteger nem nesta pandemia nem em nenhuma outra situação de sofrimento.”
Mia Couto foi convidado pelo New York Times para, entre 29 personalidades de todo o mundo, escrever um conto sobre a pandemia.
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Fotografia de Anabela Carvalho
Olinda Beja São Tomé e Príncipe
Escritora, poetisa, narradora, nasceu em Guadalupe, São Tomé e Príncipe, em 1946. Ainda criança deixou as ilhas e foi viver em Portugal, em Viseu, onde reside atualmente. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português/Francês) pela Universidade do Porto, possui Formação Superior em várias áreas. Docente do Ensino Secundário em Portugal, lecionou Língua e Cultura Portuguesas e Lusófonas na Suíça, de 2005 a 2014. Olinda Beja tem uma vasta obra publicada – poesia, romances, contos – grande parte da qual dedicada à difusão da cultura e da vida em São Tomé e Príncipe. As suas obras têm sido estudadas em universidades no Brasil, Inglaterra, Alemanha, França, África do Sul, Suíça e Luxemburgo. Tem contos e poemas traduzidos para várias línguas. Em 2013, venceu o Prémio Literário Francisco José Tenreiro com o livro de poesia A Sombra do Ocá, incluída no Plano Nacional de Leitura (PNL - Ler+) por um período de 10 anos. Em 2015, o seu livro Um Grão de Café foi recomendado para o PNL - Ler+. Publicações mais recentes: Tomé Bombom – Conto, 2016; Todos Somos Vento, Rio, Flor… conto infantojuvenil, 2017; Chá do Príncipe – Contos, 2017, e Simão Balalão – Conto infantojuvenil, 2019.
Ler poesia em tempos de pandemia Do espetro do nada apareceu sem ser esperada… a solidão apareceu e perentória anunciou “de hoje em diante eu solidão vos condeno ao exílio das águas correntes… cristalinas… cantantes… ao silêncio das crianças a sair da casa do Mestre à míngua de beijos e de abraços afetuosos quentes meigos tímidos tempestuosos…” Na sua mansarda o poeta tudo ouviu mas não se atemorizou na solidão sempre viveu, a ela se habituou abriu gavetas há muito fechadas rebuscou papéis antigos onde em tempos de estúrdia escrevia poemas aos amigos e às namoradas depois veio a net… a modernice e os papéis ficaram sem serventia mas agora em tempo de pandemia o poeta entendeu por bem voltar a usar aquelas folhas e nelas espelhar a sua arte a sua solidão que agora lhe servia de inspiração para ouvir melhor o que se passava na casa dos vizinhos … até o amor saboreava-o na cama dos outros que gemia na voz feminina que cantava numa prece aquela canção que nunca mais se esquece “Quem mostra bo es caminho longe? Quem mostra bo es caminho longe? Es caminho pa São Tomé” .321
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E a inspiração avançava no prédio da frente na varanda do lado e o poeta escrevia o seu futuro e o seu passado De repente no passeio os agentes da ordem impunham o confinamento a clausura guardadores de ruas e fronteiras batendo a bota na calçada dando um ar de compostura à obrigação que a lei impunha. Célere o poeta vem à janela arremessando os papéis onde começara a escrever a sua saga gritando: “Leiam amigos! leiam poesia em tempos de pandemia!” Incrédulo, um dos agentes se baixou e timidamente começou a ler: “Nós éramos sete à mesa, éramos sete ao jantar” – mais alto – gritou o poeta – mais alto… com mais vigor E o agente encheu o peito e a voz abriu-se em flor! “Nós éramos sete à mesa, éramos sete ao jantar os pais, a avó, a Teresa, o João e o Waldemar nós éramos sete à mesa, éramos sete ao jantar e a vida simples corria em longínquos cruzamentos que minha avó transmitia em histórias de momentos passados junto à lareira a enganar pensamentos.” Ouviram-se aplausos e as varandas pediram de novo que os agentes da ordem, esses homens que também são povo lessem mais. E mais. E foi a vez de um agente feminino docemente erguer a voz: “Um dia chegou porém que o pai adoeceu – tísica – disse o médico – e o seu corpo emagreceu tanto, tanto, tanto, tanto que o sol desapareceu de seus olhos cor do mar que só a terra comeu e agora éramos seis à mesa, éramos seis ao jantar a mãe, a avó, a Teresa, o João e o Waldemar agora éramos seis à mesa. Éramos seis ao jantar…”
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Ler poesia em tempos de pandemia |
Voltaremos amanhã – disseram emocionados com tais ovações sentidas em janelas e varandas esquecidas da solidão imposta pelo invisível inimigo que tanta força dava ao poeta desconhecido que escrevia o que ele próprio agora lia: “António conheceu Teresa no baile da romaria prometeu dar-lhe outra vida. Ele mesmo a levaria pra longes terras de França onde nada faltaria nem mesmo um filho sem pai que ele próprio lhe faria! A mãe não compreendia porque partia a Teresa coitada, ela só via menos um lugar à mesa e um neto sem ter um pai e um coração de tristeza e éramos cinco à mesa, éramos cinco ao jantar a mãe, a avó, o João e o Waldemar nós éramos cinco à mesa, éramos cinco ao jantar.” E as janelas se abriam. As varandas, os terraços as vizinhas que sorriam e sem qualquer embaraço pediam mais folhas soltas bordadas de poesia e gentilmente o poeta a todas satisfazia e alto, bem alto lia: “Mas quando agosto chegou no ano logo a seguir o João deu a notícia que a mãe não queria ouvir partia para o Brasil que o tio o queria lá para que ele o ajudasse nas terras do seu Pará onde a riqueza era tanta que João nem hesitou e antes mesmo do natal num cargueiro embarcou e a nossa mesa de cinco em quatro se transformou nós éramos quatro à mesa, éramos quatro ao jantar a avó, a mãe e o Waldemar nós éramos quatro à mesa, éramos quatro ao jantar.” E à hora que era esperada os agentes apareciam em busca dos seus papéis que de homens tão anónimos os faziam sentir reis ao lerem para as varandas o que as folhas escondiam a vida de um poeta que eles agora sabiam por isso liam, e liam…
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“Quando João escreveu contando a desilusão que a riqueza do seu tio era no triste sertão donde nunca ele sairia pois não ganhava um tostão a avó chorou tanto, tanto que em breve a morte a chamou e a casa encheu-se de pranto e a mesa com três ficou já éramos só três à mesa éramos três ao jantar o Waldemar e a mãe, a mãe e o Waldemar e eu ainda tão criança nem dava para contar mas éramos três à mesa, éramos três ao jantar…” E era a vez da mulher-agente que ficava comovida com tanta palavra bela a cimentar uma vida ler em voz alta com profunda nostalgia o que o poeta escrevia: “a carta chegou fechada avisando o militar que pela pátria sagrada teria que ir lutar e o barco que o levou a uma guerra sem razão regressou mas ele não só veio uma outra carta com fita negra a dizer “morreu em defesa da Pátria. É herói do Ultramar” e assim foi o fim inglório do meu irmão Waldemar e a mãe não resistiu. Pouco tempo sobreviveu a tanta calamidade que na casa se abateu e de dia para a noite seu cabelo embranqueceu e seu corpo deu à terra talvez sonhando ir ao céu” Os aplausos eram tais que toda a gente olhava para a pequena mansarda que tanta folha enviava e orgulhoso o poeta a sua saga fechava: “no dia em que a mãe partiu a mesa ficou vazia só eu estava sentado, só eu sozinho dizia nós éramos sete à mesa, éramos sete ao jantar os pais a avó a Teresa o João e o Waldemar nós éramos sete a mesa, éramos sete ao jantar”.
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E os agentes e os vizinhos que às janelas esperavam os poemas que um poeta naquelas folhas escrevia souberam da sua saga em tempos de pandemia quando o espetro da solidão lhes ditou rígidas leis E sempre à hora marcada os vizinhos e os agentes que agora se julgam reis esperavam outras folhas cheias da tal harmonia juntamente com o grito que da mansarda se ouvia: – Leiam amigos, leiam poesia, em tempos de pandemia!
Abril de 2020, inédito (incluso está um poema escrito em maio de 1968, “Nós éramos sete à mesa”)
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Orlando Castro Angola
Orlando Castro nasceu a 30 de outubro de 1954, em Angola. Licenciado em História, é jornalista e diretor-adjunto do jornal Folha 8 (Angola). Atividades profissionais (Portugal): no âmbito da sua profissão, Orlando Castro foi jornalista e coordenador da Secção de Economia do Jornal de Notícias (1991 – 2009), editor da Secção de Economia do jornal O Primeiro de Janeiro (1988 – 1991), chefe de redação da RIT – Revista da Indústria Têxtil (1980 – 1988), redator e chefe da delegação no Porto do semanário O País (1977 – 1979). Atividades profissionais (Angola, 1973/1975): Castro foi redator do diário A Província de Angola; redator e chefe de redação da revista Olá! Boa Noite; colaborador do Rádio Clube do Huambo, da Emissora Comercial do Huambo e do bissemanário O Planalto. Orlando Castro é autor dos livros: Algemas da Minha Traição (1975); Açores – Realidades Vulcânicas (1995); Ontem, Hoje... e Amanhã? (1997); Memórias da Memória (2001), com prefácio de Arlindo Cunha; Alto Hama – Crónicas (diz)traídas (2006), com prefácio de Eugénio Costa Almeida; Cabinda – ontem protectorado, hoje colónia, amanhã Nação (2011). Coautor dos 16 volumes da coleção Guerra Colonial – A História na Primeira Pessoa, distribuída em 2011 pelo Jornal de Notícias e Diário de Notícias. E ainda, de António Marinho e Pinto – Mudar Portugal (2015).
