Jornal da ABI 333

Page 1

ADEUS FAUSTO WOLFF, LOURENÇO DIAFÉRIA, FERNANDO BARBOSA LIMA O jornalismo perdeu um Quixote (Fausto), um cronista sensível (Diaféria) e o pioneiro da informação de qualidade na tv (Fernando). Páginas 43, 44, 45, 46 e 47

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

333

Jornal da ABI

SETEMBRO 2008

Com roteiro de Olinto Gadelha Neto e ilustrações do desenhista Hemetério, a saga do líder da Revolta da Chibata, de 1910. Páginas 38 e 39

UM JORNALISMO QUE DESCOBRE A VIDA NO CAMPO

126 fotografias que registram a história recente do Brasil e Estados Unidos foram expostas na mostra Impressões Visuais, como esta do beijo em plena Times Square para celebrar o fim da Segunda Grande Guerra. Páginas 34 e 35

IMAGENS MARCANTES

José Hamilton Ribeiro e outros ases mostram um gênero, o jornalismo rural, que revela na televisão o Brasil profundo. Páginas 3, 4, 5, 6 e 7

O SIGILO DA FONTE É INTOCÁVEL

Ao pregar a "relativização" do sigilo da fonte, o Ministro Nélson Jobim canhoneia a liberdade de imprensa. Página 30 e Editorial na página 2

LUIZ MENDES, 84 ANOS,

SEUS MELHORES TEXTOS

SUMIRAM 170 VÍTIMAS DO TERROR NO URUGUAI

O JORNALISTA PROCÓPIO MINEIRO PUBLICOU-OS NA REVISTA O P RELO. PÁGINAS 10, 11, 12 E 13

CIENTISTA POLÍTICO URUGUAIO FAZ IMPRESSIONANTE RELATO SOBRE A DITADURA 1973-1985. PÁGINA 15

ELE COBRIU 13 COPAS DO MUNDO E TOCA UM BOLÃO NO RÁDIO. PÁGINAS 20, 21, 22 E 23

UMA PROPOSTA PARA

NOSSA ESCRITA VAI

COMPARATO: PERDOAR

OS 100 ANOS DA ABI EM

ESTÁ COM A BOLA TODA

REGULAR A PROFISSÃO

MUDAR EM JANEIRO

TORTURADOR É IMORAL

PERY COTTA FORMULA IDÉIAS INOVADORAS ACERCA DA REGULAMENTAÇÃO. PÁGINAS 26, 27, 28 E 29

BYE, BYE, TREMA: ACORDO ORTOGRÁFICO PASSA A VALER NO COMEÇO DE 2009. PÁGINAS 16 E 17

É TAMBÉM SUBVERSIVO E ESCANDALOSO, DIZ ESSE DESTACADO MESTRE DO D IREITO. PAGINA 33

REPRODUÇÃO

JOÃO CÂNDIDO, UM HERÓI DO BRASIL, AGORA EM QUADRINHOS


Editorial

A IMPRENSA NA ALÇA DE MIRA OS ÚLTIMOS TEMPOS TÊM SIDO pródigos em ocorrências, manifestações e decisões, estas no âmbito judicial, que demonstram como ainda é insuficiente a consciência dos agentes sociais acerca da importância da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática entre nós. O exercício desses bens jurídico-constitucionais é fragilizado por essa incompreensão, que tem gerado atos de violência, de arbítrio e de totalitarismo sobretudo nos momentos em que se aguçam os confrontos e as contradições entre as diferentes facções políticas, como nas campanhas e disputas eleitorais, como as que vivemos a partir de junho passado. FALTA-NOS NO CAMPO DA prática democrática uma tradição nacional, implantada com raizes profundas, que suscite respeito e inspire atos e costumes indispensáveis à convivência social sem sustos nem sobressaltos. É COMPREENSÍVEL ESSA CARÊNCIA. Salvo no longo reinado do Imperador Dom Pedro II, que tinha a liberdade de imprensa como dogma, como relatado pelo historiador e acadêmico José Murilo de Carvalho em sua exemplar biografia do monarca deposto e execrado, nossa existência nacional é marcada desde o alvorecer da república por agressões de toda ordem à liberdade de expressão e de informação. O Governo Floriano impôs o exílio, como forma de autoproteção daqueles que por este se decidiram, a adversários a quem deveria não só respeitar mas também prestar homenagens, como Rui Barbosa, banido para a Inglaterra.

Jornal da ABI Número 333 - Setembro de 2008

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico, diagramação e editoração eletrônica: Francisco Ucha Edição de textos: Marcos Stefano e Maurício Azêdo Fotos e ilustrações: Acervo Biblioteca da ABI (Biblioteca Bastos Tigre), Agência Brasil, Agência Estado, Agência O Globo, Arquivo Jornal do Commercio, Folhapress Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Ana Paula Aguiar, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Mário de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 jornal@abi.org.br Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

2

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

EM MENOS DE 120 ANOS DE REPÚBLICA, passamos quase um terço com privação das liberdades públicas: os quatro anos do estado de sítio do Presidente Artur Bernardes, os oito anos da ditadura do Estado Novo, os 21 anos da ditadura militar 1964-1985. Ao todo, 33 anos, sem contar as violências descontinuadas, episódicas, como as cometidas no Governo Dutra, a quem se atribui falsamente suposto respeito ao Livrinho, como ele se referiria à edição em formato de bolso da Constituição de 18 de setembro de 1946. QUANDO PROPÕE O desrespeito à disposição constitucional que garante o sigilo da fonte – bem não privativo dos jornalistas, mas assegurado a todos quantos o tenham como necessário no exercício de sua profissão, como os médicos –, a pretexto de relativizá-lo, eufemismo que encobre uma redução de caráter ditatorial, o Ministro da Defesa Nélson Jobim está a se colocar não à margem da Constituição, mas em colisão destemperada, grosseira, apesar do linguajar rebuscado, com o texto constitucional. JOBIM COLOCOU A LIBERDADE de imprensa na alça de mira de seu canhoneio totalitário. É preciso denunciá-lo, como fazemos, e detê-lo, como se impõe à sociedade que aspira à consolidação e ampliação da democracia no País.

DESTAQUES DESTA EDIÇÃO 03

Especialização - Jornalismo rural Um campo ainda desconhecido

10

Ano do Centenário - Procópio Mineiro: Ele fez os dois melhores textos sobre os nossos 100 anos

16

Linguagem - Agora é lei. Em 2009 vamos escrever diferente

18

Comemoração - A festa de Ancelmo, um jovem de 60 anos

19

Veículos - A paixão da memória de Wanderley Peres e seu jornal

20

Depoimento - Luiz Mendes

34 36

Fotojornalismo - O fino da imagem jornalística lá e cá O melhor da fotografia mundial em Paraty

38

Resgate - João Cândido, um herói do Brasil

40

Pesquisa - Leitura no Brasil: o que mudou?

41

Justiça - A UniRio celebra Mário Barata

DIRETORIA – MANDATO 2007/2010 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Audálio Dantas Diretor Administrativo: Estanislau Alves de Oliveira Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretor de Assistência Social: Paulo Jerônimo de Sousa (Pajê) Diretor de Jornalismo: Benício Medeiros CONSELHO CONSULTIVO Chico Caruso, Ferreira Gullar, José Aparecido de Oliveira (in memoriam), Miro Teixeira, Teixeira Heizer, Ziraldo e Zuenir Ventura. CONSELHO FISCAL Luiz Carlos de Oliveira Chesther, Presidente; Argemiro Lopes do Nascimento, Secretário; Adail José de Paula, Adriano Barbosa do Nascimento, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo e Manolo Epelbaum. CONSELHO DELIBERATIVO (MESA 2008-2009) Presidente: Fernando Barbosa Lima (in memoriam) 1º Secretário: Lênin Novaes de Araújo 2º Secretário: Zilmar Borges Basílio Conselheiros efetivos 2008-2011 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner, Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (in memoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e VillasBôas Corrêa. Conselheiros efetivos 2007-2010 Artur da Távola (in memoriam), Carlos Rodrigues, Estanislau Alves de Oliveiora, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico, José Rezende Neto, Marcelo Tognozzi, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa (Pagê), Sérgio Cabral e Terezinha Santos.

Exposição - Machado revelado ARTIGO 06 Abreu e Lima: um brasileiro que se destacou no Exército de Bolívar por Mário Augusto Jakobskind 42

SEÇÕES CEU NA AB 15 A C ONTE ONTECEU ABI “A democracia não pode ser construída com o abandono da memória e da justiça” ○

26

L I B ER DADE DE IM P R EN SA ERD ENSA Uma proposta da ABI para a nova regulamentação da profissão de jornalista ○

30

O sigilo da fonte é intocável

31

Ousadia sem limites

32

A imprensa precisa de lei? Não, ela é dispensável, dizem Miro e Thomaz Bastos

33

D I R EIT OS H U MANOS EITOS

ERRATA - Na chamada da primeira página da edição número 332: a matéria do centenário de Solano Trindade está nas páginas 36 e 37, e não 28 e 29; a eleição de Luiz Paulo Horta para Academia Brasileira de Letras está na página 37, e não 29. O autor da matéria sobre Clarice Lispector, nas páginas 38 e 39, é Cláudia Souza, e não Marcos Stefano.

37

L IVROS

41

V I DAS Diaféria, Fernando Barbosa Lima, Fausto Wolff

Conselheiros efetivos 2006-2009 Antônio Roberto Salgado da Cunha (in memoriam), Arnaldo César Ricci Jacob, Arthur Cantalice (in memoriam), Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Augusto Xisto da Cunha, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Alvarez Campos, Heloneida Studart (in memoriam), Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho e Pery de Araújo Cotta. Conselheiros suplentes 2008-2011 Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello, Salete Liusboa, Sidney Rezende,Sílvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e Wilson S. J. de Magalhães. Conselheiros suplentes 2007-2010 Adalberto Diniz, Aluízio Maranhão, Ancelmo Góes, André Moreau Louzeiro, Arcírio Gouvêa Neto, Benício Medeiros, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Luiz Sérgio Caldieri, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros suplentes 2006-2009 Antônio Avellar, Antônio Calegari, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Antônio Henrique Lago, Carlos Eduard Rzezak Ulup, Estanislau Alves de Oliveira, Hildeberto Lopes Aleluia, Jorge Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marco Aurélio Barrandon Guimarães (in memoriam), Marcus Miranda, Mauro dos Santos Viana, Oséas de Carvalho, Rogério Marques Gomes e Yeda Octaviano de Souza. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Ely Moreira, Presidente; Carlos di Paola, Jarbas Domingos Vaz, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Maurílio Cândido Ferreira. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Audálio Dantas, Presidente; Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Wilson de Carvalho, Wilson S. J. Magalhães e Yacy Nunes.


ESPECIALIZAÇÃO

Jornalismo Rural UM CAMPO AINDA DESCONHECIDO A televisão mostra um Brasil ignorado nos grande centros urbanos. É em Globo Rural, que exige investimentos altos, tem grande audiência no interior mas é pouco visto nas cidades. Até pelos jornalistas. “FOI O BURRO QUE LEVOU O BRASIL À CIVILIZAÇÃO.” A frase do repórter Nélson Araújo surpreendeu o telespectador que ligou sua televisão na Rede Globo às seis e vinte da manhã do domingo, 23 de março de 2006. Apesar de logo esclarecer que estava prestes a começar uma reconstituição histórica, a noção de que aquilo que se seguiria seria mais uma grande reportagem jornalística do Globo Rural permaneceu. E foi isso mesmo: durante 66 dias, cinco repórteres se revezaram numa viagem de 1.760 quilômetros em lombo de mula para resgatar um marco histórico ignorado por muitos brasileiros. A marcha de Os Tropeiros não apenas chamou a atenção por reproduzir a viagem de 28 animais em uma rota que deu ao País seu primeiro “sistema de transporte” mais eficiente nos séculos 18 e 19, como tam-

bém foi uma aula de como se fazer jornalismo rural. Em um país de dimensões continentais, onde 40% de suas riquezas são geradas no campo, o jornalismo rural ainda é muito pouco trabalhado. Nesse sentido, o Globo Rural é uma grata exceção, com suas grandes reportagens que retratam não apenas o agronegócio, mas também o homem do campo e sua ligação e responsabilidade para com a natureza. Justamente por ser uma experiência bem sucedida, o Jornal da ABI procurou aqueles que fazem o programa em seu dia-a-dia e entendem como poucos da cobertura do campo. Comandado pelo editor-chefe Humberto Pereira, presente desde o começo em 1980, o Globo Rural também conta em seu time com José Hamilton Ribeiro, apontado como um

dos mais brilhantes repórteres do jornalismo brasileiro, ganhador de sete prêmios Esso e dono de um currículo que passa pelas revistas Quatro Rodas e Realidade e pelo jornal Folha de S. Paulo. O último participante desse bate-papo sobre o jornalismo rural é Jorge dos Santos, que faz questão de dizer que é repórter cinematográfico e não cinegrafista. Algo muito justo para quem já passou por muitas experiências em mais de 30 anos de jornalismo. Recentemente, ele esteve em Riverside, na Califórnia. Lá, em uma pracinha bem preservada, está vivo – e produzindo – o pé de laranjeira que, há mais de 200 anos, deu origem à citricultura norte-americana. O que nem todos sabem é que o pé foi levado para lá do Brasil, da Bahia. Coisa que só o Globo Repórter é capaz de mostrar.

POR FRANCISCO UCHA E MARCOS STEFANO Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

3


JORNALISMO RURAL UM CAMPO AINDA DESCONHECIDO

Jornal da ABI – O BRASIL É UM PAÍS DE DIMENSÕES CONTINENTAIS EM QUE O CAMPO TEM ENORME PAPEL NO PRODUTO INTERNO BRUTO. POR QUE O JORNALISMO RURAL AINDA É TÃO INSIPIENTE POR AQUI?

Humberto Pereira – A cobertura do mundo rural, do agronegócio é menor do que a do mundo urbano basicamente porque os grandes jornais são urbanos, são lidos nas cidades. Até à década de 1970 e 1980, só chegavam às bancas das cidades do interior no dia seguinte. Essa é grande dificuldade da imprensa: entender e cobrir o mundo rural. Nos últimos 20 anos isso vem mudando, progredindo. Já há cobertura especializada no Brasil e no mundo inteiro. Até por conta de crises freqüentes, como essa do aumento do preço dos alimentos, não apenas surgem veículos especializados, como grandes órgãos de imprensa passam a ter setores inteiros voltados apenas para acompanhar esse mundo. Esse fenômeno pode ser visto nos mais diversos jornais como Financial Time, Washington Post e grandes publicações brasileiras, que têm cadernos semanais para o campo e começam a variar seu conteúdo, não ficando apenas em política e em números. O planeta ficou menor com a televisão e a internet. Agora a informação chega no mesmo instante na grande cidade e na fazenda. E o mundo cada vez mais urbano tornase cada vez mais dependente do rural para se alimentar, sobreviver, preservar o meio ambiente. Por sinal, buscando trazer esse tipo de conteúdo, o Globo Rural é um programa visto no mundo inteiro e ao mesmo tempo. Isso facilita para atender o interesse do telespectador, que tem direito à informação como o tem o homem da cidade. É nesse sentido que o Globo Rural é feito: se há homem no campo, é justo que seu universo compareça como protagonista do jornalismo, da notícia e da informação. Até porque o homem da cidade precisa cada vez mais dele. José Hamilton Ribeiro – O jornalismo no Brasil está de acordo com o País. É um jornalismo atrasado, retardado, semi-analfabeto. Em nosso país, 70% das pessoas são incapazes de ler e entender corretamente um texto. Nosso jor4

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

A grande dificuldade da imprensa é entender e cobrir o mundo rural, diz Humberto Pereira (no alto, à esquerda). Nosso jornalismo é atrasado, semi-analfabeto, completa José Hamílton (à direita). Cobrir o campo é caro, explica Jorge dos Santos (ao lado).

nalismo, falho em várias áreas, reflete isso. No caso do jornalismo rural, é uma falha ainda maior porque o campo é um setor da economia muito forte. O mundo rural representa 40% do Produto Interno Bruto. A comparação que eu faço: uma greve na Volkswagen dá manchete no Jornal Nacional, mas de um problema grave com os produtores de leite no Brasil a imprensa não fica nem sabendo. E qual é a importância da Volkswagen comparada ao leite do Brasil? A montadora faz parte da indústria automobilística, que gera 100 mil empregos. Como os sindicatos são organizados e fortes, gritam muito, têm muita amizade com os jornalistas, a greve vira notícia logo. Do ponto de vista da força de trabalho, a indústria automobilística no Brasil é desprezível. O leite gera 3,5 milhões de empregos. No entanto, se acontece alguma coisa no campo, a imprensa não fica nem sabendo. Porque aquilo que acontece no campo não entra na pauta diária. Mas de um tempo para cá a força do campo, principalmente o agronegócio, vem se tornando muito forte. Os investimentos são muito altos, a tecnologia precisa ser de ponta. Uma máquina para colher soja custa 1 milhão de reais. O camarada às vezes têm dez máquinas. Aquilo precisa de um operador especial. Como disse o Humberto, ultimamente tem havido uma abertura para o jornalismo rural. Já há mais programas na televisão. O pioneiro e mais importante deles é o Globo Rural. Hoje temos canais exclusivos com a visão voltada para o rural. É uma coisa que está crescendo. Jorge dos Santos – Diferente do Zé, acho o espaço do rural na televisão ainda

de ou região, isso diminui, fica mais fácil. Hoje há afiliadas da Globo e de outras emissoras que fazem programas até com alguma desenvoltura, porque as viagens duram no máximo um dia. Você vai e volta no mesmo dia. Mas em programas nacionais o custo fica muito alto. Um programa policial em São Paulo, com um âncora e duas equipes, uma num bairro, outra noutro, não fica muito caro. No jornalismo rural, cada equipe roda 2 mil quilômetros em contextos completamente diferentes.

muito pequeno. O que existe não é capaz de apresentar ao espectador a imensidão do que este País produz em termos de agricultura, pecuária etc. Além disso, o Globo Rural tem aquela linha de meio ambiente, de preservação, ecologia. Batemos de frente com o Globo Repórter, dividimos pautas com eles. Faltam programas em outras emissoras. Existem dois canais fechados, o Canal Rural e o Canal do Boi. Só. A maior parte do público não tem acesso. JORNAL DA ABI – ALÉM DA FALTA DE VISÃO, O QUE MAIS ATRAPALHA O CRESCIMENTO DO JORNALISMO RURAL NO BRASIL?

Zé Hamilton – É muito difícil e caro fazer jornalismo rural. Muitos já falaram em ousadia ao tentarem fazer programas em estúdios fechados, entrevistando líderes de entidades ou do lobby do agronegócio. É uma fórmula maçante, mau jornalismo. O grande negócio do jornalismo rural é ir ao campo. Abrir a câmera para a luz do sol, para as árvores, para os animais. Passarinhos, cavalos, vacas. E isso custa. Uma equipe de televisão são quatro pessoas, precisam viajar de avião, chegando lá, você ainda precisa alugar um carro ou pegar um carro da empresa. Afora hotel, refeições, algumas vezes, levar rancho, acampar. Jornalismo custa. Bom jornalismo custa caro. E bom jornalismo rural custa mais caro ainda, por causa das distâncias, quando o programa tem a pretensão de cobrir um país de dimensões continentais como o Brasil. Quando é um programa local, de uma cida-

Jorge – Muitas vezes, as viagens do Globo Rural se tornam verdadeiras expedições. Além do custo do nosso transporte, ainda precisamos levar todos os equipamentos para sobrevivência. Há lugares a que precisamos levar geradores. E, além de ser um trambolho, há outras despesas, como a gasolina para os geradores. Agora, estamos trabalhando com baterias solares, porque há lugares em que não há energia. Afora as barracas, alimentos, água. Às vezes, é necessário subir em árvores. Já houve lugares em que chegamos a levar conosco especialistas em segurança como bombeiros. Para fazer esse tipo de reportagens elaboradas e com tempo, quase como documentários, a visão da empresa na retaguarda é fundamental. Para executar uma pauta, ficamos em média cinco dias a uma semana gravando. Na emissora local que tem programa rural, o repórter sai às 7 horas e volta à tarde, ainda com tempo de editar a matéria para estar no ar no dia seguinte. JORNAL DA ABI – COM EXCEÇÃO DO GLOBO RURAL, OUTROS PROGRAMAS SÃO CRITICADOS JUSTAMENTE POR CAUSA DA QUALIDADE. O QUE ACONTECE?

Zé Hamilton – Muitas empresas de televisão produzem programas de má qualidade porque partem para o economês do agronegócio ou são agrotécnicos demais, focados apenas em técnicas agrícolas. O conteúdo fica maçante, cansativo. Se pegar um empresário para falar dos números do agronegócio, você não agüenta mais de dois minutos. Se sai daí e vai mostrar como produzir cenouras ou castrar um porco, torna o programa muito técnico e fe-


Para realizar o Globo Rural há muitos desafios a serem vencidos pelo Brasil afora: a repórter Camila Marconato faz uma entrevista num criadouro de jacarés no Pantanal (acima); uma equipe escolhe locações no Espírito Santo enquanto outra tem que desatolar um carro da produção durante a gravação de uma reportagem (ao lado).

chado. Na verdade, a pauta de um programa rural deve ser a extensão da alma do homem que mora no campo. A extensão de sua alma não é menor do que a daquele que mora na cidade. Suspeito que seja o contrário. A alma do homem do campo é mais ampla, pois tem uma relação mais profunda com a natureza e seus fenômenos, sabe apreciar o raio, o vento, esperar a chuva e conviver com a estiagem. A ambição jornalística pode ser tão grande quanto a de qualquer programa urbano. Mais do que ficar apenas no agroeconômico ou no agrotécnico, deve cobrir esse amplo espectro da vida do homem no campo. Além do trabalho, da técnica, da política e dos números, tem também tradições culturais, diversão, comida, viola, criança, cabrocha, ambiente, sonhos, lendas, ecologia. Essa é nossa linha: ao lado de qualquer fenômeno da natureza ou do campo, há também a reação de um ser humano. JORNAL DA ABI – BOA PARTE DOS PROGRAMAS APOSTA NA FÓRMULA DE QUE MOSTRAR ANIMAIS ATRAI MAIS A ATENÇÃO DO PÚBLICO DO QUE CONTAR HISTÓRIAS DE VIDA. UMA DAS MAIS FAMOSAS SÉRIES A APOSTAR

NESSA FÓRMULA É A PLANETA TERRA, PRODUZIDA PELA BRITÂNICA BBC. O GLOBO

RURAL ENTÃO VAI POR OUTRA LINHA?

Zé Hamilton – Internamente, criticamos esses documentários da BBC de Londres. São maravilhosos, trazem imagens quase inacreditáveis, mas não têm ser humano. Como se ninguém vivesse perto dessa natureza exuberante, que mais parece de outro mundo. Mas acho que todo lugar tem gente que acha que essa fórmula mágica salva qualquer situação. Até no Globo Repórter, quando há dificuldade de assuntos, o pessoal propõe colocar bichos que o povo gosta. Não tem erro. É verdade, as pessoas estão predispostas a ver natureza na televisão, ainda mais agora, com esse negócio de aquecimento global, mas isso só se sustenta em uma ou outra reportagem especial. Comumente, o jornalismo pede que seja mostrado também o contexto, o homem ali do lado, a ligação com o mundo real. Jorge – Muito importante também no jornalismo rural é a prestação de serviço. É a hora que damos resposta ao nosso público, ao pessoal que escreve para o programa. Falam sobre a vaca

que está com uma das tetas no lado esquerdo pingando leite continuamente. E o que nós fazemos? Vamos ao veterinário, levantamos informações. Vamos ao local e gravamos a dúvida da pessoa. Não atendemos especificamente esse telespectador, mas muita gente que enfrenta o mesmo problema ou mesmo se interessa pelo assunto. Tantas vezes, por trás do problema, existe uma personagem interessante. O dono da vaca, o peão que tira leite têm muito a dizer. Além de mostrarmos o problema, falarmos com o veterinário e mostrarmos o tratamento, também vamos falar com o sujeito do campo, que por lidar há muito com a coisa tem uma imensa sabedoria popular e pode dar sua receita caseira. Talvez o veterinário não a recomende, mas para nós essa experiência tem grande peso. JORNAL DA ABI – ZÉ, COMO SE DEU ESSA SUA TRANSIÇÃO PARA O JORNALISMO RURAL? COMO VOCÊ FOI PARAR NESSA ÁREA?

Parte da equipe do programa, num intervalo de trabalho, faz pose para o Jornal da ABI.

Zé Hamilton – Sou de origem rural. Nasci em Santa Rosa de Viterbo, uma pequena vila com não mais do que 3 mil habitantes, rodeada de fazendas. A minha família mesmo tinha fazenda. E isso me deu uma vivência desde criança. Saí cedo de casa para estudar e me desvinculei desse meio. Mas como diz o Guimarães Rosa, a gente sai do sertão, mas o sertão não sai da gente. Depois de uma trajetória na imprensa

escrita, eu vim para a Rede Globo em 1981. Vim para o Globo Repórter, mas naquele tempo o programa era meio errático na emissora, saía do ar e ficava muito tempo assim, meses até. Não tinha um horário fixo na grade. Em um desses momentos no qual o programa ficou fora do ar, mandaram-me procurar um programa compatível com aquilo que eu fazia, que não era o hardnews, mas o jornalismo especializado. Não o dia-a-dia, mas a grande reportagem, mais aprofundada, melhor acabada, com história. Como era da base de São Paulo, pude escolher entre o Fantástico, que tinha uma equipe aqui, e o Globo Rural, que existia há pouco tempo e era feito por aqui. Naquela época, o Fantástico estava numa fase muito ruim, abusando do policial. Não senti muita afinidade. Acabei indo para o Globo Rural. Quando o Globo Repórter voltou e eu tive de escolher entre ambos, as circunstâncias me levaram a permanecer no Globo Rural. JORNAL DA ABI – NAQUELE TEMPO NÃO HAVIA DISCRIMINAÇÃO POR ESTAR EM UM PROGRAMA RURAL?

Zé Hamilton – Não só naquele tempo, mas ainda hoje existe. Às vezes, perguntam-me: “Zé, você sempre foi um jornalista de mídia. Agora está fazendo um programa rural?”. Isso não me diminui em nada profissionalmente, pelo contrário, só torna o desafio Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

5


ainda maior e mais instigante. Antes de chegar aqui, fui diretor de um jornal em Campinas. Nesse tempo, construí uma boa relação com torcedores da Ponte Preta, especialmente uma chamada Conceição, torcedora símbolo do clube. Quando voltei para São Paulo, achava-me o máximo, o “dono da cocada-preta”. Um tempo depois, a Ponte veio jogar na cidade e fui assistir à partida. Depois, decidi ir aos vestiários cumprimentar o pessoal, pois ainda conhecia muita gente. Nisso, encontrei a dona Conceição. Ela correu para até mim, abraçou-me e tascou a pergunta que muito a inquietava e preocupava: “Mas o que aconteceu com você? Trabalhava em um jornal tão importante de Campinas e agora está num programa de verdura?” (Risos). JORNAL DA ABI – PORÉM, UMA COISA BEM DIFERENTE É O PRECONCEITO POR PARTE DE PROFISSIONAIS DA ÁREA, NO CASO, JORNALISTAS...

Zé Hamilton – Como disse, o Globo Rural não é agroeconômico nem agrotécnico. Sua ambição jornalística é mostrar a alma humana. Do ponto de vista da importância em termos de audiência, mesmo indo ao ar aos domingos pela manhã, o programa fica com uma média de 14 pontos em São Paulo. No interior, é muito maior. Tirando os grandes telejornais da própria Globo, brigamos com a mesma ou até maior audiência que qualquer telejornal de outra emissora, mesmo em horário nobre. O Globo Rural é um dos grandes programas da televisão brasileira, seja por essa expressiva audiência, seja pela resposta dos espectadores, seja pelo jornalismo praticado. Outro ponto a seu favor é o de ser matutino e dominical. Justamente por passar nesse horário e dia, não tem tanto compromisso de seguir o pique tradicional da Globo, que é frenético, embalado, acelerado. Você assiste a um telejornal e tem hora em que, se não prestar atenção, perde a compreensão daquilo que está vendo. Como o Globo Rural não enfrenta grande concorrência no horário, dá para fazer um programa com ritmo mais cadenciado, mas próximo da capacidade de observação do telespectador. E mais natural, esperando a chuva e a seca. Acaba que você tem um telejornal com grande acabamento, qualidade, que não se vê nem na Globo normalmente em função do pique. Jorge – Até nas grandes cidades, a curiosidade pelo campo é imensa. As pessoas vieram do campo. Ou o avô veio, o bisavô. Tem gente fazendo o caminho inverso. Em vez de investir em apartamento, carro, está investindo em qualidade de vida, voltando ao rural, comprando chácara, sítio, criando animais. Zé Hamilton – Há também o fator psicológico. O habitante da grande cidade busca o Globo Rural como uma nostalgia. Onírica até, pois nunca vi6

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

veu no campo, mas tem esse sonho da vida tranqüila e saudável. A ligação do ser humano com a terra, com a natureza é muito forte. Mesmo quando a pessoa é obrigada pelas circunstâncias da vida a morar numa grande cidade, não esquece o campo. Algo no subconsciente dela torna o programa rural muito agradável de ser visto. JORNAL DA ABI – COMO FOI A PASSAGEM DA MARCA GLOBO R URAL PARA OU TRAS MÍDIAS?

Zé Hamilton – Em determinado ponto do programa, criou-se a idéia de fazer uma multimídia rural. Tinha o programa de televisão, projeto de rádio, para produzir um programa ou fazer até uma emissora, e publicar uma revista. Fui designado para ser o editorchefe da revista no começo. E conciliei essa tarefa com a televisão por uns dez anos. Depois, interesses conflitantes entre as empresas, a emissora e a editora acabaram com a união e terminaram o casamento. O projeto da rádio foi desenvolvido por mais de um ano. Já tinham produzido aberturas, vinhetas, tudo. Aí chegou a ordem para suspender. O projeto da Rádio Globo Rural tinha tudo para vingar. Foi anterior à própria CBN, que seguiu justamente o mesmo modelo, de rádio nacional, e hoje é uma potência, transmitida via satélite, com repetidoras locais, na internet. Esse era o projeto para a Rádio Globo Rural, abortado por circunstâncias empresariais que desconheço. Seria a grande rádio brasileira. Jorge – A revista foi criada por nossa equipe mesmo. Funcionava assim: saíamos para fazer matéria sobre cacau, por exemplo, e produzíamos para a revista e para a televisão. O Zé fazia as reportagens e escrevia os textos; eu filmava e tirava as fotos. Os repórteres cinematográficos do Globo Rural é

Os Tropeiros resgatou um importante momento da História brasileira percorrendo mais de 1.700 quilômetros entre o Rio Grande do Sul e São Paulo. A série custou mais de meio milhão de reais e foi exibida em 12 partes, apresentada por José Hamilton Ribeiro (abaixo).


que faziam as fotos. Como a televisão tem limite de tempo, as matérias eram reduzidas, resumidas. Então, cabia à revista dar mais detalhes, expandindo isso. Humberto – Cada veículo tem a sua limitação. No caso da televisão há a do tempo, que, além de tudo, é caríssimo. Nas reportagens há, certamente, experiências mais ricas do que aquelas que é possível editar para o tempo proposto na tv. Então, surgem como alternativas, a revista, que aprofunda o conteúdo e até livros, como um que lançamos, escrito pelo próprio Zé, fazendo o diário da marcha do projeto Os Tropeiros. E um meio pode anunciar o outro, como no final do programa, o apresentador anuncia a revista para quem quer mais informação. É um casamento que pode ser perfeito, tem tudo para dar certo caso haja sincronia. JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA EM QUE VOCÊS ESTAVAM À FRENTE, A REVISTA GLOBO

RURAL PUBLICOU GRANDES REPORTAGENS SOBRE O PANTANAL, A AMAZÔNIA, O RIO SÃO

FRANCISCO E OUTRAS. COMO VOCÊS VÊEM A REVISTA HOJE? ELA CHEGOU A PERDER SUA IDENTIDADE?

Zé Hamilton – A revista teve, sim, uma queda. A linha foi mudada e ainda perdeu o apoio da televisão, que era muito forte. Passou a buscar outras pautas, com outra equipe. Mas agora está sendo feita uma reavaliação, um novo projeto e uma nova aposta editorial. Se der certo, ainda que com equipe independente da televisão, haverá uma ligação e a revista deverá investir novamente em grandes reportagens, voltando a ter um conteúdo jornalístico de primeira qualidade. JORNAL DA ABI – O PROJETO OS TROPEIROS, JÁ MENCIONADO PELO HUMBERTO, SERIA UM BALÃO DE ENSAIO NESSE SENTIDO?

Zé Hamilton – Diria que adianta o que pode ser essa nova fase. A revista não será acoplada ao programa, mas terá uma linha de comunicação e de desenvolvimento de projetos conjuntos. Em Os Tropeiros, houve a série levada ao ar pela televisão, a revista publicou e ainda lançaram uma coleção de dvds e o livro. A proposta é que esse tipo de trabalho não seja apenas episódico, mas permanente.

A revista Rural (abaixo) da série Os Tropeiros: integração com o programa da Rede Globo.

