ELIANE BRUM e as histórias que dão sentido à vida das pessoas
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PÁGINA 16
Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa
MARÇO 2012
TESOURO
Parte do Acervo Mindlin disponível na internet PÁGINA 38
HISTÓRIA
Opinião e Movimento, vozes da resistência PÁGINA 32
Millôr & Chico Anysio: O Brasil ficou mais pobre PÁGINAS 42 E 46 E EDITORIAL NA PÁGINA 2
ESPECIAL
O horror da tortura na ditadura AUTORES, VÍTIMAS, MÉTODOS E ORIGENS DAS PRÁTICAS DE SEVÍCIAS CONTRA MILHARES DE BRASILEIROS. PÁGINA 3
VIDAS JEAN GIRAUD • MILLÔR FERNANDES • ERNÂNI PIRES FERREIRA • LINDUARTE NORONHA • CHICO ANYSIO
EDITORIAL
DESTAQUES
O BRASIL ESTÁ MAIS POBRE MAURÍCIO AZÊDO NESTE MÊS DE MARÇO O BRASIL tornou-se mais pobre no campo da cultura e do humanismo com a perda de duas das suas mais altas expressões de inteligência e criatividade, ambos humoristas e críticos de costumes, Chico Anysio e Millôr Fernandes, que recolheram ao longo de suas fecundas existências o aplauso e a admiração dos seus contemporâneos. NÃO POR ACASO CHICO E MILLÔR dedicaram seus inesgotáveis talentos sobretudo à observação da vida brasileira, analisando-a à luz de exigente rigor ético. No caso de Chico, a criação de tipos como o caricato Deputado Justo Veríssimo, reprodução de oportunistas de todo jaez que infestam a representação parlamentar, difundiu e aprofundou na opinião pública o sentimento de permanente repúdio a práticas que enodoam a vida política. De seu lado, Millôr fez da irreverência uma das armas para fustigar os mesmos vícios e propugnou por concepções superiores em um dos muitos campos em que esgrimiu seu talento – ou genialidade, como entendem muitos –, o do jornalismo. Neste, sustentava e aplicou uma de suas máximas: jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados. CHICO E MILLÔR IMPRESSIONAVAM PELA versatilidade com que atuavam em diferentes campos. Chico foi ator, autor de textos para rádio, televisão e teatro, cronista, compositor de música popular, criador de personagens que ele interpretava com inigualável poder de representação e que compunham uma legião insuperável
por qualquer outro criador – na televisão, nada menos de 209 tipos. Millôr revelou o mesmo talento múltiplo, como jornalista, escritor, dramaturgo, desenhista, cartunista,tradutor, artista gráfico. Em várias dessas áreas, era um mestre; um grande mestre. Eram ambos superdotados, seres de excepcional qualificação. A TANTAS VIRTUDES, SE ESTAS NÃO bastassem, Chico e Millôr acrescentavam outra dimensão em que manifestavam apreço e carinho por companheiros de profissão: a solidariedade. Enquanto desfrutou de poder de sugestão ou de influência na Rede Globo de Televisão, Chico Anysio fez da sua Escolinha do Professor Raimundo uma forma de assegurar oportunidades de trabalho a profissionais que tinham na comédia o seu sustento, retirando-os da marginalização a que não poucos deles estavam condenados. Millôr não vacilou um momento quando a ditadura militar prendeu praticamente toda a Redação de O Pasquim, tentando abrir caminho para o fechamento de uma das publicações mais importantes da luta pelo retorno do País ao Estado de Direito. Com Henfil e Marta Alencar, Millôr comandou a feitura do jornal, apoiados os três na solidariedade de outros companheiros de profissão, e assim impediu que a ditadura silenciasse uma voz libertária. TUDO ISSO GANHOU RELEVO COM o passamento de ambos. Desde 23 e 27 de março o Brasil empobreceu em talento, criatividade e capacidade de doação.
EDUARDO BAPTISTÃO. CARICATURA PUBLICADA NO LIVRO É MENTIRA, CHICO?, DE 2007.
03 E SPECIAL - Os horrores da tortura nos porões da ditadura ○
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11 M EMÓRIA - Copacabana, por Rodolfo Konder ○
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12 H OMENAGEM - A consagração de Dines ○
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14 CORRUPÇÃO - Indecência em evidência ○
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16 DEPOIMENTO - Eliane Brum, a repórter do cotidiano ○
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30 C INEMA - Joaquim Pedro de Andrade: “Só me interessa o Brasil” ○
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32 H ISTÓRIA - Uma lição de imprensa ○
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35 E VENTO - Exposição celebra pioneiros dos quadrinhos brasileiros ○
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36 HOMENAGEM - Bastos Tigre, uma fera de múltiplos talentos ○
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37 L IVROS - O inferno de Zahra ○
O OLHAR DE A MARILDO
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10 IRREVERÊNCIAS - A mulher na imprensa moderna, por Martha Alencar
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38 DOCUMENTAÇÃO - O vírus do amor à leitura chega aos computadores Publicado no jornal A Gazeta, de Vitória (ES) em 29 de março.
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40 L IVROS - Uma aula literária sobre Allan Poe ○
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SEÇÕES 130 A CONTECEU NA ABI Assembléia-Geral de 2012 será em 26 e 27 de abril ○
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L IBERDADE DE I MPRENSA 26 Seis anos depois, Collor vence Veja na Justiça ○
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27 A Riotur maltratou os jornalistas no Carnaval ○
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27 Requião leva o Senado a regular direito de resposta ○
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28 D IREITOS H UMANOS Manifesto denuncia torturadores ○
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V IDAS 41 Jean Giraud ○
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42 Millôr Fernandes ○
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44 Ernâni Pires Ferreira ○
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45 Linduarte Noronha ○
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46 Chico Anysio ○
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A GARAGEM HERMÉTICA, DE MOEBIUS.
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JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
ESPECIAL
OS HORRORES DA TORTURA NOS PORÕES DA DITADURA As motivações políticas, os métodos de violência empregados, os nomes de vítimas e de torturadores, a formação e o treinamento dos profissionais do terror, a cobrança de abertura dos arquivos do regime militar. POR ARCÍRIO GOUVÊA
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[...] Fui conduzida para uma casa [...] em Petrópolis (Casa da Morte). [...] O doutor Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. [...] Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o doutor Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, doutor Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal ódio que sentia pelos ‘terroristas’. [...] Alguns dias depois, [...] apareceu o doutor Teixeira, oferecendo-me uma saída ‘humana’: o suicídio. [...] Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais viver. Entretanto, o doutor Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôs-me então que eu me atirasse embaixo de um ônibus. [...] No momento em que deveria atirarme sob as rodas de um ônibus, agachei-me e segurei as pernas de um deles, chorando e gritando. [...] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ‘telefones’, palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada. [...] O ‘Márcio’ invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se o ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, as mais grosseiras [...].” Inês Etienne Romeu, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária-VPR, era bancária quando foi presa na capital de São Paulo em 5 de maio de 1971. Atualmente vive em Belo Horizonte, MG. Recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2009, na categoria Direito à Memória e à Verdade.
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Estávamos na nossa casa em Atibaia. Éramos eu, meu marido e meus filhos. A Polícia cercou a casa, arrebentou o portão e bateu na porta. Meu marido estava dormindo. Mandaram chamá-lo e queriam levá-lo para prestar esclarecimentos, mas ele pegou um fuzil e disse que não ia. Quando ele saiu na porta, a bala já bateu no peito dele, mas ele ainda estava vivo. Quando caiu, deram trinta, quarenta tiros no corpo dele. O último foi na cabeça e todos os homens entraram na casa. Eles diziam: ‘Mata ela e os filhos dela, mata essa puta’. Saquearam a casa toda. Lá era um aparelho, tinha todo o material da organização e muitas armas. Quando eu cheguei na Delegacia, o pau comeu solto: arrancaram os meninos de mim, me jogaram no chão, pisaram em cima de mim, eu rolava no chão toda ensangüentada. Aí, começaram a vir os homens da Oban. Era soco, pontapé, batiam no meu quadril. Apanhei tanto na boca que a dentadura enganchou na gengiva. Minha boca ficou toda inchada, cheia de dentes JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
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ESPECIAL OS HORRORES DA TORTURA NOS PORÕES DA DITADURA
quebrados. De madrugada, me levaram para São Paulo, para a Operação Bandeirante, onde eu fiquei 23 dias apanhando. Era choque, choque, choque todo santo dia. Eu me urinava toda, e eles berravam: ‘Essa mulher tá podre, tira essa mulher fedorenta daqui’. Minha vagina ficou toda arrebentada por causa dos choques. Eu tive de fazer uma operação em Cuba, onde levei noventa pontos. Meu útero e minha bexiga ficaram para fora, eu estou viva por um milagre. Também levei muita porrada, muito soco na bunda. Fiquei completamente arrebentada, foi muito sofrimento. Nesses dias, eu não conseguia comer, porque, além da comida parecer ‘resto’, cheia de ponta de cigarro e palito, eu estava com a boca inchada. Então, só tomava uma xícara de café. Tinha também xingamento dos nomes mais pesados. De vez em quando, vinham e davam uma bofetada na nossa cara.” Damaris Lucena, também ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária, era feirante quando foi presa em 20 de fevereiro de 1970, em Atibaia, São Paulo. Hoje vive na capital paulista.
ESSES QUATRO DEPOIMENTOS DE MULHERES MILITANTES DE MOVIMENTOS E ENTIDADES DE ENFRENTAMENTO AO GOLPE MILITAR , QUE VIGOROU NO B RASIL DE
1964 A 1985, DEFINEM MINUCIOSAMENTE A BARBÁRIE , A BRUTALIDADE ACIMA DE QUALQUER LÓGICA HUMANA E QUE DESAFIA O ENREDO MAIS SURREAL DE UM FILME DE TERROR , IMPOSTA AO P AÍS NESSE PERÍODO DA QUAL TRATAREMOS NESTA REPORTAGEM .
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Um dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu localizo como sendo um quartel do Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha filha de um ano e dez meses, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando, e ameaçavam dar choque nela. O torturador era o Mangabeira [codinome do escrivão de Polícia de nome Gaeta] junto dele tinha uma criança de três anos que ele dizia ser sua filha. Hoje, na minha compreensão feminista, eu entendo que eles torturavam as crianças na frente das mulheres achando que nos desmontaríamos por causa da maternidade. Fui presa e levada para a Oban. Sofri torturas no pau-de-arara, na ‘cadeira do dragão’, levei muito soco-inglês, fui pisoteada por botas, tive três dentes quebrados. Éramos torturadas completamente nuas. Com o choque, você evacua, urina, menstrua. Todos os seus excrementos saem. A tortura era feita sob xingamentos como ‘vaca’, ‘puta’, ‘galinha’, ‘mãe puta’, ‘você dá para todo mundo’... Algumas mulheres sofreram toda sorte de violência sexual, foram estupradas. Eles também colocaram na minha vagina um cabo de vassoura com um fio aberto enrolado. E deram choque. O objetivo deles era destruir a sexualidade, o desejo, a auto-estima do ser humano.” Eleonora Menicucci de Oliveira, ex-militante do Partido Operário ComunistaPoc, era estudante de Sociologia e professora do ensino fundamental quando foi presa, em 11 de julho de 1971, em São Paulo. Era Pró-Reitora de Extensão e Cultura e professora titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo-Unifesp quando foi nomeada Ministra de Políticas para Mulheres pela Presidente Dilma Rousseff.
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Fomos levados diretamente para a Oban. Tiraram o César e o [Carlos Nicolau] Danielli do carro dando coronhadas, batendo. Eu vi que quem comandava a operação do alto da escada era o Ustra [coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra]. Subi dois degraus e disse: ‘Isso que vocês estão fazendo é um absurdo’. Ele disse: ‘Foda-se, sua terrorista’, e bateu no meu rosto. Eu rolei no pátio. Aí, fui agarrada e arrastada para dentro. A primeira forma de torturar foi me arrancar a roupa. Lembro-me que ainda tentava impedir que tirassem a minha calcinha, que acabou sendo rasgada. Começaram com choque elétrico e dando socos na minha cara. Com tanto choque e soco, teve uma hora que eu apaguei. Quando recobrei a consciência, estava deitada, nua, numa cama de lona com um cara em cima de mim, esfregando o meu seio. Era o Mangabeira [codinome do escrivão de Polícia de nome Gaeta], um torturador de lá. A impressão que eu tinha é de que estava sendo estuprada. Aí começaram novas torturas. Me amarraram na ‘cadeira do dragão’, nua, e me deram choque no ânus, na vagina, no umbigo, no seio, na boca, no ouvido. Fiquei nessa cadeira, nua, e os caras se esfregavam em mim, se masturbavam em cima de mim. A gente sentia muita sede e, quando eles davam água, estava com sal. Eles punham sal para você sentir mais sede ainda. Depois fui para o pau-de-arara. Eles jogavam Coca-Cola no nariz. Você ficava nua como frango no açougue, e eles espetando seu pé, suas nádegas, falando que era o soro da verdade. Mas com certeza a pior tortura foi ver meus filhos entrando na sala quando eu estava na ‘cadeira do dragão’. Eu estava nua, toda urinada por conta dos choques. Quando me viu, a Janaína perguntou: ‘Mãe, por que você está azul e o pai verde?’. O Edson disse: ‘Ah, mãe, aqui a gente fica azul, né?’. Eles também me diziam que iam matar as crianças. Chegaram a falar que a Janaína já estava morta dentro de um caixão.” Maria Amélia de Almeida Teles, exmilitante do Partido Comunista do Brasil-PCdoB, era professora de educação artística quando foi presa em 28 de dezembro de 1972, em São Paulo, SP. Hoje, vive na mesma cidade, é diretora da União de Mulheres de São Paulo e integra a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2008, na categoria Defensores de Direitos Humanos.
O SÉCULO XX FICOU MARCADO COMO O SÉCULO DOS GENOCÍDIOS. A PRESENÇA DE REGIMES OPRESSIVOS E TOTALITÁRIOS, QUE SE MANTIVERAM ATRAVÉS DA FORÇA BRUTA, ORIGINOU OS MÉTODOS CIENTÍFICOS DE TORTURA, DISSEMINADOS POR TODAS AS NAÇÕES DO PLANETA. Quem pensa que a tortura é fruto do século que passou engana-se: desde os primórdios da História universal o homem convive com ela. Dos antigos egípcios aos mesopotâmios, da Inquisição medieval aos regimes totalitaristas nazistas, fascistas e stalinistas; a tortura foi uma forma que se desenvolveu para extrair depoimentos de oposicionistas, intimidar a população e consolidar os governos ilegítimos, construídos sem a participação ou o consentimento popular. Duas prisões muito conhecidas encaixam-se nessa análise. Uma é a prisão de Abu Ghraib, um complexo penitenciário com área de 1,15 quilômetro quadrado, situado em Abu Ghraib, cidade iraquiana, a 32 quilômetros a Oeste de Bagdá. Construída pela Inglaterra quando o Iraque ainda lhe pertencia, foi local de torturas em diferentes graus e em diferentes momentos: à época da ocupação britânica, sob o Governo de Saddam Hussein e, mais recentemente, sob a ocupação da coalizão Estados Unidos-Reino Unido, quando se tornou internacionalmente conhecida como lugar de torturas em prisioneiros iraquianos. O outro local é a Prisão de Guantânamo (Guantánamo Bay Detention Camp, foto), dos Estados Unidos, incrustada na Baía de Guantânamo, em Cuba. Essa base abriga três campos de detenção: Camp Delta, construído em 2002 e composto de cinco outros campos (1, 2, 3, 4 e Camp Echo), Camp Iguana e Camp XRay, atualmente fechado. Para lá foram levados e torturados os prisioneiros da Guerra do Vietnã, do Iraque e do Afeganistão. Por sua brutalidade e por ferir todas as resoluções da Convenção de Genebra, a Onu e várias entidades de defesa dos direitos humanos espalhadas pelo mundo exigem o seu fechamento. No Brasil do século XX, a tortura foi costume nos dois maiores períodos ditatoriais que o País viveu, na época do Estado Novo (1937-1945) e no regime militar (1964-1985), sendo institucionalizada neste último período, banalizando-se e revelando-se como um método eficaz de garantir um Estado de ilegalidade. Como dizem muitas mães de presos políticos
REUTERS/RANDALL MIKKELSEN
odiosas e é também uma das mais freqüentes no Brasil. Utilizada em todo o território nacional por agentes públicos das forças de segurança como instrumento de coação para obter confissões forçadas, chega a ser considerada por analistas como o principal mecanismo de investigação policial no País. Também é largamente aplicada como meio de punição e imposição de disciplina em presídios e em centros de cumprimento de medidas socioeducativas para adolescentes, além de meio de extorsão econômica aplicada contra suspeitos e autores de crimes. No princípio da Guerra Fria, a doutrina francesa do “inimigo interno” é adotada pelos norte-americanos. O inimigo não era mais uma nação expansionista, como na época da Segunda Guerra Mundial, mas o cidadão invisível, que habitava o seu país, mas era contra o regime nele estabelecido. O inimigo era todo aquele cidadão que se opunha aos princípios da democracia desenhada pelos americanos, da sua visão de “mundo livre”, hostil ao mundo socialista. Oficialmente, os inimigos internos do regime militar no período de intensificação total da tortura, de 1969 a 1974, eram os guerrilheiros e revolucionários de esquerda, vistos como terroristas, e que militavam principalmente no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8); Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (Var-Palmares); Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que promoveu a Guerrilha do Araguaia; Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada por Carlos Lamarca, que se tornou ao lado de Carlos Marighella um dos principais inimigos do regime; a Ação Libertadora Nacional (ALN), que se destacou na guerrilha urbana; e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), combalido por sucessivas divisões que deram origem à maioria dos grupos de resistência à ditadura mencionados. Das organizações citadas, cinco a seis mil pessoas participaram da luta armada, um número insignificante quando o País chegava a 100 milhões de habitantes, não justificando a máquina mortífera que as Polícias e as Forças Armadas criaram, sustentadas na aplicação da tortura como método de repressão.