Vermelho pandémico
Nos córregos da pandemia fecundei o olhar de um país de sonho e sem latitude. A quimera era uma poesia que feria de morte a raiz de uma tão cobarde atitude. A minha criança negra recusa pétalas celestes de amanhã nascidas nesta terra queimada. Sonhar é algo que não se usa porque até a esperança é vã e a vida uma morte Covid(ada). Huambo, Huíla, Benguela, mapa acéfalo de recortes e de pitangas mais agrestes. Amorfismo da minha cela, de grades feitas de mortes sem cruz, beijos ou vestes. Tulemba, espírito reinante, irmão ganguela do passado, passado mortífero que assola. Jamais a Mãe preta será amante daquele espírito bom e amado do avoengo Ginga ou Txissola. Quimera sim do Upuango, Kissange nas noites do Bié, na negridão da noite Luena. Nosso, esse rio Cubango vermelho de sangue sem fé negro de vida nada serena.
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Cansado da minha máscara, de Henrique Castanheira Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
Fotografia de Raquel Barata
Ozias Filho Brasil
Ozias Filho, escritor, fotógrafo e editor de livros, nasceu no Rio de Janeiro. Formado em Jornalismo pela Faculdade Hélio Alonso e em Fotografia pela PUC, é pós‑graduado em Edição e Novos Suportes Digitais pela Universidade Católica Portuguesa. Lançou em 2001, pela Editora Alma Azul, o livro Poemas do Dilúvio. Idealizou e protagonizou na Casa da América Latina (Lisboa), ao longo da última década, vários projetos: Uma Hora Com os Poetas, Noites em Pasárgada e Neruda com Amor. De 1999 até 2011 foi responsável da Editora Vozes em Portugal. Em 2013 publicou, com o poeta mineiro Iacyr Anderson Freitas, o livro Ar de Arestas; as fotografias desta obra estiveram expostas no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, em Juiz de Fora, Brasil. Em 2017, participou, em Lisboa, na Semana da Poesia Ibero‑Americana (e integrou a antologia de escritores editada para o evento) e na VI Bienal de Culturas Lusófonas, com uma das suas imagens do ensaio Shadowless. As suas últimas exposições são QUASINVISÍVEL, que integrou a iniciativa Passado Presente – Lisboa Capital Ibero‑Americana de Cultura e, ainda, em 2019, em A Pequena Galeria, em Lisboa, o trabalho "Por estes dias o mar tem dentes". É editor nas Edições Pasárgada.
Três poemas em tempos de pandemia
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quem é este que se me apresenta? lembra-me alguém em tempo de férias olha para os dias parados no espelho e não enxerga mar gente selfies
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| Ozias Filho
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a casa ameaçada pelo invisível não se aguenta nas pernas o lugar vago na poltrona o lugar da televisão o lugar vago na cama do hospital o invisível venceu
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Três poemas em tempos de pandemia |
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O silêncio corta a cidade de domingos e nunca mais é segunda-feira
*Poemas do livro O avesso da casa (inédito)
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Paulo Coutinho Portugal-Macau
Paulo Coutinho, natural de Aveiro (1960), é jornalista profissional desde 1984 e vive em Macau. É diretor do jornal em língua inglesa Macau Daily Times, cargo que exerce desde 2012. Iniciou a carreira na TDM-TV (19841992), foi chefe de redação da revista Macau (1992-98) e editor da Revista de Cultura (1998-2012). Em 1994 ganhou um prémio Gazeta de Jornalismo, do Clube de Jornalistas (Portugal) pelo seu trabalho biográfico sobre Monsenhor Manuel Teixeira, conhecido sacerdote e historiador de Macau e das missões portuguesas no Oriente. Paulo Coutinho é autor de diversas obras monográficas sobre instituições de Macau, nomeadamente, a Assembleia Legislativa, o Clube Militar e o Hospital Conde de São Januario. Com colaboração dispersa por vários jornais e revistas, foi ainda correspondente em Macau do Jornal de Negócios (1998-2002).
Um pequeníssimo ano bissexto
Um ano bissexto tem 366 dias e só acontece de quatro em quatro anos. 2020 foi um deles. Malvada ironia. O ano Covid tinha de ter sido um desses anos mais longos. Mas ninguém reparou que o ano passado foi mais longo, bem pelo contrário, tal foi a precipitação dos acontecimentos e das notícias, o trágico escalar dos números que o Worldometers nos foi dando em tempo real – como no rolar incessante dos rodilhos de fortuna e azar de uma slot‑machine. E o bombardeamento noticioso: em milhares, milhões de edições de jornais telejornais radiojornais blogues posts e afins, e enfim, em todo o mundo, tivemos, durante meses a fio, um tema só: a epidemia do vírus que provoca a novel doença Covid‑19 que lestamente se transformou em pandemia ante governos e governantes, povos e cidadãos – toda a humanidade: basbaque e incrédula. Ninguém terá sentido, como habitualmente, o passar do tempo porque todos vivemos o ano 2020 no futuro, mediando a torrente de informação a ver se isto era uma coisa de dias, de semanas; depois de meses; depois de um ano inteiro. À espera que passasse com a estação, primeiro, à espera da cura, num segundo andamento, à espera da vacina, terceiro andamento. E quando se sonha acordado perde‑se a noção do presente, do fluir do tempo. Vivemos para sobreviver, como se, apesar de pensarmos primordialmente no futuro, não houvesse amanhã. Amanhã ia chegando todos os dias, inexoravelmente, mas cada vez mais distante do futuro idealizado. Ninguém queria estar no presente, nesse presente, e o ano passou, num fósforo. Exceto para os que sofreram do mal e, especialmente, para os familiares dos milhões de pessoas que (já) pereceram vítimas da doença. Para esses, o tempo distende‑se porque a tormenta não passa assim, assim .335
| Paulo Coutinho
como cantava Vinicíus, “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”. Em Macau, o tempo corre mais depressa, mesmo em tempos de normalidade, seja lá isso o que for ou tenha sido, do que em qualquer outro lugar. Aqui, quase não há pausas entre as três grandes dimensões do quotidiano do indivíduo – família, trabalho, lazer –, que estão sobrepostas porque nada fica a mais de 15 minutos de distância. E a ausência de pausas sensíveis entre estas dimensões dá ‑nos uma sensação de continuidade e ilude‑nos o tempo que passa. Ainda há dias, um amigo da Velha Albion, recentemente radicado em Macau, me dizia que quando volta a Londres sente que as pessoas andam todas mais depressa nas ruas do que ele. Não andam mais depressa, ele é que abrandou o passo habituando‑se à falta de descontinuidade entre as três sagradas dimensões da vida do homem contemporâneo. Família, trabalho, lazer. Entrei no ano passado alinhado com o tempo de Greenwich. Às 12 badaladas do dia 31 de dezembro 2019, estava em Aveiro, em Portugal, na Europa, no outro lado do mundo, iniciando um ano que viria a ser coletivamente o mais trágico do pós‑ grandes guerras. Cheguei a Macau a 27 de janeiro de 2020, já as notícias do vírus que vinha da China prenunciavam a crise sanitária, mas ninguém queria acreditar. Na véspera, à partida do Porto, familiares e amigos desejavam‑ me boa sorte e aconselhavam‑ me cuidados mil pois iria viajar para a boca do lobo. As coisas não se passariam bem assim, como sabemos agora, o resto é história. A pandemia foi controlada em Macau rapidamente com medidas atempadas e férreas do governo e uma imediata e generalizada adesão da população que, miraculosamente, mas com temor, tinha vivido e escapado à epidemia da SARS em 2002/03, com Hong Kong a sangrar aqui ao lado. A lição ficara. As gentes de Macau, num ápice, adotaram a máscara, os desinfetantes, os termómetros como utensílios imprescindíveis no dia a dia. No meio da desinformação generalizada – ninguém sabia de nada – sucedem‑se corridas aos supermercados e às farmácias porque os bens de higiene e de primeira necessidade começavam a escassear por virtude do fecho das cadeias de fornecimento a uma terra sitiada onde tudo o .336
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Um pequeníssimo ano bissexto |
que se consome, a não ser o jogo, é importado. O cúmulo foi uma corrida ao papel higiénico devido a rumores na imprensa chinesa de que as fábricas que produziam o papel, no outro lado da fronteira, estariam a ser reconvertidas em manufatureiras de máscaras cirúrgicas. Um pequeno pânico, nada de muito sério poderá jamais aqui acontecer. Nos idos de fevereiro, foi decretado estado de exceção de duas semanas. A administração pública, exceto os serviços da linha da frente, os grandes casinos, escolas, restaurantes, bares e centros comerciais fecharam; os turistas e jogadores, do interior da China e de Hong Kong, que, em 2019, vinham aos cem mil por dia, eclipsaram‑ se e a cidade ficou entregue a si própria. As Ruínas de São Paulo, a Praça do Senado, a Almeida Ribeiro, e a nova terra do Cotai ficaram desertas. Nunca vi Macau assim despojado de multidões, enquanto deambulava extasiado pela velha cidade cristã, o bazar chinês, o Porto Interior, a Praia Grande, revisitando uma paisagem com mais de trinta anos. O cerco sanitário estendeu‑se por mais três ou quatro meses; as receitas do jogo caíram noventa por cento e toda a economia, extremamente dependente do turismo e do jogo, abanou fortemente levando pequenos negócios à ruína, criando desemprego onde não havia, malgrado o pacote de auxilio económico aos residentes. O pequeníssimo e abastadíssimo dragão, que exibe um astronómico PIB per capita, foi o primeiro país ou território a sucumbir aos efeitos económicos devastadores da pandemia. Aqui, a Covid‑ 19 não cumpriu a sua promessa letal. Sem mortes a registar, com escassa meia centena de casos de contágio, o ano seguiria com um lento regresso a uma “nova normalidade”. A poluição abrandou, golfinhos moribundos deram à costa nos lagos Nam Van, mesmo no centro da cidade peninsular, pássaros deixaram de migrar e uma joaninha, de bom porte e pintas cor‑de‑laranja, apareceu‑me um dia no parapeito da janela da cozinha num 21º andar com vista para a cidade que medrou na Ilha da Montanha, de torres erguidas sobre aterros como se fosse um reflexo de Macau num espelho meu. A joaninha esvoaçou e desapareceu, se calhar foi para Lisboa, mas nós cá ficámos, cada vez mais isolados, nestes trinta e quatro quilómetros quadrados, densamente habitados. No sapatinho do Natal, veio a vacina. E, de Macau à finisterra, voltámos a acreditar que amanhã será outro dia.