Globo e o dvd mais

origem e depois passamos pelo Uruguai e Rio Grande do Sul. Eu e o Zé fizemos toda a parte histórica, como os animais chegaram, para depois reconstituir na prática. Aí, a produção trouxe mulas, burros e cavalos. Fez plano de saúde e seguro para os animais, contratou peões profissionais para refazer o trajeto. Humberto – Realmente, não foi fácil. Montar uma tropa em pleno século 21 e percorrer mais de 1.700 quilômetros foi uma aventura mesmo. Mas foi também a forma que encontramos para fazer uma reportagem sobre um tema decisivo na História brasileira, que ficou esquecido no passado. Ainda hoje, pelo Brasil, encontramos gente realizando cavalgadas esportivas ou participando de romarias em lombos de burros. Mas as tropas que vinham do Sul eram diferentes. Eram o grande meio de transporte do País, como os carros hoje. Só que, em vez de fábricas e seus pátios cheios de veículos, tínhamos os campos em volta de Sorocaba e Itapetininga, onde ficavam os animais. Perdi a conta de todos os animais que saí pedindo emprestado, desde janeiro de 2006, a amigos do programa, a vizinhos de sítio e a criadores tradicionais. Zé Hamilton – Bom jornalismo rural é muito caro, como já dissemos. Essa série de reportagens custou mais de meio milhão de reais. Qual emissora está disposta a investir tanto em um trabalho histórico de 12 programas? Mas por que começar na Argentina e no Uru-

guai? Por que o Brasil não tinha mulas. Eram criadas nos séculos 16 e 17 para transportar a prata das minas de Potosí, na Bolívia, até o Panamá, onde era embarcada para a Espanha. Os animais eram os únicos com resistência para levar os alimentos e trazer as riquezas. Quando a produção começou a ficar escassa e os animais ociosos, trouxeram-nos por contrabando para o Brasil. Aqui, começava o ciclo do ouro e o comércio era intensificado. E tudo estava sendo transportado no lombo de escravos negros e índios cativos. Para melhorar esse sistema precário, foi iniciado o tropeirismo com os animais inicialmente trazidos da Espanha e criados na Argentina. JORNAL DA ABI – FOI MUITO DIFÍCIL RECONSTITUIR TODO O TRAJETO?

Jorge – Foi feita uma grande pesquisa antes, para depois estabelecermos o roteiro. Mas o problema era fazer a viagem toda em estrada de terra. Não dava para colocar os animais no asfalto, que não existia naquele tempo. Só que hoje, boa parte do caminho original das tropas foi transformado em estradas. Então, precisávamos desviar e circundar o tempo todo. Difícil também foi enfrentar o pesado trânsito de caminhões em época de colheita. Mesmo em estrada de terra, o movimento era intenso e isso atrasava bastante. JORNAL DA ABI – TODO ESTE TRABALHO TEM UM COMEÇO NAS REVISTAS QUATRO RODAS E REALIDADE, GRANDES MARCOS DA REPORTAGEM NOS ANOS 1960?

Humberto – De certa forma, o vínculo com Realidade é real. Vários profissionais que trabalharam nela, estavam aqui na criação do Globo Rural. O diretor de jornalismo de São Paulo e o chefe de Redação na época tinham sido

Zé Hamilton – De certa maneira, é uma herança que vem desde os tempos de Realidade, pois essa direção orienta os repórteres a fazerem reportagens de longo curso, de profundidade. Como a Realidade fazia em revista, o Globo Rural faz na televisão. Mas o Globo Rural é muito pouco visto por jornalistas. As críticas são frágeis e o preconceito grande porque o jornalista não acorda cedo, especialmente no domingo, e não vê o programa. Então ignora, como se não existisse. É um dos defeitos do jornalismo brasileiro. O que a Redação não fica sabendo não existe. Os jornais brasileiros não conhecem o País. É Rio, São Paulo, no máximo, Belo Horizonte e Brasília. O Globo Rural vai em outra linha e o reflexo são os prêmios que ganhamos. O Globo Rural é o programa mais premiado da televisão hoje, já tendo abocanhado os principais prêmios da tv e da imprensa nacionais. JORNAL DA ABI – COM ESSA VISÃO, SÃO OS BONS REPÓRTERES QUE FAZEM A DIFERENÇA NO GLOBO RURAL?

JORNAL DA ABI – COMO FOI RECONSTITUIR A TRAJETÓRIA DOS TROPEIROS, REALIZAR ESSA AVENTURA?PORTA

Jorge – A idéia da pauta era muito antiga e partiu do Humberto. Era um grande sonho dele reconstituir e mostrar como eram essas viagens que aconteciam do Rio Grande do Sul até São Paulo há séculos. Por ser sitiante na região de Sorocaba, sempre ouvia essas histórias, como as pessoas vinham montadas, traziam mulas e produtos. Depois de 26 anos, houve a realização do sonho. A reportagem começa fora do Brasil, na Argentina. Fomos buscar a

da Realidade. Eram o Paulo Patarra, falecido recentemente, e o Luís Fernando Mercadante. Além deles, estavam na Redação em 1980 o Eurico Andrade, que foi repórter de Realidade, o Woile Guimarães, secretário de Redação de Realidade, o Zé Hamilton Ribeiro chegou um ano depois, como o Carlos Azevedo, que também foi repórter da revista. Eu e o Gabriel Romeiro, chefe de Redação do Globo Rural, éramos focas na revista. Aqui, até quem não participou da revista acabou se apaixonando pela reportagem em profundidade, a alma do jornalismo, como é o caso do Lucas Battaglin, chefe de reportagem. O Globo Rural foi, sem trocadilho, o campo onde pôde ser praticada a grande reportagem, adaptada, claro, para a televisão. Além do envolvimento do repórter com o universo que ele está tentando retratar há muito espaço para o ser humano, como disse o Zé. É uma influência benéfica. Até hoje praticamos quase o mesmo estilo de jornalismo “fundamentalista” e o principal beneficiado é o público.

Uma das dificuldades enfrentadas pela produção foi o de encontrar caminhos para fazer toda a viagem em estrada de terra, já que não existia asfalto no tempo dos tropeiros.

Zé Hamilton – Se há uma área no jornalismo brasileiro em que não há carência é a de bons repórteres. Só que para fazerem bem feito seu trabalho precisam de empresas e chefes que banquem as reportagens. O jornalismo de qualidade deve dar apoio na criação, retaguarda na Redação. O repórter não é um lobo solitário. Quem pensa assim cai numa armadilha. O repórter é como o revestimento de uma estrutura maior. Ele precisa de tempo e condições para trabalhar, ir atrás da notícia. Isso é dado pela chefia e pela visão da empresa. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

7


ARTIGO

Abreu e Lima: um brasileiro que se destacou no exército de Bolívar WWW.DOMINIOPUBLICO.GOV.BR/COLEÇÃO FRANCISCO RODRIGUES

MÁRIO AUGUSTO J AKOBSKIND

8

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

REPRODUÇÃO

A História brasileira está repleta de personagens importantes para a nacionalidade que ficaram absolutamente relegados a um segundo plano. Uma destas figuras é o General Jose Inácio de Abreu e Lima, mais conhecido como Abreu e Lima, um pernambucano que participou ativamente do Exército Libertador de Simon Bolívar nas campanhas de independência da Venezuela, Colômbia, Equador e Peru, entre 1818 e 1832, tendo alcançado a Chefia do Estado-Maior do Exército bolivariano e recebido a patente de general. No fim dos anos 40, quando era Governador de Pernambuco, Barbosa Lima Sobrinho homenageou esta figura histórica precursora do ideário da integração sul-americana, tão em voga na atualidade, mudando o nome do distrito de Maricota para Abreu e Lima, hoje Município. Neste terceiro milênio, Abreu e Lima voltou a ser apresentado aos brasileiros, desta vez pelo Presidente da República Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez, que em várias oportunidades lembrou o General no contexto histórico de Bolívar e, no acordo petrolífero entre a Petrobras e a PDVSA (a estatal venezuelana de petróleo), empenhou-se no sentido de que a refinaria que está sendo erguida se localizasse exatamente no Município de Abreu e Lima. Abreu e Lima nasceu em 1794. Em seus 75 anos de vida – morreu em 1869 —, destacou-se como militar libertador e também como autor de vários livros, entre os quais o Compêndio de História do Brasil (1843), contando o período que vai do descobrimento até o ato da coroação e sagração de D. Pedro II. Em 1855, publicou O socialismo* – primeiro livro no Brasil sobre o tema,

General Abreu e Lima em dois momentos: o jovem herói do exército de Simon Bolívar e o intelectual que enfrentou o clero, numa foto pouco antes de seu passamento.

reeditado em 1979 pela Paz e Terra, com prefácio de Barbosa Lima Sobrinho. Este, movido de premonição, começava o texto afirmando que, “no dia em que o Brasil se interessar realmente por seu relacionamento com as repúblicas da América espanhola, Abreu e Lima conquistará a importância que merece na História de seu País”. No fim da vida, manteve uma polêmica tão grande com o clero pernambucano, na defesa da liberdade de culto dos protestantes, que foi impedido de ser sepultado em um cemitério público e acabou enterrado em um cemitério anglicano, em Santo Amaro. Filho natural do ex-padre José Inácio de Abreu e Lima, mais conhecido como Padre Roma, um líder atuante na Revolução Pernambucana de 1817, Abreu e Lima cursou a Academia Militar do Rio de

Janeiro (1812-1816), saindo como capitão da artilharia e chegando a general. Preso em Recife, em 1816, acusado de insubordinação, responsável por desordem e por aderir à rebelião pernambucana, foi enviado à Bahia para cumprir pena, sendo obrigado a presenciar a execução de seu pai por fuzilamento, condenado por conspirar na Revolução de 1817. Conseguindo fugir da prisão graças à Maçonaria, da qual era adepto, Abreu e Lima começou seu périplo pelo exterior, indo inicialmente para os Estados Unidos e, em se-

guida, para a Venezuela – onde, com a morte de Bolívar, incompatibilizou-se com os detentores do poder. Antes de voltar ao Brasil, Abreu e Lima passou ainda pela Europa. No retorno, filiou-se ao Partido Caramuru, que, segundo Barbosa Lima Sobrinho, aparentemente defendia a recondução de Dom Pedro I ao trono a que havia renunciado. Esta contradição, segundo Barbosa Lima, se deveu ao fato de Abreu e Lima ter considerado que esta seria a melhor forma de evitar a desagregação do País, não compreendendo que os chefes da Regência defendiam os mesmos propósitos. Por estas e outras, Abreu e Lima volta com toda a força à atualidade neste terceiro milênio. A Casa da América Latina criou recentemente a Medalha Abreu e Lima, que começou a ser entregue, uma vez por ano a cada 1º de setembro, a figuras que tenham ajudado a luta internacionalista de integração entre os povos latino-americanos. Os primeiros cinco agraciados foram João Pedro Stédile, Modesto da Silveira, Neiva Moreira, Zuleide Faria de Mello e Fidel Castro. (*) Baseado no socialismo cristão. Não há indícios de que tenha chegado a ler as obras de Karl Marx.

Mário Augusto Jakobskind é Conselheiro da ABI, correspondente do jornal uruguaio Brecha e colunista dos portais Fazendo Média (www.fazendomedia.com) e Direto da Redação (www.diretodaredacao.com)


Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

9


PROCÓPIO MINEIRO: ELE FEZ OS TRÊS MELHORES TEXTOS SOBRE OS NOSSOS 100 ANOS Redator da Imprensa Oficial do Estado do Rio e jornalista com presença destacada em veículos impressos e eletrônicos, ele produziu sem alarde para O Prelo, revista da IO, após um mergulho no acervo da Bi-

blioteca da ABI e em outras fontes, três matérias exemplares sobre o centenário da Casa. São estes textos que o Jornal da ABI reproduz, com justificado orgulho, mantendo os títulos e os subtítulos da publicação original.

TEXTO 1

ABI COMEMORA CENTENÁRIO E A VALORIZAÇÃO DO JORNALISMO De associação de classe, entidade transformou-se em instituição destacada na defesa das liberdades A percepção política e profissional de um repórter está na raiz das comemorações do centenário da Associação Brasileira de Imprensa, no dia 7 de abril de 2008. Ao fundar a instituição com apenas oito colegas, em 1908, Gustavo de Lacerda dava conseqüência a suas crenças socialistas – que sentiam a necessidade de aperfeiçoamento e solidariedade de classe entre os jornalistas – e também expressava sua certeza de que o Brasil dependia, para seu desenvolvimento, de uma imprensa forte, moderna e patriótica. Para tanto, julgava imprescindível a existência de uma entidade representativa de todos os profissionais dedicados ao jornalismo. Frágil e até contestada nos primeiros tempos, a associação demonstrou que eram fortes as raízes dos sonhos de seu fundador. A época precisava daquela entidade, pois, em poucos anos, firmou-se ante a categoria e adquiriu peso político e social: tornou-se essencial nos esforços para impor o respeito a uma atividade que vivia entre a rotina de espancamentos, prisões de repórteres e o empastelamento de jornais. Mais do que contribuir para o reconhecimento de uma profissão, a ABI passou a prestar imensos serviços ao País. O jornalista Maurício Azêdo preside a ABI desde 2004 e faz a transição entre o primeiro centenário e o século que agora se inicia. Ele reconhece que os tempos são bem outros. O jornalismo é uma profissão regulamentada, os jornalistas precisam freqüentar a universidade e os jornais são indústrias administradas com as melhores técnicas do mundo dos negócios. Mas Azêdo registra que a arte de informar e opinar continua a ser alvo de incompreen10 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

Gustavo de Lacerda (acima, à esquerda) queria uma imprensa forte, moderna, patriótica. Ao longo de um século, diz Maurício, a ABI lutou por isso e pela liberdade de expressão.

sões e não são poucos os homens de imprensa que hoje, um século depois, são processados ou se tornam até alvos de atentados. Nesta entrevista, Maurício Azêdo analisa o primeiro século da Associação Brasileira de Imprensa e procura vislumbrar os desafios que os novos tempos lançam à entidade e aos que se dedicam a refletir a sociedade e mantê-la bem informada. Enfrentando os desafios Na opinião do Presidente da ABI, a entidade nasceu com objetivos bem delimitados, mas os problemas que surgiram ao longo do tempo – coincidindo com uma época de grandes transformações no País – a fizeram ampliar o foco e chegar a constituir-se numa instituição de referência nacional. “A associação surgiu para defesa do exercício profissional do jornalista, para

o auxílio mútuo da classe e também para atuar no aperfeiçoamento cultural dos jornalistas. Em 1918, a ABI promoveu o I Congresso Brasileiro de Jornalistas, cujas resoluções acentuaram a necessidade de curso superior para os profissionais e se listou, inclusive, uma proposta de currículo. Mas o curso universitário de Jornalismo somente surgiria mais de 30 anos depois, no segundo Governo de Getúlio Vargas, nos anos 50, na estrutura da Faculdade Nacional de Filosofia”, lembra Azêdo. O Presidente assinala que aqueles objetivos iniciais foram ampliados pelas circunstâncias históricas, que forçaram seguidamente a instituição a importantes posicionamentos e ações em defesa da liberdade de imprensa, às vezes em situações de muita violência. “Embora o senso comum não o perceba, o processo histórico brasileiro é marcado pela violência. Lembro, a pro-

Procópio: um mergulho na História da ABI.

pósito, de um artigo de Miguel Neiva, na Última Hora, no período da ditadura. Miguel Neiva era pseudônimo de Moacir Werneck de Castro, hoje com 93 anos e um dos sócios ilustres da ABI. Refletindo sobre nossa evolução, ele recordava, no artigo, a prática de se cortar uma orelha dos rebeldes durante a Sabinada, na Bahia do período regencial, para comprovar sua execução.” No século de existência da ABI, a entidade se viu obrigada a posicionarse corajosamente em muitos momentos, como num evento-símbolo das lutas pela liberdade de imprensa, após a morte do jornalista Vladimir Herzog, em fins de 1975 – na prisão do Doi-Codi, em São Paulo, durante o regime militar. Outro caso exemplar que Maurício Azêdo aponta é de 1912, já nos primeiros tempos da associação. “O Governador de Pernambuco era o General Dantas Barreto, historiador militar, integrante da Academia Brasileira de Letras e também sócio da ABI. Sob seu governo, começaram perseguições a jornalistas e jornais em Pernambuco, sendo a associação solicitada a intervir no caso pelo Diário de Pernambuco. O diplomático Presidente da ABI do momento, João Dunshee de Abranches Moura, era amigo pessoal de Dantas Barreto, mas não titubeou: pôs o caso em debate e expulsou o amigo autoritário – a defesa da liberdade de imprensa prevaleceu”. O episódio, aliás, é narrado pelo próprio Dunshee em seu livro A Fundação Gustavo de Lacerda. Outros casos semelhantes, também registrados nessas linhas, levaram-no a “sentir-se envaidecido” de pertencer a uma categoria capaz de afirmações tão corajosas. Dunshee também fez referências às amizades que perdeu nos altos círculos, por não hesitar em pôr a associação sempre do lado da liberdade e da defesa do exercício profissional do jornalista. “Desde o começo, a ABI sempre teve atitudes claras pela liberdade de imprensa”, destaca Azêdo, ressaltando que “quanto maior a fase de repressão aos


jornais e jornalistas, maior firmeza de atitudes demonstrará a entidade.” Momentos de grandeza Alguns nomes são destacados por Azêdo na história centenária da instituição: Herbert Moses, Prudente de Morais Neto e Barbosa Lima Sobrinho. Moses, que presidiu a instituição por 34 anos, em reeleições sucessivas a partir de 1931 – embora sofresse uma áspera oposição – ligou seu nome à unificação das entidades de classe existentes no começo dos anos 30 e à formação do patrimônio físico da instituição, com a construção da sede, no período entre 1935 e 1941. Azêdo comenta que, apesar de ser politicamente um liberal, Moses dirigiu a instituição na linha de pleno compromisso com a defesa dos direitos dos jornalistas e da liberdade de imprensa. Para o Presidente da ABI, Moses e Barbosa Lima Sobrinho podem ser considerados patriarcas da instituição. “Moses, um construtor sob o aspecto material e Barbosa Lima Sobrinho sedimentou a legenda da ABI quanto à essencial questão da liberdade de imprensa.” Redator-chefe do Diário de Notícias e da Sucursal Rio de O Estado de S. Paulo, Prudente de Morais Neto foi conspirador no golpe militar de 1964, mas depois do Ato Institucional nº 5 tornou-se um inimigo declarado da ditadura. Passou a ser uma voz contra a implacável censura à imprensa imposta pelo Ato Institucional 5 (AI-5). Para o jornalista, o instrumento de dezembro de 1968 era uma “antilei”. “O episódio da morte de Vladimir Herzog, em 1975, encontrou, à frente da ABI, essa figura de alta respeitabilidade moral e grande coragem, uma coragem sem bravatas. Prudente de Morais Neto levou a instituição a uma posição muito forte de resistência ao regime militar. Barbosa Lima Sobrinho deu seqüência a esse movimento ao voltar pela terceira vez à presidência, em 1978, quase cinqüenta anos depois de seu segundo mandato, em 1929-31”, lembra Azêdo. Aureolado por sua marcante biografia profissional, política e intelectual, Barbosa Lima Sobrinho ampliou a visibilidade da Associação Brasileira de Imprensa como uma instituição comprometida com a liberdade de imprensa e, conseqüentemente, com as liberdades públicas no País, num período de absoluto desrespeito aos direitos básicos da cidadania. Além de editor do Jornal do Brasil, deputado e governador de Pernambuco, Presidente da Academia Brasileira de Letras e Presidente do Conselho Administrativo da ABI, ele foi candidato a vice-presidente da República em 1973, na chapa com Ulisses Guimarães, na chamada anticandidatura das oposições à ditadura. Luta permanente E os desafios estão sempre presentes. Os tempos avançam, mas a atividade de

A ABI vagou pela cidade até à gestão de Moses, que começa aqui a obra da sede atual.

imprensa não consegue evitar incompreensões nem a necessidade de aperfeiçoamentos da própria prática profissional e de seu relacionamento com a sociedade. No momento, a contestação de diversos artigos da Lei de Imprensa – herdada do regime militar – e uma série de processos judiciais contra jornais e uma jornalista tomam a atenção de diversos segmentos sociais. O Ministro Ayres Britto concedeu

liminar que revoga artigos com “viés autoritários” da Lei de Imprensa e o plenário da Corte confirmou a medida desde o final de fevereiro. Quanto aos processos – abertos com base nessa lei –, contrapõem a Igreja Universal do Reino de Deus, também dona de meios de comunicação (tv, rádios e jornais) a diversos diários, como a Folha de S. Paulo, A Tarde, O Globo e o Extra e à jornalista Elvira Lobato, da

TEXTO 2

IMPRENSA: UM AGENTE DA HISTÓRIA Ao pregar insistentemente a criação de uma entidade representativa dos homens de imprensa e conseguir realizar a idéia, em 7 de abril de 1908, o mulato catarinense Gustavo de Lacerda (1853-1909) movia-se por sentimentos eminentemente políticos: desejava o aperfeiçoamento profissional, para que o jornalista (“proletário intelectual”, como definia) e os jornais cumprissem, com especial competência, uma missão civilizadora em benefício da Pátria. Esta relação entre o papel do jornalismo e o desenvolvimento do País era uma percepção antiga no meio profissional. Não tinha sido muito diferente a preocupação de um Hipólito José da Costa, que, exatamente um século antes, em junho de 1808, fundara seu Correio Braziliense, o primeiro periódico brasileiro, significativamente nascido no exílio londrino. Hipólito queria, basicamente, descolonizar a cabeça dos brasileiros para impulsionar o progresso, e Gustavo de Lacerda sonhava com

jornais e jornalistas bem preparados e unidos, exercendo, pelas idéias, um papel dinâmico no desenvolvimento brasileiro. Oriundo do meio militar – expulso da Academia Militar, alistara-se como soldado e chegara a sargento –, Gustavo de Lacerda tornou-se repórter do jornal O País, atuando como setorista na Prefeitura do Distrito Federal – na época, o Rio de Janeiro. Ainda jovem, se tornou socialista, comprovando a curiosidade intelectual que o fazia acompanhar a agitação esquerdista na Europa e assumir-se publicamente como identificado com pensamentos considerados inaceitáveis por aqui. Foi envolvido com amigos do meio operário também simpáticos ao socialismo e aos movimentos sindicais. Viu no jornalismo a arma do esclarecimento nacional, mas não se conformou com o ambiente profissional desassistido: com repórteres-proletários, vivendo de salários incertos ou vales

Folha, por reportagem sobre o poderio empresarial e financeiro da entidade protestante. Dezenas de processos foram abertos, simultaneamente, nos mais diferentes pontos do País, por integrantes da Igreja, que reclamam indenizações, alegando prejuízos morais. “Estes processos da Universal tornaram ainda mais urgente a revogação da Lei de Imprensa, pois os processos se escudam nessa legislação, que, como se sabe, colide com preceitos constitucionais”, acredita Maurício Azêdo. “A Associação Brasileira de Imprensa vem se pronunciando sobre este caso, ressaltando que as características das ações revelam um objetivo claro de intimidar jornais e jornalistas. Adotaram até mesmo uma estratégia judicial para dificultar a defesa dos meios de comunicação, dando entrada em processos idênticos em diversos locais, em geral distantes, nos mais diversos Estados do País. Somente contra a Folha de S. Paulo são 55 ações em 19 Estados e 47 Municípios, em muitos dos quais a Folha de S. Paulo sequer circula”, destaca. Para Azêdo, a ABI e a imprensa em geral tiveram uma atitude bem clara “de repúdio à tentativa de restrição à liberdade de imprensa”. “É uma reação saudável, pois não se pode construir um Estado Democrático de Direito permitindo-se que se recorra a práticas do tempo da ditadura”, acentua o Presidente da ABI. Como se vê, em questões de liberdade, a luta não termina jamais. Ontem, como hoje, segundo Maurício Azêdo, “ao analisarmos esta trajetória centenária, vamos constatar que a Associação Brasileira de Imprensa soube sempre estar à altura de seus desafios.”

eventuais, que eram socialmente desconsiderados e freqüentemente agredidos e até presos. “Gustavo era socialista convencido. Essa convicção e a falta de estabilidade econômica do homem que trabalhava, intelectualmente, para o jornal, levaram-no a idear a fundação de uma sociedade de redatores e repórteres que protegesse os respectivos direitos econômicos. A mentalidade, porém, do homem que trabalhava na imprensa, àquela época, estava quase alheia às reivindicações sociais, que também já se faziam em algumas classes, em nosso meio”, comenta Manoel Lourenço de Magalhães, testemunha da fundação da entidade, em seu Gustavo de Lacerda e a Fundação da ABI (Jornal do Commercio, Rodrigues e Cia, Rio de Janeiro, 1954, 29 p). Os grandes nomes da imprensa, desde a época da Independência, tiravam seu sustento de outras atividades: eram políticos, profissionais liberais, padres, fazendeiros, comerciantes, professores, altos burocratas, poetas, romancistas. O jornalismo era apenas o espaço de luta política onde podiam defender suas idéias ou difundir seus trabalhos literários. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

11


Consolidada e representativa, a ABI alcançou prestígio internacional. O Presidente Eisenhower recebeu Moses em Washington. E Fidel veio à Casa após a vitória.

Na época de Gustavo de Lacerda, a luta abolicionista e republicana ainda repercutia na atuação jornalística marcante dos nomes do momento: Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Ferreira de Araújo, Medeiros e Albuquerque, Alcindo Guanabara, Joaquim Serra e, através de obras literárias estampadas na imprensa, algumas com sabor político, nomes como José de Alencar, Machado de Assis, Coelho Neto, Olavo Bilac, Euclides da Cunha – todos também jornalistas e todos vivendo do que ganhavam em outras atividades. Gustavo de Lacerda expressou a preocupação da profissionalização da atividade jornalística, a partir de seus ideais socialistas. Assim, o sonho de uma entidade profissional dos homens da imprensa envolveu em seus pensamentos, simultaneamente (para ser realizada mais de 40 anos depois), a criação de uma escola de Jornalismo, capaz de formar profissionais específicos para a atividade. A fundação do primeiro sindicato profissional do Rio de Janeiro, o Sindicato dos Linotipistas, que passaram a ter os direitos trabalhistas respeitados e pagamento em dia, foi combustível para os ideais do jornalista. “Para o pessoal da redação não há pagamento e, às vezes, nem o minguado vale. É essa força, dizia-me ele, que os linotipistas conseguiram com o seu sindicato, que os meus companheiros de redação não compreendem”, relata Manoel Lourenço de Magalhães, lembrando-se das queixas de Gustavo de Lacerda.

12 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

Além do exemplo dos linotipistas, talvez se devesse também especular algo como o dos literatos, que, bem antes, em 1897, sob a liderança do consagrado escritor e também jornalista Machado de Assis, fundaram a Academia Brasileira de Letras, imediatamente um foco de influência social e política, além de espaço articulador e protetor da atividade literária. A fundação Afinal, em 7 de abril de 1908, Gustavo de Lacerda e apenas oito valentes companheiros fundam a Associação de Imprensa, mais tarde definitivamente chamada de Associação Brasileira de Imprensa-ABI. Três são seus colegas do próprio O País, dois do Jornal do Brasil, um do Correio da Manhã, outro do Jornal do Comércio e o último, da Gazeta de Notícias. Todos o elegem, imediatamente, presidente, cargo que exercerá nos 17 meses seguintes, até morrer. A entidade subsiste com tenacidade e muitos problemas e não falta quem lhe preveja a rápida extinção, quando um grupo de associados decide exigir a um colega de profissão – daqueles que não precisavam do salário da redação para sobreviver – o cumprimento da palavra que empenhara a Gustavo de Lacerda. Tratava-se do político e diplomata – e jornalista – João Dunshee de Abranches Moura, colunista e editor eventual de O País. Amigo e admirador de Gustavo de Lacerda, a quem definirá como “grande visionário do jornalismo brasileiro na nobre cruzada recém-iniciada pela emancipação profissional, preparo técnico, cultura cívica e intelectiva e amparo social”, Dunshee recusara o convite para filiar-se à associação, devido a seus múltiplos compromissos profissionais e eleitorais. Mas prometera ao colega que consideraria um dever profissional e de amizade ajudar a entidade, sempre que ela precisasse. Foi essa palavra de honra que, na hora mais amarga, os associados lembraram a Dunshee, meses após a morte do fundador.

O então deputado federal pelo Maranhão reconheceu a palavra dada ao amigo desaparecido e deixou-se eleger novo Presidente da Associação de Imprensa. “Recebendo de meus colegas de Diretoria a herança espiritual de Gustavo de Lacerda, senti o dever imperioso, como seu sucessor, de reafirmar as diretrizes que me inspiravam, fazendo uma verdadeira profissão de fé. (...) Homem de imprensa, (...) se não tenho sido um jornalista de raça, provenho de uma raça de jornalistas, que três gerações sucessivas não puderam ainda desviar da vida ingrata dos prelos. (...) Eu trago o vício no sangue: sou um vicioso hereditário”, narrará, quase 30 anos depois, Dunshee de Abranches, em A Fundação Gustavo de Lacerda – Reminiscências dos primeiros dias da Associação Brasileira de Imprensa. “Nos primórdios da existência da ABI. foi Dunshee de Abranches, terceiro presidente, quem evitou, com dedicação e estoicismo, o seu desaparecimento. Teve Gustavo de Lacerda a intuição de como ele viria a ser útil à Associação. Daí sempre recomendar aos seus companheiros de fundação e dos primeiros dias de vida da ABI o nome de Dunsheee de Abranches como um elemento indispensável à sua manutenção”, conta Manoel Lourenço de Magalhães. Gustavo de Lacerda e Dunshee certamente foram amigos fraternos, apesar das diferenças de origens e de sorte financeira, e compartilhavam da mesma visão progressista sobre o papel do jornalismo e do jornalista. “Gustavo de Lacerda vivia obcecado pelo ideal generoso e nobre de tornar a sua classe próspera, feliz, prestigiosa e útil. (...) não cessava um instante na sua propaganda de conquistar entre nós para ‘os trabalhadores do pensamento escrito’, como chamava os que viviam dos prelos, uma posição condigna e à altura dos sacrifícios em que diariamente se esgotavam para ‘fornecer o pão do espírito a um país de analfabetos como ainda era infelizmente o nosso”, destacava Dunshee de Abranches.

A consolidação Depois da morte do fundador, Dunshee de Abranches foi o nome de consenso para dar continuidade à obra. O político maranhense confirmou a intuição de Gustavo de Lacerda: era o homem certo para a situação crítica da entidade. Deputado federal, colaborador diplomático e amigo do chanceler Barão de Rio Branco, integrante da Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal, colunista e eventual editor do prestigioso jornal O País, Dunshee de Abranches, em dois períodos presidenciais consecutivos (1910-1913), saneou as finanças da entidade, ampliou seu corpo de filiados, e, sobretudo, fez com que a associação tivesse destaque no cenário político do Rio e do País. Promoveu reuniões com autoridades brasileiras e estrangeiras e, por algumas vezes, não se furtou a convocar os colegas para confrontos à mão ou com exibição de armas contra autoridades e capangas que ameaçavam jornais e jornalistas. Impôs respeito. Dois fatos comprovam a rápida consolidação da ABI. O primeiro, os apelos que logo chegaram de todo o País para que a entidade levasse ao Governo e à Justiça os numerosos casos de desrespeito ao exercício profissional dos jornalistas e aos diversos casos de empastelamento de diários. Era uma época, como dizia Dunshee, em que a República ainda não refreara costumes de truculência policial e “mandonismos” locais herdados do Império. A imprensa brasileira reconhecia, assim, a importância da nova entidade, que se beneficiava, sem dúvida, da representatividade política de seu presidente. O segundo fato refere-se a um evento de raro alcance: a ABI promoveu, com pleno sucesso, a I Conferência Pan-Americana de Jornalistas, em 1913, reunindo, no Rio, centenas de jornalistas de todo o continente. Mais que um evento profissional, era uma proposta política, pois reivindicava que os jornalistas do continente precisavam estabelecer o


diálogo entre seus povos, já que viviam de costas uns para os outros e, em conjunto, voltados todos para a Europa. Ao dar sua aprovação entusiasmada à conferência, Paulo Barreto descreveu bem a situação, em artigo na Gazeta de Notícias, que então dirigia, como recorda Dunshee de Abranches em seu relato. “Somos nesta parte do continente assaz bárbaros”, dizia Paulo Barreto. A ABI estabelecia seu magnetismo. Dos jornalistas e diretores de jornais vinham apoios: Jornal do Brasil, O País, Correio da Manhã, Gazeta da Tarde, A Notícia, Tribuna, A Noite – Irineu Marinho, Antônio Azeredo, Medeiros e Albuquerque, Victor Silveira, Leão Velloso, Belisário de Souza Júnior e Fernando Mendes de Almeida. Para planejar o evento, criaram-se uma Comissão Organizadora, presidida por Félix Pacheco, e um Conselho Geral, que talvez tenha definido, de vez, a vocação aglutinadora da entidade, pois que dela faziam parte Rui Barbosa, já Presidente da Academia Brasileira de Letras, e eterno jornalista como os demais integrantes, entre os quais o novo chanceler Lauro Müller, o ministro do Interior Rivadávia Corrêa, o Conde de Afonso Celso, José Carlos Rodrigues, Alcindo Guanabara, o Presidente da Câmara dos Deputados Sabino Barroso, Sílvio Romero, Olavo Bilac, Coelho Neto, Júlio de Mesquita. Mais tarde, um terceiro ponto seria de grande valia para o equilíbrio financeiro da entidade: a Câmara aprovou um projeto do deputado Dunshee, incluindo a ABI, com o valor anual de 20 contos de réis, entre as entidades sem fins lucrativos beneficiárias de auxílio decorrente da loteria. Casa do Jornalista Os anos 30 marcariam um novo passo para a ABI – reconhecida, prestigiosa, mas ainda sem sede. Barbosa Lima Sobrinho, que viria a presidir a instituição pela terceira vez, de 1980 a 2000, fora Presidente nos períodos 1926-27 e 1930-31, quando saneara as finanças da entidade – abaladas no correr dos anos 20. Conseguira duas outras proezas: confirmar a doação, pelo governo municipal, de um terreno destinado à construção da sede própria da entidade, no Castelo, e a fusão de duas outras entidades com a ABI, unificando a representação da categoria. Herbert Moses (1931-1964) herdou essa situação propícia. Advogado, homem de negócios, ligado a Irineu Marinho, diretor de A Noite e de O Globo, editor da revista cultural da empresa Souza Cruz, a Moses coube realizar o sonho de Gustavo de Lacerda. A Associação viu transformar-se em realidade a Casa do Jornalista ou o Palácio da Imprensa, com as boas relações de Herbert Moses com autoridades da Revolução de 30 – tanto as federais quanto as municipais. Do Prefeito Pedro Ernesto o Presidente da ABI teve a confirmação da doação do terreno no Castelo, e do Presidente Getúlio Vargas, com

A resistência da ABI à ditadura gerou ódio na direita terrorista, que detonou poderosa bomba no andar da Diretoria.

a apadrinhamento de Osvaldo Aranha, os 6.000 contos de réis que ergueram o que se considera o primeiro prédio modernista do Rio de Janeiro – obra dos irmãos Milton e Marcello Roberto. Andares com grandes espaços livres e a inovação dos pára-sóis, que permitem a iluminação sem a penetração dos raios solares, foram a marca da edificação. Em 1938 a sede foi inaugurada, embora as obras continuem até 1941, quando uma grande solenidade, reunindo jornalistas e autoridades, marca a entrega final da Casa do Jornalista ou o Palácio da Imprensa. O então já septuagenário Dunshee de Abranches, em seu livro sobre Gustavo de Lacerda e os primeiros tempos da associação, comemora, em 1938, que a entidade tenha se tornado um pilar da atividade jornalística no Brasil, então “instalada em um suntuoso palácio que a cada momento atesta sua grandeza”. E constata ainda que os “seus ideais e seus fins foram tão nobres, tão altos e tão justos, que, por um fenômeno digno de nota, foi ela encontrando, progressivamente, desde o seu obscuro início até seu presente apogeu, em cada nova diretoria um sangue mais novo e mais ardoroso, de molde a prepará-la solidamente para seus futuros destinos em nossa Pátria.” E Dunshee vai além: “A Fundação Gustavo de Lacerda, de uma simples e modesta sociedade classista, transformou-se a pouco e pouco em um órgão ativo, eficiente e necessário à defesa e ao encaminhamento dos mais graves e importantes problemas nacionais. O seu concurso passou a ser assíduo e indispensável à boa marcha da pública administração.”

