JAGUAR ENFÁTICO: A ABI É UM ESCUDO PRA GENTE!
“Sem a ABI, os caras viriam pegar a gente pra dar porrada. Isso na melhor das hipóteses”, diz aquele que é considerado o mais brasileiro dos nossos cartunistas. Páginas 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 37
Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa
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VIVIANE ROCHA/AGÊNCIA JB
Jornal da ABI
MARÇO 2009
HENFIL PARA SEMPRE
Os jornais estão empenhados em atrair leitores jovens, o que fazem através de suplementos como o Folhateen e o Megazine, de O Globo. Publicações premiadas, como a gaúcha Kzuka, disputam esse público. Páginas 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9
Uma instituição criada no Rio vai preservar e divulgar a obra do criador dos Fradinhos, morto há 21 anos mas que sobrevive com os seus personagens. Páginas 38, 39, 40, 41 e 42
CARTUNISTAS HOMENAGEIAM OS 100 ANOS DA ABI NOSSOS MELHORES DESENHISTAS , DO DECANO LAN AO PRECOCE JOÃO, DE 12 ANOS, CRIARAM OU CEDERAM TRABALHOS PARA A MOSTRA ABI – 100 ANOS DE LUTA PELA LIBERDADE. VERÍSSIMO E A ROEIRA TOCARAM NA INAUGURAÇÃO . PÁGINAS 11, 12, 13 E 14 FRANCISCO UCHA
“AS MILÍCIAS AMEAÇAM O ESTADO DE DIREITO”
VIVA FAVELA MOSTRA O QUE JORNALÕES IGNORAM
NA MIRA DA REPRESSÃO
A CONCLUSÃO É DA CPI QUE INVESTIGOU A ATUAÇÃO DESSES GRUPOS CRIMINOSOS. PÁGINA 15
EM PORTAL NA INTERNET, A REALIDADE DAS COMUNIDADES DO R IO . PÁGINAS 22 E 23
A ANATEL INSTAURA PRÁTICAS DA DITADURA NESSA ÁREA DA COMUNICAÇÃO. PÁGINA 26
HÉLIO FERNANDES DEVASSA A AGONIA DO ESTADO NOVO
A MORTE SEM GLÓRIA DO FOTÓGRAFO ANDRÉ AZ
TARCÍSIO HOLANDA, NOSSO NOVO VICE-PRESIDENTE
O PLANO DE VARGAS EM 1945, REVELA, ERA PERMANECER NO PODER . PÁGINAS 18, 19 E 20
TALENTOSO, 34 ANOS, ELE FOI ABATIDO A TIROS NA A VENIDA B RASIL. PÁGINAS 46 E 47
O CONSELHO DELIBERATIVO APROVOU SUA INDICAÇÃO POR ACLAMAÇÃO . PÁGINAS 16 E 17
AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS
JORNAL DO COMMERCIO
A VOZ DA JUVENTUDE
Editorial
DITADURA, SIM, E IMPIEDOSA PASSADOS 45 ANOS DO GOLPE de Estado que depôs o Presidente constitucional João Goulart, era presumível que já se tivesse cristalizado e assimilado por consenso o entendimento de que a ruptura então produzida instaurou um amargo período de nossa existência nacional, seja pela brutalidade que nele imperou, seja pela sua extensão, que se prolongou de lº de abril de 1964 a 15 de março de 1985, quando a posse do Vice-Presidente José Sarney, em substituição ao Presidente eleito Tancredo Neves, assinalou o retorno do poder aos civis marginalizados pelos militares que se haviam assenhoreado do poder. Esta é uma quadra desafortunada de nossa História, que superou em iniqüidades e em duração outro momento que se considerava insuscetível de repetição, a ditadura do Estado Novo, instalada em 10 de novembro de 1937 e derrubada em 29 de outubro de 1945. Tal como esta, o regime 19641985 recebeu a denominação adequada, a ti-
Jornal da ABI Número 339 - Março de 2009
Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico, diagramação e editoração eletrônica: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo, Marcos Stefano e Paulo Chico
É INCOMPREENSÍVEL E INACEITÁVEL QUE ainda haja vozes, e no setor de imprensa, um dos mais castigados pelo regime discricionário, que busquem justificar a absolvição desses crimes, sob a cediça alegação de que não estivemos sob uma ditadura, mas sim numa dita branda ou ditabranda, neologismo de extremado mau gosto, que se oporia, pela decantação de suas sílabas, à ditadura que a consciência civilizada repudia. Mais inaceitável ainda é que essa tentativa de inversão do sentido do termo e da situação que este retrata tenha partido de importante órgão de imprensa, a Folha de S. Paulo, que fez sinuosa manobra para tentar vender gato por lebre e veicular esta adulteração da verdade histórica. A jogada foi tão infeliz e tão ofensiva à memória recente de nossa evolução política que o conceito encontrou repúdio na própria equipe do jornal, posto assim diante de um paradoxo: sua opinião não
DIRETORIA – MANDATO 2007/2010 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Estanislau Alves de Oliveira Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretor de Assistência Social: Paulo Jerônimo de Sousa (Pajê) Diretor de Jornalismo: Benício Medeiros
Fotos: Acervo Biblioteca da ABI (Biblioteca Bastos Tigre), Agência Brasil, Agência O Globo, Agência JB, Folha Dirigida, Folhapress, Jornal do Commercio
CONSELHO CONSULTIVO Chico Caruso, Ferreira Gullar, José Aparecido de Oliveira (in memoriam), Miro Teixeira, Teixeira Heizer, Ziraldo e Zuenir Ventura.
Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Ana Paula Aguiar, Fernando Luiz Baptista Martins, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Mário Luiz de Freitas Borges.
CONSELHO FISCAL Luiz Carlos de Oliveira Chesther, Presidente; Argemiro Lopes do Nascimento, Secretário; Adail José de Paula, Adriano do Nascimento Barbosa, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo e Manolo Epelbaum.
Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 presidencia@abi.org.br Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP
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pificação daquilo que ele realmente foi: uma ditadura, pontilhada, repleta, como em todo sistema em que prevalece o poder absoluto, de agressões e crimes contra a dignidade da pessoa humana.
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CONSELHO DELIBERATIVO MESA 2008-2009 Presidente: Pery Cotta 1º Secretário: Lênin Novaes de Araújo 2º Secretário: Zilmar Borges Basílio Conselheiros efetivos 2008-2011 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner, Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (in memoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros efetivos 2007-2010 Artur da Távola (in memoriam), Carlos Rodrigues, Estanislau Alves de Oliveiora, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico, José Rezende Neto, Marcelo Tognozzi, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa (Pajê), Sérgio Cabral e Terezinha Santos.
mereceu crédito ou adesão nem em seus domínios. QUANDO SE CONTESTA que a ditadura tenha sido branda, o que se está fazer é o registro de que essa quadra de supressão das liberdades públicas, dos direitos civis e dos direitos humanos foi marcada pela impiedade dos usurpadores do poder, por seu desrespeito às normas elementares que regem a convivência humana, sua arrogância, seu cinismo, como o demonstrado no episódio do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas masmorras do II Exército, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975. Após esse crime nefando contra um homem de boa-fé, que se apresentara às autoridades militares na presunção de que não se depararia com seres possuídos pelo demônio, seus algozes e matadores tentaram simular que ele cometera suicídio, versão apresentada de forma inepta, tão inepta quanto o simulacro urdido por seus carcereiros. O REGIME MILITAR CASSOU, prendeu, exilou, torturou, assassinou, demitiu, desaposentou, processou, condenou, censurou, expulsou, degradou, mentiu, deu sumiço a pessoas, privou a cidadania do direito de voto. Tudo isto só constituiu atos brandos na concepção dos áulicos, dos fariseus, dos puxa-sacos. Os democratas conhecem isto pelo seu verdadeiro nome: ditadura.
Conselheiros efetivos 2006-2009 Antônio Roberto Salgado da Cunha (in memoriam), Arnaldo César Ricci Jacob, Arthur Cantalice (in memoriam), Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Augusto Xisto da Cunha, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Alvarez Campos, Heloneida Studart (in memoriam), Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho e Pery de Araújo Cotta. Conselheiros suplentes 2008-2011 Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello, Salete Liusboa, Sidney Rezende,Sílvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e Wilson S. J. de Magalhães. Conselheiros suplentes 2007-2010 Adalberto Diniz, Aluízio Maranhão, Ancelmo Góes, André Moreau Louzeiro, Arcírio Gouvêa Neto, Benício Medeiros, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Luiz Sérgio Caldieri, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros suplentes 2006-2009 Antônio Avellar, Antônio Calegari, Antônio Carlos Austregésylo de Athayde, Antônio Henrique Lago, Carlos Eduard Rzezak Ulup, Estanislau Alves de Oliveira, Hildeberto Lopes Aleluia, Jorge Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marco Aurélio Barrandon Guimarães (in memoriam), Marcus Miranda, Mauro dos Santos Viana, Oséas de Carvalho, Rogério Marques Gomes e Yeda Octaviano de Souza. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Ely Moreira, Presidente; Carlos di Paola, Jarbas Domingos Vaz, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Maurílio Cândido Ferreira. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Wilson Fadul Filho, Presidente; Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Wilson de Carvalho, Wilson S. J. Magalhães e Yacy Nunes.
ESPECIALIZAÇÃO
ELES SABEM O QUE QUEREM ILUSTRAÇÃO: MARIA
Melhores suplementos juvenis atraem novos leitores para jornais e revistas, mas ainda há muito a se fazer para garantir conteúdo de qualidade para essa galera.
POR JOSÉ REINALDO MARQUES E MARCOS STEFANO
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exo, drogas e rock and roll? De fato, houve uma época em que a juventude se ligava apenas nisso, mas ultimamente as coisas estão mudando. Especialmente a imprensa. Muito criticados pela qualidade dos produtos – algumas vezes alienantes – que oferecem para o público juvenil, jornais e revistas tentam se reinventar para mostrar uma cara cada vez mais de acordo com esse público. E isso é verdade, principalmente no que diz respeito à contribuição dos suplementos juvenis no aumento de leitores jovens. Em 2007, quando completou dez anos de criação, a Coordenação de Mídia
Jovem da Agência de Notícias dos Direitos da Infância-Andi produziu o mais amplo e criterioso levantamento sobre o conteúdo editorial de suplementos e revistas juvenis já realizado no Brasil. Os dados levantados entre 1997 e 2006 revelaram algumas surpresas, especialmente resultados positivos alcançados pela mídia jovem, que está mais consciente de sua função social e atenta às demandas dos adolescentes. Mas também problemas que deixam claro que, se uma boa distância já foi percorrida, ainda falta muito para caminhar no sentido de atingir essa moçada. Jornal da ABI 339 Março de 2009
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ESPECIALIZAÇÃO ELES SABEM O QUE QUEREM
Realizado a cada ano, o levantamento chegou a analisar 26 diferentes suplementos ou seções e cinco revistas. Logo em sua apresentação, o relatório da Andi aborda o poder de influência da mídia, destacando a capacidade que “os meios de comunicação têm de estimular o desenvolvimento de uma visão crítica e de postura mais participativa entre o público jovem”. Segundo o estudo, os adolescentes estão mais exigentes, mas os veículos de imprensa, mais atentos, e não abdicam mais da sua função social. Vários deles praticam um modelo de jornalismo que envolve o leitor em debates críticos, inserindo-o no contexto do material jornalístico oferecido. Isso fica claro quando se analisa o percentual de reportagens com relevância social na pauta juvenil. Há dez anos, elas eram apenas 24,2% do noticiário. Ultimamente, chegaram a 65%. Apesar da elevada porcentagem de textos com foco em assuntos socialmente relevantes, nem todas as pautas costumam receber igual tratamento por parte dos veículos. Enquanto alguns assuntos atraem muita atenção, outras questões igualmente importantes para a agenda da juventude acabam deixadas à margem. As reportagens que se referem à educação alcançaram o maior índice de veiculação nas coberturas dos jornais e revistas pesquisados, representando 27% de todo o material analisado em 2006. Já a violência só
foi debatida em 0,58% das matérias: entre 2004 e 2006, houve uma redução de mais de 50% nas reportagens referentes ao assunto. Os temas gravidez e aids foram registrados em 1% do material analisado e aparecem como os menos citados nas matérias, embora ganhem destaque nas colunas de “consulta” ou “dúvidas dos leitores”, que respondem a cartas e e-mails dos adolescentes. Estas seções, no entanto, estão perdendo espaço nesses veículos. Em 2004, metade dos cadernos e revistas analisados fazia uso desses recursos. Dois anos depois, apenas sete, ou seja, 30%, destinaram espaço para as dúvidas dos jovens. 4
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Mesmo assim, fica claro que revistas e suplementos estão garantindo mais espaço para que garotos e meninas de 12 a 18 anos expressem sua visão. As estratégias de interatividade para formar esse canal de comunicação começam com as seções de cartas, passam por pesquisas sobre reportagens e inovações gráficas, criação de blogs e de material exclusivo para a internet e chegam à criação de conselhos editoriais formados por jovens, que se reúnem com a equipe da redação a cada 15 dias para discutir pautas e avaliar as edições anteriores. Nas matérias, adolescentes e jovens são, de longe, os atores mais ouvidos pelos repórteres. De acordo com o levantamento da Andi, entre 2005 e 2006 40% das reportagens os ouviram, com ligeira predominância de fontes femininas. Trajetória de longa data Foi a década de 1990 que concentrou o boom no surgimento de veículos para jovens. Mas muito antes disso algumas tentativas para atingir esse público surgiam esporadicamente. A primeira surgiu em 1831, em Salvador. Tratavase de um jornal bissemanal chamado O Adolescente. Em 1934, o periódico A Nação passou a publicar o Suplemento Infantil – mais tarde chamado de Suplemento Juvenil –, influenciado pelas histórias em quadrinhos norte-americanas. Apesar de ser muito diferente daquilo que existe hoje, logo a idéia foi copiada por veículos de todo o Brasil. Já a primeira revista voltada a esse segmento surgiu apenas em 1972. Geração Pop, lançada pela Editora Abril, foi publicada até 1979. Na televisão, o jovem começou a ter espaço na programação principalmente nos anos 80. Destaque para a pioneira TV Cultura, de São Paulo, e para a MTV, que entrou em operação no País em 1990. Antes vistos como personagens sem condições de fazer suas próprias escolhas e com pouco apelo publicitário, é nessa época que a importância do público jovem começa a ser entendida. Percebe-se também a insuficiência das revistas segmentadas voltadas para o público feminino ou para os esportes na tentativa de cativá-los. Revistas como Capricho, Querida e Carícia são reformuladas e novos títulos como Atrevida e Todateen somam-se a elas. Nos jornais, a Folha de S. Paulo lança de forma pioneira, em janeiro de 1991, o semanal Folhateen para “levar notícias sobre educação, lazer, comportamento e consumo para os leitores jovens”. – A idéia parecia completamente maluca. Não havia nada parecido no
Com ilustrações de J.Carlos, o Suplemento Infantil, fundado por Adolfo Aizen em 1934, trouxe para o Brasil o modelo dos cadernos semanais de quadrinhos. Já a revista Geração Pop, de 1972, foi a primeira voltada para o público adolescente, enquanto o Folhateen é o caderno pioneiro voltado para o público jovem.
Brasil, uma ou outra coisa do gênero na Inglaterra ou que o valha. Mas a Folhinha era para criança, a Ilustrada tinha envelhecido e a “escadinha” de entrada de leitores estava com um degrau faltando. O projeto inicial foi da Suzana Singer, hoje Secretária de Redação da Folha, e o título foi uma brincadeira com o caderno Folhetim, clássico suplemento literário-esquerdista do jornal. O Folhateen repercutiu e quase todo jornal brasileiro abriu espaço para um caderno ou seção voltada para adolescentes ou jovens. Esses espaços se tornaram escola e refúgio de várias safras de jovens jornalistas bacanas País afora, já que nas faculdades não havia preparo para trabalhar com o público adolescente. – conta o jornalista André Forastieri, primeiro Editor do suplemento. Além do consumo Desde então muita coisa mudou. Mas graves problemas ainda persistem em atrapalhar a mídia jovem. Com algumas exceções, como o próprio Folhateen, que já chega à maioridade, boa parte dos suplementos voltados para jovens e adolescentes ainda enfrentam problemas de falta de perenidade ou mesmo de estrutura para o trabalho. Em apenas três anos, de 2004 a 2007, seis dos 26 suplementos pesquisados pela Andi deixaram de circular. Em alguns casos, o conteúdo destinado à juventude, que contava até então com
espaço exclusivo, passou a ser tratado de forma secundária em outros cadernos e seções dos diários. Mas em outros nem esse tipo de solução foi adotado e os adolescentes perderam um importante canal de comunicação. Outro problema bastante citado pelos profissionais que trabalham nesse tipo de caderno é a insegurança em abordar problemas sociais, especialmente por causa da suposta alienação dos jovens. Muita gente acredita que, ao trocar assuntos ligados à televisão, à música, ao entretenimento e ao consumo por outros como emprego, segurança ou mesmo educação, a queda do número de leitores seja inevitável. Mas, como mostra o trabalho da Andi, a situação é totalmente inversa: cadernos temáticos e reportagens especiais tendem a fazer sucesso entre os adolescentes. Já outros reclamam da falta de estrutura disponibilizada pelas empresas para a área. O foco em questões ligadas a meninos e meninas é visto em muitos veículos como um tipo menor de jornalismo, o que acaba desvalorizando tanto o jornalista quanto o leitor. Há muitos casos de profissionais que são obrigados a elaborar as pautas, produzir, fotografar, editar e até diagramar o caderno. Uma das principais características dos adolescentes brasileiros é a heterogeneidade nessa faixa etária. Na contramão disso, as questões referentes à diversidade étnica, sexual, regional e social não têm recebido a mesma importância nos veículos. De acordo com o levantamento da Andi, o número de matérias com temas de diversidade caiu 58,8% entre os anos de 2004 e 2006. Questões de raça e etnia, principalmente relacionadas a situações específicas de indígenas, negros e brancos, e de gênero foram algumas das mais prejudicadas. Outro problema apontado pelo levantamento é o baixo número de reportagens sobre políticas públicas para a juventude, tão essenciais ao desenvolvimento do País. Apenas 3% dos textos públicos em 2006 tratavam de política, a maior parte pautada em cima de acontecimentos políticos específicos ou eleições. Ainda é um enorme desafio para suplementos de jornais e revistas produzir material discutindo assuntos como o voto facultativo, programas voltados para o adolescente ou a mobilização da juventude na busca por seus direitos e pela melhoria das condições sociais no Brasil. Educação ou entretenimento – Trabalhar com a juventude ainda é um grande desafio à imprensa brasileira. Há dez anos não havia nada com
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Lançar em 1991 um caderno semanal com conteúdo exclusivo para adolescentes como o Folhateen parecia uma idéia completamente maluca. Hoje, 18 anos depois, a publicação se consolidou com matérias atraentes e com forte apelo visual. Maria Cristina Gobbi adverte que os suplementos devem se preocupar em formar leitores conscientes.
a cara dessa faixa etária. Ultimamente, a situação melhorou, mas ainda é necessário investir e arriscar mais. Adolescentes não são adultos em miniatura e não podem ser tratados como tal. É necessário construir uma linguagem elaborada para esse grupo, que já mostrou sua força e influência social, política e econômica. A visão deve ser a de formar leitores conscientes e, para isso, enfrentar momentos de transição, e concorrência com a internet. Sem atrativos reais e sem atender a expectativa dos jovens, tratando dos assuntos de maneira limitada e carregando os textos de estereótipos isso não será possível. O que não significa ser superficial e não demonstrar qualquer opinião crítica, como muita gente vem fazendo. – adverte Maria Cristina Gobbi, Diretora Suplente da Catédra Unesco de Comunicação e Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e TV Digital da Universidade Estadual Paulista-Unesp. Em 1999, Gobbi tratou do assunto em sua teste de mestrado. Na época, 51 dos 686 jornais analisados publicavam suplementos infantis e apenas dez, cadernos específicos voltados para os adolescentes. Estar em sintonia com a realidade quando se faz um caderno para adolescentes é uma missão ainda bastante complicada. E não somente para jornalistas, mas para pais, educadores e, em certos casos, para a sociedade em geral. Tratar de temas áridos, mesmo que o jovem conviva com eles em seu cotidiano, enfrenta resistência de muitos profissionais, que optam por textos pequenos e superficiais, sem qualquer preocupação formativa ou educativa, e linguagem sedutora, mas com informa-
ção de pouca reflexão. A visão educadora ainda passa ao largo de muitas redações. Ainda assim, alguns suplementos têm conseguido bons resultados ao equilibrar esses assuntos com outros de variedades e entretenimento ou mesmo elaborando edições temáticas. Outra boa dica vem da jornalista Fernanda Mena, atualmente produtora do Fantástico, da Rede Globo. Durante três anos, ela trabalhou no Folhateen. Muito antes de a televisão exibir o documentário Falcão – Meninos do Tráfico, do rapper MVBill, a repórter publicou uma longa reportagem no suplemento falando sobre os bastidores e desdobrando o filme. O trabalho acabou ganhando o Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo 2003/2004. Em entrevista ao relatório A Mídia dos Jovens, que apresentou a pesquisa da Andi, ela revelou o segredo para publicar um texto tão elaborado: – Quando a gente fazia matérias mais próximas do universo jovem, como cultura, o retorno era maior, porque o assunto é de mais fácil digestão. Mas nós tínhamos também retorno dessas reportagens que considerávamos mais espinhosas. A inserção desses temas está extremamente relacionada ao editor do caderno. Quando trabalhei no Folhateen, as coisas eram decididas democraticamente e conseguimos mostrar que o leitor dos cadernos jovens – os quais geralmente tratam de cultura pop, de internet, de moda – é uma pessoa que está inserida no mundo. É necessário trabalhar com a perspectiva de que o adolescente é um ser humano em formação e precisa estar a par de toda a pluralidade que há em nossa vida.
Inimiga ou aliada? Em tempos de novas tecnologias, os suplementos e revistas para jovens encontram um novo problema para superar. Um obstáculo apontado por alguns especialistas como capaz de acabar com a própria imprensa. Trata-se da concorrência com o mundo digital, especialmente a internet, que vem roubando espaço dos veículos tradicionais como fonte de informação para garotos e garotas em todo o mundo. Entre tantas informações desencontradas e igual estardalhaço, novos estudos sugerem que há esperança para a mídia impressa, mas é fundamental alguns conceitos: – O jornalismo impresso não foi esquecido, mas tende a ser visto cada vez mais como um meio informativo e menos como entretenimento, elemento que os jovens passam a buscar principalmente em mídias como o rádio, a internet e a tv. A garotada de 12 a 17 anos está lendo pouco. Em relação
aos jornais, eles geralmente apenas “passam o olho”. Exatamente por ser de acesso mais rápido, a internet tornou-se preferencial como fonte de leitura de muitos deles. – adverte a pesquisadora Ana Helena Reis, diretora da organização não-governamental Midiativa, em entrevista ao Relatório a Mídia dos Jovens, publicado pela Agência de Notícias dos Direitos da InfânciaAndi e pelo Instituto Votorantim. A solução não é simples, mas passa pela definição exata do papel que a mídia impressa deverá ter na informação do adolescente e também pela eficaz parceria justamente com “o inimigo”. Por isso, Reis aconselha: – Se o formato impresso já não tem sido suficiente para garantir o interesse de leitores e leitoras, parece lógico que suplementos e revistas busquem maior interação com seu público, a fim de se tornar mais atrativos – donde terminam criando seus próprios sites, blogs, chats e outras ferramentas de viés tecnológico.
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Folhateen chega à maioridade
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jeto envolveu até os coordenadores pedagógicos e professores. A equipe do suplemento visitou os estabelecimentos de ensino, deu palestras sobre como fazer um jornal. Um enorme sucesso. Mas, durante a apuração dos grupos, uma menina morreu atropelada por um trem. André Forastieri, primeiro Editor do suplemento, lembra da situação: – Tive uma reunião com a advogada da família, acompanhada por advogados da Folha. Não houve processo. Foi uma infeliz coincidência. E o caderno saiu, e com homenagem à garota. Mas ficaram as recordações da comoção durante o enterro. Mudanças A mudança do formato standard para o tablóide não foi a única pela qual passou o Folhateen nesse tempo. Cada editor que dirigiu o caderno imprimiu sua marca. Atualmente, a equipe que trabalha no suplemento conta com o Editor Marco Aurélio Canônico, de 31 anos, e os repórteres Diogo Bercito, de 21, Chico Felitti, de 23, e Tarso Araújo, de 31. Além de uma boa equipe de colaboradores: – Tratamos da produção cultural voltada para o público adolescente, como música, filmes, literatura, teatro, quadrinhos etc. E de temas de comportamento que são ligados a essa faixa
etária. Mas não esquecemos assuntos que estão freqüentemente na parte “adulta” do jornal, apresentando-os com outra linguagem. Exemplos são capas recentes que fizemos sobre a crise econômica mundial e a prisão de Guantánamo. – diz Canônico. Para elaborar as pautas, os jornalistas contam com a ajuda de dois “grupos de apoio”, formados por adolescentes interessados, que se inscrevem enviando email para o caderno, e com os quais se reúnem a cada 15 dias. Em geral, os textos do suplemento são curtos, cheios de boxes, tabelas e dropes. Apesar de seguir a gramática oficial, a linguagem adotada abre espaço para expressões corUtilizando uma linguagem jovem, o Folhateen não deixa de rentes, gírias, palavras tocar em assuntos difíceis, como a prisão de Guantánamo em inglês e outras mais. (capa ao lado) e o alcoolismo (acima), pelo qual recebeu o Termos como “nipe”, Prêmio Esso 2008 de Criação Gráfica, Categoria Jornal. “queimar o filme”, “pessoa cool” e “twittar” buscam apropassando por uma nova fase de reestruximar o adolescente do caderno. turação temática e de apresentação. – Não há exatamente uma fórmula Com relação à concorrência com a in“como escrever para jovens”. É algo que ternet, ele não teme: – Ninguém lê o depende da pauta, do autor, de uma suplemento esperando encontrar o que série de variáveis. Mas usar humor, linvê em blogs, sites e vice-versa. Nosso guagem menos formal, didatismo e material é diferente daquele que se escrever um texto bem encadeado é encontra na web, e acho que essa difealgo que funciona. – explica Canônirença não escapa ao leitor. co, acrescentando que o Folhateen está
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Pioneiro entre os suplementos para adolescentes no Brasil, o Folhateen, que circula todas as segundas-feiras encartado na Folha de S. Paulo, acaba de atingir uma importante marca. Na verdade, o caderno está deixando a adolescência para, aos 18 anos de existência, completados em janeiro, atingir a maturidade. Essas quase duas décadas de funcionamento são uma escola para jornalistas e para outros cadernos que, seguindo o modelo do Folhateen, foram criados em veículos de todo o Brasil. Basta ver, por exemplo, a coluna Sexo & Saúde, que no passado fez a fama da psicóloga Rosely Sayão e hoje é assinada pelo médico Jairo Bouer. Até hoje, adolescentes de todo o País escarafuncham a internet ou compram livros que trazem o melhor do que foi publicado na coluna para tirar suas mais secretas dúvidas. Todos os bons suplementos para adolescentes que foram criados nos últimos anos no Brasil mantêm espaços semelhantes para interagir com seu público. O conteúdo da coluna em alguns momentos é fonte de grande polêmica. Há muita gente que considera o suplemento liberal e “descolado” demais. Tanto que outro espaço, O2 Neurônio, já chegou a comparar “transar” com comer pizza. As ilustrações – diretas e claras – são outra fonte de discussão. Não por causa do estilo, que não agrada a qualquer um, mas por explicitar situações vividas por meninos e meninas, até em relação à homossexualidade. Por outro lado, com esse estilo, o caderno conseguiu quebrar uma série de tabus e discriminações com suas matérias. Nesses anos, diversas reportagens do Folhateen deram o que falar. Muitas sobre música, comportamento e as diferentes “tribos urbanas”, mas outras também sobre a vida de jovens deficientes, discriminação de alunos homossexuais em sala de aula – tema que motivou na época o ex-Deputado Federal Nilmário Miranda (PT-MG), então Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, a apresentar projeto de lei que define como crime a discriminação por cor, raça, etnia, origem e religião – e tema da vencedora do Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo em 2003/ 2004, que abordava a relação entre o tráfico de drogas e a violência. Algumas situações ficaram sobremodo marcadas. Logo nos primeiros tempos, o suplemento se inspirou em uma iniciativa da revista norte-americana Spin com uma edição totalmente pautada e editada por universitários, para fazer o Folhateen por Teens, número especial do caderno que seria produzido por alunos do ensino médio de escolas públicas e privadas paulistanas. Aprovado pela Direção do jornal e amarrado com as escolas, o pro-
A jovem equipe do Folhateen é composta pelos jornalistas Tarso Araujo, Diogo Bercito, Marco Aurélio Canônico, o editor, e Chico Felitti.
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Sério, mas na O “jornalzinho” que se linguagem transformou no melhor do mundo da galera Kzuka foi considerado o melhor do mundo em 2008. A equipe que edita o suplemento recebeu a notícia com vibração.
O ano de 2008 foi especial para o pessoal que faz o Kzuka, o suplemento juvenil do diário Zero Hora, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A publicação foi apontada pela Associação Mundial dos Jornais como a melhor do mundo em sua categoria. E pensar que, quando o executivo do grupo RBS Fernando Tornaim propôs sua criação, imaginava fazer “um jornalzinho voltado para estudantes”... – Apesar de acreditarmos muito no nosso trabalho, ganhar um prêmio desse gabarito foi uma surpresa enorme para jornalistas tão jovens. É impossível não usar a palavra euforia para descrever o momento em que dei a notícia ao pessoal da Redação. Estamos empolgados com o desafio que é continuar fazendo um produto tão bom quanto o que foi premiado ou melhor. – alegra-se a Editora Priscila Galvão de Carvalho, reconhecendo que sempre confiou no bom nível de sua equipe, mas reconhecendo que não esperava tal indicação da AMJ. O curioso título Kzuka é uma junção de letras que não tem uma explicação muito lógica. Segundo Tornaim, a idéia era criar um nome que não restringisse a marca a nenhuma “tribo” específica. Colorido e no formato tablóide, o suplemento estreou com oito páginas e em menos de três meses aumentou para 12. O Kzuka sai todas as sextas-feiras, encartado no Zero Hora, cuja tiragem é de cerca de 200 mil exemplares. Além de Priscila, a equipe – cuja idade média é de 25 anos – tem três repórteres, uma assistente de produção, três designers e um fotógrafo. A editora faz questão de citar que conta
também com equipes locais em Caxias do Sul e Santa Maria, no Rio Grande do Sul; e em Florianópolis, Joinville e Blumenau, em Santa Catarina. Ou seja, na verdade, 23 profissionais colaboram com o caderno. Crescimento dos leitores jovens O tamanho da equipe não é despropositado. Segundo pesquisa da AMJ, o Kzuka é responsável pelo crescimento de 27% do público jovem do Zero Hora. Além de usar a internet e o celular para falar com seus leitores, o suplemento interage diretamente, em escolas e locais que eles costumam freqüentar. A identificação surgida daí é fundamental, segundo a Editora Priscila Carvalho: – Criamos o hábito nos nossos leitores a partir do momento em que eles se identificam com o produtor e reconhecem um suplemento como seu,
dentro de um jornal tradicional. Como foi dito pelo júri do Prêmio Mundial de Publicações Juvenis (World Young Readers Prize), é “uma forma inovadora de manter os jovens envolvidos e de fazê-los sentir como se o produto fosse deles”. Acho que um dos principais fatores do sucesso de qualquer suplemento é falar de igual para igual com o jovem. Não devem existir barreiras culturais, de linguagem, ou de estilo, entre quem escreve e quem lê. Mas haver toda uma preocupação estética em torno do conteúdo que chega ao leitor. Embora defenda a força do impresso, Priscila não nega a superioridade da mídia on line em rapidez na informação, interatividade e entretenimento: – O jovem de hoje já nasce com a internet em sua rotina, enquanto as outras mídias têm de ser agregadas à sua vida. No caso do Kzuka, que trabalha muito bem em todas as mídias, temos a mesma filosofia para diferentes veículos. Mas no fundo, acho que cada meio funciona melhor com um perfil de adolescente, dependendo da cidade onde ele mora, do colégio em que estuda, de sua classe econômica e da educação que recebe, entre outros aspectos. Por tudo isso, o Kzuka está extrapolando o papel e se tornando multimídia. Além do caderno que circula no Zero Hora, ele também se transformou em um seriado veiculado na internet, um programa de rádio que vai ao ar no sábado à tarde e no quadro apresentado semanalmente no jornal local da RBS TV. Bons exemplos de quem se tornou vencedor e que não devem demorar a ser copiados. Os adolescentes brasileiros agradecem.