Cecília Maria Bouças Coimbra, expresa política, atual presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, que ela ajudou a fundar, é uma das grandes batalhadoras pela abertura dos arquivos do regime militar no Brasil, para identificação e responsabilização dos autores dos crimes nos porões da ditadura. Em um relato emocionado e em muitos momentos repassado de indignação, ela aborda os aspectos dessa delicada questão, principalmente depois dos manifestos de associados do Clube Militar criticando a Presidente Dilma Roussef e a Comissão da Verdade e contendo centenas de assinaturas de apoio e de certa forma deixando clara sua oposição à abertura das gavetas e pastas contendo os documentos do horror. Como pode se ver no significativo título do segundo manifesto: “Eles que venham. Por aqui não passarão!” Diz Cecília Coimbra: “O projeto ‘Brasil Nunca Mais’, elaborado pela Arquidiocese de São Paulo, segundo orientação de Dom Paulo Evaristo Arns, lançado pela Editora Vozes, em 1985, justamente o ano em que o Grupo
Tortura Nunca Mais estava se formando, abrange o período que vai de 1964 a 1969. Todos os processos e depoimentos de presos pelo golpe militar foram microfilmados clandestinamente por um grupo de advogados ligados à Arquidiocese, em um período de seis anos. A tática era a seguinte, veja você o heroísmo e bravura desse pessoal: eles faziam pedidos de vista de processos que se encontravam no Superior Tribunal Militar e com essa estratégia os levavam para a Arquidiocese, onde os copiavam. Isto é, documentação da própria repressão. Toda essa documentação resultou numa obra de 12 volumes, que não deixa escapar nada, absolutamente nada. Todos os horrores do golpe militar estão contidos ali. Dentre esses 12 volumes, há um com o título ‘Os Funcionários’ e nele constam 27 mil nomes, entre civis e militares, de pessoas vinculadas ao aparato da repressão e tortura. Porém, se você se assombrou com esses números, saiba que eles foram muito maiores. Dentre esses nomes, estão aqueles que estavam ligados diretamente à prática da tortura,
GABRIEL DE PAIVA / AGÊNCIA O GLOBO
desaparecidos, é a mais hedionda e medonha forma de flagelar um ser humano, pois enquanto esses corpos não aparecerem continuam sendo uma fonte de onde brotam a dor, a angústia, o desespero e a saudade para quem fica e não pode enterrar seus filhos, amigos, parentes. É uma forma sórdida e covarde, usada propositalmente pelos torturadores para prolongar suas horrendas e ultrajantes barbáries. Durante a ditadura militar, as maiores atrocidades foram cometidas contra os que se opunham ao regime. Neste período, os estudantes, os intelectuais e os engajados políticos foram as principais vítimas do sistema que contestavam. Em plena Guerra Fria, a elite brasileira posicionou-se ao lado dos Estados Unidos e da direita ideológica. Comunista passou a ser tratado como terrorista. Combatê-los era, segundo a visão do regime, defender a Pátria de homens que comiam criancinhas, pregavam o ateísmo e destruíam as igrejas e os conceitos familiares. No engodo de proteger o Brasil da “ameaça comunista”, instalou-se uma ditadura, que para manter os princípios da caserna ortodoxa calou, torturou e matou sem o menor constrangimento centenas de brasileiros. O que torna essa prática mais abominável e escabrosa é justamente ter sido praticada por homens pagos pelo Estado brasileiro para, segundo a Constituição, defender e guardar o território nacional e seu povo de qualquer ameaça. Foram brasileiros torturando brasileiros atuando em órgãos pertencentes ao Governo brasileiro, sustentado com impostos pagos por brasileiros. Insisti no “brasileiro” propositalmente para realçar e dar o real significado desse deprimente cenário. Vale a pena por isso contar um episódio. No dia da Proclamação da República, encarregado da segurança do Ministério do Visconde de Ouro Preto, Floriano Peixoto se recusou a atacar os revoltosos, desobedecendo uma ordem dada pelo Visconde, que retrucou: “Mas na Guerra do Paraguai você não agiu assim?”. “Mas lá (no Paraguai) tínhamos em frente inimigos e aqui somos todos brasileiros!”, respondeu Floriano. De todas as violações dos direitos humanos, a tortura é universalmente reconhecida como uma das mais
CECÍLIA COIMBRA: A REPRESSÃO CONTAVA COM 27 MIL AGENTES
JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
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ESPECIAL OS HORRORES DA TORTURA NOS PORÕES DA DITADURA
pessoas que simplesmente tiveram trabalho burocrático, como médicos legistas ou testemunhas de óbito, e outras que eram informantes ou participavam do serviço de inteligência dos diversos organismos ligados aos militares, como o Doi-Codi, o Dops, o Cenimar. Há nomes de agentes que trabalhavam na repressão e tortura e não constam dessa lista, por quê? Por que uns constam e outros não?, como o Senhor Marival Chaves, que hoje posa de bom moço? Por que todo o conteúdo dos livros são documentos de relatos de ex-presos políticos e os nomes que não constam dos volumes é porque não foram denunciados na época. Não é porque não estivessem envolvidos, é porque não eram conhecidos pelos torturados, pelos depoentes, simplesmente isso. Porque trabalhavam em setores em que não apareciam para os presos; eram fantasmas agindo no escuro. E outro fator importantíssimo de nomes não aparecerem: é que são relatos feitos por presos em Auditorias Militares, havia o medo, muito medo, em denunciar torturadores ou quem quer que fosse. Os militares envolvidos na repressão, e entram aí também os policiais civis, sabiam os nomes dos familiares dos presos, onde eles moravam e tudo mais. Então, na hora dos depoimentos, eles omitiam os nomes de alguns torturadores para preservar sua vida, afinal, e a de seus entes queridos. Somente poucos companheiros, cerca de 1.800, tiveram a coragem e a intrepidez de citar os nomes de seus torturadores nas Auditorias Militares. Até porque sabiam que se denunciassem a tortura voltavam para ela. No entanto, e veja outra barbaridade: alguns juízes tomavam nota, outros se negavam a anotar nomes. E os fatores vão-se acumulando. Veja outro: centenas de presos políticos nem chegavam a ir a uma Auditoria Militar, como foi o meu caso. E não indo a uma Auditoria Militar como é que eles iriam denunciar seus torturadores? Não havia outra opção. Diante de todos esses fatos, eu hoje ouso sugerir que o número de pessoas ligadas à repressão e tortura na ditadura militar pode ter sido o dobro. Esses números do ‘Brasil Nunca Mais’ são a melhor radiografia das atrocidades da ditadura militar. É o maior documento desse período legado ao povo brasileiro; não há nada igual. É fruto de um dos maiores homens deste País, chamado Dom Paulo Evaristo Arns. Foram editados apenas 27 exemplares, espalhados pelo Brasil e o mundo. No Rio de Janeiro só duas entidades têm: a OAB e nós do Grupo Tortura Nunca Mais. São dois originais, um estava na Biblioteca Edgar Leunroth, da Unicamp, mas parece que foi levado para o Arquivo Público do Estado de São Paulo para ser digitalizado, e outro, logicamente, na Arquidiocese de São Paulo. Tudo que ali consta é documentação oficial, tirada dos autos dos processos, não tem contestação, não tem contra-argumentação. E esse blablablá dos clubes militares e dos generais de pijama de que não houve tortura, isso ou aquilo e eles foram uns 6
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anjinhos é posto por terra diante dessa documentação, e ponto final. É por isso que eles estão esperneando, porque sabem que crimes bárbaros foram cometidos e não querem sua apuração, alegando que o Brasil estava em guerra. Que guerra? Só um idiota acredita nisso. Entretanto, há ainda uma documentação que estava em uma biblioteca nos Estados Unidos, contendo muitas informações importantes e foi levada para o Arquivo Público do Estado de São Paulo e no momento também está sendo digitalizada. Foi enviada para lá também por Dom Evaristo Arns, por medida de segurança. Veja bem, a publicação desses arquivos para que o povo brasileiro tome conhecimento deles e os leia é uma das maiores façanhas que se pode fazer em nome da democracia. Por coincidência, me recordo agora de uma matéria que você mesmo fez com o querido Carlos Heitor Cony, também para o Jornal da ABI, na qual ele diz que o maior ato de democracia neste País será a abertura dos arquivos da ditadura. Nós, do Grupo Tortura Nunca Mais, fechamos totalmente com a posição dele. É fundamental que a sociedade conheça a nossa História e a História de um dos momentos mais tenebrosos de nossa trajetória como Nação. O conhecimento desses fatos é mais importante até do que a punição aos torturadores. Divulgar o que esses monstros fizeram e os responsabilizar por isso diante da sociedade pra mim já é o bastante. Se eles vão ser punidos ou não diante da grandiosidade em que se transformaria essa medida é café pequeno, é irrelevante, companheiro.
NÃO HÁ DINHEIRO NO MUNDO QUE PAGUE A LAVAGEM DE NOSSA HONRA,
de nossa dignidade, como a divulgação dessas atrocidades para que nossos filhos, nossos netos e todas as gerações que virão saibam que houve um tempo que se comparou aos horrores da escravidão. E mesmo hoje, gerações e mais gerações depois dos navios negreiros, também sabemos que existiu e o abominamos. É preciso tirar do breu e levar à luz os absurdos que foram feitos, as perversidades que foram perpetradas em nome da segurança nacional. Em nome da segurança nacional se levou a insegurança, o medo e o esfacelamento a milhares de pessoas e lares. Em nome da segurança nacional, se matou, seqüestrou, torturou, destruiu e martirizou sem nenhum remorso, sem movimentar um músculo de compaixão, no seio complacente da impunidade. Se embebedou compulsivamente no sadismo e na degradação da miséria humana. Quando os torturadores não tinham nada a fazer durante a madrugada eles chamavam as mulheres pra conversar, que era uma forma de aterrorizar, de tentar jogar umas contra as outras. Eles diziam: ‘Vocês confiam em todas que estão lá na cela? De repente, tem alguma infiltrada lá’. E esse terror não acaba nunca. Até hoje ele caminha silencioso atrás de nós, como uma sombra desse passado, que insiste em
“É POR ISSO QUE ELES ESTÃO ESPERNEANDO, PORQUE SABEM QUE CRIMES BÁRBAROS FORAM COMETIDOS E NÃO QUEREM SUA APURAÇÃO, ALEGANDO QUE O BRASIL ESTAVA EM GUERRA. QUE GUERRA? SÓ UM IDIOTA ACREDITA NISSO.”
não morrer. Terror que se derrama sobre nós, os presos torturados e nossos familiares e amigos. E não é para haver punição a tamanha ferocidade? Foi apenas uma brincadeirinha de esconde-esconde? Inocente e lúdica, como esses cínicos oficiais que estão elaborando esses manifestos tentam transmitir? Há amigos meus que usam implantes para substituir ossos quebrados, eu mesmo uso e hoje eu tenho até dificuldade em dormir. Outros perderam rim, baço, olho e por aí vai. Quantos e quantos hoje padecem de pressão alta, câncer e toda sorte de seqüelas em função das torturas? Mal de Parkinson ou Alzheimer é comum. Sem contar as mãezinhas que perderam seus filhos, que os viram sofrer. Muitas que os viram serem torturados na sua frente. Filhos que perderam seus pais. Brasileiros torturando brasileiros, não existe ato mais mesquinho e inglório. E deixa logo eu me corrigir: qualquer prática de tortura seja em qualquer cultura e etnia é horrenda e abominável. Estou vendo aí na sua pauta que você vai me perguntar sobre o desaparecimento dos arquivos. Digo logo em alto e bom som: é mentira. Eles não desapareceram coisa nenhuma. Esse Marival Chaves mente quando diz que vários arquivos sumiram. Você vê que de vez em quando aparece um arquivozinho sendo divulgado na imprensa. E sabemos também que alguns comandantes militares levavam esses arquivos pra casa. Isso é roubo. Isso não é arquivo pessoal de ninguém. A gente tem que ter coragem de falar, já que o Governo brasileiro não teve. Dona Dilma Roussef, quando era Chefe da Casa Civil, não teve peito de dizer isso. Quando os primeiros arquivos do antigo SNI apareceram e foram entregues ao Arquivo Nacional, ela foi pra televisão pedir, por favor, para que quem tivesse arquivo em sua residência o enviasse ao Arquivo Nacional. Aquilo foi um recado aos militares, pedindo, encarecidamente, que eles colaborassem. Ora, é deprimente, ela não tinha que pedir, ela tinha que exigir. Ah, porque existem pessoas que têm arquivos pessoais, isso não é arquivo pessoal coisa nenhuma, isso é arquivo roubado. Isso é documento do Estado brasileiro, isso não é brinquedo de colecionador. Esses documentos dizem respeito à Nação brasileira. Não são propriedade particular de ninguém, são propriedade do povo brasileiro. E o sumiço desses documentos é dilapidação do bem público. Nós sabemos que esses arquivos existem e o papel desse seu Marival Chaves é ficar plantando contra-informação por aí. Nós temos que ter muito cuidado em
aceitar certas declarações do pessoal que pertenceu ao aparato de repressão. Esse Marival foi responsável por muitas torturas, porque ele era analista de informação do Doi-Codi. Era ele quem dizia: ‘Esse fez isso, esse fez aquilo’. A participação dele era fundamental nos meandros que levavam à tortura. É preciso que fique bem claro que não era qualquer um que entrava nesse esquema repressivo. Então, ele não está dizendo tudo o que sabe. Mesmo o soldadinho que prestava serviço militar na Polícia do Exército aqui do Rio de Janeiro — quem foi preso no Doi-Codi sabe disso — não era qualquer um. Os Doi-Codi foram criados em 1970, no Governo Médici, e tinham total autonomia. Foram uma forma muito inteligente de a repressão se organizar. Foi a unificação inteligente de todo o serviço de informação, sob a direção do Exército. Unificaram-se as informações da Marinha, Exército, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros, Polícia Civil, Polícia Militar, Polícia Federal. Isso já dá uma idéia de quem era o Senhor Marival Chaves, um agente de confiança e de destaque na organização. Eu fui presa em agosto de 1970, em minha casa aqui no Méier, um bairro do Rio. Minha casa foi cercada. Pegaram um documento, que não estava assinado e me levaram para o Dops. Depois de dois dias de interrogatório onde eu dizia: ‘Não sei que documento é esse, não sei que documento é esse’, me encaminharam para o Doi-Codi. Quando eu desço pra ser interrogada, em 15 minutos eles já sabiam de onde vinha aquele documento. Era um documento ligado ao seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, porque eu havia dado guarida a alguns companheiros que participaram do seqüestro. Então, o nível de competência desses centros de informação era de um requinte escandaloso. Bem, com relação a você me perguntar sobre o treinamento dado por militares norte-americanos a oficiais brasileiros sobre práticas de tortura, só tenho a dizer que foi tudo verdadeiro, tudo real. Não foi fantasia e nem história da carochinha, inclusive com a participação de militares ingleses também, porque onde um vai você sabe que o outro vai atrás. Existe um livro da Fundação Getúlio Vargas com depoimentos de militares que explica bem isso. Eles criaram a Escola das Américas e essa entidade se especializou em formar em tortura tanto militares quanto civis vinculados às ditaduras da América Latina.. Nós temos um vídeo com depoimentos que mostra isso, chamado Memória para Uso Diário. A Escola das Américas funcionava primeiramente no Panamá e hoje funciona na Geórgia, no Forte Benning, nos Estados Unidos. Há um movimento intenso por lá, há anos, pelo fechamento dessa escola. E sabemos que alguns países ainda mandam gente pra lá e seria interessante saber se o Brasil continua enviando pessoal para esse tipo de treinamento escabroso. O vídeo tem até o episódio do Brigadeiro João Paulo Moreira
“ONDE ESTÁ AQUELA CORAGEM INDÔMITA QUE HAVIA NOS TEMPOS EM QUE ELES AGIAM ACIMA DA LEI E DA ORDEM? QUE PELO MENOS TENHAM O BRIO, A DIGNIDADE, A LISURA DE DIZER: ‘EU FIZ MESMO’. VOCÊ NÃO VÊ AQUELA FOTO FANTÁSTICA DO DEPOIMENTO DA DILMA, NO IPM, EM QUE ELA TEM UMA POSTURA ALTRUÍSTA E ALTIVA, ENQUANTO ELES, RIDICULAMENTE, PROCURAM ESCONDER OS ROSTOS?”