TEXTO 3

CAMPO NEUTRO DA LIBERDADE Dois aspectos caracterizaram a trajetória representativa da ABI. O primeiro, sua capacidade de representar a categoria dos profissionais de imprensa diante da sociedade, sobrepondo-se, com habilidade, aos particularismos partidários e às facções de opinião – assumindo-se como um campo neutro, como pedia Gustavo de Lacerda, onde podem conviver todos os homens de imprensa. O segundo aspecto refere-se a seu compromisso fundamental: lutar pela liberdade de imprensa. O primeiro século da instituição foi pródigo em momentos de conflitos relacionados com a liberdade de imprensa, sobretudo nos tempos da República Velha (1889-1930) e no período do regime militar (1964-1985). Eventuais períodos de boa convivência com o mundo político não afastaram a ABI de seu compromisso fundamental. Exemplos marcantes são Herbert Moses, que nunca se omitiu em defender jornais e jornalistas, mesmo contando com altas amizades no poder público do período getulista, e, já nos anos 70, Prudente de Morais Neto, um conspirador de 1964, que, investido na presidência da ABI, não hesitou em denunciar o regime militar em diversas ocasiões, especialmente no caso do assassinato de Vladimir Herzog, na prisão, em São Paulo. Neutra para a convivência dos profissionais associados, a entidade será

eterna guerreira na defesa da liberdade de imprensa. No Conselho Administrativo de 1974 a 1977, cinqüenta anos depois de sua primeira presidência na ABI, Barbosa Lima Sobrinho voltou ao cargo em 1978, para, seguidamente reeleito, permanecer até à morte, em julho de 2000. Ele e Moses respondem por 60 anos de presidências, nestes primeiros cem anos da instituição. O último período de Barbosa Lima Sobrinho correspondeu à fase final do regime militar, quando a já programada redemocratização sofreu surtos de rebeldia interna por setores radicais militares. Em um ciclo de atentados, a própria ABI foi alvo de bombas, que destruíram instalações em 1976. A instituição se tornou um centro de defesa não apenas da liberdade de imprensa, mas das liberdades públicas. É a afirmação da consolidação da entidade: mais que uma organização representativa de uma classe profissional, tornara-se, no correr das lutas e pela coerência, uma instituição nacional – tal como sonhara Gustavo de Lacerda, no começo dessa história, ao pressentir uma Casa do Jornalista que seria “o grande templo da Civilização e da Liberdade da Pátria”. Fonte: O Prelo, Revista de Cultura da Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, ano VI, nº 17, Março/Abril/Maio 2008, páginas 16 a 21. A Redação do Jornal da ABI fez num ponto ou outro adaptações da publicação original às suas normas de editoração.

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

13


Aconteceu na ABI Mais uma aula de Arquitetura na sede da ABI

Num filmaço de John Ford a lenda supera a realidade Além de O Homem Que Matou o Facínora, do mestre do western, ciclo da ABI mostrou obras de Alan Pakula, Wilder e Antonioni. Um dos muitos clássicos do supremo mestre do western, John Ford, o celebrado O Homem Que Matou o Facínora, foi um dos pratos de sustança dos cinéfilos na programação de setembro do Cine ABI, no ciclo em homenagem ao centenário da Casa, planejado pelo jornalista Dejean Magno Pellegrin, um dos fundadores da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e sócio da ABI, e conduzido pelo Diretor de Cultura e Lazer Jesus Chediak. Além dessa criação de 1962 de John Ford, que mostra como o jornalismo pode preferir a lenda à realidade, o ciclo A Imprensa no Cinema apresentou mais duas importantes obras que têm p jornalismo como pano de fundo: Todos os Homens do Presidente, de Alan J. Pakula, e O Passageiro: Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni. A cena inicial de O Homem Que Matou o Facínora mostra o Senador Ransom Stoddard (James Stewart) e sua mulher Hallie (Vera Miles) chegando de trem a Shinbone para o funeral de um antigo amigo, o caubói Tom Doniphon (John Wayne). Entrevistado por um jovem repórter, Ransom começa a recordar o tempo em que morava na cidade e era um advogado empenhado em enquadrar o pistoleiro Liberty Valance (Lee

Marvin) nos rigores da lei, enquanto Tom Doniphon, impetuoso, queria resolver a parada a tiro. Durante a primeira viagem à cidade, vindo do Leste, Ransom fora assaltado e espancado na diligência. Doniphon, um hábil vaqueiro, leva-o para ser cuidado por sua namorada, Hallie, e logo Ransom, então um advogado recém-formado, descobre que foi Liberty Valance, famoso pistoleiro, quem o atacou. Percebe também que uma arma ainda simboliza a lei na região, que anseia por um homem progressista. Assim, decide lutar para prender o bandido usando apenas a lei. Do que ocorre na verdade e o que vira mito no Oeste – e do que se faz em relação à informação correta tantos anos depois – é do que trata este grande clássico do mestre John Ford, o único cineasta a ganhar quatro Oscar de melhor direção na História do cinema, com os filmes O Delator, Vinhas da Ira, Como Era Verde o Meu V ale e Depois do Vendaval. O jornalista Paulo Almeida, freqüentador do Cine ABI, aplaudiu o filme como um dos melhores do gênero faroeste: – Foi ótimo rever este clássico com direção fantástica de John Ford. O roteiro e fotografia também são admiráveis. O personagem é uma figura idealista, que luta para combater a violência através das leis e da Justiça.

Todos os Homens de Nixon derrubaram o próprio Os repórteres Carl Bernstein (Dustin Hoffman) e Bob Woodward (Robert Redford), jornalistas do Washington Post, investigam a invasão da sede do Partido Democrata, ocorrida durante a campanha presidencial nos Estados Unidos, em 1972. A reportagem traz à tona uma grande rede de espionagem e corrupção e provoca a renúncia do Presidente Richard Nixon, do Partido Republicano, em 1974, no famoso escândalo Watergate. Esta é a trama de Todos os Homens do Presidente (All the President’s men), baseado nos fatos reais depois descritos em livro por Woodward, que, juntamente com Bernstein, conquistou o Prêmio Pulitzer pelo relato dos 26 meses de investigação do caso. O filme intercala cenas históricas com as dirigidas por Alan J. Pakula e conquistou os Oscar de melhor ator coadjuvante (Jason Robards), direção de arte, som e roteiro. O aposentado José Luiz da Silva, pela primeira vez na platéia do Cine ABI, elogiou o bom desempenho do elenco, em especial da dupla Hoffman e Redford: – 14 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

É muito bom rever este filme, que ilustra com clareza a queda do Presidente Nixon. O grande trunfo fica por conta da atuação dos protagonistas. O espectador ganha a compreensão da estrutura de trabalho dos repórteres e o dia-adia da redação, em meio à sucessão de fatos que originaram o escândalo. O cinéfilo Paulo Santos destacou o contexto jornalístico do filme e o papel da imprensa na construção da ética nas sociedades democráticas: – Os Estados Unidos, sempre com pretensões ambiciosas de ser o mandatário do mundo, à época curvou-se diante de pessoas que têm o jornalismo no dna. Paulo acrescenta que a imprensa brasileira tem conseguido superar tentativas de obstrução ao seu trabalho: – Em hipótese alguma o jornalismo deve aceitar interferências, como a quebra do sigilo da fonte proposta pelo Ministro Nélson Jobim. Apesar da ausência de Fernando Barbosa Lima e Fausto Wolff, há ainda grandes nomes nas trincheiras do jornalismo, como Hélio Fernandes e Elio Gaspari.

Mas as circunstâncias contraditórias que cercam o drama levam o personagem a vencer utilizando métodos que ele pessoalmente desvalorizava. Também fã dos filmes de John Ford, o motorista Paulo Roberto Wanderley prestigiou pela primeira vez o Cine ABI, a convite de uma amiga, e comentou: – Várias pessoas já tinham recomendado muito este espaço e aproveitei uma folga no trabalho para assistir ao filme. Não tinha visto O Homem Que Matou o Facínora e o que mais me surpreendeu foi a forma como o diretor mostrou o papel fundamental da educação e da democracia na formação da sociedade norteamericana. Também destaco a postura imparcial do velho jornalista vivido por Edmond O’Brien. Espero retornar sempre ao Cine ABI. Programada para terminar em 11 de setembro com a exibição desse filme, a mostra A Imprensa no Cinema continua em cartaz, com mais filmes que têm o jornalismo no centro da trama.

Mais um filme-cabeça do mestre Antonioni A mostra A Imprensa no Cinema teve prosseguimento no dia 25 de setembro com a apresentação de O Passageiro: – Profissão Repórter, mais um filme-cabeça de Michelangelo Antonioni, produzido em 1975. Na trama, o repórter David Locke (Jack Nicholson) é enviado para o Norte da África para investigar e relatar movimentos de guerrilha. Entediado com sua vida pessoal, ele entra em crise existencial e depara com uma oportunidade de mudar radicalmente seu destino: trocar de identidade com um desconhecido que morre no quarto de hotel ao lado do seu. O que Locke não sabe é que, ao assumir a vida do inglês Robertson, ele entra na pele de um traficante de armas que sustenta a guerrilha na África. Ao cumprir a agenda do morto, o jornalista viaja pela Europa e a África, negociando com criminosos, ao mesmo tempo em que se apaixona por uma jovem arquiteta (Maria Schneider), que o acompanha em sua nova vida.

Alunos do 6º período de Arquitetura da Universidade Federal de Santa Catarina visitaram no dia 9 de setembro o Edifício Herbert Moses, sede da ABI e referência fundamental da arquitetura contemporânea. O projeto arquitetônico do prédio foi concebido pelos irmãos Mílton e Marcelo Roberto, jovens arquitetos recém-formados, e construído em três anos, de 1936 a 1939, mas não perdeu a modernidade. O Professor José Kos informou que o objetivo da excursão de seus alunos é percorrer construções que marcaram o modernismo no País: – Já estivemos no Museu de Arte Moderna, no prédio do Ministério da Educação, no Aterro do Flamengo, na Ilha do Fundão, no Maracanã, no Paço Imperial e, agora, no edifício da ABI, que impressiona pelas inovações da fachada, com um tipo de arquitetura sem ornamentos e prática, com o brise-soleil que quebra a incidência direta dos raios solares no prédio, sem prejudicar a luminosidade. Fernanda Vargas, uma das alunas da turma, destacou o aspecto externo da construção: – Achei muito interessante a fachada de vidro, que antecede o brisesoleil, criando espaços livres que percorrem todo o prédio. Também gostei do hall de entrada, que combina diferentes materiais, como concreto, madeira e metal. Gladys Neves, professora de Arquitetura Brasileira da UFSC, falou da importância da construção no cenário do modernismo nacional: – Nesta disciplina, nós estudamos a arquitetura do século XX, na qual o modernismo é o principal momento. Os irmãos Milton e Marcelo Roberto são grandes expoentes deste movimento. Ao projetar o prédio da ABI, com inovações como o brise-soleil, os amplos espaços de circulação nos andares e a planta livre, eles marcaram a arquitetura moderna no País.

Conselho aprova novas filiações Em sua reunião de setembro, realizada no dia 30, o Conselho Deliberativo da ABI aprovou 15 propostas de filiação, oito na categoria Efetivo e sete na de Colaborador. O Conselho deferiu também a proposta de transferência do associado Clodomiro Francisco Carneiro de Colaborador para Efetivo. Para a categoria Efetivo foram aceitas as propostas de Ana Maria Rodrigues Aquino, Diogo Afonso Coutinho de Souza, Alfredo João de Menezes Filho, Raimundo Nonato Othelino Filho Parente, Daniel Gomes dos Reis, Maria Inês Ferreira Machado Bitencourt, José Marcelo Antunes Moreira e Alexandro Ferraz de Souza. Para a categoria Colaborador foram aprovadas as propostas de Sérgio Alex de Oliveira Landgraf, Ariane Locatelli Avelino, Ângelo Henrique Costa Cuissi, Osmar da Silva, Sérgio Mauro Louzada Fares, Othelino Nova Alves Neto e Jorge Corrêa Geraldo.


“A democracia não pode ser construída com o abandono da memória e da justiça” Cientista político uruguaio revela em conferência na ABI o drama dos direitos humanos em seu país durante a ditadura militar, que se estendeu de 1973 a 1985, e suas implicações no Brasil. POR JOSÉ REINALDO MARQUES

“O debate sobre os direitos humanos e o esclarecimento dos crimes ocorridos durante o regime militar são do interesse não apenas das vítimas e de seus parentes. É um assunto de cidadania. É a mesma história que ocorreu no Brasil e que compete a mim e aos brasileiros. A construção da democracia exige essa política de memória e de justiça, para se afirmar como uma política de direitos humanos.” A declaração é do cientista político e historiador Gerardo Caetano, coordenador da comissão encarregada de investigar os crimes cometidos no Uruguai durante o período ditatorial, de 1973 a 1985, e soou como uma verdadeira “lição do passado”, durante conferência realizada no dia 10 de setembro no Auditório Oscar Guanabarino da ABI, em evento promovido pela Casa em colaboração com o Instituto Cultural Brasil-Uruguai e o Consulado-Geral do Uruguai no Rio de Janeiro. Em sua exposição, Caetano informou que 167 adultos e três crianças seqüestradas durante a ditadura militar no Uruguai até hoje não foram encontradas. Números que poderiam impressionar em qualquer lugar, mas não num país que contabiliza 5.500 presos políticos, o maior número por habitantes na América Latina, e no qual o índice de torturados é alto e “impossível de quantificar”, revelou. – É preciso entender que existe a necessidade desses movimentos de reparação para investigar abusos, desaparecimentos e seqüestros. Sabíamos que haveria resistência, mas a mentira e o silêncio têm limites. Essa política complacente é extremamente imprudente. Estamos promovendo um debate cívico, institucional e político por meio do atual Governo, que resolveu não dar as costas à impunidade, mas esclarecer a verdade. – explicou o cientista político. Em 3.500 páginas, relatos de apenas 5% dos crimes cometidos Professor da Faculdade de Humanidades da Universidade da República do Uruguai e autor de vários livros que analisam a História do Uruguai e da América Latina de modo crítico, Gerardo Caetano assumiu a coordenação da Comissão Provincial pela Memória, a pedido do Presidente Tabaré Vázquez. Em 6 de julho de 2007, o site da Presidência da República do Uruguai publi-

O silêncio em torno dos crimes das ditaduras tem limite, disse o Professor Caetano, que veio do Uruguai especialmente para esse ato.

cou um primeiro relatório das investigações. Com o título Presos Desaparecidos, o relatório tem cinco volumes e mais de 3.500 páginas e foi publicado para “esclarecer o passado”, nas palavras do Presidente Tabaré Vásquez, que disse ainda na ocasião ser “um livro para a memória, para a reflexão, para o compromisso e para todos os uruguaios”. Cada volume reconstitui um pedaço do período tenebroso da História do Uruguai: relatos de pessoas envolvidas na repressão; dados dos presos e desaparecidos; informações sobre a violência que os perseguidos políticos sofreram em países vizinhos – Paraguai, Chile, Bolívia, Argentina e Colômbia; uma compilação de leis e decretos da época da ditadura e denúncias de violação dos direitos humanos; e, finalmente, os resultados da investigação sobre os corpos dos desaparecidos realizada nos anos de 2005 e 2006. Há revelações importantes sobre opositores da ditadura, como os Montoneros e os Tupamaros, e sobre a troca de correspondência entre os Estados Unidos e autoridades diplomáticas sulamericanas. Os dados confirmam a participação do Uruguai na Operação Condor, em que os Governos militares do Cone Sul promoveram ações articuladas para perseguir, prender, seqüestrar e torturar seus opositores em qualquer país da região. Há dois ex-Presidentes presos por esses crimes A divulgação do dossiê ajudou a

identificar e levar à prisão torturadores e dois ex-Presidentes: Juan Maria Bordaberry e Gregorio Álvarez. Porém, muita coisa ainda pode acontecer, já que o processo está apenas no começo. Formada por 250 pessoas, que atuam no Uruguai e em outros países sulamericanos, a comissão analisou até agora apenas 5% dos documentos da Direção de Investigação da Polícia de Buenos Aires-Dipa, que tem um banco de dados com 3,5 milhões de folhas. – Ainda há muito por fazer, mas temos que contribuir com um testamento-cidadão para que todos os indivíduos tenham o direito de conhecer seu passado. Estamos empenhados em fazer justiça sem rancor, mas com a energia necessária para construir o futuro. É um processo que não se encerrará no atual Governo. – esclareceu Caetano. Além de Caetano, a mesa que conduziu o encontro contou com o Presidente da ABI, Maurício Azêdo; o Cônsul-Geral do Uruguai no Rio de Janeiro, Alberto Guani; o Secretário-Geral do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai, Embaixador Nelson Fernández; o Diretor do Centro de Informações das Nações Unidas no Rio de Janeiro-Unic-Rio, Giancarlo Summa; o Professor Enrique Rodríguez Larreta, da Universidade Cândido Mendes; a Presidente de Honra do Instituto Cultural Brasil-Uruguai, Nené Rodríguez; a Presidente-Executiva desse Instituto, jornalista Beatriz Bissio; e o ex-Presidente do Clube de Engenharia Raymundo de Oliveira.

Um exemplo para o Brasil e para a América Latina – A conferência do professor Gerardo Caetano foi uma rara oportunidade para o entendimento das violações dos direitos humanos em toda a América Latina durante o regime militar – afirmou Nené Rodríguez, Presidente de Honra do Instituto Cultural BrasilUruguai. Para ela, outra participação importante na conferência foi a do Professor Enrique Rodríguez Larreta, cujo filho foi seqüestrado pelos militares. Larreta foi um dos líderes da campanha promovida no Uruguai para que houvesse apuração de todos os atos de exceção cometidos pela ditadura e identificação dos responsáveis. Giancarlo Summa, Diretor do Centro de Informações das Nações Unidas, salientou a importância do debate e de se recorrer às comissões de verdade e aos processos penais domésticos, transnacionais ou em países estrangeiros: – Há instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que não ameaçam a estabilidade democrática das nações, o que é uma oportunidade rara para que os países da América Latina possam definir, de forma soberana, como lidar com essa questão de maneira que toda a sociedade possa participar do processo sem medo. O Secretário-Geral do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai, Nelson Fernández, disse que o Parlamento uruguaio aprovou uma lei que permite a volta de cidadãos exilados e acrescentou: – Andamos pelo mundo tentando explicar como criamos uma Frente Ampla, de que maneira conseguimos ter uma Central Única de Trabalhadores. Agora vamos levar anos para dar essa explicação, mas temos que compartilhar a nossa experiência, para contribuirmos com o alcance da democracia em todo o mundo. No fim da conferência, ao se referir à participação do Professor Gerardo Caetano, o Presidente da ABI destacou sua competência no campo das ciências sociais e sua atuação na defesa dos direitos humanos: – Gerardo Caetano desenvolveu um trabalho cuja importância não se limita às fronteiras de seu país; alcança toda a América Latina e a própria comunidade internacional, que enfrenta hoje, como em passado recente, graves agressões aos direitos humanos e contra as pessoas comuns e principalmente contra aqueles que não se submetem à privação da liberdade – disse Maurício Azêdo. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

15


LINGUAGEM ACERVO DA ABL-CEL LISBOA

Vidor fala das agências reguladoras As agências reguladoras sob a ótica da imprensa foi o tema que o jornalista George Vidor abordou no dia 17 de setembro no ciclo de debates Dez Anos de Regulação no Estado do Rio de Janeiro, promovido pela Agetransp, agência responsável pelos serviços públicos concedidos de transportes aquaviários, ferroviários, metroviários e rodoviários estaduais, e realizado no auditório do Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do Rio-DER-RJ. Disse Vidor que a imprensa tem papel fundamental para que “as agências busquem apoio junto à sociedade, á opinião pública, a fim de que possam executar suas atividades e não fiquem como marisco, entre as ondas e o rochedo, apanhando de todos os lados e correndo o risco de enfraquecer e se esvaziar”. Economista de formação, George Vidor estreou no jornalismo em 1969, aos 16 anos, no Correio da Manhã, e nunca mais parou. O estudo de Ciências Políticas e Econômicas e a prática nas redações se uniram e ele se tornou um dos mais respeitados jornalistas na área econômica. Atualmente, Vidor é editorialista de O Globo, em que também assina uma coluna às segundas-feiras, reproduzida, simultaneamente, em outros veículos de comunicação do País. No canal por assinatura Globo News, é comentarista econômico do programa Conta Corrente Especial.

Lula entre o Presidente da Academia Brasileira de Letras, Cícero Sandroni , e o Governador Sérgio Cabral, durante a cerimônia na sede da ABL.

Agora é lei. Em 2009 vamos escrever diferente

Casa da América Latina, um ano e cinco homenagens

Em ato na Academia Brasileira de Letras, o Presidente Lula assinou o decreto que fixa para janeiro próximo o início da vigência do Acordo Ortográfico. Até 2012 – felizmente, segundo muitos – poderão conviver a nova ortografia e a atual.

A Casa da América Latina, presidida pelo engenheiro Raymundo de Oliveira, comemorou seu primeiroaniversário, em 1º de setembro, com o ato de concessão da Medalha Abreu e Lima a cinco personalidades, uma de expressão internacional, o ex-Presidente de Cuba Fidel Castro, e quatro nacionais: João Pedro Stédile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST); Modesto da Silveira, jornalista e advogado de presos políticos durante a ditadura militar; Neiva Moreira, jornalista e ex-parlamentar; e Zuleide Faria de Melo, professora e integrante do Movimento em Defesa da Economia Nacional-Modecon. O evento, na sede da Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos do Estado do Rio de Janeiro-Seaerj, no bairro da Glória, no Rio, contou com a presença da Professora Anita Leocádia Prestes, filha de Luís Carlos Prestes, e autoridades diplomáticas de Cuba, Bolívia e Venezuela, além de jornalistas, professores, estudantes, advogados e economistas. A ABI foi representada pelo Diretor Administrativo Estanislau Alves de Oliveira. Os oradores da noite, e especialmente Raymundo de Oliveira, foram efusivamente aplaudidos ao defender em seus discursos “a integração da América Latina contra eventuais agressões imperialistas”. Eles alertaram também para a necessidade urgente de o continente se unir em defesa de sua soberania.

16 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

Desde a tarde de 29 de setembro é lei: o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor em janeiro próximo, impondo a modificação em pontos essenciais da forma de se escrever uma série de vocábulos. Para consolo dos adversários do Acordo, que não são poucos nem desqualificados – um dos que questionam sua pertinência é o jornalista Carlos Heitor Cony, um dos mais importantes escritores do País —, a atual ortografia poderá conviver com a nova até 2012, quando então valerão em sua plenitude as normas instituídas pelo Acordo. Foi em cerimônia na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto que estabelece o cronograma para a vigência do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O ato aconteceu durante a sessão solene de celebração dos cem anos da morte do escritor Machado de Assis, primeiro Presidente e patrono da Academia, que morreu em 29 de setembro de 1908. Lula chegou à Academia acompanhado do Presidente da ABL, jornalista Cícero Sandroni, do Governador do

Estado do Rio, Sérgio Cabral Filho, e do poeta e acadêmico Ivan Junqueira, 1º Secretário da Casa.. Antes de entrar no salão nobre da Academia, saudou os jornalistas presentes e, ao lado de Sandroni e Cabral, posou para uma foto diante da estátua de Machado de As-

sis, que fica no pátio em frente à entrada principal do Petit Trianon. Além de Lula, Sérgio Cabral e Sandroni, compuseram a mesa que presidiu o ato o Ministro em exercício das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães; o Ministro da Educação,

O ACORDO ORTOGRÁFICO PASSO A PASSO O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi assinado em Lisboa pelos presidentes dos oito países onde a língua portuguesa é o idioma oficial, em 16 de dezembro de 1990, e busca unificar o registro escrito no Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 54, de 18 de abril de 1995, a previsão era de que o tratado começasse a vigorar em 1994 – nessa ocasião, o Timor Leste ainda não havia conquistado sua independência, que só veio a ser consumada em 2002. Em 1996, foi criada a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Dois anos depois, foi assinado em Praia, capital de Cabo Verde, o protocolo modificativo do acordo – pelo Decreto Legislativo nº 120, de 12 de junho de

2002 —, que alterou sua data de vigência. Em 2004, foi assinado outro protocolo modificativo, para incluir a adesão do Timor Leste e reafirmar a entrada em vigor do Acordo Ortográfico a partir de sua ratificação por pelo menos três dos países signatários. Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe são os países que já incorporaram a reforma ortográfica em seu ordenamento jurídico. De acordo com nota divulgada pelo Ministério da Educação, no caso do Brasil, para que a nova norma seja efetivada, além do decreto que organiza e determina a entrada em vigor da nova ortografia, serão assinados outros três decretos: um de promulgação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e dois para promulgar cada um dos dois protocolos modificativos.


Sérgio Haddad; o Ministro da Cultura, Juca Ferreira; e o acadêmico e ex-Ministro da Educação Eduardo Portella. A solenidade contou também com a presença de membros da ABL, entre os quais o ex-Presidente José Sarney e os jornalistas Murilo Melo Filho e Carlos Heitor Cony. Entre as autoridades, compareceram o Senador Paulo Duque (PMDB-RJ) e os cônsules de Portugal, da Itália, do Japão e da Argentina no Rio de Janeiro. Representaram a ABI o Diretor de Jornalismo Benício Medeiros e os Conselheiros Francisco de Paula Freitas, Dácio Malta e Cecília Costa. A locução do evento foi feita pelo jornalista Márcio Gomes, apresentador de telejornais da Rede Globo. Como será Pelo decreto, a partir de janeiro de 2009 e até dezembro de 2012 as duas normas ortográficas (a que está em vigor e a prevista pelo acordo) poderão ser usadas e aceitas como corretas nos exames escolares, vestibulares e concursos públicos, por exemplo. Nos livros didáticos, as novas regras só serão implementadas em 2010, quando todos deverão ser editados de acordo com o regimento da nova ortografia, com exceção de reposições e complementações de programas em curso. O Acordo Ortográfico institui 20 bases de mudança na língua portuguesa, tais como o fim do trema, a supressão de consoantes mudas, novas regras para o uso do hífen, a volta das letras “w”, “k” e “y” ao alfabeto e o fim do acento agudo em palavras como “idéia” e “assembléia”. O Governo brasileiro declara esperar que a reforma contribua para a ampliação da cooperação internacional entre os países de língua portuguesa, a partir do estabelecimento de uma grafia oficial única. Há também a expectativa de que a medida facilite o processo de intercâmbio cultural e científico e a divulgação da literatura escrita no idioma. “Momento histórico” Na abertura da solenidade, o Presidente da ABL enalteceu o trabalho dos filólogos Antônio Houaiss, Austregésilo de Athayde e Evanildo Bechara e disse que a assinatura do Acordo Ortográfico era “um momento histórico para a Academia”. O orador oficial do ato foi Eduardo Portella, que, ao se referir à celebração do centenário da morte de Machado de Assis, ressaltou: – Estamos aqui, diante deste auditório tão qualificado quanto diversificado, para falar da vida. Da resistência da vida frente à História e suas maquinações sucessivas. Não vamos nos ocupar da morte de Joaquim Maria Machado de Assis, que agora completa cem anos. Até porque ela tem sido uma morte cheia de vida. O que caracteriza basicamente o autor de Dom Casmurro é ter construído um conjunto de obra em movimento.

Uma aspiração de Machado O patrono da Academia queria que ela fosse a guardiã do idioma. Na véspera da solenidade, o Presidente da ABL, jornalista Cícero Sandroni, ressaltou que Machado de Assis seria duplamente exaltado no evento: – De um lado, a Academia lhe rende a mais expressiva homenagem neste ano em que celebramos o centenário de sua morte; de outro, a promulgação do Acordo Ortográfi-

Portella disse ainda que, ao contrário de alguns críticos literários, o que mais o atrai na vida do escritor é a sua obra: – Não me interessam as divagações sobre a origem, o currículo escolar, a etnia, a saúde de Machado. Os deuses, os mágicos, os fantasmas, os iluminados, os bruxos dispensam essas desnecessárias classificações. O autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas recorreu à morte como espaço de liberdade, imune às pressões e às trapaças do cotidiano. Brás Cubas sabe do que fala, e fala livremente após a morte. Medalha para Lula Antes de iniciar seu discurso, o Presidente Lula recebeu das mãos do exPresidente José Sarney a Medalha Comemorativa do Centenário de Machado de Assis, condecoração concedida pela Academia. Em seguida, falou sobre o Acordo Ortográfico e a celebração do centenário do patrono da Academia, ressaltando o trabalho que a ABL faz “pela difusão da língua e da cultura do País”. Depois de saudar os membros da ABL e os seus convidados, o Presidente disse que se sentia feliz por estar retornando ao local para um evento de grande importância para o Brasil e todos os países de língua portuguesa: –

co dos sete países lusófonos concretiza uma aspiração de Machado, ressaltada em seu discurso de encerramento do ano acadêmico de 1897, quando afirmou: “A Academia buscará ser a guardiã de nosso idioma, fundado em suas legítimas fontes – o povo e os escritores, todos os falantes de língua portuguesa”’ O escritor, filólogo e acadêmico Domício Proença Filho observou que a ortografia da língua portuguesa tem sido preocupação de estudiosos desde o século XVI e foi objeto de regulamentação a partir dos começos do século XX, por acordos firmados por Brasil e Portugal: – Tecnicamente, o novo acordo já poderia ter entrado em vigor – explica Domício —, mas resistências acentuadas oficiais e editoriais, de várias origens, e dificuldades de ordem prática, entre elas o prazo de adaptação e as que envolvem a política do livro didático no País, retardaram o processo, que agora chega ao ponto de conclusão com a decisão do Presidente Lula de firmar os decretos de promulgação no Brasil.

É com grande alegria que visito novamente esta Casa e o faço, antes de mais nada, para testemunhar a sua importância como instituição que reconhece e consagra o talento literário e artístico brasileiro. A Academia encarna a gratidão do País a todos aqueles que, no exercício da imaginação e da reflexão criadora, alimentam a inteligência nacional. Mas o faço também para manifestar o meu apreço pelo inestimável trabalho que a ABL realiza pela cultura e difusão da língua. Em seguida, o Presidente falou sobre a importância da celebração do Acordo: – Ele vem coroar o competente e dedicado labor de lingüistas, filólogos e gramáticos de todos os integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e tem uma importância muito maior do que aparenta à primeira vista. Por isso, deve ser explicado aos cidadãos brasileiros e àqueles de todos os demais membros da CPLP. O Presidente destacou também o intercâmbio que o Brasil vem mantendo com os países da África – principalmente aqueles onde o idioma oficial é o português: – Esse intercâmbio representa muito mais do que uma questão geopolítica, porque é o encontro do Brasil com suas raízes, é o encontro do Brasil consigo mesmo. (José Reinaldo Marques)

MOÇÃO

Uma data bem lembrada Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul envia moção de congratulação pelo Dia da Imprensa à ABI Dez de setembro é uma data que não pode ser esquecida. A data, em que se comemora o Dia da Imprensa, foi lembrada por personalidades, políticos e entidades de todo o país. Em Mato Grosso do Sul, a Assembléia Legislativa do Estado aprovou em sessão ordinária uma moção de congratulação à imprensa brasileira. O texto foi encaminhado pelo 1º Secretário da Assembléia, deputado Ary Rigo, ao Presidente da ABI, Maurício Azêdo. A moção, apresentada pela Deputada Dione Hashioka e subscrita pelos Deputados Youssif Domingos e Reinaldo Azambuja, tem o seguinte texto: “Os membros da Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul, legítima representante da sociedade sul-mato-grossense, através dos deputados que esta subscrevem, congratulam-se com todos os profissionais da imprensa pelo Dia da Imprensa, comemorado no dia 10 de setembro. As congratulações são extensivas a todos os profissionais da área.”