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Paulù Salmoura Cabo Verde
Paulù Salmoura é o nome artístico de Paulo Jorge do Rosário Lopes, o jovem "quase poeta", como o próprio se considera, por ter sido um dos poetas selecionados na 1ª edição do concurso de poesia para autores cabo-verdianos para a antologia Poetas para o ano novo (2017). Paulù Salmoura nasceu em Cabo Verde a 8 de janeiro de 1986, na Ilha do Sal, daí o epíteto Salmoura, na pequena cidade turística de Santa Maria, e atualmente reside na vila agrícola de Armamar, em Portugal. Vê nas palavras a única liberdade que o silêncio muitas vezes amordaça e cativa no vazio do quotidiano.
A janela
Eu nunca dormi muito cedo. Desde tempos idos, foram hábitos meus serem já altas horas da madrugada e eu ainda acordado. O silêncio sempre foi para mim como um inibidor de um sono profundo e tranquilizador. Ainda hoje, da mesma forma, tudo continua igual. Às vezes, principalmente aos fins-de-semana, agora porque tenho uma filha pequenina, fico até altas horas da madrugada acordado. Vou sempre antes ver se ela já dorme e depois vou até à pequena sala de visitas e entreabro as persianas da janela que dá para a rua e fico tempos mirando para o outro lado da rua onde há um club nocturno que, até ontem, era muito frequentado pela juventude e não só. Às vezes, a minha mulher ainda me perguntava: – O que estás a fazer que ainda não vieste para a cama? Hoje não vens dormir? Pelo que quase sempre respondia: – A pequena está acordada. Dois minutos e já vou! Mas a maior parte das vezes ficava atrás das persianas, espreitando e, ainda mais, sonhando com o que se passava lá fora, como um pássaro preso numa gaiola que espreita os passarinhos livres lá fora. Algumas vezes ganhei coragem e desci à socapa, pé ante pé, as escadas do primeiro andar, troquei de sapatos, vesti um sobretudo e fui até ao Pub tomar um copo. No entanto, quase sempre me arrependia por me aperceber que isso tudo era na ilusão e uma busca, como se fosse algum elixir que me rejuvenescesse novamente, visto serem o fumo, o álcool e a juventude coisas que por mim já há pares de anos haviam passado… Ficava por aí pouco tempo. Como se o barulho e as luzes oscilantes fossem para o meu subconsciente um .339
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potente sonífero visto que, de regresso a casa, quase sempre, adormecia poucos minutos depois. Não sem antes levar um raspanete da minha mulher, que me perguntava sempre: – Por onde andaste, vens tão gelado, e cheirando a fumo? “Tiveste a fumar? – Não, simplesmente tive que ir lá baixo pedir para que fizessem menos barulho por causa de não acordarem a menina. Mas na verdade quase nunca dormia demasiadamente. Às seis horas em ponto aparecia, descendo pela rua abaixo, o velho varredor da Câmara Municipal que, azafamado, sempre vinha resmungando em peçonhosa voz impropérios, chutando copos de plástico, garrafas de vidro e latas de cerveja – vestígio de passadas folias nocturnas, Enquanto vociferava em voz alta pragas aos pequenos grupos de jovens retardatários que, devido ao excesso de alcoolemia, ficavam estatelados nos bancos públicos. Mas hoje foi uma madrugada diferente. Já de manhã, nos noticiários, só se falava numa “Nova Pandemia” mas, da mesma forma que fazia sempre, fui à janela e espreitei para a rua do lado. No entanto, como em noites mais frias de inverno, estava sem vivalma alguma. A rua, como se tivesse perdido a vida, isenta dos barulhos nocturnos que são os prazeres da vida e da juventude. De mim apossou-se um temor, um vazio e vou ao quarto procurando algum consolo e tentando acariciar de leve a face bonita da minha mulher que dorme mas que me responde com um olhar furibundo e um gloterar imperceptível. Vou novamente até à janela e oiço alguém que, a passos parcos, cantarola uma melodia alegre. Lá vinha o velho varredor descendo pela minha rua abaixo. Hoje vinha .340
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A janela |
todo sorridente e jovial enquanto num gesto mecânico vez ou outra se agachava para apanhar meia dúzia de papéis e beatas de cigarros do chão. Então desisto e vou até ao quarto da minha filha que, geralmente a essa hora, algumas vezes acordava do terceiro sono, esperando alguém que a pudesse abraçar e acalentar. Mas ela dormia um sono profundo, indiferente a mim, indiferente a todos e indiferente ao Mundo.
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Fotografia de Ben do Rosário
Regina Correia Portugal – Angola
Maria Regina Fernandes Correia nasceu em 1951, em Viseu, viveu em Angola desde os oito meses e tem nacionalidade angolana e portuguesa. Concluiu a Licenciatura em Filologia Germânica, pela Faculdade de Letras de Lisboa. Foi professora do ensino secundário em Angola e em Portugal e docente de Língua e Cultura Portuguesas em Estugarda e em Hamburgo, onde desenvolveu e participou em projetos de divulgação da literatura e da cultura lusófonas. Desde 2009, em Portugal, participou (em) e coordenou recitais de poesia e diversos projetos culturais, sobretudo em instituições cabo-verdianas. É autora de vários prefácios e recensões públicas de livros. Vencedora do prémio "Melhor Poeta do Ano de 2018", pela Editora ZL, do Brasil, e do Prémio Destaque Literário, pela Literarte –Associação Internacional de Escritores e Artistas, Brasil, em 2019. Publicou três livros pela Universitária Editora: Uma Borboleta na Cidade (2000) - ficção; Noite Andarilha (1999) – poesia; Os Enteados de Deus (1990) – ficção, Prémio Revelação de Ficção da Cidade do Montijo e da APE; e o livro Sou Mercúrio, Já Fui Água, com reedição de Noite Andarilha, pela Alphabetum Editora (2012). É membro da Associação Portuguesa de Escritores (APE). Luso-angolana, participou na primeira Reunião Multipartidária de Angola, em 1992.
Máscaras
Espera-se pouco do miolo que, de si mesmo, cria o vazio vivo da máscara no centro dos pesadelos, na vibração dos signos alterados. Já nada golpeia os laços frouxos da contemplação. Recentra-se a maré no tempo que tudo leva. Quem corre para os arcos detrás dos condenados? Mais tarde, frente ao sol, novas máscaras. Um pássaro renova canto e margens sobre os frutos que emergem minerais. Diante das cicatrizes na pedra sem máscara sucumbe o antílope ao golpe pleno dos pontos cardeais.
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| Regina Correia
Desassombro |
Desassombro
no poema etérea luz que aviva traços frágeis da existência consumida mais do que bênção no centro da harmonia quebrada diz réstia de desassombro à romagem confrangida não cuidemos que é ventura singular num recomeço enfermo da sementeira prevalece um subterrâneo credo à prova de qualquer desordem na voz que agita letais garras da cegueira ouve-se no contorno dos signos murmúrio fino da palavra iridescente agora que o vento brada sôfregas urgências de um cárcere exposto onde vibram clarões no poente
in No Coração dos Desertos e outros Oásis (inédito)
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Sérgio Fernandes Angola
Sérgio Fernandes nasceu a 4 de março de 1984, nas Ingombotas, em Luanda. Mestre em Política Internacional, pelo Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury, em Monterey, Califórnia, EUA, onde foi bolseiro da Fundação Fulbright, foi professor universitário e oficial de informação e análise no Serviço de Migração e Estrangeiros de Angola. Atualmente reside em Luanda, onde divide o seu tempo entre a escrita e as funções como Assessor Político e Económico. Sérgio Fernandes lançou em 2019 o livro O Último dos Sonhadores (contos).