REPRODUÇÃO
adoras, mas existiram, só nós não a tínhamos. O exemplo da África do Sul é maravilhoso e gosto muito de usar. Lá eles só anistiaram aquelas pessoas que publicamente confessaram os crimes que cometeram e é isso que a gente quer aqui. A gente quer que essas pessoas tirem as suas caras das sombras, porque nunca aparecem, são pouquíssimos os que aparecem e assim mesmo cheios de subterfúgios e digam o que fizeram. Que crimes cometeram. Que violências e arbitrariedades foram cometidas em nome da segurança nacional.
ESSA COMISSÃO DA VERDADE, NOS MOLDES EM QUE ESTÁ ORGANIZADA,
Burnier, numa tentativa de entrevista que o Tonico Ferreira, da TV Globo, fez com ele, em que ele procura negar sua estada lá e o treinamento de que participou na Escola das Américas. Até hoje ele não nos suporta e tem um ódio da gente danado. Você veja que cena: o Tonico tenta falar com o Burnier e o Burnier bate o telefone na cara dele. Ou seja, eles fazem a m... e depois covardemente não assumem e ficam procurando se esconder e posar de bons moços. Onde está aquela coragem indômita que havia nos tempos em que eles agiam acima da lei e da ordem? Que pelo menos tenham o brio, a dignidade, a lisura de dizer: ‘Eu fiz mesmo’. Você não vê aquela foto fantástica do depoimento da Dilma, no IPM, em que ela tem uma postura altruísta e altiva, enquanto eles, ridiculamente, procuram esconder os rostos? Desde o final da Segunda Guerra Mundial se criou nos Estados Unidos essa teoria da doutrina de segurança nacional, com todos os itens a ela agregados, sendo a tortura um deles. É quando começa a nascer, a tomar corpo, essa imagem do inimigo interno. Então, isso foi sendo forjado pelos Estados Unidos e aplicado segundo seu bel-prazer em todos os países que eles consideravam em que poderia surgir uma forma de governo contrária a deles e essa forma de governo claro que era a dos comunistas. Comunismo era uma palavra maldita para eles, pior até do que o diabo, pra eles que têm formação protestante. E você sabe que o protestante fala mais no demônio do que no próprio Deus.
No CPDoc, da Fundação Getúlio Vargas, há uma pesquisa feita por eles com depoimentos de militares de que se fazia também treinamento de torturadores brasileiros na Inglaterra. E vou lhe dizer uma coisa importante, que pouca gente sabe: na luta que o governo inglês travou contra o IRA, nos anos 1960 e 1970, alguns militares brasileiros estavam presentes nas sessões de tortura. Nessa pesquisa há inclusive um depoimento do General Ernesto Geisel dizendo que a tortura era necessária. E se você me perguntar o que acho da Comissão da Verdade, digo que ela poderia se chamar de Comissão de Conciliação. As forças políticas que respaldaram o golpe militar, pela própria política lenta, gradual e segura feita pelo Geisel e Golbery, garantiram isso. Garantiram que essas forças que respaldaram a ditadura continuem ainda ativas no cenário político brasileiro. Veja bem, o netinho do ACM está aí, o Marco Maciel, o Maluf, o Sarney, o Collor. As forças políticas, não só militares, mas civis, têm um poder muito abrangente e são influentes. Não esqueçamos que muitos empresários deram grana, dinheiro, para bancar o golpe. Há um filme, nas locadoras pode ser encontrado, chamado Cidadão Boilsen, que mostra como esse industrial dinamarquês, radicado em São Paulo, colaborava financeiramente com a ditadura. A Comissão da Verdade era uma exigência dos movimentos ligados aos direitos humanos, porque em todos os países que passaram por ditaduras como a nossa elas existem. Em alguns países, mais contundentes; em outros, mais concili-
não chegará a nada, não vai apurar nada. Ela só saiu porque o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Vou fazer um pequeno histórico para você: no dia 10 dezembro de 2009, Dia Internacional dos Direitos Humanos, o Terceiro Plano de Direitos Humanos é anunciado com grande estardalhaço e tudo mais. Uma semana depois, Nélson Jobim, que era o Ministro da Defesa, e os três comandantes militares apresentam uma carta de demissão se a Comissão da Verdade não fosse revista. E naquela época nós já fazíamos contestação a essa Comissão da Verdade. Porque os integrantes da Comissão da Verdade seriam escolhidos pelos ministros e somente um pela sociedade. Pressionado, o Presidente Lula voltou atrás, pois o Plano de Direitos Humanos abrangia temas polêmicos como o aborto, e aí a Igreja Católica entrou em cena; havia a questão da imprensa e os meios de comunicação começaram a chiar; existia a questão da terra e agora seria a vez dos ruralistas botarem a boca no trombone. Então, em maio de 2010 é anunciado novamente o plano. Nesta segunda versão há um recuo. A proposta de Comissão da Verdade que foi votada agora é indecente, perversa. Ela coloca sete pessoas na Comissão, escolhidas diretamente pelo Presidente da República, para, num prazo de dois anos, pesquisar o período que vai de 1946 a 1988. No entanto, as reuniões serão sigilosas e o material poderá ser disponibilizado à consulta pública ou não. Ou seja, as pessoas que serão ouvidas continuarão sem mostrar a cara, agora protegidas oficialmente com seus depoimentos sigilosos e secretos; essas pessoas, que cometeram crimes contra a Humanidade, não terão seus nomes divulgados, sequer serão responsabilizadas criminalmente. O que se pretendia quando se pensou na criação da Comissão da Verdade é que essas pessoas fossem responsabilizadas por seus crimes, não criminalmente, mas eticamente, para que a sociedade saiba quem elas foram e as julgue segundo sua ótica. No entanto, mais do que nunca as
forças conservadoras mostraram que estão aí presentes e atentas: a grande imprensa, os ruralistas, a Igreja Católica, os partidos políticos, os empresários, interesses estrangeiros e das muitas forças que tiveram comprometimento com a ditadura e que não interessa que essa História seja toda contada. Pode contar apenas até um certo limite, dali não pode passar. Acho lamentável a participação do José Genoíno (que agora é o articulador da Comissão junto aos militares) e da Presidente Dilma Roussef. A Dilma esteve presa como eu, viu as marcas da tortura, viu os horrores da mais baixa e degradante condição a que pode chegar a espécie humana. Ela viu companheiros que não andavam mais, eram carregados. Eu fui testemunha da morte do Eduardo Leite, o Bacuri, que foi barbaramente torturado por três meses, no final desse tempo já estava cego e nem falava. Essas feridas nunca saram, não há nem cicatrizes, porque a carne vive sempre dilacerada. Essas marcas estão em mim, estão no Maurício Azêdo, estão no Cony e estão na Dilma e no Genoíno. E eu esperava, e hoje já não espero mais, que essas marcas invisíveis e ao mesmo tempo doloridamente visíveis fossem mais fortes nela que os acordos políticos (nesse momento, bastante emocionada e chorando muito, Cecília Coimbra parou a entrevista; recomeçou alguns minutos depois). Para finalizar, porque esse é um tema que me deixa explodindo de indignação, o Brasil, vergonhosamente é o último país dos que passaram por ditaduras no mundo na questão da reparação. E eu não estou falando de conceito revolucionário, não; estou falando de conceito que foi votado na Onu, em 2005. O que é um Conceito de Reparação? Ele não é só de reparação financeira e econômica não. Esse é o final do processo. Primeiro deve-se investigar, esclarecer, descobrir os responsáveis pelos crimes e atos terroristas, responsabilizá-los e o Estado pedir desculpas. E não somente dar uma compensação financeira e achar que o dinheiro vai apagar o passado e lavar a honra de quem passou pela humilhação da tortura e, ainda mais, que assim já deram uma satisfação à sociedade. Porque o que houve neste País, no período que vai de 1964 a 1985, é o que se pode considerar terrorismo de estado. Vivemos em um Estado capitalista e achamos que o dinheiro lava qualquer sujeira. Não é nada disso. Na Argentina, muitos centros de tortura do Exército hoje são museus ou centros de visitação pública e os guias são ex-presos políticos ou seus parentes, enquanto nós estamos aqui ainda patinando na lama da impunidade e lutando contra forças retrógradas preconceituosas que insistem em achar que o Brasil é um pedaço do seu quintal”. JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
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MARCOS TRISTÃO/AGÊNCIA O GLOBO
ESPECIAL OS HORRORES DA TORTURA NOS PORÕES DA DITADURA
INÊS ETIENNE ROMEU, A ÚNICA A SAIR VIVA DA “CASA DA MORTE” No dia 5 de maio de 1971, Inês Etienne Romeu, integrante da organização Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (Var-Palmares), na qual militava igualmente a Presidente Dilma Rousseff, foi presa na cidade de São Paulo. Atrás de Etienne, pelas ruas, caminhava o Delegado Sérgio Fleury, personagem inesquecível presente em centenas de narrativas sobre aqueles anos nebulosos. Inês foi levada, após passar pelo Hospital Central do Exército, para a Casa da Morte, em Petrópolis, na região serrana fluminense, localizada na Rua Artur Barbosa, 668, de propriedade do industrial Mário Lodders. Inês permaneceu nessa casa até 11 de agosto. Contudo, sua estada de 95 dias, aproximadamente, nada tinha a ver com turismo. Assim como Dilma sofrera em outros espaços militares em “conversa” com seus interlocutores, Inês permaneceu nesta casa sendo torturada e estuprada por múltiplos dias. Durante esse período, a militante da Var-Palmares tentou o suicídio duas vezes, sendo mantida viva por médicos contratados pelos militares, a fim de que a tortura, os interrogatórios e as possíveis confissões sobre as lideranças do grupo Var-P prosseguissem. Inês sobreviveu. Nem mesmo a morte lhe foi admissível para fugir das garras da condição degradante a que foi submetida. Sua irmã, Lúcia Romeu, jornalista que acompanhou corajosamente toda a situação-limite pela qual a irmã passou, teve motivos mais que jornalísticos para relatar com precisão os fatos. “A existência da casa clandestina de tortura era de meu conhecimento desde 1971. Minha irmã Inês Etienne Romeu, além de ter sido barbaramente torturada, seviciada, estuprada, ainda foi obrigada a me denunciar como subversiva. Eu tinha, portanto, uma motivação sobrehumana para revelar à opinião pública toda a covardia e sordidez que ela sofreu quando a oportunidade se apresentasse”. Lúcia Romeu prossegue: “Foi necessária uma enorme paciência. A denúncia só poderia ser feita depois que Inês saísse da prisão, para não colocá-la em risco. Ela cumpriu pena até 29 de agosto de 1979, no Instituto Penal Talavera Bruce, em Bangu, no Rio, e saiu por força da Lei da Anistia. Foi a última, dentre todos os presos políticos, a ser libertada. Finalmente, em fevereiro de 1981, passados quase 10 anos dos tormentos vividos na Casa de Petrópolis, apareceu a oportunidade. A revista IstoÉ, onde eu fazia free8
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lance, deu-me plena liberdade para apurar e redigir as matérias que foram publicadas sob os títulos A casa dos horrores e A torturada fala com o médico da tortura. O médico era Amílcar Lobo. Em 1981, ainda sob o Governo militar de João Figueiredo, alguns jornais do Rio publicaram depoimentos de ex-presos políticos apontando terem sido “atendidos” por Lobo quando detidos no Doi-Codi/RJ. Somente em 1986, já no período da “Nova República”, o caso Lobo voltou às manchetes dos jornais. Psicanalistas e médicos de várias áreas levaram à Assembléia Legislativa presos torturados por Lobo, nos anos de 1970 a 1974. A psicanalista Helena Besserman Vianna arriscou a vida ao denunciar o médico. No ano de 1986, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) – não mais sob intervenção federal – abriu processo ético contra Lobo. Em 1988 e 1989, respectivamente, este Conselho profissional e o Federal cassaram seu registro de médico, fato inédito e pioneiro em países que passaram por recentes ditaduras e que tiveram médicos assessorando torturas a opositores políticos.
“ME SENTIA COMO UM VERME”, DISSE INÊS EM DEPOIMENTO NA OAB
“Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato”, disse Inês em depoimento à OAB logo que o caso começou a ser investigado e difundido pela mídia. Inês fora a única presa política da Casa de Tortura de Petrópolis a sair de lá com vida e sua ótima memória foi a base para o início das averiguações sobre o caso e abertura dos inquéritos sobre os médicos que contribuíram com as atrocidades do regime. Levada com os olhos vendados para Petrópolis, Inês guardara na mente coisas que ouvia entre dias esparsos. Uma vez escutou que estava em Petrópolis. Na outra, conseguiu identificar o número da casa: 668. Ouviu também que o proprietário se chamava Mário. E assim, as peças do jogo foram sendo encaixadas. Após libertada, Inês fez um relato e escreveu tudo o que lembrava. Com isso, a irmã, Lúcia, teve os primeiros recursos para ir atrás dos torturadores e assassinos. “Assim, com a ajuda de nossa irmã Geralda, que a acolheu quando conseguiu sair do cativeiro, Inês redigiu um relatório sobre tudo o que acontecera. Esse relatório de 1971 foi a base da apuração feita
tantos anos depois. O primeiro passo consistiu em descobrir o endereço do centro clandestino de tortura a partir do número do telefone e do nome do dono do imóvel. Por óbvias razões de segurança – além de irmã da Inês, eu tinha respondido a inquérito policial militar –, fiquei fora dessa fase inicial. Mas uma pessoa teve um papel fundamental: o jornalista Antônio Henrique Lago, que pesquisou em catálogos antigos de Petrópolis, na Biblioteca Nacional, e encontrou o número guardado por Inês, associado ao nome de Mário Lodders”, contou Lúcia em longo depoimento relatando como chegaram até a casa e até Lodders. O jornalista Antônio Henrique Lago, então na TV Globo, descobriu que Mário Lodders tinha duas casas na mesma rua, uma onde morava com a irmã, e outra, a 100 metros, a qual emprestara aos militares para tal função: ser um dos centros de tortura do País. Lago foi até lá e, alegando fazer uma reportagem sobre turismo, fotografou as casas e seu dono. Logo em seguida, mostrou-as para Inês, que acabou reconhecendo tanto o lugar quanto o homem nas fotografias. Foi aí, então, no dia 3 de fevereiro de 1981, que Inês deu seu depoimento à OAB. A Ordem dos Advogados do Brasil deu total apoio à ex-presidiária e organizou uma caravana, levando junto vários órgãos de imprensa, até como forma de segurança, para o local identificado por Inês. “Com Inês, fomos em caravana para Petrópolis na manhã de 3 de fevereiro, uma terça-feira. ‘A cena foi dramática.’ Assim descrevi na abertura de meu texto para IstoÉ o encontro de Inês com Mário Lodders. Na frente de todos, Inês o reconhecera e ele acabou admitindo,
depois de negar, que a conhecia também. As rádios noticiaram, a TV Bandeirantes também, e a matéria foi ao ar à noite no Jornal Nacional, já então líder de audiência”, disse Lúcia em grande depoimento que concedeu contando todas as entranhas da história.
“ACIDENTE” SUSPEITO
Mesmo longe da tortura física há anos, reconhecida como uma das principais vozes da luta pela abertura dos arquivos da ditadura e pelo julgamento de tantos que ainda estão livres, Inês foi vítima, recentemente, de misterioso acidente. Ela estava em seu apartamento, na cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, quando avisou ao porteiro que receberia um marceneiro na manhã seguinte. O homem, identificado como magro e aparentando 45 anos, permaneceu dentro do apartamento por 40 minutos. Na manhã seguinte, a faxineira, Zilda Pereira dos Santos, chegou ao local e apertou a campainha. Após esperar por alguns minutos, Zilda, que tinha uma cópia da chave, entrou no apartamento e encontrou Inês agonizando entre poças de sangue. A Polícia do 77º Distrito registrou que Inês havia sofrido acidente doméstico. Já os médicos que a atenderam na Santa Casa informaram que ela apresentava sinais de traumatismo craniano por golpes múltiplos diversos. Depois desse episódio, Inês necessita de ajuda para se locomover, em virtude das seqüelas neurológicas por ele produzidas. Isso não impediu que ela fosse a Brasília receber das mãos do então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva o prêmio de direitos humanos na categoria “Direito à Memória e à Verdade”.