Na Região Centro-Oeste, uma das publicações jornalísticas dedicadas a jovens mais badaladas é o caderno Zine. O tablóide tem 12 páginas e circula aos domingos, junto com A Gazeta, por todo o Estado de Mato Grosso, além de algumas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. O suplemento foi lançado em 1998 como parte de várias mudanças editoriais do jornal, que, ao mesmo tempo em que inaugurava nova sede, passou a ser colorido e ganhou mais cadernos. A idéia do nome surgiu da palavra fanzine. O objetivo era – e continua sendo – criar um meio de comunicação com o jovem, com conteúdos interessantes, tanto em matéria de entretenimento quanto em informar fatos sérios. Na condução do Zine está uma equipe de jovens profissionais comandada pela experiente, mas jovem jornalista Maria Angélica de Moraes. Atualmente com 34 anos, a Editora começou no
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SUPLEMENTOS ELES SABEM O QUE QUEREM
Conselho adolescente Talvez por ter preenchido essa lacuna no mercado, o lançamento do Zine colaborou para o crescimento do público jovem da Gazeta. Um dos principais movimentos nesse sentido
OTMAR DE OLIVEIRA
caderno como repórter há dez anos e sempre se mantém em sintonia com o mundo juvenil pela internet, lendo e relendo revistas e jornais. A idade parece ser apenas um detalhe, mas ajuda – e muito – na seleção de pautas que estejam em consonância com o universo do leitor e na qualidade da informação prestada. Além dela, o time conta com a repórter Raquel Ferreira, de 29, e a estagiária Larissa Cavalcante, de 20, que estuda Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente, o Zine é a única opção de leitura para os jovens na mídia impressa local. Segundo Maria Angélica, o caderno teve um concorrente, o Azul, do Diário de Cuiabá, mas que hoje não é mais publicado: – O Azul tinha poucas páginas e conteúdo muito fraco. Em matéria de jornalismo jovem, acredito que somos o suplemento mais duradouro até hoje por aqui.
A editora do Zine, Maria Angélica de Moraes (direita), ao lado da repórter Raquel Ferreira, mantém um Conselho Editorial formado por adolescentes que se reúnem quinzenalmente.
foi a adoção, pelo caderno, de um Conselho Editorial formado por adolescentes, com o qual a equipe da redação se reúne a cada 15 dias: – Eles trazem novas idéias e sugestões de pau-
ta que geralmente envolvem o que vivenciam na escola, em casa, com amigos. Muitas vezes, principalmente nas matérias de saúde e comportamento, os adolescentes querem en-
contrar respostas para as dúvidas que têm e para situações que presenciam no seu dia-a-dia. O suplemento procura atendê-los na forma de reportagens, entrevistando especialistas e outros jovens. – explica Maria Angélica. A presença de um colunista jovem também ajudou na aproximação com o público-alvo e na conquista de leitores. O leitor do Zine atualmente é o estudante de ensino médio, mas seus pais e professores também lêem o caderno. Ao mesmo tempo em que o suplemento fala do surgimento de uma banda de rock, procura abordar temas como saúde, doenças sexualmente transmissíveis, conflitos familiares, cinema, educação e moda. O caderno tem também seções fixas e contempla temas como política e meio ambiente. Diz a editora que essa foi a forma encontrada para dar um ar mais sério ao conteúdo e não ficar apenas no superficial: – Como as matérias são consideradas pequenas, porque precisam se encaixar no formato tablóide e porque o jovem costuma fugir de textos longos, nossa principal preocupação é informar de maneira leve e divertida.
Pioneirismo no Piauí
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te, pois o nosso público é exigente e quer sempre mais. – diz França, que começou sua relação com o suplemento como leitora, depois passou a ser repórter e desde 2001 é editora. Os profissionais que participaram da criação do caderno já não trabalham no Meio Norte. A equipe atual é formada basicamente pela editora, um repórter e um fotógrafo, mas nenhum dos três trabalha com exclusividade para o For Teens, atuando também em outras editorias. Tatiara, por exemplo, é responsável também pelos cadernos Infantil e Beleza & Saúde, além de uma coluna de variedades chamada Tudo de Bom, com comentários sobre jornal, tv e internet. O que não impede que o For Teens seja um dos cadernos mais lidos do Meio Norte e sirva de elo com o público jovem. Apesar, segundo Tatiana, de não ser o único produto oferecido a esse leitor. Diariamente, o Meio Norte publica reportagens dirigidas ao jovem em cadernos como Cidades, Cultura e Campus, este último voltado para os universitários. Matérias sobre comportamento, saúde e sexualidade são geralmente as que despertam interesse entre os leitores do For Teens. Principalmente as que falam de sexo são as mais polêmicas. Por isso, durante algum tempo, o caderno publicou a coluna Sexo sem Ver-
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O nome é For Teens, mas que ninguém se engane: apesar da grafia estrangeira usada para chamar a atenção do adolescente, a publicação é um suplemento para o jovem do Piauí. Essa é a advertência que faz a jornalista Tatiara de França, Editora do suplemento criado há 15 anos no formato standard, mas que foi mudado, por motivos comerciais e para facilitar o manuseio e a leitura, para o tablóide, e hoje circula toda quinta-feira no jornal Meio Norte. – Acredito que o For Teens é uma experiência boa e desafiadora para a região. É o suplemento jovem pioneiro do Piauí e, atualmente, também o único do Estado. A cada edição, somos desafiados a fazer algo novo, diferen-
O For Teens exige novos desafios a cada edição, diz sua Editora Tatiara de França, que vê na interatividade uma forma de conquistar os jovens.
gonha, em que eram respondidas cartas de pessoas de todas as idades com dúvidas não apenas sobre questões sexuais, mas também de saúde. Hoje o suplemento aposta na interatividade como forma de continuar conquistando a juventude. Tanto que já conta com um blog, que é atualizado por colaboradores e pela equipe do suplemento e contribui para a seleção de conteúdos e o direcionamento das pau-
tas da semana. O suplemento recebe também material de colaboradores, especialmente cineastas, músicos, djs e universitários. – Respeitar a opinião do jovem, suas necessidades, seus anseios e interesses é fundamental. Ouvir e dar voz e vez ao leitor é um dos pontos fortes do For Teens, desde o seu lançamento. Acredito que estes pontos são essenciais para quem cobre essas pautas e trabalha em editorias focadas nesse segmento. – conclui a Editora.
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Megafusão no Globo Lançada em 2000, a revista Megazine, de O Globo, é o resultado de uma fusão – para usar um termo bem ao gosto juvenil – de dois cadernos: o Planeta Globo, que circulava aos domingos e era mais voltado para o público préadolescente, e o Vestibular, publicado às terças-feiras, no último semestre de cada ano, dirigido, obviamente, aos vestibulandos. O resultado foi uma publicação voltada para vestibulandos, universitários e jovens em geral, com reportagens que abordam não apenas
a educação, mas também música, cinema, comportamento, educação e outros temas interessantes. O título, escolhido a partir de pesquisa, remete à idéia de um fanzine, e, como convém a uma publicação alternativa do gênero, conta com uma equipe basicamente jovem: os dois editores assistentes e os dois repórteres têm entre 25 e 30 anos. O projeto gráfico inicial já passou por várias modificações, a última há três anos, mas já há planos de se criar outras novidades na revista, em que diagramação, texto e imagens são sempre pensados de acordo com o público – jovens na faixa dos 16 aos 22 anos – e critérios como design e leitura atraentes e agradáveis: – As pautas seguem a mesma linha e, para buscar assuntos de interesse, temos um conselho editorial que muda semestralmente e é formado por seis jovens escolhidos por meio de concurso. Eles se reúnem com a equipe a cada 15 dias, dão suas opiniões sobre a Megazine e sugerem assuntos para as matérias. – diz a subeditora Josy Fischberg. Para monitorar o que mais desperta a atenção dos leitores, a Megazine se baseia nos e-mails enviados à redação. A coluna de João Paulo Cuenca é
Josy Fischberg procura monitorar o interesse do leitor através das mensagens que o Megazine recebe.
uma das seções que mais recebe mensagens, ainda que nem sempre elogiosas, segundo Josy. Já a Liquidificador, de lançamentos de livros, cds e dvds, também tem feito sucesso. Os assuntos que mais geraram polêmica nos últimos tempos são igualmente variados como o voto nulo, a “roda da fortuna” – uma espécie de corrente em que estudantes entram para ganhar, mas acabam perdendo dinheiro —, a ocupação da Uerj e religião. Diversão, números e informação Temas ligados à responsabilidade social, como direitos humanos e o Es-
tatuto da Criança e do Adolescente, também estão presentes na revista, como na reportagem sobre trabalho escravo infantil publicada em maio, nos 120 anos da Abolição. Outra matéria marcante, diz Josy, mostrou a rotina de alguns jovens que vivem há anos com o vírus da aids, enquanto outra abordou o também difícil dia-adia de alguns adolescentes saudáveis: – Uma pesquisa do IBGE apontou que meninas, muito mais que meninos, são responsáveis pelos afazeres domésticos, o que faz com que tenham uma carga horária pesadíssima. Entrevistamos uma jovem que, além de estudar, ajuda a mãe a cuidar da casa e de dez irmãos. Reportagens desse tipo trazem não só entrevistas, mas também números e outras informações sobre o assunto, que é apresentado com profundidade. Josy Fischberg discorda de quem acha que os suplementos juvenis têm que ser necessariamente didáticos. No caso da Megazine, além da preocupação em fazer um produto jornalístico de qualidade, a proposta é levar informação e selecionar o que os editores acreditam ser de interessante e relevante para o jovem: – Nossa intenção é fazer com que nosso público desperte para o jornal, de um modo geral. Somos uma primeira etapa para a formação de novos leitores.
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VERGONHA JOSÉ CRUZ/ABR
A FACE DA DEMAGOGIA POR VILLAS-BÔAS CORRÊA Em reunião de família, com poucos convidados, o acaso colocou-me numa roda de conversa de jovens, vários iniciando o duro ofício de ensinar em colégios particulares para os ginasianos que se preparam para o vestibular nas faculdades. Uma moça elegante derivou a conversa para o tema que incendiou o debate. Professora de várias matérias, como Química, Botânica, Ciências, Biologia e Física, em meia dúzia de colégios particulares, recebe por aula a fortuna que varia entre 10 e 12 reais. Em alguns anos de batente, só uma vez conseguiu a proeza de abocanhar o máximo que bate no prêmio lotérico de R$ 300. Sim, senhores: R$ 300 no mês sortudo, sem feriados nem dias santos. O máximo que a professora conseguiu alcançar perde de longe para o salário-mínimo do Rio de Janeiro, reajustado para R$ 512,67, e mesmo para o mais modesto mínimo federal, fixado em R$ 465. A conversa não parou ai. Estávamos ainda distante do fundo do fosso. A professora ressalvou que não tinha a quem se queixar e ainda podia dar-se por feliz em ocupar o piso mais alto na categoria dos esquecidos pela demagogia perversa. R$ 12 por aula era quase uma generosidade de donas de escolas. Pois, mesmo no espaço urbano de Jacarepaguá, não um mas vários colégios remuneram a aula em qualquer nível com R$ 8. Exatamente, oito reais. Para juntar R$ 80, sem gastar um centavo, são 10 horas de aula. No embalo, o jovem atleta de ombros largos e braços musculosos aproveitou a pausa para entrar na cadência das confissões. Professor de Educação Física, diplomado por faculdade particular das mais conceituadas e de mais altas mensalidades, dá aulas de remo e natação em 10 Jornal da ABI 339 Março de 2009
clubes famosos da Zona Sul e ganha por hora/ cofre. Os milhares de prefeitos convocados para aula os mesmos R$ 8 da tabela de fome dos cur- compor o auditório para ouvir e aplaudir os exalsos e colégios da Zona Oeste. No seu caso, o ex- tados improvisos do Presidente Lula e conhepediente entra pela noite, passa das 23h. Como cer a sua candidata, a Ministra Dilma Roussemora longe e ainda não conseguiu comprar o car- ff, à sucessão de 2010, cumpriram o seu papel. ro das suas prioridades, bate o ponto em casa de- E choraram as mágoas no circuito de converpois da meia-noite, tira uma soneca e refaz o per- sas com os ministros disponíveis. Certamencurso – pois nadadores e rete perderam a oportunida“OS MILHARES DE PREFEITOS madores também acordam de de ouro de colocar no CONVOCADOS PARA OUVIR E APLAUDIR com as galinhas. mutirão de boa vontade do Não tenho informações Governo atrás dos votos o OS EXALTADOS IMPROVISOS DO do outro lado do muro. quadro vergonhoso, obsPRESIDENTE LULA E CONHECER Mas posso especular sobre ceno do salário dos profesA SUA CANDIDATA, A MINISTRA a choradeira de proprietásores das escolas públicas D ILMA R OUSSEFF , PERDERAM rios e diretores de faculdae particulares em todo o des e colégios fora da área Brasil. Se o Governo deve A OPORTUNIDADE DE OURO DE nobre e endinheirada da dar o exemplo, é também COLOCAR NO MUTIRÃO DE BOA Zona Sul e das mansões e ele quem pode abrir o deVONTADE DO GOVERNO ATRÁS DOS arranha-céus de São Conbate e bancar a solução. VOTOS O QUADRO VERGONHOSO , rado e da Barra da Tijuca. Na minha memória de Francamente, estamos diveterano cato o exemplo OBSCENO DO SALÁRIO DOS ante de uma situação insus- PROFESSORES DAS ESCOLAS PÚBLICAS da Universidade do Protentável e que nada justififessor, criada por Jaime ca. O problema é nacional, E PARTICULARES EM TODO O BRASIL.” Lerner quando Governaainda que as soluções possam ser municipais. Se dor do Paraná. Aproveitando as ruínas de uma no Rio, ex-capital do País e antiga Cidade Ma- antiga construção, montou uma vila, com ravilhosa, professores com diplomas universi- casas, auditórios, refeitório, sala de música, bitários sobrevivem com proventos mensais muito blioteca, onde durante anos as professoras priabaixo do salário-mínimo, não é necessário bus- márias do Estado passavam uma semana por car outras causas e explicações para o descala- ano num mergulho cultural com palestras, debro do ensino, em diferentes níveis, do Amazo- bates, concertos de música. nas ao Rio Grande do Sul. Mais do que a denúncia A Universidade fechou. Dispenso as explida confessada ignorância e do pasmo diante da cações. Fico com a lembrança das professoras evidência de mais uma geração perdida, tento com olhos arregalados de emoção e que entre provocar o debate. Como assistente, espero lágrimas confessavam nunca ter ouvido um acompanhar as desculpas federais, estaduais e concerto de música ao vivo. municipais para o criminoso alheamento diante do escândalo que certamente tem solução. Artigo publicado no Jornal do Brasil e reproduzido pelo jornal A E a ocasião é oportuna. O Governo entrou no Voz da Serra, em sua edição do fim de semana de 14 a 16 de fevereiro. O jornalista Villas-Bôas Corrêa é membro do Conselho clima de campanha eleitoral e resolveu abrir o Deliberativo da ABI.
O melhor do cartum em homenagem à ABI Exposição no Centro Cultural Justiça Federal exibe o talento e a importância histórica dos desenhistas em defesa da liberdade de expressão. Traços Impertinentes tomaram de assalto as galerias do térreo do Centro Cultural Justiça Federal, localizado na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio. Esse foi o nome da exposição em torno do tema ABI - 100 Anos de Luta pela Liberdade, que reuniu as obras de 55 artistas em homenagem ao centenário da Casa. Em 17 de março, a noite de abertura da mostra, em cartaz até 26 de abril, reuniu música e humor, num manifesto em defesa da liberdade e contra qualquer modalidade de censura. O destaque da noite, além dos trabalhos dos chargistas e cartunistas, foi a apresentação do grupo musical Conjunto Nacional, formado pelos irmãos Chico (voz) e Paulo Caruso (voz e piano), Aroeira (sax tenor) e Luís Fernando Veríssimo (sax alto). O conjunto contou também com a participação dos jornalistas Luiz Manoel Guimarães (gaita) e Fernando Barros (contrabaixo) e de
Nélson Pagani (bateria), o único que não é profissional de imprensa. Definido como um recital humorístico, com duração de 40 minutos, o show apresentou esquetes satíricos, tendo como alvos preferenciais nomes do cenário político. As gafes do Presidente Lula, a obsessão do Senador José Sarney pelo poder, o furor em torno de Barack Obama, tudo foi motivo de piada para o grupo que, em troca, recebeu os aplausos da platéia que lotou o teatro do CCJF. Luís Fernando Veríssimo, que chegou de Nova York diretamente para o espetáculo, definiu o espetáculo como uma iniciativa bem-humorada ao estilo dos irmãos Caruso, que concilia música e humor, mas fez questão de ressaltar a seriedade do evento. "Trata-se de
uma comemoração importantíssima essa dos 100 anos da ABI, por causa de toda a história da entidade na defesa do jornalismo, da liberdade de imprensa, entre outras lutas, elementos que dão o tom de seriedade do evento, que se misturou ao bom humor". Chico Caruso também lembrou da importância da ABI para os cartunistas. "Essa Casa é uma das instituições mais importantes da nossa classe, pois nós caricaturistas há muito tempo estamos representados nela, desde o Raul Pederneiras, que foi seu Presidente por duas vezes (19151917 e 1920-1926). Esta é uma festa dos humoristas. Mas, além disso, vamos fazer o recital dos jornalistas. Aroeira, Paulo Caruso e eu, mais o Veríssimo, que é um tremendo bandleader. Acho inclusive que Jornal da ABI 339 Março de 2009
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FOTOS: FRANCISCO UCHA
ANO DO CENTENÁRIO O MELHOR DO CARTUM EM HOMENAGEM À ABI
Os irmãos Caruso (Chico, à esquerda; Paulo à direita) abriram e conduziram o show de abertura da mostra, que o Presidente da ABI (à direita) apontou como um dos mais importantes eventos de comemoração do centenário da Casa. Entre os que mais vibraram com a exposição estava Lan, decano dos cartunistas do Brasil (à direita, abaixo), que teve de se exilar por causa de uma charge, reproduzida na página seguinte.
O cartunista mais jovem da exposição, João, de 12 anos, fez questão de conhecer Luiz Fernando Veríssimo, de quem é admirador (acima). Atrás do cartunista, escritor e músico, Adail observa o encontro. Abaixo à esquerda, o filho de Henfil, Ivan Cosenza de Souza, conversa com Jaguar. À direita, o Diretor-Executivo do Centro Cultural Justiça Federal, Cícero de Almeida, ao lado de Maurício e Marilka Azêdo.
Guidacci (acima), um dos expositores, exibe o catálogo com a reprodução de seu desenho. Zuenir (abaixo) definiu o show com este adjetivo: incrivel.
ele tinha que ficar somente na música, pois toca sax muito melhor do que escreve", brincou o chargista de O Globo. Outro ponto destacado pelo escritor gaúcho foi a escolha de Henfil como homenageado da exposição. O cartunista mineiro, morto em 1988, teria completado 65 anos no dia 5 de fevereiro deste ano. "Acho que foi muito significativa essa lembrança, pois ele foi um típico produto daquela época dura da 12 Jornal da ABI 339 Março de 2009
censura, que surgiu como a grande novidade do humor brasileiro, justamente porque através do traço conseguia dizer coisas que muita gente não podia falar por meio de textos". Expostos para a apreciação do público, os trabalhos de 55 artistas mostravam o que há de mais refinado em traços recheados de humor e crítica, sempre preocupada com o viés social e a defesa da liberdade de imprensa - mar-
cas inconfundíveis da trajetória da ABI. O talento de nomes como Adail, Airon, Aliedo, Alviño, Amorim, André Brown, Arionauro, Aroeira, Bruno Drummond, Cau Gómez, Cavalcante, Chico Caruso, Chiquinha, Claudius, Cruz, Dálcio, Daniel Mendes, Deivid, Edgar Vasques, Eduardo Caldari Jr, Gilmar, Guidacci, Guto Lins, Hemetério, Henfil, Izidro, J. Bosco, Jaguar, João, Lailson, Lan, Lor, Loredano, Marcelo Mon-
teiro, Marguerita, Mariano, Marta Strauch, Maurício Veneza, Nani, Nei Lima, Ota, Pablo Carranza, Paulo Caruso, Quinho, Ray Costa, Santiago, Soud, Spacca, Trimano, Ucha, Veríssimo, Ykenga, Zé Roberto Graúna e Ziraldo esteve ao alcance do público. A exposição foi dividida em três módulos. O primeiro, com temas que falam da trajetória da ABI e prestam homenagem a figuras históricas da instituição, como Barbosa Lima Sobrinho. O segundo, de caráter histórico, apresentou desenhos de cartunistas que foram importantes na luta pela liberdade de imprensa e de expressão, durante a ditadura, como Ziraldo, Henfil e Jaguar. O terceiro módulo foi reservado para mostrar trabalhos que retratam as dificuldades que, em substituição à censura, continuam cerceando a liberdade de imprensa e de expressão. Presente ao evento e reconhecidamente uma das referências nacionais do jornalismo, Zuenir Ventura falou sobre a apresentação dos colegas. "Esse show foi incrível, digno da proposta da ABI em defesa da liberdade. É muito bom saber que ela está viva e atuante, uma entidade que sempre foi uma referência para nós, jornalistas. Eu acompanhei parte desta história, como profissional, inclusive na época da ditadura, e sinto prazer em ver essa revitalização da ABI, sobretudo este espetáculo que foi realmente um momento histórico." Após a apresentação da banda, o Presidente da Casa, Maurício Azêdo, agradeceu a contribuição dos artistas que "por meio do traço e da música ofereceram à ABI uma bela exibição, como prova da sua vitalidade e atuação na luta pela liberdade de imprensa e de expressão". Emocionado, Maurício também destacou a importância histórica de Henfil, patrono da exposição, "um artista que dedicou toda sua trajetória à luta pela livre expressão, tanto na imprensa quanto em outros meios, como a televisão".
"Essa mostra reúne a suma dessa criação rica e inspirada e também muito contundente. E deixa a ABI confortada ao ver que mereceu as homenagens daqueles desenhistas que ofereceram seus trabalhos, sem nenhuma contrapartida monetária, para integrar essa exposição que, para nós, é uma belíssima realização da Casa no ano do seu centenário", disse Maurício Azêdo, lembrando que todos os artistas convidados aceitaram participar da exposição, a maioria deles criando desenhos especialmente para a mostra. "A exposição tem um significado especial para a ABI, pois apresenta um dos aspectos mais destacados da imprensa brasileira, que é a participação dos caricaturistas, cartunistas, chargistas, com os seus desenhos críticos acerca dos diferentes aspectos da vida nacional, seja no campo político ou dos costumes. Uma exposição que guarda fina sintonia não apenas com a história da Associação, mas também com a própria evolução da imprensa do País", escreveu Maurício no texto de abertura do catálogo da mostra. Muitos dos artistas que dedicaram seus traços à ABI também estiveram presentes na solenidade de abertura da exposição. Foi o caso do cartunista Zé Roberto Graúna, um dos curadores da mostra. Segundo ele, a proposta principal do evento era reunir o maior número possível de representantes de desenho de humor brasileiro, de várias regiões do País. "Temos aqui trabalhos de desenhistas de todo o Brasil, a
Por causa da charge acima o cartunista Lan foi “convidado” a sair do País logo após o golpe de 1964. A censura à imprensa e a repressão da ditadura militar foram tratados por Veríssimo (acima), Dálcio (ao lado) e Aliedo (abaixo à esquerda). Ziraldo preferiu expor graficamente sua homenagem à ABI.
maioria do Rio. O mais curioso é que conseguimos juntar do mais experiente ao mais jovem. Temos o talento do Lan, aos 84 anos, e o João Pedro, que é um menino de 12 anos, que já faz sucesso na internet e daqui a pouco tempo estará se juntando a nós, cartunistas profissionais", festejou Graúna. Outro propósito do evento era reunir desenhistas numa tentativa de influenciar os colegas a se associarem à ABI. "Não temos ainda um número representativo de figuras do cartum brasileiro ligadas à Associação. Muitos talvez nem tenham a consciência de quanto isso é importante. O cartunista precisa entender que a ABI é a única instituição que tem a possibilidade de defender o nosso trabalho, a nossa liberdade de criação, sem nenhum tipo de censura. É por isso que eu espero que todos venham para a ABI, já que não somos muitos. E que façam parte da luta contra a censura, que é constante", declarou Graúna. Jornal da ABI 339 Março de 2009
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ANO DO CENTENÁRIO O MELHOR DO CARTUM EM HOM
Para o veterano Lan, que na época da ditadura teve trabalhos censurados, muitas vezes um desenho censurado "é um depoimento mais forte da censura do que um desenho produzido especialmente para denunciar a própria censura". Em 1974, Lan teve que deixar o Brasil por causa da famosa série de desenhos em que os militares apareciam como gorilas. Com 65 anos de profissão, já viveu muitas experiências com Governos ditatoriais: na Itália, com Mussolini; e na Argentina, sob o peso de Perón. "Acho que no nosso ofício em jornal, principalmente quando se faz charge política, não podemos ser covardes de jeito nenhum, temos que denunciar. Eu confesso que eu era mais crítico. Hoje em dia se faz muita graça sobre os fatos, mas o pontapé na canela, como eu dava no meu tempo e outros da minha época também deram, atualmente não há mais. Hoje se brinca, há muito mais liberdade", avalia Lan. Outro experiente no ramo, Jaguar demonstrou grande satisfação com o resultado da exposição. "Eu achei muito bacana, pois aqui estão sendo exibidos alguns momentos marcantes do cartum nacional. Hoje em dia a gente faz uma charge e fica por isso mesmo. Quer dizer, não aparece mais a Polícia no dia seguinte na sua porta para te levar. Isso já aconteceu muito conosco, e a ABI nos proporcionava e proporciona essa segurança e tranqüilidade. A nossa vida ficou muito mais mansa, embora menos emocionante", brincou. Nas palavras de Ricky Goodwin, também curador da mostra, a principal característica dos trabalhos é a inclusão de todas as manifestações possíveis no mundo do desenho. Entre os trabalhos,
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Jaguar, Bruno Drummond, Rogério Soud (acima), Claudius, Zé Roberto Graúna e J.Bosco: homenagens ao centenário e crítica à falta de liberdade de expressão.
era possível conferir a bela produção de cartunistas, chargistas, caricaturistas, gravuristas, escultores, designers e artistas plásticos. "A idéia da exposição foi reunir artistas de renome, que tiveram participação direta na luta pela liberdade de expressão, durante a ditadura militar, a outros de gerações posteriores, que foram influenciados por esses mestres". Alguns desenhos expostos eram originais dos anos da ditadura que, vetados pelos censores da época, só agora, via exposição, chegaram ao conhecimento do público. Também presente na exposição, com uma charge em que critica a censura religiosa, Guidacci lembrou que a história da caricatura no Brasil é muito antiga, com um passado marcado por lutas. "Eu fui processado por uma charge no Pasquim que satirizava o Governo Geisel. Tivemos um período conturbado para a criação de charges, que são desenhos críticos. Mas qualquer coisa pode ser criticada. E a função do chargista é mesmo exercer a crítica", afirmou.
O cartunista Amorim afirmou que a ABI representa a luta pela liberdade de expressão e pelo humor, pois em qualquer ditadura não há espaço para o riso. Quando a meta é construir um país democrático, disse, é preciso chamar os
humoristas. "É claro que às vezes o resultado fica um pouquinho diferente do que o pessoal planeja, mas a caricatura é sempre o termômetro de uma situação. O fato de existir uma imprensa livre é que nos levou a participar desta homenagem ao centenário da ABI, com toda a honra para nós cartunistas. É sinal de que podemos ter um País melhor e um futuro promissor", concluiu. Editor do Jornal da ABI e um dos organizadores do catálogo da mostra, Francisco Ucha acha que o espaço dos cartunistas, tão em baixa nos jornais, não pode ser confiscado. "Eles estão dando um presente importante para a nossa Casa. Há 171 anos começaram as ilustrações nos jornais, ainda não havia fotos, e os veículos passaram a vender mais. Hoje em dia o espaço do cartunista diminuiu, mas vemos por esse histórico que está sendo exposto aqui como é brilhante a participação de ilustradores e cartunistas na imprensa brasileira. O espaço deles não pode ser diminuído", resumiu Ucha.