A caixa do futuro
Hoje abri a minha caixa do futuro. Sim, eu tenho uma caixa que me permite ver o futuro. Não o do mundo. Ah! Quem me dera poder ver o futuro do mundo e talvez estaria preparada para o que havia de vir. Teria visto o meu futuro, dos meus filhos, de todos que amo, da humanidade. Teria alertado a todos, aos meus amigos, aos meus vizinhos, às autoridades. Teriam eles acreditado em mim? Acreditariam se lhes dissesse que ficar trancado em casa seria a solução? Ou teriam visto em mim mais uma velha louca. Talvez uma falsa profetisa. Não. Não tenho esse poder de ver o nosso futuro. A minha caixa me permite ver apenas o meu futuro. E nem sequer é verdadeiramente o meu futuro, é uma lista de desejos, de coisas que quero fazer. É, na verdade, um plano de trabalho, como se a minha vida fosse uma empresa, ou uma simples agenda, como diria o meu filho, naquela sua tendência de reduzir tudo ao mínimo. Abri a caixa com solenidade. Acho que nada é mais solene do que o futuro. Pelo seu mistério, pelo mar de possibilidades e de infinidades, pelos sonhos, sei lá. O que está por vir é sempre mais venerável do que o que já passou. Abri a caixa, os meus papéis, com todos os meus planos para este ano, todo este tempo comprimidos dentro desta caixa, quiseram saltar para fora. Tirei-os a todos de uma única vez, pousei-os sobre a mesa. Olhei para eles como se os visse pela primeira vez. “Essa sou eu, no futuro”, pensei. Escrever os meu planos para o novo ano é uma tarefa que um médico me recomendou quando o meu marido morreu e dias depois eu caí em depressão sem dar por isso. Sempre que me lembro de algo que desejo fazer, sento-me, pego numa folha de papel e escrevo o plano. Fa.347
| Sérgio Fernandes
ço-o o mais perfeito possível. Aponto tudo ao mínimo detalhe. Não porque eu seja detalhista, mas porque quando planeio sinto como se uma boa parte do plano já estivesse a materializar-se. Escrevo tudo, fico horas a escrever. Às vezes preciso de vários rascunhos, e só quando finalmente sinto que o plano atingiu a perfeição ele se torna em mais um momento do meu futuro e vai então para a caixa do futuro. Sinto uma alegria imensa em tomar conta de mim cada vez que um plano entra na caixa do futuro. É como se eu embarcasse numa viagem instantânea para o futuro. Minha mente viaja, vejo-me naquele futuro, fazendo aquilo que quero e sendo feliz hoje, tal como o serei realmente naquele futuro. Todos os anos realizo uma cerimónia especial para abrir a caixa. Na verdade, nem sou eu quem a realiza, apenas faço coincidir com o momento mais importante do meu ano: a noite de réveillon. Neste dia, os meus filhos, que quase não vejo durante o ano, as minhas noras e os meus netos vêm para cá. Cozinhamos, bebemos, as crianças perdem-se entre os bolos e as guloseimas. Então, pouco depois da meia-noite, depois dos candandos, abro a caixa e leio perante a minha plateia os meus planos para o novo ano. O meu filho mais velho nunca tem muita paciência para este meu momento, diz que são as minhas minudências. Várias vezes pensei em não mais ler os meus planos diante deles, mas percebi que se o faço é porque no fundo procuro a sua aprovação. No final do ano passado dei razão ao meu filho. Meus planos não passavam de minudências. Coisas menores, sem significância e que iam reduzindo ainda mais em magnitude a cada ano. O que planeio eu para mim? Organizar um jantar no aniversário de um neto, participar das atividades da igreja, assistir ao casamento de uma sobrinha, organizar a casa para a ceia de réveillon. “Coisas tão sem importância”, pensei. “Vou fazer tudo diferente”, gritei, revoltada com a minha vida, com os meus planos. Porquê espero um ano inteiro para ter um pouco de vida? Para ter companhia? Para ser novamente uma pessoa? E porquê passa tudo tão depressa? Sentei-me na cadeira. Tomei várias folhas de papel, disposta a escrever um novo futuro para mim. “Desta vez não precisarei da aprovação de ninguém. Será o que eu quiser, como eu quiser, quando eu quiser.” .348
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
A caixa do futuro |
Escrevi os novos planos: Aprender a tocar guitarra, trocar o meu guarda-roupas, conhecer a Namíbia, conhecer um homem, namorar. Escrevi sem parar, todos os detalhes, incluindo as noites de amor com o meu novo companheiro. Meu corpo tremeu de saudades enquanto escrevia os detalhes. Ainda saberei beijar? Amar? Vou tentar. Imaginei a cara do meu filho vendo-me cumprir os meus planos. “Com que então, minudências?” Pergunto-lhe irónica, enquanto no rosto dele vejo estampado um ar de surpresa e pânico. “Esse é o meu ano. Esse é o meu futuro”. Guardei tudo na caixa do futuro, à espera do novo ano. Hoje, sentada de frente para o meu futuro, olhei para os meus planos espalhados sobre a mesa e uma lágrima caiu-me do olho. Uma solidão confusa ronda esta casa. Sopra-me ao ouvido palavras que não consigo perceber. Na televisão, a voz soturna de um locutor anuncia: “Somos de informar que temos mais dezoito casos e quatro mortes.” Essa é a nova realidade que substituiu o meu futuro. A vida regida por casos confirmados, casos suspeitos, óbitos e casos recuperados. Uma vida em código, como um código binário em que tudo se rege por zeros e uns. E nada mais. Tudo perdeu o interesse, a importância, tudo agora são minudências. Lá fora, rondam os militares impondo o estado de emergência para conter o avanço da pandemia. No telefone, de quando em vez, a voz dos meus filhos reforçando: “A mãe não pode sair de casa, a mãe faz parte do grupo de risco.” “Para onde irei eu? Está tudo fechado, parado, morto, até o meu futuro fechado numa caixa.” Penso, mas não digo. Complacente como sempre, respondo: “Está bem. Não vou sair de casa”. Aqui dentro, o vazio, a solidão que sussurra. Levanto-me com todos os meus planos para o futuro na mão. Pouso-os numa travessa de alumínio. Acendo um palito de fósforo e atiro sobre a pilha de papéis. Uma chama leve começa a crepitar e vai ganhando força, vontade, vida. Quieta, vejo queimar o meu futuro.
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Máscara de teatro grego,
de Henrique Castanheira
Aguarela, lápis e colagem 36 x 28 cm | 2020
Sofia Delgado Cabo Verde
Sofia Delgado nasceu em 1961, na ilha de São Vicente, Cabo Verde. Cidadã sem terra, cresceu em Portugal e reside em Inglaterra. Lembra-se do que aprendeu com a sua primeira professora, mas não se lembra de alguém lhe ter ensinado a ler. Autora na sombra, a primeira composição foi escrita aos seis anos e a última está a caminho.
Entre paredes
Roubar não está nos meus interesses Inveja é para falhados sem carácter; Orgulho-me das minhas capacidades Genuínas, mesmo com parcos meios. Os meios para muitos pouco importam Importam os fins, não as consequências Vaidade e ganância contam, a dor não E moralidade é água para lavar burros. À saída do útero, Platão entendeu a luz A inocência ganhou rosto viu as sombras E nas sombras algumas mentalidades fúteis Os meios para o poder pouco importam.
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| Sofia Delgado
Na História Platão escreveu democracia e justiça Deixou a Aristóteles o dom da retórica à ética; Na Judeia, Jesus congregou paz, amor ao próximo Maquiavel inverteu tudo, fomentou a dominação. Somos milhões como Platão, Aristóteles, Jesus Confinados entre paredes e portas iluminadas; Lá fora macacoaquiavéis ensombram o mundo Deliram uma vez mais pelo pânico espalhado. Somos milhões, genuínos, resistentes às guerras Resistentes à miséria, pandemias, fixos à vida Com água para lavar falhados e olhos no futuro Unidos na esperança mesmo com parcos meios. Somos milhões, geração da conexão interplanetária Vimos guerras nucleares, vimos terrorismo avulso Viroses químicas, mortes fabricadas e encomendadas E ainda nos tratam como ingénuos ou ignorantes.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Entre paredes |
Enganam-se os Senhores do imperialismo silencioso Que legalizaram o extermínio de idosos Nos apartam e confinam entre paredes e janelas Que quedaremos no medo em nome da prevenção. Criaram e exportaram os vossos vírus manipulados E nos impedem despedir dos nossos mortos Mas somos a geração da conexão Somos muitos, vemos, ouvimos e não nos calam!