CONSTITUCIONALISTAS REAFIRMAM: CRIME DE TORTURA NÃO PRESCREVE Quatro dos maiores constitucionalistas brasileiros – Celso Antônio Bandeira de Melo, Fábio Konder Comparato, José Afonso da Silva e Paulo Bonavides – sustentam de forma unânime que não há prescrição para os crimes de tortura cometidos no Brasil durante a ditadura militar (1964-85). Em sua análise, eles destacaram dois pontos: tortura não é crime político e ninguém pode se autoanistiar. As opiniões:
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO
“O Brasil não entrará no concerto dos países civilizados de verdade, se não responsabilizar os torturadores. Não há prescrição para crime de lesa-humanidade. O que houve foi prescrição para crimes políticos. A tortura é um ato monstruoso. A imagem que faço mentalmente é que o torturador é um demônio disfarçado de ser humano. Temos que responsabilizar duramente as pessoas que torturaram e mataram, porque só assim a sociedade brasileira vai se convencer de que atos dessa indignidade não podem ser reproduzidos nunca mais. Se
eles ficam impunes, podemos conviver com o inimigo sem saber. Esse homem se senta ao nosso lado, fala conosco, apertamos-lhe a mão e, na verdade, ele é um monstro, uma fera. Não. Não há prescrição para crimes de lesa-humanidade. O Brasil é signatário de convenções que não admitiriam, em nenhuma hipótese, uma prescrição dessa ordem. Há dois motivos pelos quais não podemos aceitar a idéia de prescrição. Um deles, o mais óbvio, é o fato de que tortura não é crime político. O segundo motivo é que ninguém pode se auto-perdoar. Aquilo foi feito em um momento em que, se houvesse porventura o perdão ao torturador, aquilo era um ambiente de coação. Portanto, não podemos aceitar isso de jeito algum. Entendo que a OAB agiu brilhantemente e interpretou o sentimento de todo o povo brasileiro e, sobretudo, o sentimento do meio jurídico. Nós não podemos, de maneira nenhuma, confundir um ato de insurgência e de defesa do País contra a tirania com tortura. São coisas qualitativamente distintas. Não há possibilidade de comparar. Não
aceito, de nenhuma maneira essa posição. (...) É preciso que a AGU (Advocacia-Geral da União) reveja a sua posição, pois ela não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.”
FÁBIO KONDER COMPARATO
“Acordamos tarde para o problema da Lei de Anistia e o que se quer, agora, é que a mais alta Corte do País julgue definitivamente se aqueles que cometeram atos abomináveis de assassinato, tortura e estupro contra presos políticos podem continuar no anonimato e se eles se beneficiaram de uma anistia que, pela própria estrutura da lei, não podia beneficiá-los.Se o STF entender que a Lei de Anistia abrangeu também os criminosos – militares e policiais – iremos recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos para denunciar o Estado brasileiro. Considero lamentáveis as posições adotadas pela Advocacia-Geral da União e pelo Ministro da Defesa e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim. Espero que isso não influencie a Suprema Corte”.
CONVENÇÃO DA ONU PROÍBE A TORTURA A tortura é proibida pela Convenção da Organização das Nações Unidas, adotada pela Assembléia-Geral em 10 de dezembro de 1948 e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989. Constitui-se de 33 artigos, dentre os quais se destacam os seguintes:
ARTIGO 1º Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. O presente
artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.
for o caso, a existência, no Estado em questão, de um quadro de violações sistemáticas, graves e maciças de direitos humanos.
A RTIGO 2º
ARTIGO 16º
Parágrafo 1º. Cada Estado Membro tomará medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição. Parágrafo 2º. Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificação para a tortura.
Parágrafo 1º. Cada Estado Membro se comprometerá a proibir, em qualquer território sob a sua jurisdição, outros atos que constituam tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes que não constituam tortura tal como definida no artigo 1º, quando tais atos forem cometidos por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Aplicar-se-ão, em particular, as obrigações mencionadas nos artigos 10, 11, 12 e 13, com a substituição das referências a outras formas de tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Parágrafo 2º. Os dispositivos da presente Convenção não serão interpretados de maneira a restringir os dispositivos de qualquer outro instrumento internacional ou lei nacional que proíba os tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes ou que se refira à extradição ou expulsão.
A RTIGO 3º Parágrafo 1º. Nenhum Estado Membro procederá à expulsão, devolução ou extradição de uma pessoa para outro Estado, quando houver razões substanciais para crer que a mesma corre perigo de ali ser submetida a tortura. Parágrafo 2º. A fim de determinar a existência de tais razões, as autoridades competentes levarão em conta todas as considerações pertinentes, inclusive, se
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JOSÉ AFONSO DA SILVA
“Acho que esses crimes devem sempre ser punidos. Quando fui assessor da Assembléia Constituinte (1987-88), não fui a favor de crimes imprescritíveis. O que é preciso é puni-los. A prescrição pressupõe a inércia do Poder Público. O Poder Público é que tem que perseguir o criminoso. E se ele não persegue, aí o crime fica imprescritível. O que temos então é que exigir do Poder Público que ele cumpra a sua função, para que não passe o tempo e não se chegue à prescrição. Mesmo nos crimes comuns, as prescrições se dão em prazos longos, de 20 a 30 anos. Então, ainda há muito tempo para se promover a responsabilidade do criminoso. Ora, se o poder público fica inerte, aí fica cômodo. Acho que os que torturaram não foram punidos. Eles estão aí alegando que foram beneficiados pela Lei da Anistia. Tenho um texto publicado em que afirmo que não existe anistia para agentes públicos torturadores. Isso se chama na verdade auto-anistia do Poder Público, que resolve conferir a anistia aos seus próprios agentes que cometeram o crime. Há uma decisão famosa da Corte Interamericana sobre um também famoso caso acontecido no Peru, chamado caso Bairro Alto, em que os militares metralharam umas 12 ou 13 pessoas que estavam numa reunião, que os militares alegavam ser uma reunião subversiva. Aí, um promotor moveu uma ação competente contra eles. Mas Fujimori, que era o Presidente, um ditador, conseguiu rapidamente uma lei de anistia para os militares que mataram o grupo. A juíza teve que parar o processo. Houve recurso à Corte Interamericana de Direitos Humanos e ela decidiu que aquilo era auto-anistia e que isso não existe, é contrário aos direitos fundamentais do homem.”
PAULO BONAVIDES
“O crime de tortura é um dos mais hediondos que fere os direitos naturais da pessoa humana. Não há direito mais sagrado do que a integridade moral e a integridade física do homem em toda a dimensão do princípio superlativo, que é o da dignidade da pessoa humana. O direito à liberdade e à inteireza do ser humano é inviolável. É, logo, um crime imprescritível, pois ofende nas suas raízes o direito natural. Uma sociedade que não se fundamenta no direito natural não é uma sociedade constitucional do ponto de vista da materialidade dos valores éticos, que devem conduzir sempre essa conduta.” JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
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IRREVERÊNCIAS
A mulher na imprensa moderna Um texto satírico sobre a estagiária ou foca de jornalismo no final dos anos 1960. P OR M ARTHA A LENCAR
A jornalista é antes de tudo uma mulher muito boa. Se não é, tem que ser, pelo menos, muito engraçadinha e ter aquele ar meio sem jeito, meio por fora, que faz a graça das estagiárias, estágio, aliás, por onde ela deverá começar. Antes de tudo, ela deve freqüentar a Puc, onde aprenderá não só que o lead define “o quê, como, onde e porquê”, mas que fazemos jornal para uma sociedade afluente (a nossa, ora. E não faz essa cara de espanto senão entrego o senhor ao reitor), que o meio é a mensagem e aquelas coisas todas que o MacLuhan diz. Ou a Escola de Comunicações, onde ela também aprenderá muitas coisas sobre a nossa realidade. Daí, ela fala com o professor (aliás, será que o senhor pode me esperar depois da prova?) que já notou como ela tem as pernas bonitas e gostou muito daquele seu jeitinho desprotegido de quem não vai ter nunca que ser despedida do jornal e receber uma bruta indenização, e que, por sinal, é editor ou redator-chefe de um jornal qualquer. Então, ela faz um estágio. Estágio é um período que vai de um mês a três anos, isto é, ela poderá ser dispensada dentro de um mês ou ser admitida dentro de um ano, tudo dependendo do seu jeitinho, muito mais do que de sua cabecinha.
Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com
Então, começa urna nova vida. Uma experiência fascinante. Um abrir sem fim de novos caminhos, amp1as perspectivas. Da mesa do editor ela será encaminhada para o seu lugar de direito, isto é,
o departamento feminino, ora! Lá ela aprenderá a criar uma nova linguagem, viva, poética, perfeitamente acessível às mais amplas camadas sociais. Por exemplo: mulher sinuosa, sinuante, insinuan-
te, em seu vestido colado, colante, a mulher cobra, mulher selvagem, a mulher 69 (sim, porque para cada ano há uma mulher correspondente). Ela ficará sabendo que sua missão é importantíssima: levar às massas uma mensagem de bom gosto e do bem viver.” Através de seus textos até uma favelada poderá perfeitamente concorrer com a Teresa Sousa Campos. Basta saber procurar sempre o que é in e nunca o que é somente caro – dois vestidos sequinhos, com aquele tweed baratinho que tem na Casa Alberto, meias bem escolhidas que dão com quase todos os sequinhos, dois pares de sapatos sensacionais, algumas écharpes e ela estará bem vestidíssima. Quanto à sua casa, viva e estilo rústico – mesinhas pintadas da Mobília Contemporânea, luminárias de pano da Oca, tapetes rústicos da Chica da Silva, essas coisas bem baratinhas fazem o charme da casa moderna. É, enfim, a socialização do charme e do bom gosto. E tudo graças a quem? Aquela simples e tímida estagiária da Católica. Se ela não tiver capacidade para arcar com esta missão, novas perspectivas abrem-se para ela na Redação, onde será repórter e cobrirá assuntos interessantíssimos como a fuga dos cisnes do Campo de Santana; ou no departamento de pesquisa, onde ficará encarregada de colher dados para biografias de homens ilustres; na in-
DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn
Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo
CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.
Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.
CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.
Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.
MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda
Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.
REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.
REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira
Conselheiros Efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho.
Impressão: Gráfica Lance! Rua Santa Maria, 47 - Cidade Nova - Rio de Janeiro, RJ
Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,
ternacional, onde praticará seu inglês traduzindo os mais vibrantes telegramas. Com uns dez, vinte anos de carreira, quem sabe, ela já terá chegado à condição de Redatora, isso segundo seus colegas, devido ao fato de ainda ser um bocado boa e ter dado para o Redator-Chefe. No convívio alegre com seus confrades, ela poderá então, sem fofocas e mexericos (porque isso é característica das mulheres que geralmente quase nunca chegam à categoria dos Redatores) dedicar-se de corpo e alma à grande tarefa de informar. Escreverá artigos sobre psicanálise, ensaios sobre a sociedade de consumo, artigos sobre a loucura de Erasmo, considerações sobre a Era Espacial, temas, como todos sabem, de grande interesse das massas. Então, ela será considerada uma intelectual. Freqüentará todos os vernissages e estréias, será convidada para os coquetéis de lançamento de outras revistas e jornais, ficará íntima de todas as figuras badalativas. Enfim, o sucesso. Mas é bom que não se deixe embriagar pela ascensão fulminante. Que conserve sua humildade e lembre de sempre preparar-se com muito cuidado para sua labuta diária: meias claras à Bonnie, vestido de couro à apache, écharpe em gravata à Clyde, olhos à Gal Costa, cabelos a Black Power, blush-on da Revlon, cílios Eyelure, sapatos italianos, bolsa-mala para dar um ar mais despojado. Com o que restar de seu fabuloso ordenado, ela poderá investir em números de Vogue e do Harper’s para conservar-se sempre uma pessoa in, atualizada, eclética, na onda (que nem eu, tá, professor?) como convém a uma jornalista. Reprodução da crônica publicada em O Pasquim, n°5. julho de 1969.
Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.
Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros Suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Lênin Novaes; Secretário, Wilson de Carvalho; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.
O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.
MEMÓRIA ELIANE SOARES
N
as madrugadas do Rio de Janeiro, anos 1950, matávamos a bola 7, entre uma cerveja e outra, no Bar do Zé. Cigarro no canto da boca, ares de machos indomáveis, percorríamos a Avenida Atlântica, ao som das ondas que batiam nas areias brancas de Copacabana. Freqüentávamos o Bolero, um cabaré perto do Lido, onde dançávamos com mulheres volumosas e bebíamos cuba libre. Era a nossa grande orgia. Depois da sinuca, Luiz Fernando Pinto da Veiga ia sempre para casa – um apartamento no distante bairro do Leblon, que ficava depois do Bar 20 – porque já andava apaixonado pela Ana Maria e não lhe parecia justo se encharcar de álcool conosco, nos alvoreceres pecaminosos de uma boate. Outro tipo de disciplina nos roubava a companhia de Heitor Simões de Oliveira: ele acordava muito cedo, para treinar aikidô. Renato Cláudio Alves Ribeiro, Paulo Saboya, Carlos Estrela, Gualberto Gomes e eu, no entanto, deixávamo-nos levar pelos inofensivos ventos das noites cariocas, o ar fresco que vinha do mar aberto, que nos chegava da escuridão como uma vaga promessa de irresistíveis aventuras. Caminhávamos pela praia, às vezes pela própria Avenida N. S. Copacabana, víamos o Governo JK com alguma simpatia, comemorávamos sempre com entusiasmo as realizações do mundo socialista, da União Soviética em especial. Mais do que as guerras e o macarthismo, porém, eram as mulheres que atraíam nossa atenção e nosso interesse. Gordas ou magras, loiras ou mulatas, altas ou baixas, negras ou índias, feias ou bonitas – elas nos fascinavam. As madrugadas eram de caça. Nas esquinas, nos bares ou no Bolero. Terminavam no apartamento do
co, irmãos e amigos. Mais adiante, Otávio e sua bela irmã, Lúcia. Lá era a casa do “Padre”, um adolescente que se recusava a matar passarinhos e ganhou esse apelido. Paulo “Gordo” tinha duas irmãs – Maria Helena e Maria Amélia, loiras e cobiçadas. Para os lados da Barão da Torre, morava a Marisa. Perto da esquina com Montenegro, o escritor Willy Lewin, sua mulher, d. Belinha, e a filha, Lucinha. À noite, nos reuníamos com as amigas, na esquina de Montenegro e Nascimento Silva, no prédio onde morava a Eva. Com algumas ruas de terra, prédios baixos, os bondes sacolejantes, pouco barulho, praia limpa, Ipanema era um paraíso antes do pecado original. Nada mais adequado, portanto, que nos encontrássemos nos inocentes jardins de Eva. Naquela época, namorávamos de mãos dadas, dançávamos na casa de alguma amiga nas noites de sábado, víamos os musicais da Metro, faroestes com John Wayne, policiais com Humphrey Bogart. Mas nossa rebeldia era política e se limitava à pregação do socialismo e às cores avermelhadas do Partido Comunista. Depois de conversar com as meninas – Heloísa, Lucy, Miriam, Aída, Norma, Wilma –, mergulhávamos na voragem das madrugadas. A vida, no Rio de Janeiro, era quase ingênua, pacata, sem violência, mas nada provinciana, como cabia ser a vida numa capital. O mundo era menor e mais puro. As orgias, menos devassas. Dos anos 1950 para cá, tudo mudou. Mudaram os políticos, os conceitos, as paixões, a moeda, o futebol. Mas o passado ainda pode nos ensinar muita coisa. Ele nos oferece incontáveis lições de vida. Basta não esquecê-lo.