Aconteceu na ABI
MILÍCIAS, GRAVE AMEAÇA AO ESTADO DEMOCRÁTICO Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Estado do Rio que investigou as ações desses grupos clandestinos, o Deputado Marcelo Freixo (Psol) denuncia na ABI os riscos que esses bandos criminosos impõem à democracia. POR JOSÉ REINALDO E B ERNARDO COSTA
Como acabar com o poder paralelo das milícias no Rio de Janeiro e em outras grandes cidades brasileiras? Debater essa difícil questão foi a tônica da sessão especial do Conselho Deliberativo da ABI realizada na tarde do dia 17 de fevereiro. A Sala Heitor Beltrão, no 7º andar, ficou lotada pela presença de Conselheiros, que puderam acompanhar o balanço da CPI das Milícias pelo Deputado Estadual Marcelo Freixo (Psol), que presidiu a investigação parlamentar na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Na mesa, ao lado do Presidente da ABI, Maurício Azêdo, do Presidente do Conselho Deliberativo da Casa, Pery Cotta, e do 1º Secretário, Lênin Novaes, Freixo falou sobre o trabalho desenvolvido pelos parlamentares e sobre os efeitos da ação de grupos milicianos, como o aumento da violência e o clima de insegurança entre a população. Em sua exposição, Marcelo Freixo foi enfático: as milícias devem ser encaradas como organizações criminosas e por isso combatidas com firmeza pelo Estado: - Milícia é crime, falar em milícia que deu certo é um debate ao qual eu me recuso a comentar. Eu não abro mão do Estado de Direito. Nenhum grupo criminoso pode substituir o Estado. Quando fiz o pedido de instalação da CPI, usei como justificativa os fortes indícios de que o crime organizado dentro do Poder Público - dominando territórios, extorquindo moradores, monopolizando serviços e promovendo um assustador aumento de homicídios - já se tratava da maior ameaça ao Estado Democrático de Direito. Sobre os milicianos constituírem um poder paralelo, o deputado rebateu: – Não existe poder paralelo, o que acontece é que o crime está dentro do Poder Público disputando espaço. É a máquina pública servindo a interesses privados. Quando dominam uma região, os milicianos mostram o distintivo e trazem o discurso da ordem. Por isso o maior golpe que podem sofrer é serem desligados da Polícia, pois perdem esse falso discurso. A CPI das Milícias foi aprovada em junho de 2008, mais de um ano após ser apresentado o pedido para sua instalação. O fato que ajudou na materialização da Comissão foi a violência so-
O Deputado Marcelo Freixo (à esquerda) diz que a milícia não é poder paralelo: o crime organizado está dentro do Poder Público, com o qual disputa espaço.
frida por uma equipe de reportagem do jornal O Dia, torturada por milicianos em uma favela do Rio. O caso chocou as autoridades e a sociedade de maneira geral, o que facilitou a tramitação da CPI, cujo relatório final levou 150 dias para ser concluído. No relatório final, 200 milicianos foram indiciados. O documento também denuncia a falta de um planejamento mais claro, com prazos e metas a serem cumpridos pelo Poder Público no combate aos grupos. Entre as ações positivas, criadas com a instauração da CPI, está o "Disque Milícia", pelo qual a população começou a fazer denúncias. Outro ponto destacado é a necessidade de o Estado voltar a ter soberania sobre diversas áreas da cidade, em que o crime organizado ou as milícias exercem uma autoridade "tirânica": - O próprio discurso do Governador [Sérgio Cabral Filho] mostra que o aparato policial entra nessas áreas como se estivesse preparado para uma guerra, o que gera conseqüências muito graves. Hoje, o número de pessoas mortas a tiro no Rio de Janeiro constitui um genocídio, principalmente contra jovens negros e pobres. Nós precisamos repensar o conceito de cidade para retomar a lógica da ordem. O Presidente da ABI elogiou a atuação da Alerj na condução do debate e das investigações. Para ele, ela deixou de ser mais um "centro de negócios
escusos", transformando-se no centro de discussão política do Estado. Já o mesmo não pode ser dito sobre a Câmara Municipal, que Azêdo disse passar por um momento de "apagada e vil tristeza", evocando verso de Camões. Ainda foi enfatizado que a discussão não pode parar: milícias estão-se formando em muitas outras grandes cida-
des brasileiras e o debate deve se tornar nacional. O comportamento dos meios de comunicação também foi um dos assuntos da sessão. Marcelo Freixo considera que eles teriam sido omissos ao tratar o assunto, pois durante um bom tempo permaneceu na imprensa a idéia de que as milícias constituem um mal menor do que o tráfico de drogas. Para o deputado, onde as milícias atuam há lucro e morte. A exceção ficou por conta da atuação do jornal O Dia. Além da total colaboração com a CPI das Milícias, a posição do jornal foi elogiada pelo Presidente da ABI ao término do encontro: – Gostaria de homenagear o Deputado Marcelo Freixo, a quem conheci em solenidade ocorrida na OAB-RJ logo após a tortura sofrida pela equipe de O Dia na favela do Batã. Na ocasião, ele nos causou muito boa impressão pela firmeza em sua exposição e pela disposição de ir fundo, como realmente foi, neste caso das milícias no Rio de Janeiro. Também gostaria de homenagear a atuação dos jornalistas de O Dia e o excelente trabalho que o Editor Alexandre Freeland está fazendo à frente do jornal, ao rodar uma edição corajosa denunciando a tortura sofrida por sua equipe.
Diretor da Transpetro na ABI Em visita à Casa, Rubens Teixeira revela que a empresa pretende estreitar o relacionamento com as entidades representativas da sociedade civil. O Diretor Financeiro e Administrativo da Petrobras Transportes, a Transpetro, Rubens Teixeira, fez uma visita de cortesia à ABI. Acompanhado pelo assessor de imprensa da empresa, jornalista Jorge Saldanha, Teixeira foi recebido pelo Presidente da Casa, Maurício Azêdo. Durante o encontro, Rubens Teixeira manifestou o interesse da Transpetro de estreitar o relacionamento com instituições representativas da socie-
dade civil, como a ABI, que teve atuação destacada na campanha O petróleo é nosso, de que resultaram a instituição do monopólio estatal do petróleo e a criação da própria Petrobras. Teixeira, que é formado em Economia, Direito e Administração, ainda aproveitou a visita e doou à Biblioteca Bastos Tigre, da ABI, exemplar do volume O Chão de Graciliano, que conta com textos de Audálio Dantas, ex-Vice-Presidente da Casa, e fotografias de Tiago Santana. Produzida a partir de várias viagens dos autores ao sertão de Alagoas e Pernambuco, a obra, que retrata a região de nascimento e criação literária de Graciliano Ramos, teve a Transpetro como patrocinadora.
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Aconteceu na ABI CONSELHO
Tarcísio Holanda, o novo vice FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
Decano do jornalismo político em Brasília ao lado de Carlos Chagas, Rubem de Azevedo Lima e seu irmão Haroldo Holanda, o jornalista Tarcísio Holanda foi eleito Vice-Presidente da ABI, em substituição a Audálio Dantas, que renunciou em dezembro passado. Membro do Conselho Deliberativo da Casa, Tarcísio recebeu a decisão com emoção: a indicação de seu nome foi aprovada por aclamação de seus pares. Em sua reunião de março, realizada no dia 10, o Conselho Deliberativo da ABI aprovou por aclamação a indicação do nome do jornalista Tarcísio Holanda para o cargo de Vice-Presidente da Casa, em substituição ao jornalista Audálio Dantas, que renunciou em 15 de dezembro passado. A indicação foi feita pelo Presidente da ABI, Maurício Azêdo, que destacou a trajetória profissional de Tarcísio, um dos decanos do jornalismo político em Brasília, ao lado de Carlos Chagas, Rubem de Azevedo Lima e Haroldo Holanda, seu irmão. Tarcísio está radicado em Brasília desde 1975, quando se transferiu para a Sucursal do Jornal do Brasil, , a fim de participar da
cobertura do Congresso Nacional. Atualmente é apresentador do programa Brasil em Debate da TV Câmara, exibido de segunda a quinta-feira. O Presidente do Conselho, Pery Cotta, propôs que a eleição se processasse por aclamação, em vista do denso currículo de Tarcísio e, também, da inexistência de outra indicação. Diante das palmas de seus companheiros no Conselho, Tarcísio confessou que ficou emocionado com a manifestação de apreço e declarou que recebia a eleição como uma grande honra, dada a importância da ABI nas lutas em defesa da liberdade de imprensa, dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito.
Tarcísio Holanda confessou sua emoção com a manifestação do Conselho Deliberativo da ABI que aprovou seu nome para o cargo de Vice-Presidente por aclamação.
Uma testemunha da História Ele viu e anotou o que aconteceu na política desde 1975. Cearense de Fortaleza, onde nasceu em 28 de junho de 1936, Tarcísio Holanda começou sua carreira jornalística com apenas 16 anos, em 1952. Ele trabalhou em todos os órgãos de imprensa da capital cearense, desde o Diário do Povo, do poeta e jornalista Jáder de Carvalho, aos Diários Associados e a O Povo, do deputado, senador e jornalista Paulo Sarasate, que dois anos depois se elegeria Governador do Estado, e nas Rádios Iracema, Dragão do Mar, Uirapuru e Assunção. Tarcísio foi vítima muito jovem da perseguição que lhe moveram por motivo ideológico dois líderes políticos do Estado, Virgílio Távora, que seria Ministro da Viação e Obras Públicas no Gabinete parlamentarista do PrimeiroMinistro Tancredo Neves, e Armando Falcão, que fora deputado federal e líder da maioria na Câmara no Governo Juscelino Kubitschek. Acusando-o de comunista, Távora e Falcão fizeram pressão sobre as empresas jornalísticas de Fortaleza para que o demitissem, no que obtiveram êxito: de repente fecha16 Jornal da ABI 339 Março de 2009
ram-se para Tarcísio as portas de todos os empregos. Restou-lhe como opção, por solidariedade, a Rádio Assunção, conhecida como “a rádio dos padres”, na qual não ficou muito tempo. Certo dia o diretor da rádio, um padre, chamou-o e lhe disse: Em 1971 Tarcísio ocupava a Subchefia de Reportagem do Jornal do Brasil, que funcionava então na Avenida Rio Branco, 110.
— Aqui está uma passagem para o Rio de Janeiro, para onde você deve ir, porque aqui em Fortaleza não haverá mais emprego para você, nem aqui na Rádio Assunção. Pode passar no caixa para receber seus direitos e seja feliz. Corria o ano de 1962 quando Tarcísio resolveu radicar-se no Rio, onde procurou o jornalista Moacir Werneck de Castro, diretor de Redação da Última Hora de Samuel Wainer, que ele conhecera ao recebê-lo e a Octávio Malta em Fortaleza quando era Secretário-Geral do Partido Socialista Brasileiro, ao qual ambos estavam filiados. Começou então em UH uma
trajetória que o levou ao Jornal dos Sports, no qual foi admitido como copidesque em 1963; Sucursal Rio da Folha de S. Paulo, na qual permaneceu dez anos; Jornal do Brasil, no qual trabalhou de 1963 a 1982 e que foi responsável por sua mudança para Brasília. Foi também muito jovem que Tarcísio fez sua iniciação na televisão. Em 1958, com 22 anos, trabalhou na TV Ceará, de Fortaleza, espécie de antesala de seu trabalho na TV Excelsior, em 1963, como repórter político do pioneiro Jornal de Vanguarda, criado e dirigido por Fernando Barbosa Lima e que foi tirado do ar após a edição do Ato Institucional nº .5, em 13 de dezembro de 1968. Chefe de Reportagem da TV Globo entre 1965 e 1966, atuou como repórter e comentarista político no Jornal de Vanguarda quando a TV Globo o transmitia (1966). Trabalhou também na TV Rio, emissora de grande prestígio e audiência nos anos 50 e 60, e na TV Tupi, emissora que liderava a rede Diários e Emissoras Associadas de Assis
Tarcísio faz palestra na 1ª Semana de Jornalismo de Brasília em 1979.
Chateaubriand. Na TV Excelsior, que era a líder de audiencia no Rio e em São Paulo no começo dos anos 60, Tarcísio fez um programa político com VillasBôas Corrêa. Era o Alta Política, que permaneceu no ar por quase dois anos. Quando Fernando Barbosa Lima concebeu e produziu o programa Abertura, lançado em 1979 e transmitido nacionalmente pela cadeia de Emissoras Associadas a partir da TV Tupi do Rio de Janeiro, Tarcisio trabalhou em Brasília como repórter e fez destacadas entrevistas com importantes líderes políticos, entre os quais o Senador Petrônio Portela (Arena-PI), que promovia os contatos políticos do programa de “abertura lenta, gradual e segura” do General-Presidente Ernesto Geisel. Petrônio, que morreu em 1981, como Ministro da Justiça do General-Presidente João Batista de Figueiredo, era uma das fontes mais seguras e confiáveis de Tarcísio, que foi também repórter e comentarista político do Correio Braziliense por quase 15 anos e do Jornal de Brasília, bem como apresentador, durante cinco anos, do programa matutino Telemanhã, da TV Brasília, afiliada da Rede Manchete de Televisão. Em 1973, ainda no Rio, Tarcísio foi Presidente do Clube dos Repórteres Políticos do Rio de Janeiro, o qual promoveu entrevistas coletivas com influentes líderes políticos, como o VicePresidente da República Pedro Aleixo, dois Presidentes da Arena, Senadores Daniel Krieger (RS) e Filinto Müller (MT), o Senador Afonso Arinos de Melo Franco (Arena-GB), o General Osvaldo Cordeiro de Farias, o ex-Ministro da Justiça do Presidente Jânio Quadros e líder do MDB na Câmara Federal, Deputado Oscar Pedroso Horta (SP). Com sua programação de entrevistas o Clube dos Repórteres Políticos buscava manter as questões da política presentes no noticiário jornalístico, em oposição à idéia do regime de que política era tema dispensável. Como repórter do Jornal do Brasil, Tarcísio fez reportagens e textos marcantes, como o de Os Tecnocratas ou A Metamorfose do Poder, publicada no Caderno Especial que o JB então man-
tinha, a qual mostrava a ascensão dos tecnocratas ao poder após o golpe militar de 1964. Ele tomou um depoimento do então Senador Filinto Müller, que se defendeu pela primeira vez das acusações de que promovera torturas quando Chefe de Polícia do Estado Novo (1937-1945) e de que fora o responsável pela entrega de Olga Benário Prestes, mulher de Luís Carlos Prestes, ao Governo nazista de Adolf Hitler. Foram igualmente marcantes a entrevista que fez com o ex-PrimeiroMinistro Hermes Lima sobre o seu livro de memórias, Travessia, suma da trajetória de um intelectual e militante político desde os anos 30; um texto de duas páginas sobre o Marechal Osvaldo Cordeiro de Farias quando este morreu; a reportagem A Tragédia do Caldeirão, em que relatou o assassinato de centenas de trabalhadores rurais agrupados sob a liderança do beato José Lourenço na Serra de Araripe, no Ceará, episódio pouco conhecido da História do Brasil. Tarcísio escreveu o livro Paulo Afonso Martins de Oliveira – O Congresso em Meio Século, exaustivo e minucioso depoimento do ex-Secretário-Geral da Câmara dos Deputados sobre a evolução política do País desde a queda do Estado Novo, em 1945, os trabalhos de duas Assembléias Nacionais Constituintes, a de 1946 e a de 1987-1988, e as crises políticas vividas pelo País ao longo de 50 anos.Ao lançamento da obra pela Presidência da Câmara dos Deputados, que a editou, compareceram mais de mil pessoas, entre parlamentares, autoridades dos três Poderes e jornalistas, numa prova do prestígio profissional de Tarcísio. Na TV Câmara, que apresenta o programa Brasil em Debate às 21h30min às segundas e quintas-feiras e às 22h30min às terças e quartas-feiras, Tarcísio participou da produção de mais de 30 depoimentos históricos de personalidades de diferentes posições políticas e ideológicas, como o filósofo Miguel Reale, os dirigentes comunistas Jacob Gorender e Hércules Correia dos Reis, os Generais Reinaldo Melo de Almeida, Comandante do I Exército nos anos
Acima, um flagrante histórico, em 1973: almoço do Clube dos Repórteres Políticos, de que Tarcsio era Presidente, no restaurante Casa da Suíça, no Rio. Da esquerda para a direita, o Marechal Osvaldo Cordeiro de Farias, o jornalista Carlos Castelo Branco e os Senadores Afonso Arinos de Melo Franco e Tancredo Neves. Ao lado, Tarcísio com o Deputado Ulisses Guimarães em 1989. Ulisses era Presidente da Câmara e do PMDB e uma das grandes fontes de informação da época.
70, e Leônidas Pires Gonçalves, Ministro da Guerra no Governo Sarney, e os poetas Ferreira Gullar e Gerardo Melo Mourão. Testemunha da vida política do País por quase 40 anos e devorador de obras de História de sua seleta, ampla e bem cuidada biblioteca pessoal, Tarcísio prestou à TV Câmara um depoimento de mais de sete horas sobre a História do Brasil Contemporâneo, o qual se encontra à disposição de estudiosos e pesquisadores na Seção de Áudio e Televisão da Biblioteca da Câmara dos Deputados. A TV Câmara também editou um depoimento dele de 42 minutos sobre os fatos marcantes da vida política do País. Educado e polido no trato com as pessoas, sem sacrifício da firmeza com que, quando necessário, expõe suas opiniões pessoais, Tarcísio não perdeu a oportunidade de recriminar diretamente o Senador Virgílio Távora, que
ascendera ao Governo do Ceará e se tornara o manda-chuva da política no Estado, quando o encontrou, nos anos 70, ao cobrir um churrasco de uma comemoração política. Tarcísio se dirigiu a ele e lembrou que fora vítima, muitos anos antes, da perseguição que Távora e Falcão lhe moveram em Fortaleza, impedindo-o de exercer a profissão de jornalista em sua terra. Tarcísio já era então um repórter político de renome. Távora sabia disso. Numa alusão à carreira ascendente que Tarcísio firmara no Rio, disse-lhe Távora: — Eu lhe fiz um grande bem, Tarcísio, tirando-o da obscuridade que teria lá no Ceará. Sem papa na língua, Tarcísio deu-lhe o troco imediato. — Um grande bem, não, Governador. O senhor me fez um grande mal. Eu é que o transformei em bem, trabalhando demais para chegar onde estou. (Maurício Azêdo) Jornal da ABI 339 Março de 2009
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HISTÓRIA
Os bastidores, antes e depois, da famosa entrevista de José Américo a Lacerda “Há muito a contar e por coincidência eu estava no lugar certo e na hora certa; conheço episódios até hoje não contados”, diz o Diretor da Tribuna da Imprensa POR HÉLIO FERNANDES
FRANCISCO UCHA
Em longo e-mail ao Presidente da ABI, o jornalista Hélio Fernandes narrou os bastidores da situação política do Brasil quando o mineiro Luís Camilo de Oliveira Neto articulou a realização e publicação da célebre entrevista que José Américo de Almeida, um dos líderes da Revolução de 30 no Nordeste, concedeu ao jornalista Carlos Lacerda, a qual provocou o fim da censura do Estado Novo (1937-1945) e a derrubada da própria ditadura. “Nos bastidores há muito a contar e por coincidência eu estava no lugar certo e na hora certa; então, conheço episódios até hoje até hoje não contados”, diz Hélio Fernandes, que comenta não só o clima político da época, mas também seus antecedentes, como a atuação da Aliança Nacional LibertadoraANL, a prisão do líder comunista Luís Carlos Prestes, as manobras do ditador Getúlio Vargas para se eternizar no poder, o movimento pela “Constituinte com Vargas”, em 1945, e a morte de Getúlio, em 1954. Diz Hélio que, depois de contribuir para derrubar Getúlio em 1945, José Américo se tornou ministro quando o ex-ditador voltou ao poder, após eleito em 1950, o que “mostra a que ponto chega o surrealismo brasileiro”. Publicada em 22 de fevereiro de 1945 pelo Correio da Manhã, a entrevista foi reproduzida na edição de número 337 do Jornal da ABI, com data de capa janeiro de 2009. Diz Hélio Fernandes que a ABI deveria fazer uma edição de 100 mil exemplares de seu texto, para distribuição por universidades de todo o País, uma vez que “principalmente os jovens nem sabem dessa entrevista”, que “mudou realmente a História do Brasil”. Mantido o tom pessoal do e-mail, datado de 9 de março corrente, é o seguinte o relato de Hélio Fernandes. Os intertítulos são da Redação do Jornal da ABI.
ou caberá perfeitamente nessa edição, pois a entrevista mudou realmente a História do Brasil, não apenas por ter derrubado a censura, que foi o primeiro resultado e imediato da entrevista. Mas nos bastidores há muito a contar e por coincidência eu estava no lugar certo e na hora certa; então, conheço episódios até hoje não contados. Extraordinária a participação de Luís Camilo de Oliveira Neto, que teve a idéia da entrevista e lutou de trincheira em trincheira até publicá-la. (Luís Camilo depois seria sogro de Marcilio Moreira Marques, Embaixador em Washington e Ministro da Fazenda, vivo e atuante). A entrevista estava programada para sair no Diário Carioca, do jornalista Horácio de Carvalho, cujo principal articulista (escrevendo diariamente no alto da primeira página) era o bravo, combativo e independente J.E. de Macedo Soares, por tudo isso eleito senador. Brilhantíssimo, criativa palavras e fatos, muitos citados sem a autoria, com essa de chamar o povo de “patuléia vil e ignara das ruas”. Carlos Lacerda era o nome ideal para ser o entrevistado por escrever no Diário Carioca. Estava com 31 anos, em 1935 se consagrou como orador aos 21 anos, com um grande discurso na Escola Nacional de Música, quando surgiu a ANL (Aliança Nacional Li-
bertadora) que em 1945 ressurgiria como UDN. (União Democrática Nacional). Nesse mesmo dia e na mesma Escola Nacional de Música (prédio hoje “tombado”), Luís Carlos Prestes lançaria as bases da Revolução Comunista de 27 de novembro de 1935. Revolução autêntica e verdadeira, mas sem recursos, sem gente, desorganizada e despreparada. Que permitiria a Vargas criar o Estado Novo, que duraria oito anos cruéis e selvagens, até à derrubada a partir da entrevista de José Américo. (Agora magistralmente revivida por você.) Mas por que, programada para o Diário Carioca, saiu no Correio da Manhã? É que, apesar de a tecnologia da informação não ter os recursos de hoje, logo o fato vazou, o ditador ficou sabendo. O Diário Carioca sofreu intimidação, e não tinha como resistir. Mas Paulo Bittencourt, bravo e independente, logo se ofereceu; era financeiramente mais poderoso do que o Diário Carioca. E Carlos Lacerda foi mantido. Tinha excelentes relações no Correio da Manhã. O nome de José Américo surgiu naturalmente, pois estava sempre atuante a partir dos movimentos tenentistas, vitoriosos em 1930. A partir dessa data, dois homens foram chamados de “Vice-Reis do Nordeste”: Juarez Távora, tenente importantíssimo, e José Américo, civil altamente representativo (e que inclusive se destacaria na literatura, com a publicação do revolucionário A Bagaceira). José Américo ficou como interventor na sua Paraíba; em 1937, ele e Armando de Sales Oliveira, cunhado do doutor Júlio Mesquita Filho do Estado de S. Paulo, foram lançados candidatos à sucessão de Vargas. Repetindo o que fez em 1930, Vargas foi o sucessor de si mesmo, implantando o Estado Novo (que o genial Aporelly, o Barão de Itararé, definiu simplesmente, “como o Estado a que chegamos”). Aí acabou tudo; as prisões, asilos e exílios foram milhares. E as coisas só ganhariam clima e dimensão democrática com a entrevista arquitetada e executada por Luís Camilo.
A LUTA DE LUÍS CAMILO
AS MANOBRAS DE VARGAS
“Maurício, Excelente e merecendo os maiores aplausos a tua decisão de publicar a entrevista que Carlos Lacerda fez em 1945 com o ex- e futuro Ministro de Vargas José Américo. Só que não para corrigir, mas sim para refletir, alguns esclarecimentos (só para você) a respeito do antes e do depois da entrevista. Você e o Jornal da ABI prestam serviço principalmente aos jovens que nem sabem dessa entrevista. Com a tua capacidade de comunicação e de articulação, sugiro que você consiga (conseguirá) patrocinadores para uma edição, digamos 100 mil exemplares, para distribuir por Universidades de todo o País. A palavra histórica está muito desgastada, mas cabe
Estava visível que Vargas, mesmo em 1945, antes da entrevista famosa, não queria eleição. Em 22 de fevereiro (fato completamente desprezado), Vargas publicou ato convocando uma Constituinte para 2 de dezembro do mesmo 1945. Era a primeira vez que um ditador convocava uma Constituinte, que se realizou nesse mesmo 2 de dezembro, já sem ditadura e sem ditador, por força da entrevista de José Américo. Essa entrevista foi fundamental, divulgada e consagrada, mas o importante é que provocou um efeito cascata de dimensões notáveis. A conseqüência que teria repercussão na hora e na História foi a libertação de Luís Carlos Prestes. Preso desde 1936, foi o brasileiro mais torturado de todos os tempos. Ficou
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Antes da entrevista de José Américo, conta Hélio Fernandes, Getúlio ainda imaginava manter-se no poder.
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REPRODUÇÃO
ILUSTRAÇÃO: UCHA
até 1940 na Polícia Central, aquele prédio tenebroso da Rua da Relação, onde tanta gente morreu e eu freqüentei com mais assiduidade do que gostaria. Quatro anos num vão de escadas, sem ver a luz do sol, fazendo ali refeições e necessidades. Seu carcereiro era Filinto Muller, chefe de Polícia, ex-amigo de Prestes e ex-tenente, que esqueceu todo o passado, mantendo Prestes em condições desumanas. Ele só saía para ir ao “julgamento” no Tribunal de Segurança Nacional, cujo procurador-geral, um carrasco, se chamava Hymalaia Virgulino. Um homem com esse nome tem tudo para se vingar do mundo; descarregava em cima de Prestes. A OAB designou para defender o líder comunista o advogado Sobral Pinto. Conservadoríssimo, ele não pôde recusar nem defender Prestes, não tinha condições. Apelou então para a Sociedade Protetora dos Animais, fato inacreditável que a censura não deixou publicarem. Um dia, um policial daqueles de roupa vermelha (a polícia da ditadura) deu um sonoro bofetão no rosto de Prestes, sem que alguma coisa fosse feita. Em 1940, com Brasil e União Soviética já “aliados” na luta contra o nazifascismo, Stálin diretamente mandou pedir a Vargas a libertação de Prestes. Matreiro, sem caráter e sem convicções, o ditador viu logo o poder de negociação que tinha nas mãos: o destino de Prestes. Não liberou o líder, reservou-o para uma negociLuís Camilo era um estudioso que levantou preciosa documentação ação mais alta. Mas mandou transferi-lo histórica em arquivos de Portugal. Ele organizou a Biblioteca Pública de Itabira, que durante algum tempo teve o nome de para a penitenciária da Rua Frei Caneca. Presidente Vargas, carimbado no ex-libris de suas publicações. Em 48 horas foi levantada uma casinha de madeira, quarto e sala, para Prestes poder tos se precipitaram, os jornais publicando tudo, já sem receber visitas e correspondências. censura, por causa da entrevista articulada por Luís Cino anos depois, Vargas se aproveitaria da conCamilo. Só que a ditadura não duraria mais um mês. seqüência que previra e negociava a libertação de Todos se uniram. Vargas foi procurado por exPrestes. Chamou Filinto Muller e comunicou: “Hugo amigos agora querendo eleições. Resistia, diria seguiBorghi, meu amigo, terá conversa reservada com Luís damente: “Só morto sairei do CaCarlos Prestes. Providencie”. Nestete”. (Curiosamente os fatos da sa conversa, Borghi, em nome do vida e morte de Vargas se cruzariam, ditador, disse a Prestes que ele seaté com a combinação de número e ria solto imediatamente, mas Gepalavras. 1945 e 1954 representam túlio Vargas não gostaria de tê-lo os mesmo números com o final incomo inimigo ou adversário. vertido; se em 1945 dizia que só Pragmático, mas também um sairia morto, saiu bem vivo, acomhomem escravo das suas convicpanhado do Cardeal Dom Jaime ções, Prestes concordou inteiraCâmara (Washington Luís, Presimente. E mais tarde para os amigos dente eleito, derrubado por Vargas, e companheiros do Partido surpresaiu do Catete com o Cardeal Arcoendidíssimos deu a mesma justifiverde). Em 1954, Vargas saiu realcativa do episódio da prisão e entremente morto, no ato político e huga aos nazistas de Olga Benário, sua mano mais genial de toda a Histómulher: “Os dramas pessoais não ria e não apenas do Brasil. Ele mespodem interferir ou prejudicar os mo, no que se chamou de “Carta interesses da coletividade”. Testamento”, dizia que “deixava a Acusadíssimo por causa disso, vida para entrar para a História”. seria mesmo fato para ser criticaO jornalista Maciel Filho caprido, mas é preciso uma coragem, chou no texto e no conteúdo, que uma bravura e uma capacidade ganhou dimensão eterna pela posiquase estoicismo para defender poção e o gesto do próprio Vargas. E o povo, que 48 hosições como essa. Solto, Prestes logo estarreceu o País ras antes pedia a saída de Vargas, chorou no seu entodo. Marcou comício para o Estádio do Vasco (ainterro, um dos maiores que já existiram. E o mesmo da não existia o Maracanã), compareceram, pelos povo que na véspera queimava os carros do PTB e dava cálculos da época, 150 mil pessoas. Quase todos deia vivas a Lacerda mudou inteiramente de lado; incenxando o estádio chorando, por dois motivos. Prestes diava os carros da UDN e pedia: “Morra Lacerda”. acusava o próprio povo presente “de estar se aburEra o fim da ditadura. Vargas tentou de tudo, até guesando, dando mais importância a geladeiras (texo inqualificável. No dia 29 de outubro desse 1945, às tual) do que à luta pela coletividade”. O segundo fato 9 horas da manhã, dava posse no Catete ao irmão cabe numa frase-conceito-definição: “Constituinte estróina e cafajeste, Beijo Vargas, como Chefe de com Vargas”. Era muito, ninguém entendeu, os fa-
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Polícia. Não durou um dia. Às 17h10min, na mesma tarde, Beijo era demitido, e Vargas já estava longe. Para terminar (poderia ir adiante), contradição final: a ditadura acabou, mas não houve cassação dos que usaram e abusaram 15 anos no Poder, nenhuma inelegibilidade. Então, todos se candidataram a deputado por sete Estados e a senador por um. Lógico, eleito, tinha que optar. Vargas se elegeu por sete Estados e senador pelo Rio Grande do Sul, escolheu ser senador, cujo mandato não exerceu, não era do seu estilo. Foi tomar posse e depois compareceu uma vez. Levou de leve uma pedrada, não voltou mais. Prestes se elegeu senador e deputado pelo mesmo Distrito Federal; foi atuante até 1948, quando o Partido Comunista voltou à ilegalidade e ele novamente foi morar na União Soviética. Espero que estas notas rápidas, citadas sem qualquer consulta, possam ficar no teu arquivo pessoal e no da ABI, como contribuição e revelação de fatos não publicados, todos conseqüentes do trabalho de Luís Camilo na entrevista de José Américo dada a Carlos Lacerda. Com o abraço do (a) Hélio Fernandes.
Alexander Medvedovsky mostra ao Presidente da ABI, Maurício Azêdo, os exemplares inaugurais dos suplementos criados a partir da parceria entre o JB e a Rossiyskaya Gazeta. Janir de Hollanda Ferreira e Lincoln Martins observam.
PARCERIA
NOSSO SURREALISMO
O JB em terras da Rússia
PS – Como você diz, Maurício, na excelente nota de abertura da republicação da entrevista, “que José Américo depois foi Ministro de Vargas, pela primeira vez eleito”, um esclarecimento, que mostra a que ponto chega o surrealismo brasileiro. Em 1950, quando Vargas se elegia Presidente, José Américo era eleito Governador da Paraíba. Em 1952, quando 69 coronéis assinaram um manifesto exigindo a demissão do Ministro do Trabalho João Goulart (a primeira assinatura era do Coronel Amauri Kruel), o Governo Vargas aceitou a exigência, mas entrou em crise. Resolveu então, reformar o Ministério. Convidou o Governador José Américo para Ministro, ele aceitou, só que não sabia como fazer. Consultou o grande amigo Prado Kelly (os dois da UDN), que lhe disse textualmente: “Aceite, pede licença do Governo, ninguém vai notar ”. Assim foi feito, inconstitucionalmente. Quando Vargas se matou, José Américo reassumiu o Governo da Paraíba, ninguém ficou surpreendido.”