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Sônia Barreto Freire Brasil
Sônia Barreto Freire cursou Licenciatura em Educação Artística pela Universidade Federal da Paraíba, onde também cursou Bacharelado e Mestrado em Filosofia. Fez Doutorado em Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde também realizou pesquisa de Pós-doutorado. Professora Associada da Universidade Federal de Sergipe (1997-2013), onde ministrou aulas, desenvolveu e orientou pesquisas em Cursos de Graduação e Programas de Pós-graduação. Tem artigos e capítulos de livros publicados. Atualmente ministra Cursos de Formação para professores como Consultora Educacional e publicou Casaquinho Azul e a Bisa Bibi, livro infantil pela Editora Chiado Books com selo da Flamingo Edições. Desenvolve pesquisa de Pós-doutorado com tema voltado para a fundamentação das Competências Gerais na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no Instituto de Investigação e Formação Avançada (IIFA), na Universidade de Évora, sob a supervisão da Professora Doutora Irene Borges Duarte. Mais informações em http://lattes.cnpq.br/0067590435029172 http://praxis.ubi.pt/subp/pag/people
Sam Polis
Sampa é poliglota plural, Polida e populosa Panacéia viral... Sampa é palaciana profana Periférica e paroquial Paralisia letal... Sampa é paulinismo parnasiano, Palafita e pagã Plasma hormonal... Sampa é poema niilista, Patética e pacifista Parada descomunal... Sampa é paradoxo preliminar, Paradigma pendular Perseu de além mar..
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Suélen Dominguês Brasil
Suélen Dominguês, desde 1994, brasileira, paranaense. Graduada em Letras Português/Inglês e mestre em Literatura pela Universidade Estadual de Maringá. Professora. Poeta. Escrevedora. Contra a violência do mundo, a violência da palavra.
Bebê-diabo reencarna em Taubaté
Em 11 de maio de 1975, em São Bernardo do Campo, nasceu o diabo em carne e osso: com dois chifres pontiagudos, um rabo, olhar feroz, língua suja. Era domingo do dia das mães e o bebê veio pra fazer jus ao tino de ser filho: mal-agradecido. Jurou os médicos de morte, deu um pontapé na barriga progenitora e foi ser satanás da vida. A culpa ficou com a mãe que, corcunda, com a barriga lá nas costas, debochou um convite de procissão santa, Não vou enquanto esse diabo não nascer. Pois deus levou no literal e a mulher pagou a língua: o canhoto veio à luz. Os jornais perseguiram o tinhoso por semanas e meses. São Paulo encapetou. Não há neste Brasil uma alma penada que, num dia de lua cheia, não tenha visto o tendeiro despendurado nalgum telhado. Que beleza é a imprensa nacional! O NP1 produziu nada mais que a verdade. Cramulhão ficou orgulhoso de seu filho. E quando o menino levado ganhou a intimidade do povão, o jornal perdeu o motivo. O bebê-diabo se magoou, fez sua malinha e foi viver em perimpompeia. A superstição é popular, mas a notícia é liberal. Enquanto, em praça pública, o espírito da ditadura defendia a constituição e a liberdade, o bebê-atômico, o bebê-sereia e outros tantos bebês nasciam pra preservar o fim da democracia. Em 2009, o Et Bilu aterrissou em Corguinho com uma mensagem de paz, Busquem conhecimento! Acontece, as más línguas se contorceram e a imprensa divulgou, O su-
Notícias Populares (1963-2001), criado durante um período de ditadura militar, que veiculava notícias sensacionalistas e pró-ditadura.
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| Suélen Dominguês
posto, interesseiro, em busca de fama. Há quem diga que o Et Bilu é pró-Lula, comunista; e há quem diga que ele é o responsável pela grande revelação: a terra não é redonda, é convexa. Dos boatos, me abstenho. Mas o Et Bilu com certeza acertou, Busquem conhecimento. Bilu, antes de fazer sua malinha e partir pra perimpompeia, me pediu pra disseminar a sua palavra, Eu sou setenta por cento. E a terra é redonda. Em 2012, a record arrebitou a crista e cantou compromisso com um jornalismo de responsabilidade: a apresentadora do programa “Hoje em dia” desmascarou a grávida de Taubaté. A barriga era de silicone. Que vergonha! Então não sabe que uma reportagem deve averiguar todos os fatos? Os reais e os irreais. Os deste mundo e os sobrenaturais. A grávida de Taubaté também foi para perimpompeia. Mas o que ninguém poderia imaginar é que a falsa gravidez gestava a volta do bebê-diabo: hoje, 13 de junho de 2020, em Taubaté, o menino-diabo foi visto rodando pião na praça. Azucrineiro2 que só ele, abraça o povo, espirra na cara dos compadres. Tosse, tem febre e falta de ar. No meu pitaco3, o mais correto é se proteger, porque isso de que o vírus se dissemina assim ou assado é tudo papo de língua que não cabe dentro da boca. Não temos certezas; até o diabo calhou de ser contaminado. O presidente faz live e receita cloroquina. A Folha escreve um louvor ao remédio presidencial: só por má vontade é que o vírus não se deixaria matar pelo remédio. Eu sempre desconfiei que a culpa realmente é nossa que desaprendemos a desacreditar nas superstições bestiais. O menino-diabo quer porque quer cloroquina – álcool em gel, isolamento social, máscaras... Bem capaz! Isso é coisa de gente sem o meu porte físico, eu sou filho daquele que não-se-diz-o-nome, de sobrenome messias. Dale4 Cloroquina! E o jornalismo de responsabilidade da record continua fiel à bancada evangélica, abençoado pelo perdão das dí-
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Azucrineiro – expressão coloquial para dizer traquinas, levado. Pitaco – termo usado no Brasil para referir um “palpite”, uma opinião dada sem fundamento ou conhecimento do assunto. Dá-lhe.
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Bebê-diabo reencarna em Taubaté |
vidas. O mundo é canibal: haja avaiana de pau5 pra excomungar presidentes e pastores, chessuss! O menino-demo, antes mesmo da hora do almoço, bateu as botas e pendurou as meias. Sem luto, sem cova, sem adeus. Não aparecerá no jornal. É que a cloroquina não funcionou. Shhhh! Preservemos a credibilidade da comunicação de massa. Faço as minhas malas. Lavo as minhas mãos. O Cleiton, meu jegue6 azul, me espera de sorriso largo; o itinerário passa por Taubaté em busca do findo diabo. Fincamos na terra o outdoor da desigualdade. A bandeira antifascista pintamos de rosa, azul, amarelo, verde, escrevemos cheirosa, gostosa, cremosa. Não sou de esquerda e também não sou de direita. Eu gostaria de mandar um beijo pra Xuxa. Depois entramos: o demo, o jegue e eu no guarda-roupa. Dobro e dobro e redobro os trapos, um por um, até que sumimos do monte. Na geladeira, ficou o bilhete: Clementina, se alguém perguntar por mim diga que fui pra perimpompeia ouvi dizer que lá tá todo mundo confinado de máscara na face e olhar desmascarado. Ps. Não esquece de desligar o congelador uma vez por mês.
Avaiana de pau – série de animação brasileira que fez muito sucesso em 2010, produzida pelo grupo Mundo Canibal, e ironizava situações políticas e instituições de poder no geral. 6 Jumento 5
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Timóteo Papel Moçambique
Timóteo Papel, moçambicano, poeta, escritor, coeditor da Revista Publica Ciência, é docente da cadeira de Introdução à Filosofia e pesquisador nas áreas de Filosofia do Direito, Filosofia Política e Filosofia da Educação.