Copacabana POR RODOLFO KONDER Gualberto, no Posto 6, em alguma espelunca da Zona Sul, ou na praia de Ipanema, para onde retornávamos a tempo de ver o nascer do sol, freqüentemente das pedras do Arpoador. Entre as Ruas Farme de Amoedo e Montenegro, pela manhã, nos curávamos da ressaca, nadando como golfinhos, entre arraias e cardumes. Durante o dia, depois de nos bronzear com as amigas e jogar tênis de praia, a gente se reunia na casa de alguém. Eu gostava de percorrer a Rua Nascimento Silva, hoje arborizada e linda. Ali naquela vila morava o Ivan Junqueira. Do lado de lá, viviam o Caveira e o Maca-
RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
HOMENAGEM
FOTOS DE EVANDRO TEIXEIRA
A CONSAGRAÇÃO DE DINES Antigos companheiros do JB acorreram em peso à manifestação de comemoração dos seus 80 anos. ques; Stephan Krier e a mulher; O Jornal do Brasil ganhou Vânia e Renato Bromfman. nova vida por cerca de cinco Desse grupo de amigos horas no dia 10 de março, participaram também Alziquando quase 200 profissionais que trabalharam nele – ra Abreu, Carmen Dametto, Déa Barbosa, Elaine Abranentre a segunda metade do tes, Emília Ferraz, Flor Astiséculo XX e agosto de 2010, lhos, Gilda Müller, Karina quando foi suspensa sua ediBerbat Nascimento, Larriza ção impressa – se reuniram Thurler, Lúcia Hyppolito, Lupara prestar homenagem ao dmila Kestenberg, Margarete jornalista Alberto Dines peSilveira, Patrícia Calhau, Sôlos seus 80 anos, comemorania Coutinho, Sylvia Frota, dos com um almoço de adeTatiana Targhine, Tereza Crusão no restaurante La Fiovinel, Wania Nave, Zezé Sack. rentina, no Leme, Zona Sul Entre os presentes estavam do Rio. Durante essas cinco ainda Ademir Ferreira, Affonhoras, Dines, acompanhado so Romano de Santana, Alepela mulher, a também jorxandre Freeland, Andréa Gounalista Norma Couri, recevêa Vieira, Arthur Poerner, Arbeu abraços dos companheiWilson Figueiredo e o cartunista Lan trocam lembranças dos tempos do JB. gemiro Ferreira, Cláudio Boros que acompanharam a sua junga, Deonísio da Silva, Fátrajetória como editor do JB menagem, que o fotógrafo Evandro Teixeibio Koifman, Fernando Molica, Flávio Tadurante 11 anos. ra, um dos amigos de Dines, planejara com vares, Glauco de Oliveira, Guilherme Fiúza, Coordenada pela jornalista Vera Perfeigrande carinho. Israel Beloch, Luiz Edgard de Andrade, Marto, uma das integrantes da Redação do JB, Entre os presentes encontravam-se amia manifestação atraiu tantos amigos e adcos Ulrick, Mário Azevedo, Muniz Sodré, gos de Dines, como Alberto Shatovski e sua miradores de Dines que parte da prograPedro Nabuco, Rangel Cavalcanti, Ricardo mulher; André Vallias e Nelci Frangipani; Bia Cravo Albin, Roberto D’Ávila, Rodrigo mação não pôde ser acompanhada, tane Pedro Correa do Lago; Carlos Haag e a tas eram as pessoas concentradas no prinFonseca, Tobias Cepelowicz. mulher, vindos de São Paulo; Edilaine Silva De equipes do JB em diferentes mocipal salão do restaurante e tão alto o e Alexandre Lobo; Henrique Kzezinski e Limentos compareceram Bartolomeu Brito, vozerio que impediu que fosse ouvido o ana; Johannes Kretschner e uma amiga; breve agradecimento, de pouco mais de um Cezar Motta e Tânia Rodrigues, Fichel DaJosé Araripe Jr. e Cristina; Leila Sarmento minuto, que Dines fez antes da projeção vit Chargel e Beatriz Santa Cruz Lima. e Alfredo Dias Gomes; Lilia Diniz e o made dvds sobre sua atividade profissional. Fritz Utzeri e Liège Quintão, Kristina Mirido; Nadia Couri e Marcus Drummond; PaO mesmo excesso de gente dificultou a tochaellis e Leonardo, Luiz Orlando Carneitrícia Civelli e Mário César Cabral Marmada de uma fotografia dos presentes à horo e Branca, Maria Lúcia Rangel e Sérgio 12
JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
Augusto, Maria Regina Fleury e Sérgio Fleury, Marina Colasanti, Rose Esquenazi, Vera Perfeito e João Berrêdo. E ainda Ana Arruda Callado, Ana Maria Costabile, Ângela Regina Cunha, Atenéa Feijó, Beatriz Bonfim, Bella Stal, Célia Abend, Cristine Ajuz, Clecy Ribeiro, Deborah Dumar, Diana Aragão, Diana Lisbona, Dora Kramer, Elaine Maciel, Eni Mendlowicz, Gilsse Campos, Glória Alvarez, Glória Castro, Grace Santas, Helena Santos, Joëlle Rouchou, Kito Paranaguá, Maria Alice Saboya, Maria Helena Malta, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mônica Cotta, Mônica Freitas, Mônica Horta, Sônia Barros, Sônia Benevides, Symona Grooper, Thais Mendonça, Teca Lobo, Yeda Correia. E também Laerte Gomes, Maria Alice Paes Barretto, Mauro Malin, Ponce de Leon, vindo de Belo Horizonte, Ricardo Leoni, Sylvia Moretzsohn, Aguinaldo Ramos, Antônio Batalha, Arthur Aymoré, Carlos Arthur Pitombeira, Carlos Lemos, Claudius Ceccon, Fernando Thompson, Gilberto Menezes Cortes, João Baptista de Abreu, Liberati, Luiz Carlos Mello, Luiz Eduardo Rezende, Luiz Erlanger, Luiz Gleiser, Luiz Mário Gazzaneo, Marcelo Auler, Marcus Veras, Maurício Azêdo, Maurício Menezes, Moacir Andrade, Orlando Brito, vindo de Brasília, Ricardo Hollanda, Roberto Ferreira, Roberto Quintaes, Romildo Guerrante, Sérgio Cabral, Sérgio Pugliese, Tarcísio Baltar, Ubirajara Moura, Walter Firmo, William Weber, Wilson Cunha e Wilson Figueiredo.
ACONTECEU NA ABI D INES - 80 ANOS
Encontros memoráveis P OR N ORMA C OURI
“Jornalismo é paixão insaciável, digerida e humanizada na confrontação descarnada com a realidade”. García Márquez descreveu assim “o melhor ofício do mundo”. Mas sempre se espantava com o tamanho da paixão, jornalista gosta tanto do jornalismo que vive entre jornalistas e quando sai para espairecer não tem outro assunto. Espairece no bar com pautas, conversa de Redação. “No primeiro dia de jornal me mandaram buscar a calandra na oficina, e lá fui eu...” alguém repete o trote de costume. “ ...8 de janeiro de 1982, duas horas da tarde , estava pela primeira vez na velha Redação da Avenida Rio Branco, praticamente sozinho, sem nenhum projeto grandioso debaixo do braço, munido apenas de uma convicção...”, continua outro. E começa a sessão-contar-vantagem, “consegui uma exclusiva” e termina com gozações e folclore, “quem ainda lembra o que é a macaca?”, “e ‘boneco ‘, que no Rio é ‘boneca’, ai ai”? Foi nesse clima que a Cervejaria Nacional reuniu no dia 5 de março em São Paulo 170 jornalistas ou mais que foram beber malte com jornalismo, reunindo Redações fantasmas, Redações reais e as novas criadas nas mesas do bar com pedaços de outras, formando uma impensável liga de imprensa entre Jornal do Brasil, Veja, Época, Estadão, Folha, rádios, sites e blogs, em baias tão distintas como cultura e esporte, economia e política, humor e grafismo, fotografia e cinema .. . Na parede os dvd’s mostravam coberturas, entrevistas, guerras, a vida pela profissão e uma profissão de vida. Nas mesas rolavam livros de jornalismo escritos pelos próprios e o papo corria com lead, sub-lead e corpo da matéria, ouvindo os dois lados da questão, alguns fazendo caricatura no papel debaixo do prato e brindando algum fechamento fictício , de repente surgia luz para uma notícia. Jornalistas ali, lado a lado, sem competir. Quanto mais solitários nesse gargalo que sufoca a profissão, mais os jornalistas precisam do bar, da conversa de bar, jornalismo se fazendo no bar como metáfora da vida, porque jornalismo se aprende fazendo. Não se chama mais Jornalismo, se chama Comunicação, Comunicação Social, García Márquez ironizava, o que, dizia, para os jornalistas empíricos de antanho que tinham como instrumento apenas o ouvido, o lápis, o bloco de nota e uma ética de todo tamanho, era como se encontrar no chuveiro com o próprio pai vestido de astronauta. Naquela época nem gravador existia, gravador que, segundo a definição de García Márquez , “ouve mas não escuta, grava mas não pensa, é fiel mas não tem
coração, e no final das contas sua versão literal não é tão confiável como a de quem finca atenção nas palavras vivas do interlocutor, valorizadas com inteligência, qualificadas com moral”. O astronauta hoje é a tecnologia virtual que devora o papel, que dá novo caminho ao papel, que desemprega sem dó, que dissemina e dissolve como as cervejas consumidas naquela noite, que conservou no álcool a velha e imortal paixão pela melhor profissão do mundo. E foram tantos os bilhetinhos escritos e os e-mails trocados no guardanapo... de papel. Porque ali havia vida e como ainda descreveu o bruxo colombiano, o esplendor tecnológico das empresas não corresponde às condições de trabalho, menos ainda aos mecanismos de participação que antes fortaleciam o espírito. A Redação é um laboratório asséptico e compartimentado, onde parece mais fácil a comunicação com os fenômenos siderais do que com o coração dos leitores – a desumanização é galopante. “A carreira”, escreveu, “que sempre esteve bem definida e bem demarcada, hoje não se sabe onde começa, onde termina, nem para onde vai”. García Márquez foi papo na noite. Não são artistas. Somos artistas? Jornalismo tem de ser investigativo por definição. Jornalismo é paixão? Ou o que explica a adesão de quase 200 na noite de 5 de março no bar paulistano e os mais de 300 no almoço da Fiorentina no sábado seguinte, 10 de março, no Rio de Janeiro? Cariocas, paulistas, mineiros, pernambucanos, americanos, anônimos. Jornalistas! Ainda García Márquez: “O problema, parece, é que o ofício não evoluiu na mesma velocidade que seus instrumentos, e os jornalistas ficam buscando caminhos no labirinto de uma tecnologia acelerada, sem controle, sem previsão do que será no futuro”. O bar paulista e a cantina carioca foram, mais uma vez , porto seguro para desgarrados, desistentes, insistentes, todos fincados na fé de jornalista, irracionalmente crentes, na profissão. Alguns dias depois teve um seminário inteiro sobre Jornalismo na Fapesp mas isso foi outra história. Para onde vai ninguém sabe. Mas como a gastronomia para o chef de verdade que não tem nada a ver com as cozinheiras de Gilmar Mendes. Como o trompete sem vibrato e o cool jazz para Miles Davis. Como a dança para Pina Bausch, é preciso continuar, escrever, reportar, investigar,denunciar, informar até o fim, e ser jornalista o tempo inteiro. “Dancem, dancem”, era a frase preferida de Pina que selou o final do filme de Wim Wenders, “ou estaremos todos perdidos”.
Assembléia-Geral de 2012 será em 26 e 27 de abril Como em 2011, sócios da categoria Colaborador poderão votar e ser votados. Os associados da ABI foram convocados para a Assembléia-Geral Ordinária de 2012, a qual, como tradicionalmente, será realizada em duas etapas: no dia 26 de abril, quinta-feira, às 10 horas, instalação da Assembléia, com apresentação do Relatório da Diretoria do exercício social 2011-2012, do Balanço do ano civil de 2011 e do Parecer do Conselho Fiscal sobre as Contas da Casa; no dia 27 de abril, sexta-feira, das 10 às 20 horas, eleição para o terço do Conselho Deliberativo do mandato 2009-2012 e para o Conselho Fiscal do mandato 2012-2013. Compõem esse terço, como membros efetivos, os associados Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Alvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho. São suplentes os sócios Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemi-
ro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto e Rogério Marques Gomes. Do Conselho Fiscal fazem parte os associados Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chester de Oliveira e Manolo Epelbaum. As chapas que concorrerão à eleição poderão ser registradas entre 2 e 13 de abril. O Relatório da Diretoria e as Contas de Gestão estarão à disposição dos sócios, na Secretaria da ABI, a partir do dia 12 de abril. O Edital de Convocação da Assembléia, firmado pelo Presidente do Conselho Deliberativo, Pery Cotta, e publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 9 de março e no Diário Oficial da União no dia 12, tem o seguinte teor:
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA EDITAL DE CONVOCAÇÃO ASSEMBLÉIA-GERAL ORDINÁRIA Nos termos do artigo 20 do Estatuto da Associação Brasileira de Imprensa–ABI, são convocados os associados quites com suas obrigações estatutárias a se reunirem em sua sede, na Rua Araújo Porto Alegre, 71, Centro, Rio de Janeiro, no dia 26 de abril do corrente ano, às 10 horas, para: 1) tomar conhecimento do Relatório da Diretoria, do Parecer do Conselho Fiscal e da decisão do Conselho Deliberativo sobre aquele e este e para discutir e resolver assuntos que lhes forem apresentados pela Diretoria ou por associados por intermédio da Mesa; no dia 27 de abril do corrente ano, das 10 às 20 horas, para eleger: a) o terço do Conselho Deliberativo, titulares e suplentes; b) o Conselho Fiscal. O Relatório da Diretoria estará à disposição dos associados a partir de 12 de abril, na Secretaria da ABI. As chapas concorrentes, devidamente completas, deverão estar registradas no período de 2 a 13 de abril do corrente ano, nos termos do artigo 21 do Regulamento Eleitoral aprovado pelo Conselho Deliberativo da ABI em 17 de fevereiro de 2004.
“Blocos de Rua” na Biblioteca A Biblioteca da ABI (Biblioteca Bastos Tigre) conta agora com um exemplar do livro Blocos de Rua do Carnaval do Rio de Janeiro, com textos do jornalista Aydano André Motta e fotografias de André Arruda e Custódio Coimbra. A obra, lançada pela editora Réptil em parceria com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, reúne histórias e imagens de 30 blocos tradicionais e de seus personagens, além de dois mapas de página dupla com a divisão temática da festa que atrai milhares de foliões. Letras dos principais sambas e as curiosidades sobre o Cordão da Bola Preta, Banda de Ipanema, Carmelitas, Bar-
bas, Cacique de Ramos, Simpatia é Quase Amor, entre outros blocos, ajudam a enriquecer a leitura. “Carnaval de rua é a alma da cidade, uma festa muito especial que voltou a atrair multidões para as ruas do Rio de Janeiro. Este livro sobre a história dos blocos é um trabalho impressionante”, disse sobre a obra o Prefeito Eduardo Paes. O Secretário de Turismo e Presidente da Riotur, Antônio Pedro Figueira de Mello, também destacou a importância dos blocos de rua: “Este livro coroa os esforços empregados para o sucesso dos blocos da Cidade”.
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CORRUPÇÃO
Indecência em evidência Reportagem especial do Fantástico revela ao grande público flagrantes de negociações fraudulentas em licitações públicas na área da saúde. Nas propostas indecorosas feitas pelos representantes das empresas participantes, sobra desonestidade. Falta vergonha. Nesta entrevista, ANDRÉ L UIZ AZEVEDO conta um pouco dos bastidores da matéria que escancarou, como nunca antes, a prática perversa da corrupção no Brasil.
H
á verdades nas quais quase todos acreditam, mas que poucos comprovam. Exatamente esse foi o intuito da matéria especial exibida pelo Fantástico, da TV Globo, na noite de domingo 18 de março. Sob o comando de Eduardo Faustini e André Luiz Azevedo, a extensa reportagem trouxe a público flagrantes de corrupção no processo de licitação de serviços para um hospital infantil do Rio. Fazendo-se passar por gestor da unidade, com o consentimento da administração local, e utilizando o recurso de câmeras ocultas, Faustini documentou propostas escancaradas de corrupção por parte de representantes de quatro empresas: Toesa Service, Locanty Soluções, Bella Vista Refeições Industriais e Rufolo Serviços Técnicos e Construções. A reação dos telespectadores foi de indignação diante dos flagrantes de tentativas de mau uso do dinheiro público – vale lembrar que nenhuma das transações iniciadas pelo repórter foi finalizada. De imediato, diversas esferas de Governo determinaram a suspensão ou a investigação dos contratos fechados com as empresas. A Polícia Federal entrou no caso e abriu inquérito para apurar as denúncias de fraude em licitações, tentando rastrear os casos em que os processos de disputa, que deveriam ser marcados pela lisura, partiam de valores combinados, com o pagamento de propina embutido, para vencer a concorrência. O Ministério Público Federal também está nas investigações. Com regularidade, o Jornal da ABI trata da questão corrupção no Brasil – sua intrincada engenharia, causas e consequências, bem como o papel que cabe à imprensa na apuração e denúncia dessa prática. Duas das fontes com as quais a TV Globo repercutiu a matéria do Fantástico já falaram aos nossos leitores, em edições anteriores, sobre a necessidade de ferramentas de acompanhamento e controle dos gastos públicos no País: o jornalista Claudio Abramo, da Transparência Brasil, e o economista Gil Castello Branco, do Contas Abertas. “E ambos estão certos em suas afirmações. Acho que essa é a nossa principal missão, enquanto jornalistas: fiscalizar, cobrar e tentar mudar o que está errado”, afirma André Luiz Azevedo. André nasceu no Rio de Janeiro em 1950 e formou-se em Jornalismo pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na TV
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Globo desde 1981, já passou pelos diversos telejornais, aparecendo principalmente à frente das câmeras. Não por acaso, é um dos rostos mais conhecidos e respeitados do telejornalismo. No jargão jornalístico é, por excelência, um repórter de rua. Um craque, sobretudo, nas apurações feitas em situações adversas, nas quais concilia ‘técnica’ e ‘calor’ na medida exata. Dentre as suas reportagens marcantes na emissora, destacam-se a fraude ocorrida na Previdência Social, que culminou com a prisão da advogada Jorgina Maria de Freitas Fernandes, em 1997, e a mercantilização das universidades particulares, comprovada em dezembro de 2001, em matéria que denunciava a aprovação de um rapaz analfabeto em vestibulares do Rio. No ano passado, integrou a equipe do projeto especial JN no Ar Educação, veiculado no Jornal Nacional. “O mais chocante no matérial veiculado pelo Fantástico é a naturalidade com que eles tratam a situação tão absurda da corrupção. A reportagem mostra justamente que aquilo que pra gente é imoral para eles é rotina”, disse André Luiz Azevedo nesta entrevista concedida ao Jornal da ABI. Na reportagem, os representantes das empresas soltam ‘pérolas’ do tipo: “Eu quero o serviço. Você escolhe o que você quer. Vou fazer. Faço meu preço, boto. Qual é o percentual? Dez? Se eu ganho um milhão e trezentos, eu dou 130. É o normal. Dez por cento. É o praxe, mercado é 10%. Se a sua pretensão é 15%, ótimo. Você tem que me informar, porque eu vou formatar em cima da sua pretensão”, disparou Renata Cavas, gerente da Rufolo Serviços Técnicos e Construções, para Eduardo Faustini, que, exatamente para manter-se apto para executar pautas investigativas, mantém-se fiel ao anonimato. Ele não dá entrevistas. Sequer aparece nas reportagens que produz. O contraponto das propostas de propinas foi feito no final da matéria, por Edmilson Migowski, médico, diretor da unidade hospitalar e parceiro dos repórteres na feitura dos flagrantes. “Quem rouba da saúde deveria ter o dobro da pena, porque quando você rouba o dinheiro da saúde, mata as pessoas”, apontou. “Eles não sabiam que estavam sendo filmados. Mas sabiam bem o que estavam fazendo”, concluiu André Luiz Azevedo. A seguir um pouco sobre os bastidores dessa reportagem, que já entrou para a História do telejornalismo brasileiro.