Parceria é estabelecida entre o Jornal do Brasil e o Rossiyskaya Gazeta para a publicação de suplementos especiais e aproximação dos dois países.
JORNAL DO COMMERCIO
José Américo foi Ministro de Vargas duas vezes. Na última, deixou o Governo da Paraíba, ao qual voltou após a morte dele.
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O Jornal do Brasil agora é, também, um pouco russo. A tradicional publicação brasileira, fundada em 1891, está circulando nos 17,1 milhões de quilômetros quadrados da Federação Russa, com uma edição em caracteres cirílicos, tipologia do alfabeto das línguas eslavas. Trata-se, na verdade, de um suplemento especializado do diário russo Rossiyskaya Gazeta, único jornal do Governo, com a tiragem de 700 mil exemplares em dias de semana – número que pode saltar para 2 milhões aos sábados e domingos. Em contrapartida, numa espécie de intercâmbio cultural, o JB edita em língua portuguesa, para distribuição no Brasil, um suplemento com base no material da publicação russa. Exemplares das edições inaugurais dos suplementos foram doados à ABI no dia 17 de março, pelos diretores do JB que participam da execução do contrato firmado com a Rossiyskaya Gazeta. Com Alexander Medvedovsky, jornalista russo que vive há 38 anos no Brasil e é responsável editorial pelos dois suplementos, o Gerente Comercial de Projetos Editoriais do JB, Lincoln Martins, e o Diretor de Projetos Editoriais do jornal, Janir de Hollanda Ferreira, expuseram ao Presidente da ABI, Maurício Azêdo, os aspectos mais destacados do contrato firmado entre as duas empresas. Informou Lincoln Martins que as negociações acerca do projeto se prolongaram por cerca de um ano, até que foram definidos os termos da parceria, que nada tem de gratuita: o JB paga pela edição do seu suplemento no idioma russo, enquanto a Rossiyskaya remunera o JB pela edição mantida por este. Os suplementos foram lançados quase simultaneamente: no dia 3 de março no Rio de Janeiro e no dia 5 em Moscou. Na edição inaugural do JB em russo a primeira página teve como destaque uma fotografia de Luiza Brunet, fantasiada como madrinha da bateria da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, além de chamada para uma entrevista com o Ministro do Desenvolvimento Econômico e Comércio Exterior, Miguel Jorge. Em terras brasileiras, a edição de es-
tréia do Rússia Hoje mostrou o que corresponderia ao Carnaval dos russos, a Máslenitsa, uma festa pagã que celebra o fim do inverno e o começo da primavera, além de uma reportagem com os brasileiros que atuam no futebol russo, como os jogadores Vágner Love e Daniel de Carvalho e o técnico Zico, treinador do time de ambos, o CSKA. Também nesta edição especial de lançamento, a Ministra do Desenvolvimento Econômico da Rússia, Elvira Nabiullina, saudou os leitores do JB pela parceria estabelecida com o Rossiyskaya Gazeta, lembrando que o Brasil está entre os principais parceiros da Rússia e é seu principal interlocutor na América Latina. "É preciso que as empresas dos dois países desenvolvam cooperação industrial, aumentem os volumes de investimentos mútuos, implementem a cooperação nas esferas de altas tecnologias e do intercâmbio inovador. E, também, ampliem o interesse das províncias russas e dos Estados brasileiros para operar nos mercados dos dois países", defendeu Nabiullina na entrevista. Os dois jornais contam com equipes qualificadas para a produção e edição dos especiais, que são redigidos em cada um dos dois países no idioma local e vertidos para a língua em que serão publicados. Em ambos os casos as matérias são exclusivas. "A nossa maior dificuldade não é com o idioma, e sim com o fuso horário, pois há uma diferença de sete horas nas respectivas jornadas de trabalho. Às 8 da manhã, quando toca o telefone de Alexander aqui, lá em Moscou a equipe está a poucas horas do fim do seu expediente", observou Lincoln. Para Alexander Medvedovsky, a parceria entre os dois jornais vai exercer papel importante não só para ampliar os conhecimentos dos russos sobre o Brasil, bem como dos brasileiros acerca da Rússia – na verdade, da Federação Russa como um todo, integrada por 28 repúblicas que apresentam grande diversidade étnica, religiosa e cultural. O intercâmbio entre os veículos de comunicação poderá ainda contribuir para estreitar os laços e elevar as trocas comerciais entre os dois países.
AUTOCRÍTICA
A imprensa trata mal a saúde Mesa-redonda do 4º Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária aponta a fragilidade da cobertura dos meios de comunicação na área da saúde pública. DIVULGAÇÃO
MARCELLO CASALJR./ABR
POR PAULO CHICO
A Fiocruz adverte: matérias publicadas na imprensa podem fazer mal à saúde. O alerta, na verdade, foi feito pela revista Radis, uma publicação da Fundação Osvaldo Cruz, editada pelo Programa Radis (Reunião, Análise e Difusão de Informação sobre Saúde). A fonte da reportagem, que consta da edição número 78 da publicação, de fevereiro deste ano, foi o 4º Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária, realizado entre 23 e 26 de novembro de 2008 em Fortaleza, CE. Durante o evento, na mesa-redonda Comunicação, Consumo e Construção da (In) Consciência Sanitária, com a participação dos jornalistas Álvaro Nascimento, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz; Mara Régia Di Perna, da Rádio Nacional; e Jocélio Leal, do jornal O Povo, de Fortaleza, os debatedores questionaram a forma como os meios de comunicação tratam das questões ligadas à saúde. Uma relação quase sempre conflituosa e equivocada, conta Adriano De Lavor, repórter da Radis, que cobriu o evento na capital cearense. "Recentemente, a imprensa criou uma repercussão equivocada acerca dos casos de febre amarela no Centro-Oeste. Mesmo com o aumento do número de casos, as autoridades de saúde, inclusive o Ministro Temporão, tranqüilizaram a população de que não havia motivo para pânico. Mesmo assim, a imprensa motivou uma verdadeira corrida aos postos de saúde em busca de vacina. Até gente que não tinha indicação de recebê-la queria ser vacinada de qualquer jeito. Outros equívocos podem ser detectados diariamente, com as 'consultas' feitas por especialistas em programas televisivos, visivelmente associadas à venda de algum produto, medicamento, vitamina, suplemento alimentar, ou de algum ser-
Adriano De Lavor citou exemplo de episódio em que os meios de comunicação geraram alarme na população. Mara Régia quer mais cidadania na televisão.
viço", diz De Lavor, que é mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. A reportagem da Radis informa que Álvaro Nascimento é bastante crítico em relação ao que chama de 'formação generalista dos repórteres', situação que contribuiria para a abordagem superficial dos fatos relacionados à saúde na imprensa. "É importantíssimo que os colegas invistam na informação. Porém, creio que apenas a especialização como resposta às deficiências não solucionaria a questão. O que falta é, em primeiro lugar, uma melhor bagagem para se fazer reportagem, seja em que área for. Se o repórter é bem preparado em sua base, qualquer que seja o assunto será por ele bem abordado. Como não há dúvidas de que a formação básica escolar e universitária é deficiente, a saída pode ser, então, a especialização", sustenta Adriano De Lavor. Outro ponto crucial para tornar debilitada a cobertura na área de saúde seria o interesse econômico que
muitas vezes, sobretudo nos grandes veículos, termina por colocar em risco o compromisso da prestação de serviço público. Como bem defende o jornalista da revista Radis, que também é especialista em Comunicação e Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, é preciso repensar o modelo da cobertura na área, tendo como foco os interesses da população. "Denunciar sem oferecer alternativas é algo inútil", diz Adriano. "Há pressão das empresas jornalísticas, que têm seus compromissos comerciais com anunciantes, muitas vezes ligados aos planos de saúde e à indústria farmacêutica. O que assistimos, na verdade, é um trabalho 'denuncista' em relação à saúde pública brasileira, ao SUS e, ao mesmo tempo, um endeusamento de técnicas cada vez mais especializadas, mais próximas da categoria 'sensacional' do que do 'acessível'. Assim, é comum a veiculação de matérias que tratem de doenças, e não de saúde. Os cadernos somente tratam de doença, quando na verdade deveriam estar mais preocupados em discutir melhores condições de vida da população, acesso aos direitos e bens culturais. Tratar a saúde na imprensa deve
ter como diretriz investir na garantia do acesso à cidadania", acredita ele. Ainda na mesa-redonda, Mara Régia e Jocélio Leal se manifestaram contra a chamada agenda setting, por meio da qual a mídia pauta a opinião pública destacando ou preterindo temas. Entende Mara que, como são concessões públicas, as emissoras deveriam ser obrigadas a divulgar cidadania. Jocélio defendeu que o compromisso primordial dos meios de comunicação deve ser assumido com a sociedade. "O importante é ser pautado pelo interesse público, e não pelo interesse do público, que nem sempre está preocupado com a cidadania", afirmou o jornalista. Aos profissionais da área de Comunicação interessados em obter maior formação para a atuação em reportagens e assessoria na área a Fiocruz oferece cursos de especialização em Comunicação e Saúde e em Informação Científica e Tecnológica em Saúde. Além disso, a partir de julho deste ano, o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), também da Fundação, abrirá as primeiras turmas de mestrado e doutorado do seu Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde.
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COMUNIDADES
Viva Favela, viva! Portal na internet reúne profissionais e correspondentes da periferia do Rio e apresenta há sete anos um olhar diferenciado das comunidades carentes da cidade. POR B ERNARDO COSTA
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o Viva Favela tem procurado lançar um olhar humanizado para as áreas carentes do Rio, com um jornalismo praticado a partir da perspectiva de quem mora ali. A matéria Por trás do conflito, feita pelo Editor de Conteúdo Rodrigo Nogueira dois meses antes da megaoperação no Complexo do Alemão que matou 19 pessoas em 2007, é um exemplo que ilustra bem a proposta: – Fui fazer um dia na favela, numa época em que estavam ocorrendo várias operações no Morro. Minha visita à comunidade coincidiu com o momento em que a Polícia fazia uma incursão no local. Minha intenção era mostrar outros aspectos, porque estavam batendo na favela como se ali fosse um antro de violência – diz Rodrigo. – Faz parte, mas existe toda uma cultura particular do lugar, que é um celeiro de boas histórias. Tem tudo ali, tem o companheirismo das pessoas, a solidariedade de dar
Milicianos e traficantes Um dos principais desafios encontrados pelos jornalistas do portal foi o de romper as barreiras impostas pelo poder paralelo. Nada fácil, pois algumas delas se tornaram assustadoras em casos como o assassinato do jornalista Tim Lopes por traficantes da Vila Cruzeiro, em 2002, e a tortura sofrida pela equipe do jornal O Dia na favela SANDRA DELGADO
A periferia e as favelas do Rio de Janeiro são dois dos assuntos preferidos dos jornais. Pesquisa realizada em 2006 pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes-CESeC com oito veículos cariocas revelou que essas áreas são citadas em 27% das matérias sobre segurança e criminalidade, quase uma a cada três publicadas. Com esse quadro, é um verdadeiro desafio pensar em soluções para driblar as barreiras impostas pelo poder paralelo que controla essas áreas e conseguir uma cobertura abrangente, que saia do lugar-comum e não restrinja a pauta apenas à violência. Se a grande imprensa ainda está longe de encontrar caminhos para mostrar a face mais humana do morro, algumas iniciativas crescem e ganham destaque ao noticiar muito mais do que tiroteios e violência. Uma delas é o portal de internet Viva Favela (www.vivafavela. com.br), criado pela organização nãogovernamental Viva Rio em 2001, a par-
tir de uma equipe formada por jornalistas e correspondentes residentes em áreas periféricas da cidade, que, por meio de programas de capacitação, sugeririam pautas e produziriam matérias mais abrangentes. – Quando o portal foi pensado, o Viva Rio, a partir da rede de projetos e parceiros que tinha nas favelas, procurou identificar nas comunidades pessoas que tinham facilidade para se expressar, que faziam parte de algum pequeno jornal comunitário ou que apenas tinham interesse em participar – diz Walter Mesquita, Editor de Fotografia do Viva Favela. – Eu, por exemplo, morava em Queimados e atuava numa rádio local. Um dia, foi noticiado que estavam selecionando pessoas para participar de um projeto de comunicação comunitária. Gostei, me inscrevi e estou no Viva Favela até hoje. Ao longo dos sete anos de existência,
um jeitinho para ajudar o outro. Naquele dia eu conheci projetos sociais, personagens riquíssimos, incríveis, que já seriam temas de matérias eles próprios. Não deixei de falar da violência que estava acontecendo naquele dia, mas dei voz aos moradores. Citando uma passagem do livro Notícias da Favela, escrito por uma das primeiras editoras do portal, Cristiane Ramalho, Rodrigo Nogueira conta que, no início, muitos correspondentes relutavam em abordar temas relacionados à violência, o que poderia gerar uma imagem distorcida e alienada da realidade: – A Cristiane então argumentava que eles estavam fazendo a memória dessas áreas da cidade e que este material serviria de objeto de estudo no futuro. Se eles omitissem a violência existente, estariam apagando, por exemplo, a morte de pessoas inocentes. A idéia não é pintar a favela de cor-derosa, dizer que tudo ali é mágico. É necessário falar sobre a violência, mas procuramos entender quem são essas pessoas, o que sentem e o que sofrem com as dificuldades que enfrentam.
DEISE LANEVIVA FAVELA
Renata Sequeira, Walter Mesquita e Rodrigo Nogueira (acima) fazem parte do portal Viva Favela, que faz nas comunidades a cobertura que a grande imprensa não consegue fazer. O projeto já promoveu até exposição itinerante de fotografias, como mostram o cartaz da foto na página oposta, a foto de cima, no Morro do Cantagalo, e as duas de baixo. RODRIGUES MOURA WALTER MESQUITA
do Batã, praticada por milicianos. A partir de acontecimentos deste tipo, alguns veículos orientaram seus jornalistas a só entrar nas favelas com colete à prova de balas e acompanhados por policiais. Em conseqüência, em poucas ocasiões eles ouvem os moradores; acaba prevalecendo a versão da Polícia e o profissional se afasta da comunidade. Como seria complicado entrevistar moradores se fossem vestidos como quem estivesse indo para a guerra, a equipe do Viva Favela adotou procedimentos bem diferentes, estabelecendo relações com moradores de diversas comunidades, de forma que muitas vezes eles mesmos entram em contato com o portal. – Houve um caso na Cidade de Deus, onde uma mulher foi morta por bala perdida após uma incursão policial. No dia seguinte, a comunidade fechou a Linha Amarela para protestar e chamar a atenção da mídia. Ligaram para cá e pediram para a gente ir lá – conta o Editor de Fotografia Walter Mesquita. – Quando chegamos, fomos à casa da vítima e o marido agradeceu por estarmos ali, ouvindo o que ele tinha para dizer, porque os repórteres da grande imprensa não passaram dos limites da Linha Amarela. Tanto que, pouco depois, num bar, vendo uma matéria ao vivo que passava na TV, o marido se indignou, dizendo que a versão contada pelo repórter daquela emissora não era a verdadeira. Outro exemplo é uma reportagem sobre os seis meses em que tropas do Exército ocuparam o Morro da Providência para garantir a segurança de obras do programa Cimento Social, culminando com a morte de três jovens: – Toda a imprensa foi cobrir o assassinato dos garotos. Com a mídia presente, os moradores perderam a naturalidade e aproveitaram para protestar. Nós esperamos a poeira baixar e, num momento mais leve, fomos lá para mostrar o período de ocupação a par-
tir da perspectiva dos moradores. – explica Rodrigo Nogueira. Web favela 2.0 Desde março de 2007, a partir de uma parceria com as Organizações Globo, o portal ganhou espaço no jor-
nal Expresso, com a coluna Viva Comunidade. Às terças-feiras, aparece ali o Click da Comunidade, com uma foto central, um texto-legenda e mais seis notas. Às quintas são reproduzidas reportagens que já saíram no portal. Desde 2005 o portal ganha premia-
ções importantes, como a Menção Honrosa pelo conjunto da obra no Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e a do Open Society Institute, da Fundação George Soros, pelo estímulo à distribuição da fotografia documental, cuja dotação permitiu a organização da mostra itinerante Moro na Favela, apresentada em diversas comunidades do Rio, com 50 imagens produzidas pela equipe do Viva Favela: – Esta exposição era um projeto antigo. Quando a gente começou, pouca gente tinha acesso à internet – diz Walter. – Então, imprimíamos as fotos em material resistente à chuva e ao sol e as exibíamos um mês em cada comunidade. Foi intervenção urbana,mesmo. Começou na Cidade de Deus, depois foi para a Rocinha, o Complexo do Alemão, a Favela da Maré, e assim por diante. É também na rede mundial de computadores que se baseiam os principais projetos futuros do Viva Favela. Uma reportagem recente do portal, Diários da favela, feita por Renata Sequeira, fala sobre blogs de moradores das comunidades que usam o espaço para contar as experiências que vivem no dia-a-dia. A idéia é incentivar essas iniciativas e usar o endereço do portal para que os usuários produzam conteúdo, de modo que o trabalho possa se expandir e abranger todo o País. Ainda faltam financiadores para isso, mas a proposta dos mini Viva Favela promete: – Seria uma retomada da capacitação que ocorria no início com os correspondentes, só que de uma forma mais dinâmica e abrangente. As pessoas vão poder postar vídeos, áudios, textos, fotos, sem uma linha editorial específica. A idéia é criar um site colaborativo, que permita uma conexão com as favelas e periferias de todo o Brasil – sonha Rodrigo Nogueira, com o mesmo e vibrante idealismo do pessoal do morro, cujas faces finalmente começam a aparecer. Jornal da ABI 339 Março de 2009
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Liberdade de imprensa ROOSEWELT PINHEIRO/ABR
LUIZ XAVIER/AGÊNCIA CÂMARA
FOLHA DIRIGIDA
Ações na Justiça tentam intimidar jornalista Denúncia de corrupção e espancamento motiva perseguição no interior de Minas Gerais. Enquanto João Brant (à esquerda) critica o projeto do Governo para o setor, Roseli Goffman afirma que a Anatel jamais questiona a hegemonia da grande mídia, cuja cobertura insinua apoio da comunidade às ações repressoras, dez Orlando Guilhon.
Rádios comunitárias na mira da repressão Ações policiais da Anatel contra emissoras de comunidades carentes colocam em xeque a suposta proteção às emissoras comerciais, em detrimento do pleno direito à liberdade de expressão. Afinal, até que ponto a Agência Nacional de Telecomunicações-Anatel age com pleno amparo da lei ou contra o interesse público ao fechar rádios comunitárias, a maioria delas localizada em comunidades carentes? Possuir ou operar estação dessa categoria é considerado crime, com pena prevista de dois a quatro anos de reclusão. Por isso mesmo, em 9 de fevereiro, a agência, com apoio do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar-Bope, fechou cinco rádios comunitárias em operação realizada na Cidade de Deus, favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro. A psicóloga Roseli Goffman, representante do Conselho Federal de Psicologia na Executiva do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, afirma que a medida adotada pela Anatel é uma exibição gratuita de violência e visa a atingir os pequenos e jamais questionar a hegemonia da chamada grande mídia. "A Anatel é uma agência reguladora, por isso não deve se prestar a agir como Polícia. Quando isso ocorre fica difícil saber a que interesse o órgão está servindo. A agência reguladora foi feita para regular, e sua missão não é policiar", aponta ela. A Anatel justifica a ação policial com o fato de, supostamente, ter recebido uma denúncia anônima de que na favela estariam funcionando rádios que podem ser classificadas de 'piratas'. Essa situação, ainda segundo a Agência, seria caracterizada pelo fato de as transmissões serem financiadas por comerciantes locais e congregações, conforme publicado em reportagem de O Globo na edição de 10 de fevereiro. Roseli Goffman considera que tais ações da Agência podem ser interpretadas como uma espécie de "choque de ordem discriminatório", uma vez que só atingem a população menos favorecida, pobre e marginalizada. Cidadãos sem poder de barganha e com pouca representatividade social. "É por isso que devemos 26 Jornal da ABI 339 Março de 2009
discutir mais esse projeto de lei que o Governo Federal encaminhou para o Congresso Nacional em janeiro deste ano, para descriminalizar as rádios comunitárias, que prestam serviços à comunidade. Ou seja, elas avançaram porque vêm desempenhando esse papel, que é dar voz a quem não tem", explica. Descriminalização O projeto do Governo para descriminalização das rádios comunitárias poderá mesmo trazer a solução para o impasse entre a legalidade e a justiça? Na opinião de João Brant, jornalista especializado em rádio e tv e integrante do Intervozes-Coletivo Brasil de Comunicação Social, parece que não. Diz ele que a proposta do Executivo apresenta problemas, mas eles não são fruto da idéia da descriminalização. "Os erros do projeto vêm da tentativa de tornar mais rigorosas as sanções civis previstas na lei de radiodifusão comunitária, em uma lei que tem outro objeto. Ao misturar as bolas, o projeto aumenta o rigor com as comunitárias, autorizadas e não autorizadas, sem que preveja o mesmo tipo de tratamento para as comerciais. Nesse sentido, reforça a desigualdade no tratamento e acentua a proteção formal do Estado brasileiro ao sistema comercial", critica o especialista. "Equipamentos são recolhidos, rádios que não ameaçam a nada nem ninguém são fechadas, cidadãos são condenados. A troco de quê? Quem ou o que eles ameaçam? Pelos princípios do Direito Penal, considera-se crime o ato ilícito que gere lesão a bem jurídico protegido, com imputação objetiva. Na grande maioria das vezes, não só não há lesão a bem jurídico protegido, como não há sequer danos causados. Na prática, a criminalização representa a penalização de quem busca exercer o direito à liberdade de expressão, hoje garantido para muitos poucos", afirma João Brant.
Presidente da Associação das Rádios Públicas do Brasil-Arpub, Orlando Guilhon defende que, antes de se tomar qualquer atitude repressiva contra as chamadas rádios clandestinas, é preciso definir, com clareza, o que são as rádios comunitárias. "Elas são produtos da luta social das comunidades, e há inúmeras iniciativas nesse sentido. Por isso é muito importante separar o joio do trigo. Ou seja, as rádios que realmente estão a serviço das suas comunidades daquelas que se travestem por pertencerem a traficantes, comerciantes ou grupos religiosos". Outro fato relevante observado por Orlando Guilhon: nas reportagens publicadas sobre a operação repressiva da Anatel na Cidade de Deus não há entrevistas com pessoas da comunidade. "As fontes ouvidas são da Abert, da PM e da própria Anatel. E há no ar uma insinuação de que houve o apoio da população à atitude da Polícia. É como se a comunidade local assumisse a denúncia de que as rádios pertenciam ao tráfico", analisa ele, que traça um panorama do quadro nacional. "São quase 2 mil rádios nessa situação aguardando o processo de regularização, e que acabam sendo consideradas ilegais", diz. Para o jornalista Gustavo Gindre, coordenador-geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura-Indecs, a legislação atual penaliza as rádios comunitárias desde a sua origem. "Trata-se do único caso constitucional em que uma autorização de funcionamento precisa passar pelo Congresso, enquanto para a liberação das grandes emissoras são simples concessões, historicamente com critérios políticos". Entre os críticos das ações de 'caça às bruxas' sobre as rádios comunitárias, a esperança é de que o tema possa ser amplamente debatido na 1ª Conferência Nacional de Comunicação, programada para dezembro deste ano.
O jornalista Deusdet de Paula Rodrigues, sócio da Casa, recorreu à ABI para denunciar as “constantes ameaças, constrangimentos e intimidações” que vem sofrendo na cidade de Bicas, em Minas Gerais, onde atua como redator de um jornal. — Desde que denunciei na primeira página a corrupção na cadeia pública da cidade, onde meninas, menores de idade, são levadas para “transar ” com os presos por R$ 10, venho sendo perseguido pela Polícia Civil. Denunciei ainda um detetive que espancou um funcionário público municipal em seu local de trabalho, a mando do Secretário municipal. Qualquer artigo de minha lavra é motivo para este policial incentivar outras pessoas a entrarem na Justiça contra o jornal em que trabalho. Em carta à ABI, Deusdet afirmou que está encaminhando à Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da entidade as matérias que suscitaram as ameaças. — Mesmo após tantos anos de profissão, em função desses atos, cheguei a pensar em abandonar o jornalismo. Meu filho, de 31 anos, seguiu esta mesma carreira da qual tenho orgulho. Deusdet ressalta que se sente abalado com as ações impetradas contra ele na Justiça. — Preciso comparecer ao Fórum para responder a um processo por danos morais oferecido por uma delegada de polícia que se sentiu prejudicada por eu ter informado que ela não participou de uma ação conjunta com a Polícia Militar para a apreensão de máquinas caça-níqueis, conforme informou o comandante da polícia local; e embora o jornal tenha dado a ela o direito de resposta. (...) Perderei horas para explicar o que já foi explicado. (...) Esse é apenas mais um prejuízo provocado pelo desmando que assola o País. Segundo Deusdet, a perseguição foi motivada por sua luta pela liberdade de expressão: — Estou sendo ameaçado por me pautar pela ética jornalística em oposição ao arbítrio e ao autoritarismo, por denunciar a corrupção e defender a liberdade de pensamento e expressão.
COM OS DIAS CONTADOS Parte ativa na campanha pela revogação da Lei de Imprensa, a ABI elabora memorial para servir de subsídio ao Supremo Tribunal Federal.
Às vésperas de seu julgamento final pelo Supremo Tribunal Federal, a Lei de Imprensa esteve mais uma vez no centro das discussões do Conselho Deliberativo da ABI. Admitida oficialmente pelo STF no processo como amicus curiae, o que representa um terceiro interessado no objeto da demanda, a ABI elaborou para apresentar ao Supremo um memorial em defesa da revogação total da Lei de Imprensa, instituída em 1967 e apontada com um dos últimos resquícios do autoritarismo dos tempos da ditadura. Com a participação do advogado Thiago Bottino, doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professor da Fundação Getúlio Vargas-FGV, e de seus alunos da disciplina Núcleo de Prática Jurídica, o Conselho apontou em sua sessão de 5 de março, os obstáculos que os 77 artigos da Lei impõem ao exercício da atividade jornalística. – Tomamos a iniciativa de convidar o Dr. Thiago Bottino para fazer uma exposição ao Conselho Deliberativo e se colocar à disposição para esclarecimentos de uma questão essencial para Associação, principalmente pelo teor repressivo e o conteúdo ditatorial que remanesce na Lei de Imprensa. Thiago Botino consultou a ABI sobre o interesse da entidade em intervir neste processo que tem como núcleo principal a questão relacionada ao exercício da nossa atividade profissional, que é a lei reguladora da imprensa e de aspectos relativos ao desempenho do jornalista em seu dia-a-dia. Ele também teve papel decisivo para que o Ministro relator do processo, Carlos Ayres Britto, admitisse a ABI no processo como amicus curiae, devido a sua representatividade como expressão do universo do jornalismo e da imprensa no País. – explicou o Presidente Maurício Azêdo, ao lado de Pery Cotta, Presidente do Conselho Deliberativo, e de Lênin Novaes, Primeiro-secretário do Conselho. Tanto para Bottino quanto para a ABI inúmeros dispositivos da atual Lei de Imprensa são inconstitucionais, pois colidem com a Constituição de 1988. Existe uma séria preocupação com o que restaria da Lei n° 5.250 caso seja acatada na decisão do Supremo a inconstitucionalidade dos 22 dispositivos apontados pelo Ministro Carlos Ayres Britto, já que a lei é um conjun-
to de disposições que têm um sentido orgânico; na medida em que uma parcela importante de seu texto é declarada inconstitucional, a própria lei em si apresenta grande fragilidade. Disse Bottino que o viés dos argumentos que serão apresentados junto ao STF não se caracteriza apenas pelo direito de expressão e pensamento, mas também pelo direito à informação: – Há uma finalidade instrumental de permitir o debate público, a formação da vontade democrática e o direito de receber uma informação e expressá-la. Quando o Deputado Miro Teixeira fez a formulação, através do PDT, colocouse em pauta no Supremo Tribunal Federal uma discussão sobre a liberdade de imprensa, de expressão, e de uma lei específica que previa medidas administrativas de censura, responsabilidades penais mais graves para jornalistas, e uma série de dispositivos que, de certa forma, limitam a liberdade de expressão. Esta participação como amicus curiae, expressão em latim que significa "amigo da corte', é um mecanismo de participação popular e democrática nas decisões do Supremo Tribunal Federal. O objetivo não é fazer novos pedidos, mas dar elementos diferenciados para auxiliar a decisão do Supremo, que não poderia ser tomada sem que a ABI fosse ouvida. Os alunos da FGV elaboraram um estudo, sob a supervisão de Bottino, que disserta sobre o caráter instrumental da liberdade de expressão para que a sociedade possa deliberar de forma democrática. Também estão preparando um estudo de Direito Comparado, tendo como paradigmas os sistemas nos Estados Unidos e em Portugal. Bottino sublinhou que o jornalista no Brasil está sujeito a penas criminais mais severas em relação a qualquer outra pessoa que pratique o mesmo delito: – É necessário mostrar no Supremo que não há sentido para punir jornalistas no Brasil com penas criminais mais severas em relação a qualquer outra pessoa que pratique o mesmo ato. O Código Penal é suficiente para regular tudo isto. Um outro exemplo aplica-se à censura administrativa, no sentido de que seja declarado inconstitucional o dispositivo que permite a censura prévia das publicações. Uma lei morta-viva O Conselheiro Mário Jakobskind abriu o debate destacando que a Lei de
DIVULGAÇÃO
POR CLÁUDIA SOUZA
chamento de vários jornais, pauta permanente aqui na ABI. Precisamos ter normas básicas que regulem a atividade, como, por exemplo, o direito de resposta. O apoio a veículos de imprensa de pequeno porte é, também na opinião da Conselheira Maria Ignez Duque Estrada, fundamental para a garantia da liberdade de expressão no País. Por sua vez, o jornalista Villas-Bôas Corrêa chamou a atenção para a proximidade das eleições e a oportunidade de mudanças no perfil dos congressistas: – Seja qual for o resultado das eleições, não acredito que haja qualquer tipo de renovação no Congresso, o que é péssimo para a discussão. O debate da Lei de Imprensa deve ser abrangente e incluir a internet, que é uma presença importante na mídia. As falhas do sistema de indenizações foram apontadas durante a discussão pelo Conselheiro Tarcísio Holanda, para quem a Lei de Imprensa só funciona contra os jornalistas e deve ser revogada, idéia Professor de Direito, Bottino defendeu em aplaudida por Pery Cotta, que prememorial ao Supremo o fim da Lei de Imprensa. sidiu a mesa de debates. – A tradição da Casa é defender Imprensa "precisa ser sepultada defia liberdade de imprensa e, portanto, ser nitivamente pelo Supremo Tribunal". contrária a uma lei que restringe a atiApesar de alguns artigos já terem caívidade jornalística. do em desuso, alguns dispositivos conAo final do encontro, o Presidente tinuam sendo aplicados, como o que da ABI anunciou que se reuniria nos prevê punições mais graves para jornadias seguintes com Thiago Bottino listas, o que fortalece a sensação de para discutir detalhadamente o docuinsegurança jurídica. Em relação ao mento que a Casa vai apresentar ao memorial da ABI, o Conselheiro OrSupremo Tribunal Federal antes do pheu Santos Salles informou que oujulgamento. viu elogios do Ministro Carlos Ayres – Uma das nossas preocupações é Britto. que exista uma lei para regular as quesO Conselheiro José Pereira da Silva, tões relacionadas ao exercício da libero Pereirinha, ressaltou a importância da dade de imprensa, não sob a forma de revogação da Lei de Imprensa e da Lei de Imprensa, que tem uma conomobilização de toda a sociedade em tação já em si repressiva, mas sim uma torno da questão, incluindo as entidalei que assegure o direito de informades de imprensa, e fez questionamenção. O trabalho jornalístico é muito tos sobre a viabilidade da criação de penoso fora dos grandes centros. Está uma nova lei. sujeito a riscos e violências que partem A situação da imprensa fora dos do poder constituído através daquelas grandes centros urbanos foi levantada figuras mencionadas pelo Conselheipelo Conselheiro Carlos Arthur Pitomro Carlos Arthur Pitombeira, como o beira, que destacou a ingerência de prefeito, o juiz, alguém que detém uma políticos, juízes e demais autoridades parcela de poder no âmbito municipal. nas questões relativas ao jornalismo: Uma lei que garanta o direito de infor– Nos grandes centros temos o aumação poderia conter disposições de xílio da lei e de advogados para garancaráter penal, estas sim, para aqueles tir o direito à informação. No interior, que cercearem o exercício da liberdaeste problema tem determinado o fede de informação. Jornal da ABI 339 Março de 2009
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Liberdade de imprensa
Equipe do Extra agredida em São Gonçalo Durante matéria sobre buracos nas ruas do Município, repórter fotográfico é agredido e tem equipamento apreendido por prepostos da Prefeita e do Secretário de Saúde. CLÉBER JÚNIOR /EXTRA /AGÊNCIA O GLOBO
"Nunca passei por nada semelhante. Já fiz muitas matérias em comunidades carentes e passei por alguns sufocos. Mas me ver acuada em um carro, com pessoas impedindo a nossa saída do local e tentando agredir um companheiro de trabalho foi a primeira vez." O depoimento é da jornalista Ana Carolina Torres, do jornal carioca Extra, que, na companhia do fotógrafo Fabiano Rocha e do motorista Noel Messias, foi vítima de agressão durante reportagem em São Gonçalo, na tarde de 11 de março. A agressão aconteceu quando a equipe do Extra fazia uma reportagem sobre buracos nas ruas da cidade. O agressor, o Secretário Municipal de Saúde Márcio Panisset, é irmão da Prefeita de São Gonçalo, Aparecida Panisset (PDT). "Eu, particularmente, nunca esperava uma atitude dessas vinda do Secretário, até porque não fiz nada demais. Apenas coloquei o boneco João Buracão, que usamos para denunciar as crateras do Rio, no meio da rua, em frente à casa da Prefeita, e comecei a fotografar", conta Fabiano Rocha. A equipe do Extra registrou buracos, esgotos a céu aberto e vários outros problemas nas ruas do Município, uma realidade que, não se repetia na rua onde mora a Prefeita. Foi justamente ao colocar o boneco em frente à residência de Aparecida Panisset que Márcio surgiu, descontrolado, exigindo que Fabiano Rocha lhe entregasse a máquina, pedido negado pelo profissional. A equipe foi, então, cercada por moradores, muitos deles correligionários e até empregados diretos dos Panisset. O fotógrafo foi imobilizado com uma 'gravata'. Boneco e câmera digital foram levados para a casa da prefeita. Os três profissionais do jornal entraram no carro, mas foram impedidos de sair do local pelo Secretário Municipal de Saúde, que ficou na frente do veículo. Outro automóvel surgiu para impedir a partida da equipe, bloqueando a passagem. "Acho que foi um surto do Secretário Márcio Panisset. E o Extra nunca irá se calar diante dessas pessoas que tentam dificultar o trabalho da imprensa, usando de meios irracionais" contou Ana Carolina. Uma vez apagada parte das imagens feitas instantes antes, o Secretário devolveu o equipamento à equipe. O boneco utilizado na série de reportagens sobre os buracos no Grande Rio foi jogado no meio da rua, sem a cabeça. "Achava que conseguiríamos resolver tudo com diálogo, mas depois fui vendo que isso seria impossível. Resol28 Jornal da ABI 339 Março de 2009
Equipe do jornal Extra foi ameaçada pelo Secretário Municipal de Saúde de São Gonçalo, Márcio Panisset, quando fazia uma reportagem sobre as condições das ruas do Município com o boneco João Buracão, que teve a cabeça arrancada.