Carta a uma mãe em tempos de confinamento ou distanciamento social Querida Mãe! Escrevo-te na solidão e na escuridão do meu quarto onde nem a luz do sol, muito menos a luz da lua se faz sentir. Os dias são monótonos. As noites quentes tornaram-se frias, sem vida nem graça. Mas como a esperança é a última coisa a morrer, luto para continuar vivo mesmo sem vida para viver. Na verdade tudo o que fazia sentido deixou de o fazer por causa desta situação de quarentena, distanciamento social ou sei lá isolamento, no cumprimento escrupuloso de medidas de prevenção e combate ao covid-19 ou Coronavírus. Diz-se que é um vírus que vem da China, imagina, mãe? Agora de lá não vêm apenas aqueles sapatos, chinelos, brincos e outro tipo de produtos que pela sua natureza não duram muito. Mãe deve lembrar-se daqueles baldes, calças e sapatos que comprou naquele chinês dali na esquina que nunca fizeram nem sequer um mês. Lembra! Não lembra mãe? Pois é. Todavia, apesar de toda essa nostalgia ao passado mãe, a anterior vida que levávamos que já não era grande coisa, pois vivíamos afastados por conta das tecnologias que nos consumiam o tempo, o amor à família, aos irmãos, amigos e tudo o que era útil e deveríamos sempre ter presente, a situação actual só é chata, porque nos é imposta por uma autoridade cuja sua não obediência autoriza-se por si a usar o seu ius imperium. Uma imposição que nem era necessária, porque deveria ser normal a convivência das pessoas em família. As pessoas deveriam amar-se mais e aproveitar todos que estão em seu redor. As tecnologias não deveriam nunca ter substituído o outro que está bem ali diante dos seus olhos. Os outros chamam isso de .363
| Timóteo Papel
modernidade líquida (Bauman), hipermodernidade (Lipovetsky), mas será que isso é alguma coisa para nós mãe? A nossa tradição não será maior e melhor que tudo isso, embora pela situação não possamos sentarmo-nos à volta da fogueira para ouvir as mais lindas histórias dos nossos antepassados? Lembro-me quando me chamavas para buscar sal na cozinha, cortar tomate, pilar o alho, temperar a carne ou cortar a couve e eu com meu celular na mão fingia não ouvir ou simplesmente pedia mais uns minutinhos só para poder colocar um like na foto de um amigo ou uma amiga; responder uma mensagem num grupo de WhatsApp ou escrever alguma coisa que com certeza atrasava mais o nosso almoço ou jantar. Não falo de pequeno-almoço, isso dizias que era para gente que respirava com os dois pulmões. E respirar com os dois pulmões para ti, mãe, ou o indivíduo deveria estar na política ou deveria ser um empresário ligado ao partido no poder. Era assim que as coisas funcionavam e ainda funcionam por aqui. E nós que nem num lado nem noutro estávamos, só podíamos respirar com um pulmão e viver graças a providência divina, pois há dias que nem tal almoço ou tal jantar existiam. Aliás nem sei porque chamo de almoço ou jantar. Será porque passávamos tais refeições as 12 horas ou as 20 horas?! Mas essas eram apenas entrelinhas, mãe. Deixe-me, contar-te agora um pouco sobre a minha morte lenta. Disse-te no início desta carta que as noites são frias e os dias monótonos. Sim, mãe. São e muito. Na verdade este distanciamento que se impôs entre nós é mais do que uma prisão. Pois, um condenado sabe quando poderá estar junto da sua família. E nós? Quando poderemos tro.364
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Carta a uma mãe em tempos de confinamento ou distanciamento social |
car beijos e abraços no calor do dia? Quando poderemos sentarmo-nos e comer no mesmo prato a nossa xima de mandioca com thodwe ou com madjembe frito, quando tivermos óleo, porque quando não tivermos assaremos no carvão de olhos bem abertos para não queimar e perder o gosto. Ahhh ligou-me ontem a mana Inês, desesperada e cansada e entre lágrimas contou-me que começou a arroz novo. Chorei. Chorei. Chorei feito uma criança quando está com fome ou sede. Chorei, porque como sabes e bem me conheces adoro o aroma do arroz novo, sobretudo quando feito por ti naquela tua panela de barro acompanhado com aquele peixe ndowe ou mukadje com leite de coco grosso. Também sabes que adoro matago e madduguddo. Coisas que me ensinaste a comer e a gostar. No entanto, nesses tempos de distanciamento nem o cheiro de longe posso sentir. Pior ainda, não podes mandar como fazias quando eu fosse estudar longe de casa. Por isso, mãe, a minha tristeza não tem fim. As paredes cansaram-se de consolar-me, as toalhas cansaram-se de enxugar as minhas lágrimas e o remote então, já não tem teclado, pois na busca constante de canais de informação sobre tal pandemia só vejo noticiários sobre mortes na Ásia, Europa, América, agora África, o tal continente de jovens que pelas suas condições de vida parecem mais velhos que os velhos daqueles velhos continentes. Querida mãe, não perguntarei como estás, pois sei que não estás nada bem. Qual mãe estaria bem sem os abraços dos seus filhos, netos e bisnetos? Como estarias bem se nem podes sair de casa para ir no velório das tuas amigas e vizinhas que dia-a-dia sucumbem desta vida e a participação é por convite como em festas de gala? Como UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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| Timóteo Papel
estarias bem se nem podes ir à comunidade rezar com as tuas amigas, vizinhas e conhecidas pelo fim desta miséria humana que Marx outrora a chamou de miséria da Filosofia? Como estarias bem se a humanidade está doente e nem a ciência pode salvar-nos agora? No princípio, pensei como muitos que essa situação era apenas para homens brancos, aqueles que mandam no mundo, não só brancos, mas também velhos e cansados, porque lá onde é na terra de brancos não é problema ter 90 ou mesmo 100 anos. O que quer dizer que até os velhos de cá estavam isentos ou pelo menos imunes a essa pandemia. No entanto, a coisa começou a mostrar-se diferente quando ouvi que também crianças, jovens e adultos poderiam infectar-se. Aí comecei a perceber que aquele vírus não olhava para idade nem raça, muito menos fazia distinção entre ricos e pobres. Não sei se a essas alturas que te escrevo esta carta estou habituando-me a esse confinamento, distanciamento ou sei lá isolamento social. O certo é que a situação ainda é desoladora quer no mundo fora quer internamente. Aliás, ontem mesmo ouvi pela rádio que os 39 casos positivos que tenho certeza que mãe também ouviu, dos quais 8 já estão recuperados, até um, aquele que diziam que não era positivo veio admitir publicamente que foi um dos primeiros recuperados, fala-se que em 6 meses podemos chegar a 20 milhões de infectados pelo Coronavírus. Fiquei perplexo, pois 20 milhões é muita gente, mãe. Aliás, mais da metade da população. Então inclinei-me a pensar que tratava-se apenas de 20 mil, mas quando ouvi que eram necessários 34 mil milhões de Meticais para fazer face a situação, então não tive outra opção se não acreditar. A ser verdade mãe, só posso chorar, pois se com ma.366
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Carta a uma mãe em tempos de confinamento ou distanciamento social |
lária e cólera não conseguimos, será que conseguiremos com este Coronavírus? Portanto, se não receberes mais uma carta minha, não chores. Talvez terei partido não para aquele partido de oportunidades, mas para o além. E como não poderás pedir um exame para saber do que morri, ficarás com o que puderem diagnosticar que será uma febre, tensão, cólera, malária, ou mesmo que fui envenenado na bebedeira ou que aquela menina que me queria e eu não a queria enfeitiçou-me, só para justificar a minha morte, já que entre nós a morte deve sempre ter um culpado.
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
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Valentino Viegas Goa – Índia
Valentino Viegas nasceu em Pangim, Goa, a 14 de fevereiro de 1942. Fez o Bacharelato em Lourenço Marques, Licenciatura e Doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e na Universidade Lusófona. Prestou serviço militar em Portugal e no Norte de Angola, onde teve louvores e foi condecorado com a Medalha de Cruz de Guerra. Foi bolseiro do Instituto Nacional de Investigação Científica e da Fundação Calouste Gulbenkian Participou em júris, ações, colóquios, jornadas, encontros literários, debates e fez numerosas conferências. Foi autor, organizador e apresentador do programa televisivo "A Revolução de 1383-1385," uma série de seis episódios apresentada entre dezembro de 1983 e janeiro de 1984. Publicou numerosos artigos em revistas, jornais, e livros.