DIVULGAÇÃO
P OR P AULO C HICO
Jornal da ABI – Como surgiu a idéia – ou teria sido a oportunidade – de produzir essa matéria?
André Luiz Azevedo – O Faustini já tinha feito uma reportagem semelhante denunciando a corrupção nas Prefeituras. Na época ele conseguiu autorização em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, e ficou como gestor de compras da Prefeitura. Flagrou denúncias fortes também sobre esse esquema nos Municípios. Há dois meses fizemos juntos a reportagem sobre o esquema de fraude nas bombas de combustíveis por controle remoto. Ele se transformou em dono de postos e flagrou um esquema que rouba os motoristas. Como um desdobramento de todas essas denúncias, pensou em ir além e mostrar o que acontece numa área sensível como a saúde pública. Aprovou a idéia com a direção do Fantástico e passou para a produção. Foi, então, uma evolução natural das pautas que já tinha feito. Jornal da ABI – Como se deu o contato com o Edmilson Migowski, diretor do Instituto de Pediatria da UFRJ? Partiu dele ou da TV Globo a iniciativa de infiltrar o repórter Eduardo Faustini como novo gestor de compras da unidade?
André Luiz – O Edmilson Migowski é uma grande fonte de quem pensa em saúde pública no Brasil. Há 15 anos Faustini e eu
fizemos uma ótima parceria com o Migowski, que na época dirigia a Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Foi a série de reportagens que mostrou a máfia da falsificação de remédios no Brasil. Revelamos a falsificação em larga escala de medicamentos contra o câncer. Esta reportagem teve como uma fonte determinante o Migowski, que na época falou para a gente seguir a pista do Androcur, um remédio para câncer de próstata que estava sendo falsificado. Conseguimos descobrir que havia um derrame deste remédio falso no mercado, de Norte a Sul do País, inclusive para setores públicos. A matéria mudou a lei. Falsificar remédios passou a ser crime hediondo. A indústria foi obrigada a produzir embalagens mais seguras e certamente salvamos milhares de vidas de pessoas que iriam tomar o medicamento adulterado. De lá pra cá, fizemos outras parcerias com o Migowski. Assim, foi natural que ele fosse procurado e concordasse com a proposta. Jornal da ABI – Uma vez decidida a produção, qual foi o maior desafio enfrentado por vocês durante os dois meses de apuração da matéria?
André Luiz – É claro que uma produção dessa envergadura envolve desafios muito grandes. Mas o maior de todos sem dúvida foi manter o sigilo do que es-
“UM DOS GRANDES tava sendo feito, principalmente no hospital. Jornal da ABI – O que a execução dessa reportagem exigiu da equipe e da emissora, em termos de dedicação e estrutura deslocada? Quantas pessoas estiveram diretamente envolvidas?
André Luiz – Por uma questão de segurança da equipe e até de precaução para que possamos fazer outras reportagens, não podemos revelar em detalhes a estrutura usada. Mas ela foi grande e envolveu vários setores da TV Globo, entre jornalismo e engenharia, com o uso de diversas tecnologias e profissionais.
Jornal da ABI – Gostaria que falasse um pouco do papel desempenhado por você e pelo Eduardo Faustini. Em linhas gerais, quais funções couberam a cada um?
André Luiz – Esta basicamente foi uma reportagem produzida e executada por Eduardo Faustini com o apoio de diversos setores da TV Globo. Eu cheguei no período em que os flagrantes já estavam feitos para transformar a matéria-prima espetacular numa reportagem de tv. Aí foi fundamental a participação do editor Renato Nogueira, que examinou dezenas de horas de gravação de maneira cuidadosa para extrair o melhor. A partir daí, Renato traçou um roteiro básico que fomos executando e mudando ao longo do tempo. Parti, então, para as gravações de passagens, entrevistas, imagens que complementassem os flagrantes. Fomos burilando o material aí já com a participação do restante da equipe do programa. Jornal da ABI – O Eduardo não aparece no vídeo. E, se minha memória não falha, ele já foi ‘repórter oculto’ em outras reportagens de denúncia da emissora. Esse é apenas um cuidado de não revelar a sua identidade em rede nacional, o que certamente impediria sua ação em outras investigações, ou é também uma medida de segurança?
André Luiz – É uma medida para que ele possa continuar trabalhando nessas reportagens tão importantes. Repórteres que aparecem no vídeo, como eu, são muitos. Mas os que fazem o que o Faustini faz são poucos. Jornal da ABI – Como garantir o sigilo numa apuração como essa, sem correr o risco de ter todo o esquema descoberto?
André Luiz – Esse foi o grande desafio. Mas a experiência e a confiança na equipe garantiram que nada vazasse. Jornal da ABI – O que mais o impressionou e ao Eduardo nessa matéria? Qual cena ou declaração elegeria como a mais chocante?
André Luiz – O mais chocante é a naturalidade com que tratam situação tão absurda. A reportagem mostra justamente que aquilo que pra gente é imoral para eles é rotina. Acredito que o fato de a reportagem ter conseguido mostrar os donos das empresas negociando o pagamento da propina foi o grande diferencial. Jornal da ABI – Como tem sido a repercussão? O que de concreto acha que pode sair daí?
André Luiz – Essa reportagem comprovou uma velha tese do jornalismo: quando se consegue comprovar aquilo que está no imaginário da população a repercussão é imediata. O que nós mostramos é o que todo mundo sabe, todo mundo diz, mas que ninguém nunca vê. E isso provocou toda a repercussão. A unanimidade do apoio também foi impressionante. Da população nas ruas, a todas as autoridades ouvidas houve, é claro, choque pelo que foi mostrado, repúdio por esse tipo de comportamento e um grande apoio à reportagem. Jornal da ABI – E por parte do público? Que tipo de retorno chegou à TV Globo? Houve resposta em termos de audiência? Você é um experiente repórter de rua. As pessoas têm comentado sobre a matéria? O que dizem?
André Luiz – Em 30 anos de reportagem na TV Globo nunca tinha recebido uma reação de apoio tão grande. Não só de elogios nas ruas, mas de incentivo a continuar fazendo o mesmo trabalho; além de informações sobre outras áreas que devemos abordar. As cartas de leitores nos jornais também são um termômetro do grau de mobilização que a reportagem motivou e sua aprovação total. Jornal da ABI – A população brasileira não parece meio anestesiada em relação às denúncias de corrupção, de tão endêmica que se tornou essa doença em nossa sociedade?
André Luiz – Pela reação da população não percebi esta situação que você diz de anestesia. Pelo contrário, há uma revolta muito grande com o roubo do dinheiro público, ainda mais numa área sagrada como é a saúde. Jornal da ABI – Faltam mais iniciativas de jornalismo investigativo no Brasil? Por que a grande imprensa parece ter abdicado desse seu papel? Onde está o problema maior: na feitura criativa da pauta ou na necessidade de reservar equipes qualificadas – e geralmente por um longo período e altos investimentos – para o trabalho meticuloso de apuração?
André Luiz – O jornalismo investigativo é trabalhoso, difícil, caro e nem sempre tem resul-
tado garantido. Muitas vezes um longo trabalho não se confirma e vai pro lixo. Mas tenho convicção de que são estas reportagens que cada vez mais farão a diferença entre os vários veículos. O público percebe quando assiste a um trabalho de envergadura e importância como este. Jornal da ABI – Após mais de 20 anos de ditadura, com severas restrições ao trabalho jornalístico, já vivenciamos mais de duas décadas de experiência democrática. A imprensa tem perdido seu poder de realizar as chamadas ‘coberturas de fôlego’ – as reportagens especiais de denúncias? Em tempos de google e informação à mão – embora quase sempre superficial e duvidosa – as novas gerações de jornalistas têm-se mostrado menos aplicadas em suas apurações?
André Luiz – Nesta época onde tudo é instantâneo, sem controle, sem responsabilidade, o bom jornalismo investigativo, que você chama de ‘coberturas de fôlego’, é cada dia mais raro, mas tenho a convicção e a esperança de que ele sempre será o fator que diferencia o bom veículo. Como ele depende de profissionais de muita qualidade e experiência, é claro que não deve ser a porta de entrada para os novos jornalistas... Mas, sem dúvida, é o grande momento dos grandes repórteres. Jornal da ABI – Seria exagero pensar que o quadro levantado por vocês nas licitações na saúde se repete em diversas outras esferas do Poder Público? O que diz seu feeling de repórter?
André Luiz – Quem sabe a gente não confere isso em outras reportagens? O feeling do repórter é só um ponto de partida. É a ralação que vai dizer se isso acontece ou não. Jornal da ABI – A matéria de vocês evidencia que, além da receptividade dos órgãos públicos, o setor privado, ou boa parte dele, segue à risca a cartilha da corrupção. É preciso combater essas práticas dentro de administrações públicas e governos, sem dúvida. Mas não seria necessário também um sistema de fiscalização junto às empresas particulares, sobretudo essas que se candidatam a prestar serviços ao Poder Público? Afinal, só há corrupção onde há corrompidos e corruptores...
André Luiz – Acho que este é outro grande mérito dessa reportagem. Geralmente as denúncias carregam mais em cima do funcionário público corrupto. Ele deve ser denunciado, é claro. Mas a empresa privada que corrompe nunca aparece. Nesta reportagem ela foi o foco. Jornal da ABI – Em 1991, você
MÉRITOS DA POSTURA DO FAUSTINI É JUSTAMENTE LEVAR AS PESSOAS A DIZEREM AQUILO QUE GERALMENTE FICA SUBENTENDIDO. ELE É UM CRAQUE NISSO. NÃO HÁ INDUÇÃO. HÁ COMPETÊNCIA PARA REVELAR A ROUBALHEIRA COMO NUNCA FOI MOSTRADA.” foi o primeiro repórter a noticiar a fraude na Previdência Social, escândalo que culminou com a prisão da advogada Jorgina Maria de Freitas Fernandes, em 1997. Gostaria que traçasse um paralelo entre aquele caso e o atual, das fraudes nas licitações na saúde.
André Luiz – São duas histórias que envolvem o roubo do dinheiro público. E também ambas denunciam personagens poderosos. Agora são empresários. Naquela época um juiz, procuradores da Previdência, funcionários do judiciário e advogados. As duas também foram feitas com ajuda de grandes fontes cultivadas por muito tempo. Em 1991 foi um juiz que me deu a primeira dica que eu deveria ir a São João de Meriti, porque um caso de corrupção estava para ser descoberto. Dessa vez, o Eduardo Faustini recorreu a uma grande fonte da área de saúde, o Edmilson Migowski. As duas reportagens tiveram grande repercussão imediata. A denúncia da máfia do INSS, além de interromper uma roubalheira que na época já tinha atingido R$ 500 milhões, provocou resultados concretos nunca vistos em casos de corrupção,a condenação de um juiz, procuradores, funcionários e advogados a até 14 anos e seis meses de prisão. E também, isso foi totalmente inédito, a Justiça conseguiu recuperar milhões de dólares que já tinham sido mandados para o exterior e recuperar imóveis milionários comprados com o dinheiro da fraude. Espero que algo assim também aconteça agora. Jornal da ABI – Você também foi um dos repórteres mais atuantes na cobertura da execução de Tim Lopes. Como descreveria a sensação de reportar o assassinato de um colega?
André Luiz – Foi um dos momentos mais difíceis não só da minha carreira, como de muitos colegas. Tim Lopes foi um grande amigo e parceiro de trabalho. A última reportagem dele na TV
Globo foi comigo. Uma denúncia sobre abusos em clínicas de recuperação de drogados. Fazer a cobertura do assassinato era uma obrigação e uma dor ao mesmo tempo. Considerei também uma missão acompanhar toda a história, principalmente na época do julgamento. Me lembrei muito dele quando da tomada do Complexo do Alemão. E todo mundo percebeu minha emoção no momento em que percebi que estava sendo preso um dos assassinos de Tim que estava foragido, o Zeu (Elizeu Felício de Souza) e fiz a transmissão ao vivo. Jornal da ABI – Será que algum dia a corrupção deixará de ser uma pauta tão freqüente na imprensa? O Brasil, acredita, caminha no sentido da erradicação desse mal?
André Luiz – Como jornalista acredito que minha contribuição é denunciar o que estiver errado e aplaudir as boas iniciativas que combatam a corrupção. Pode ser doloroso assistir a cenas assim, como as mostradas na reportagem do Fantástico. Mas, no fundo, é como um tumor que para ser curado precisa ser cortado. Jornal da ABI – Cheguei a ler em blogs algumas críticas à reportagem, no seguinte sentido: ao atuar como gestor, o repórter Eduardo Faustini teria induzido os representantes das empresas à corrupção – no lugar de ter agido passivamente, simplesmente verificando se as propostas de propina seriam voluntariamente feitas, ou não. Isso de fato ocorreu? No caso positivo, interferiria no resultado final da matéria? Como rebate essas críticas?
André Luiz – É claro que toda reportagem feita pela TV Globo ou pelo Fantástico vai ter sempre uma oposição da turma do contra. Mas nesse caso o grau de aprovação foi tão grande que até essa turma ficou meio sem graça. Como não apoiar uma reportagem que denuncia o roubo do dinheiro da saúde pública? Como ser contra uma denúncia que mostra as empresas corruptoras? Como se opor a um trabalho que apresenta os donos das empresas e não apenas funcionários subalternos? Difícil... Um dos grandes méritos da postura do Faustini é justamente levar as pessoas a dizerem aquilo que geralmente fica subentendido. Ele é um craque nisso. Não há indução. Há competência para revelar a roubalheira como nunca foi mostrada.
Jornal da ABI – O que podemos esperar das próximas pautas de André Luiz Azevedo e Eduardo Faustini?
André Luiz – Pauta anunciada é pauta perdida. Mas uma história sempre puxa outra. E mais não digo.
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DEPOIMENTO
Eliane Brum
A repórter do cotidiano Curiosa, ela é a “escutadeira” dos anônimos: “Eu me interesso menos pelo que quebra a rotina e mais pelo que tece a vida cotidiana de todo mundo.” POR FRANCISCO UCHA COM MARCOS S TEFANO F OTOS MARTIN CARONE DOS S ANTOS
‘‘A
minha forma de me expressar é pela palavra escrita, especialmente pela reportagem. Sou repórter porque quero saber como as pessoas sentem as suas vidas. Em minha opinião, se existe algo importante para ser apurado é aquilo que dá sentido à vida das pessoas.” Essas frases explicam muito sobre a história da gaúcha Eliane Brum. Ela teve uma infância sofrida, cresceu ouvindo histórias e a leitura foi sua fuga para outros mundos. “Acho que estou viva porque me tornei capaz de ler”, disse a certa altura durante nossa conversa. No entanto, a aparência frágil esconde uma mulher obstinada, forte, inquieta. Essa inquietude a fez largar uma posição de destaque na Redação da revista Época para se tornar repórter independente. Para Eliane, as histórias das pessoas anônimas são a inspiração para grandes reportagens. E ela descobriu isso desde os primeiros passos, no jornal Zero Hora. Hoje, premiada e reconhecida, Eliane não pára de se surpreender com suas pautas, que geralmente são apenas o ponto de partida para a descoberta do novo. Ela diz que é na rua e é do espanto que nasce o jornalismo: “Temos que ir às ruas, não podemos perder a capacidade de nos espantar e receber o novo. O novo é extraordinário e, provavelmente, ainda não foi contado”. Com a palavra, Eliane Brum.
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“Para mim, ser jornalista nunca foi um emprego. Não é apenas trabalho, não é o que eu faço, é o que eu sou.” Jornal da ABI – Hoje, fala-se muito em crise da imprensa, dos jornais e revistas impressos, de falta de rumo frente à revolução da internet. Você acha que o jornalismo precisa ser reinventado? Ele se afastou do público e não encontra o seu caminho?
Eliane Brum – Tenho uma visão diferente. Penso que estamos vivendo um momento extraordinário. Com a internet, vêm também coisas muito interessantes. Uma delas é a ampliação da quantidade de narradores. A rede favorece uma horizontalização, todo mundo pode contar uma história. Claro, antes de contar, primeiro precisa construir uma vida e pode-se questionar quando o conteúdo não vale a pena. Mas também há uma ampliação das boas histórias. Isso é uma revolução. Até uns 15 anos atrás, o que não saía na grande imprensa simplesmente, não existia. Hoje, se não sai na grande imprensa, não há problema. É contado em outros meios, em blogs, microblogs, redes sociais, vários meios. Essas outras fontes de informação passaram a alimentar também a grande imprensa. Jornal da ABI – Como fica a reportagem nisso tudo?
Eliane Brum – Penso que a reportagem se fortalece nesse momento. Cada vez se torna mais necessário contar boas histórias. Nesse sentido, não há mudança. O que muda são as relações entre a sociedade e a imprensa, na medida em que tu tens várias iniciativas, como a própria Pública (apublica. org), no Brasil, ou a Pró-Pública, no exterior, que estão criando novos caminhos para financiar suas reportagens, publicando-as pela internet. Tu tens um site, divulga o projeto e recebe financiamento independente, de organismos e instituições internacionais ou até doações. Quer dizer, as relações de poder se alteram radicalmente. A reportagem ganha força num mundo cada vez mais novidadeiro, mais mutante, em que novos atores estão surgindo.