Uma praça para nosso fundador em sua terra A Associação Catarinense de Imprensa apresentou no dia 3 de setembro, em seu auditório, o projeto arquitetônico de construção da praça pública idealizada pela Prefeitura de Florianópolis em homenagem a Gustavo de Lacerda, fundador da ABI. A apresentação foi feita pelo Prefeito em exercício de Florianópolis, Rubens Pereira Filho, e os Secretários de Habitação, Átila Rocha dos Santos, e Comunicação, Paulo Roberto Arenhart. A Assessoria da Prefeitura de Florianópolis sublinhou que o fundador e primeiro Presidente da ABI, Gustavo de Lacerda, nascido na capital catarinense, será “eternamente lembrado pelo espírito solidário, em defesa da fraternidade universal, da independência jornalística, da ética profissional e das liberdades publicas”. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

17


COMEMORAÇÃO CARLOS IVAN-AGÊNCIA O GLOBO

A festa de Ancelmo, um jovem de 60 anos Companheiros, amigos e admiradores passaram horas homenageando-o e ouvindo talentos musicais de O Globo. A festa dos 60 anos do jornalista Ancelmo Gois, colunista de O Globo, reuniu no dia 16 de setembro mais de 200 personalidades dos meios jornalístico, cultural e político do Rio, que se encantaram com a alegria do homenageado e com o espetáculo musical organizado pelo jornalista João Máximo, companheiro de redação do aniversariante, sobretudo por um aspecto desconhecido pela maioria dos convidados: o talento musical de vários integrantes da equipe do jornal. A revelação pública desses talentos começou com a apresentação do editorialista Luiz Paulo Horta, recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras, que acompanhou ao piano sua filha Ana Clara na interpretação de Feitio de Oração, de Noel Rosa, e de uma composição de sua autoria. Lembrando que já se exibira no show do aniversário anterior de Ancelmo, numa indicação de que o talento dele já era conhecido dos companheiros de O Globo, Horta acompanhou a seguir a apresentação de um colega de redação, José Antônio Nonato, que interpretou quatro sucessos de Carmem Miranda, precedendo-os de uma informação objetiva sobre a situação política e social da época e as circunstâncias em que ela cantou tais mú-

sicas. Entre elas, Uva de caminhão e Recenseamento, de Assis Valente, de cuja vida atormentada Nonato fez breve relato, e Disseram que eu voltei americanizada, de Vicente Paiva e Luís Peixoto. Passava das 22h e o salão térreo do restaurante Estrela da Lapa começava a ferver de recém-chegados, entre os quais destacadas figuras de Sergipe, terra de Ancelmo: o Governador Marcelo Déda e o Deputado Albano Franco, ex-Govermador do Estado e também Senador por Sergipe antes do atual mandato na Câmara Federal. Além de ensaiar passos de dança com a mãe e com a neta Carol, de três anos, nos ombros, Ancelmo protagonizou com o Governador uma cena de sabor regional: quando o acordeonista Kiko Horta, filho de Luiz Paulo, atacou com um xaxado, os dois foram para as proximidades do palco e, com a maior desibinição, exibiram por alguns minutos seu domínio da dança nordestina. A essa altura rareava o espaço, ocupado desde antes do show por amigos e companheiros de Ancelmo, como, numa mesa, Sérgio Cabral e sua mulher, a museóloga Magali Cabral, e a também museóloga Rosa Maria de Araújo, Presidente do Museu da Imagem do Som e co-autora com Cabral do roteiro do

musical Sassaricando; noutra mesa, Fichel Davit Chargel, sua mulher, Beatriz Santa Cruz Lima, Nilo Braga e sua mulher, Lilian Nabuco, Vítor Iório, todos sócios da ABI; adiante, na mesma mesa, Marcelo Beraba, Diretor da Sucursal Rio do Estadão, e Elvira Lobato, sua mulher, repórter da sucursal Rio da Folha de S.Paulo; Ricardo Kotscho, vindo especialmente de São Paulo; Marcelo Auler, da Sucursal do Estadão; Maurício Azêdo, Presidente da ABI, e sua mulher, Marilka Azêdo. A partir daí, os convidados permaneciam de pé, dançando e cantando, ou se acomodavam em mesas trazidas às pressas. Chegaram os Deputados Ronaldo César Coelho e Márcio Fortes; os chargistas Chico Caruso e Jaguar; os jornalistas Rui Xavier, Diretor da Brasil Telecom; Andréa Gouveia Vieira, jornalista e vereadora no Rio de Janeiro; Elaine Maciel, colega de Ancelmo na turma de bacharéis em Jornalismo da Faculdade de Comunicação Hélio Alonso-Facha na segunda metade dos anos 70; Dácio Malta, colega de Ancelmo no Jornal do Brasil e Conselheiro da ABI; Teresa Cruvinel, Presidente da TV Brasil; Artur Xexéo, editor do Segundo Caderno do Globo; e George Vidor, colunista de O Globo e comentarista econômico da Globo News. Juntavam-se assim aos amigos de Ancelmo que primeiro chegaram ao Estrela da Lapa, como o cineasta Luiz Carlos Barreto e sua mulher, a produtora cinematográfica Lucy Barreto. No palco sucediam-se as revelações de talentos, como o da dupla Marceu Vieira, da equipe da coluna de Ancelmo Gois, e Tuninho Galante, que impressionaram pela qualidade de seus sambas, em linha melódica que denuncia a influência de Paulinho da Viola, e pela

O homem das pequenas notas e grandes notícias Há tempos, esse sergipano mostra um talento incomum para depurar fofocas, garimpar informações e seduzir fontes, tornando-se um dos principais colunistas sociais e políticos do País. Tantas vezes, a principal notícia do dia não está na manchete da primeira página, mas em sua coluna diária, publicada no jornal O Globo e em outros tantos veículos País afora, em uma pequena nota de quatro ou cinco linhas. Para isso, dá duro. Diferente do que muitos imaginam, a imagem de glamour não corresponde à realidade daqueles que ajudam a redigir as notas na meia página ocupada por sua coluna diariamente. Mesmo contando com o apoio de uma equipe, Gois chega a trabalhar mais de dez horas diárias, inclusive aos domingos. Como ele mesmo diz, uma dedicação de operário, que também rende muitas brincadeiras, inclusive, a de que os colunistas têm calos nas orelhas, conseqüência das muitas horas passadas ao telefone. Cerca de 80% dessa labuta se resume a dizer “não” às mais de mil tentativas

18 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

diárias de divulgação de notícias e eventos daqueles que tentam emplacar notas. Também às trocas com colegas. Gois cede um pequeno espaço para notas de divulgação e, em troca, recebe outras notícias em primeira mão. Outra parte do tempo é gasta na relação com as fontes, que são classificadas por estrelas. Uma vez por semana, o jornalista telefona para as fontes cinco estrelas em busca de notícias quentes. As que recebem uma estrela, na outra ponta, recebem um telefone mensal. – Enquanto os grandes jornais do mundo estão muito voltados para o “colunismo de idéias”, aqui no Brasil as colunas mais lidas são as de notas. É o estilo “brasileiro e carioca”, que faz muito sucesso. Quando trabalhei na Radar, da revista Veja, além do noticiário geral, procurava fornecer informações relevantes para os empresários que tinham interesses no interior de São Paulo. Já em O Globo, há também notas para o público carioca. Mas das cerca de 15 notas da seção, pelo menos três são atrativas para leitores de

todo o País. – disse Gois, em recente entrevista ao jornalista Alberto Dines, no programa Observatório da Imprensa. Vida de aventuras

Com 45 anos de carreira, Ancelmo costuma afirmar que é “produto de outro momento político”. Começou cedo, trabalhando na Gazeta de Sergipe. Lá, conviveu com gente bem mais velha que ele, que freqüentava cabarés e sofria de tuberculose devido ao contato com o chumbo usado nos antigos linotipos. Militante estudantil, foi preso logo após o AI-5 em dezembro de 1968. “Formado”, como se definiu ao sair da cadeia, foi convidado a estudar em Moscou e viveu ali clandestinamente com o nome de Ivan Nogueira. Meses depois, voltaria ao Brasil, também de forma clandestina, pela fronteira com a Argentina, para morar no Rio de Janeiro. Com a ajuda de Maurício Azêdo, hoje Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), conseguiu trabalho frelancer na Editora Abril.

Gois passou pela revista Exame, pela Veja e pelo Jornal do Brasil, em que foi repórter, editor e responsável pela coluna Informe JB. De volta a Veja, assumiu a coluna Radar e a chefia do escritório da publicação no Rio. Em 2000, antes de se transferir para O Globo, ainda teve uma passagem pela internet, na revista eletrônica Notícia e Opinião, NO, do portal IG. A aventura, no entanto, foi encerrada em apenas 50 dias, com o estouro da bolha da internet. Depois de quatro décadas no jornalismo impresso, Gois finalmente resolveu arriscar-se na televisão. Ao lado da jornalista Vera Barroso, ele apresenta o programa De Lá para Cá, na TV Brasil. A partir de um fato, lugar ou personagem da história do Brasil, diferentes convidados analisam o passado e discutem sobre sua implicação no presente. Mesmo com experiência na TV como comentarista político, Gois não esconde que encara as gravações, que concilia com a produção de sua coluna, como um desafio. Mas, como diz, “o segredo da vida é gostar do que se faz”.


VEÍCULOS

A paixão da memória de Wanderley Peres e seu jornal Ao completar 20 anos, o jornal mantém seu compromisso de preservar a História e a riqueza natural da cidade serrana. POR TONI MARINS

Nascido em Tombos-MG, em 1º de outubro de 1958, Wanderley Peres Jacinto começou a trabalhar como gráfico aos 13 anos de idade. Pouco depois, já vivendo em Três Rios, no Estado do Rio, entrou no jornal O Painel, onde passou pela composição, a diagramação, a revisão, a impressão e até a distribuição. Peres chegou a Teresópolis em 1977 com boa bagagem de profissional e trabalhou mais de dez anos na Gazeta de Teresópolis. Na cidade serrana fluminense, também se casou e teve filhos, com os quais mantém uma gráfica, onde, mais tarde, decidiu criar um jornal, O Noticiário – que logo se transformou em O Diário: – Em 1988, sonhei que meu jornal seria o mais importante da cidade, e ele aconteceu. Nestes 20 anos, percebi como Teresópolis funciona, como reage às interferências da informação e como podemos interagir para o seu desenvolvimento. O futuro me preocupa e ocupa boa parte do meu tempo. Hoje, divido as obrigações do jornal com os filhos e aproveito para sonhar uma cidade moderna, com melhor qualidade de vida, com pessoas mais felizes. Acredito que isso é possível e estou investindo em projetos culturais. Ele não esconde o orgulho ao contar que seu jornal patrocina o Projeto PróMemória, detentor do maior acervo da História da cidade. E fala dos próximos planos: – Até o fim do ano, vamos abrir o Museu da Imprensa de Teresópolis, disponibilizando nosso banco de dados ao público e, principalmente, aos pesquisadores. Será um espaço onde, além das mais de 4 mil edições do Diário, o público possa conhecer a História da cidade desde os anos 30, contada pelo Teresópolis Jornal e a Gazeta de Teresópolis, mais antigos, por fotos, ilustrações, documentos. Também estarão em exposição linotipo, impressora, caixas de tipos, bolandeira, prelo... Na verdade, Wanderley Peres abrirá até mesmo seu local de trabalho aos interessados: – Pelo menos um dia na semana receberei em minha sala quem quiser conversar sobre Teresópolis e conhecer sua História. Temos vários projetos em andamento e muitos sonhos realizáveis por concretizar. Mas 2008 é especialmente empolgante e merece ainda mais nossa atenção, pois é o ano do bicentenário da imprensa no Brasil,

DIÁRIO DE TERESÓPOLIS

originalidade das letras. Forte impressão causaram também o conjunto Sururu na Roda, com duas violonistas e dois percussionistas, que anunciaram o lançamento de seu terceiro cd – com certeza, digno de ser comprado, pelo visto no espetáculo – e outro dos compositores da redação da Rua Irineu Marinho, o jornalista João Pimentel, o Janjão, que a platéia festejou com palmas. Compositor do Bloco Imprensa que eu Gamo, antigo Bloco da Imprensa, e celebrado pela irreverência nas músicas e nos poemas, Janjão recitou uma de suas criações antes de cantar. Era a descrição do romance entre Madalena e Jesus, com beijo e troca de carinhos, tudo esclarecido nos últimos versos: ela era Maria Madalena da Silva, modista; ele, Jesus Vasconcelos, cirurgião-dentista. Logo se adensou a multidão de convidados, com a chegada de oiutros companheiros de Ancelmo em O Globo, no Jornal do Brasil e em publicações da Editora Abril, como Veja. Chegaram Alfredo Ribeiro, conhecido do grande público pelo pseudônimo com que assina suas deliciosas crônicas: Tutty Vasques; Flávio Pinheiro, colega de Ancelmo na Abril e no Jornal do Brasil; Mário Sérgio Conti, Editor da revista Piauí e antigo Diretor de Veja ao tempo em que Ancelmo trabalhava na revista; Arthur Dapieve; Márcia Vieira, antiga integrante da equipe da coluna Ancelmo, atualmente na Sucursal Rio da Abril, e seu marido, Fábio Rodriugues; o jornalista e escritor Paulo Roberrto Pires, Diretor Editorial da Ediouro; Oriovaldo Perin; Helena Celestino; Rodolfo Fernandes, Diretor de Jornalismo de O Globo; Ali Kamel, Editor-Executivo dos programas jornalísticos da TV Globo. Frei Betto, também jornalista, não compareceu, mas mandou a Ancelmo uma mensagem que o fez chorar de emoção. No segundo andar do Estrela da Lapa perdia-se a conta dos que chegavam e dos que saíam: lá se reuniam os conterrâneos de Ancelmo vindos de Sergipe especialmente para a festa, entre os quais Wellington Mangueira, que fez a iniciação de Ancelmo na imprensa, como aprendiz de tipógrafo num modesto jornal de Aracaju, e também no Partidão, de que Wellington se tornou atuante dirigente no Estado. Wellington destacou-se após a derrubada da ditadura militar por uma singularidade: foi o primeiro comunista do País a exercer o cargo de Secretário de Segurança Pública de um Estado, precisamente Sergipe, no Governo Albano Franco. Ancelmo dividia-se entre o terreo e o segundo andar. para a todos contemplar com o seu carinho. Por volta da meia-noite começaram a se apresentar outros ases da insuspeitada companhia artístico-amadorística do Globo, como Angelina Nunes, Flávia Oliveira, Trajano de Moraes e Aluízio Maranhão. Deste último, Ancelmo propalou as virtudes antes que ele subisse ao palco: – O Maranhão – disse, com ênfase – é um gênio no violão de seis cordas.

Funcionários do Diário de Teresópolis aguardam a reabertura do jornal, que foi fechado depois de publicar denúncias contra os candidatos do prefeito em 1999. Abaixo, a primeira página comemora a decisão da justiça.

tado: – Este é outro projeto de museu, com uma réplica da estação, o túnel guardando as peças do trem ou servindo de passagem para uma segunda estação... – sonha Wanderley. Como no tempo do AI-5

do centenário da ABI e do 20º aniversário do Diário. Também este ano, Wanderley foi eleito para a Academia Teresopolitana de Letras, na cadeira do poeta Olegário Mariano. Cidadão Honorário do Estado do Rio de Janeiro e do Município de Teresópolis, dedica-se não só a preservar a memória da cidade onde vive com a família – a mulher, Línea, e os filhos Wanderley Jr., Raphael, Emille e Isabel Cristina —, mas também o meio ambiente Ele é Presidente do Partido Verde na região da Serra dos Órgãos: – Já escalei seus mais de 30 cumes e quero editar um livro sobre essa maravilha da natureza. Preservá-la, assim como a História local, é minha meta – diz Wanderley, que em 2007 publicou Miguel, Senhor da Torre – sobre a história do alpinista pioneiro na conquista da Pedra Verruga do Frade, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos —. e, agora, em comemoração aos cem anos da chegada do trem à cidade, lança A História da Estrada de Ferro Therezópolis. Paralelamente, ele conseguiu o levantamento dos sítios históricos da ferrovia – como o túnel da Beira Linha, a passarela da Rua São Francisco e os escombros da Ponte Sloper – , cujo tombamento está em andamento no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural– Inepac, objeto de projeto de lei que tramita na Assembléia Legislativa do Es-

Em meio a tantas boas lembranças, Wanderley Peres recorda um dia ruim na história de sua carreira e seu jornal: o 8 de janeiro de 1999, quando fiscais e policiais invadiram a redação, empastelaram O Diário de Teresópolis e lacraram a porta, em nome da Secretaria Municipal de Fazenda, numa reedição dos tristes tempos do AI-5: – Tínhamos publicado denúncias de perseguição a pessoas que eram contra os candidatos do Prefeito da época, o advogado Mário de Oliveira Tricano, e uma série de matérias sobre a fila do beija-mão na Prefeitura. Recebemos uma seqüência de autos de infração, inviabilizando o funcionamento do jornal, até culminar em seu fechamento e empastelamento. O fato ganhou repercussão nacional e chegou ao conhecimento da ABI, onde foi debatido em reunião pelo então Presidente Barbosa Lima Sobrinho e os Conselheiros da Casa. Wanderley Peres guarda até hoje o ofício que recebeu da ABI na ocasião: “Em nome do Presidente da Associação Brasileira de Imprensa, comunicamos ao prezado confrade que, em sua reunião de hoje, 12 de janeiro de 1999, a Diretoria da ABI deliberou dirigir-se ao Sr. Prefeito de Teresópolis, protestando contra ato impeditivo da circulação de O Diário de Teresópolis. Na defesa da Liberdade de Imprensa, a Casa do Jornalista se manterá atenta a esta questão, na expectativa de que o poder público volte a cumprir a Constituição Brasileira no que se refere ao direito de informar.”

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

19


MARCELO THEOBALD - AGÊNCIA O GLOBO

DEPOIMENTO

L

uiz Piñeda Mendes é uma lenda dentro dos estádios, mas também fora dos gramados. Se qualquer torcedor fanático escalasse uma seleção dos mais importantes craques do futebol brasileiro, dentro das quatro linhas ele certamente não ficaria nem no banco. Mas, com sua voz inconfundível e o jeito de falar que lhe valeram a alcunha de “o comentarista da palavra fácil”, seria o capitão do time da imprensa esportiva nacional. Afinal, depois dele, tudo seria diferente. Antes de Mendes, não existiam expressões como “folha seca”, “cabeça-de-área” e “pontade-lança”. Ele criou uns e introduziu outros no País. “Pelotaço”, “golaço” e “cancha”, termos usados por argentinos e uruguaios, foram trazidos por ele. A origem do futebol é inglesa, mas ele foi um dos primeiros a usar centro-médio e não center-half; zagueiro no lugar de full-back; lateral-direito em substituição a half direito, meia-direita ou meiaesquerda no lugar de insider; ponta para o que chamavam de winger; e centroavante no lugar de center-forward. Mendes não é o “camisa 10” de uma equipe qualquer. A equipe com quem conviveu e trabalhou só tinha feras: Armando Nogueira, Mário Filho, João Saldanha, Nélson Rodrigues. “O Nélson era uma figura. Certa vez, um jogador ouviu um apito que tinha sido dado do lado de fora do campo. Como a bola foi parar dentro da área, ele pensou que o juiz tivesse apitado e a pegou com a mão para cobrar pênalti. Foi a maior confusão. Aí o Nélson disse: “Somente o Sobrenatural de Almeida poderia ocasionar um fato como este. Foi ele quem apitou do lado de fora do campo, confundindo o jogador.” “Nélson Rodrigues também disse em uma entrevista que o lugar mais longe a que iria na vida era o Méier. Porém, encontrei-o numa barca da Cantareira, rumo a Niterói, para ver o Fluminense jogar. Ele me cumprimentou e comentou: Para você ver a que me leva o meu time: fazer a travessia do Atlântico”, conta o veterano craque dos microfones, um colecionador de boas histórias. Gaúcho de Palmeira das Missões, Luiz Piñeda Mendes iniciou a trajetória de radialista em um serviço de altofalantes na cidade vizinha de Ijuí, ainda adolescente. Ao longo de quase sete décadas de carreira, quase integralmente dedicada ao jornalismo esportivo, fundou emissoras de rádio, criou a primeira mesa-redonda esportiva na televisão brasileira, onde também introduziu programas de sucesso como o TV Ringue, e chefiou os primeiros departamentos de Esporte nos veículos. Aos 84 anos, o “comentarista da palavra fácil” segue firme dedicando-se ao seu “esporte” predileto: a cobertura jornalística do futebol.

20 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

Ainda fazendo coberturas jornalisticas aos 84 anos, o veterano Luiz Piñeda Mendes é um dos grandes craques da imprensa esportiva e do rádio brasileiro. ENTREVISTA A CLÁUDIA SOUZA


REPRODUÇÃO

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ ENTROU PARA O RÁDIO?

REPRODUÇÃO

Luiz Mendes – Comecei ainda menino, em 1941, em um serviço de altofalantes em Ijuí. Simultaneamente, trabalhava no Alerta, um jornal feito por jovens daquela cidade. Certo dia, o dono da Rádio Missioneira, que operava em Santo Ângelo, outra cidade gaúcha próxima, ouviu a minha voz nos alto-falantes e me convidou para fazer parte do grupo de locutores da emissora. Fiquei lá apenas um ano. Em seguida, fiz teste para a Rádio Farroupilha, de Porto Alegre, desta vez para narrar partidas de futebol – função que então se chamava de “speaker esportivo” – e também para apresentar alguns programas. Naquela época, ainda não havia no rádio, especialmente no Sul, nenhum tipo de especialização profissional. O cara tinha que ser o homem dos sete instrumentos, como se dizia: atendia o telefone, varria o estúdio, colocava o disco para tocar e entrava no ar ao mesmo tempo. JORNAL DA ABI – E QUANDO TROCOU O SUL PELO RIO DE JANEIRO?

Luiz Mendes – No fim de novembro de 1944, estive no Rio para fazer a transmissão de um jogo do campeonato brasileiro de seleções e fiquei sabendo que a Rádio Globo seria inaugurada no dia 2 de dezembro. Fui até lá e procurei o Rubens Amaral, o locutor-chefe. Como eu era muito menino, ele perguntou se eu tinha experiência. Assim que mostrei a carteirinha da Farroupilha – uma das emissoras mais fortes na época – ele pediu para eu retornar no dia seguinte. “Para fazer um teste?”, indaguei. “Não! Se você é locutor da Rádio Farroupilha, será locutor da Rádio Globo”, ele respondeu. E assim, quase no grito, fui um dos fundadores da estação. Sou o último sobrevivente da inauguração, ao lado de Benedito Silva, que era o Tesoureiro e hoje está com 92 anos.

Luiz Mendes cobriu todas as Copas de 1950 a 1998, mas a que mais o emocionou foi a de 58, na Suécia, quando o Brasil se sagrou campeão do mundo pela primeira vez, com craques como Didi e Djalma Santos, fotografados ao lado do radialista e do dentista da Seleção, Mario Trigo (acima). Ao lado, Mendes e o técnico de basquete Togo Renan Soares, o lendário Kanela, na TV Rio, em 1961.

JORNAL DA ABI – SUA VOZ E ESTILO IMPONENTES INFLUENCIARAM GERAÇÕES. E QUEM O INFLUENCIOU NO COMEÇO DE CARREIRA?

CE DE VOCÊS RENDE UMA BOA HISTÓRIA. É

Luiz Mendes – Tive muitas influências, como o Carlos Frias, que eu ouvia no Sul e era o grande locutor da Rádio Tupi; e o maior locutor brasileiro na época, César Ladeira, da Mayrink Veiga. E também do Ary Barroso e do Oduvaldo Cozzi, que dominavam a sintonia no Rio de Janeiro.

VERDADE?

JORNAL DA ABI – NA GLOBO, VOCÊ DEMOROU UM POUCO PARA ENTRAR NA ÁREA ESPORTIVA, NÃO?

Luiz Mendes – Realmente. Lá, só comecei a transmitir futebol em 1947 e substituindo o locutor Gagliano Netto, que saiu para fundar a Continental, cujo slogan era “a emissora 100% esportiva”. JORNAL DA ABI – FOI NESSE TEMPO QUE VOCÊ CONHECEU A RADIALISTA E ATRIZ DAISY

LÚCIDI. DIZEM QUE O COMEÇO DO ROMAN-

Luiz Mendes – Conheci a Daisy em 1944 no palco do Teatro Rival, onde fazíamos programas da rádio. Ela era do elenco de novelas e eu, o apresentador. Eu tinha 20 anos e ela, 14. A turma percebia ela muito ligada a mim e me apelidaram de infanticida. Enquanto eu esperava ela ficar mais taludinha, o pessoal encarnava. Nós nos casamos em 1947 e tivemos um filho. São 61 anos de união. JORNAL DA ABI – COMO FOI SUA IDA PARA A TELEVISÃO?

Luiz Mendes – Em 1955, saí da Globo para inaugurar a TV Rio. Fizeram uma pesquisa para saber quais eram os locutores do rádio que o público queria ver nos programas da nova emissora. Surpreendentemente, fiquei em primeiro lugar. Eu não esperava, já que era

o mais novo entre todos. No rádio, eu ganhava 11 mil cruzeiros por mês; na TV, me ofereceram 35 mil. Saí correndo! Depois, nos quinze anos seguintes, chefiei o Departamento de Esportes da emissora, apresentei programas e criei outros – entre eles o TV Ringue, de boxe, que foi líder de audiência durante dez anos. Também criamos a primeira mesa esportiva da televisão brasileira. JORNAL DA ABI – A IDÉIA DE FAZER UMA MESA DE DEBATES SURGIU DE QUE FORMA?

Luiz Mendes – Às vésperas de uma eleição para a Câmara dos Deputados, quatro grandes cronistas políticos foram reunidos em um programa na TV Rio: Oliveira Bastos, da Tribuna da Imprensa; Carlos Castelo Branco, o Castelinho, do Jornal do Brasil; Murilo Melo Filho, da Manchete; e Villas-Bôas Corrêa; do Correio da Manhã. Os colegas da emissora estavam embevecidos

e atentos ao debate. Então, pensei: “Se este programa agrada tanto, por que não fazer a mesma coisa com o futebol, uma vez por semana?”. Comentei a minha idéia com o Diretor da emissora, Walter Clark, que me olhou e nada respondeu. Vinte minutos depois, ele disse: “Gaúcho, você encontrou o veio de ouro”. “Como?”, balbuciei. “É isto mesmo! O programa vai estrear em 15 dias e você será o mediador. Vamos escolher os componentes da mesa agora!”. JORNAL DA ABI – FOI FÁCIL MONTAR O PRIMEIRO “TIME” DE DEBATEDORES?

Luiz Mendes – Discutimos alguns nomes. O Walter começou sugerindo o Armando Nogueira, que trabalhava como articulista do Telejornal Pirelli. “Mas o Armando é meio gago”, alguém lembrou. “Não tem importância, vai soar natural”, retrucou o Walter. Eu indiquei o João Saldanha, que tinha sido técnico de futebol e era comentarista da Rádio Guanabara. Ele indicou também o José Maria Scassa, um renitente rubro-negro que poderia trazer como patrocinador a Facit, uma fábrica de máquinas de escrever e de calcular de Juiz de Fora. Para fechar, Walter escalou Nélson Rodrigues. “Mas o Nélson nem fala...”, fiz a ressalva. “Aaah, mas aqui ele vai falar!”, exclamou o Walter. Resumindo: o Nélson defendia o Fluminense; o João Saldanha e o Armando Nogueira, o Botafogo; o Scassa, o Flamengo; e como não tinha um defensor do Vasco, escolhemos o Vitorino Vieira, vascaíno e funcionário da Facit. A Grande Resenha Facit revolucionou a cobertura esportiva na tv, passando a ser uma espécie de bíblia dominical do esporte brasileiro. Todo mundo aguardava para ver o que o Nélson ou o João iam dizer, de que jeito o Armando enfeitaria a jogada em questão... Ficou dez anos no ar e depois foi para a TV Globo. JORNAL DA ABI – VOCÊ DEVE TER VÁRIAS HISTÓRIAS DESSA ÉPOCA.

Luiz Mendes – Ah, sim. Uma vez o Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

21


REPRODUÇÃO

Nélson dormiu durante o intervalo comercial. Quando o programa retornou, ele continuou dormindo. Aí o Scassa ordenou no ar: “Câmeras, focalizem o Nélson! Imagine só, ele está dormindo e ainda quer discutir futebol.” Aí, o Nélson abriu os olhos e respondeu: “Scassa, sou mais inteligente do que você até dormindo!”. Em outra ocasião, Nélson disse que não tinha sido pênalti um lance numa partida entre Fluminense e Botafogo. Como já esperava essa reação, guardei a fita e combinei com o Saldanha que reveríamos a jogada no ar. “Está vendo, Nélson? O videoteipe provou que foi pênalti!”, disse Saldanha. “Então, pior para o teipe”, devolveu o Nélson. JORNAL DA ABI – EM QUE OUTRAS EMIS-

Luiz Mendes – Em 1977, saí da TV Rio e fui para a Educativa, a convite do então Ministro da Educação Nei Braga. Antes, tive uma passagem, por empréstimo, na TV Globo, para mediar a Resenha Facit. Na TVE, fundei o Departamento Esportivo. O único programa do gênero que existia lá era o Stadium, que na época mostrava apenas esportes amadores. Doze anos depois, eu deixei a Educativa e parei de fazer televisão.

JORNAL DA ABI – PARA VOCÊ, ISTO É UM RETROCESSO?

Luiz Mendes – Sim. E mais: na minha época o locutor tinha que ter um extenso vocabulário. Era proibido repetir a mesma palavra ao longo da transmissão. Para futebol, por exemplo, usávamos os seguintes sinônimos: porfia, contenda, peleja, Daisy Lúcidi, Luiz Mendes, Alberto Rodrigues, João Havelange e Valdir Amaral na entrega do prêmio Bola de Ouro, em 1980. Em 1955, o radialiasta sai da Rádio Globo e participa da perseguida. Bola era pelota, bainauguração da TV Rio, onde passou a chefiar o Departamento de Esportes da emissora. lão de couro, couro, esfera, esférico, redonda, perseguida; e tinha ainda denominações com nome de gente, como Inês. O Zé Cabral botou o nome de Maricota.(Risos) REPRODUÇÃO

SORAS DE TV VOCÊ TRABALHOU?

no lugar de center-forward. A gente lutou tanto para chegar o computador incentivando o uso de termos como site, deletar, escanear.

JORNAL DA ABI – QUE OUTRAS MUDANÇAS IMPORTANTES OCORRERAM?

Luiz Mendes – Há exemplos que não vivi, mas posso relatar. Na Copa de 1934, por exemplo, o Brasil estava jogando e os jornais faziam um placar imenso na frente das redações com as informações sobre o jogo. Lotava de gente. A notícia chegava em telegramas internacionais por cabo submarino, e o placar ia sendo atualizado. O texto dizia assim: “Aos 18 minutos, houve um escanteio a favor da Itália; a cobrança foi feita e o goleiro defendeu”. Muitas vezes a informação chegava mais de uma hora depois da jogada.

JORNAL DA ABI – DURANTE ESSE TEMPO, VOCÊ ATUOU SIMULTANEAMENTE NO RÁDIO E NA TV?

Luiz Mendes – De 1970 para cá, nunca mais deixei de fazer rádio. No período em que estive na TVE, trabalhei também na Nacional. De 1998 até 2001, atuei na Tupi. Retornei à Rádio Globo em 2001, de onde não pretendo sair nem que me ofereçam a mais irrecusável das propostas. Estou em um lugar onde adoro trabalhar e falo sobre diversos assuntos – inclusive de futebol, no programa Globo Esportivo. JORNAL DA ABI – DE QUANTAS COPAS VOCÊ PARTICIPOU E QUAL O EMOCIONOU MAIS?

Luiz Mendes – Estive em todas as Copas de 1950 a 1998. Em 2002 e 2006, cobri do Brasil. A que mais emocionou foi a de 1958, a primeira que a gente ganhou. Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Em 1958, tive a sensação contrária à da de 1950, quando perdemos aqui para o Uruguai. JORNAL DA ABI – QUAL FOI A SENSAÇÃO APÓS A DERROTA DE 1950?

Luiz Mendes – Não havia explicação. A única lógica do futebol é sua irreverente falta de lógica. O silêncio sepulcral era entrecortado por soluços e muito choro de homens e mulheres. Houve até um torcedor que morreu no estádio. E um outro eu matei. JORNAL DA ABI – COMO ASSIM?

Luiz Mendes – Antes do fim do jogo, os jornais já circulavam com a foto da seleção brasileira como campeã do mundo. A Noite Ilustrada estampou na capa a foto da seleção em fila indiana, como se usava na época, sob a manchete “Brasil, campeão do mundo”. Na hora 22 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

em que eu narrei o segundo gol do Uruguai, um sargento da Marinha sofreu um infarto e morreu. Ele estava ouvindo a minha narração, segundo os jornais. Eu narrei assim: “Gighia driblou Bigode; Bigode caiu, tentou um carrinho; Gighia o ultrapassou assim mesmo, se aproxima da linha de fundo; chuta Gighia, gol do Uruguai”. Aí eu caí em mim. Percebi que estávamos perdendo a Copa e completei: “Gol do Uruguai?! Gol do Uruguai, senhores”. JORNAL DA ABI – QUE EMISSORAS DE TV COBRIAM ESPORTE NESTA ÉPOCA?

Luiz Mendes – A Tupi, fundada em 1950, e a TV Rio, inaugurada em 1955. Posteriormente, surgiram a Continental e a Excelsior. Com o advento da Globo, as que não fecharam perderam o prestígio. JORNAL DA ABI – E NOS JORNAIS, QUAL ERA O ESPAÇO DEDICADO AO ESPORTE?

Luiz Mendes – O esporte sempre teve espaço nos jornais, inicialmente com notas e colunas, evoluindo para páginas inteiras e suplementos. Entre as publicações mais famosas estavam O Globo Esportivo, Esporte Ilustrado, O Campeão – para a qual colaborei –, Gazeta Esportiva, O Esporte e A Semana Esportiva. JORNAL DA ABI – E O JORNAL DOS SPORTS?

Luiz Mendes – Era o líder naquela época.

JORNAL DA ABI – POR QUE ELE USA O PA-

JORNAL DA ABI – E AS QUE VOCÊ PRE-

PEL COR-DE-ROSA?

SENCIOU?

Luiz Mendes – Houve uma crise de papel muito séria no mundo por volta da década de 1970. O Jornal dos Sports era editado nas oficinas do Globo. Sobrou o papel rosa de um carregamento da Suécia que o Globo não quis usar, e o encostaram num canto. Um dia, com a crise, faltou papel e o Diretor do Jornal dos Sports mandou usar aquele mesmo. Ficou bonito, chamou a atenção e foi adotado definitivamente. Uma emergência que acabou dando a ele o pitoresco apelido de “róseo”.