O vírus mental
Acabo de ouvir bombardeamentos. Aviões de combate, depois de terem sobrevoado a minha casa, a alta velocidade, devem ter lançado bombas contra objectivos estratégicos. Dirijo‑me para o calendário, abrilhantado com o mapa de Goa, e sublinho o dia 18 de Dezembro de 1961, como quem identifica e assinala uma data a não esquecer. Será verdade? A guerra terá mesmo começado? Custa ‑me a acreditar. Os vizinhos assustados acabam de sair das casas. Juntaram‑se no largo defronte da varanda da minha residência. Estão alvoraçados, discutem em uníssono e ninguém se entende. Cuidado, máximo cuidado, há silêncio a mais, temos de redobrar a atenção. Vamos ser atacados, pressinto a presença do inimigo. O terreno é propício para uma emboscada. Está de certeza escondido nas proximidades, por detrás dos pedregulhos e das árvores. Continua a chover sem cessar. O objectivo a destruir está localizado acolá, no planalto, a ser alcançado após ultrapassarmos a elevação do terreno. Por não vislumbrar outra alternativa, desviando o olhar com um ligeiro movimento da cabeça, dou ordem para avançar. No dia anterior, com aerograma datado de Outubro de 1965, tinha escrito a uma das minhas madrinhas de guerra dizendo‑lhe que, de madrugada, iríamos iniciar uma perigosa operação na serra de Uíge, no Norte de Angola. Quando, vindo de Goa, desembarco em Lisboa no dia 29 de Fevereiro de 2020, prevejo, brevemente, mudanças profundas na sociedade portuguesa. O previsível aconteceu e, a partir de 3 de Abril, o Presidente da República declara o estado de emergência com fundamento na verificação de calamidade pública. Em consequência, estou proibido de .369
| Valentino Viegas
sair da casa a não ser para comprar bens alimentares ou ir à farmácia. Dizem‑me que devido à minha provecta idade faço parte do grupo de risco e que o inimigo me escolheu como alvo preferencial. Quando pergunto de quem se trata e onde se encontra, respondem‑me afiançando ser um tal de nome Covid‑19, invisível a olho nu, que pode estar em toda a parte. Avisam‑me: ao mínimo descuido, pode entrar em tua casa, transportado, sem o saber, por familiar, amigo ou desconhecido, e atacar‑te de forma inteligente, a ponto de ignorares a sua presença. A guerra tinha começado antes do nascer da aurora. Tropas indianas avançavam a bom ritmo, apesar de encontrarem algumas pontes destruídas. Procuravam não abrir fogo contra posições ocupadas pelos portugueses. Senhores do espaço aéreo, com clara superioridade em homens e material bélico, obrigavam os defensores a recuar bombardeando nas proximidades e intimando os soldados com voos rasantes de caças de combate. O soldado que avançava à minha frente, cumprindo ordens, pára bruscamente, pois pareceu‑lhe ter visto ou ouvido algo de estranho. Não dispara por não querer denunciar a sua posição ou desejar surpreender o inimigo. Na sua retaguarda, a metro e meio de distância, estanco o pé esquerdo e firmo o direito, com o dedo indicador resolutamente posicionado no gatilho da espingarda G3. Observo à minha frente, só vejo árvores e densa vegetação, perscruto dos lados, tentando furar com os olhos o emaranhado das folhas e troncos entrelaçados, para descobrir algum vulto escondido. Saio? Não, pois podes dar um passo em falso e antecipar a .370
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Vírus mental |
tua morte. Pela tua saúde, o melhor é permaneceres onde estás. O inimigo está lá fora à tua espera. Por favor, sê responsável, fica em casa, não saias. Passaram mais de vinte dias desde que chegaste de Goa. Se continuas a desfrutar de boa saúde é porque ainda não foste contaminado. Tem paciência, aguenta‑te, conserva‑te em casa. De Betim olhava para a cidade de Pangim. Prudentemente, os carros não circulavam e a maioria das pessoas tinha recolhido para localidades do interior. O palácio de Hidalcão, antiga residência dos vice‑reis, parecia um fantasma plantado na margem esquerda da foz do rio Mandovi. Em poucas horas a população tinha fugido, transportando pertences mais importantes. Sem directrizes nem instruções, cada qual procurava encontrar a melhor solução para proteger a sua vida. Umas quantas pessoas ainda permaneciam recolhidas nas suas casas, outras procuravam refúgio junto dos familiares mais bem informados. A capital, sem vivalma nas ruas, cumpria um recolher obrigatório sem ninguém o ter ordenado. De bicicleta, acompanhado de um amigo, pedalei pressuroso até chegar a um monte para assistir ao combate naval, sem sucesso, do aviso1 “Afonso de Albuquerque” contra vasos de guerra inimigos. Sem meios de comunicação, dotado de material de guerra obsoleto, o exército português, que recebera ordens de Salazar para resistir até à morte, de recuo em recuo, fica confinado em Mormugão. Ansioso, de coração nas mãos, a milhares de quilómetros dos familiares, em so-
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Tipo de navio de guerra
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| Valentino Viegas
frimento permanente, aguarda a decisão dos vencedores. Apesar de continuar a chover incessantemente, transpiro sem cessar. Stressado, aguardo o inevitável. Já não era a primeira vez que isso acontecia. Havia sempre o antes e o depois. Antes de soar o primeiro tiro, as fracções de segundo representavam uma eternidade. Com corpo tenso e concentração no limite, era necessário continuar a avançar. Cada passo em frente representava a aproximação do encontro com a morte. Ninguém adivinhava quem seria o escolhido. Podia ser o soldado que ia à minha frente, podia ser eu ou qualquer outro camarada da retaguarda, tudo dependia da escolha feita pelo inimigo invisível. Naquele momento de suspense, a minha vida, a nossa vida, deixara de estar nas nossas mãos. Alguém, que eu desconhecia e também não me conhecia, podia decidir se eu, ou outro camarada, devia viver ou morrer, era só premir o gatilho e acertar com precisão no alvo escolhido. Já chateia, estou saturado e farto de ser prisioneiro dentro da minha própria casa. Decidi, está decidido, vou sair. Despeço‑me da minha mulher, como quem aceita o desafio de arriscar a vida no itinerário da caminhada da incerteza. Precavido, em vez de apanhar o elevador, desço pelas escadas. Na rua, começo a respirar ar puro. Tomo a direcção da mata de Monsanto, são escassos cinco minutos a pé. Embrenho‑me no interior e, respeitando o distanciamento físico recomendado, cruzo‑me com algumas pessoas, umas com, outras sem máscaras. Se no passado nos cumprimentávamos, mesmo desconhecendo‑nos, no presente, os caminhantes e os corredores afastam‑se e desviam o olhar, como se os olhos projectassem a doença. Enquanto prossigo, recordo com satisfação que os cientistas trabalhavam afanosamente para descobrir a vacina .372
| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Vírus mental |
contra o Covid‑19. Sorrio e digo para mim: aproxima‑se o teu fim, grande malandro, já vais ver, é só uma questão de tempo. Distanciado da casa, subitamente apanho um susto de morrer. Recordo‑me de ter posto a mão direita no corrimão, ao descer as escadas. Durante o percurso pela mata, por mais de uma vez passara a mesma mão pela cara, colocando‑a na boca e nariz. Estou perdido, posso estar infectado! Nas três situações descritas, tão distanciadas no tempo, com intervenção de agressores e agredidos, incluindo o próprio vírus, há uma sensação prevalecente entre os participantes, cujo nome, de quatro caracteres, todos conhecem. Trata‑se do elo de ligação, tenebroso e extremamente contagioso, mais perigoso do que o próprio vírus: o medo.
O Autor não segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990
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Chega para lá,
de Henrique Castanheira Aguarela e lápis 36 x 28 cm | 2020
Vasco Pinto Leite Portugal
Vasco Pinto Leite nasceu em Lisboa em 1936. A par da vida profissional como engenheiro civil, dedicou-se, desde meados dos anos 60 até 1974, à realização e divulgação de filmes não profissionais, com projeções e debates por todo o país, à organização da atividade em Portugal, Moçambique e Angola e, ainda, às relações internacionais deste movimento cultural. Após o 25 de Abril, foi Diretor-Geral da Cultura Popular e Espetáculos e Presidente do C.A. do Instituto Português de Cinema e do Fundo de Teatro e, mais tarde, Delegado da Secretaria de Estado da Cultura na Comissão que elaborou o Projeto de Acordo Cultural com os novos países de língua oficial portuguesa. Foi membro da Comissão de Honra da candidatura de Mário Soares nas eleições Presidenciais de 2006. É membro da Presidência do Conselho Português para a Paz e a Cooperação e cofundador do MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente. É autor de curtas-metragens com diversos prémios nacionais e internacionais. No domínio audiovisual realizou e produziu vídeos institucionais. Foi assessor da Direção-Geral da Comunicação Social, responsável pelo projeto "1 por 12, 12 por 1" e seu coautor, do qual resultou um vídeo sobre a imagem de Portugal, premiado no Festival Euro 92 em Inglaterra. Para a RTP realizou as séries "Memória Audiovisual", "A Casa Sagrada de Malangatana" e "Encontros de África", que também produziu em coautoria. Em 2003 publicou O Sonho Desfeito – Quanto Vale a Vida de Um Homem? (ed. Tribuna da História) sobre a "Ala Liberal" e o seu líder, o deputado José Pedro Pinto Leite, e em 2013, o livro O Corpo de Delito – A Ideia do Futuro e a Questão Cultural Portuguesa.
Pandemia e pandemónio
O Príncipe das Trevas em contra-Luz Enfrentou o Deus Omnipotente e virou mesmo serpente para convencer o cliente que o rancor também é celestial, quando é apenas bestial e viral O Príncipe das Trevas na sombra do que seduz Acena aos seus, os orgulhosos, não apenas os poderosos, gananciosos, os egos dolosos, a todos, com raça só de animal, o veneno que é transversal e letal O Príncipe das Trevas nos escombros da sua luz Sem tréguas! Ri-se da estupidez: na coroa dos vivos a dos mortos introduz; E da pequenez a que, na pandemia da altivez, a coroa de um vírus nos reduz.
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| Vasco Pinto Leite
...No Planeta No Planeta vergado a fechar-se, sentar-se e sentenciar-se... Sem intuir como prosseguir, nada pode programar-se, nem a prazo nem a curto, com o vírus a evoluir no surto! Deixou de haver o tempo neste tormento! Tudo irá colapsar, a individual ironia, a megalomania, a hipocrisia, a sociologia, a economia, a global ideologia… Até a porcaria! Da morte e da desordem sairá o norte de uma nova ordem.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Pandemia e pandemónio |
Na Barca do Inferno vamos! E lembramos o nosso Gil Vicente, que até fazia rir a gente. Mas, a brincar a brincar, ele sabia o sério que dizia... a quem se não arrependia! Tudo muda num repente! Agarremos a poética via que nunca irá ao fundo, à espera ainda, talvez, da nossa vez, se tal guia encontrar o mundo. Derrubámos já inimigo tão fogoso – E não tão silencioso – Cremaremos os cornos do Fausto nos demais fornos de holocausto!