Jornal da ABI – A grande imprensa aprendeu a lidar com essa nova situação?
Eliane Brum – Diferentemente do que muitos dizem, não sei se a grande imprensa está perdida com tudo o que vem acontecendo. Mas, pelo menos, tem sido omissa. A internet é uma realidade com a qual os grandes jornais e revistas ainda não aprenderam a lidar. E penam não porque não estão fazendo uma revolução com seu jornalismo tradicional, mas porque precisam voltar a fazer mais reportagem. Coisa que leva tempo, demanda dinheiro, precisa de seriedade, precisão e muito trabalho. Isso não mudou. Prova é que existe no mercado espaço para revistas como a Piauí, que trabalha com grandes reportagens.
As redes sociais confirmam essa importância. Jornal da ABI – Sua saída da mídia impressa tem a ver com tudo isso? E como tem sido sua experiência com a internet? Dá para fazer textos e reportagens longos?
Eliane Brum – Saí da Época em março de 2010 para ser independente. Mantenho um vínculo com a publicação somente por meio de minha coluna semanal na internet. Hoje, minha vida de repórter se desenvolve no mundo virtual e essa tem sido uma grande experiência. Sempre ouvi aquela bobagem de que a internet é para textos curtos e leituras rápidas e me questionava por quê. Isso é jogar fora uma chance única. Pela primeira vez não temos as disputas de poder impostas pelo espelho, não temos os limites do espaço, não temos o ônus do preço da impressão e do papel. Não podemos desperdiçar tudo com textos rápidos, superficiais e curtos. Minhas colunas costumam ser longas e tenho feito várias experiências narrativas, como o resgate das grandes entrevistas, cada vez mais limitadas no impresso. Pelo menos uma vez por mês publico grandes entrevistas com cerca de 60 mil caracteres, o que daria quase 30 páginas em revistas. Que veículo daria tudo isso para publicar uma entrevista, ainda que fosse muito boa? Dizem que leitores não lêem textos longos no computador. Mas qual é a pesquisa que diz isso? Não existe. Era um tipo de dogma. Agora, com a internet, podemos medir isso. Eu, por exemplo, sempre acompanho minha audiência. Meu terceiro texto mais lido na coluna é uma entrevista que daria 30 páginas. Os leitores não lêem textos ruins, textos que não respeitam sua inteligência. Estou usando a internet para fazer textos cada vez mais aprofundados, entrevistas mais longas em que as pessoas possam desenvolver aquilo que pensam. Estou muito otimista em viver este momento histórico, sinto-me privilegiada ao presenciar uma mudança tão grande. Jornal da ABI – Sua opinião não seria uma exceção, já que outras pessoas enxergam o atual momento de modo diferente?
Eliane Brum – Creio que não. O Twitter é outra ferramenta que se tornou importante para mim e pela qual me comunico com vários outros jornalistas que pensam da mesma maneira. Exemplo disso é o caso de Belo Monte. No canteiro de obras da usina não há ninguém da grande imprensa. A obra está parada, todo mundo em greve. Mas o Ruy Sposati, do movimento Xingu Vivo Para Sempre, está lá, tuitando e informando sem trégua. O Felipe Milanez está em Dourados, em Mato Grosso do Sul, fazendo reportagens sobre a violência contra as lideranças in-
dígenas de forma independente, sem vínculo com nenhum veículo da grande imprensa. Tenho vários amigos jornalistas que saíram da grande imprensa, articularam-se internacionalmente e hoje publicam suas matérias em jornais como o The Guardian e o El País. Quem está percebendo essas mudanças está conseguindo fazer muita reportagem. O que não mudou é a aventura e a experiência fascinante que a reportagem proporciona. Acho ruim generalizar e dizer que a grande imprensa não investe mais nisso. Alguns veículos estão buscando o seu caminho. Há, sim, muitas dúvidas. Mas quando existem muitas perguntas o mundo tende a melhorar. Não vejo toda essa “crise” como algo ruim. Jornal da ABI – Pode explicar melhor por que você optou por deixar a revista impressa e ficar só na internet?
Eliane Brum – Não foi uma atitude intempestiva, mas algo pensado, construído, uma transição que eu queria fazer na minha carreira. Tinha um bom emprego, tinha – e mantenho – uma boa relação com a Época e com a Editora Globo; tinha espaço e podia fazer a matéria que achasse mais relevante, tinha a liberdade de escrever sobre o que quisesse. Para muitos jornalistas esse é o melhor dos mundos, um ideal. Mas eu queria mudar, era algo que partia do meu interior. Entre os anos de 2008 e 2010, eu trabalhei na reportagem com a questão da morte. Numa delas, acompanhei uma mulher chamada Ailce, nos últimos 115 dias de sua vida. Não trabalhei com a questão da morte que a imprensa costuma tradicionalmente cobrir, a morte violenta. Mas a morte que a maioria de nós vai ter, que não será com uma bala perdida, acidente, assassinato, mas pela idade, por alguma doença, a morte que é tão calada na sociedade. Foram dois anos mergulhada nisso. A gente perde muito quando se cala sobre esse assunto, porque a morte serve para falar da vida. Por ser tão calada, perdemos muito. Ao mergulhar nesse tema, fiz um profundo confronto com a minha vida. Ao acompanhar a Ailce, uma frase dela me marcou muito: “Quando eu tive tempo, descobri que o meu tempo tinha acabado”, mais ou menos isso. Ela tinha acabado de se aposentar, estava “aproveitando”: viajava, saía para se divertir quando descobriu que tinha câncer e era um câncer incurável. Isso tocou muito forte em mim. Sempre vivi com verdade – as minhas verdades, o que significa também confusão – e sempre com muita intensidade. Não tinha uma vida chata, minha vida sempre foi muito interessante, mas eu queria mais. Descobri naquele instante com essa questão da morte que precisava me reapropriar do
meu tempo, pois é a coisa mais importante que temos, talvez a única coisa. Queria ser dona do meu tempo, para trabalhar no domingo e ir ao cinema na segunda, para ficar olhando a chuva cair o dia inteiro se me desse vontade, para experimentar outras coisas. Sou muito curiosa, gosto de contar histórias, mas sou muito “escutadeira”. Queria experimentar outros jeitos de escutar, de contar histórias. Queria ser mais viva ainda. Para isso, não podia ter um emprego com horário fixo, que tivesse que ir todo dia. Queria ampliar meus passos de liberdade. Jornal da ABI – Mas você também teria essa liberdade se a sua coluna estivesse na Época...
Eliane Brum – Não sei, não competia só a mim. Mas o que mais me diverte na minha coluna é que posso publicar nela entrevistas de 60 mil caracteres. Achei o ambiente perfeito para mim na internet (risos). Sofri muito com essa questão do espaço, que sempre foi um tormento para mim. Meu sonho era que existisse uma revista com páginas que se abrissem como um folder e que desse mais espaço para minhas matérias. A internet é uma forma melhorada desse sonho.
Jornal da ABI – Você já disse que ao fazer uma reportagem já a imagina pronta, diagramada e publicada. Depois de escrever, ainda continua participando da produção da matéria? Interfere na diagramação, na escolha de fotos?
Eliane Brum – Continuo acompanhando de perto. Aprendi cedo a dominar de certa forma o processo inteiro. Não digo que o jornalista deva dominar o trabalho em todas as etapas, mas ao menos deve conhecer. Para mim, a matéria não está pronta quando termino de escrever, só quando o leitor ler. Ainda mais: a cada leitura haverá uma interpretação diferente do texto e a criação de algo novo, do recomeço do ciclo. Com essa consciência, nunca terminei de escrever, entreguei o texto para o editor e fui embora. Nunca. Tanto no Zero Hora quanto na Época, após pensar na pauta, conversar com o diretor de Redação, sentava com os fotógrafos, com os diagramadores – agora chamados de designers – e trocava mais idéias. Fotos, títulos e até legendas têm que dialogar com o texto. A diagramação deve surgir a partir da veia da história. Quando você fala sobre a literatura da periferia ou movimentos como o hip hop não pode usar o mesmo formato. Precisa mudar a estética. Sempre me diverti muito com isso. Trabalhei com poucos profissionais, principalmente na fotografia, mas gente excelente. Todo mundo se sentia autor também da matéria. Isso ajuda na percepção. Há coisas que eu não enxergo, mas o fotógrafo
enxerga. Antes de ir para a rua, tu só tens uma idéia. Torce para que dê tudo errado e fique mais interessante. Quando voltamos, fazemos uma reconstrução coletiva. Jornal da ABI – Esse parece ser um ideal para o jornalista...
Eliane Brum – É um caminho pelo qual lutar, apesar de que muitos preferem o mais fácil, terminam de escrever e vão embora. Eu aproveito, já que sou eu mesma que fecho minhas matérias há mais de dez anos. Depois que edito, a reportagem passa para o diretor de Redação dar uma olhada e para a revisão. Fico junto, pois apesar de ler centenas de vezes, sempre passa algum erro. Na Época, os momentos de revisão eram gratificantes. A equipe era boa e tinha muito amor pelas palavras, para ver o melhor, discutir entre um termo e outro. Eu peguei o costume de só ir embora quando a matéria desce, ou seja, vai para a gráfica. Assim, passei a ser sempre a que vai embora por último. Aprendi que preciso cuidar da matéria até o fim. Depois, ela segue impressa na publicação para cada leitor. Aí, já não é mais minha, é do mundo e cada pessoa a interpretará do seu modo.
Jornal da ABI – Por que esse cuidado quase literário com a reportagem?
Eliane Brum – São fruto de várias influências. Primeiro, tudo que faço é com convicção pessoal. Acredito profundamente no que escrevo. Para mim, ser jornalista nunca foi um emprego. Não é apenas trabalho, não é o que eu faço, é o que eu sou. A minha forma de me expressar é pela palavra escrita, especialmente, pela reportagem. Sou repórter porque quero saber como as pessoas sentem as suas vidas. Em minha opinião, se existe algo importante para ser apurado é aquilo que dá sentido à vida das pessoas. A rigor não existe um sentido inerente à vida, há um caos. Mas eu procuro descobrir como as pessoas constróem sentido, reinventam tudo várias vezes, mesmo com muito pouco. Isso é transformador, porque só existimos pela narrativa, por aquilo que contamos e pelo que é contado da gente. Então, tu escutares a história das pessoas é algo muito grande, muito sério e de muita responsabilidade. Como respeito muito essa responsabilidade, sempre perguntei muito, sempre me propus ouvir. Ser jornalista é documentar, é contar a história cotidiana, a história contemporânea. O que a gente produz é documento histórico. Seja uma nota ou uma matéria de 20 páginas. Mesmo que um documento histórico sobre a nossa incompetência. Não estamos imprimindo papel para embrulhar peixe no dia seguinte. Produzimos documentos que vão influenciar as pessoas agora, que vão ajudar as pessoas no futuro a
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“Notícia não tem natureza. A notícia é uma escolha social, política e econômica.” entender esta época. Isso constrói a minha vida. Jornal da ABI – Como foi a experiência de ser curadora de uma série de programas sobre a reportagem no fim de 2011?
Eliane Brum – A idéia do evento foi, primeiro, fazer uma homenagem ao Audálio Dantas, por toda a sua trajetória. Era a primeira edição de uma série chamada Repórter, exibida no programa Jogo de Idéias, do Itaú Cultural e que vai para diversas televisões públicas, comunitárias e universitárias. Fiz a curadoria e o objetivo é discutir a reportagem, com a participação de profissionais de diferentes gerações para debater o que é ser um repórter, quais são os princípios, quais são as ferramentas, em que errou, o que aprendeu. Além do Audálio, tivemos o Ricardo Kotscho, o José Hamilton Ribeiro e dois repórteres que construíram sua reputação na internet: a Natália Viana, criadora da primeira agência de jornalismo investigativo independente, a Pública, e o Leonardo Sakamoto, do Repórter Brasil, que ganhou visibilidade fazendo reportagens sobre o trabalho escravo no Brasil. Também trouxemos uma repórter que está em situação de rua, a Rosângela Ramos. Jornal da ABI – Esse primeiro programa teve o resultado que você queria?
Eliane Brum – As conversas foram muito legais. Sou suspeitíssima para falar sobre isso, levar aquelas pessoas para falar sobre reportagem foi maravilhoso, mas eu fiquei decepcionada com o público. Um evento gratuito, com aquele nível de jornalistas, deveria lotar. Jornal da ABI – Você esperava muitos estudantes de Jornalismo, não?
Eliane Brum – Eu sempre espero. Sou muito otimista. Houve coisas interessantes. Por exemplo: três estudantes vieram de Natal exclusivamente para o evento. Eram três moças que estudavam na Federal de lá. Mas o público que estava lá era bom! Não em termos de quantidade, mas de qualidade! E houve o público da internet, pois o programa foi transmitido ao vivo pela internet. Jornal da ABI – Fale um pouco desse projeto em que a Rosângela está envolvida em Porto Alegre.
Eliane Brum – Ainda pouco conhecido, o projeto é fantástico: um jornal impresso chamado Boca de Rua, de Porto Alegre, que está completando dez anos. É um dos poucos jornais no mundo, talvez o único, feito por moradores de rua, desde a concepção da pauta, entrevistas, fotos. E ainda vendem o jornal. Por isso, dizem que são jornalistas e jor-
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naleiros. O trabalho é bancado por uma organização não-governamental, a Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice). No começo, poucos repórteres conseguiam escrever. Por isso, gravavam os textos, que depois eram passados da linguagem oral para a escrita. Agora não. Muitos, como a Rosângela Ramos, escrevem suas matérias. Eles têm um jeito próprio de fazer os textos, usam gírias próprias, cumprem pautas que acham relevantes. É um jornal mesmo. Entrevistam autoridades, fazem denúncias sociais. O que chama a atenção, que é ao mesmo tempo trágico e muito bonito, é que muitos dos primeiros que começaram a escrever para o jornal estão mortos. Morreram por ter levado um tiro, por overdose, por doença. Para cada um que morre, eles preparam outro para o lugar, para que o sonho viva e as pessoas possam viver por conta dessa denúncia constante. É uma história que se mantém viva pela narrativa. Eles se apropriam de sua própria realidade, contam essa realidade e transformam a realidade. Cada jornalista-jornaleiro tem uma cota e fica com parte do dinheiro, como uma forma de sobrevivência. Pela palavra escrita eles rompem o silêncio e acabam com esse muro de separação, fazendo conhecida sua realidade em outras esferas sociais. Esse tipo de história estamos divulgando com a série Repórter. Jornal da ABI – Como você desenvolveu suas convicções em relação ao jornalismo?
Eliane Brum – Fui educada por meus pais, especialmente por meu pai, para ter muito cuidado com a vida e com as pessoas, fazendo o melhor possível, independentemente do que for. Seja escrever, seja varrer a sala da minha casa. Não é arrogância. A vida é muito preciosa para fazermos mais ou menos. É uma questão de personalidade, de caráter, de visão. Jornal da ABI – Mas especificamente em relação ao jornalismo, o que te inspirou a ver a profissão dessa forma, trabalhar com tanto esmero?
Eliane Brum – Acho que minhas inspirações vieram de histórias. Muito mais do que de pessoas famosas, conhecidas, elas vieram de pessoas anônimas. Como repórter, quis contar histórias de gente supostamente comum. Deixeme explicar melhor: somos a história contada. Quando a imprensa deixa de contar a história da maior parte dos homens e mulheres que constróem o País, parece que eles não fizeram nada de importante, mas não é a realidade. O mesmo ocorre quando tu escolhes contar a história dos empreiteiros e não dos pedreiros, quando tu escolhes quem é que mere-
ce ter a história contada se é apenas quem quebra algum recorde, é uma celebridade, faz seu primeiro milhão. Isso não é natural, é fabricado, uma convenção social. Notícia não tem natureza. A notícia é uma escolha social, política e econômica. E quando tu deixas de contar a vida da maior parte das pessoas, estás dizendo que a vida delas não é importante. Isso tem um efeito enorme na vida das pessoas e na forma como as pessoas olham pra si mesmas. A minha opção é de contar a vida de quem parece comum, não é famoso, mas tem muito a dizer. Por isso, digo que sou uma repórter de “desacontecimentos”. Eu me interesso menos pelo que quebra a rotina e mais pelo que tece a vida cotidiana de todo mundo. Mais pelo que nos torna semelhantes e não diferentes. Apesar de que, mesmo no que é comum, achar que todos temos diferenças. E me interessa essa singularidade e também aquilo que nos aproxima. Não é somente uma escolha ideológica, tem a ver com minha trajetória.
Histórias de uma infância árida Jornal da ABI – Essa escolha vem de família, da sua criação?