Luiz Mendes – Quando iniciei a carreira, o comentarista entrava apenas no intervalo e no fim do jogo. Assim que cheguei à Rádio Globo, criei a entrada do comentarista aos 15 minutos da partida, aos 20, aos 30 e no intervalo. Minha idéia era situar o ouvinte sobre o andamento do jogo. Mas não dá para narrar e comentar ao mesmo tempo. Infelizmente, muitos fazem isto hoje, principalmente na televisão. JORNAL DA ABI – EM RELAÇÃO AOS AVANÇOS TECNOLÓGICOS, QUAIS FORAM AS

JORNAL DA ABI – VOCÊ É INCENTIVADOR DA TERMINOLOGIA NACIONAL NO FUTEBOL E RECONHECIDO AUTOR DE VÁRIAS EXPRESSÕES NESSE ESPORTE. PODE CITAR ALGUNS EXEMPLOS?

Luiz Mendes – “Folha seca”, “cabeça-de-área” e “ponta-de-lança” estão entre os jargões que criei. O rádio introduziu muitas gírias no futebol. Eu mesmo trouxe algumas quando vim para o Rio, como “pelotaço”, “golaço” e “cancha”, termos usados por argentinos e uruguaios. A origem do futebol é inglesa, mas fui um dos primeiros a usar centro-médio e não center-half; zagueiro no lugar de full-back; lateraldireito em substituição a half direito, meia-direita ou meia-esquerda no lugar de insider; ponta para o que eles chamavam de winger; e centroavante

TRANSFORMAÇÕES RELEVANTES?

Luiz Mendes – O som ficou muito melhor, especialmente nas transmissões internacionais. E hoje eu tenho uma linha direta com a Rádio Globo e muitas vezes trabalho em casa. A velocidade do futebol também aumentou e colaborou para a atual falta de precisão de alguns locutores. JORNAL DA ABI – PODE EXPLICAR MELHOR ISSO?

Luiz Mendes – Devido ao preparo físico dos jogadores, muitíssimo superior ao daquele tempo. Ao longo dos anos, o futebol perdeu em técnica, mas ganhou em velocidade, influenciando diretamente a transmissão. Antigamente se dizia “a bola ultrapassou a linha central do gramado, caiu no cen-


OSMAR GALLO/AGÊNCIA O GLOBO

tro da intermediária com fulano, que aparou no peito, botou no terreno, levantou a cabeça e estendeu o passe da ponta direita da linha central para beltrano”. Hoje, quando você diz “botou no terreno”, o jogador já fez o passe. Ficou mais difícil transmitir; por outro lado, o vocabulário foi reduzido. O locutor diz só bola mesmo, às vezes nem isto. Se ele disser “o jogador recebeu e chutou”, todo mundo vai saber que não foi dinheiro, não é? JORNAL DA ABI – QUANDO A TV COMEÇOU A DAR ESPAÇO A OUTROS ESPORTES?

Luiz Mendes – O boxe fez muito sucesso desde o início. O vôlei, hoje o segundo esporte na preferência nacional, ganhou destaque quando o Luciano do Vale estreou na Bandeirantes, na década de 80. O vôlei deve isto a ele. JORNAL DA ABI – VOCÊ CONVIVEU COM GRANDES PERSONALIDADES DO JORNALISMO ESPORTIVO...

Luiz Mendes – Sim. Armando Nogueira, Mário Filho, João Saldanha, Nélson Rodrigues, que criou o lendário personagem Sobrenatural de Almeida. Certa vez, um jogador ouviu um apito que tinha sido dado do lado de fora do campo. Como a bola foi parar dentro da área, ele pensou que o juiz tivesse apitado e a pegou com a mão para cobrar pênalti. Foi a maior confusão. Aí o Nélson disse: “Somente o Sobrenatural de Almeida poderia ocasionar um fato como este. Foi ele quem apitou do lado de fora do campo, confundindo o jogador.” Ele também disse em uma entrevista que o lugar mais longe a que iria na vida era o Méier. Porém, encontrei-o numa barca da Cantareira, rumo a Niterói, para ver o Fluminense jogar. Ele me cumprimentou e comentou: “Para você ver a que me leva o meu time: fazer a travessia do Atlântico”. JORNAL DA ABI – É DE OUTRO GRANDE ESCRITOR A CRIAÇÃO DAS EXPRESSÕES “TORCIDA E TORCEDOR”?

Luiz Mendes – Do Coelho Neto, poeta e cronista. Ele escreveu um artigo referindo-se às mulheres que compareciam às partidas de futebol como “torcedoras”. Nas décadas de 20 e 30, as pessoas se vestiam com muita elegância para ir aos estádios. As mulheres usavam luvas e chapéus, como se estivessem no Grande Prêmio Brasil, mesmo sob um sol de 40 graus. Os homens também se trajavam com extremo bom gosto. Como o calor era grande, as moças tiravam as luvas e, ansiosas com as jogadas, as torciam. Há quem acredite, erroneamente, que a expressão “torcedor” surgiu porque os admiradores de determinado clube torciam os fatos em defesa do time de coração.

Mendes na Redação de uma estação de rádio: além da palavra fácil, domina a técnica de batucar as pretinhas - as teclas, hoje.

JORNAL DA ABI – CHEGOU A TER ALGUM PROBLEMA DURANTE SUAS TRANSMISSÕES AO LONGO DA CARREIRA?

Luiz Mendes – Acho que só tive um, durante um Grande Prêmio Brasil. Eu estava dentro do caminhão, na switcher, narrando em cima das imagens, enquanto o Carlos Alberto Loffler fazia os cortes. De repente, apareceu no vídeo a dona Yolanda Costa e Silva e eu falei: “Eis aí a Primeira-dama do Brasil, Senhora....” Antes de eu terminar a frase, o Loffler cortou a imagem para a cara de uma égua. Veio lá um coronel do Exército, entrou no caminhão e foi preciso muita explicação para convencê-lo de que não fora proposital. Mesmo assim ele permaneceu na switcher até o fim da prova para acompanhar meu trabalho. Ih, lembreime agora de uma situação muito pior do que esta. Fui escalado pela Rádio Globo para cobrir a posse de Getúlio Vargas em seu segundo mandato. Estava lá no meio da multidão quando avistei o político Batista Luzardo, acompanhado do filho adotivo, que era meu colega na emissora, e pedi para fazer uma entrevista. O Batista Luzardo era muito mal-encarado, tipo caudilho, dominador, dono de fazenda, boi, cavalo, o diabo. Anunciei ao microfone: “Vamos ouvir o futuro embaixador do Brasil na Argentina, doutor Batista Luzardo, o ‘Centauro dos Pampas’”. Quando ele viu que estava escrito Rádio Globo no aparelho, gritou: “Nesta estação de meeeeerda eu não falo!”. O troço saiu no ar. Imediatamente, emendei: “Todo centauro é metade homem, metade cavalo. Batista Luzardo se recusou a falar para os nossos microfones, caros ouvintes”, e saí. O velho veio atrás de mim, mas o filho o segurou e disse: “Papai, como o senhor pôde fazer isto?”. (Risos)

JORNAL DA ABI – FALANDO EM TORCER OS FATOS, COMO A IMPRENSA ESPORTIVA

JORNAL DA ABI – VOCÊ É CONHECIDO PELA

LIDA COM A IMPARCIALIDADE?

EXCELENTE MEMÓRIA. COSTUMA EXERCITÁ-LA?

Luiz Mendes – Olha, eu sempre lidei com isto naturalmente. O jornalista tem que ser imparcial em todas as áreas.

Luiz Mendes – É um dom de Deus. Eu me lembro de fatos que ocorreram comigo quando ainda estava no berço.

JORNAL DA ABI – COMO É?

Luiz Mendes – Ah! Tinha um mosquiteiro que cobria o meu berço e era enfeitado por bailarinas e pombinhas e eu me lembro perfeitamente de ficar intrigado olhando aquilo. Recordo até mesmo o dia em que, ainda engatinhando, descobri o que era morrer. Não ria, não, foi isto mesmo. Estava engatinhando pela casa quando chegou a notícia: “Seu Gregório morreu, seu Gregório morreu!”. Era um amigo da família e descobri que morrer era se deitar na mesa onde fazíamos as refeições, todo coberto de flores. JORNAL DA ABI – COMO SURGIU O SLOGAN “O COMENTARISTA DA PALAVRA FÁCIL”?

Luiz Mendes – Certa vez, colaborei com a Continental, que estava em decadência, a pedido do dono da cervejaria que patrocinava o futebol de lá e o meu programa de boxe na TV Rio. Carlos Marcondes, um executivo da emissora que também atuava como comentarista, havia arrumado para si mesmo o slogan “o comentarista da prova real” e para o Rui Porto, “o comentarista de classe para todas as classes”. Como sempre fui muito tagarela, para mim ele criou “o comentarista da palavra fácil”, e pegou. Até hoje tenho a imensa responsabilidade de não sentir dificuldade para falar. (Risos) JORNAL DA ABI – QUE TIPO DE FORMAÇÃO DEVE TER UM JORNALISTA ESPORTIVO?

Luiz Mendes – As faculdades precisam de professores com experiência no mercado. Atualmente, a maioria se limita a ensinar a teoria, e isto não é suficiente para uma boa formação. Profissionais com prática na rotina diária do jornalismo são fundamentais para o aluno. Outro ponto importante é a exigência do diploma para o exercício da profissão. Não há espaço para jornalistas formados. Infelizmente, as vagas estão sendo ocupadas por exjogadores de futebol e demais atletas

que cada vez mais atuam como comentaristas, entrevistadores, repórteres. Com isto, o estudante só encontra vaga de estagiário. O ensino formal precisa ser valorizado. Uma importante conseqüência dos cursos de Comunicação é o crescimento do número de mulheres no jornalismo esportivo. Porém, mesmo elas já encontram concorrência de ex-atletas femininas. JORNAL DA ABI – QUE ORIENTAÇÃO VOCÊ PODE DAR AOS INTERESSADOS EM ATUAR NA EDITORIA?

Luiz Mendes – Em primeiro lugar, é preciso seguir a ética. E ouvir muito rádio, assistir aos programas de televisão, observar com atenção as inflexões que caracterizam a leitura de diferentes tipos de notícias, desenvolver a sensibilidade e captar o tom a partir do conteúdo. JORNAL DA ABI – A QUE ATIVIDADES VOCÊ SE DEDICA ATUALMENTE?

Luiz Mendes – Além do meu trabalho na rádio, sou entrevistado em todas as mídias para fazer comentários, especialmente em programas na tv. Com as comemorações do cinqüentenário da Copa de 1958, venho participando de muitos eventos, pois sou dos poucos profissionais vivos que fizeram a cobertura daquela época. Este é um ano também de comemorações na ABI. Há mais de seis décadas, quando cheguei ao Rio, ingressei no Departamento de Imprensa Esportiva da entidade. Tempos depois, ocorreu uma fusão deste setor com a Associação dos Cronistas, que, em seguida, originou a atual Associação dos Cronistas do Rio de Janeiro-Acerj, que presidi durante dois anos. Tenho esperança de que com Maurício Azêdo, que foi meu colega na crônica esportiva, as duas entidades possam se aproximar novamente, gerando convênios e atividades que fortaleçam os jornalistas e aproximem a classe esportiva, que, infelizmente, é muito desunida. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

23


24 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008


Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

25


ESPECIAL

Uma proposta da ABI para a nova regulamentação da profissão de jornalista Proposição de Pery Cotta, nosso representante no Grupo de Estudos designado pelo Ministério do Trabalho, contém uma inovação audaciosa: a de que o estatuto da profissão seja fixado pelos jornalistas através da Fenaj e dos sindicatos, em comum acordo. Portaria 342, de 23 de julho de 2008, do Sr. Ministro do Trabalho e Emprego, instituiu Grupo de Estudos para discutir alterações na regulamentação da profissão de jornalista. Representando os profissionais de imprensa, a ABI - Associação Brasileira de Imprensa integra o Grupo criado pela Portaria 510/08, publicada no Diário Oficial da União de 13 de agosto de 2008. Assim sendo, como contribuição ao debate, a ABI elaborou a presente proposta, levando em conta duas premissas básicas tanto para o estudo da questão como para a definição do objetivo proposto: 1ª Nas últimas décadas, os meios de comunicação passaram por notáveis transformações em suas estruturas operacionais, principalmente em função dos avanços tecnológicos nas áreas da informática e das telecomunicações, não raro inclusive pelo cruzamento dessas modernas tecnologias. Há sinais evidentes de que este processo está apenas em seu início e que, até por bom senso, devem ser resguardados espaços para futuras e inevitáveis mudanças normativas em qualquer legislação reguladora de atividades profissionais nos meios de Comunicação Social mesmo que, em determinados momentos, a regulamentação definida seja aparentemente a mais atualizada possível; e, 2ª Por sua vez, não somente em função das óbvias conseqüências dos avanços tecnológicos, como pelo fato igualmente importante de que no Brasil ocorreram, ao mesmo tempo, irreversíveis transformações políticas, econômicas e sociais, a legislação ainda vigente tornou-se completamente ultrapassada. Documento insepulto do regime autoritário, de tantas influências nefastas para o exercício democrático do jornalismo, não pode servir de partida para avançado instrumento jurídico deste moderno país cada vez mais aberto às conquistas políticas e sociais. Nas relações mídia e sociedade, o exercício da profissão de jornalista vem sendo moldado por edificantes exemplos jurídicos internacionais e tem histórica base em princípios e valores éticos fundamentais, lembrados a seguir em História do Jornalismo e Carta Magna, Comunicação Social e Códigos de Ética.

HISTÓRIA DO JORNALISMO Na civilização ocidental, a comunicação social alicerçou-se inicialmente na oralidade dos discursos nas praças públicas das cidades gregas, principalmente Atenas. Desde aquela época, houve a necessidade pré26 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008


Liberdade de imprensa via de estabelecer um comportamento ético na linestabelecer.” (art. 5º, XIII, que remete ao Capítulo V tação da profissão de jornalista tem de abranger novos guagem e comunicação de interesse público. – Da Comunicação Social – que em seu art. 220 escampos de atuação. Neste sentido, com particular O jornalismo impresso, como comunicação socitabelece que “a criação, a expressão e a informação, atenção a preceitos democráticos implantados pela al de massa (mass media), somente foi assim denosob qualquer forma, processo ou veículo não sofreConstituição de 1988. minado depois da Revolução Industrial, quando por rão qualquer restrição”; que “é vedada toda e qualCARTA MAGNA, COMUNICAÇÃO volta de 1750, no século XVIII, as primeiras rotatiquer censura de natureza política, ideológica e artísSOCIAL E CÓDIGOS DE ÉTICA vas foram forjadas em aço. tica”; e, ainda, que “nenhuma lei conterá dispositiA Constituição brasileira, promulgada em 5 de Surgiram então impressoras capazes de reproduvo que possa constituir embaraço à plena liberdade outubro de 1988, lembra logo no seu art. 1º que a Rezir, aos milhares, os textos da linguagem escrita. Esse de informação jornalística em qualquer veículo de copública Federativa do Brasil constitui-se em Estado avanço tecnológico industrial foi uma formidável municação social, observado o disposto no art. 5º, IV, Democrático de Direito, o qual tem como princípios alavanca, possibilitando nova era tanto para as iniV, X, XIII e XIV”. fundamentais os valores sociais do trabalho, a sobeciativas pioneiras de comunicação social, como para “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedarania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. a informação em geral e a própria cultura. Até então, do o anonimato.” (art. 5º, IV). Os princípios referentes aos direitos do cidadão, dependentes ainda de minúscula capacidade gráfica, “É assegurado o direito de resposta, proporcional ao entre eles o próprio acesso à informação, determinam apesar da notável contribuição de Gutenberg, por agravo, além da indenização por dano material, moral previamente o comportamento ético profissional dos volta de 1440, com a criação dos tipos móveis e da ou à imagem.” (art. 5º, V, que estranhamente remete jornalistas e das empresas jornalísticas. impressão manual, página a página. Fácil imaginar aos artigos 29 a 36 da Lei 5.250/67 (Lei de Impreno impacto do surgimento das rotativas e o ingresso sa, da ditadura). Os princípios defendidos pelos jornais da Humanidade na era industrial. Publicações foram “É livre a expressão da atividade intelectual, artístiPromulgada a nova Constituição brasileira, logo rapidamente impressas, principalmente jornais, e ca, científica e de comunicação, independentemente de depois, em 23 de novembro de 1991, no Segundo Enchegaram ao público leitor a cada dia, todos os dias censura ou licença.” (art. 5º, IX, que novamente de forcontro dos Jornais, promovido pela Associação NaA imprensa, como era assim chamada, deixou, pouma estranha remete à Lei de Imprensa. E também à cional dos Jornais–ANJ, foi pela entidade represencas décadas depois, de ser o único e avançado meio Lei de Direitos Autorais, na época a Lei 5.988/73). tativa dos empresários tornado público o Código de de comunicação. Após os jornais e revistas, graças a “É assegurado a todos o acesso à informação e resguarÉtica dos Jornais, comprometendo-se os veículos de novos avanços tecnológicos, emissoras de rádio gadado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício comunicação social afiliados à ANJ a cumprir textunharam espaço na comunicação social. Logo, em seprofissional.” (art. 5º, XIV, que remete ao art. 220, paalmente o seguinte decálogo de preceitos éticos: guida, poucas décadas depois, entraram no ar as transrágrafo 1º, ou seja, nenhuma lei pode ter dispositi1. Manter sua independência. missões não apenas de áudio como de imagens movo contra a plena liberdade de informação jornalís2. Sustentar a liberdade de expressão, o funciovimentadas, como no cinema, criadas pelas emissotica; e também remete ao art. 154 do Código Penal, namento sem restrições da imprensa e o livre exerras de televisão. Entrava-se, então, na Era das Teleque trata da violação de “segredo de que tem ciência cício da profissão. comunicações. em razão de função, ministério, ofício ou profissão” 3. Apurar e publicar a verdade dos fatos de inteCom a multiplicação dos meios/veículos, tornoue “cuja revelação possa produzir dano a outrem”. resse público, não admitindo que sobre eles prevase então necessário usar a expressão latina médium A natureza social da leçam quaisquer interesses. agora no plural media. E os meios de comunicação atividade dos jornalistas 4. Defender os direitos do ser humano, os valosocial passaram a ser conhecidos pela denominação Em 4 de agosto de 2007, os profissionais de Imprensa res da democracia representativa e a livre iniciativa. genérica de mídia, pronúncia influenciada e difunrealizaram um seminário ao fim do qual divulgaram 5. Assegurar o acesso de seus leitores às diferentes dida internacionalmente em língua inglesa. o novo Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, deversões dos fatos e às diversas tendências de opinião Hoje, o jornalismo desta ampla mídia pluralizafinindo que o exercício da profissão de jornalista é uma da sociedade. da abrange a atividade profissional exercida em diatividade de natureza social. versos campos de atuação de emAssim, o compromisso fundapresas privadas e estatais, organiO COMPROMISSO FUNDAMENTAL DO JORNALISTA É COM A VERDADE mental do jornalista é com a verdazações não-governamentais, entide no relato dos fatos, “razão pela dades sindicais e empresas em geNO RELATO DOS FATOS RAZÃO PELA QUAL DEVE PAUTAR SEU qual deve pautar seu trabalho pela ral, abrangendo inclusive novas precisa apuração e pela correta diáreas originárias de posteriores TRABALHO PELA PRECISA APURAÇÃO E PELA CORRETA DIVULGAÇÃO vulgação”, sendo direito do jornaavanços das telecomunicações e, lista resguardar o sigilo da fonte. ao mesmo tempo, da informática, SENDO DIREITO DO JORNALISTA RESGUARDAR O SIGILO DA FONTE Transgressões ao Código de Étia revolucionária rede de comunica Profissional, segundo o docucação mundial via computadores. mento dos jornalistas, deverão ser apuradas pelas 6. Garantir a publicação de contestações objetiComo curiosidade, no entanto, o rápido texto dos sites comissões de ética dos sindicatos e, em segunda insvas das pessoas ou organizações acusadas, em suas jornalísticos da Web (jornalismo online) utiliza a velha tância, pela Comissão Nacional de Ética, a qual popáginas, de atos ilícitos ou comportamentos condetécnica profissional do lide clássico (aquele das seis derá recomendar à diretoria da Federação Nacional náveis. principais questões circunstanciais do fato, respondos Jornalistas–Fenaj o encaminhamento ao Minis7. Preservar o sigilo de suas fontes. didas juntas no primeiro parágrafo da notícia). Mas tério Público dos casos em que a violação ao Código 8. Respeitar o direito de cada indivíduo à sua prios jornais impressos já abandonaram tal lide. de Ética também possam configurar crime, contravacidade, salvo quando esse direito constituir obsCom certeza, todos esses novos meios e formas de venção ou dano à categoria ou à coletividade. táculo à informação de interesse público. expressão e informação utilizados na comunicação São princípios básicos defendidos pelos jornalis9. Diferenciar, de forma identificável pelos leisocial seguem os fundamentos básicos do jornalismo tas, em seu Código de Ética: tores, material editorial e material publicitário. impresso e do exercício da profissão de jornalista. O “O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros tem 10. Corrigir erros que tenham sido cometidos em rádio valoriza a gravação sonora das entrevistas procomo base o direito fundamental do cidadão à informasuas edições. duzidas por jornalistas de rádio, a televisão mostra coção, que abrange o seu direito de informar, de ser inforbertura jornalística com textos e imagens de profisOs princípios assegurados mado e de ter acesso à informação.” (art. 1º) sionais da comunicação social e o próprio jornal, agora na Constituição Federal “Como o acesso à informação de relevante interesse igualmente informatizado, não precisa mais seguir No Capítulo I, Título II da Constituição de 88 já público é um direito fundamental, os jornalistas não poaquela forma clássica de redigir a notícia: as matérias havia sido expressamente definido, como direitos e dem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de de jornal também entram nas páginas através de edideveres individuais e coletivos, o que foi repetido no interesse, razão por que: toração eletrônica, no computador. Código de Ética dos Jornais. Ou seja, houve reafirI – a divulgação da informação precisa e correta é O ensino do Jornalismo, adequando-se aos avanmação do livre exercício da profissão, do funcionadever dos meios de comunicação e deve ser cumpriços tecnológicos, faz-se em escolas/faculdades de Comento sem restrições da imprensa, da liberdade de da independentemente de sua natureza jurídica – se municação Social, com diversas habilitações resulexpressão, dos valores da democracia e da defesa dos pública, estatal ou privada – e da linha política de seus tantes de técnicas profissionais específicas. direitos humanos, além do acesso à informação, dos proprietários e/ou diretores; E Jornalismo, Rádiojornalismo e Telejornalismo direitos de resposta e de privacidade. II – a produção e a divulgação da informação desão hoje, também, exercidos online pelos meios de coDestacam-se, na Carta Magna: vem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por fimunicação social e profissionais de imprensa. Assim, “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou pronalidade o interesse público; para não fugir a esta realidade dos meios de comufissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei III – a liberdade de imprensa, direito e pressuposnicação de massa, qualquer tentativa de regulamen-

,

, ”

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

27


Liberdade de imprensa to do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão; IV – a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as não-governamentais, é uma obrigação social; V – a obstrução direta ou indireta à livre divulgação da informação, a aplicação de censura e a indução à autocensura são delitos contra a sociedade, devendo ser denunciados à comissão de ética competente, garantindo o sigilo do denunciante.” (Art. 2º) Três outros artigos (3º, 4º e 5º) destacam, a respeito da conduta profissional do jornalista, que o exercício do jornalismo é atividade de natureza social; que o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela correta divulgação; e que é direito do jornalista resguardar o sigilo da fonte. A propósito, o Código Internacional de Ética dos Jornalistas (International Principles of Professional Ethics in Journalism) ressalta que no jornalismo a informação deve ser entendida “como um bem social e não uma commodity”. E que a sociedade e os indivíduos têm direito a uma imagem objetiva da realidade e também de expressar-se livremente, eles próprios, “através das várias mídias de cultura e informação”. Este código internacional resultou de seminários realizados em Praga e Paris, em 1983, promovidos pela IOJ (International Organization of Journalists) e diversas outras entidades representativas dos profissionais do mundo inteiro, inclusive a Federação LatinoAmericana de Trabalhadores na Imprensa. A preocupação com a ética profissional permeia hoje a sociedade, em todos os países democráticos. Também chamada de deontologia, aplica-se às principais profissões. A palavra deontologia, do francês déontologie, significa “ensemble des régles et des devoirs que régissent une profession”. Ou seja, um conjunto de regras e deveres que regem uma atividade profissional. Ou seja, o que pode ou não pode o profissional fazer e os deveres a serem per ele seguidos na profissão. Além dos valores e princípios fundamentais inspirados na Ética dos filósofos gregos, principalmente de Aristóteles, as atividades dos jornalistas e o ordenamento constitucional dos direitos individuais e sociais sempre tiveram como base documentos históricos memoráveis, produzidos a nível mundial e para aplicação universal pelos principais defensores da cidadania, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos, surgidos com a Revolução Francesa e a Carta Magna dos Estados Unidos, que posteriormente inspiraram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, divulgada pela Organizações das Nações Unidas após a II Guerra Mundial. Um exemplo desses documentos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional, em Paris, em 1789, afirma no seu art. 10 que “ninguém deve ser importunado por suas opiniões”. O art. 11 complementa, taxativamente, que “a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem” e ainda que, além de falar e escrever, todo e qualquer cidadão “pode imprimir livremente”. (o grifo é nosso) Quatro anos depois, em 1793, no art. VII de uma nova declaração aprovada em Convenção Nacional, em Paris, reafirma-se que “o direito de manifestar seus pensamentos e suas opiniões, seja pela voz da imprensa ou por qualquer outro meio, o direito de se reunir tranqüilamente, o livre exercício dos cultos, não podem ser interditos”. E a razão disto: “a necessidade de enunciar estes direitos supõe ou a presença ou a lembrança recente do despotismo”. Como também na História recente do Brasil. Outro belo exemplo foi destacado pelo então o di28 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

retor da Biblioteca da ABI, Reinaldo Santos, mestre em Comunicação, advogado e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. Em seu Vade-Mécum da Comunicação (Editora Destaque, 1998, 12ª ed.) reproduz o conteúdo da Primeira Emenda à Constituição de 1787, dos Estados Unidos, redigida e publicada em 1791, com o objetivo expresso de impedir qualquer legislação que pudesse vir a prejudicar as atividades dos profissionais de Imprensa: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibir o livre exercício dos cultos; ou de cercear a liberdade de palavra, ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos”. Em 10 de dezembro de 1948, aprovada em Resolução da III Sessão ordinária da Assembléia-Geral das Nações Unidas, realizada em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos igualmente estabelece no artigo XIX: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Não faltam, portanto, tanto um permanente embasamento jurídico como modelos éticos necessários a uma boa regulamentação das atividades profissionais dos jornalistas brasileiros. Agregam-se com destaque a este precioso manancial, os documentos produzidos pelas entidades de classe na área empresarial e da profissão de jornalista. Os textos, aqui reproduzidos, de jornalistas profissionais e empresas jornalísticas permitem de imediato, em relação a vários tópicos essenciais, aflorar e revelar claro consenso, consciência crítica e defesa de prerrogativas da Comunicação Social, ao lado de regras rígidas e deveres também categoricamente enunciados.

A ABI, no ano de seu centenário e reconhecida pela sociedade por seus méritos históricos na permanente atuação em defesa da liberdade de imprensa e dos direitos dos jornalistas, sente-se honrada com a participação neste Grupo de Estudos do Ministério do Trabalho e Emprego. Por isto, a Associação Brasileira de Imprensa coloca-se, por seus órgãos técnicos, à disposição de Governo, instituições dos três Poderes da República, de jornalistas e empresas jornalísticas e qualquer entidade ou empresa privada ou governamental em que trabalham profissionais de imprensa, jornalismo e comunicação social. Uma nova Regulamentação da Profissão de Jornalista é o momento propício para a necessária adaptação a avanços tecnológicos e principalmente para o reconhecimento e reafirmação dos preceitos constitucionais que garantem o respeito ao direito do cidadão à informação e a liberdade de imprensa, ao mesmo tempo em que asseguram democraticamente o exercício da profissão de jornalista.

As idéias que Pery Cotta apresenta Decreto número tal, de / /2008, que dá nova redação ao Decreto 83.284, de 13 de março de 1979, em razão dos preceitos da Constituição de 1988 e em função dos avanços tecnológicos, e regulamenta o exercício da profissão de jornalista em todas as áreas da Comunicação Social. Artigo 1º – A informação é um bem social, um direito fundamental do cidadão, decorrente da liberdade de expressão e de pensamento expressamente garantida pela Constituição de 1988. A sociedade e os indivíduos têm direito, na informação, a uma visão e reflexão objetiva da realidade. Este direito constitucional abrange informar, ser informado e ter acesso à informação, independentemente de censura, autocensura ou licença, resguardado ainda o sigilo profissional da informação. Parágrafo 1º – Como é livre a manifestação de pensamento, qualquer cidadão, além de falar e escrever, também pode, no interesse público, livremente imprimir informações, dentro de princípios éticos e respeitado o direito específico do outro indivíduo e da sociedade como um todo. Parágrafo 2º – Em respeito à liberdade de imprensa, o direito de imprimir livremente estende-se naturalmente, sem injunções de qualquer natureza, a

todas as empresas legalmente constituídas da área de Comunicação Social. Parágrafo 3º – O jornalista é um comunicador social, atividade profissional que não se realiza sem liberdade de imprensa, de pensamento e expressão. A profissão é exercida pelo jornalista não apenas nos meios de comunicação social (mídia), mas igualmente como assessoria de imprensa a órgãos governamentais e privados. O jornalista realiza, na mídia e fora dela, atividade profissional de natureza social, em função do interesse público pela informação transmitida. Parágrafo 4º – Entende-se como comunicação social, portanto, a informação de interesse público, transmitida por profissional de imprensa, através de diversos tipos de mídia ou fora dela, baseada sempre na veracidade dos fatos, nas diferentes versões e tendências de opinião da sociedade. Parágrafo 5º – Em decorrência dos preceitos constitucionais quanto à liberdade de imprensa e ao livre exercício profissional do jornalista, não cabem enunciados e preceitos legais restritivos, julgamentos coercitivos ou impeditivos e nem se faz necessária legislação específica reguladora destas liberdades (de imprensa e profissional, claramente expressas na Constituição de 1988.


Dos meios de comunicação social Artigo 2º – São meios de comunicação social os jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão, sites jornalísticos na internet e quaisquer outros veículos e meios de comunicação decorrentes de avanços tecnológicos e voltados para a divulgação permanente de informações de interesse público, em função dos direitos fundamentais do cidadão e da sociedade. Parágrafo 1º – Para manter sua independência e exercer plena liberdade de imprensa, os meios de comunicação social são auto-regulamentáveis em suas atividades profissionais, não dependendo de licença prévia ou instrumentos normativos, de acordo com princípios expressos na Constituição de 1988. A auto-regulamentação, em documento tornado público, será definida por iniciativa e competência exclusiva das entidades representativas das empresas da área de comunicação social. Parágrafo 2º – Em respeito à opinião pública e aos preceitos da Constituição de 1988, os meios de comunicação social devem defender os direitos do ser humano, os valores da democracia representativa e a livre iniciativa. Parágrafo 3º – No exercício de suas atividades informativas, os meios de comunicação devem diferenciar, de forma identificável pelos receptores da informação, as matérias jornalísticas dos textos e anúncios publicitários. Parágrafo 4º – Os textos de opinião e de informação puramente jornalística devem ainda separar editoriais, artigos e comentários opinativos, de colaboradores e mesmo de jornalistas, das informações puramente de interesse público e conteúdo social. Isto é, devem diferenciar o texto de opinião editorial do texto de informação editada como notícia, reportagem e matérias jornalísticas resultantes da apuração, redação e edição do produto profissional do trabalho do jornalista. A opinião, quando ocupar espaço também nas páginas de informação, e não apenas nas de opinião editorial, deve ser igualmente identificável para o receptor da informação, como no caso dos anúncios publicitários. Parágrafo 5º – Os meios de comunicação social, conforme direito constitucional, devem garantir a publicação de constatação objetiva das pessoas ou organizações acusadas, em seus veículos, de atos ilícitos ou comportamento condenáveis, mas ninguém pode abusar do direito de resposta. Este direito inclui a correção de erros cometidos pelos veículos de comunicação social em suas edições. Parágrafo 6º – Ainda conforme o preceito constitucional, os meios de comunicação social devem respeitar o direito de cada indivíduo à sua privacidade, salvo quando este direito constitui obstáculo à livre informação de interesse público. Qualquer indivíduo ou entidade estatal ou privada auto-restringe a sua privacidade quando exerce publicamente suas atividades profissionais, não podendo reclamar de informações e imagens divulgadas de forma ética pela mídia. Parágrafo 7º – As pessoas ou entidades públicas ou privadas, que se considerarem injuriadas, caluniadas, difamadas ou prejudicadas pela divulgação de notícia ou opinião dos veículos de comunicação social devem primeiro buscar o diálogo, antes da ameaça a recursos judiciais, por necessário respeito às normas e preceitos da Constituição de 1988. O direito de resposta não pode, em hipótese alguma, ofender ou impedir os fundamentos do direito do cidadão à informação, da liberdade de imprensa e do exercício profissional do jornalista. Do exercício da profissão de jornalista Artigo 3º – Como atividade de natureza social, o exercício da profissão de jornalista tem compromisso

fundamental com a verdade, na narração e descrição real do fato jornalístico, razão pela qual deve pautar seu trabalho de reconstituição da realidade através de precisa apuração e correta divulgação. Parágrafo 1º – Como no que se refere às empresas de comunicação social, as atividades profissionais dos jornalistas são auto-regulamentáveis, em função de direitos à informação e à liberdade de imprensa, preceitos da Constituição de 1988. A auto-regulamentação, em documento tornado público, será definida por iniciativa e competência exclusiva das entidades representativas dos profissionais da área de comunicação social. No caso do jornalismo impresso e site jornalístico online, a auto-regulamentação cabe à Federação Nacional dos Jornalistas–Fenaj e aos sindicatos profissionais de jornalistas, em comum acordo. Parágrafo 2º – A auto-regulamentação profissional, na área de comunicação social, abrangerá sempre em seu alcance e para todos os efeitos o jornalismo online e qualquer outra mídia a ser criada no futuro, bem como tem força como preceito legal na atuação do profissional de imprensa em empresas públicas e privadas que exercem atividades fora do âmbito das empresas de comunicação social, mas têm necessidade de informação e comunicação através de assessoria de imprensa própria ou contratada. Parágrafo 3º – A exemplo de outras profissões que exigem cultura específica e formação superior (advogados, médicos, engenheiros etc), a auto-regulamentação da profissão de jornalista deve incluir seção especifica para normas e deveres do Código de Ética Profissional. Parágrafo 4º – O profissional de imprensa dedicado às imagens fixas ou móveis dos fatos jornalísticos (repórter-fotográfico ou repórter-cinematográfico) tem direito ao crédito de seu trabalho. No caso do profissional de veículo impresso, “divulgação”, “reprodução” e/ou simplesmente “arquivo” (sem data da última publicação e autoria da foto), além da desinformação ao leitor, representam desrespeito ao direito autoral por parte do veículo de comunicação. Da ABI como entidade de poder moderador Artigo 4º – Por sua histórica e memorável atuação como defensora da liberdade de imprensa e dos direitos dos jornalistas profissionais, a Associação Brasileira de Imprensa-ABI pode ser requisitada a atuar como poder moderador, nas relações da mídia com a sociedade, bem como entre empresas jornalísticas e veículos e os sindicatos profissionais da área de comunicação social. Parágrafo 1º – A ABI preferencialmente deve ser consultada para diálogo e intermediação de negociações, nos casos dos parágrafos 5º, 6º e 7º do art. 2º da presente regulamentação da profissão de jornalista, por parte de pessoas ou entidades públicas e privadas que se considerarem prejudicadas por comentários, opiniões ou divulgação de notícias, antes de qualquer recurso judicial contra os veículos de comunicação ou jornalistas profissionais. A ABI, então, elaborará parecer específico que deve servir como orientação técnica para as partes interessadas. Parágrafo 2º – A ABI pode ter função de caráter moderador, no caso de divergências entre empresas jornalísticas e profissionais de imprensa, na área de comunicação social, quanto a normas e deveres de natureza ética ou preceitos constitucionais. No aprofundamento de uma questão jurídica ou de ordem técnica, a ABI poderá sempre solicitar a colaboração da Ordem dos Advogados do Brasil e dos Conselhos Nacionais de profissionais de outras áreas. A ABI, então, elaborará parecer específico que deve servir como definidor de normas éticas, auto-aplicáveis.