vi, então, tentar manter a calma. E foi assim que tive a iniciativa de logo entrar em contato com a Redação para comunicar o que estava ocorrendo. Recebemos total apoio tanto da chefia quanto da direção do jornal. Em momento algum tivemos a nossa versão contestada. Além disso, o nosso diretor de Redação, assim que soube o que passávamos na rua, entrou no ar ao vivo na Rádio Globo, denunciando a situação. Acho que isso pesou muito
para que nós tivéssemos um desfecho sem maiores problemas, sem mais violência", conta a repórter do Extra. O caso mereceu o repúdio da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção do Estado do Rio de Janeiro. "Repudiamos a agressão perpetrada por assessores da Prefeita de São Gonçalo, Aparecida Panisset, contra o fotógrafo Fabiano Rocha, assim como as ameaças dirigidas à jornalista Ana Carolina Torres e ao motorista Noel Messias, profissio-
FABIANO ROCHA / EXTRA / AGÊNCIA GLOBO
Os agressores da equipe foram identificados e levados à Delegacia de Polícia.
nais do jornal Extra que faziam uma reportagem naquele Município sobre buracos nas ruas. A OAB/RJ vê nesse ato de intolerância política um atentado contra a liberdade de imprensa, cuja reconquista tanto custou à sociedade brasileira. Por fim, nos solidarizamos com os jornalistas atingidos e com o jornal Extra", disse nota oficial divulgada pela OAB/RJ. A ABI encaminhou expediente ao Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio Lopes, pedindo a designação de um promotor para acompanhar o andamento da investigação sobre a agressão. Também enviou ofício à Prefeita Márcia Panisset cobrando desculpa formal ao jornal e à equipe de reportagem. "A Prefeita e o irmão dela marcaram uma coletiva dois dias depois de inventarem versões absurdas para o que tinha acontecido conosco. Disseram, por exemplo, que nós teríamos tentado pendurar o João Buracão no portão da casa deles, o que é mentira. Queriam pedir desculpas a mim e ao Fabiano Rocha. Mas, por orientação da empresa, nós não fomos. Agora, a equipe jurídica do jornal está acompanhando toda a questão na Justiça", disse Ana Carolina Torres. Os agressores do fotógrafo do Extra foram identificados na 73ª DP (Neves), onde o caso foi registrado. Um deles é o auxiliar administrativo Fábio Soares Pacheco; o outro, o motorista Marcos Antônio da Silva Ramos.
Direitos humanos
A tragédia fria e covarde da morte de Manoel Bezerra O jornalista Agassiz de Almeida envia mensagem de protesto contra o assassinato de Manoel Bezerra. Em mensagem dirigida à ABI, o jornalista, escritor e ex-Deputado Agassiz de Almeida expressou sua indignação e seu protesto contra o assassinato do advogado Manoel Bezerra de Matos, Vice-Presidente do Partido dos Trabalhadores em Pernambuco, morto em 24 de janeiro no Município de Pitimbu, na Paraíba. Agassiz — que foi um dos organizadores das Ligas Camponesas da Paraíba no começo da década de 60 e que por isso foi perseguido, preso e processado pelo regime militar — diz que Bezerra de Matos “tinha pressa em encontrar justiça num mundo de desencontradas e aberrantes injustiças”. Além de se dirigir à ABI, Agassiz de Almeida mandou sua mensagem por email ao Ministro da Justiça Tarso Genro, ao grupo Tortura Nunca Mais, à Associação de Anistiados, ao Deputado Edmilson Valentim (PCdoB) e ao Deputado Ricardo Bergorini, Presidente Nacional do PT. Repassado de emoção e indignação e redigido em termos de grande efeito
literário, diz o pronunciamento de Agassiz de Almeida, que define Bezerra como “um bravo que tombou”: “Não posso calar-me; a minha consciência golpeada me impele a dirigir este protesto, envolto de indignação e de dor. Com o assassinato covarde do valente advogado Manoel Bezerra de Matos, tive a sensação de uma incredulidade furiosa. Lembro-me dele, na ocasião do lançamento do meu livro A Ditadura dos Generais, em Recife, e de quem ouvi, num toque de sensibilidade, que esta obra era de sua leitura permanente. A longa manus sinistra do criminoso, sob o amparo de poderosas forças mancomunadas com a omissão do Estado, abateu um forte. Que natureza impetuosa! Tinha pressa em encontrar justiça num mundo de desencontradas e aberrantes injustiças. Quando aquele jovem Manoel Bezerra avocou a si a luta em defesa dos direitos dos sem-direito, ele fez desabar a ira de uma Medusa de mil tentáculos, enquistada no poder político e econômico.
Ressoa dentro de mim eco por sobre eco de um bravo que tombou. Há uma tirania que se compõe da indiferença e da omissão do poder contra a qual devemos nos indignar. Aquele lutador covardemente tombado em Pitimbu (PB) entrou para o processo de luta contra as injustiças sociais e os crimes abomináveis com a consciência fita nos horizontes do amanhã e da liberdade. Perscrutou as almas dos fracos antes de compreender os homens. Sabia ouvir o soluço de um infortunado como repelia com altivez a prepotência de um poderoso. Carregava-se de crenças sólidas no porvir do povo brasileiro. Com a tragédia fria e covarde da morte de Manoel Bezerra, enlutando a consciência dos homens livres, abrese um despertar da nação contra a máfia dos extermínios. O que aquele valente deixou com o seu assassinato covarde, para os desvalidos sem voz e sem vez de todo o País? Deixou um mundo novo de dignidade altiva.
Deixou esperanças àqueles que perderam a utopia. Deixou sonhos em almas sobre as quais só pairavam trevas. Deixou a energia de lutar. Deixou a coragem de vencer o medo e de resistir. Desde a sua adolescência, aquele nordestino impávido habituara-se a caminhar à beira dos abismos, onde pululam as mais torpes ambições humanas. Manoel Bezerra de Matos, a quem o admirava por sua luta, veio para a vida com a energia e a coragem dos intimoratos; dela foi arrancado traiçoeiramente. A sua morte não será em vão; ela traz consigo um golpe na consciência da humanidade, no seu pelejar constante pelo ideal de justiça e pelos direitos dos povos. Trazer às barras de um implacável julgamento os criminosos executores e os seus mandantes de tão execrável crime impõe-se como dever de justiça perante a nação. Saudações democráticas (a) Agassiz Almeida, escritor.”
CALOTE NA REPARAÇÃO MORAL POR CRISTINO COSTA
É muito triste para quem foi preso, torturado, violentado, arrancado como animal do asilo inviolável do seu lar, ter tido sua família agredida, suas convicções ideológicas aviltadas da forma mais brutal, ainda ter que esperar quase uma década para receber os míseros 20 mil reais a que tem direito por força de disposição legal. Quando os Deputados Carlos Minc, Chico Alencar e Edmilson Valentim conseguiram aprovar a Lei nº 3.744, de 21 de dezembro de 2001, jamais iriam imaginar que veriam sabotada parte de suas propostas pela ação ou omissão de sucessivos governadores. O Estado do Rio de Janeiro, vindo na contramão da lógica, justamente por ser o Estado mais politizado da Federação, só pagou até agora 140 ações reparatórias, enquanto Estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná já liquidaram de há muito seus compromissos com os anistiados. Há algum tempo, neste mesmo espaço, a ex-Governadora Rosinha Matheus foi cobrada e até realizou alguns
pagamentos – sem dispensar, é claro, a oportunidade para fazer proselitismos demagógicos. Deixou no entanto, até o final do seu governo, de saldar qualquer outro débito de reparação moral, mesmo dispondo de verba para isso, conforme informação do seu assessor Pelegrini. O atual Governador, Senhor Sérgio Cabral Filho, ostentando impressionante maestria para a procrastinação, faz-se de mouco ante as contundentes manifestações dos anistiados e das entidades da sociedade civil que cobram o pagamento da reparação simbólica. Agora, cá entre nós, com qual humor Sua Excelência se apresenta no Gabinete da Ministra Dilma Vana Rousseff garimpando verba para seu Governo, se, no contraponto, ele não paga aos anistiados do Rio de Janeiro, entre os quais se encontra a própria Ministra? O Governador não pode usar o argumento da falta de verba ou efeito de crise neoliberal, porque vive decantando a eficiência da sua Secretaria de Finanças com o constante aumento do ICMS. O eminente Professor Emil Amed,
ex-vereador e ex-mestre da atual Secretária de Assistência Social e Direitos Humanos Benedita da Silva, escreveu-lhe longa carta solicitando sua intervenção para a quitação das ações reparatórias; o máximo que conseguiu foi o encaminhamento do seu pleito ao Governador, que, usando de protocolar expediente, anestesiou a sua pretensão. O ex-publicitário Jorge Greco, um octogenário anistiado, espera há cinco anos colocar a mão no dinheiro a que faz jus. Coitado, hoje encontra-se prostrado numa cama em Belo Horizonte, vitimado por um câncer de intestino que o levou à ostomização. O Doutor Roberto Chabo, o combativo médico sindicalista, depois de paciente espera, despediu-se da vida sem usufruir da reparação moral a que tinha direito... Uma lástima. Bernardino Rodrigues Barbosa, um militante de esquerda, oriundo do movimento estudantil, muito sofreu nos porões da ditadura e por conta disso carrega seqüelas físicas e psicológicas e se encontra em deplorável estado de indigência social. A sua quitação pecuniária viria em boa hora.
O Estado do Rio de Janeiro, na gestão de três Governadores, pagou apenas o correspondente a 140 procedimentos reparatórios, de um total de 900 requerimentos deferidos; do último pagamento já distam cinco anos. Todo anistiado que tem seu procedimento analisado e deferido é obrigado a assinar um termo comprometendo-se a não recorrer à Justiça pós-pagamento. Seria muito justo se concretizasse a quitação do débito; acontece que diante do não recebimento faz-se implícito estímulo à exoneração do compromisso assumido. O Governador Cabral, segundo suas entusiastas aparições na mídia, é candidatíssimo à reeleição ao Governo do Estado. Muito bem, esperase que Sua Excelência não tenha contra si um enorme exército de formadores de opinião, capitaneado pelos experimentados anistiados e organismos da sociedade civil. Todavia, é bom ter-se em mente que sofisticações criptográficas podem neutralizar o esforço militante de quaisquer grupos ou conjunto social. Cristino Costa é jornalista e sócio da ABI
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DEPOIMENTO Jaguar. Esse parece um nome fadado ao sucesso, a tornar-se referência. É assim no mundo automobilístico - trata-se da fabricante de alguns dos carros mais elegantes dos quais já se teve notícia. O mundo animal não foge à regra. Nele, o jaguar é reconhecidamente o maior felino do continente americano, conhecido pela destreza no ataque a suas presas. Ora bolas, por qual motivo, então, haveria de ser diferente no universo do jornalismo brasileiro? Pois é, senhores. O Jaguar, de batismo Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, é mesmo uma 'fera' do desenho. Veloz no raciocínio, simples no traço, parece estar sempre à espreita, logo ali, depois daquela curva, em busca do melhor ângulo para o ataque. Afinal, aponta o próprio, esse é o instinto natural do humorista. Classe que necessita das mazelas humanas para se alimentar. E trabalhar. Não por acaso, seu apartamento no Leblon está repleto de desenhos. Alguns próprios, muitos de colegas. Há espaço cativo para garrafas e, é claro, delicadas miniaturas do Jaguar. Do carro, é claro. E também do animal. É com memória de garoto aos bem-vividos 77 anos que Jaguar recorda boas histórias com amigos e suas quase sempre inusitadas passagens profissionais. Da morte trágica do rato Sig, passando pelos dois meses de prisão na ditadura e pelo cerco da censura federal ao Pasquim, tudo é reprocessado por seu infalível filtro de humor. Um senso ácido, mas nunca rancoroso. E que chega, em certos momentos, a ser desconcertante. Outro traço marcante de sua personalidade é a humildade. Diz sentir-se incapaz de nutrir orgulho ou arrependimento por qualquer de seus trabalhos. Parece mesmo guardar um certo distanci-
As confissões, as aventuras e as opiniões daquele que é considerado o mais brasileiro dos cartunistas brasileiros. amento da profissão que o consagrou e na qual, em 51 anos de atividades ininterruptas, soma estimados 30 mil cartuns e charges. Porém, basta um pedido de autógrafo em um de seus livros para o severo Jaguar se desarmar. Assim, baixa a guarda, bem no fim da entrevista. No lugar das severas críticas a seu inegável talento - chega ao cúmulo de dizer que não sabe desenhar! – entra em cena um encantado leitor de si mesmo. "Eu tenho que rir, pô! Olha isso! Eu não me lembrava dessa merda!", acha graça o Jaguar, enquanto folheia a própria obra, dando daquelas gargalhadas entre o estridente e o contido, que nos fazem estremecer a barriga. Sensação experimentada com frescor por ele naquele final de manhã, início de tarde, fim do verão carioca. E repetida inúmeras vezes, ao longo de cinco décadas, pelos milhares de leitores que se deixaram encantar pelos rabiscos daquele que é considerado, por muitos, o mais brasileiro dos cartunistas brasileiros.
ENTREVISTA A FRANCISCO UCHA, PAULO CHICO E RICK GOODWIN 30 Jornal da ABI 339 Março de 2009
Francisco Ucha - A NORMA PEREIRA REGO PASQUIM O QUE CONSIDERO SUA MELHOR DEFINIÇÃO: "JA-
DETÉM MUITO NO ACABAMENTO...
pelo Chaval, pelos franceses, pelos ingleses... Vendo coisas do Punch... O mais brasileiro dos caricaturistas eu acho que era um cara que não era brasileiro: Max Yantok. Ele era brasileiro pra cacete, mas era lá do Leste Europeu...
TAR QUE AS CARAS HORRENDAS DAS FIGURAS
DO DESENHO, COM O CONTEÚDO TAMBÉM, COM
DEFORMADAS QUE RISCOU FORMARAM UMA
O TIPO DE PIADA, DE HUMOR, O OLHAR...
COMPOSIÇÃO QUE SE QUER PÔR NA PAREDE, OU
Jaguar - Ah, sim, um tipo de carioca, de molecagem. Eu sou o único cara que não se leva a sério... Uma vez eu fui com o (Carlos Eduardo) Novaes fazer uma palestra e a primeira coisa que ele disse foi: "Como todos sabem, o humor é uma coisa muito séria". Eu falei, "que é isso cara? A gente faz um esforço danado pra não ser sério e você diz isso aí...". (risos)
ESCREVEU EM SEU LIVRO SOBRE O
GUAR É O CARTUNISTA QUE CONSEGUE PÔR MAIS IRONIA NO TRAÇO.
DE FORMA GERAL, NÃO SE VAI DIRETO AO QUE IMPORTA: EXPRESSÕES FACIAIS, GESTOS, CENÁRIO... O MAIS SURPREENDENTE É CONSTA-
SEJA, BELA NO SENTIDO MODERNO DA BELEZA, QUE JÁ VEM DO SÉCULO PASSADO, E INCLUI A LIBERDADE".
O SEU TRAÇO PODE SER CONSIDE-
RADO O MAIS BRASILEIRO DENTRE NOSSOS CARTUNISTAS.
VOCÊ CONCORDA?
Jaguar - Não concordo com isso, não. Acho que o cartum brasileiro ainda não conseguiu achar um perfil próprio, como o americano tem, o inglês ou o francês também. Eu passei a vida inteira 'copiando' as coisas do New Yorker, influenciado
Rick Goodwin - MAS ISSO TEM A VER, ALÉM
Francisco Ucha - COMECE CONTANDO UM POUCO A HISTÓRIA DE SUA INFÂNCIA...
FRANCISCO UCHA
Jaguar - Meu pai e minha mãe eram paulistanos. Eu só voltei pro Rio de Janeiro com 15 ou 16 anos. Então, de carioca autêntico eu não tenho nada. Eu simplesmente curto o Rio como se fosse um cara de fora. Dos grandes cariocas, muitos não são do Rio de Janeiro. Você quer um cara mais carioca do que o João Saldanha? Gaúcho até a raiz dos cabelos, mas também carioca até a raiz dos cabelos. O Ferdy Carneiro, mineiro de Ubá... Um dos fundadores da Banda de Ipanema! Mais carioca do que ele é difícil encontrar... Francisco Ucha - COMO VOCÊ COMEÇOU A FAZER SEUS PRIMEIROS TRAÇOS?
Jaguar - Eu, como todo garoto, gostava de desenhar. Desenhava pessimamente. Aliás, desenho mal até hoje, é que eu engano muito. Eu não sei desenhar, pô. Na verdade, eu sempre me interessei pela coisa, lia Paris Match e ficava fascinado... "Como é que esses caras bolam essas coisas?", eu me perguntava, tentava, mas não conseguia fazer. Pra você ver como eu tinha um discernimento péssimo, de todos os cartunistas, que eram o Mose, Bosc, Chaval, e outros, todos bons... Eu escolhi exatamente o Trez, o pior deles, pra começar a copiar... (risos) Paulo Chico - PELO FATO DE TER O TRAÇO MAIS SIMPLES?
Jaguar - Foi uma merda. Eu não tenho a menor saudade da minha infância... Rick Goodwin - MAS VOCÊ É UMA DAQUERIO DE ANTIGAMENTE É QUE ERA BOM'... LAS PESSOAS SAUDOSISTAS, DO TIPO 'O
Jaguar - Não. Tem umas coisas que eu fico puto. Por exemplo, fechou o Florentino, fechou o Mistura Fina... E eu não tenho outro lugar pra ir. Como dizia o saudoso Cavaca: 'bons tempos aqueles, quando a gente ganhava pouco'. Aliás, tem uma história do Cartola em Paquetá, eu estive lá com ele... Um cara que era fã do Cartola tomou umas canas, ganhou coragem, chegou e falou assim: "Cartola, saudoso Cartola..." E o Cartola de volta: "Saudoso Cartola é a puta que te pariu!". (risos) Rick Goodwin - VOCÊ É UM AUTÊNTICO CARIOCA...
Jaguar - Eu não sou autêntico carioca porra nenhuma! Eu saí do Rio de Janeiro com três anos. Por um triz eu escapei de nascer, como meu irmão, em Juiz de Fora. Meu pai era do Banco do
Brasil e se mudou pra lá justamente porque eu tinha muita asma. Meu médico, meu pediatra, que era o Pedro Nava, recomendou o clima de Juiz de Fora. E meu irmão que não tinha nada a ver com isso nasceu lá. Paulo Chico - VOCÊS PERMANECERAM EM JUIZ DE FORA ATÉ QUANDO?
Jaguar - Não melhorei da asma. Meu pai foi transferido pra Santos, onde passei o colégio primário e o ginásio... Fiquei oito anos em Santos. Aqui, por exemplo, neste lugar cosmopolita que é o Leblon, as pessoas não reparam. Mas, quando você vai ao subúrbio, as pessoas reparam... "Você, Jaguar, é de onde? Não é carioca, não!". Eles sacam algo misturado... Eu acho que falo 'carioquês', mas o carioca do subúrbio estranha. O carioca mesmo, pra valer, percebe essa diferença. Aqui na Zona Sul é que acontece uma mistureba danada... Francisco Ucha - S EUS PAIS ERAM DE ONDE?
Jaguar - Nem tanto... Mas era, sim, um traço 'duro'. Naquele tempo, todos os humoristas estavam no O Cruzeiro, menos o Borjalo, que estava na Manchete. Aí O Cruzeiro foi lá, comprou o passe do Borjalo e passou, nitidamente, a faltar humorista no mercado. Não tinha! Havia o Fortuna, Ziraldo, Millôr, Carlos Estevão, não sei mais quem... Havia uns cinco ou seis, só! Agora, em qualquer cidadezinha do interior tem cinco ou seis... Na época, foi aberto um concurso para descobrir novos talentos. Entrei, copiando os desenhos do Trez, mas... Se estivesse no Pasquim, como editor de humor, e entrasse um cara com os desenhos iguais aos que eu apresentei, eu o botava pra fora a pontapé! (risos) Mesmo assim, eu tive a audácia de mostrar os desenhos para o Leon Eliachar. Foi a primeira vez que saiu publicada alguma coisa minha... Foi na seção do Leon, na Última Hora. A seção dele chamava-se Penúltima Hora... Ele colocou uma foto minha com um topete... Eu tinha 21 anos. Depois comecei a trabalhar num jornal chamado O Semanário. Eu já tinha levado uns desenhos pro Borjalo, ele ainda na Manchete... Eu assinava Sérgio Jaguaribe. E ele falou: "Nem pensar! Sérgio Jaguaribe não é nome de humorista!". Pensando bem, não é mesmo... (risos) "Vai ser Jaguar!", decretou ele. Rick Goodwin - COMO FOI A SUA HISTÓHENFIL?
RIA COM O
Jaguar - Com ele foi o contrário! Eu
me lembro perfeitamente. Ele chegou, eu estava com o Fortuna, que estava diagramando a enciclopédia Delta-Larousse. Chegou o Henfil de Minas, com a pastinha debaixo do braço, mostrou uns desenhos feios, péssimos, como os meus eram também. Eu perguntei: "Como é o seu nome". Ele falou: "Henfil". Eu repeti: "Fiu? Parece um assovio, fiu, fiu, fiu..." (risos) Ele ficou puto, porque o Henfil era rancoroso pra caralho! Depois disso ficamos amicíssimos e ele me disse que naquele dia ficou andando direto, pra cima e pra baixo na praia do Leblon, de tanta raiva! Agora, o Henfil depois se transformou num extraordinário desenhista! Era impressionante! Ele conseguia, num desenho, num papel em branco, parado, imprimir um movimento que parecia desenho animado. Só ele fazia isso. Eu nunca vi nada igual nem entre os estrangeiros. Aqueles traços ao lado da perna, assim, indicando direção... Vai tentar imitar. Não dá! Eu já tentei e não consegui... E ele tinha também uma noção de composição fantástica, né? Francisco Ucha - QUE VOCÊ TAMBÉM TEM...
Jaguar - Eu não, pô. Rick Goodwin - INTERESSANTE É QUE VOCÊ ENTROU PRA Manchete, COMEÇOU A FICAR FAMOSO, A GANHAR DINHEIRO MAS, AO MESMO TEMPO, TRABALHAVA NO
BANCO DO BRASIL.
Jaguar - Em todas as edições da Manchete, nas seções dos leitores, saíam cartas com elogios rasgados. "Jaguar é um gênio!". "Jaguar é o máximo!". "Jaguar é isso e aquilo!". Acho que todas as cartas eram escritas pela minha ex-mulher... (risos) Era tudo propaganda enganosa... Paulo Chico - MAS COMO ERA CONCILIAR A FUNÇÃO DE CARTUNISTA COM O EMPREGO NO BANCO? E EM QUE PONTO VOCÊ DECIDIU ABRIR MÃO DE UM PARA DEDICAR-SE APENAS AO OUTRO?
Jaguar - Eu tive uma sorte danada. Já tinha feito concurso para a Marinha Mercante. E passado. Minha intenção, quando saí do Exército e fiquei muito doido, era viajar. Meu pai perguntou se eu queria ir pra Europa. Respondi que queria ir pro Amazonas. Fiquei um ano por lá, quase fiquei morando... Quando voltei, fiz esse concurso, passei e meu projeto era esse mesmo. Virar comandante de navio da Marinha Mercante, levar um monte de livros, ficar lendo, deixando uma mulher em cada porto. Mas logo me apaixonei por uma guria, resolvi me casar e fudeu! Fiz o concurso pro Banco do Brasil, e passei também. Foi muito engraçado! Naquele tempo a datilografia não era uma etapa eliminatória. Eu tirei zero, pois nunca tinha visto uma máquina de escrever na minha frente. Mas, na média geral, eu passei! Me mandaram pra uma seção chamada Telegramas, onde hoje é a Cinemateca do Centro Cultural Banco do Brasil. O cara chegou pra mim e disse: "Seu trabalho vai ser bater à máquina". Logo respondi: "O senhor não me leve a mal, mas eu não sei bater à máquina! Vou fazer o quê aqui? Vou me levantar e vou embora". E ele: "Que é isso, rapaz? Isso aqui é um bom emprego. Deixa de ser bobo! Não sabe Jornal da ABI 339 Março de 2009
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DEPOIMENTO JAGUAR
bater à máquina? Você tem algum parente médico? Peça uma licença e faça um curso intensivo! Qualquer débil mental aprende a bater! Até você é capaz de fazer isso!". Sabe quem era esse cara? O Sérgio Porto. Ele ficou trabalhando comigo mais ou menos um ano e se demitiu. Muitos anos mais tarde, escreveria crônicas líricas na Tribuna da Imprensa. Só depois é que ele virou o Stanislaw Ponte Preta. E eu acabei sendo o ilustrador de todos os livros dele... O horário no banco, aliás, era ótimo: começava às três da tarde. Eu já era boêmio nessa época. A verdade era a seguinte: a gente chegava às três, trabalhava até cinco e pouquinho, seguia pro lanche, num bar em frente ao Banco do Brasil, onde tomávamos umas cervejas que eu comprava no Lidador. A gente voltava do lanche e não fazia mais porra nenhuma. Dava umas sete e meia e já partíamos embora. E ficávamos ali no Simpatia, esquina da Ouvidor com Rio Branco, esperando diminuir o movimento e tomando chope. Sempre fazíamos a eleição da Miss Fila. A moça mais bonita da fila era escolhida para uma homenagem. Por incrível que pareça, o Sérgio Porto, com aquele jeito dele, do tipo Stanislaw Ponte Preta, era muito tímido. Mas ele é que era o cara-depau que chegava e dizia: "Olha, a senhorita foi eleita Miss Fila. Tem direito a um chope ou a um frapê de coco". (risos) Paulo Chico - E A CANTADA COLAVA?
Jaguar - O resultado médio: levei uma bofetada, vários contras, e comi umas duas ou três... (risos) Paulo Chico - FALE UM POUCO MAIS DES17 ANOS DE BANCO DO BRASIL...
SES
Jaguar - Ninguém acredita, mas eu sempre tive uma saúde de ferro. Nesse tempo todo, nunca tive uma falta. Uma falta sequer! E isso foi fundamental na minha vida, pelo seguinte: me deu uma puta disciplina! Pois as pessoas duvidavam: "O Jaguar? Tá bebendo, ele não vem! Não vai entregar a porra da matéria!". E eu nunca deixei de entregar nada, assim como nunca faltei ao banco.