25 de abril de 2020
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Viviane de Santana Paulo Brasil
Viviane de Santana Paulo (1966/São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, autora dos livros Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publica poemas em revistas e jornais entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; assim como nas revistas Argos e Alforja (México). Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, XX Festival Internacional "Noites de Poesia" no de Curtea de Arges, Roménia. Atualmente, vive em Berlim. vsantanapaulo@yahoo.com.br
Corona um metro e meio o que fazer com esta distância quando éramos união um metro e meio e não mais posso abraçar-te beijar-te e minhas palavras não te alcançam nem minhas mãos quando antes possuíamos a proximidade e a distância que iam e vinham constantes e traziam sal e espumas e alternância quando antes íamos e vínhamos por todos os lugares e direções agora o mundo parou porque nossa fragilidade é maior do que o nosso egoísmo e a nossa ganância do que nossa insensatez e nossas ambições corremos o risco de não mais respirar e necessitamos de ar puro ar puro ar este ar que está onipresente e dentro de nós este ar que poluímos esta natureza que maltratamos o mundo parou porque somos mais frágeis do que acreditamos e fizemo-nos tão dependentes do material como se fôssemos de metais e não orgânicos como se fôssemos imortais e não efeméricos o mundo parou e ter-te nos meus braços não posso mais como dois animais que também somos entrelaçados nos sonhos um metro e meio e meus pensamentos desatam-se na busca de razões e soluções e a saudade cresce e chamo quando nos tocarmos há de levar-nos de novo ao humano .381
Yao Feng China-Macau
Yao Feng é o pseudónimo literário de Yao Jingming, académico nascido em 1958, em Pequim, com um vasto e notável curriculum como tradutor e autor de várias coleções de poesia e prosa. Com um mestrado em Literatura Portuguesa pela Universidade de Macau e um doutoramento em Literatura Comparada e Literatura Mundial pela Universidade Fudan, em Shanghai, Yao Jingming vive há cerca de duas décadas em Macau. É considerado um dos intelectuais chineses que melhor conhece a poesia portuguesa, tendo já traduzido, entre outros, Eugénio de Andrade, Ruy Cinatti, Camilo Pessanha e Sophia de Mello Breyner Andresen. Admirador de Fernando Pessoa, o poeta chinês assina com o pseudónimo Yao Feng. "Yao é apelido e Feng é vento". Antigo vice-presidente do Instituto Cultural de Macau, Yao Jingming foi coordenador de mestrados de tradução da Universidade de Macau e, desde setembro de 2016, dirige o Departamento de Língua e Cultura Portuguesas daquela Universidade.
Globo mascarado
Jesus mascarado Buda mascarado Muhammad mascarado O presidente mascarado O ministro mascarado O rico mascarado O pobre mascarado O belo mascarado O feio mascarado O velho mascarado O jovem mascarado O bebé mascarado O sorriso mascarado O sonho mascarado O medo mascarado O coração mascarado O globo mascarado. A máscara já faz parte do rosto do homem e nem Deus sabe quando é que se pode tirar. A máscara retangular faz lembrar o largo da prisão onde os presos estão a passear. A máscara faz com que todos se sintam iguais mas esta igualdade não serve para nada.
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Zetho Cunha Gonçalves Angola
Zetho Cunha Gonçalves (Huambo, Angola, 1960). Poeta, autor de literatura infantil e juvenil, antologiador, tradutor de poesia e organizador de edições, publicou, desde 1979, cerca de 40 livros, entre os quais, de poesia, A Palavra Exuberante, 2004; Sortilégios da Terra: Canto de Narração e Exemplo, 2007; Rio Sem Margem: Poesia da Tradição Oral, 2011; Terra: Sortilégios, 2013; Rio Sem Margem: Poesia da Tradição Oral. Livro II, 2013; Noite Vertical, 2017 [1º Prémio dstangola/Camões 2019]; O Sábio de Bandiagara: Esconjuros, Ebriedades e Ofícios, 2018; O Leopardo Morre com as suas Cores, 2019. Publicou vários livros de poemas, teatro e ficção para a infância e juventude, para além da antologia Dima, O Passarinho Que Criou o Mundo: Mitos, Contos e Lendas dos Países de Língua Portuguesa, em 2013, obra ainda hoje sem paralelo no panorama da língua portuguesa. Traduziu poetas como Antonio Carvajal, Vicente Huidobro, Joan Brossa, Friedrich Hölderlin, Rainer Maria Rilke, Mihai Eminescu e Jalal-Al-Din Rumi. Organizou edições da obra de poetas e escritores portugueses como António José Forte, Luís Pignatelli, Natália Correia, Mário Cesariny, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, e do poeta moçambicano Luís Carlos Patraquim. Está representado em várias antologias e tem colaboração dispersa por jornais e revistas de Angola, Brasil, Moçambique, Portugal, Macau, Itália, Espanha e Alemanha. Tem traduções da sua obra para alemão, chinês, espanhol, italiano e iídiche. O seu nome foi proposto para Prémio Nobel de Literatura 2018. Zetho Cunha Gonçalves dedica-se inteiramente à criação poética e literária.
Respiração suspensa
Entre uma estrela e outra, há agora uma vírgula. A noite trabalha seus dons, suas luas, seus ofícios milenares − prodígio primaveril das árvores, pela manhã. Saber não fazer nada é um desconhecido privilégio − a Vida que se não viveu, agora defronte do pelotão de fuzilamento. Assassino impotente e acossado − o olhar torna-se um canibal em pânico. O terror, meticulosamente ministrado, imbeciliza − a pobre cabeça luminar do impante idiota explode em pareceres científicos irrefutáveis. O hipocondríaco é agora o ser mais feliz à face da catástrofe − demite-se de toda a função para que foi temporariamente indigitado.
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| Zetho Cunha Gonçalves
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Vejo cabeças como nitreiras a transbordar − eu sabia que eram muitas, nunca imaginei que fossem tantas! A boçalidade instaura seus dogmas, crava seus tentáculos − Deus rebelde ao Criador. Para que servem dinheiro e poder − nas mãos da indigência? A cobra desfaz-se da pele − não deixa de ser serpente, não perde o seu veneno letal.
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| Literatura e Cultura em tempos de Pandemia
Respiração suspensa |
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É tão fácil matar, é tão fácil criar, provocar, esbanjar a Morte − quando se viveu e brincou nunca a infância, e se odeia a Vida! Um centímetro cúbico de ar pode ser o Norte magnético − quem comprará a Morte, senhores do mando, quem comprará a Morte, em seu trono deslocada? Roubem-nos tudo − mas não roubem os nossos Mortos!
UCCLA-União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa
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Finalmente vou ao parque, de Henrique Castanheira Aguarela e lápis 36 x 28 cm | 2020
Índice Apresentação, Vitor Ramalho 5 Introdução, Rui Lourido 9 Autores A. Pedro Correia 30 Adela Figueroa 36 Afonso Dias 40 Vanny Kaya Lopez (Águeda Lopes) 52 Alda Barros 56 Alfreda Pinto 64 Amanda Lopes 68 Amosse Mucavele 72 Ana Ferreira da Silva 76 André de Soure Dores 84 Andreia Tavares de Sousa 92 Antonino Robalo 96 António Carlos Cortez 98 Antonio Carlos Secchin 102 Antonio Miranda 104 António Pascoal 110 Any Delgado 114 Carlos Nelson Álvaro Sebastião “Dadi Ngongo” 118 Concha Rousia 124 Delmar Maia Gonçalves 128 Dina Guita 134 Dorivaldo Manuel 136 Eduardo Naharro-Macías Machado 140 Ernesto Dabo 146 Ernesto Vazquez Sousa 148 Fernanda Hauptmann 154 Fernanda Nogas 156 Fernando Costa 160 Filipa Vera Jardim 170 Gabriel Baguet 174 Germano Almeida 182 Glória Sofia 186 Goretti Pina 190 Guilherme Valente 196 Hélder Simbad 198 Henrique Castanheira 206 João Fernando André 214 João Nuno Azambuja 218
Joaquim Saial 220 John Bella 224 Jorge Castro 228 José Carlos Matias 232 José Luís Hopffer Almada 236 José Luís Mendonça 242 José Luiz Tavares 248 José Nascimento 258 José Pinto 264 José Pires Laranjeira 270 Juvenal Bucuane 274 Kátia Casimiro 278 Lídia Jorge 284 Luísa Fresta 288 Madalena Brito Neves 292 Madalena Mira 300 Manuel Alegre 304 Manuel S. Fonseca 306 Marciano Gualberto Nascimento 312 Maria Clara Costa 314 Mia Couto 316 Olinda Beja 320 Orlando Castro 326 Ozias Filho 330 Paulo Coutinho 334 Paulù Salmoura 338 Regina Correia 342 Sérgio Fernandes 346 Sofia Delgado 352 Sônia Barreto Freire 356 Suélen Dominguês 358 Timóteo Papel 362 Valentino Viegas 368 Vasco Pinto Leite 376 Viviane de Santana Paulo 380 Yao Feng 382 Zetho Cunha Gonçalves 384
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A pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 atingiu, de forma inesperada e dramática, toda a Humanidade, obrigando à adoção de planos de contingência, também adotados pelas cidades dos Países de Língua Oficial Portuguesa representadas pela UCCLA, que determinam constrangimentos de mobilidade e distanciamento. Tem-se revelado como uma crise de saúde pública com consequências sociais e económicas de enorme gravidade. A UCCLA não podia, logo no início da pandemia, deixar de fazer um apelo à reflexão sobre o papel da cultura no combate à Covid-19. Perante este flagelo, povos e países viram-se confrontados com novos desafios sociais e políticos sobre os quais importa refletir e encontrar novas respostas.
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