ABI pede o visto para jornalistas da Prensa Latina Motivada por moção apresentada por sua Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos na reunião de setembro do seu Conselho Deliberativo, a ABI fez um apelo ao Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Clifford M. Sobel, em favor de Ilsa Rodriguez e Tomas Anael Granado, correspondentes da agência de notícias Prensa Latina na Organização das Nações Unidas, em Nova York, os quais tiveram negada a concessão de visto de entrada no país. Foi este o texto da mensagem enviada pela ABI ao Embaixador Sobel: “Em atenção a moção apresentada na sessão do Conselho Deliberativo desta Associação Brasileira de Imprensa, realizada em 30 de setembro findo, peço-lhe a gentileza de transmitir ao seu Governo nosso apelo para a revogação da negativa de concessão de visto de entrada aos jornalistas Ilsa Rodrigues e Tomas Anael Granado, que há três anos exercem a função de correspondentes da agência de notícias Prensa Latina na Organização das Nações Unidas, em Nova York. A moção assinala que essa negativa atenta contra o direito desses jornalistas de exercer a sua profissão e ofende o direito dos povos à liberdade de informação. Peço-lhe que aceite as expressões do nosso apreço. (a) Maurício Azêdo, Presidente.”

Ameaça de censura em São Borja, RS O jornalista Wolmer Jardim, editor do semanário Alternativo, da cidade de São Borja, RS, comunicou à ABI que o Prefeito Mariovane Weis, de sua cidade, entrou com uma representação contra o jornal e a Rádio Butui FM, por supostos abusos e excessos em matérias e comentários que poderiam estar prejudicando a sua reeleição. No documento, Wolmer informa que o Prefeito foi denunciado pelo Ministério Público local por improbidade administrativa, em razão de ter adquirido, com verba pública, terras que pertenceriam à família Jardim, para abrigar no local um frigorífico, cujo proprietário é acusado, segundo Wolmer, pelos crimes de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e sonegação de impostos no Estado de Mato Grosso do Sul, fato denunciado pelo jornal. Revelou Wolmer que várias matérias desfavoráveis ao Prefeito Mariovane Weis foram publicadas no jornal, sem, porém, citar a sua candidatura, mas a coligação que o apóia insiste em afirmar que o jornal está prejudicando sua administração e sua possível reeleição, em prol de outros dois concorrentes. Disse Wolmer que “o objetivo é intimidar a imprensa e instalar a censura nos veículos de comunicação”. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

29


Liberdade de imprensa

O sigilo da fonte é intocável A ABI repudia a idéia do Ministro Nélson Jobim de modificar por lei ordinária uma disposição constitucional. WILSON DIAS/ABR

– O sigilo da fonte é um bem jurídico de dimensão constitucional, que não pode ser objeto de regulação ou restrição por lei ordinária. – esta foi a advertência do Presidente da ABI, Maurício Azêdo, em entrevista ao portal Comunique-se, em setembro. Azêdo manifestou sua estranheza diante da declaração do Ministro da Defesa Nélson Jobim, na CPI do Grampo, de apoio à aprovação de uma lei que estabeleça restrição ao exercício do direito de sigilo da fonte, que é garantido pela Constituição Federal. A exposição de Jobim aconteceu no dia 18 de setembro, no Congresso. Na ocasião, ele afirmou que a legislação precisa ser mudada para conter o exagero e o uso ilegal das interceptações telefônicas. Jobim não ficou apenas nisso. Ao discorrer sobre a divulgação do conteúdo das escutas, ele entrou em uma outra área, que não tem ligação direta com o problema e propôs a relativização do sigilo de fonte e punição para jornalistas. O Ministro chegou a insinuar que a imprensa seria "cúmpli-

Jobim: ao falar sobre interceptação telefônica, investiu contra o sigilo da fonte.

ce" de um crime, caso divulgasse qualquer informação. O Presidente da ABI estranhou essa postura de Nélson Jobim, que além de Ministro e Presidente do Supremo Tribunal Federal, foi deputado durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1987 e 1988, que aprovou a Constituição. Em seu artigo 5º, inciso IV, o texto estabelece: "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". – É certo que Nélson Jobim já confessou que, como constituinte, incorporou ao texto constitucional disposição cuja redação não foi aprovada pelo plenário, o que prova que não é recente o seu desapreço pela Carta Magna. Mas a ABI espera que, como Ministro, seja mais cauteloso na exposição de certas idéias que podem conduzir à impressão de que sua posição pessoal é compartilhada pelo Governo Federal, até porque as declarações são de sabor inconstitucional. – declarou Azêdo.

"Não vamos prejudicar a reserva de fontes, a liberdade da imprensa ou o direito à informação" Essa é a garantia do Ministro da Justiça, Tarso Genro, em comunicado enviado à ABI.

30 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

FABIORODRIGUESPOZZEBOM-ABR

O Ministro da Justiça, Tarso Genro, enviou à ABI declaração, no dia 22 de setembro, afirmando que a proposta que o Governo encaminhou ao Congresso Nacional sobre as escutas ilegais e sua divulgação não contém restrições à liberdade de imprensa. "Não tem nenhum vínculo, nenhuma ligação direta ou indireta, nenhum tipo de incidência sobre a reserva de fontes, para os jornalistas, nem tem qualquer relação com a liberdade de imprensa ou com o direito de informação", garante Genro no texto. Apesar disso, ainda estão nebulosos os desdobramentos do projeto, caso seja transformado em lei. Se for comprovado vazamento de informação, como saber quem cometeu o crime? Esse não pode ser um passo a mais em direção à pressão contra os profissionais da imprensa, para que revelem suas fontes? Aliás, isso já não inibiria as fontes de passarem informações, prejudicando o trabalho jornalístico tão necessário à democracia, sem combater devidamente aqueles que promovem o real problema, as escutas ilegais? As perguntas continuam no ar, esperando respostas, que, na verdade, parecem bem óbvias. Eis a íntegra do documento encaminhado pelo Ministro da Justiça à ABI:

Tarso Genro: após o envio ao Congresso de projeto de lei sobre a divulgação de escutas telefônicas, comunicou à ABI que a proposição não fere a liberdade de informação.

"A proposta do Governo a respeito das escutas ilegais e da sua divulgação, que está sendo remetida ao Congresso Nacional, não tem nenhum vínculo, nenhuma ligação direta ou indireta, nenhum tipo de incidência sobre a reserva de fontes, para os jornalistas,

nem tem qualquer relação com a liberdade da imprensa ou com o direito de informação. Tenho lido alguns comentários sobre o assunto 'escutas ilegais' e seu uso, que não se reportam à proposta do Governo, mas a uma proposta imagi-

nária de que não se sabe a origem. O projeto de lei diz, simplesmente, que utilizar informação obtida ilegalmente, ou que está sob sigilo, para obter vantagem, ou para caluniar, difamar ou injuriar é crime. Aliás, o projeto do Governo apenas cria um novo tipo penal, integrando numa só norma delitos que já existem na legislação brasileira. É absolutamente impossível retirar do projeto a idéia de que ele se destina a 'punir' jornalistas ou a abrir o 'sigilo da fonte'. O projeto do Governo visa, na verdade, a punir pessoas que tiram proveito próprio de escutas ilegais e pessoas que usam as informações para caluniar, difamar ou injuriar. Repito: o projeto não só não veda o direito de informação, como também o protege, porque os grampeadores ilegais vão pensar duas vezes quando tentarem instrumentalizar os jornalistas para usar o direito de informação com o objetivo de obter vantagem pessoal. O jornalista que divulga um fato faz a divulgação abrigado no direito de informação. A responsabilidade penal, no projeto do Governo, sobre o vazamento, ou sobre a escuta ilegal, é de quem faz o vazamento ou de quem organiza a escuta ilegal."


OUSADIA SEM LIMITES

A edição de domingo do Extra que foi impedida de circular por um grupo armado (acima). No dia seguinte o jornal circulou com a notícia da ameaça e republicou a denúncia que motivou a ação dos bandidos.

O leitor que foi às bancas da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, logo cedo, para adquirir sua edição do jornal Extra, na manhã do domingo, 28 de setembro, teve uma surpresa: não havia mais nenhum exemplar do jornal, mesmo sendo o dia em que a tiragem normalmente é a maior da semana. Não se tratava de nenhum fenômeno de vendas, mas foi, certamente, ocasionado por uma manchete explosiva. E revelou até que ponto pode ir a ousadia de alguns grupos com poderio econômico para fazer com que a informação não chegue à população. Tudo começou ainda na madrugada do domingo, quando um grupo armado foi ao Centro de Distribuição de Belford Roxo e comprou todos os 30 mil exemplares do Extra que havia por lá. Depois, ainda foi às bancas, verificar se restara algum jornal disponível. Os jornaleiros que se recusaram a vender a publicação em grandes quantidades foram ameaçados e obrigados a ceder. A intenção do grupo era impedir que os leitores tivessem acesso à reportagem principal, “Deputados em campanha mentem para ganhar salário de R$ 13 mil”. O texto denunciava a ausência dos Deputados Alessandro Calazans (PMN), Rodrigo Neves (PT) e Marcelo Simão (PHS) a sessões da Assembléia Legislativa do Rio, e dizia que inventavam compromissos para ter as faltas abonadas e garantir o subsídio integral, quando, na realidade, estariam fazendo campanha em seus Municípios. Em nota oficial, o Tribunal Regional Eleitoral repudiou a ação, afirmando

FOTO FABIANO ROCHA/AGÊNCIA O GLOBO

Grupo armado evita circulação, na Baixada Fluminense, de edição do Extra que continha denúncia contra políticos locais. Homens ligados ao Deputado estadual Marcelo Simão (PHS) compraram todos os exemplares do jornal Extra, contou o jornaleiro Sidney Lomeu (foto). Nenhuma banca do Município de São João de Meriti tinha o jornal para o leitor comum: foram todos comprados por prepostos dos deputados denunciados pelo jornal.

que “parece claramente um golpe de natureza eleitoral. Igualmente graves são as denúncias de que os jornaleiros foram coagidos a vender todo o estoque, o que só favorece esta hipótese”. Caso seja comprovada a participação de algum político, ele poderá ter seu mandato cassado. Também por meio de nota, o Vicepresidente da Associação Nacional de Jornais-ANJ, Júlio César Mesquita, protestou contra o que chamou de “violência”. “A ação foi um atentado ao direito dos cidadãos de serem livremente informados. Cabe agora às autoridades policiais investigar a ação criminosa

A OAB-RJ também protesta É preciso uma resposta vigorosa a esse atentado à liberdade de imprensa, diz declaração do Presidente Wadih Damous. O Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil–Seção do Estado do Rio de Janeiro, Wadih Damous, repudiou no dia 29 de setembro a ação violenta do grupo que tentou impedir o jornal Extra de chegar às bancas da Baixada Fluminense. Em nota distribuída à imprensa, Wadih disse que é necessário que se proceda a uma “investigação rigorosa, com pronta resposta das autoridades à audácia criminosa dos que tentam suprimir a liberdade de imprensa”. Afirma a OAB-RJ: ”A Ordem dos Advogados do Brasil manifesta sua indignação contra mais uma tentativa de cerceamento da liberdade de imprensa e do direito dos cidadãos do Rio de Janeiro de serem informados. Desta vez, a ação ganhou contornos de tentativa de golpe: a edição do jornal Extra que teve 30 mil exemplares comprados à força continha denúncias contra parlamentares faltosos, candidatos em Municípios da Baixada.

É necessário que se proceda a uma investigação rigorosa, com pronta resposta das autoridades à audácia criminosa dos que tentam suprimir a liberdade de imprensa. Estamos diante do que há de mais retrógrado e condenável em práticas eleitorais que pareciam esquecidas no tempo dos antigos coronéis da política. Ainda é recente o seqüestro de uma equipe de jornalistas por bandidos ligados às milícias que atuam em nosso Estado. Domingo, homens armados coagiram jornaleiros a vender toda a edição para que leitores da Baixada não tomassem conhecimento de denúncias. Os dois crimes atentam contra as liberdades e direitos da cidadania. Às autoridades cabe a punição dos responsáveis. À sociedade, que se prepara para as eleições de domingo, cabe escolher bem quem irá representar os valores da democracia. (a) Wadih Damous, Presidente da OAB-RJ.”

e, à Justiça, punir exemplarmente seus autores”. – É uma afronta à liberdade de informação e de imprensa. Na ação fica evidente o interesse político de algumas pessoas, que precisam ser intimadas pelo Ministério Público. Somente com resistência permanente e denúncia, será possível vencer esses delitos e comportamentos antidemocráticos. – disse o Presidente da ABI, Maurício Azêdo. Para ele, o ato revela um poderio econômico que pode ter origem escusa. – Comprar mais de 30 mil exemplares do Extra, que, aos domingos, custam R$ 2,30 cada, significa um desembolso em dinheiro vivo de R$ 69 mil. De onde vem essa soma? Reação Arcaica, grotesca e criminosa. Foi dessa forma que o Diretor-Executivo do Extra, Bruno Thys, definiu as ações do grupo armado. Mesmo assim, ele garantiu que os leitores não seriam privados das informações: – Ninguém terá seu direito à informação cerceado, daquilo que o jornal já publicou ou do que venha a publicar. A Infoglobo, empresa que edita o jornal, denunciou o fato ao TRE-RJ e, no dia seguinte, o Extra circulou com escolta da Polícia Militar. Uma operação conjunta dos batalhões de Belford Roxo, Duque de Caxias e Praça Tiradentes garantiu que o diário chegasse às bancas locais e fosse vendido. A edição de segunda trazia a manchete “Bando armado restringe venda do Extra em bancas da Baixada”, relatando o caso. Ao lado do texto, estava a íntegra da polêmica reportagem que fora destaque da edição de domingo. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

31


Liberdade de imprensa ANTONIO CRUZ/ABR

A imprensa precisa de lei? Não, ela é dispensável, dizem Miro e Thomaz Bastos A Constituição de 1988 revogou a lei atual e não há por que substituí-la, dizem o Deputado e o ex-Ministro da Justiça.

Ministro Ayres Britto: No caso de segredo de justiça é preciso avaliar se a divulgação prejudicará a eficácia da investigação.

verno ou um país sem imprensa”, ele ficaria com a primeira hipótese, “por entender que a sociedade não pode viver sem imprensa”.

O seminário constou de seis debates, seguidos da intervenção de personalidades especialmente convidadas, como o Deputado Ciro Gomes, os Governadores Aécio Neves e José Serra e a Ministra Dilma Rousseff, todos, aliás, candidatos potenciais à Presidência da República. No intervalo entre a sessão da manhã e a da tarde, após o almoço, o Presidente da Editora Abril, Roberto Civita fez uma exposição sobre a trajetória da Veja desde a sua criação, em setembro de 1968. Também discursou no seminário, encerrando a primeira parte, o Vice-Presidente da República José Alencar, que, com bom humor, disse que não abordaria o tema sobre o qual fala com freqüência, “a taxa de juros”, preferindo discorrer “sobre o custo do dinheiro”, imagem recebida com risos pela platéia – na qual estavam presentes o Ministro do Desenvolvimento Econômico, Miguel Jorge; o Presidente do Senado, Garibaldi Alves; o Deputado Michael Temer; o Presidente da Conselho Federal da OAB, César Brito; e o Presidente da ABI, Maurício Azêdo. Marcaram presença também os candidatos à Prefeitura de São Paulo Martha Suplicy, Gilberto Kassab e Geraldo Alckmin.

Márcio Thomaz Bastos (acima): A imprensa não tem que ser justa, e sim livre. Miro: Defesa do jornalismo sem risco de prisão.

A PROGRAMAÇÃO COMPLETA DO SEMINÁRIO FOI ESTA 9H30MIN – PAINEL EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO COM QUALIDADE - OS CAMINHOS

Coutinho, Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico-BNDES; Maílson da Nóbrega, ex-Ministro da Fazenda.

DA PRODUTIVIDADE E DA PROSPERIDADE

Moderador: Gustavo Ioschpe. Palestrantes convidados: Ministro Fernando Haddad, Maria Helena Guimarães, Secretária de Educação do Estado de São Paulo, e Professor José Alexandre Scheinkman. 10h20min – Governar para a próxima geração Deputado Federal Ciro Gomes 10H30MIN – PAINEL MEIO AMBIENTE CONSERVAÇÃO VERSUS DESENVOLVIMENTO Moderador: Claudio Moura Castro. Palestrantes convidados: Blairo Maggi, Governador de Mato Grosso; Ministro do Meio Ambiente, Deputado Carlos Minc; e Luiz Augusto Horta Nogueira. 11h20min – Governar para a próxima geração Governador de Minas Gerais, Aécio Neves 11H30MIN – PAINEL ECONOMIA O NOVO PAPEL DO BRASIL NO MUNDO Moderador: Eurípedes Alcântara, Diretor de Veja. Palestrantes convidados: Henrique Meirelles, Presidente do Banco Central; Armínio Fraga, ex-Presidente do Banco Central; Luciano

14H30MIN – PAINEL IMPRENSA O PAPEL DA IMPRENSA - O FORTALECIMENTO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

Moderador: Reinaldo de Azevedo Palestrantes convidados: Ministro Carlos Ayres Britto; Márcio Thomaz Bastos; Deputado Miro Teixeira. 15h20min – Governar para a próxima geração Governador de São Paulo, José Serra 15H30MIN – DEMOCRACIA, RAÇA E POBREZA Moderador: Carlos Graieb Palestrantes convidados: Hélio Santos; Patrus Ananias, Ministro do Desenvolvimento Social. 16h20min – Governar para a próxima geração Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff 16H30MIN – PAINEL MEGACIDADES ELAS SÃO INEVITÁVEIS - COMO EVITAR OS MEGAPROBLEMAS Moderador: Carlos Maranhão. Editor de Veja Rio Palestrantes convidados: Jaime Lerner, Raquel Rolnik e Jonas Rabinovich.

WILSON DIAS/ABR

32 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

JOSÉ CRUZ/ABR

Em intervenções no seminário comemorativo dos 40 anos da revista Veja, realizado no dia 2 de setembro no Hotel Unique, em São Paulo, o exMinistro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e o Deputado Miro Teixeira sustentaram que a Constituição de 1988 revogou a Lei de Imprensa, que está sendo objeto de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional, que o Supremo Tribunal Federal começou a julgar em 28 de fevereiro passado. Ambos entendem que não há a necessidade de uma lei específica para regular a imprensa, como existe atualmente. O Deputado Miro Teixeira (PDTRJ), que é membro do Conselho Consultivo da ABI, declarou também que é necessário descriminalizar a atividade jornalística de qualquer texto legal, porque a Constituição de 1988 determina que nenhuma lei poderá constituir embaraço “à liberdade de informação jornalística”. Márcio Thomaz Bastos e Miro Teixeira participaram de uma mesa coordenada pelo colunista da Veja Reinaldo de Azevedo, da qual participou o Ministro do Supremo Tribuanl Federal Carlos Ayres Britto, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional ajuizada por Miro através de seu partido. Durante o debate, o moderador Reinaldo de Azevedo indagou se um jornalista, com base na liberdade de imprensa assegurada pela Constituição, poderia divulgar algum fato referido em um processo em tramitação sob segredo de justiça. O Ministro Ayres Britto ponderou que, nesse caso, teria que ser considerado se a divulgação da informação não prejudicaria a eficácia dos procedimentos investigatórios em curso, hipótese que, a seu ver, não estaria protegida pela liberdade de imprensa. Thomaz Bastos lembrou um célebre julgamento na Suprema Corte dos Estados Unidos, em que foi vitorioso o entendimento do juiz de que a imprensa “não tem que ser justa, ela tem, isto sim, de ser livre”. Ao encerrar o debate, Reinaldo de Azevedo repetiu uma frase do Presidente Thomas Jefferson, citada pouco antes pelo ex-Ministro. Questionado sobre a opção que faria no exemplo dado, Jefferson declarou que, “entre o dilema de optar por um país sem Go-


Direitos humanos

Temos de ajustar contas com o passado, diz Fábio Comparato

Um dos aspectos menos louváveis do caráter nacional é a leviana facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado. Desde o início da colonização e até hoje, múltiplas etnias indígenas foram vítimas de genocídio e de desculturação forçada. Durante quase quatro séculos, a escravatura legal de africanos e afro-descendentes destruiu e aviltou milhões de seres humanos, deformando os nossos costumes e a nossa mentalidade. Em relação a ambos esses crimes coletivos, as gerações atuais não se sentem minimamente interessadas. Pior: é geral a ignorância a esse respeito, sobretudo entre os jovens, provocada pela intencional omissão de tais fatos históricos nos currículos escolares. Reproduzimos agora, com relação aos horrores do regime militar, a mesma atitude vergonhosa de virar as costas ao passado: “não tenho nada a ver com isso”; “não quero saber, pois não havia nascido”. “vamos nos ocupar do futuro do País, não de fatos pretéritos”. Pois bem, sustento e sustentarei, até o último sopro de vida, que interpretar a Lei nº 6.683, de 28/8/ 1979, como tendo produzido a anistia dos agentes públicos que, entre outros abusos, mataram, torturaram e violentaram sexualmente presos políticos é juridicamente inepto, moralmente escandaloso e politicamente subversivo. Sob o aspecto técnico-jurídico, a citada lei não estendeu a anistia criminal aos carrascos do regime mi-

É juridicamente inepto, moralmente escandaloso e politicamente subversivo o entendimento de que os torturadores estão protegidos pela Lei de Anistia, sustenta ele em artigo na Folha de S. Paulo. Um dos mais atuantes e destacados militantes das lutas em defesa dos direitos humanos durante a ditadura dos anos 1964-1985, o jurista Fábio Konder Comparato, professor titular da Universidade de São Paulo, atualmente aposentado, repudiou em artigo na Folha de S. Paulo a idéia de que os agentes públicos que praticaram torturas durante o regime militar teriam sido alcançados e beneficiados pela Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia. Esse entendimento, afirma, “é juridicamente inepto, moralmente escandaloso e politicamente subversivo”. A opinião de Comparato foi exposta no artigo Crimes sem castigo, publicado na página de opinião (página 3) da Folha de S. Paulo, edição de 19 de setembro, e precedido de uma epígrafe com as seguintes palavras: “Em homenagem a todos os que tiveram suas vidas ceifadas e suas almas dilaceradas pelo poder militar”. Comparato, que é membro da Comissão de Honra do Centenário da ABI, é autor de inúmeras obras, entre as quais Ética, Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno, lançado recentemente pela Companhia das Lertras. O texto do artigo está reproduzido a seguir. litar. Só há conexão entre crimes políticos e crimes comuns quando a lei expressamente o declara, como sucedeu com a Lei de Anistia promulgada por Getúlio Vargas em abril de 1945, em preparação ao fim do Estado Novo. Mas, mesmo quando a lei o declara, a conexão criminal supõe que o autor ou os autores de tais crimes perseguiram o mesmo objetivo e não estavam em situação de confronto. Admitir a conexão entre crimes cometidos com objetivos totalmente adversos é um despropósito. Isso sem falar na violação

flagrante, no caso, de preceitos consagrados internacionalmente em matéria de direitos humanos e que não comportam anistia. Sob o aspecto moral, impedir oficialmente que sejam apuradas e reveladas ao público práticas infames e aviltantes de abuso de autoridade é inculcar, para todos os efeitos, a vantagem final da injustiça sobre a decência; ou seja, afirmar que a imoralidade compensa. Falar, a respeito da citada lei, em reconciliação nacional é um cínico abuso de linguagem. Moralmente, só pode haver reconciliação quando

pactuada entre as partes envolvidas no litígio e perfeitamente cientes dos fatos ocorridos. O que não ocorreu no caso: uma das partes, justamente o conjunto das vítimas das atrocidades cometidas, não foi chamada a dizer se aceitava ou não essa forma de apaziguamento, nem foi informada sobre a identidade dos executores e de seus mandantes. Politicamente, admitir que agentes do Estado, que exerciam funções oficiais e eram remunerados com recursos públicos, isto é, dinheiro do povo, possam gozar de imunidade penal por meio de simples lei, votada sem consulta prévia nem referendo popular, representa clamoroso atentado contra o princípio republicano e democrático. O Congresso Nacional, ao assim proceder, usurpou a soberania popular e subordinou o bem comum do povo (“res publica”) ao interesse particular de um punhado de facínoras e de seus comanditários, dentro e fora do governo. Qual a solução? É pedir à mais alta corte de Justiça do País que julgue, definitivamente, se a Lei de Anistia deve ou não ser interpretada à luz dos princípios fundamentais que esteiam todo o nosso sistema jurídico. Nesse sentido, é confortador saber que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil já decidiu propor, no Supremo Tribunal Federal, uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no tocante à interpretação desviante da Justiça e da decência dada por certos setores à Lei nº 6.683, de 1979.”

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

33


FOTOJORNALISMO

Ayrton Senna é fotografado por Luiz Prado do jornal O Estado de S.Paulo, em 1993, depois de vencer o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1. No mesmo ano Emerson Fittipaldi celebra sua segunda vitória nas 500 milhas de Indianápolis com suco de laranja, contrariando a tradição local de comemorar com leite. Foto de Todd Panagopoulos.

O fino da imagem jornalística lá e cá A Comissão Fullbright apresenta 126 fotografias de fatos marcantes dos últimos 50 anos no Brasil e Estados Unidos. POR CLÁUDIA SOUZA

A queda dos presidentes Nixon e Collor, as conquistas de Ayrton Senna e de Muhammad Ali (Cassius Clay), a sensualidade da garota de Ipanema Helô Pinheiro e de Marilyn Monroe, as lutas dos sem-terra e de Martin Luther King ou um mágico pôr-do-sol, observado tanto da Estátua da Liberdade quanto do Cristo Redentor. O que se viu na exposição Impressões Visuais – 50 Anos da Comissão Fulbright no Brasil, que esteve em cartaz no Museu da República, no Rio de Janeiro a partir de 18 de setembro, foi que Estados Unidos e Brasil viveram histórias cheias de semelhanças nas últimas décadas. A mostra, organizada pela Embaixada dos Estados Unidos e pela Comissão Fulbright, reuniu 126 fotografias que marcaram a história e as relações culturais entre Brasil e Estados Unidos ao longo dos últimos 50 anos, todas publicadas em jornais e revistas nesse perí34 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

odo e agora cedidas pelos arquivos dos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Última Hora, The Washington Post e The New York Times, além de vários museus. Num trabalho de um ano e oito meses, o curador João Kulcsár selecionou as imagens, algumas ganhadoras de prêmios como Pulitzer, Esso e World Press Photo. – A pesquisa foi feita em arquivos brasileiros e norte-americanos e pretende revelar imageticamente, em várias dimensões, algumas diferenças e semelhanças entre as duas nações, em aspectos histórico, documental e estético. Muitas das fotos resistiram ao tempo e continuam inspirando e evocando lembranças após anos de publicação em jornais e revistas. E muitas se tornaram, sem dúvida, ícones do fotojornalismo, pois conseguiram resgatar momentos históricos com força e inscreveram-se em um processo mais amplo da memória visual coletiva – explica Kulcsár. Os visitantes puderam acompanhar essa trajetória dividida em seis capítu-

los. Em Herança, as imagens retrataram a formação dos dois países, resultado da mistura de povos indígenas, africanos, europeus, asiáticos e do Oriente Médio. Um caldeamento étnico e racial que enfrenta os desafios da desigualdade. Política reuniu 50 anos de intensas mudanças em imagens que mostraram, entre outros fatos importantes, a construção de Brasília, a ditadura militar no Brasil, a morte do Presidente Kennedy e o impeachment de Fernando Collor. As semelhanças culturais entre as duas nações, apesar dos cenários distintos, ainda puderam ser observadas no capítulo Cultura, com imagens do pôr-do-sol no Cristo Redentor e na Estátua da Liberdade, o fenômeno Carmen Miranda, a Bossa Nova unindo Tom Jobim e Frank Sinatra, a garota de Ipanema Helô Pinheiro, Marilyn Monroe e o Carnaval no Sambódromo do Rio de Janeiro. Em Cidadania, foram expostas as lutas pelos direitos civis, liberdade e paz nos dois países, com destaque para o sonho de Martin Lu-

ther King, as lutas do movimento dos sem-terra e o atentado terrorista ao World Trade Center. As imagens finais mostraram o brilhantismo de Muhammad Ali, ao lado de grandes heróis brasileiros, como João do Pulo, Éder Jofre e Ayrton Senna, em Esportes, e a devastação da natureza e catástrofes ambientais em contraste com a beleza natural das cataratas de Foz de Iguaçu, da Chapada Diamantina e do Grand Canyon, em Meio Ambiente. Hora de reflexão A Comissão Fulbright foi criada pelo Governo dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial para promover a compreensão entre os povos e cumprir a missão de seu fundador, Senador William J. Fulbright, que acreditava “em qualquer programa que transformasse nações em pessoas”. A organização atua na área acadêmica em parceria com diversas instituições nacionais, promovendo o intercâmbio educacional e cultural.


Entre as fotos expostas, duas que unem esporte e religião: Pelé na década de 60, fotografado por Domício Pinheiro, de O Estado de S.Paulo (Coleção Pirelli/Masp) e Jesus Salva, na inspirada foto de Antônio Gaudério; ao lado, o campeão dos pesospesados Muhammad Ali é fotografado por John Rooney no momento em que nocauteia Sonny Liston, em 1965 (AP). Abaixo, a foto ganhadora do Prêmio Pulitzer de 1946 de Joe Rosenthal (AP) ao lado, aquela que seria uma das imagens mais reproduzidas de Marilyn Monroe por Mary Zimmerman.

Ao longo de cinco décadas, foram concedidas mais de 5 mil bolsas de estudos a brasileiros e norte-americanos, estabelecendo o diálogo entre as duas nações. Dentro das comemorações do cinqüentenário, a Comissão Fulbright acaba de lançar uma nova bolsa de estudos para a Universidade de Columbia, EUA, em homenagem à antropóloga Ruth Cardoso. O Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Clifford M. Sobel, presente à inauguração da exposição, sublinhou que ela sugere reflexões. – No mundo cada vez mais globalizado, precisamos continuar fiéis ao ideal de humanização das relações internacionais. As imagens da mostra nos inspiram a pensar sobre o que podemos esperar para os próximos 50 anos. Quaisquer que sejam os desafios à frente, estaremos em melhor situação se aprendermos mais uns sobre os outros, experimentarmos e compartilharmos a cultura de nossos povos. Luiz Valcov Loureiro, DiretorExecutivo da Comissão Fulbright no Brasil, destaca os talentos brasileiros que já participaram do projeto: – Ao longo desse tempo, temos identificado e apoiado lideranças, fomentando o intercâmbio educacional e cultural. Ex-bolsistas da Fulbright incluem expoentes de diversos setores da sociedade brasileira, como o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, os escritores Moacyr Scliar e João Ubaldo Ribeiro, a Ministra Ellen Gracie, exPresidente do Supremo Tribunal Federal, e o economista Celso Lafer. Para os próximos 50 anos, além de manter o trabalho cujo resultado é amplamente reconhecido em todo o mundo, nosso desafio é ampliar o alcance do programa, trazendo para ele toda a diversidade que caracteriza nossos países e que é retratada nessa exposição. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

35


FOTOJORNALISMO

O melhor da fotografia mundial em Paraty Em sua quarta edição, o Festival Internacional Paraty em Foco contoucom ótimas palestras e grandes nomes da arte de fotografar. POR CLÁUDIA SOUZA

São poucos os eventos em todo o mundo capazes de reunir grandes mestres da fotografia contemporânea, apresentar uma programação ampla e de qualidade e, de quebra, ainda promover a troca de experiências e a revelação de novos talentos. Ao fazer tudo isso e um pouco mais, o Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco, o PEF 2008, realizado de 10 a 14 de setembro, não apenas se tornou um dos principais eventos mundiais da área como colocou a cidade no circuito internacional da fotografia. Os brasileiros Evandro Teixeira, Cláudio Edinger, Fabiana Figueiredo e Luiz Braga estiveram lado a lado com o holandês Machiel Botman, o francês Pierre Devin, os norte-americanos Ralph Gibson e Bruce Gilden e o italiano Francesco Cito, realizando debates, palestras, oficinas e lançamentos de livros. Entre os tantos temas, destaque para o mercado de arte fotográfica, a fotografia digital, a narrativa fotográfica, o retrato e o fotojornalismo. Uma das mais concorridas foi a aula prática em uma escuna que percorreu as ilhas da região. Monitorados por alunos da Faculdade Senac de Fotografia, os participantes agora terão seus trabalhos exibidos na Casa da Cultura de Paraty. – Os presentes puderam aprender como desenvolver um projeto autoral,

36 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

O Festival Paraty em Foco colocou a cidade fluminense no circuito internacional da fotografia com uma exposição de trabalhos dos mais importantes fotógrafos na imprensa mundial, como a do nado sincronizado de Ray Colton (no alto à esquerda) e, no sentido horário, Fabiana Figueiredo, Bruce Gilden, Ralph Gibson e Francesco Cito.