Jaguar - Eu ficava puto da vida pois, na hora em que o negócio, já na redação do Pasquim, começava a ficar animado, eu tinha que parar tudo e seguir pro banco. Aí, para desgosto dos meus pais, da minha família em geral, em 1974 eu me demiti do banco, sem levar um tostão. É aquele negócio: sempre na minha vida fiz escolhas erradas. Tinha a opção de Fundo de Garantia ou sem Fundo de Garantia. "Eu lá quero saber de Fundo de Garantia?", pensei na época. Se tivesse optado por ele, teria recebido uma grana. Mas saí sem um tostão.
Francisco Ucha - A PRISÃO FOI POR CAUSA DA MONTAGEM QUE VOCÊ FEZ COM O QUADRO INDEPENDÊNCIA OU
MORTE, NA
QUAL O DOM PEDRO GRITAVA "EU QUERO É MOCOTÓ", VERSO DE UMA MÚSICA FAMOSA DA ÉPOCA, DO ERLON CHAVES. NÃO FOI UMA
Francisco Ucha - O HÉLIO FERNANDES, CERTA VEZ, QUANDO OLHOU O SEU TRABALHO , DISSE PRA VOCÊ DESISTIR. A PARTIR DISSO, PODE-SE DIZER QUE O HÉLIO É UM ÓTIMO JORNALISTA, MAS UM PÉSSIMO CRÍTICO DE ARTE?
Jaguar - Ele é ótimo jornalista e um ótimo crítico de arte! Olha aí que merda! (mostrando um de seus desenhos). Paulo Chico - MAS, INTIMAMENTE, COMO EM ALGUM MOMENTO PENSOU EM DESISTIR? VOCÊ REAGIA DIANTE DESSAS CRÍTICAS?
Jaguar - Eu mostrei para o Hélio, ele achou uma merda. Eu concordei que era uma merda. Mas eu pensei: "Vou em frente, vou em frente!". Naquele concurso que foi realizado pela Manchete, três caras foram escolhidos: eu, Claudius, de Porto Alegre, e um cara lá do Piauí, o Brandão. Ele veio todo animado pra fazer fortuna no Rio de Janeiro, e eu logo avisei: "Ih, cara, esse negócio de desenho não dá dinheiro, não. Faz como eu fiz, arruma um emprego no Banco do Brasil, ganha uma grana...". Ele estudou, passou, mas aí, o que aconteceu? Virou bancário! (risos) Se aposentou, tentou até voltar ao desenho, mas aí já era tarde. Rick Goodwin - E VOCÊ, QUANDO RECEBE OS DESENHOS DE JOVENS, ATUA COMO O HÉLIO
FERNANDES?
Jaguar - Não. O Hélio Fernandes, nesse episódio, me disse: "Você desiste, desiste! Eu sou irmão do maior desenhista de humor do Brasil, o Millôr Fernandes. Entendo disso pra cacete, você não tem jeito nenhum pra coisa".
Paulo Chico - O QUE FOI DETERMINANTE, ENTÃO, PARA QUE VOCÊ SAÍSSE DESSE EMPREGO?
AI-5 pra abrir um jornal pra falar mal do Governo! Foi uma idéia brilhante! (risos) Deu tanto resultado que, seis meses depois, 80% da redação estava em cana.
da turma do Millôr... Eu era 'junior', ele já era categoria 'senior'... Eu gostava muito dele, a gente batia papo... Desses caras todos, além do Millôr, que sempre foi o meu guru, me dava bem com o João Saldanha. A gente não era amigo íntimo... Eu ia lá para entregar os desenhos pro Sérgio Porto, que dizia: "Só tiro os olhos da máquina para pingar colírio". (risos)
Francisco Ucha - ZUENIR VENTURA AFIRMA QUE 1968 AINDA NÃO ACABOU. E 1969, COM A CRIAÇÃO DE O PASQUIM, FOI UM ANO INDECENTE?
Jaguar - A entrevista da Leila Diniz, por exemplo, foi um escândalo. Agora, você lendo hoje a mesma entrevista,
REAÇÃO EXAGERADA? OS MILITARES REALMENTE NÃO TINHAM SENSO DE HUMOR...
ninguém entende a repercussão da época. Não tem mais o impacto. Hoje você vê em qualquer revistinha as atrizes dizendo onde fica o seu ponto G e coisa e tal... A entrevista da Nana Caymmi, na época, foi até mais bombástica. Tinha palavrão pra cacete... A Leila Diniz era um mocinha considerada prostituta, né? Tanto que, quando ela morreu naquele acidente, a gente fez um movimento para a Rua Jangadeiros passar a se chamar Rua Leila Diniz. E os moradores da rua, inclusive a mãe do ex-Prefeito César Maia, que morava lá, fizeram um abaixo-assinado dizendo que não queriam morar numa rua com nome de puta! Agora, tem umas coisas dessa época que não voltam mais, como o Barbado. Nunca houve um cachorro como o Barbado. Era um vira-lata que fazia ponto no Bar Jangadeiros. Comia filé-mignon, tudo do bom e do melhor, era guardacostas da Leila Diniz na praia. Quando vinha algum paulista jogar uma cantada em cima dela, ela fazia um sinal para o Barbado, que entrava na água, voltava, se balançava e molhava o paulista todo... (risos). Era aplaudido... Trabalhou no Tem Banana na Banda, com a Tânia Scher, a Leila Diniz e a Maria Lúcia Dahl... Na hora certa, ele fazia a sua pontinha ali no espetáculo. Ia de ônibus pro Centro da cidade, depois voltava e coisa e tal. Era o Charles Darwin dos cachorros! Francisco Ucha - VOCÊS FUNDARAM O PASQUIM MENOS DE UM ANO DEPOIS DO AI5. QUERIA QUE VOCÊ FALASSE UM POUCO DO EPISÓDIO DA PRISÃO...
Jaguar - A fundação de O Pasquim logo depois do AI-5 foi uma coisa inteligentíssima, né? (risos) Um grupo de pessoas consideradas de um certo QI, esperou o
Jaguar - É verdade! Como é que você descobriu isso? (risos) O negócio é o seguinte: eu fiz esse negócio e foi um deusnos-acuda, rapaz! Eu tava viajando, na minha casa de pescador lá em Arraial do Cabo. Quando voltei, me aconselharam. "Se esconda Jaguar, tá todo mundo preso!". Pra você ver como o Brasil é surrealista, eu fiquei na casa do sujeito que era um dos mais reacionários: Flávio Cavalcânti. Ele me escondeu! Ninguém iria procurar um "subversivo" na casa do Flávio Cavalcânti! (risos) E tinha uma outra subversiva comigo, que era uma maravilha de companhia, a Leila Diniz. Eu ficava o dia todo tomando uísque. Até que um dia, não sei como, eu recebo uma ligação do Paulo Francis, lá da cadeia. Ele dizia que eu tinha que me entregar pois, caso contrário, ninguém seria solto. Eu me entregando, todo mundo sairia... Aí, eu falei: "Ô Francis, porra! Tá maluco, rapaz? Eu vou ficar preso e vocês também vão continuar aí!". E ele falou assim: "A sua consciência é que responde isso". Fudeu, né? Pensei. "E agora?". O Sérgio Cabral também tava escondido. E eu perguntei: "Sérgio, o que você acha?". "Vamos lá", respondeu. E o Flávio Rangel, que não estava sendo procurado por nada, gritou: "Eu também vou!". (risos) O lugar era lá na Vila Militar, na Zona Oeste, longe pra cacete! E eu ainda tive que pagar o táxi! Chegando na porta da Vila Militar eu mandei o táxi parar. E o Sérgio Cabral pra mim: "O que foi, mudou de idéia?". "Não, mas vamos pro boteco mais próximo!". Tomei meia garrafa de cachaça, depois voltei e me entreguei. Cheguei e pedi para falar com um oficial. "Eu sou o Jaguar, estou sendo procurado...". "Ah, é? Prendam esse cara aí!". E lá fiquei por dois meses...
Paulo Chico - ALÉM DE AJUDAR NA SUA BANCO DO BRASIL, COM A SUGESTÃO DO CURSO DE DATILOGRAFIA, O SÉRGIO PORTO EXERCEU INFLUÊNCIA NA OPÇÃO PELO DESENHO E O JORNALISMO?
EFETIVAÇÃO NO
Jaguar - Não, pelo seguinte. Naquele tempo havia uma espécie de hierarquia, entendeu? Ele era de um outro patamar, 32 Jornal da ABI 339 Março de 2009
Com um traço completamente diferente, o Capitão Jesuíno foi um dos primeiros trabalhos de Jaguar, que assinava como “Max”.
PAULO GARCEZ
A entrevista com a desaforada Leila Diniz foi uma das sensações da história do Pasquim: mudou a linguagem, hábitos, o proprio jornalismo.
Paulo Chico - EM COMPANHIA DO PAULO FRANCIS E DE OUTROS COLEGAS?
Jaguar - Paulo Francis, Fortuna, Ziraldo... Eu fiquei, primeiro, preso com o Flávio Rangel, que era um gentleman. A gente só podia sair pra ir ao banheiro. E a gente tinha uma revista do Clube Militar, onde a gente lia os feitos heróicos do Exército... Os caras não entendiam nada por que a gente ria tanto. Ficava um guarda na porta, armado, do lado de fora, e a gente lá dentro das grades e ríamos pra caramba... Eu me lembro de uma "história heróica" de um cara chamado Tenente Prego, que estava lá na Guerra do Paraguai, quando caiu uma daquelas bombas, que aparecem nos quadrinhos, com um pavio aceso (risos). Ele se jogou em cima, rapaz! Pown!!! Foi 'prego' pra tudo que é lado! Salvou a vida dos outros e morreu! E a gente dentro da cela: "Quá! Quá! Quá! Quá!". Os guardas do lado de fora não entendiam nada, né? Eu e o Flávio Rangel presos e tendo aqueles ataques de riso! Outra reportagem que me lembro foi do cerco do terror em Santa Catarina, na cidade de Lajes. Nessa o cara dizia o seguinte, de forma heróica: "Vou tomar Lajes na baioneta!". Na seqüência, a própria reportagem esclarecia: "Frustrou-se o intento, pois foi o primeiro a morrer". E a gente: "Quá, quá, quá, quá, quá!". Paulo Chico - POR QUAIS OUTRAS SITUAÇÕES VOCÊS PASSARAM NESSES DOIS MESES?
Jaguar - Na cela não tinha banheiro, a gente tinha que pedir pra ser levado. Na primeira vez que eu fui, o cara me acompanhou com a metralhadora nas minhas costas. Fui fechar a porta e ele: "Não, não, tem que ser com a porta aberta". "Agora passou a vontade! Eu não sei cagar com alguém me olhando", respondi (risos). Logo depois eu comecei a subornar uns guardinhas de lá. Eles me forneciam e eu passei a beber um litro de cachaça por dia. Depois, jogava a garrafa vazia pela grade da cela no matagal dos fundos. Havia o Coronel Sarmento, que era muito educado, e dizia: "Os senhores são meus convidados. São meus hóspedes. Não vou julgar o que vocês fizeram". Não sei por qual motivo, acho que ele me considerou com uma cara mais séria, me escolheu como uma espécie de interlocutor do grupo. Ele vinha falar comigo e eu assim (mostrando a mão
encobrindo a boca): "Não, tá tudo bem, coronel!". E eu escondendo o bafo de cachaça. "O que é isso aí?", perguntava ele. "É que tô com um problema no dente..." (risos). Depois, quando eu fui solto, fui lá atrás só pra ver. Tinha uma pirâmide enorme de garrafas... (risos). A coisa que eu mais detestava era a visita das famílias. Eu proibi a minha família de me visitar. Aquilo era uma choradeira... O Sérgio Cabral chorava, a Magaly chorava, o futuro Governador chorava... E outra coisa: aquele sentimentalismo do Ziraldo e do Sérgio Cabral, eu sou o avesso completo. Não tenho essa coisa. Eles sim, choravam... Até resolveram fazer uma ceia de Natal! Foi muito engraçado... O Antonio's nos mandou a ceia, um peru, que arrumamos em cima de uma mesa improvisada, feita com barris. E tinha uma televisão preto-e-branco com o programa especial de Roberto Carlos... (risos). E os caras com metralhadora em volta, e todo mundo cantando Noite Feliz e chorando... Eu não queria viver aquilo. Queria ficar quieto, lá no meu canto... Francisco Ucha - JÁ ESTAVA ATÉ CHAMANDO A PRISÃO DE 'MEU CANTO'...
Jaguar - Outra coisa muito engraçada era o Tenente Macieira, um cara que tinha todos os cursos, até de guerra na selva. Era exemplar. Ele conversava horas com a gente... E foi se interando da situação do País... A gente já tinha uma certa liberdade para andar no quartel. Ficava andando pra lá e pra cá. Eu tinha uns óculos com duas lanterninhas pra ler de noite. Me lembro que uma noite, tava meio frio, eu me enrolei num lençol pra ir ao banheiro, com aqueles óculos, e ele quase morreu de susto! Pensou que fosse um fantasma... Eles faziam com a gente uma tortura psicológica, que era o seguinte... "Preparem os seus pertences, que vocês vão ser soltos", diziam... A gente arrumava tudo, dava parte das nossas coisas para os outros presos, tipo abridor de lata e garrafa. Os caras pegavam a gente, dávamos uma volta
Como todas as matérias do Pasquim eram enviadas para a censura, em Brasília, tinham que ser datilografadas com cópia, como se pode ver nesta foto em que Ivan Lessa, observado pelo Jaguar, redige um texto com o imprescindível papel carbono.
te, desceu para comprar jornal e foi prede carro, e nos traziam de volta... (risos). so! E ele sequer entendia o motivo disO Tenente Macieira acabou saindo do so... Inclusive, de esquerda ele não tem Exército, ficou meu amigo e abriu um nada. Pelo contrário, é um aristocrata. E restaurante em São Francisco, na Calio Paulo Francis também... Todo mundo fórnia... Inclusive, uma vez, ele salvou no Pasquim trabalhando do lado de fora, a vida da gente. A Polícia do Exército, ali a gente preso sem fazer nada, e ainda do batalhão da Tijuca, resolveu seqüescom pinta de herói... (risos). Naqueles trar a gente. Aí, sim! A gente ia se fuder, anos a gente dava umas festas, eu com né? Os caras entraram na Vila Militar pra o Albino Pinheiro, no Silvestre, que hoje, levar a gente na mão grande. Eles, sei lá, me parece, virou um cortiço. Eu saí diachavam que a gente tava levando uma reto da prisão para uma dessas festas. Me vida muito mansa, e quiseram dar uma deram tanta bebida que, em meia hora, 'dura' na gente. E o Tenente Macieira peeu estava em estado de coma... (risos) gou a metralhadora e disse: "Se derem um passo, eu atiro!". Só aí é que os caRick Goodwin - SAIU DA PRISÃO PARA ras foram embora. Nossa sorte era que QUASE SER MORTO NUMA FESTA... (RISOS) o Tenente Macieira era um soldado mesPaulo Chico - JAGUAR, VOCÊ ESTÁ CONTANmo, ou seja, ele atiraria pra valer. E aí os DO HISTÓRIAS ENGRAÇADAS E CURIOSAS PASSAcaras desistiram... E a gente: "Macieira, DAS NA PRISÃO. MAS, DO PONTO DE VISTA DE pelo amor de Deus! Fecha essa porta da UM ARTISTA QUE ESTÁ PRESO E IMPEDIDO DE cela a chave, e dá pra gente tomar conEXERCER SEU TRABALHO , ta. Deixa a chave com OLÍCIA DO QUAL O IMPACTO DA CENa gente aqui dentro, SURA NA SUA CRIAÇÃO? que é pra não ter risco XÉRCITO ALI DO ATÉ QUE PONTO ELA ALIde, se eles voltarem, MENTA A CRIATIVIDADE? conseguirem entrar!". BATALHÃO DA IJUCA Jaguar - O Ziraldo, (risos) Eu, na prisão, fiRESOLVEU SEQÜESTRAR por exemplo, fica puto cava lendo Ulisses. Lia quando começo a con20 páginas por dia. No A GENTE Í SIM tar essas histórias endia seguinte, voltava graçadas, pois ele acha dez páginas e retomaGENTE IA SE FUDER que elas estragam a va a leitura. Eu não toS CARAS ENTRARAM nossa imagem pública. mava banho, tava sujo, imundo, pareNA ILA ILITAR PRA "Pô, você fica nos esculhambando, todo muncendo um pária, e o LEVAR A GENTE NA da fica rindo... Parece Paulo Francis passava que foi uma brincadeicom o Paulo Garcez, MÃO GRANDE ra!". Não era, eu sei distambém de cueca, so. Por exemplo, se os caras da PE da com aqueles óculos de fundo de garrafa Tijuca tivessem conseguido nos pegar, dele, com uma varinha debaixo do braeu provavelmente não estaria aqui. A ço, como se fosse um oficial inglês, e um gente tinha uma grande vantagem em redizia pro outro com aquele sotaque brilação aos outros jornais por causa do tânico, olhando pra mim. "He is almost nosso estilo. O censor lê o texto, né? Se human". (risos) pegam na opinião... E nós fazíamos um Francisco Ucha - ESSES DOIS SE DIVERTIjornal de cartunistas. A gente mandava RAM NA PRISÃO, COMO VOCÊ? os originais e eles riscavam. No começo, a censura era mais branda. Um dia cheJaguar - Não, eles sofriam pra caralho! gou uma senhora lá na Redação, Dona O Paulo Garcez, coitado, sofreu à beça. Marina, dizendo que era da censura. Ele foi solto logo, pois descobriam que "Tudo bem, Dona Marina?", perguntei fotógrafo não tinha nada a ver com a eu. "Tá aqui o material, a sua mesa...". Ela história. Só fotografava. Ele foi preso da sentava ali e ficava, era uma senhora maneira mais trágica. Casou, passou a muito simpática... E eu sempre com a milua-de-mel lá na Lagoa. No dia seguin-
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Jornal da ABI 339 Março de 2009
33
DEPOIMENTO JAGUAR
nha garrafa de Red Label, bebendo. Um dia, depois do expediente, ela chegou e falou assim: "Será que eu podia tomar uma dose?". No dia seguinte, providenciei um balde de gelo e uma garrafa de Red na mesa dela... (risos) Passava tudo! E ela foi demitida! Depois soube que morreu alcoólatra... Outro simpaticíssimo censor foi o General Juarez, um cara boa pinta, bonitão, pai da Helô Pinheiro, a Garota de Ipanema. Quem, em geral, levava o material para a apreciação do Juarez era eu ou o Ivan Lessa... Ele nos recebia numa garçonnière ali na Barata Ribeiro, e ficava censurando. Mas ele era um sujeito legal. Primeiro, lia o material todo e depois riscava a lápis o que achava discutível, censurável. E a gente argumentava: "Não, o que é isso, general?". Se nós o convencíamos do contrário, ele apagava. Se não, riscava mesmo. O mais engraçado é que isso tudo a gente conversava no sofá da sala dele, debaixo de um retrato enorme, de um metro e meio de altura, da Brigitte Bardot, com os peitos de fora... (risos) E a gente ficava torcendo pras garotas chegarem, pras namoradas dele chegarem... "Esses aqui são dois amigos meus, pode ir lá pra dentro que eu não demoro". (risos) Nessa época, passava troço à beça também... Uma vez eu botei um anúncio de office-boy... Me chega um carro, tipo americano, com uma loura espetacular. Ela chega na minha mesa e diz assim: "Eu vim pelo emprego de office-boy, no caso, office-girl, né?". E eu: "Peraí, com aquele carro ali?". Ah, eu tô cansada da minha vida de madame, e quero trabalhar, gosto de O Pasquim. Por fim, a coloquei como secretária, era bonitona pacas e muito competente também... Aí, de vez em quando, ela é quem levava o material para liberação do General Juarez na praia, de biquini. Ele ficava tão maluco que passava tudo... (risos) Pra evitar, por vezes, que os censores riscassem o nosso original, a gente passou a enviar um esboço. Se fosse aprovado, aí sim a gente finalizava. Só que, depois da aprovação, a gente, na finalização, mudava a expressão dos personagens, o que basta para mudar toda a mensagem... E eles não pegavam isso... (risos) Paulo Chico - A CENSURA ERA BURRA?
Esta foi a brincadeira que colocou toda a redação do Pasquim atrás das grades por dois meses.
reios, nosso material foi parar em Belém. Nessa época, O Pasquim começou a decair devido ao atraso. A gente fazia um jornal que tinha uma semana de atraso. Até ir pra Brasília, voltar e não sei o quê, quando saía O Pasquim as notícias já estavam velhas... Foi aí que começou a decadência... Fora aquela história de incêndios e explosão nas bancas. Paulo Chico - NO ANO PASSADO VOCÊ FOI UM DOS JORNALISTAS QUE RECEBERAM INDENIZAÇÃO DEVIDO À PERSEGUIÇÃO PELA DITADURA.
NA ÉPOCA, FALOU-SE EM MAIS DE R$ 1
to com o Ziraldo, o que resultou numa grande repercussão. Inclusive... Bom, eu não vou ficar aqui falando de valores, mas o que eu recebi foi muito inferior ao que diversos outros receberam, até mesmo em função daquela grita toda, entendeu? Primeira coisa: eu não entrei com esse processo, quem entrou foi a ABI, não sei quem... Eu, por exemplo, nunca tive carteira assinada. Se eu quebrar a mão, eu tô fudido. Então, pelas porradas todas que eu tomei na vida... Foram nove anos, depois mais nove anos de contemplado, só agora fui receber...
Rónai, por exemplo, escreveu um artigo dizendo que eu estava jogando na lama toda a minha história, não sei o quê... Eu fiquei puto da vida! Ela ficou sabendo disso... Uns quatro meses depois, eu estou lá em Itaipava tomando a minha cervejinha e me liga a Cora: "Jaguarzinho, você me desculpa?", daquele jeito dela. "Eu não, porra! Se você me esculhambou na coluna, peça desculpas pela coluna, e não pelo telefone, que ninguém vai saber". E ela não fez isso... Mas outro dia almocei com o Millôr e a Cora estava. Comprei até umas flores pra ela... E acabou... Passou.
MILHÃO, E HOUVE GRANDE REAÇÃO POR PARTE
Francisco Ucha - E EM RELAÇÃO À REAÇÃO VOCÊ FICOU DECEPCIONADO?
DA MÍDIA E ATÉ DE COLEGAS, NÃO SOMENTE
Paulo Chico - EM FUNÇÃO DESSA INDENI-
ACERCA DO VALOR, MAS PELO SENTIDO DA AÇÃO
ZAÇÃO HOUVE DESENTENDIMENTOS ATÉ COM
DA MÍDIA?
COLEGAS, COMO O MILLÔR FERNANDES. COMO
Jaguar - Eu fiquei. Não esperava levar tanta porrada! Cartas de leitores dizendo que eu era um filho-da-puta, e não sei mais o quê... Como ninguém havia me chamado de filho-da-puta ainda, eu estranhei um pouco, né... (risos). Fiquei chateado, e tomei um porre! Mas, se eu não tivesse ficado chateado, também teria tomado um porre! (risos)
EM SI.
COMO ISSO BATEU EM VOCÊ? ESPERAVA
ESSE TIPO DE ATAQUE?
REAGIU A ISSO?
Jaguar - Muita gente teve indenização, só que a minha foi um processo jun-
Jaguar - Algumas pessoas me agrediram na época, agora já fiz as pazes. A Cora
Rick Goodwin - VOCÊ É A FAVOR DE QUE
Jaguar - Era limitada. (risos)
SE MEXA NESSA HISTÓRIA E NOS ARQUIVOS DA
Rick Goodwin - MAS, A PARTIR DE 1974,
TO, EM RESPEITO À ANISTIA?
DITADURA, OU É MELHOR DEIXAR TUDO QUIE-
VOCÊ QUE VIVEU
VEIO A CENSURA DEFINITIVA E AS COISAS SE
ESSA ÉPOCA, O QUE PENSA DISSO?
COMPLICARAM, NÃO É?
Jaguar - Eu acho que o cara que foi torturador tem que ser punido. Essas coisas não prescrevem não, porra! Eu acho que não! O sujeito fez e aconteceu, depois passam uma borracha e tá limpo?
Jaguar - Aí o negócio ficou feio, pois tudo tinha que ser mandado pra Brasília. Isso sem ter e-mail nem porra nenhuma... A gente pegava e colocava um monte de secretárias, datilógrafas, copiando Os Sertões, Rachel de Queiroz... Então, de cada 20 páginas, apenas três eram de O Pasquim. Só que eles tinham que ler aquela merda toda, entendeu? E eles censuravam a Rachel, o Fernando Sabino, censuravam Rubem Braga... (risos) Era uma guerrilha, e a gente fazia isso muito bem. A gente driblava bastante o esquema. Às vezes, mandávamos um volume de material que daria pra três edições, torcendo para que, após os cortes, o que voltasse salvasse pelo menos uma... Certa vez, por erro dos Cor34 Jornal da ABI 339 Março de 2009
Paulo Chico - EM 2006 OCORREU O EPISÓMEDALHA PEDRO ERNESTO, QUE VOCÊ DEVOLVEU À CÂMARA MUNICIPAL DO RIO, EM FUNÇÃO DA MESMA COMENDA TER SIDO OFERECIDA AO DEPUTADO ROBERTO JEFFERSON (PTB). O QUE O LEVOU A FAZER ISSO? VOCÊ SE ARREPENDE OU HOJE TOMARIA A MESMA POSIÇÃO? DIO DA
Jaguar - Eu falei que ia fazer isso! Devolvi mesmo! Foi o Chico Alencar quem propôs o meu nome, eu fui lá receber na Câmara, o Fausto Wolff esteve presente também, tudo bem, até aí, en-
tendeu? Quando disseram que o Jefferson ia ganhar, eu anunciei, não sei onde, que se ele recebesse a Medalha, eu devolveria a minha. Deram a Medalha pra ele e criei um problema. Nunca alguém havia devolvido este troço. Entrei, tinha um segurança lá e eu falei o seguinte. "Olha, eu estou aqui com a Medalha Pedro Ernesto, queria devolver essa porra". O Roberto Jefferson era réu confesso, cassado, e foi condecorado pela filha, num ato de nepotismo. Não deu pra engolir... E, na época, saiu uma reportagem no O Dia. A (Vereadora) Leila do Flamengo, que estava lá, veio falar comigo, quis me levar ao plenário, mas eu não fui. Entreguei a Medalha a ela e fui beber no Amarelinho...
Jaguar - Por exemplo, esse desenho aqui que eu fiz (mostra a charge que ele fez para o jornal O Dia). O Lula chamando o Obama de negão... Pô, mas isso é racismo? Não acho, não, porra. Eu chamo crioulo de crioulo! Muita gente acha que é racismo. Pra mim, é até uma maneira afetiva, entendeu? Eu mesmo fui casado com uma crioula durante dez anos. E o casamento só acabou porque ela me corneou com outro crioulo... (risos) Rick Goodwin - COMO É QUANDO VOCÊ SE ENCONTRA COM UMA VÍTIMA SUA, EM CARNE E OSSO?
Jaguar - Eu não encontro! Nós não freqüentamos os mesmos lugares... Paulo Chico - CERTA VEZ VOCÊ DECLAROU GOVERNO LULA, DE QUEM VOCÊ JÁ FOI ELEITOR. O QUE
Rick Goodwin - TEVE AQUELE EPISÓDIO COM A ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS...
Jaguar - ...Com o Roberto Campos. Eu disse: "Se esse cara entrar pra Academia eu vou lá jogar ovos". Eu não ia jogar, entendeu? Mas, o Arnaldo Niskier, que era Presidente da ABL, falou: "O Jaguar é de conversa fiada, covarde! Ele não vai ter coragem de fazer isso!". Aí fudeu, né? Não tinha mesmo outro jeito. Fui no Mundo Teatral, na Rua Sara, aluguei uma roupa usada pelo Tarcísio Meira, no filme em que fazia o Dom Pedro I, o Independência ou Morte, um fardão chiquérrimo! Segui pro bar em frente à ABL, o Vilarinho, mas não avisei a ninguém, pois eu não queria transformar aquilo em baderna. Fui na moita. Fiquei ali, mas os jornais ficaram sabendo, mandaram os fotógrafos e coisa e tal. Me vesti, peguei os ovos, meia dúzia deles na mão, atravessei a rua, e lá havia seis seguranças, seis armários, e mais um carro da Polícia. Os caras estavam em pé, e eu disse que ia jogar os ovos nas escadarias. Mas os caras tinham uns dois metros de altura, eu olhando pra eles, eles olhando pra mim... E eu pensei: "Vou jogar isso por cima da cabeça dos caras... E se eu er-
SEU DESCONTENTAMENTO COM O
PROVOCOU ESSA DECEPÇÃO E COMO SERIA UM
rar e acertar na testa de um?" (risos). Aí joguei a meia dúzia na parede da Academia. Como eu não queria emporcalhar a cidade, os ovos estavam previamente cozidos. Veio o faxineiro da ABL e falou assim: "Oba! Posso levar os ovos?" (risos). Depois ainda fiquei de jogar ovos no túmulo do Roberto Campos, mas aí achei que era um pouco demais... Paulo Chico - O HUMOR É UM TRAÇO MARCANTE DO SEU TRABALHO E TAMBÉM DO SEU PONTO DE VISTA SOBRE A VIDA.
O QUE É
HUMOR PRA VOCÊ? FALTA ESPAÇO PARA O HUMOR HOJE NOS JORNAIS?
Jaguar - Isso é um fato inconteste. Eu, por exemplo, sou cartunista. Mas, se eu fosse viver de cartum, tava fudido. Eu vivo, na verdade, como chargista. Publico há anos no O Dia. Eu tenho um grande problema, como chargista, pois não sei fazer caricaturas de pessoas, entendeu? E, às vezes, eu tenho que inventar uma caricatura. Por exemplo, Carlos Lacerda. Quando eu fazia a caricatura do Lacerda, usando mais ou menos a idéia do Lan, eu
fazia uma face que era completamente diferente da real. Mas os leitores se acostumaram e já sabiam que aquele cara que eu fazia, de óculos, era o Lacerda. O mais incrível foi o seguinte: é que, com o passar dos anos, o Lacerda foi ficando parecido com a minha caricatura... (risos). Eu odiava o Carlos Lacerda, ele era tudo a que eu tinha pavor. Me lembro que uma vez encontrei com ele no Jogral, lá em São Paulo. Ele tava triste pra cacete, pois tinha morrido o Mesquita, do Estadão, que era amigo dele. Tava enchendo a cara, eu estava numa outra mesa, e ele me mandou um bilhete, perguntando se eu não gostaria de me sentar com ele. E respondi num bilhete assim: "Eu quero que você morra com a boca cheia de formiga" (risos). Rick Goodwin - NÃO HÁ MAIS ESPAÇO PARA O USO DO DESENHO COMO NOTÍCIA, NÉ?
REPRODUÇÃO
Jaguar - Todas as revistas de humor acabaram! Aquela revista Hermano Lobo, que sobreviveu ao franquismo durante tantos anos, depois da morte do Franco não durou... Aliás, a democracia é péssima para esse tipo de publicação. A gente esculhambava o Governo. E só a gente, né? A chamada '”imprensa nanica". Depois que todo mundo pode esculhambar o Governo, virou zona. A democracia é a pior coisa para um jornal de humor e de sátira, do ponto de vista econômico. Até O Globo pode falar mal do Governo, porra! Rick Goodwin - MAS NÃO É INTERESSANTE QUE, AGORA QUE POSSA FAZÊ-LO, A IMPRENSA FALE MUITO POUCO MAL DO
GOVERNO? Paulo Chico - POIS É. SERÁ QUE, DEMOCRACIA POLÍTICA À PARTE, A IMPRENSA NÃO É CENSURADA, HOJE, POR UM OUTRO TIPO DE PODER?