Uma das imagens mais marcantes da repressão ao movimento estudantil pela ditadura militar foi produzida por Evandro Teixeira e também pôde ser vista na mostra.

produzir um portfólio e até um livro e se posicionar no mercado nacional e estrangeiro. Com a presença de tantos profissionais experientes, o Festival transformou-se numa oportunidade única para quem queria aprimorar o olhar e a técnica – explica Marcelo Greco, curador do PEF 2008. Entre as palestras, chamou a atenção a exposição de Jay Colton, editor da revista Time por dez anos, que falou sobre O futuro do mercdo editorial internacional, e o navegador Amyr Klink,

que discorreu sobre A fotografia em grandes expedições. – Depois de se tornar uma referência com a Feira Literária Internacional de Paraty-Flip, agora é a vez de a cidade se tornar um pólo internacional da fotografia. Num ambiente sem fronteiras para a criação fotográfica, esta quarta edição do evento promoveu a arte e mostrou novos talentos que, tenho certeza, logo estarão despontando no mercado – assegura o Presidente do PEF 2008, Christian Maldonado.


Livros

Inéditos de Celso Furtado agora em livros O primeiro volume de uma série de 12 fala da Venezuela em textos cuja publicação foi proibida no fim dos anos 50 pelo Presidente Pérez Gimenez.

Mais histórias que o rádio não contou A vida de Orlando Duarte, um dos grandes nomes da imprensa esportiva, e fatos curiosos sobre a história do rádio estão em Na Mesma Sintonia. A primeira transmissão sonora de que se tem notícia foi ouvida em Marselha, Sul da França, em 1908, a partir de uma válvula ampliadora instalada em plena Torre Eiffel. Por trás do feito, estavam os experimentos de um jovem estudante, o italiano Guglielmo Marconi. Muito tempo antes de Marconi, porém, em 1892, o padre brasileiro Roberto Landell de Moura já emitia sons nos altos de Santana, Zona Norte de São Paulo, que eram captados na Avenida Paulista. Ironia das ironias, Marconi se tornou Nobel e Moura, bruxo. Histórias como essa dão tempero especial a Na Mesma Sintonia (Editora Senac São Paulo, 104 páginas), obra que traz não apenas curiosidades e alguns dos fatos mais importantes da história e dos bastidores do rádio, mas também narra – em perfeito trocadilho – a vida e carreira de uma das figuras mais importantes da imprensa esportiva no Brasil, o jornalista Orlando Duarte. Os textos, da autoria de Duarte, falam de momentos nostálgicos, como a Era de Ouro do rádio brasileiro, o glamour de suas rainhas, a saga das primeiras emissoras e as transmissões que entraram para a história, como a adaptação para o rádio de A Guerra dos Mundos, por Orson Welles, ou a primeira narração de uma partida de futebol feita por uma mulher, Claudete Troiano. Já a vida do locutor e apresentador ganha forma por meio de entrevista concedida a Chico Barbosa. Na Mesma Sintonia oferece uma leitura leve e não pode ser encarado como uma biografia propriamente dita de Duarte ou uma história completa do rádio, mas apresenta um ingrediente muito mais original: ao tratar de sua trajetória, Orlando Duarte acaba falando também sobre o trabalho da imprensa esportiva brasileira, trazendo à memória um dos mais importantes capítulos da história do jornalismo brasileiro.

O primeiro dos 12 volumes da coleção Arquivos Celso Furtado, que reúne textos inéditos do economista, morto em agosto de 2004, foi lançado no dia 16 de setembro na sede do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-Ipea, no Centro do Rio, em ato que contou com a participação da jornalista Rosa Furtado, viúva do homenageado, e do Professor Carlos Aguiar de Medeiros, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A seleção do material teve início pouco antes da morte do economista, quando Celso e Rosa Furtado começaram a fazer uma arrumação em casa e se deram conta da grande quantidade de material que tinham arquivado, entre manuscritos, anotações de cursos, estudos, relatórios, correspondência, entrevistas e artigos. Todo o acervo pertence ao Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, dirigido por Rosa, que considera que o de interesse do projeto não é restrito a documentaristas e historiadores, já que resgata a atualidade dos documentos, trazendo-os para o presente, como contribuição ao debate em torno das idéias de seu falecido marido: – Para mim, esse trabalho é muito significativo. Eu já vinha

trabalhando na revisão de textos do Celso e esses documentos são importantíssimos. Achei que através do projeto eles funcionariam como uma divulgação completa de sua obra, distribuída em 12 livros. O próximo volume será lançado até o fim do ano. Publicação proibida O primeiro do volume da série é Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas, que traz dois estudos de Celso Furtado sobre questões relacionadas ao petróleo naquele país. A primeira visita do economista à Venezuela aconteceu em 1957, quando ele foi incumbido pela Comissão Econômica para a América Latina-Cepal de fazer um estudo sobre o impacto que a abundância do petróleo havia provocado na economia, com a valorização da moeda local. O trabalho, porém, nunca chegou a ser publicado: Celso recebeu do então chefe da Divisão de Desenvolvimento Econômico da Cepal, José Antonio Mayore, um comunicado dizendo que o Presidente Marcos Pérez Gimenez proibira que o trabalho viesse a público, alegando que “o enfoque sobre o problema da moeda não é acertado e,

mais ainda, poderia dar uma arma às companhias petroleiras para modificar em seu favor a taxa de câmbio”. Ao voltar à Venezuela em 1974, Celso relembrou o ocorrido e comentou: “A única coisa certa era que a oportunidade de saltar por cima do subdesenvolvimento se perdera.” Os estudos do primeiro livro são uma análise do que hoje se chama “doença holandesa”, tema de grande atualidade especialmente para o Brasil, onde, na avaliação do Ministro Guido Mantega, “o petróleo do pré-sal poderá dobrar as reservas internacionais do País”. O projeto O projeto Arquivos Celso Furtado é uma parceria da editora Contraponto com o Centro Celso Furtado. Além dos trabalhos do economista, os livros da coleção trarão um ou dois artigos encomendados a professores e especialistas que situem os documentos e recuperem sua atualidade, ou que expliquem a sua importância no passado. As publicações terão muitas fotos, reprodução de manuscritos, recortes de órgãos de imprensa e fac-símiles. A solenidade de lançamento foi coordenada por uma mesa composta por Rosa Furtado; o editor César Benjamim, da Contraponto; o Professor Carlos Aguiar de Medeiros ; e o jornalista Gilberto Maringoni.

Um manual básico para quem começa Leandro Fortes, da Sucursal Brasília de CartaCapital, desmitifica o jornalismo e oferece aos focas a possibilidade de “olhar pela fechadura”, antes de se aventurarem nas Redações. O jornalismo é uma das profissões mais glamourosas que existem. Fruto de outros tempos, em que imperavam o romantismo e a boemia. Mas os tempos mudaram e, com eles, também a profissão. Em Os Segredos das Redações, o experiente jornalista Leandro Fortes, profissional com passagens por O Estado de S.Paulo, Zero Hora, Jornal do Brasil, O Globo, Época, TV Globo, e atualmente repórter da Sucursal Brasília de CartaCapital, mostra algumas dessas transformações e quebra diversos mitos que ainda sobrevivem em filmes e até nas escolas de comunicação. Assim, discute questões como a isenção do repórter, a imparcialidade do jornalismo, a idéia de que fontes são sempre desinteressadas

quando passam alguma informação exclusiva, os interesses que governam a cobertura dos grandes veículos e a competição selvagem do meio. É uma espécie de “buraco da fechadura”, que permite ao foca espiar algumas das coisas que o aguardam na Redação. Calma. O livro não é um tipo de “spoiler”, aquelas notinhas que tiram a graça de novelas e séries televisivas, ao revelar o que acontecerá nos próximos capítulos da trama. Seu objetivo não é causar desilusão nos novos profissionais. Pelo contrário. A obra é até otimista, mas tenta preparar melhor os idealistas, que acham que conseguirão mudar facilmente o mundo e, quando se deparam com as primeiras dificuldades, acabam desistin-

do. Como ele mesmo diz, o jornalismo é uma selva e é importante conhecer a fauna que governa esse espaço, do patrão ao chefe de redação. Outro segredo que o livro procura “desvendar” é o de como desenvolver melhor a pauta jornalística. Apesar de ser tema recorrente e bastante batido, as dicas do autor para utilizar o lide e a pirâmide invertida, ter um texto objetivo e não resvalar nos perigos éticos do dia-a-dia são lembretes importantes para quem está começando e para os veteranos, sufocados e cercados por todos os lados por essas práticas. Ainda mais porque o bom jornalismo, como concorda Fortes, não está em seguir regras, mas em usar muito a intuição e a observação, aprendendo sempre com os mestres, aqueles autores de grandes matérias que não se cansam de sujar os sapatos nas ruas em busca das últimas notícias. (Marcos Stefano) Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

37


RESGATE

JOÃO CÂNDIDO, UM HERÓI DO BRASIL Reparando quase um século de injustiça e esquecimento, a vida do Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata de 1910, é contada em quadrinhos e pode ir também para os cinemas. POR MARCOS STEFANO

Rio de Janeiro, novembro de 1910. Uma injustiça histórica aconteceu naquele ano e só agora, quase um século depois, começa a ser reparada por meio de algumas iniciativas do Congresso e da sociedade brasileira. Naquele tempo, a escravidão estava abolida havia mais de 20 anos, mas a mentalidade escravocrata continuava viva e espalhava terror e discriminação. Mais que em qualquer lugar, na Marinha brasileira, essa realidade era tangível. Os marujos, em sua maioria negros ou mulatos, sofriam todos os dias castigos e torturas brutais dos oficiais brancos. Geralmente, pelas menores falhas, esses marinheiros eram espancados e recebiam chicotadas por todo corpo, à vista da tripulação. Maus-tratos também eram comuns. Além do soldo irrisório, quase sempre lhes era oferecida comida estragada e proliferavam as doenças, causadas pelo elevado tempo que passavam no mar, nos ambientes insalubres dos navios. Nesse ambiente degradante, onde a maior guerra era pela sobrevivência e dignidade, surgiu a figura de João Cândido Felisberto. Sob sua liderança, cerca de 2.300 marinheiros se rebelaram contra aquela condição, para exigir do recém-eleito Presidente Marechal Hermes da Fonseca o fim dos castigos da chibata, condições decentes de trabalho, uma Marinha justa e a verdadeira liberdade. O motim durou cinco dias, de 22 a 27 de novembro de 1910. Depois do castigo com 250 chicotadas a que foi submetido o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, acusado por ter machucado um colega, os amotinados tomaram o controle do “orgulho da frota e primor da Marinha”, o Minas Gerais, maior navio de guerra do mundo na época, e outras três embarcações, o Bahia, o Deodoro e o São Paulo. Alinhados na Baía da Guanabara, eles ameaçavam bombardear a Capital Federal, caso não houvesse acordo. Mas o Almirante Negro, como passou para a História João Cândido, não queria violência. Por isso, quando a Revolta da Chibata alcançou seu intento – os participantes do movimento foram anistiados pelo Decreto Legislativo 2.280, em 25 de novembro, apenas três dias após o motim e, logo em seguida, o Governo aceitou as exigências dos marinheiros – houve a rendição. Foi uma vitória histórica e nunca mais aconteceram os terríveis castigos físicos. Mas, então por que os livros de História pouco mencionam o que aconteceu naqueles dias e o movimento ficou relegado apenas a notas de rodapé? Na verdade, a História não acabou ali. Inconformada, a Marinha fez de tudo para se vingar da “derrota” que sofrera. Pouco tempo depois, os participantes da revolta foram expulsos das Forças Armadas, novamente presos e torturados. Centenas foram embarcados em navios, com a desculpa de serem deportados para a Região Norte e trabalhar em serviços como a Ferrovia MadeiraMamoré, mas nunca chegaram ao destino: foram executados sumariamente no meio do caminho e tiveram seus corpos lançados ao mar. Os líderes foram mantidos presos em uma cela minúscula e eram torturados. Dos 18, apenas dois sobreviveram. João Cândido foi um deles. Com a saúde abalada e a mente adoentada, ele foi trancafiado num hospício. Seus registros foram apagados oficialmente. Era como se nunca tivesse existido ou feito parte da Marinha. Jornalistas que tentaram contar sua história foram ameaçados e intimidados durante décadas. Não admira que, hoje, ainda seja um personagem tão desconhecido, apesar de sua importância. Agora, no entanto, os ventos parecem soprar em outras direções. Diversas ações têm sido programadas e realizadas para tornar real um pedido que vem desde novembro de 1910: fazer justiça. O primeiro ato partiu do Congresso. A anistia póstuma de João Cândido e seus companheiros foi aprovada no último dia 13 de maio no Senado e se tornou oficial, após a publicação no Diário Oficial de 24 de julho. As outras, estão no campo das artes e servirão para conscientizar a população de que o Brasil tem, sim, seus heróis e eles foram os marinheiros da Revolta da Chibata. 38 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

A partir de textos do jornalista Edmar Morel, que aparece nos quadrinhos, os autores criaram a parte investigativa da história.


Acaba de ser lançado pela editora Conrad o livro Chibata! João Cândido e A Revolta Que Abalou o Brasil, obra que fala sobre os acontecimentos de 1910 e traz a vida do Almirante Negro. Detalhe: a história é toda contada em quadrinhos. São 224 páginas de um roteiro inteligente e uma arte que surpreende pela dinâmica e movimento em preto e branco. A obra foi produzida por Olinto Gadelha Neto, que assina o roteiro, e Hemetério, o artista dos desenhos. Juntos, eles superaram as dificuldades de estarem em Fortaleza, CE, longe do eixo Rio-São Paulo, e mostraram que o Nordeste tem muitos artistas com talento nacional. – Um dos motivos que nos atraíram à saga de João Cândido foi o fato de que o público pouco sabe sobre o tema. Ele não é, obviamente, um herói convencional, e sempre houve uma forte campanha institucional trabalhando para cercear a divulgação dos fatos relacionados com a Revolta. Assim, onde havia lacunas nos registros documentais e históricos, usamos a ficção. A infância de João Cândido, como retratada no livro, por exemplo, foi dramatizada. Essas intervenções nos ajudam a entendê-lo, e dar maior sentido à sua luta. Localizar no passado de onde vêm suas motivações e como surgiu seu instinto para a liderança é uma forma de compreendermos, no seu futuro, por que seus pares confiaram a ele suas vidas, e seguiram seus passos no momento crucial. – explica o roteirista Olinto Gadelha Neto. O trabalho começou a partir de um convite da própria editora, que deu todo apoio e liberdade para o desenvolvimento do roteiro e dos desenhos. Pesquisas em livros, artigos e sites foram realizadas por meses e, por fim, complementadas pela viagem ao Rio, para ver os locais onde se passaram os acontecimentos e selar o período de preparação. Para Hemetério, este projeto é o maior sinal de que o mercado de quadrinhos está em franca expansão no País, sobretudo, para obras de forte cunho autoral, seja na ficção, adaptações literárias ou a partir de fatos históricos. – Foi pela música Mestre-Sala dos Mares que conhecemos a Revolta. Mas por causa da pesquisa para fazer a história em quadrinhos descobrimos em João Cândi-

do um dos construtores da identidade brasileira, um herói do mesmo nível de Tiradentes e Zumbi, por exemplo. Eu o descreveria como um símbolo de insubmissão, de que o brasileiro é capaz de grandes coisas, inclusive a de lutar bravamente pela sua liberdade e auto-afirmação. Se, para as novas gerações, nossa hq tiver o mesmo papel da música de Aldir Blanc e João Bosco, será uma honra e uma felicidade. – garante ele. O livro evita a versão oficial dos fatos, narrada pela Marinha. Tanto Olinto como Hemetério a consideram “mais ficcional do que qualquer outra obra”. Por isso, trabalham com lembranças, memórias e experiências vividas pelas personagens. A trama começa em 1943 e sua primeira parte é baseada em lembranças de um João Cândido ainda internado em um sanatório. Saltos intercalam a ação em diferentes épocas e mostram cenas fragmentadas e fora de ordem. É uma escolha estética um pouco mais ousada e o recurso não é utilizado gratuitamente, já que procura realçar o estado frágil de sanidade mental do marinheiro. Adiante, o ponto de vista passa a ser de Edmar Morel, jornalista que foi recriado dramaticamente a partir de seus escritos e de uma pesquisa feita sobre sua trajetória. Aí o enredo corre mais preciso, direto, quase investigativo. – Poucos sabem o que aconteceu naqueles dias de 1910. Foi uma insurreição contra uma forte instituição nacional e ressaltou o que havia de pior nas relações sociais e raciais da nossa sociedade. Por isso, o tema sempre foi historicamente tratado com certa reserva. Aprendi que se você dá voz aos esquecidos, eles sempre contam as melhores histórias. Trata-se de uma luta pela liberdade, desmascarando confrontos étnicos e sociais, culminando no sacrifício que apenas os verdadeiros heróis fazem, arriscar a própria vida para o bem de muitos. Mas duvido que o assunto esteja esgotado. – completa Olinto.

Almirante em quadrinhos

Olinto (E) e Hemetério se inserem na trama numa “participação especial” a la Hitchcock e Stan Lee, como dois barqueiros que levam João Cândido ao Minas Gerais pela última vez.

Outra iniciativa é o lançamento da Frente de Apoio ao Projeto Chibata, liderada pela Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia-UMNA e com participação de entidades como a Associação Brasileira de Imprensa. A idéia é viabilizar a realização do longa-metragem Chibata – A Vida de João Cândido. De acordo com a Frente, a proposta é que o filme chegue às telas em 2010, quando se comemora o centenário do movimento Revolta da Chibata. O projeto tem o apoio da família de João Cândido. A filha do marinheiro, Zeelândida, antes de morrer, deu sua aprovação ao projeto. Adal-

berto Cândido, o Candinho, filho caçula e funcionário da ABI há 55 anos, aprovou o roteiro do longa, já registrado na Biblioteca Nacional. – Essas iniciativas são importantes por causa da memória de meu pai e para reparar uma injustiça, já que não existe anistia sem a devida indenização. Meu pai sofreu muito. Apesar de ter sido anistiado em 1910 e absolvido em 1912 de todos os inquéritos que o incriminavam, ficou sem condições de sustentar a família, porque foi dispensado da Marinha. — diz Candinho. Diante de tais iniciativas, é fundamental reconhecer outro ponto: o grito dado por João Cândido e seus companheiros em 1910 ecoa até hoje. É o grito da liberdade, dos marginalizados, dos movimentos sociais, até da imprensa que não aceita a censura. Como disse um marinheiro em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, de 24 de novembro daquele ano: “O senhor sabe que nós não somos cachorros. Somos gente como eles”. O clamor de todos é idêntico. Mas para que se torne realidade, precisa ser ouvido, pois como diz a letra de O MestreSala dos Mares: “Salve o Almirante Negro, que tem por monumento, as pedras pisadas no cais”, os fundamentos da história não podem ser renegados.

Do mar para as telonas

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

39


PESQUISA

POR CLÁUDIA SOUZA

40 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

tratégico para seu presente e, sobretudo, para construir outro tipo de futuro.

O maior levantamento já realizado no País conclui que os brasileiros estão lendo mais, mas continua muito grande o número daqueles que não lêem. DIVULGAÇÃO

O brasileiro está lendo mais. Contudo, 77 milhões de pessoas ainda fazem parte do contingente de não-leitores, ou seja, mesmo que saibam, não lêem. Esta é uma das conclusões da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, a maior já realizada em âmbito nacional sobre o comportamento do leitor brasileiro. Realizado em 2007 pelo Instituto Pró-Livro, com apoio da Câmara Brasileira do Livro-CBL, do Sindicato Nacional dos Editores de Livros-Snel e da Associação Brasileira de Editores de Livros-Abrelivros, o estudo ainda traz outros dados surpreendentes: – a média de leitura por pessoa é de cerca de cinco livros por ano, mas apenas um destes costuma ser lido fora da escola; – as revistas são o veículo de leitura preferido da maioria dos entrevistados (52%), seguidas por livros (50%) e jornais (48%); – as mulheres lêem mais que os homens em quase todos os gêneros, são leitores mais freqüentes e têm mais prazer em apreciar um livro do que os homens. Depois de promover a primeira edição da pesquisa Retratos da Leitura, em 2000, o Instituto Pró-Livro decidiu também investigar o impacto de ações e investimentos realizados pelo Governo e algumas entidades na área, para consolidar ou orientar novas iniciativas e incentivar debates e estudos entre especialistas e interessados no tema: – Sete anos depois, felizmente, muito se investiu em programas de governo e em projetos direcionados ao fomento da leitura no País. Podemos citar, por exemplo, a implementação de ações que possibilitaram o acesso ao livro a milhões de estudantes do ensino médio e superior, a expressiva ampliação de estudantes dos dois níveis e o esforço em zerar o número de cidades brasileiras sem bibliotecas – analisa o Presidente do Instituto Pró-Livro, Jorge Yunes. O novo trabalho resultou em um livro que reúne textos, gráficos e artigos de especialistas no assunto. – A boa notícia é que a pesquisa revelou que quando o Estado investe em políticas públicas – e é seu dever fazê-lo – os resultados não tardam a aparecer. Basta olhar os índices de leitura entre as crianças e jovens que freqüentam as escolas: é mais do que o dobro do que se lê fora delas – afirma Galeano Amorim, organizador da obra. A má notícia, diz ele, é que, apesar dos recentes avanços, o Brasil ainda não reconhece a questão do livro e da leitura como algo realmente importante e es-

Leitura no Brasil: o que mudou?

Jorge Yunes (à esquerda): É preciso zerar o número de cidades sem biblioteca. André Lázaro: É na escola que a criança tem contato com o livro independentemente de classe social.

Ontem e hoje O estudo foi aplicado no fim de 2007 em 311 Municípios de todo o País. Uma média de 5.012 habitantes em cada cidade participaram da avaliação do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística-Ibope Inteligência. No total, foram consideradas como o universo representado 172 milhões de pessoas (92% da população). A análise revelou a percepção da leitura no imaginário coletivo, o perfil do leitor e do não-leitor, as preferências e motivações dos leitores e os canais e formas de acesso ao livro. A primeira pesquisa Retratos da Leitura atingiu 44 Municípios e apontou que 49% da população eram considerados leitores. Nesta segunda edição, os dados indicam que o brasileiro está lendo mais, já que 55% da população entrevistada, que representariam 95 milhões de pessoas, declararam ter lido ao menos um livro nos três últimos meses. O total subiria para 100 milhões de leitores, se incluídos os entrevista-

OS NÚMEROS DAS LETRAS A média de leitura do País é de 4,7 livros por habitante/ano; 3,4 livros por habitante/ano foram indicados pela escola, freqüentada por 60 milhões de pessoas de todas as idades; 1,3 livros per capita foram lidos fora da escola. Em algumas regiões, a média de leitura é superior à nacional, como no Sul, onde são lidos 5,5 livros por habitante/ ano, e no Sudeste, 4,9. Conhecimento é o valor mais associado à leitura. Esta percepção aumenta entre os mais velhos. A leitura é vista como atividade prazerosa, principalmente entre crianças com idade até 10 anos. Duas em três pessoas não sabem de ninguém que venceu na vida graças à leitura. Declararam gostar de ler durante o tempo livre 35% dos entrevistados, o que corresponderia a 60 milhões de pessoas. Destes, 38 milhões afirmaram fazê-lo com freqüência. A preferência pela atividade cresce com a renda e a escolaridade. As revistas são o veículo de leitura preferido da maioria dos entrevistados (52%), seguidas por livros (50%) e jornais (48%). Um terço dos leitores afirma ler freqüentemente; 55% são mulheres.

Elas também lêem mais que homens em quase todos os gêneros, com exceção de História, Política e Ciências Sociais. O público feminino ainda lê muito mais do que os homens por prazer ou gosto. E também por motivos religiosos. Os homens lêem mais por atualização profissional ou exigência escolar e acadêmica. Não leram nenhum livro nos três meses que precederam pesquisa 77,1 milhões (45% da população estudada). Destes, 6 milhões disseram ter lido anteriormente um livro – a Bíblia no caso de 4,5 milhões. Dos que não lêem, 21 milhões são analfabetos e 27 milhões só cursaram até a 4ª série do ensino fundamental. Entre os que têm formação superior, 1,3 milhão são não-leitores. Dificuldades de acesso ao livro estão entre as principais queixas de quem já é leitor. Entre os motivos para não ler são apontadas: a falta de dinheiro (18%), bibliotecas (15%) e livrarias (8%). Quem já é leitor também justifica não ler mais por falta de tempo (57%), preferência por outras atividades (33%) ou desinteresse (18%). Entre os gêneros de leitura, a Bíblia figura no topo da lista, com 49% da preferência.

Souberam dizer o nome do autor brasileiro que admiram 51% dos leitores (48,5 milhões). Monteiro Lobato foi o mais votado, seguido por Paulo Coelho, Jorge Amado e Machado de Assis. Os quatro juntos receberam quase metade das indicações. A infância é lembrada como o período da vida em que as pessoas mais leram. 73% das crianças, especialmente no Norte (59%) e no Nordeste (56%), citam as mães como a maior influência no hábito de ler. A Bíblia é o livro mais marcante para 59% dos leitores (56,2 milhões), superando em dez vezes o segundo colocado, O Sítio do Pica-pau Amarelo. Só no portal Domínio Público, do Ministério da Educação, já foram baixados 7 milhões de cópias das 72 mil obras disponíveis. 146,4 milhões de brasileiros (85% da população estudada) teriam pelo menos um livro em casa. A média é de 25 livros por residência. A visita a bibliotecas diminui com o fim da vida escolar: cai de 62% entre adolescentes para menos de 20% na fase adulta e 12% aos 50 anos, até chegar aos 3% acima de 70 anos.


ELZAFIÚZA/ABR

Jorge Werthein, da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana: Vamos todos buscar o conhecimento no livro, em papel ou digital, caminho para o bemestar e a redução das desigualdades.

escola, como aponta o jornalista Felipe Lindoso, autor de O Brasil Pode Ser um País de Leitores? Diz ele: – A maioria da população não tem acesso ao livro e à leitura depois que deixa e escola. Somente políticas públicas conseqüentes permitirão que se construa uma rede de bibliotecas públicas no Brasil, precisamente o que falta para que a indústria editorial corresponda e possa atender às necessidades de educação, cultura e lazer dos que já saíram das escolas. dos que revelaram ter lido ao menos um livro ao longo de 2007. Além dos dados da pesquisa, Retratos da Leitura apresenta artigos de personalidades, pesquisadores e estudiosos comprometidos com a questão do livro no Brasil, como o escritor Moacyr Scliar, que destaca o valor simbólico do ato de ler: – Em se tratando de leitores jovens, é melhor apresentar a leitura como um convite amável, não como tarefa, como uma obrigação que, ao fim e ao cabo, solapa o próprio simbolismo da leitura, transformada num trabalho árido, quando não penoso. A casa da leitura tem muitas portas, e a porta do prazer é das mais largas e acolhedoras. O Secretário-Executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura, dos Ministérios da Cultura e da Educação, José Castilho Marques Neto, comemora na publicação a nova agenda para políticas públicas para o setor:– Em minha opinião e na de muitos que encontro Brasil afora, dos especialistas aos batalhadores diuturnos pela leitura, vivemos um período excepcional, promissor e decisivo. As bibliotecas, por exemplo, poderão ter um papel equivalente ao da escola na manutenção e formação de leitores fora da idade escolar, uma vez que boa parte da população não pode comprar livros. O papel da escola na formação de leitores é destacado também pela Diretora de Políticas de Formação, Materiais Didáticos e Tecnologias para a Educação Básica do Ministério da Educação, Jeanete Beauchamp, e pelo Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério, André Lázaro. Para eles, a pesquisa evidencia que por meio da escola o Brasil entra em contato com o processo de leitura e tem acesso aos livros, independentemente da classe social. Porém, a preocupação maior passa a ser mesmo depois que a pessoa deixa a

O papel da mídia Diante do grande interesse do brasileiro pela televisão, pelo rádio e mesmo pela leitura de jornais e revistas, a mídia é apontada por especialistas como fundamental para a promoção da leitura. – Como a tv e o rádio são atividades freqüentes na vida do brasileiro, seria importante, em curto prazo, multiplicar nos veículos do Poder Público programas de promoção à leitura, com enfoque na percepção da leitura como lazer ou descanso. Também teriam bons resultados campanhas e publicidade com enfoque em obras e autores – aponta Maria Antonieta Antunes Cunha, doutora em Letras e professora da Universidade Federal e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Como não existem soluções mágicas, educar é a base para a formação de pessoas que continuem lendo durante toda a sua vida. Para a socióloga Zoara Failla, Coordenadora para o Ensino Médio de São Paulo e integrante da equipe técnica da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, profissionais especializados devem introduzir novas experiências e desafios ao conhecimento e ao desejo de descoberta de crianças e jovens. Essa opinião é compartilhada por Lucília Helena do Carmo, da Universidade de Brasília-UnB, que considera que o interesse pela leitura é desenvolvido de acordo com a experiência de prazer, que pode ser estimulada por pais, professores e um ambiente que valorize a prática. – Vamos todos buscar nos livros, digitais ou em papel, o conhecimento. É o caminho para que conflitos naturais da vida em sociedade resultem em crescimento do bemestar e redução das desigualdades – conclui Jorge Werthein, Diretor da Rede de Informação Tecnológica LatinoAmericana.

JUSTIÇA

A UniRio celebra Mário Barata Um ano após o seu passamento, em setembro de 2007, a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro incorpora seu retrato à galeria de Professores Eméritos da institruição. Considerado um dos principais responsáveis pela fixação da memória da História da Arte brasileira, o jornalista, professor, museólogo, crítico de arte e historiador Mário Barata, membro do Conselho Deliberativo da ABI, foi homenageado em 19 de setembro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UniRio com a inauguração de seu retrato na galeria de Professores Eméritos da instituição. No ato foi enaltecida a trajetória acadêmica e intelectual de Mário Barata, falecido um ano antes, nas vésperas de completar 87 anos. O retrato foi descerrado pela Reitora da UniRio, Professora Malvina Tânia Tuttman, em cerimônia que contou com a presença da viúva de Barata, a artista plástica Tiziana Bonazzola, dois de seus filhos, Branca e Flávio, e seu sobrinho, Carlos Eduardo Barata, Presidente do Colégio Brasileiro de Genealogia. A ABI foi representada por seu Presidente, Maurício Azêdo. Além da Reitora, enalteceram Mário Barata a Professora Maria de Lourdes Viana Lyra, em nome do Instituto Histórico e Geográfico BrasileiroIHGB e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro-IHG-RJ, e o Professor Mário Chagas, Coordenador do Departamento de Museus do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-Iphan. Em seu discurso, a Professora Maria de Lourdes ressaltou que Mário Barata participou de comissões organizadoras de colóquios e instituições culturais internacionais e ofereceu destacada contribuição, realizando-as ou orientando-as, a pesquisas

importantes sobre a História da Arte no Brasil: – Recuando no tempo, encontrei preciosos testemunhos que ratificam seu perfil de intelectual competente e engajado. Em 1956, o Professor Quirino Campofiorito saudou Mário Barata na solenidade de sua investidura na cátedra de História da Arte da Escola Nacional de Belas-Artes da antiga Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, declarando ter-se habituado a estimar o então jovem professor. Em 1987, o Professor Joaquim Veríssimo Serrão saudou-o como titular da cadeira número 40 da Academia Portuguesa da História. Mário Chagas, que é também professor da Escola de Museologia da UniRio, fez um discurso emocionado, em que apontou Mário Barata como “um dos últimos intelectuais do Brasil com domínio de várias especializações”. A obra de Barata como jornalista, especialmente durante a ditadura militar, também foi lembrada. Membro do Conselho Deliberativo da Casa, Mário Barata integrou a Comissão Executiva do Centenário da ABI e participou da reunião mensal de setembro de 2007 da Comissão, durante a qual salientou a necessidade de se incluir nas comemorações do bicentenário da imprensa no Brasil uma homenagem especial ao Conde da Barca, que em novembro de 1807 promoveu o embarque da primeira tipografia que ensejaria o aparecimento da Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso no Brasil, após a chegada da Família Real, em 1808. Dias após formular essa proposta, Mário Barata faleceu. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

41


Exatos cem anos após sua morte – lembrada em 29 de setembro – Machado de Assis ainda é capaz de surpreender. Com sua extensa obra, composta por nove romances, 200 contos, uma dezena de peças de teatro, cinco coletâneas de poemas e milhares de crônicas, o “Bruxo do Cosme Velho” , apelido que ficou como recordação dos tempos em que morou em um casarão no número 18 daquela rua, é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Sempre que estudada, há sempre novas facetas do fundador da Academia Brasileira de Letras a revelar. Mesmo sendo o aspecto do conhecimento literário brasileiro mais estudado, sua vida ainda permanece envolta em mistérios. Assim, exposições como Machado de Assis: Cem Anos de Uma Cartografia Inacabada, que foi realizada pela Fundação Biblioteca Nacional, em seu Espaço Cultural Eliseu Visconti, no Rio, de 23 de setembro a 8 de novembro, permitem conhecer melhor o jornalista, cronista, contista, romancista, poeta e teatrólogo, que, mesmo sendo pobre e mestiço numa sociedade escravagista, conseguiu se tornar um mestre da cultura nacional. Cerca de 200 documentos, entre fotografias, cartas, livros, manuscritos e periódicos, foram reunidos na mostra, uma das maiores já feitas sobre Machado e que destacou os momentos-chave por que passou a construção de sua obra literária. Tudo devidamente contextualizado pela relação feita com o processo de transformação ideológica vivenciado na Corte e, de modo mais abrangente, em todo o Segundo Reinado. Essa relação permite não apenas compreender melhor a importância de sua obra, mas também perceber a genial sutileza machadiana, que no dia-a-dia evitava atritos políticos, mas no recôndito das letras era capaz de retratar a ruína da Monarquia no final da década de 1880, em um romance como Quincas Borba, e ainda fazer uma sátira velada ao rei,

Uma das fotos mais antigas de Machado: jovem, bonito, austero, já respeitável.

42 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

Machado (segundo à esquerda, tendo Joaquim Nabuco logo atrás) lidera a pose solene da nata da inteligência do começo do século 20.

Machado revelado

le completa do jornal O Espelho, com o qual ele colaborava regularmente, e Pareceres do Conservatório Dramático Brasileiro (Coleção Rodolfo Garcia, volume 34, Série Bibliografia), com um inventário das críticas feitas pelo escriNo centenário de sua morte, nosso mais importante escritor tor para a instituição sobre peças a é apresentado em exposição na Biblioteca Nacional. serem encenadas. Outra publicação muito aguardada no centenáusando o personagem Rubião como rio de Machado é Corresuma referência aos desvarios de um pondência de Machado de Dom Pedro em fim de reinado. Assis, Tomo I (1860 – 1869). – Uma das nossas primeiras preocuSão 90 cartas escritas e repações foi de que a exposição, por sua cebidas pelo escritor no peabrangência, tivesse a representação da ríodo e organizadas em orRepública, para que os mais diversos dem cronológica. O segunsegmentos da sociedade, além dos esdo volume, contendo oito pecialistas, pesquisadores, estudantes centenas de cartas e coe professores, participassem dela. Penbrindo os anos seguintes, samos nas pessoas comuns que, ao será lançado em 2009. passear pelo Centro da cidade, pudes– Essas obras trarão sem conhecer a obra machadiana. – toda a correspondência explica o curador Marco Lucchesi, comque ainda existe e é conhepletando que até o olhar de Machado sobre as transformações que ocorreram Obras raríssimas valorizaram a exposição, como esta cida de Machado em 50 no Rio de sua época foi contemplado. primeira edição dos contos de Histórias da Meia Noite. anos de vida intelectual. Conhecendo seu fluxo de Diz Lucchesi que quem esteve na savam ser resolvidos. E apenas abolir correspondência, temos também suas Biblioteca Nacional teve uma visão ilunão fazia isso. amizades, amores, relações políticas e minada pelas mais novas leituras e Para tornar seus pensamentos mais preocupações filosóficas – diz o ensadiversas descobertas feitas durante a claros e seu trabalho amplamente coísta e acadêmico Sérgio Paulo Rouanet, pesquisa: – Aproveitamos o centenánhecido, a Fundação Biblioteca Nacicoordenador do projeto. rio de Machado para derrubar alguns onal aproveitou o evento e, com o apoio Amante do xadrez, das armadilhasmitos que o envolvem. Um deles é de dos Institutos Vivo e Pró-Visão, lançou narrativas e dono de um estilo conciele não tinha interesse pela questão da uma edição em braile e em audiolivro so e ardiloso, o “Bruxo do Cosme Veescravidão. Não é verdade. Encontrade O Alienista. A editora Nova Aguilar lho” continua um desafio para seus mos uma carta em que o escritor se diz ainda apresentou as obras completas decifradores. Mas isso não impede seu feliz e entusiasmado com a Lei do Vendo Bruxo em papel-bíblia e o Portal sucesso e reconhecimento. Machado já tre Livre, de 1871. Domínio Público, do Ministério da foi traduzido para 14 idiomas e, assim Educação, inaugurou o site Machado Mais obras como no Brasil, há um interesse renode Assis, reunindo as edições digitais Machado era um homem à frente de vado por sua obra nos Estados Unidos, de livros sobre o escritor. seu tempo. Sua posição sobre a abolionde também é considerado um gênio. Em comemoração ao Ano Nacional ção da escravidão reforça isso. Como Como ele disse certa vez em tom proMachado de Assis, ainda será lançado mostrou a exposição da Biblioteca fético numa de suas cartas à esposa em 2008 o livro Machadiana da BibliNacional, longe de ter uma posição Carolina: “ganharemos o mundo”. O oteca Nacional, que reúne o acervo dodúbia, o escritor estava certo de que os mundo das palavras. cumental do autor, a edição fac-símiproblemas da população negra preci(José Reinaldo Marques e Marcos Stefano)

FOTOS: DIVULGAÇÃO

EXPOSIÇÃO


Vidas

Adeus ao cronista da vida anônima Lourenço Diaféria, o homem que desafiou a ditadura com seus textos, morre em São Paulo aos 75 anos. estátua do patrono do Exército, Duque de Caxias, um monumento com altura comparável a um prédio de dez andares, na Praça Princesa Isabel, centro de São Paulo. Tal declaração soou como uma afronta às Forças Armadas. Enquadrado na Lei de Segurança Nacional, o jornalista foi processado e condenado a oito meses de prisão. A detenção em sua casa surpreendeu os colegas de redação e, no dia seguinte, o espaço de sua coluna na Folha veio em branco. Diaféria foi inocentado apenas em 1979. Anão no circo – Sua matéria-prima era a vida e ele sabia contá-la de forma singela, mesclando informação, sensibilidade, crítica e emoção. Também era figura humana da maior autenticidade. Sua demissão, por exemplo, deu-se no banheiro da Redação, num episódio que o Mino Carta chamaria de emblemático dos tempos em que manda quem pode e obedece quem tem juízo. Ao ser cobrado por um chefe, que mais tarde se tornaria celebridade, por não entregar suas crônicas no horário e com número certo de linhas, ele tripudiou: ‘Posso não cumprir suas ordens, mas eu

Herói. Morto. Nós Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos. O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra. Que nome devo dar a esse homem? Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor. Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói – como o santo – é aquele que vive sua vida até as últimas conseqüências. O herói redime a humanidade à deriva. Esse sargento Silvio podia estar vivo da

silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major. Está morto. Um belíssimo sargento morto. E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidouse no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar. O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as

FOLHA IMAGEM

Aqueles que conviveram com o jornalista e escritor Lourenço Diaféria dizem que ele fazia seus textos com o coração. Fora de moda para os padrões da imprensa brasileira ou não, não mudava seu estilo, unindo talento e simplicidade para falar “da cidade, sua gente, pessoas que vivem no cimento, enfrentando filas de ônibus, filas para o estádio, aqueles que eventualmente tomam um táxi, além da periferia desconhecida”, nas palavras do próprio jornalista. Era assim que ele retratava figuras anônimas, reconhecendo o significado de suas vidas, que normalmente passam despercebidas pela maioria dos mortais. Na madrugada da terça-feira, 16 de setembro, esse mesmo coração não resistiu e Diaféria faleceu em sua casa, na cidade de São Paulo, aos 75 anos, em decorrência de problemas cardíacos. Apesar dos problemas de saúde, Diaféria continuava em atividade. Mesmo a Noite Sem Luar Tem Lua (Editora Boitempo) foi lançado ainda neste ano, com crônicas escritas nos anos 1970 e que retratam o mundo político e o cotidiano do principal palco do jornalista: a cidade de São Paulo. Da cobradora de ônibus que ajuda uma mãe a trocar a roupa do bebê a uma carta que escreveu a certo general avisando que alguma coisa cheirava mal nos porões da ditadura, está Herói, Morto, Nós, publicada na Folha de S. Paulo, em agosto de 1977. O texto elogiava a bravura de um sargento, Sílvio Hollenbach, que se sacrificou ao salvar uma criança, no zoológico de Brasília. Ao perceber o menino no poço das enfurecidas ariranhas, o militar pulou lá e conseguiu resgatá-lo. Mas ele mesmo não teve tal sorte e acabou morrendo em decorrência das mordidas. Em meio à exaltação do sargento, que teria pulado sem medir as conseqüências por alguém que nem conhecia, Diaféria disse que o Brasil precisaria de heróis assim e não aqueles “estáticos e fundidos em metal”. Referia-se a uma

Diaféria na Folha de S.Paulo em 1978.

pelo menos sei escrever, você não...’. Como tinha razão, foi demitido no ato, mas continuou ganhando a vida fazendo o que sabia como ninguém: contar as histórias do cotidiano. – escreveu o jornalista Ricardo Kotscho, em seu blog. Nascido no bairro do Brás, São Paulo, em 28 de agosto de 1933, o contista, cronista e autor de livros infantis iniciou a carreira em 1956, no jornal Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo. Ao longo da carreira, Diaféria trabalhou também no Diário Popular, hoje Diário de S. Paulo, no Diário do Grande ABC e no Jornal da Tarde. Neste, escreveu certa vez: “Acho que jornal é como um circo. A crônica é o intervalo do grande espetáculo. Não resolve nada, apenas serve para dar tempo do sujei-

to ir lá fora, comprar amendoim, tomar café, espreguiçar-se”. Sempre bem humorado, ele se comparava aos anões que distraem o público enquanto se monta a jaula dos leões. Além da imprensa escrita, Diaféria atuou também nas Rádios Excelsior, Gazeta, Record e Bandeirantes, e na TV Globo. Suas crônicas e textos se espalharam por diversos livros: Um Gato na Terra do Tamborim (1976), Circo dos Cavalões (1978), A Morte Sem Colete (1983), A Longa Busca da Comodidade (1988), O Invisível Cavalo Voador – Falas Contemporâneas (1990), Papéis Íntimos de um Ex-boy Assumido (1994), O Imitador de Gato (2000), Brás – Sotaques e Desmemórias (2002) e o derradeiro Mesmo a Noite Sem Luar Tem Lua.

mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos. No instante em que o sargento – apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher – salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos. Esse sargento não é do grupo do cambalacho. Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais. É apenas um homem que – como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu

o roteiro de sua última viagem – não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa. O povo prefere esses heróis: de carne e sangue. Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais. É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos. Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas – como você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar. Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos. E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde demais.

Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

43


Vidas CARLOS IVAN/AGÊNCIA O GLOBO

A Fernando Barbosa Lima, pioneiro e mestre do jornalismo eletrônico de qualidade, a saudade dos seus companheiros da Associação Brasileira de Imprensa.” Com esta saudação, inscrita numa coroa de flores, a ABI despediu-se em 6 de setembro de Fernando Barbosa Lima, Presidente de seu Conselho Deliberativo, que foi velado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, Zona Sul do Rio, onde se sucederam cenas de emoção, e cremado no Memorial do Carmo, no Caju, Zona Norte da cidade. Fernando morreu de falência múltipla dos órgãos na noite anterior no Hospital Pró-Cardíaco, também em Botafogo, no qual estava internado havia cerca de dez dias. Ao velório de Fernando compareceram dezenas de jornalistas que trabalharam com ele no setor de Jornalismo de diferentes emissoras de TV, como Roberto D’Ávila, seu sócio em produtoras de televisão e seu parceiro em inúmeros programas, como Conexão internacional; Aristóteles Drummond, Berto Filho, Christina Maluhy, Décio Lopes, George Vidor, Nélson Hoineff, Radamés Vieira, Raquel Boechat, Rogério Monteiro de Souza e Sandra Traverso, entre outros. Também compareceram os Diretores da ABI Maurício Azêdo, Presidente, e Jesus Chediak, Diretor de Cultura e Lazer, e companheiros de Fernando em órgãos colegiados da Casa, como Aluízio Maranhão, Amicucci Gallo, Chico Caruso, Dácio Malta, Mário Augusto Jakobskind e Sérgio Caldieri, além de amigos dele de outras áreas, como o exDeputado Vivaldo Barbosa e o cardiologista Roberto Hugo. Em nome da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão-Abert, seu Vice-presidente Flávio Cavalcânti Júnior apresentou condolências à família. Além da ABI, mandaram coroas o Governador do Estado do Rio, Sérgio Cabral; Cláudio e Roberto D’Ávila; João Uchoa, Presidente da Universidade Estácio de Sá; a própria Universidade Estácio de Sá; Sérgio Pugliese e Beth Garcia; Intervisão; Bar 20, em nome dos companheiros de boemia de Fernando na juventude; Márcia e Ziraldo, que se encontrava em Montevidéu e pediu a Márcia, sua esposa, que o representasse na cerimônia fúnebre. Fernando Barbosa Lima era um dos mais destacados realizadores da televisão brasileira, para a qual produziu, nos anos 60, programas que marcaram época pelo domínio da técnica jornalística e pelo alto teor de criatividade, como Jornal de Vanguarda, Preto no Branco e Sem Censura, entre outros. Nos anos 80, ainda sob o domínio da ditadura militar, ele criou e produziu o programa Abertura, no qual apresentava temas e personalidades colocados no índex do regime, como o cineasta Gláuber Rocha,

44 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

Fernando Barbosa Lima, um pioneiro e mestre O jornalismo brasileiro e a ABI perderam em setembro um dos seus mais notáveis profissionais da comunicação.

que mostrava um personagem popular que atendia pelo nome de Brizola, então um dos políticos mais perseguidos. Nos últimos anos, ele produziu uma série de dvds sob o título geral Grandes Brasileiros, na qual apresentava a biografia e a trajetória política e intelectual de personalidades da vida pública, como Barbosa Lima Sobrinho, seu pai, Tancredo Neves, Darcy Ribei-

ro, Ziraldo e Sérgio Cabral, e estava ultimando um dvd sobre o ex-Presidente e Senador José Sarney. O dvd de Sérgio Cabral foi lançado três semanas antes de seu passamento em concorrido ato na sede da ABI, ao qual ele não pôde comparecer em razão de graves problemas de saúde que já apresentava. Sua última aparição pública foi em 20 de junho, quando participou, no

Recife, do Seminário Nacional 200 Anos de Imprensa no Brasil, que, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco e pelo Governo de Pernambuco, teve como grande homeageado Barbosa Lima Sobrinho. Fernando foi eleito Presidente do Conselho Deliberativo da ABI em maio de 2007 e teve o seu mandato renovado em maio deste ano.


ARQUIVO PESSOAL

Sem ele, a televisão perde criatividade e inteligência POR MARCOS STEFANO

Fernando Barbosa Lima costumava dizer que a televisão precisa ser oxigenada pelas idéias dos profissionais mais jovens, para não ficar cada vez mais idiota. Tinha toda razão. Mas com isso, provou também que a idade nunca foi um empecilho para o trabalho das raras ilhas de inovação e idealismo em meio ao mar da mesmice e do sensacionalismo que invade a mídia com seus reality shows e exposição da intimidade das celebridades. Ele era uma dessas ilhas. Criador de mais de 100 programas em diversas emissoras, visionário e inovador, o filho de Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho foi um criador do jornalismo eletrônico. A exemplo do pai, enfrentou sem medo a ditadura. “Afinal, de que vale a imprensa se não servir o povo brasileiro?”, perguntava com conhecimento de causa. Foi nessa missão que ele permaneceu até o fim, seja produzindo biografias de grandes nomes da vida pública brasileira, seja presidindo o Conselho Deliberativo da ABI. Sua morte, no dia 5 de setembro, no Hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo, no Rio, em decorrência de falência múltipla dos órgãos, veio como uma surpresa. A criatividade e a busca do novo sempre fizeram parte da personalidade de Fernando Barbosa Lima. Como dizia um perfil do jornalista, publicado pelo Estadão em 2003, “de TV, ele entende tudo”. Apesar de ter começado na televisão muito jovem, quando o veículo ainda era em preto-e-branco e não existia o videoteipe, nos últimos tempos estava na vanguarda do mundo digital. Com “um milhão de idéias sempre prontas para serem colocadas em prática”. Quando teve a primeira chance na TV, aos 20 e poucos anos, como conta, Fernando Barbosa Lima rapidamente se tornou diretor do programa Preto no Branco, da TV Rio. Nele, apostou em Oswaldo Sargentelli, com sua voz grave, entrevistando grandes personalidades. Numa época em que só havia formatos engessados, o programa fazia o inusitado, ao deixar o entrevistado de pé no cenário vazio, apenas ouvindo as perguntas. Seria o primeiro de muitos, bem mais revolucionários. Na Excelsior, ainda nos anos 60, Fernando criou o Jornal da Vanguarda, talvez o programa mais premiado da História da televisão brasileira. Reunia oito ou nove importantes nomes do jornalismo em um estúdio, ao vivo, para dar as notícias. Entre eles estavam Millôr Fernandes, Sérgio Porto, VillasBôas Corrêa, Borjalo, Appe, Célio Moreira, João Saldanha, Cid Moreira e Tarcísio Holanda, entre outros.

– Esse foi o jornal mais inteligente que já apareceu na TV brasileira. Podia ser evidente, mas apenas o Fernando Barbosa Lima conseguiu ver: se jornal é para dar notícia, quem dá a notícia é o repórter. O locutor apenas o apresenta ou lê aquelas notas, quando não há imagens ou existe somente o vídeo. Foi a primeira grande revolução do Fernando, dando origem ao moderno formato dos noticiários e promovendo locutores de talento, como o Cid Moreira e o Fernando Garcia. – conta VillasBôas Corrêa, Conselheiro da ABI. Outro Conselheiro da ABI, Tarcísio Holanda, também relembra alguns dos jornalísticos produzidos por Fernando. Para ele, eram algumas das melhores atrações da televisão nos anos 50 e 60: – Programas como Encontro com a Imprensa eram muito vivos e dinâmicos. O Fernando criava tão bem para a TV quanto para o rádio. Era um homem de esquerda, que não convivia com a extrema-direita. Tinha uma visão humanística do mundo. Era capaz de descobrir em cada pessoa a capacidade de desempenhar o papel que ele queria. Sem falar, nos seus desenhos brilhantes e textos bonitos e curtos que redigia. Desafio à ditadura Em sua carreira, Fernando dirigiu as TVs Excelsior, Manchete e Bandeirantes. Presidiu por duas vezes a TV Educativa do Rio, hoje incorporada à TV Brasil. Criou outros programas que fizeram história. O Cara a Cara consagrou Marília Gabriela. O Sem Censura fez tanto sucesso, que está no ar até hoje. Porém, nenhum causou tanta polêmica como o Abertura, na Tupi, em fins dos anos 70, começo dos 80. Em um período ainda dominado pela ditadura militar, a atração apresentava temas e personalidades colocados no índex do regime, como Ziraldo e o cineasta Gláuber Rocha, que mostrava um personagem

Fernando era muito carinhoso com a família e com os amigos, como Roberto D'Ávila, seu companheiro e sócio em inúmeros projetos para a televisão (no alto, à esquerda). Tinha amor e admiração pelo pai, Barbosa Lima Sobrinho, a quem mostra o neto (à direita). Era fraterno com amigos como Sérgio Cabral e Zuenir Ventura (ao lado).

popular de nome Brizola, na época um dos políticos mais perseguidos. A inspiração para se arriscar tanto vinha de casa. Para Fernando, o pai, Barbosa Lima Sobrinho, foi seu grande exemplo: – Ele era um homem que sempre lutou por suas idéias e pelo País. Arriscando tudo, caso fosse preciso. Para mim, foi um grande exemplo de dignidade, ética, honradez e cidadania. Aprendi a gostar de livros e do Brasil. – disse ele certa vez, em entrevista ao Jornal da ABI. Fernando sempre se considerou um produtor independente. Dizia ter mais de 40 anos no mercado. Mas foi nos últimos anos que assumiu de fato a condição, por meio de sua produtora, a FBL, produzindo uma série de dvds sobre “Grandes Brasileiros”, mesclando biografia e a trajetório política e intelectual de personalidades como Tancredo Neves, Darcy Ribeiro e José Sarney – que ainda estava em produção. A primeira a ser produzida foi justamente a saga de Barbosa Lima Sobrinho, reunida em mais de 30 horas de programas de televisão, entre entrevistas, depoimentos e participações especiais. O último foi do jornalista Sérgio Cabral, pai do Governador do Estado

do Rio, lançado em um concorrido ato na sede da ABI. Fernando, no entanto, não esteve presente. Desde 20 de junho, quando participou, no Recife, do Seminário Nacional 200 Anos de Imprensa no Brasil, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco e pelo Governo de Pernambuco, ele já não aparecia em público; já sofria os efeitos de graves problemas de saúde, que se agravariam ainda mais e o levariam para o hospital, dez dias antes de sua morte. Durante o velório, realizado no Cemitério São João Batista, e na cerimônia de cremação, realizada no Memorial do Carmo, a emoção predominou. Dezenas de jornalistas prestaram homenagem ao mestre e amigo de tantos anos. No ar, a saudade de quem se tornou conhecido como o “realizador” da televisão brasileira. Na memória, a contundência de suas palavras: “Telejornalismo não é apenas dar manchetes ou fazer sensacionalismo. Jornalismo deve ser feito com coragem e opinião, vindo a público para discutir os grandes assuntos. Não só mostrar em profundidade, mas também esclarecer a verdade”. Esse testemunho o tempo não vai tirar do ar. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

45


Vidas ROGERIO CARNEIRO/FOLHA IMAGEM

Os companheiros de FBL traçam seu perfil Villas-Bôas, Tarcísio e Arnaldo César, que trabalharam com ele na televisão, exaltam sua criatividade, seu despojamento e sua liderança.

Em sua sessão de setembro, realizada no dia 30, o Conselho Deliberativo da ABI prestou homenagem póstuma ao seu Presidente, Fernando Barbosa Lima, e ao jornalista Antônio Roberto Salgado da Cunha, o Cunhão, membro do Conselho e grande colaborador da Casa. Convidados a se manifestar sobre Fernando Barbosa Lima, os Conselheiros Villas-Bôas Corrêa e Tarcísio Holanda recordaram os bons momentos em que tiveram a oportunidade de trabalhar com ele, por ambos lembrado como uma das figuras mais criativas e empreendedoras da mídia, principalmente da tv. Villas-Bôas falou sobre o livro de memórias de Fernando, Nossas Câmeras São Seus Olhos, que teve a honra de prefaciar, e dos programas jornalísticos criados pelo colega, que conheceu na casa do pai, Barbosa Lima Sobrinho, onde ia freqüentemente para trocar idéias. Disse Villas-Bôas que a relação entre os dois se estreitou com um convite especial: – Considero o Fernando Barbosa Lima uma das mais lúcidas inteligências com quem já trabalhei, inteligência que foi cultivada para exercitar-se naquilo que ele mais gostaria de fazer. O Fernando foi basicamente um homem de televisão. Na verdade, tudo começou quando o Tarcísio, em nome do Fernando, foi me convidar para participar do Jornal de Vanguarda, que foi o jornal mais revolucionário e inteligente que apareceu até hoje na televisão brasileira. Disse Villas-Bôas que o programa jornalístico, exibido pela antiga Excelsior, foi o primeiro a observar algo até então 46 Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

inédito na tv do Brasil: – Estava tão evidente que ninguém enxergava: se jornal é para dar notícia, quem dá notícia é o repórter e o locutor apresenta o repórter ou lê aquelas notícias das quais ele não pode ter conhecimento direto. Então, a primeira grande revolução do Fernando na televisão foi aproveitar os locutores, entre os quais Cid Moreira e Fernando Garcia, a mais assombrosa memória de televisão que eu conheci. Villas-Bôas fez questão ainda de ressaltar o dinamismo de Fernando Barbosa Lima, que, “com muita simplicidade, deu uma grande contribuição ao jornalismo”: – Ele criou mais de cem programas de televisão, quase todos de muito sucesso. Foi um grande amigo que eu reencontrei um pouco antes de ele morrer. E fui surpreendido com a morte dele, de que tomei conhecimento pelos jornais, no dia seguinte. Prestei minha homenagem a ele em um artigo no Jornal do Brasil, e aproveito esta oportunidade para renovar este depoimento de pura emoção, de pura saudade. Dinamismo Tarcísio Holanda contou que conheceu Fernando Barbosa Lima em 1963, na TV Excelsior, cuja sede ficava na Avenida Venezuela, no Centro do Rio. O canal, que surgiu com novas propostas, tinha direção artística de Miguel Gustavo e grandes nomes, como César Ladeira e Edson Silva, que faziam muito sucesso no rádio: – O Fernando era um desenhista brilhante, redator de textos bonitos e cur-

tos, juntamente com o Borjalo, que talvez tenha sido o maior chargista brasileiro, embora com uma visão muito triste da vida. O Borjalo servia aos propósitos do Fernando Barbosa Lima, que era um grande criador em matéria de televisão. Tarcísio lembrou também o programa Preto no Branco, na antiga TV Rio, acrescentando que algumas das melhores atrações daquela emissora, nas décadas de 50 e 60, foram produzidas por Fernando: – Eram programas jornalísticos muito vivos, entre os quais Encontro com a Imprensa, que era superdinâmico. O Fernando era isso, um belíssimo criador de programas excelentes, tanto para o rádio quanto para a televisão. Era ainda um homem de esquerda que não convivia com pessoas de extrema-direita. Ele tinha uma visão humanística do mundo. Era capaz de descobrir em cada pessoa a capacidade de desempenhar o papel que ele queria. A morte dele me chocou. Eu pensei que ele ia viver cem anos, como o pai dele viveu. Arnaldo César destacou ainda a criação do Sem Censura, no fim dos anos 70: – Estávamos em plena censura neste País e o programa está no ar até hoje. É por isso que eu faço questão de registrar o reconhecimento das centenas de amigos que ele deixou na TV Educativa, que hoje se chama TV Brasil. Rodolfo Konder pediu a palavra e citou um verso de um poema de Jorge Luis Borges, “A posse do ontem”, que diz: “Somente aquilo que morreu é nosso, só é nosso de fato aquilo que per-

demos, meu pai morreu e está sempre ao meu lado.” – Acho que este poema – disse Konder – e os depoimentos dados aqui mostram claramente que o Fernando morreu, mas está e estará sempre ao nosso lado. O Presidente da ABI saudou a presença dos Conselheiros Villas-Bôas Corrêa e Arnaldo César Jacob na reunião e disse que sentiu demais a morte de Fernando Barbosa Lima, uma pessoa que até os últimos momentos em vida, apesar da idade (74 anos), tinha grande capacidade de criação e a vitalidade de um jovem: – Foi um choque o passamento do Fernando Barbosa Lima. Embora ele já tivesse ultrapassado a casa dos 70 anos, como muitos de nós, eu pessoalmente, Fernando guardava uma vitalidade e uma capacidade de criação típica de um jovem de 30 ou 40 anos. Maurício destacou os projetos em que Fernando estava envolvido, como a produção de videodocumentários que abordam aspectos contemporâneos da vida política brasileira, um deles em homenagem ao também Conselheiro Sérgio Cabral, lançado em 18 de agosto, num ato que lotou ABI e que infelizmente não pôde contar com a presença de seu realizador, que já se encontrava muito doente: – Fernando foi um grande realizador de audiovisuais e programas jornalísticos da televisão, como já foi mencionado aqui anteriormente. Era uma criatura suave e, como o Arnaldo César mencionou em relação ao Visconti, era também um professor, mas despojado de qualquer idéia de apresentar uma superioridade sobre os seus companheiros, interlocutores e colegas de trabalho. Disse Maurício que Fernando era um homem sábio, “mas não ostentava a sua sabedoria de forma que pudesse representar uma diminuição da autoestima dos companheiros com os quais convivia. Ele destacou também que, nos dois últimos anos, Fernando Barbosa Lima teve atuação destacada como Presidente da Mesa do Conselho Deliberativo da Casa, ao lado de Lênin Novaes e Zilmar Borges Basílio: – Desde os primeiros momentos ele revelou a preocupação de dar ao nosso Conselho uma relevância que fugisse das preocupações miúdas da administração rotineira da Casa e nos proporcionasse o acesso e a possibilidade de discussão de questões da maior importância para a ABI, para a comunidade jornalística e para o País. Ao fim da reunião, os Conselheiros Francisco de Paula Freitas e Mário Augusto Jakobskind e o Diretor de Cultura e Lazer da ABI Jesus Chediak, também se pronunciaram em homenagem a Fernando Barbosa Lima lembrando suas realizações e os projetos que gostaria de executar na Casa do Jornalista, como a TV ABI. O Conselho Deliberativo também homenageou dois outros companheiros: Antônio Roberto Salgado da Cunha, o Cunhão, e Fausto Wolff.


FERNANDO MAIA - AGÊNCIA O GLOBO

Perdemos Fausto Wolff, editor de O Pasquim, semanário celebrizado por sua atuação contra a ditadura militar, e até o fim dos seus dias, passados mais de 40 anos, um dos jornalistas mais combativos do Brasil. O jornalista e escritor Faustin Von Wolffenbüttel, ou simplesmente Fausto Wolff, nunca abriu mão de suas idéias. Manteve-as sem nenhuma vacilação e era um autêntico militante da esquerda tradicional, mesmo com os ventos da globalização soprando cada vez mais fortes e trazendo profundas mudanças sociais após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Sua morte, aos 68 anos, na noite 5 de setembro, em decorrência de disfunção múltipla dos órgãos, no Rio, foi mais um duro golpe para o jornalismo nacional, tão carente da franqueza e autenticidade que o “Velho Lobo” trazia como nenhum outro em seus textos. Além de autor de mais de 20 livros de ficção e de crônicas, com temas que iam da política ao romance, Wolff tornou-se conhecido pelo trabalho de editor de O Pasquim, que dividiu com Ziraldo e Jaguar. O jornal alternativo foi a mais conhecida e influente publicação de oposição ao regime militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Ficou consagrado perante o grande público também por suas colunas em grandes jornais como O Globo, Jornal do Brasil, Diário da Noite e Tribuna da Imprensa. Nelas, defendia opiniões polêmicas e independentes, que lhe valiam tanto elogios quanto críticas: – Como eu dizia aqui, antes de ser interrompido por 20 anos de ditadura militar e 20 de ditadura branca, talvez ainda haja salvação para o Brasil. Sim, mas precisa ser drástica, se não quisermos que, desesperado pela dor da fome,

o povo desça e o resto dance. O jornalismo pode ser uma solução. Outro dia perguntaram-me se era possível voltar a fazer do JB o melhor jornal do Brasil. Sim, por dois motivos: primeiro, por causa do insípido e medíocre panorama da nossa imprensa; segundo, se recolocarmos a mocinha, a heroína, a estrela, no centro do palco. Estou me referindo à verdade, pois o jornal deve ser advogado do povo, e não imitar as grandes corporações, que só têm compromisso com o lucro e desabam sobre o próprio peso, enquanto a maioria dos colunistas fala de uma vida que não viveu – escreveu certa vez Wolff no Jornal do Brasil. A sinceridade aliada à voracidade eram características desconcertantes em suas obras. Assim com a defesa tenaz que fazia da causa palestina: – Eu o conheci na redação de O Pasquim, na Rua Saint Romain, em Copacabana, e nos dávamos muito bem. Ele era da tribo dos brasileiros que são grandes, talentosos e criativos. Trabalhava o tempo todo e era tido como um cara sério, embora ele mesmo não se levasse a sério – conta o cartunista Chico Caruso. Temperamento forte Wolff era casado com a psicanalista e escritora Mônica Tolipan e tinha duas filhas. Desde sua estréia no jornalismo, ainda com 14 anos, como repórter policial do Diário de Porto Alegre, mostrou seu forte temperamento. Em 1958, com apenas 18 anos, veio para o Rio de Janeiro, onde trabalhou em vá-

rios jornais e nas revistas Manchete e O Cruzeiro. Suas opiniões também começaram a aparecer na televisão, com o Jornal de Vanguarda, de Fernando Barbosa Lima, a partir de 1963. Com a censura, exilou-se para a Europa em 1968. De lá, colaborou desde 1969 com O Pasquim. Mas também, nos dez anos que passou na Dinamarca e Itália, foi diretor de teatro, professor de Literatura nas Universidades de Copenhague e Nápoles e começou a atuar no cinema, trabalho que se estenderia pelas décadas seguintes. Na volta ao Brasil, trabalhou em O Globo e no Jornal do Brasil, mas depois passou a se dedicar à imprensa independente, em especial ao Pasquim. Foi um dos principais apoiadores de Leonel Brizola em sua primeira eleição para o Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 1982, e sua reeleição, em 1990. A partir dessa experiência, organizou em 1985 Rio de Janeiro, um Retrato: a Cidade Contada Por Seus Habitantes, considerado um dos mais completos retratos sociológicos da cidade e uma autêntica homenagem do intelectual e jornalista gaúcho ao povo que o adotou. Os últimos anos de Fausto Wolff foram dedicados à literatura, às colunas no JB e a experiências alternativas como a revista de humor e política Bundas e o periódico Pasquim 21. Há dois anos ele vinha lutando contra uma tromboembolia pulmonar. Sofreu um derrame, mas recuperou-se e ainda brincou com o incidente no Caderno B, para o qual escrevia diariamente. Desta

vez, o problema foi mais grave. Internado no Hospital São Lucas, em Copacabana, Zona Sul do Rio, no dia 31 de agosto, com hemorragia digestiva, entrou em coma no dia 5 de setembro com quadro de insuficiência respiratória e faleceu no começo da noite. – O Fausto teve uma importância única no jornalismo brasileiro. Ele representava uma geração de jornalistas que tinham coragem, que não se vendiam e lutavam pelos excluídos. Fausto era inconformado com as injustiças do mundo, e, ao mesmo tempo, era uma criança, um infante, uma figura terna. – afirma o jornalista e publicitário Francisco de Paula Freitas, membro do Conselho da ABI e autor do prefácio na obra Venderam a Mãe de Gentil, de Wolff. O texto derradeiro do “Velho Lobo”, publicado ainda em 5 de setembro, no Caderno B, era quase um manifesto. E mostrava exatamente essas qualidades, que predominaram em seus 54 anos de carreira: – Já escrevi em algum lugar que, enquanto não nos revoltarmos contra o conceito de democracia que considera sagrado o direito de uma minoria escravizar o resto, jamais chegaremos à condição de seres humanos. Enquanto não se der a revolução da humanidade contra a tirania, enquanto deixarmos que nos humilhem para que possamos continuar vivendo, teremos de suportar algumas imperfeições, certos espinhos colocados em nossos sapatos ainda na infância que não podemos ou queremos tirar. Jornal da ABI 333 Setembro de 2008

47



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.