Jaguar - Ah, rapaz, aí é uma coisa complexa...
IMAGINÁRIO ENCONTRO ENTRE O DA
PRESIDENTE
REPÚBLICA E JAGUAR?
Jaguar - Eu encontrei com o Lula recentemente, quando eu era membro de uma comissão da Fiocruz. O diretor da Fiocruz cismou de me colocar nessa comissão, da qual participei. E, no encerramento do mandato, houve uma cerimônia, na qual o Lula foi de paletó e gravata, irreconhecível... Quando o Lula chegou, me apresentaram a ele, muito prazer e tal... Depois, chegou o Sérgio Cabral, Governador. Ele foi lá, falou com o Lula, não sei o quê, e depois veio pra mim: "O Lula queria falar contigo". E eu respondi: "Eu já falei com ele!". Aí, rapaz, por azar, ele ficou discursando e eu na frente dele, na platéia, né? Ele olhava de vez em quando pra mim, e assim que acabou, eu dei o fora... Eu acho que o Lula tá fazendo um Governo bacana. Ele tem uma audácia, né? Ele se encontrou e tratou o Obama de igual pra igual... Mas não tá fazendo nada de especial no seu Governo, a não ser seguir o modelito de Governos anteriores... Paulo Chico - ESSA É A SUA DECEPÇÃO?
Jaguar - Não vi nada de novo. Não trouxe novidade, não! Francisco Ucha - E QUANTO ÀS DENÚNCIAS DE CORRUPÇÃO?
Jaguar - Eu acho que tá uma roubalheira. Não precisa ser dito por mim. Qualquer motorista de táxi vai te dizer a mesma coisa. A cada dia você vê o negócio mais vergonhoso, e não acontece nada... Prefiro não entrar em detalhes... Rick Goodwin - VOCÊ CONTOU DA SUA LACERDA E O PRESIDENTE LULA... ACHA QUE É SAUDÁVEL, PARA O HUMORISTA, MANTER SEMPRE ESSA DISTÂNCIA DO PODER? POSTURA NOS ENCONTROS COM O
Jaguar - Acho. Eu mantenho o máximo possível. Noutro dia, por exemplo, eu falei com o Sarney. Mas ele foi tão gentil comigo, que eu não podia ser mal-educado. Ele estava lá no restaurante, saiu da sua mesa e veio falar comigo. Depois, na hora de ir embora, eu fui lá na mesa dele. Era o mínimo de cordialidade esperada.
Rick Goodwin - TEM TAMFoto histórica da equipe organizadora do 2º Salão Carioca de Humor, em 1990: em pé, Chico Caruso, Lyvia Marina de Moraes, Ziraldo, Stella Marinho, Lan, Jaguar, Teresa Graupner, Marina Amaral, Laura Carvalho e Millôr Fernandes. Agachados: Reinaldo, Luísa Rocha, Creso Pessurno, Carolina Niemeyer e Agner.
BÉM O FENÔMENO DO POLITI-
Rick Goodwin - COMO SERIA O DIÁLOGO
CAMENTE CORRETO, QUE PARA
DE UMA CHARGE RETRATANDO UM NOVO EN-
OS HUMORISTAS É UMA ESPÉ-
CONTRO ENTRE VOCÊ E O
CIE DE CAMISA-DE-FORÇA...
PRESIDENTE LULA?
Jaguar - (Pensativo) "A minha cachaça Jornal da ABI 339 Março de 2009
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DEPOIMENTO JAGUAR
Francisco Ucha - QUAL O MOTIVO DE VOCÊ NÃO VER TV?
Jaguar - Rapaz, eu não tenho saco! Essas novelas todas são completamente idiotas, não têm pé nem cabeça. Raramente eu vejo um programa interessante, como outro dia eu vi um que era sobre um escritor, com apresentação da Bianca Ramoneda... Eu não consigo prestar atenção na televisão. A minha mulher dorme com a televisão ligada! Se eu desligo, ela acorda... (risos) O silêncio é ensurdecedor. Paulo Chico - JAGUAR, AO LONGO DE TODA ESSA SUA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL, EXISTE UM TRABALHO DO QUAL VOCÊ MAIS SE ORGULHE?
Gastão, o vomitador: personagem escatológico teve poucas histórias no Pasquim.
E ALGUM DO QUAL SE ARREPENDA?
predileta é a normal. E a sua?" (risos). Esse é um lado simpático do Lula e todo mundo esculhamba, porra! Rick Goodwin - A IMPRENSA BRASILEIRA SEMPRE TEVE MUITA TRADIÇÃO DE TER ESPAÇO PARA OS DESENHOS, PARA O CARTUM, PARA A CHARGE...
Jaguar - Para o cartum, não! Só pra charge... Rick Goodwin - E AGORA, QUE VIVEMOS A CHAMADA ERA DA IMAGEM, É ESTRANHO QUE ESSE ESPAÇO ESTEJA CADA VEZ MENOR...
Jaguar - Eu misturo o humor do cartum na charge... Os outros dão porrada direto. As publicações dedicadas ao cartum acabaram... Paulo Chico - A PROFISSÃO DO CARTUNISTA ESTÁ FADADA À EXTINÇÃO?
Jaguar - Claro! A Hermano Lobo, que era uma revista de humor, com geniais cartunistas, acabou... O Pasquim acabou! E o Punch? Eu nunca imaginei que o Punch fosse acabar! Hoje em dia, praticamente, você tem só o New Yorker. Mas lá o cartum é um charme... Tem as matérias, textos muito bons. E mesmo assim, dos cartuns do New Yorker, só uns 20% são bons. O resto é uma porcaria... Francisco Ucha - QUE PUBLICAÇÕES VOCÊ GOSTA DE LER?
Jaguar - Eu leio o New Yorker! Eu leio tudo, menos essas aí, Contigo! ou Caras... Ah, rapaz, muito engraçado, eu estive em Angola e tem Caras lá!
Jaguar - Não me orgulho de nenhum deles. E também não me arrependo, pra dizer a verdade... Eu já fiz tanto cartum que... Infelizmente, eu não os guardei durante anos... Agora é que, com esse negócio de internet, eu fico com os originais. Mas, antigamente, eu levava os originais, os deixava na Redação. Nunca peguei. De vez em quando eu vou à casa de alguém e vejo lá um desenho meu, na parede. Certamente o cara pegou na Redação, no arquivo. Todo o material de O Pasquim sumiu também... Francisco Ucha - COMO FOI O PROCESSO GASTÃO, BORIS, CHOPNICS?
DE CRIAÇÃO DE PERSONAGENS COMO
Jaguar - Engraçado isso, depois eu fui ver o Gastão, o vomitador, pois eu nunca tive saco pra história em quadrinhos. Eu comecei a fazer quadrinhos justamente com o Mauricio de Sousa... E a história do Chopnics era o lançamento da cerveja Skol. Eu fui chamado pelo Zequinha Castro Neves, que trabalhava numa agência de publicidade, e ele me propôs criar uma história para o lançamento da cerveja no Brasil. Eu aí bolei, e fiz o nome com a mistura de chopp com os beatniks da época. E havia personagens como o Bidê, que era o capitão Ipanema. Esse tinha superpoderes somente dentro da área da bairro. Quando passava voando pelo Jardim de Alah ele perdia os poderes (risos). O Hugo Bidê era esse personagem, que falava a palavra Skol e ganhava os poderes. Havia o Dr. Carlinhos Boca, que era eu. Me lembro que eu saía na Banda de Ipanema, num calor de 40º C, fantasiado de Carlinhos Boca, com um chapéu preto e uma capa de borracha preta... Não sei como é que eu não morri! Eu não tinha noção do sucesso que o
Jaguar fez cartuns especiais para ilustrar os portacopos distribuídos no lançamento da cerveja.
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Chopnics fazia. Ele chegou mesmo a que, um dia, caiu! Era no primeiro andar, ganhar vida própria, independente da mas para um rato era como se fosse o décerveja. Essas tirinhas saíam todo dia no cimo, né? Nós descemos todos, o rato esCorreio da Manhã e no O Globo - dois tava lá, já agonizante. O que nós fizejornais na mesma cidade! Era um sucesso mos? Pegamos o rato e o levamos para do caralho! Eu não me dei conta disso, o Hospital Miguel Couto! (risos) Pra depois, sinceramente, enchi o saco de fagente não era um rato, era um companheizer. Naquele época não havia computaro. Chegamos lá e os caras, lógico, se redor, nem nada, eu achava um porre decusaram a atendê-lo. E nós saímos na porsenhar história em quadrinhos. É o serada com todo mundo, fomos parar toguinte: se você dos na Polícia... Na U DETESTO DESENHAR E bolar um cartum, confusão, o rato ele em si próprio acabou morto, piUM DIA EU PUDER OU TIVER se encerra, pronto soteado... (risos) e acabou! Os qua- QUE PARAR DE DESENHAR NÃO Tinha o Marat, drinhos pedem que era outro boINHA ÚNICA êmio, esse exemaquela repetição, DESENHO MAIS repetição, repetiplar, um ótimo adINSPIRAÇÃO É A SEGUINTE ção... Digamos vogado. Ele trabaaqui: eu tenho que lhava, chegava em U TENHO QUE ENTREGAR desenhar essa casa, dormia até às A PORRA DO DESENHO E mesa, com a gen10 horas da noite, te aqui, essa mere saía pra virar a NÃO ELES NÃO ME PAGAM da toda aí em noite. Esse era o cima, e você diz pra mim assim: "Oi, tudo Robespierre. Tinha o Henrique Grosso, bem?". Aí eu tenho que desenhar tudo que era um personagem burrão... E tinha isso de novo, só pra responder: "Tudo o Sig, abreviatura de Sigmund, que era bem". Porra! Eu não tinha saco! Quem o intelectual, apaixonado pela Tânia teve saco pra isso ficou rico: o Mauricio Scher e pela Odete Lara. Ele era um rato de Sousa e o Ziraldo. Do Chopnics só soatormentado, cheio de problemas exisbrou um personagem, o Sig. tenciais... Teve uma sobrevida e acabou virando um símbolo do Pasquim.
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Rick Goodwin - É VERDADE, HAVIA ESSE PERSONAGEM, TAMBÉM REAL, QUE ERA UM RATO...
Rick Goodwin - E O GASTÃO? COMO É QUE
Jaguar - O Sig existiu, era um rato branco, do Hugo Bidê, que bebia com a gente. E o nome dele, real, era Ivan Lessa. (risos) O Hugo levava o rato pro Jangadeiros, molhava uma bolinha de pão com vodca, que o rato comia e ficava de porre. O rato era amigo nosso, entendeu? Tanto que, quando ele morreu, foi uma tragédia. A gente, quando fechava o bar, lá pelas quatro e meia da manhã, ia pra casa do Hugo Bidê, que era ali mesmo, na Jangadeiros. Íamos eu, Pereio, o Bidê, Paulo Góes... Este, hoje em dia, se diz arrependido de ter participado daquelas coisas todas. Ele era o mais maluco de todos, era também personagem do Chopnics. Na Banda de Ipanema saía fantasiado de mendigo. Depois da festa tentava pegar um táxi e só faltava os taxistas jogarem o carro em cima dele... (risos). Hoje ele diz: "Pô, Jaguar, como nós perdemos tempo com aqueles bêbados, né?". E eu: "Que é isso, rapaz? Você está cuspindo no copo em que bebeu?" (risos). Aí o Ivan Lessa, o rato, ficava andando no parapeito da janela, pra lá e pra cá. Só
VOCÊ CONSEGUIU FAZER UM PERSONAGEM TÃO INCORRETO NUMA ÉPOCA DE TANTA PATRULHA?
Jaguar - Gastão, o vomitador... Sei lá como eu bolei. De fato, não se desenhava ninguém vomitando no jornal. O mais engraçado dessa coisa toda é que foram poucas histórias, mas até hoje as pessoas se pegam nisso. Paulo Chico - COMO É SEU TRABALHO DE O QUE SURGE PRIMEIRO? É UMA IMAGEM NA SUA CABEÇA, UMA SITUAÇÃO QUE VOCÊ VÊ, O TEXTO QUE DEPOIS É TRADUZIDO NO DESENHO... O QUE TE INSPIRA? CRIAÇÃO?
Jaguar - Nada! O Ziraldo, por exemplo, é um cara que adora desenhar. Você vê que o Ziraldo fica conversando com você e, ao mesmo tempo, está desenhando num pedaço de papel. Eu detesto desenhar! Se um dia eu puder ou tiver que parar de desenhar, não desenho mais. Minha única inspiração é a seguinte: "Eu tenho que entregar a porra do desenho!" (risos). Se não, eles não me pagam... Eu leio quatro, cinco jornais do dia, leio tudo, de manhã, pois de noite eu não consigo bo-
VIVIANE ROCHA/AGÊNCIA JB
lar nada. Acordo cedo e leio O Dia, O Globo, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, a Tribuna, quando havia... Faz uma falta a Tribuna, né? Como eu não leio na internet... Paulo Chico - HÁ MUITA TENTATIVA E ERRO? MUITOS DESENHOS SÃO FEITOS E DEPOIS JOGADOS FORA, DESCARTADOS?
Jaguar - Tenho várias idéias, eu vou anotando... Às vezes, eu faço todas as charges da semana num dia só. No O Dia eu tenho que fazer, na segunda e quinta, as charges. Quarta é a vez da crônica com ilustração. Sexta eu desenho o Boteco do Jaguar. É isso que eu tenho que fazer, basicamente. De vez em quando um frila, uma ilustração de livros, outras coisas. Mas isso é pontual... Francisco Ucha - NUM DOS LIVROS EM QUE VOCÊ RETRATA BARES, HOUVE O ESQUECIMENTO DO BAR DE UM AMIGO SEU, O QUE GEROU RECLAMAÇÕES...
no O Globo. E mesmo no O Dia também... É um outro esquema... Francisco Ucha - O QUE FAZ UM BOM QUE CONSELHOS VOCÊ DARIA PARA QUEM ESTÁ INICIANDO NA CARREIRA? CARTUNISTA?
Em 1987 o Pasquim comemorou 18 anos com uma edição especial e novo logotipo. ARQUIVO PESSOAL
Jaguar - Foi no tempo em que eu fui editor de A Notícia. Era muito divertido aquele jornal, pena que tenha fechado... Foi a única vez que eu tive carteira assinada. E, quando fecharam o jornal, eu ganhei uma grana de indenização, e comprei um chalezinho lá em Itaipava. Foi ótimo... Eu tinha uma coluna, De Bar em Bar, na qual eu falava de botecos. Depois, resolvi transformar isso em livro, que já está completamente defasado, o Confesso Que Bebi... Engraçado, tem um sujeito que escreve numa revista de São Paulo, sobre gastronomia, que fala de vinhos e usa, na maior cara-de-pau, esse título do meu livro...
Paulo Chico - ACHA QUE OS JORNAIS SE INDUSTRIALIZARAM DEMAIS EM SEU PROCESSO DE ELABORAÇÃO? AS REDAÇÕES ESTÃO MUITO CERTINHAS, PERDERAM PARTE DE SEU ENCANTO?
Jaguar - Eu estranho muito quando vou a uma Redação hoje em dia. Era muito divertida a Redação de A Notícia, pois era uma esculhambação... Mas o pessoal era bom... Tudo funcionava. Hoje em dia, lá no O Dia, tem vários que foram aproveitados. Agora, eu me sinto um estranho no ninho numa Redação. Outro dia fui visitar o Chico Caruso, lá
Francisco Ucha - CERTA VEZ VOCÊ DISSE A SEGUINTE FRASE: "IDIOTAS JÁ CONHECI MILHARES.
TALENTOS, MUITOS. GRANDES TALENTOS, POUCOS. GÊNIOS, SÓ DOIS: GARRINCHA E HENFIL". NÃO ESTÁ ESQUECENDO DE ALGUÉM NESSA LISTA?
Rick Goodwin - FALE UM POUCO MAIS SOBRE A NOTÍCIA...
Jaguar - A Notícia surgiu para enfrentar O Povo. E nós acabamos vendendo mais do que eles. E tínhamos ótimos profissionais, como o Henrique Diniz, um grande texto, que morreu... O Monteirinho, que morreu também... Porra, morreu todo mundo, rapaz! Impressionante... Eu chegava lá e fazia basicamente só as manchetes. O pessoal fazia todo o resto. Foi a última Redação do Brasil onde se fumava desbragadamente e se bebia... (risos). Eu me lembro de algumas manchetes. "Mulher dá à luz com a idade do Ziraldo!" (risos). A mulher havia tido um filho com sessenta e poucos anos... O Ziraldo ficou puto! Outra vez, dois cabos do Exército pegaram duas piranhas, foram pro motel, comeram, beberam, passaram a noite. E não pagaram! Aí veio a manchete no jornal: "Golpe militar na Baixada!" (risos). Eu me divertia fazendo essas manchetes!
Jaguar - Primeiro, ele tem que ler, ver muito cartum. Conhecer tudo o que se faz nessa área, entender de artes gráficas... Eu acho que o que tá pegando em relação ao pessoal mais jovem é ter pouca informação, pouca cultura. Eles não lêem. Eu leio pra cacete!
Jaguar - Niemeyer... Francisco Ucha - VOCÊ FALOU DO REINALCASSETA & PLANETA...
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Acompanhando sua mulher, Célia Pierantone, que participava de um Congresso de Saúde, Jaguar teve a oportunidade de conhecer Fidel Castro graças à intervenção de Frei Betto.
Jaguar - O Reinaldo, pra mim, é o melhor cartunista brasileiro... Ele agora está fazendo umas coisas, e cada vez melhores, na Piauí. Eles me chamaram para fazer uns desenhos nessa revista, que acho muito boa. Fiz a capa da edição de Natal deles. Depois, não me chamaram mais... O Reinaldo desenha pra caralho! Mas é o tal negócio: ele tá ganhando muito dinheiro na tv... Eu faria o mesmo...
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Francisco Ucha - QUAL SUA VISÃO SOBRE ABI?
Jaguar - Ela foi e é fundamental para mil coisas, né? A existência da ABI, a presença dela esses anos todos... A ABI é um porto seguro. Desde o tempo do Herbert Moses, do João Saldanha, que eu freqüento aquilo lá... Tenho boas lembranças das reuniões que fazíamos lá... A ABI é um escudo pra gente. Nós nos sentimos seguros. É uma garantia de que tem alguém cuidando da gente. Caso contrário, estaríamos órfãos... Do tipo, eu não sei como eu sobrevivo sem o Mistura Fina... Sem o Florentino... (risos). É muito bom saber que a ABI está lá, entendeu? É uma coisa que deixa a gente mais tranqüilo. A impressão que dá é que sem a ABI os caras viriam pegar a gente pra dar porrada! Isso na melhor das hipóteses, viu? Jornal da ABI 339 Março de 2009
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LEMBRANÇA
Uma forma de eternizar Henfil Companheiros e admiradores do cartunista criam um instituto para preservar e divulgar sua obra.
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12 ABI,
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1988.
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AVANI STEIN/FOLHA IMAGEM
Preservar, digitalizar, catalogar e, sobretudo, colocar ao alcance do público o acervo de um dos mais célebres cartunistas do Brasil. Esse é o objetivo principal do Instituto Henfil, nas palavras de seu filho, Ivan Cosenza de Souza. O ato de fundação da instituição ocorreu no dia 12 de março, no Auditório Oscar Guanabarino, no 9º andar do edifício-sede da ABI, reunindo jornalistas, parentes e amigos do artista mineiro, que faleceu há 21 anos. O Instituto vai promover eventos culturais e apoiar projetos sociais, educacionais, ecológicos e de saúde, envolvendo assuntos como doação de sangue, hemofilia e aids. “Este é um projeto que tento realizar há muito tempo, e que finalmente se torna realidade. Como único filho do Henfil, venho batalhando para manter viva a memória do meu pai, apresentando sua obra às novas gerações. Agora, espero poder cada vez mais contribuir, utilizando sua obra e sua imagem da maneira que ele sempre usou, além de poder preservar o seu trabalho do modo que ele merece”, afirmou Ivan. Um dos primeiros desafios a serem vencidos pelo Instituto Henfil, também segundo Ivan Cosenza, será a constituição de sede própria. Ele prefere não fazer grandes revelações, com medo de comprometer os contatos TO DE FUNDAÇÃO DO que têm sido feitos NSTITUTO FOI REALIZADO com diversas empresas. “Por enDE MARÇO NO DIA quanto, o que posso NA REUNINDO dizer é que há gente interessada em PERSONALIDADES E ceder espaços e colaborar com a for- PARENTES DO CARTUNISTA matação do InstituMORTO EM to”, antecipou ele, que preferiu não esperar pelo espaço físico para dar início aos trabalhos. Henfil veste a camiseta criada por ele para a campanha das Diretas Já com o desenho “Neste caso, nós preferimos colocar do Senador Teotônio Vilela, que lutava por eleições livres para Presidente da República. a carroça na frente dos bois e dar logo início aos trabalhos”, disse Ivan Cosendrigues e Ricardo Gontijo. brasileiro, através da criação do Instiza. Os integrantes do Conselho do InsO fato de a fundação do Instituto ter tuto que leva seu nome e que terá por tituto Henfil são José Roberto, Marceocorrido na ABI foi motivo de celebraobjetivo a defesa daquelas questões que lo Gibson, Maurício Azêdo, Nélson Roção do Presidente da Casa, Maurício marcaram sua fecunda trajetória no drigues Filho, Aldir Blanc, Artur Xexéo, Azêdo. “É motivo de muita honra pojornalismo, na criação artística e na poChico Caruso, Eduardo Suplicy, João dermos colaborar com sua família e seu lítica nacional”, disse Maurício que desBosco, Zuenir Ventura, Márcio Braga, filho Ivan Cosenza de Souza nessa hotacou a criatividade do cartunista que Tárik de Souza, Wagner Tiso, Paulo menagem que se presta a este grande nas coberturas nos campos de futebol, Betti, Ziraldo, Sérgio Cabral, Joffre Ro-
foi responsável pela criação de símbolos de torcidas, como o ‘Urubu’, que até hoje representa o Flamengo. “Quando meu pai estava no mercado, a profissão de cartunista não tinha qualquer regulamentação. Então, ele era registrado como jornalista É por isso que a ABI tem muito a ver com ele. Ele escreveu crônicas e se envolveu em muitas questões ligadas à política. Através da charge, participou de todos os movimentos importantes que aconteceram no País, entre as décadas de 70 e 80”, destacou Ivan Cosenza. A cerimônia contou com a presença de importantes nomes do jornalismo, da cultura e da política, além de parentes de Henfil. Wanda Figueiredo, irmã do cartunista, disse que a criação do Instituto é um sonho antigo. “Preservar essa obra é muito importante para a gente. E é um trabalho árduo, pois ele deixou uma produção muito vasta. Acredito que nada foi perdido”, afirmou. Pouco antes do início do evento, o jornalista Ricardo Gontijo contou que conheceu Henfil ainda na adolescência, em Belo Horizonte. “Meu pai era dono do Hotel Gontijo, que funcionava como um ponto de encontro entre os amigos. O humor dele não era de graça, simplesmente. Sempre tinha um objetivo, uma ácida crítica política. Era um homem eminentemente político, vivia, falava e respirava política”, recordou ele, que trabalhou com Henfil na Redação do jornal O Sol.
Entre 1973 e 1974 os Fradins viraram Mad Monks. Foi a época em que Henfil experimentou trabalhar com a distribuição dos “syndicates” nos Estados Unidos.
O começo O cineasta Joffre Rodrigues, que trouxe o cartunista de Minas para o Rio, em 1966, para trabalhar no Jornal dos Sports e em O Sol, contou sobre o surgimento do filme Tanga — Deu no New York Times?, com roteiro dele e de Henfil, que, além de atuar, também assinou a direção do longa-metragem. “Havia um programa do SBT que se chamava Essa Era Minha Vida. Certa vez convidaram o Henfil e diversos amigos dele. Durante a conversa, Henfil me perguntou no que eu estava trabalhando. Disse que estava no cinema. Ele ficou entusiasmado e falou que tinha uma idéia para um filme. O roteiro era baseado na seguinte teoria: se você fosse preso pela ditadura militar e seu nome saísse no New York Times, eles não te matavam”. O ator Marcelo Escorel, responsável pela apresentação da cerimônia e que também atuou no filme, relembrou que interpretava o personagem Aids (Ação Insurrecional Democrática Sexual). “Durante as filmagens eu soube que Henfil estava com o vírus e pensei: ‘que cara maluco, não respeita nem a si próprio’. Henfil era politicamente incorreto até com ele mesmo. Mas, ele sempre foi assim, cáustico. O Aids era um personagem gay, uma sacanagem dele com a ala ‘cor-de-rosa’ da esquerda nacional”. Se Joffre Rodrigues trouxe Henfil para o Jornal dos Sports, Maurício Azêdo, Presidente da ABI, tirou-o das páginas internas e o lançou na primeira
página da publicação. “Eu era editor e vi que havia um talento escondido numa página interna. Então, eu o promovi para a capa e, com o talento que tinha, ele deslanchou. Sua charge era sempre marcada pela irreverência e pelo teor de surpresa que ele oferecia no encaminhamento do assunto que era objeto de sua análise”, relembra Azêdo.
as contribuições do Henfil na Tribuna Metalúrgica, o jornal dos metalúrgicos do ABC, as campanhas pelas Diretas Já! e pela anistia. Henfil representava uma boa esquerda, que não era sisuda, nem rancorosa, e sim irreverente e brincalhona, pois a luta pela liberdade passa pelas lágrimas, pelo sangue, pela morte e pela dor, em direção a um mundo de alegria e descontração”, ressaltou.
Sem rancor O Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, impossibilitado de comparecer à solenidade, enviou uma mensagem. “Henfil sempre representou a cidadania e o direito de liberdade de todos nós, da forma mais rascante e contundente possível. E o Ivan vai na mesma trilha, sempre parceiro das boas causas e disponibilizando o traço genial, o riso incontido e a ironia demolidora de seu pai contra os poderosos de plantão. O Ministério tem o Henfil, o Ivan, a Graúna, o Zeferino e tantos outros personagens geniais como símbolos da nossa luta contra o desmatamento e a desertificação, e a favor do Plano Nacional sobre Mudança do Clima”, afirmou Minc. Presente ao ato, o Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vanucchi, destacou a importância social da obra de Henfil e a relação deste com o Presidente da República. “Sou assessor do Lula desde 1980, e acompanhei bons momentos dessa relação, como
A canção O cantor e compositor João Bosco lembrou do início da carreira, quando teve seu primeiro disco lançado pelo Pasquim, em 1972. “Esse lp, no qual dividi um lado com o Tom Jobim, foi uma produção do Sérgio Ricardo. Então, como o Aldir Blanc também colaborava com o jornal, nós freqüentávamos a Redação e era comum estarmos com Henfil, Sérgio Cabral, Ziraldo, Millôr... Depois, estreitei mais ainda as relações com o Henfil, em função da aproximação dele com a Elis Regina, que era uma grande intérprete das nossas canções. E isso tudo gerou O Bêbado e a Equilibrista, que é uma canção que celebra toda essa amizade: a minha, do Aldir, da Elis
e do Henfil, com o Brasil”, descreve o artista mineiro. Parceiro de João Bosco numa das mais cantadas músicas da história da mpb – aquela cuja letra sonhava com ‘a volta do irmão do Henfil’, numa referência ao sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, Aldir Blanc enviou mensagem que, na solenidade de fundação do Instituto, foi lida pelo artista plástico Melo Menezes: “Em memória do Henfil e dedicado a seus discípulos. Advertência: assim como ele vivia repetindo no Pasquim que ‘humor é pé na cara’, lá também ouvi que a graça não respeita nada. Talvez, em razão dessas lições, acho mesmo que o politicamente correto, e não interessa se estamos falando de minorias, feminismo, raças ou credos, é a morte do humor”.
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POR PAULO CHICO
O fato de que os cartunistas têm como esporte predileto as críticas ácidas e bem-humoradas ao poder não é uma novidade. O inédito, no caso do mineiro Henfil, é que nunca se vivenciara a experiência de um artista que, munido de seus traços finos e metralhadora de grosso calibre, conseguiu exercer tamanha influência direta sobre os rumos políticos do País. Nos mais diversos veículos, Henfil incumbiu seus personagens de apontar os desmandos de um Brasil que sobrevivia sob regime ditatorial. E de lançar luzes sobre as mazelas cotidianas de um povo acuado.
No ano em que o cartunista completaria 65 anos,as recordações de seu filho, Ivan Cosenza de Souza, e de colegas resgatam o traço do artista que soube traduzir as angústias de um povo reprimido e influenciar diretamente a política do País. Ele teve sacações geniais, como ao definir a Região Sudeste como Sul Maravilha, pólo de contraste econômico e social com o Norte e Nordeste. 40 Jornal da ABI 339 Março de 2009
“O maior legado de meu pai foi botar em cena um humor levado a sério. De batalhar para conquistar avanços do ponto de vista social, político e cultural. Nenhum cartunista jamais conseguiu ter a importância de meu pai no cenário político do Brasil, como bem destacou o Ziraldo em seu depoimento no filme Três Irmãos de Sangue”, avalia Ivan Cosenza de Souza, filho do cartunista, que faleceu em 4 de janeiro de 1988, após contrair o vírus da aids numa transfusão de sangue, procedimento ao qual era regularmente submetido, em razão da hemofilia. A doença crônica também comprometia a saúde de seus dois irmãos – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o músico Chico Mário. “Ele combateu a ditadura, abraçou a campanha da anistia, criou o slogan das Diretas Já e fez a primeira passeata pública desse movimento com um pequeno grupo de cartunistas. Com suas caricaturas, praticou seu humor na televisão, em jornais e revistas, no teatro e no cinema. Foi o primeiro a fazer denúncias ambientais em cartuns. Só não fez humor no rádio. Hoje, não vejo um cartunista que tenha esse humor ácido, essa capacidade de interpretar e se antecipar às coisas, identi-
ficar as tendências. E, principalmente, de saber reproduzir no desenho o que as pessoas estavam querendo ouvir ”, diz Ivan, produtor cultural que agora se dedica ao fortalecimento do Instituto Henfil, recentemente criado e ainda em busca de sede própria. Antes de tudo um ser político, Henrique de Souza Filho, seu nome de batismo, assinou o manifesto de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980. O dom de antever os processos políticos e sociais, detectando talentos individuais, é outro traço marcante da personalidade de Henfil, diz seu filho único. “Ele sempre apostou no PT. Ele deve, sim, em algum momento, ter projetado o Lula sindicalista no pátio da fábrica e no futuro como Presidente da República. Ele sempre repetia que o Lula era muito mais que um líder sindical. Para meu pai, ele teria uma grande importância no cenário da política brasileira”. Será que Ivan Cosenza arriscaria, 21 anos após a morte de Henfil, uma previsão de como seu pai se comportaria politicamente nos dias de hoje? Em outras palavras, como o cartunista, conhecido por suas críticas implacáveis, veria a experiência de Lula no poder? “Acredito que, num cenário mais amplo, certamente ele diria que esperava mais desse governo. Mas é importante ressaltar que eles tinham uma relação muito próxima. O Lula admi-
te o fato de que tinha meu pai como uma espécie de guru pessoal, com quem sempre conversava e tomava conselhos”, recorda. O apuro técnico Mestre na arte do desenho, o chargista Chico Caruso, de O Globo, reconhece a importância do caráter político que permeia toda a obra do colega, mas destaca especialmente o apuro técnico de suas criações. “O maior legado do Henfil é seu desenho. Mais precisamente, o movimento que seus traços sugeriam, algo difícil de se reproduzir numa folha de papel. Ele conseguia imprimir movimento em algo estático. Além disso, brilhava na questão da agilidade, da perspicácia, da rapidez do ataque através do humor. Apenas a sua participação no Pasquim já bastaria para colocálo entre os generais na batalha pela redemocratização do País”, diz Chico, que considera que atualmente falta ousadia aos grandes jornais. “É preciso abrir mais espaço e valorizar as imagens, não só as manifestações por meio do desenho, mas também as fotos”, sugere. A mesma visão de mercado é apresentada por Ota. “O espaço para desenho está reduzido, até os quadrinhos estão encolhendo, com reproduções miudinhas. Há vários motivos para isso, desde a redução dos jornais, pelo alto custo do papel, e até o perfil dos
editores, que não gostam dessa manifestação. A Folha de S. Paulo valoriza os desenhos. O Jornal do Brasil acabou com as tiras. No O Dia, o espaço também é reduzido. O Henfil tinha lugar, pois conseguiu traduzir, em poucos traços, o que a população queria dizer. Histórias impagáveis, como as do Zeferino, duraram anos e anos, tendo só três personagens principais. Ele sintetizava em desenhos o que as pessoas não podiam falar em voz alta”, afirma o cartunista e quadrinista. À frente do seu tempo A questão seguinte, então, torna-se inevitável. Será que haveria espaço para personagens como Orelhão, Bode Orelana, Graúna, Cabôco Mamadô, Urubu, Ubaldo e os Fradinhos nas publicações atuais? “Ah, acredito que ele teria grande dificuldade de se colocar hoje em dia no mercado. Na verdade, nós que militávamos contra os militares acreditávamos que com a abertura poderíamos arrebentar a boca do balão, produzir muito para os jornais. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Com
o início da redemocratização, eles foram, aos poucos, dispensando seus desenhistas. Diziam não precisar mais da gente”, avalia Nilson Azevedo, cartunista e quadrinista de Belo Horizonte, que nos anos 70 chegou a dividir um apartamento com Henfil em São Paulo. “Como sempre, Henfil conseguia se antecipar aos movimentos e tendências. Foi assim que em 1979 se mudou do Rio para São Paulo, onde, segundo ele, todas as coisas importantes, do ponto de vista cultural e político, estavam acontecendo. Ele tinha como referências o Lula, o ABC, Dom Paulo Evaristo Arns... Foi para dividir um apartamento com o Glauco lá na Rua Itacolomi, em Higienópolis. Logo depois, me convenceu a também ir para lá”, recorda Nilson, que conta uma experiência assustadora daquela época. “Certa vez, a uma da madrugada, subíamos de carro pela Avenida Angélica eu, Henfil, Angeli, Glauco e Tárik de Souza. Fomos parados pela Rota e, após 20 minutos de terror psicológico, com oito armas apontadas para as nossas cabeças, fomos liberados, veja só, com a chegada de policiais civis, que pegaram mais leve com a gente... Naquela noite, achei que a gente ia dançar...”. O episódio vem à tona para descrever peculiaridades da personalidade do cartunista. “Era impressionante sua coragem. Nesta noite, ficamos todos apavorados. E o Henfil, que era o verdadeiro alvo deles, ficou lá, firme, sem sombra de medo. Ele era uma verdadeira usina de produção, de força. Era capaz de, mesmo doente, hemofílico, colaborar com o Pasquim, produzir para a IstoÉ, fazer o TV Mulher, desenhar para o Jornal da República e para quem mais aparecesse”, diz Nilson, que destaca ainda a rara inteligência do amigo.
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Trajetória de sucessos Henfil nasceu no dia 5 de fevereiro de 1944 na cidade de Ribeirão das Neves. Fez sua estréia profissional em 1964, na revista Alterosa. No ano seguinte, passou a colaborar com o jornal Diário de Minas. Em 1968, mudou-se para o Rio e passou a trabalhar no Jornal dos Sports, onde reinventou termos esportivos e criou as figuras dos mascotes das principais torcidas de futebol do Rio de Janeiro. Em seguida trabalhou no Jornal do Brasil, no Pasquim e nas revistas Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro. Uma produção tão rica e diversificada que, é claro, deixou marcas em toda uma geração de desenhistas. “O Henfil nos influenciou mesmo. Falo do grupo que se reunia sempre com ele, não tanto da geração em termos de idade. Ele revolucionou o cartum com seu estilo gráfico e com seu modo de trabalho. Na verdade, eu sentia que éramos da mesma geração. Havia uma outra, mais velha, que era a do pessoal do Pasquim, nossos mestres. Mas o Henfil era mais um colega pra mim. Esse era um diferencial. Não 42 Jornal da ABI 339 Março de 2009
sei se ele era um gênio. Costumamos usar esse termo quando existe algo de inexplicável no modo como a pessoa cria seu trabalho. Isso, em alguma medida, existiu no Henfil, que realmente tinha assombrosa performance produtiva. Mas também em vários outros humoristas brasileiros”, diz o cartunista Laerte. Jornalista e amigo pessoal de Henfil, Tárik de Souza não vacila um segundo ao definir a principal característica da rica obra do cartunista. “O principal traço de seu trabalho era, exatamente, o traço. Revolucionário, porque era econômico e urgente. Ele conseguia desenhar com uma velocidade impressionante. Vale dizer que um de seus principais personagens, a
Graúna, é pouco mais do que um ponto de exclamação”, recorda o crítico musical do Jornal do Brasil. “Mas, olhando em volta, o traço mais marcante da sua obra é o seu amor incondicional pelo País, que ele defendia com a mesma fúria com que atacava as suas mazelas”, pondera. Ainda no aspecto profissional, Tárik conta que sempre se impressionou com a desenvoltura com que Henfil transitava pelos mais variados meios de comunicação e manifestações artísticas. “Também são características dele a versatilidade e a abrangência de seu talento, já que, além dos cartuns e dos quadrinhos, enveredou pelo teatro, com a Revista do Henfil, pelo cinema, com o filme Tanga - Deu no New York JORNAL DO COMMERCIO
“Ele era uma das pessoas mais inteligentes que já vi. Um grande observador. E poderia dizer que ele vivia sob uma espécie de ódio sagrado. Ao mesmo tempo que exibia grande agressividade, era capaz de doses absurdas de compaixão, cultivava as amizades, tinha uma capacidade absoluta de entrega. E era muito divertido, irônico”, descreve Nilson, que hoje, também afastado dos grandes jornais, desenha para causas sociais e sindicatos de Minas Gerais. Ele acrescenta: Henfil era mesmo uma espécie de farol, alguém que indicava caminhos a serem seguidos. E que influenciou de forma determinante a política da época”. Prova dessa interferência do artista na política foi a campanha da anistia, iniciada em São Paulo de forma quase solitária por Therezinha Zerbini, sob o nome de Movimento Feminino de Anistia, e que ganhou projeção somente a partir da adesão do cartunista. “A campanha da anistia ganhou força mesmo com as Cartas da Mãe, que o Henfil escrevia para Dona Maria, com viés social e político. Elas foram publicadas na Revista do Fradim, no Pasquim e na IstoÉ. Aí, sim, o País tomou real conhecimento de que havia 10 mil brasileiros exilados, e aquele se tornou um movimento nacional”, lembra Nilson.
Henfil numa foto de O Cruzeiro de março de de 1971: o rosto liso seria substituído no decorrer dos anos pela barba espessa; seu humor ganharia tons cáusticos, duros, agressivos.
Times, pela tv, com a sua TV-Homem, dentro do programa TV Mulher, na Globo, além de livros Diário de um Cucaracha e Henfil na China... Fez até alguma coisa de música na trilha de peças”, relata o crítico de mpb, que também se prepara para diversificar sua atuação, no comando de um programa no Canal Brasil. “Pessoalmente, o Henfil cultivava os seus amigos com a mesma intensidade com que os cutucava. Gostava de provocar e fazer as pessoas pensarem e repensarem suas atitudes e posições. Por conta da doença crônica era hiperativo e trabalhava com afinco”, descreve Tárik de Souza, que, além da amizade, dividiu com o Henfil a criação de um de seus mais famosos personagens. “Há tempos queríamos criar um personagem, já que eu também sou fanático por quadrinhos. Numa viagem para Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, num fim de semana, surgiu a idéia e o nome do personagem, que refletia o nível de paranóia em que se vivia na época da ditadura militar. Nascia, assim, Ubaldo, O Paranóico”.
O prazer de criar um personagem em parceria com o amigo, no entanto, sofreu forte abalo diante de mais uma atrocidade cometida pelo regime, uma das que tiveram maior repercussão dentre as muitas execuções daquela época. “Quando nós voltamos de viagem e compramos os jornais, soubemos que o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que trabalhava na TV Cultura na época, tinha sido assassinado nos porões da ditadura, que depois tentou forjar um suicídio inverossímil. Com isso, o nosso personagem ganhou ainda mais força”, conta Tárik de Souza.
Livros
O tira-teima do Acordo Buscando responder às dúvidas que ficaram depois da reforma ortográfica, a ABL lança a nova edição do Vocabulário Ortográfico. POR CLÁUDIA SOUZA
GENTE
Cláudio Vieira retorna ao samba no mundo virtual Novo blog do jornalista especializado, que soma três décadas de cobertura do Carnaval, tem como propósito revelar os bastidores do maior espetáculo da Terra. De volta ao samba. Não, não se trata da canção homônima de Chico Buarque, com belos versos de súplica: "Acenda o refletor, apure o tamborim. Aqui é o meu lugar, eu vim". Até que poderia ser, levando-se em conta que o personagem em questão é Cláudio Vieira. Após uma ausência de aproximadamente três anos, o jornalista criou o blog Samba Online (www. samba online.blogspot.com). E retomou, assim, o trabalho apaixonado que chegou a desenvolver em O Dia. Durante dez anos, ele foi responsável pela coluna Passarela do Samba, que na época se transformou em blog. Participou ainda do projeto O Dia na Folia, dedicado à cobertura do Carnaval. "Nessa época surgiram muitos compromissos profissionais, como a edição das revistas Cante com a Gente, Liesa News e Ensaio Geral. Eu não tinha tempo para escrever no blog e
No blog de Cláudio Vieira histórias curiosas sobre o mundo do Samba.
as pessoas reclamavam. Em 2007, eu e minha mulher, Marta Queiroz, fomos chamados para editar a revista da Portela. Então, resolvi parar", recorda Cláudio, que revela o que o motivou a voltar a dedicar-se 'virtualmente' ao mundo do samba. "Foram as emoções dos desfiles deste ano no Sambódromo do Rio. A União da Ilha do Governador subiu para o Grupo Especial. Essa escola é adorada pelo público, que sempre vibra e canta seus sambas. Salgueiro, Mangueira e Portela, três escolas tradicionalíssimas, voltaram para o belo desfile das campeãs. A garra do povo mangueirense ajudou a escola a superar todas as dificuldades com bravura e mostrou o lado humanista do samba. Tudo isto me impulsionou a voltar a escrever", conta Cláudio, que atua há mais de três décadas em coberturas ligadas ao Carnaval. O objetivo principal do blog, diz, é contar ao público as histórias dos bastidores da maior festa popular do mundo, como o episódio que ocorreu com a Comissão de Frente da Portela instantes antes do desfile das campeãs. "A estrutura de ferro da Távola Redonda, usada pelo Rei Artur, representado pelo bailarino Tiago Soares, teve um problema. O coreógrafo Jorge Teixeira e o cenógrafo Glauco Bernardi avaliaram os danos, fizeram alguns reparos, mas a alegoria continuava solta. Foi preciso, então, ensaiar inúmeras vezes para que o bailarino conseguisse pisar no local exato. No final deu tudo certo. Ele já estava tão habituado que, durante o desfile, sabia exatamente onde se apoiar com total segurança, mesmo com a estrutura solta", recorda.
São 349.737 verbetes com vocábulos e expressões, classificação gramatical e ortoépia – para não deixar dúvidas sobre a pronúncia correta das palavras. Mais 1.500 verbetes com palavras e expressões estrangeiras de línguas de uso corrente no Brasil, como o inglês, o francês, o espanhol, o latim, o alemão, o japonês, o italiano e outras. E outros 349.487 vocábulos para reduções, reunindo abreviaturas, abreviações, siglas, acrônimos e outros, de maior uso. Esta é a quinta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa-Volp, publicada pela Academia Brasileira de Letras já com as novas regras estabelecidas pelo Acordo Ortográfico de 1990, regulamentado no Brasil pelo Presidente Lula no fim do ano passado e em vigor desde o dia 1º de janeiro deste ano. Justamente por causa das dúvidas surgidas com a reforma ortográfica – e que foram discutidas em uma extensa reportagem na última edição do Jornal da ABI – havia entre acadêmicos, escritores e profissionais que trabalham diretamente com a língua uma grande expectativa em relação à obra. Isso aumentou a importância do lançamento do Volp, que aconteceu na quinta-feira, 19 de março, na própria sede da Academia, no Rio de Janeiro. Estiveram presentes na cerimônia representantes dos países lusófonos, autoridades brasileiras, acadêmicos, literatos e grande público. Elaborado por uma equipe de 17 pessoas, entre lexicógrafos e revisores, sob a coordenação do filólogo e gramático Evanildo Bechara, da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL — integrada também pelos acadêmicos Eduardo Portella e Alfredo Bosi —, o volume, de quase mil páginas, apresenta os vocábulos sob forma de lista, por ordem alfabética, incluindo-se a classificação gramatical de cada um, além dos estrangeirismos, relacionados na parte final da obra. — Com a realização deste trabalho, a Academia traz contribuição relevante ao sonho de unificação ortográfica acalentado por tantos filólogos portugueses e brasileiros. Acreditamos ter contribuído para a elaboração do Volp, tarefa não só proposta pelos signatários do novo Acordo, mas que foi também sonho dos fundadores da ABL em 1897. – declarou Evanildo Bechara. Para executar o trabalho, a Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL se norteou por quatro princípios fundamentais: o respeito à lição do texto do Acordo; o es-
tabelecimento de uma linha de coerência do texto como um todo; o acompanhamento do espírito simplificador do texto do Acordo; e a preservação da tradição ortográfica refletida nos formulários e vocabulários oficiais anteriores, quando das omissões do texto do Acordo. Esses e outros procedimentos metodológicos seguidos na elaboração do Volp foram informados pela ABL em texto divulgado com o título de Nota Explicativa. — É muito importante que a opinião pública seja corretamente informada a respeito dos quatro princípios norteadores adotados pela ABL e que garantem fiel compromisso aos propósitos dos signatários oficiais do Acordo. A correta assimilação das modificações ortográficas dependerá, com mais facilidade, do adequado conhecimento que as instituições de ensino, editores, o público em geral tenham a respeito das normas ortográficas vigentes até 1990. – detalhou Bechara. Peso cultural e político
O Presidente da ABL, Cícero Sandroni, esteve em Brasília um dia antes do lançamento oficial, em 18 de março, para encaminhar os primeiros exemplares do Volp ao Presidente Lula e também aos Presidentes do Senado, José Sarney, e da Câmara dos Deputados, Michel Temer; e aos Ministros da Educação, Fernando Haddad; da Cultura, Juca Ferreira; e da Secretaria-Geral da Presidência da República, Luiz Dulci. — A língua portuguesa deixa para trás a condição de idioma cujo peso cultural e político estava ainda na vigência de dois sistemas ortográficos oficiais, um entrave ao seu prestígio e difusão internacional. Esta edição se apresenta aumentada em seu universo lexical, corrige as falhas tipográficas e oferece informações ortoépicas sobre possíveis dúvidas resultantes do emprego de algumas das normas ortográficas. - explica Sandroni. Cada escola pública do País deve receber a quinta edição do Volp, que ainda vai acompanhada do texto integral do Acordo Ortográfico de 1990, com todos os anexos, relatórios e justificativas, assinado por representantes de todos os países em que o português é língua oficial: Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe; os decretos presidenciais sobre a adoção e a implementação do Acordo no Brasil; a nota editorial da Academia Brasileira de Letras sobre esta edição e as anteriores, o Formulário Ortográfico de 1943, o decreto de 1971 e outros.
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Livros
As lentes dos irmãos Marques e suas histórias Flagrantes de protestos; bastidores; situações inusitadas protagonizadas por presidentes. Caçadores de Luz traz tudo isso e ainda registra a trajetória social e política do Brasil nas últimas três décadas nas imagens dos repórteres-fotográficos Alan, Lula e Sérgio.
Quando se trata do trabalho fotográfico dos irmãos Alan, Lula e Sérgio Marques, não é exagero dizer que suas imagens valem mais do que milhares de palavras. Em três décadas de fotojornalismo, eles foram responsáveis por vários dos principais flagrantes registrados nas páginas da imprensa brasileira. Da guerra de Angola a um vôo supersônico com Ayrton Senna, do Presidente Fernando Henrique Cardoso, ateu declarado que se ajoelha para rezar em visita ao Vaticano, ao protesto mudo de um índio nas comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, suas lentes oferecem um olhar privilegiado – e inusitado – da recente trajetória social e política do País. Agora, um pouco dessa história pode ser conhecida nas páginas de Caçadores de Luz - Histórias do Fotojornalismo, lançado pela Publifolha. Como dizem aqueles que perseguem a perfeição nos instantâneos, Caçadores de Luz é o tipo de obra que busca trazer sempre o melhor ângulo. Isso fica evidente não apenas nas fotos que estampam a publicação – diversas delas de grande destaque e ganhadoras de prêmios nacionais e internacionais –, mas também nos textos que preenchem as 240 páginas do livro, sempre revelando o making of de cada imagem, contando situações engraçadas ou dramáticas e fazendo reflexões breves, mas precisas. Uma narrativa direta e em primeira pessoa que faz com que o leitor – seja jornalista, fotógrafo ou mero curioso – não queira largar o livro até chegar à última página. – Você lê, lembra daquela foto fantástica e, automaticamente, dos personagens, das circunstâncias, do desfecho. Volta no tempo. É um prazer e uma redescoberta para quem é e para quem não é do ramo. Ainda mais quando se descobre o trabalhão que dá para fazer a tal fotografia em relatos gostosos, às vezes, eletrizantes – escreve a jornalista Eliane Cantanhêde, colunista da Folha de S. Paulo, na apresentação do livro. 44 Jornal da ABI 339 Março de 2009
A coletânea, de certa forma, relembra a própria história dos irmãos Marques na fotografia, que começa com Paulo, o mais velho, morto em um acidente de carro, em 1978. Ele era Editor de Fotografia do jornal Correio Braziliense, no qual Lula e Sérgio Marques iniciaram as suas carreiras como repórteres-fotográficos. Índio X Tropa Luiz Marques, o Lula, tinha 14 anos de idade quando foi trabalhar como contínuo no Correio. Na primeira oportunidade, foi transferido para o Arquivo Fotográfico do jornal e passou a se interessar pela fotografia. Ele confessa que de início foi um pouco displicente com o trabalho até que uma ameaça de demissão o fez mudar de atitude. A mudança de comportamento compensou: ao se dedicar mais à função, Lula alcançou reputação profissional e conquistou vários prêmios. Ganhou o Prêmio Folha de Fotografia de 1999, com um flagrante de Pedro Malan du-
RICARDO MARQUES
POR JOSÉ REINALDO MARQUES
Alan, Sérgio e Lula Marques: os irmãos caçadores de luz e de flagrantes premiados.
rante um desfile do 7 de Setembro, em Brasília. No ano seguinte, venceu o Prêmio Imprensa Embratel de Fotografia e mais um Prêmio Folha de Fotografia, com a foto que ilustrou a reportagem Conflito marca festa dos 500 anos. Veiculada mundo afora pelas agências internacionais, a foto mostra a violência policial contra os índios pataxós na comemoração dos cinco séculos do descobrimento do Brasil. O episódio é contado por ele com detalhes no livro: – Eu só me lembro da cara fechada do comandante da tropa gritando: “sai, sai, sai”. Uma ordem para que nós, fotógrafos, saíssemos da sua frente. Era visível o prazer que a situação dava ao sujeito. “Eu gosto disso, eu quero é mais”, urrava o comandante, espingarda apontada para a frente, bombas de gás lacrimogêneo atiradas para todos os lados. Lula, atual Coordenador de Fotografia da sucursal de Brasília da Folha, lem-
A foto que foi escolhida para a capa do livro partiu de uma idéia de Alan Marques, que quis traduzir a turbulência parlamentar em Brasília ao fotografar um raio caindo na direção do Congresso Nacional: foram cinco tentativas até conseguir o resultado esperado.
bra que o comandante não parava de gritar e de mandar a sua tropa, de arma em punho, avançar sobre os índios. Num desses momentos, o índio Gildo Terena deitou-se no chão, de braços abertos, à frente do comandante, tentando impedir o avanço da tropa. Lula — que juntamente com outros fotógrafos estava posicionado entre os soldados e os indígenas — registrou a cena, que acabou se transformando numa das matérias mais tocantes da sua trajetória profissional: – Voltei para Brasília na manhã de segunda-feira, e vi o quanto é bom fazer uma boa foto. Todas as agências internacionais compraram aquela imagem. Depois vieram os prêmios. Perdido na Onu Quem ensinou os segredos do fotojornalismo a Lula foi seu irmão Sérgio. A intimidade de Sérgio Eduardo Alves Marques com imagem vem desde os 17 anos, quando estudava cinema e trabalhava em televisão. No início dos anos 80, foi convidado para trabalhar na Fotografia do Correio Braziliense e desde então não largou mais a profissão. Desde 1984 na sucursal de O Globo em Brasília, no qual há 20 anos é o Editor de Fotografia, Sérgio é o autor de um dos mais interessantes registros da então todo-poderosa Ministra de Economia do Governo Collor, Zélia Cardoso de Melo: uma foto na qual ela aparece chorando no dia de sua demissão. Mas uma das suas fotografias que mais impressionam no livro, pela visão jornalística e pelo senso de oportunidade, é a que mostra o ex-Presidente Itamar Franco perdido em um plenário das Nações Unidas, em Nova York, “totalmente desorientado”, na definição do próprio fotógrafo: – Foi realmente surpreendente a imagem de Itamar Franco sem saber o que fazer diante das bancadas, procurando os delegados brasileiros que participariam da reunião. O congelamento dessa imagem em fotografia foi o que
Três momentos registrados por Alan Marques: Em 2006, na 4a Cúpula da União Européia, América Latina e Caribe, em Viena, uma manifestante burla a segurança trajando um minúsculo biquini. Ao lado, Lula e Marisa posam próximos das pirâmides de Queóps com a Lua ao fundo . Abaixo à esquerda, Alan fica entre os manifestantes sindicalistas e a cavalaria em fevereiro de 1998. Abaixo à direita, a foto de Lula Marques foi veiculada mundo afora pelas agências internacionais e mostra a violência policial contra os índios pataxós na comemoração de cinco séculos do descobrimento do Brasil.
de melhor consegui fazer e publicar, com excelente destaque, na primeira página do jornal O Globo. – relata ele no livro. Lambendo a cria Na busca da boa foto, estar sempre no lugar e no momento certos é o creme do creme para qualquer fotojornalista. Melhor ainda, diz Alan Marques, é quando a pauta se refere a um escândalo político: – Quer ver um fotógrafo ficar feliz? – pergunta. — Diz para ele que acabou de explodir um grande escândalo em Brasília. Revela Alan que quando isso acontece os jornalistas se agitam e vibram porque o clima na capital começa a ficar mais eletrizante. Logo o político que está atolado na lama colocará a cabeça para fora, para respirar, e será recebido por uma saraivada de flashes. Aí é preciso estar preparado, no lugar e na hora certos. Acostumado a esse frenesi de Brasília, ao entra-e-sai dos gabinetes, às tensas reuniões nos plenários da Câmara e do Senado, quando foi cobrir as investigações sobre a Máfia dos Sanguessugas Alan resolveu inovar. Voltava para a redação do jornal,
depois de ter feito “uma foto burocrática de gabinete”, quando um temporal desabou sobre a cidade, com raios e trovões que pareciam explodir os prédios da Praça dos Três Poderes. Ele teve então a idéia de registrar um raio caindo na direção do Congresso Nacional, imagem que traduziria com muita fidelidade a turbulência que se passava lá, internamente. Alan conta no livro como conseguiu a foto: “A idéia era construir um cenário de filme de terror ou algo assim. Mas só consegui depois da quinta tentativa. Uma seqüência rompeu a escuridão desenhando veias brancas no céu. Quando olhei para a tela da câmera digital, a imagem era melhor do que eu esperava ter feito – lembra Alan, também no livro. A foto, apesar de não ter sido pautada, entusiasmou o diretor da sucursal da Folha em Brasília, que negociou a sua publicação com São Paulo. No dia seguinte, para felicidade de Alan, a fotografia foi publicada nas primeiras páginas da Folha de S.Paulo e do Correio Braziliense, que comprou a imagem da Folhapress: – A sensação de dever cumprido foi
Em 1992 a guerra civil em Angola já durava 16 anos e havia marcas da tragédia por todos os lados. Sérgio Marques registrou o choro do menino atrás do muro crivado de balas.
mais gratificante do que os vários elogios que recebi. Lambi bem a minha cria. Curioso, instigante e revelador, Caçadores de Luz — Histórias de Fotojornalismo é um autêntico manual da boa fotografia – aquela altamente jornalísti-
ca e com informação relevante. E, como observa Eliane Cantanhêde, uma lição de que para chegar lá, mais do que talento e olhar arguto, é preciso trabalhar com alma e coração, predicados que os irmãos Marques aplicam com maestria. Jornal da ABI 339 Março de 2009
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Vidas
André Az, abatido a tiros Fotógrafo de O Dia, ele foi morto durante tentativa de assalto na Avenida Brasil. No depoimento dos amigos, o reconhecimento de um jovem talento, comprovado nestes flagrantes que ele fez. André Alexandre Azevedo, 34 anos, era um dos mais produtivos repórteres fotográficos de O Dia. Na noite de 25 de fevereiro, a Avenida Brasil - via expressa em que André Az, como era chamado pelos colegas, fez alguns registros sobre o violento cotidiano da cidade - se incumbiu de colocar um ponto final numa brilhante trajetória profissional que apenas começava. Atingido por três tiros, numa tentativa de assalto quando retornava para casa após um dia de trabalho na sucursal do jornal em Nova Iguaçu, ele caiu da moto que pilotava e foi atropelado por diversos veículos que trafegavam na pista contrária. "Az foi morto no mesmo lugar onde fotografou uma série de tragédias do Rio. Acidentes, assassinatos, tudo o que infelizmente virou rotina na Avenida Brasil e no resto da cidade, cada dia menos merecedora do título de 'maravilhosa'. Punir os responsáveis, prender, pedir Justiça. Isso é o mínimo que as autoridades podem e devem fazer por nós. A vida de um jovem, apaixonado por motos e fotografia, não volta mais. É preciso compreender melhor o significado da palavra prevenção e evitar que tragédias como a morte do nosso que-
rido fotógrafo ocorram diariamente, em vez de tentar mostrar serviço quando já não há o que fazer", lamentou Marcelo Bastos, repórter nas editorias Cidade e Polícia do jornal O Dia. O sentimento geral foi de consternação da Redação de O Dia e em boa parte dos jornais do Grande Rio, onde André Az tinha verdadeiros amigos, mais do que colegas. Considerado grande companheiro nas coberturas de rua, tinha suas relações pessoais baseadas em valores como solidariedade e gentileza, herdados ainda da época de escoteiro. "Conheci o André Az quando ele fotografava para o Jornal do Brasil, na saudosa Redação da Avenida Rio Branco, 118. Era um daqueles fotógrafos que fazem o repórter sorrir na hora em que o chefe da fotografia o aponta para a missão. 'Vai você, A-Zê', dizia o chefe. A frase significava que o resultado seria uma reportagem tranqüila, com excelentes fotos e sem nenhum dos famosos atritos entre repórter e fotógrafo. Era um cara dócil, que gostava de esportes radicais. Certa vez, ele praticamente escalou o Pão de Açúcar para produzir fotos melhores. Era a cobertura de um evento publicitário, com
Vítima da violência extrema, André AZ também registrou com sua câmera muitos momentos de tensão no Rio de Janeiro, como a chegada dos tanques do exército na Cidade de Deus ou o fogo cruzado na perigosa Linha Vermelha, onde o cidadão desprotegido viveu momentos de pânico.
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noivas atravessando a linha do bondinho. Az abriu um sorriso de véspera, quando soube que isso envolveria riscos, emoções fortes, alturas, cabos de aço e escaladas", recorda Gustavo Almeida, repórter da sucursal Rio da revista IstoÉ. André trabalhava em O Dia há cerca de dois anos e passou quase um ano na sucursal da Baixada Fluminense. Antes, foi estagiário no JB e também fotógrafo da Fundação Osvaldo Cruz. Para Léo Corrêa, editor de fotografia de O Dia, André tinha uma carreira promissora, prematuramente interrompida. "Ele fazia muito bem as reportagens ligadas ao dia-a-dia da cidade e ao noticiário policial. Tinha um olhar sensí-
Duas cenas contrastantes: num manifesto de 2007 a população chorava pelos 3 mil assassinatos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro. Ao lado o Governador Sérgio Cabral tenta não levar uma bolada.
As sombras do Cristo Redentor projetadas nas nuvens evocam um momento de paz no conturbado dia-adia da cidade.
vel para detalhes das imagens. Seu futuro era brilhante". O Presidente da ABI, Maurício Azêdo, também lamentou a morte do fotógrafo e classificou o caso como de violência extrema. "A ABI lamenta mais um episódio de violência envolvendo um profissional de imprensa que trabalha e vive no Rio de Janeiro. La-
mentamos também porque ele era muito jovem, 34 anos, e com certeza poderia produzir por pelo menos mais duas décadas. A ABI apresenta aos companheiros de O Dia e à família de André Az os pêsames", declarou. André foi enterrado no dia 27, no Cemitério de Irajá. Na manhã de 1º de março dois homens suspeitos de o te-
rem assassinado foram encontrados mortos na Cidade Alta, em Cordovil. Os corpos dos dois estavam carbonizados dentro de um carro, também queimado, na Rua Iguapé. Segundo a Polícia, traficantes teriam executado os assassinos em represália às operações que a Polícia Militar fez na região, em busca dos matadores de André.
Enquanto um funcionário retira a placa do ex-deputado Álvaro Lins, cassado (ao lado), a estátua de Drumond, sem os óculos, parece se emocionar com o músico ao seu lado. Acima, no detalhe, um clique e duas paixões de André AZ: motos e esportes radicais.
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