Eliane Brum – Meus avós paternos e maternos eram da “colônia”, como se diz no Rio Grande do Sul, eram agricultores. Sou descendente de italianos; por parte de pai, a minha é a segunda geração alfabetizada. Meu pai foi o único na família dele que estudou entre 12 irmãos e uma das histórias que me fundam e que é muito marcante para mim é justamente a da primeira professora do meu pai. Ele morava no interior, em Ijuí, num povoado rural chamado Barreiro, e a professora do lugar era uma mulher chamada Luzia de Figueiredo Neves. Essa mulher tem uma história interessantíssima: o pai dela era filho de um grande proprietário de terras, de uma família tradicional no Estado, a Andrade Neves. Ele era sobrinhoneto do General Andrade Neves com uma escrava da fazenda. E no final do século 19, quando a escrava engravida, esse homem, chamado Sabino, que foi educado para ser general, advogado, rompe com a família. A escrava morre e ele cria a filha como professor de povoados rurais. Assim, ele chega ao povoado rural onde a família do meu pai vive. E a Luzia, que é filha de uma escrava com um estancieiro, torna-se a professora do meu pai. Ele sempre conta que foi quem nos arrancou da cegueira, a cegueira das letras. Todo ano, no dia de Finados, meu pai leva flores ao túmulo dessa professora. E eu o acompanho, viajando para Ijuí. Essa é uma das histórias que me constituem.
Outra coisa marcante é que sou filha temporona. Antes de mim, meus pais perderam outra filha. Quando eu nasci, meus irmãos já eram bem mais velhos. Dessa forma e com meus pais professores, trabalhando manhã, tarde e noite, fui criada pela empregada. Eu dormia no quarto dela, que era uma mulher muito amarga. Só se transformava quando ouvia novela de rádio. Quando ela ouvia novela de rádio, chorava, ficava amorosa e acho que até me amava um pouco. Tudo isso fez com que eu prestasse atenção, desde cedo, no poder das histórias. Como contar e ouvir têm o poder de mudar vidas. Na casa dos parentes, em vez de brincar, eu ficava quietinha, sentada num canto, enquanto eles pitavam, passando a cuia de chimarrão de um para o outro, e comendo bolachas com enfeite branco em cima. Conversavam e eu ficava ouvindo as histórias. Essas foram as primeiras coisas que me influenciaram a escrever e, depois, a me tornar jornalista. Mais tarde, aprendi a ler. Acho que estou viva porque me tornei capaz de ler. A infância, para mim, foi árida, passada num lugar sofrido. Quando aprendi a ler, passei a viver várias histórias diferentes, ir a outros mundos, conhecer pessoas. Trancavame no quarto com cinco livros e não saía nem para comer. Não demorou para começar a ler livros de adultos. Ainda bem que meus pais tinham muitos. Quando não tinha mais opções, ia a uma livraria. Lá, trabalhava uma moça chamada Lili, até já escrevi sobre ela. Quando percebeu que eu adorava ler, deixou-me ficar num cantinho com livros que eu não precisava pagar. Por isso, para mim, a vida só é possível na palavra escrita. Antes de qualquer autor, qualquer escritor ou jornalista me influenciar, quem me influenciou foram essas pessoas: a Luzia, que eu nunca conheci, mas para quem sempre dou flores; a mulher que cuidou de mim e se transformava ouvindo novelas de rádio; meus tios e suas histórias fantásticas, meu avô, que falava sobre Pedro Malasartes e seus tesouros e fantasmas. A família da minha avó também é cheia de fantasmas que andam pela casa. Claro, há vários autores que eu admiro, mas sou tão influenciada por eles quanto pelas pessoas que eu escutei em 24 anos de reportagem. Cada uma me transforma, acrescenta muito em minha vida. Muitas vezes eu estive diante de analfabetos e tive vontade de me ajoelhar, a pessoa fazia literatura pela boca. A linguagem oral do brasileiro é muito rica, cheia de invenções, de achados. Jornal da ABI – Para usar outro termo na moda: você sofreu bullying na infância? Por que se auto-exilou? E só para esclarecer:
o sofrimento é por causa do lugar onde morava?
Eliane Brum – Creio que meu comportamento teve várias razões. Sempre fui de uma sensibilidade extrema, andando por aí em “carne viva”. Minhas primeiras lembranças são das dores das pessoas ao meu redor, as diferenças em suas vidas. Fui sensível, mas também braba. Não era o tipo de criança que sofria bullying, era briguenta. Carrego essas duas personalidades dentro de mim. Outro ponto é que minha família foi marcada pelo luto. Minha irmã teve uma morte repentina, muito traumática, especialmente para minha mãe. Isso alterou a vida de todos. Meus pais venderam a casa que tinham construído e foram morar num tipo de apartamento, em cima da casa da minha avó, um lugar escuro. Como todos trabalhavam, e muito, cresci sozinha. Via a vida como impossível. Tanto que comecei a escrever aos nove anos uma poesia, ou pelo menos uma tentativa. Acordei, num domingo de manhã, com um sentimento de profundo desespero. Todos estavam dormindo e o dia estava nublado. Abri a janela do quarto e comecei a escrever. Não parei mais. Jornal da ABI – O que te impressionanavidadepessoasanônimas?
Eliane Brum – O que me fascina é como as pessoas dão sentido à sua vida. Em 1999, eu fazia uma coluna de reportagens chamada A Vida Que Ninguém Vê, ganhou um Esso, depois virou livro e ganhou o Jabuti. Saía todo sábado e nela eu escrevia só sobre “desacontecimentos” e gente que jamais seria notícia. O retorno era enorme e aprendi a importância que tem esse tipo de jornalismo. A pauta não era totalmente definida, mas sempre montada a partir de coisas que enxergava e intuía. Hoje, aprendi a racionalizar tudo isso e percebo que foi a verdadeira porta de entrada no mundo da reportagem.
Jornal da ABI – Como era o retorno dos leitores?
Eliane Brum – Recebia cartas e telefonemas. As pessoas diziam: “O que tu escreveste sobre tal pessoa mudou minha visão. Percebi que minha vida não é desinteressante, mas importante”. Então contavam suas histórias e algumas viravam matéria. Uma dessas histórias foi a do Vanderlei. Não sei onde ele está hoje, mas naquele tempo, eu o encontrei na ExpoInter, a maior feira agropecuária do Rio Grande do Sul. Todo ano havia leilão de gado, premiação de cavalos e... vinha o Vanderlei. Saía de Uruguaiana, na fronteira do Brasil com a Argentina, e trazia um cabo de vassoura. Viaja com os bichos, de carona nos caminhões. O cabo de vassoura era o cavalo dele e ele o fazia passar por todos os trâmites burocráti-
cos, pela inspeção veterinária e passava os dias da exposição cavalgando no cabo de vassoura. O rapaz copiava todos os movimentos do Freio de Ouro, o concurso em que os cavalos competiam. Todos o chamavam de “louquinho da ExpoInter”. A gente sempre precisa classificar, rotular, quem nos incomoda, né? Certo dia, cheguei nele e perguntei: “Vanderlei, tu és louco?”. Ele me respondeu: “Eliane, tu achas que eu não sei que o meu cavalo é um cabo de vassoura? Pensa: tu achas que algum dia eu terei condições de ter um cavalo? Minha vida não fica muito melhor se eu acreditar que meu cabo de vassoura é um cavalo é?”. Essa história representa muito bem aquilo que busco. O Vanderlei apenas radicaliza a busca que é de todos nós. Todos temos um cabo de vassoura, mas precisamos transformá-lo em um cavalo de raça. Isso não é ruim, pelo contrário, talvez seja o que mais me fascina no ser humano.
Jornal da ABI – O bom repórter sempre enfatiza a observação e o “sujar os sapatos”, como essenciais ao jornalismo. Pode falar um pouco sobre isso?
Jornal da ABI – Conte como você começou na editoria de polícia.
Eliane Brum – Eu cursava História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Jornalismo na Puc, mas achava que não seria jornalista porque era muito tímida e não gostava de ler jornal, achava chato, burocrático. Até que, no último semestre de faculdade, tive que fazer o estágio. Peguei um professor chamado Marques Leonam, que ajudou a mudar meu rumo. Ele trouxe reportagens que nos surpreenderam. Finalmente, vi que aquilo em que acreditava era possível ser feito. Ele era apaixonado por reportagem e nos deixava apaixonados também. Pudemos escolher um tema para fazer uma grande reportagem e eu escolhi falar sobre filas. Todas as filas em que a gente entra desde que nasce até morrer. Hoje não é um tema muito comum, mas naquele tempo, para o jornalismo do final dos anos 1980, era uma coisa bem surpreendente e pouco aceita. Mas o Leonam achou maravilhoso e me deixou fazer. Uma amiga minha inscreveu o texto num concurso que acontecia nas universidades do Sul, o Set Universitário. Havia um júri formado por jornalistas e publicitários e apresentávamos o trabalho a eles. Na minha vez, os jornalistas disseram que o que eu fazia não era jornalismo. E os publicitários diziam que, sim, era. Não sei se foi porque havia mais publicitários que jornalistas ou eles eram mais persuasivos, mas o fato é que ganhei. O prêmio foi um estágio no Zero Hora. Fiquei um mês no jornal, saí, mas eles me chamaram como freelancer para cobrir as eleições de 1988. Era um trabalho miúdo, mas eu gostava. Eu contava um monte de histórias pequenas e acabei ficando no jornal por onze anos. Nesse tempo, cobri mui-
to Geral e Polícia, que eram ligadas. Mas fazia mais de Geral. Jornal da ABI – Que reportagens eram essas que o professor te trouxe?
Eliane Brum – Eram textos fascinantes, alguma coisa do Joel Silveira. Naquele tempo não tínhamos acesso a esse material. Não passavam na faculdade, não havia internet e encontrar livros, mesmo em sebos, era muito difícil. Só tive acesso mesmo a obras de jornalismo literário e do New Journalism norte-americano muito depois. O primeiro texto do Gay Talese, por exemplo, só fui ler em 1995, bem depois de formada. Jornal da ABI – Uma vez você disse que esse professor costumava escrever: “Quando o jornalista é mais importante que a notícia, um dos dois não é verdadeiro”...
Eliane Brum – Quando eu escrevo na primeira pessoa, aí me assombro... Jornal da ABI – Mas o mestre também não pode errar de vez em quando? Como essa frase se aplica a você?
Eliane Brum – Acredito que essa é uma frase muito importan-
te. Mas a questão não está na terceira pessoa, mas na primeira. A terceira só mascara a identidade do narrador. A história a ser contada deve ser importante e universal, não as peripécias do jornalista. Ela não pode ser voltada para o umbigo. A tua presença só se justifica na reportagem pelos episódios que contas e não pelo “eu”. O fato contado é que deve ser importante, não porque tu estás nele. Jornal da ABI – O que você acha da reportagem feita na televisão?
Eliane Brum – Eu não acompanho. Gosto de pouquíssima coisa na tv. Vejo o programa Profissão Repórter, do Caco Barcellos, o Globo Rural, às vezes. Prefiro ler.
Jornal da ABI – Você costuma dizer: “A melhor coisa que pode acontecer é a realidade virar nossa pauta de cabeça para baixo”. Por quê?
Eliane Brum – Sempre me chamam para palestras em faculdades de Jornalismo e costumo repetir isso nessas ocasiões. Não é somente uma frase de efeito. A melhor coisa para o jornalista é sua pauta dar errado. Quando tu pensas numa pauta, tens uma idéia fixa, que já vem de algum lugar.
Mas a realidade é muito mais complexa. Na rua, descobrimos que tínhamos somente o ponto de partida. Aí, realmente nasce o jornalismo, do espanto. Temos que ir às ruas, não podemos perder a capacidade de nos espantar e receber o novo. O novo é extraordinário e, provavelmente, ainda não foi contado. Falar sobre ele é a função primeira do jornalismo. Fazendo isso, conseguimos histórias muito melhores para ser contadas. Outra coisa que costumo dizer nessas palestras é que a primeira idéia que temos normalmente é ruim. A segunda, provavelmente, também. Tu precisas te provocar, colocar no lixo uma após a outra, até encontrar algo melhor. Só depois sair e encontrar o novo. Quando escrevo, eu o faço como leitora também. Gosto de me surpreender, encontrar coisas novas pelo caminho e não tenho medo de, vez ou outra, fazer um pouco dessa caminhada no vazio. Jornal da ABI – Quais são suas regras na hora de formatar uma pauta?
Eliane Brum – Simplesmente evito regras. Cada texto tem um jeito, tu tens que descobrir que texto é aquele e o que a história pede.
Eliane Brum – Para mim, são os dois elementos naturais ao jornalismo: olhar e escutar. É escutando que a gente apreende o mundo, é pela escuta que tu te espantas, que vem o novo. Eu, quanto mais velha fico, menos perguntas faço. Não quando é para publicar uma entrevista, claro. Mas na hora de apurar. Vou dar um exemplo concreto: há dois anos, fiz uma matéria sobre um casal de mulheres que, pela primeira vez no Brasil, conseguiu registrar os filhos no nome delas. São duas psicanalistas. A Carla engravidou por inseminação artificial e a Michele disse para o juiz que não poderia adotar filhos que sempre foram dela. Ela tinha sonhado, desejado, acompanhado esses filhos. Não interessava a gestação biológica. Eram delas de uma forma muito mais ampla, mais subjetiva. O juiz aceitou os argumentos e as duas se tornaram mães. Mas no começo, quando entrei na sala da casa delas, encontrei-as tensas, preocupadas, pois iam falar sobre um assunto delicado. Queriam saber por onde começar e eu perguntei por onde queriam começar. A Michele começou a falar sobre uma história de sua adolescência, muito importante, mas sobre a qual eu jamais saberia perguntando. Na hora, até a Carla se espantou, pois não sabia daquilo. Era um elemento fundamental para um bom texto sobre elas. Muitas vezes, as perguntas se transformam numa forma de controle. Quando tu começas a perguntar para um lado e não para o outro, já estás direcionando a história que tu queres ouvir. E eu preciso descobrir qual é a história que as pessoas querem contar. Essa é a minha primeira curiosidade. É pela escuta que tu apreendes o ritmo que as pessoas falam, as palavras que elas usam. O mesmo aconteceu com a Ailce. Nos quatro meses que passei a seu lado, nunca mencionei a palavra câncer. Só assim eu descobri que ela morreu sem pronunciar o nome da doença que a mataria. Se eu tivesse chegado e perguntado: “Como tu lidas com o teu câncer?”, eu jamais saberia algo vital da história dela. Eu teria minha história, poderia ser boa, mas não a dela. Quando digo escuta, refirome à escuta ampla. Não só das palavras, mas do silêncio, dos quase-ditos, dos não-ditos. Às vezes, o que a pessoa deixa de dizer é tão importante quanto aquilo que ela disse. Outras, ela pára de falar, aí cometemos o equívoco de tentar dizer algo e esquecemos que, no silêncio, ela diz coisas que precisamos ouvir. É a escuta dos gestos, das estruturas móveis, do olhar, da roupa, de como estão as unhas, tudo mexe com toda a complexi-
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FOTOS: ACERVO PESSOAL
Quatro histórias de Eliane Brum: em 2001 ela esteve no território ianomâmi, em Roraima, e também no mangue pernambucano, onde fez uma matéria sobre os caçadores de caranguejo. Em 1993, no sertão nordestino, quando refez os 25 mil quilômetros da Coluna Prestes. Finalmente, com tios de Lula, em Caetés, PE, em 2003.
dade do real. É dessa escuta que precisamos nos reapropriar como instrumento da reportagem. Hoje, muitos jornalistas se deixaram reduzir a portadores de aspas em série: “fulano disse, cicrano afirmou”. Reduzimos a complexidade do real, o que é criminoso. Sujar o sapato na rua e aprender a observar é essencial. O que eu mais gosto é de não ter pauta. Por exemplo, a matéria que eu fiz de Roraima, “A guerra do começo do mundo”, que está no livro O Olho da Rua. Tudo começou num dia em que eu estava na Redação, com aquela cor amarela, toda desenxabida. E o pessoal começou a falar para eu ir para Roraima. As matérias de que eu mais gosto são as em que eu vou para um lugar sem saber o que vai acontecer, sem ter um objetivo que não seja o de me perder. A gente precisa se perder e aí vai começar a se achar. Jornal da ABI – Mas quando você faz uma matéria, como a Enfermaria entre a vida e a morte, sobre uma enfermaria de cuidados paliativos, também publicada em O Olho da Rua, faz várias citações de autores. Quando estuda sobre o tema?
Eliane Brum – Na verdade, sempre estudo muito. Quando fui para Roraima, li muito sobre o Estado. Mas não gosto de ir com uma idéia fixa. Normalmente, quando chego no lugar, mudo a pauta pelo que vejo e escuto. No caso que tu citaste, eu ia escrever sobre a morte. Eu li tudo o que foi possível sobre o assunto, fosse bom ou ruim, coisas que valeram a pena ou não. Tentei entender a história da morte, a antropologia da morte; como é que a morte foi vista ao longo dos séculos, ao longo da história. Os livros que as pessoas que tinham câncer estavam escrevendo. Precisava dessa preparação. Só posso perder algo que tenho. Essa perda é uma decisão, uma escolha. Se, de cara, tu já não sabes nada, começa perdido. E em vez de estar na condição de adjetivo, prefiro estar na de um verbo. Jornal da ABI – Só ler algumas matérias, como a sua sobre a questão da morte, já causa angústia. Como você agüentou essa pressão? Na hora de escrever a dor dá lugar ao prazer?
Eliane Brum – Eu acho que as duas coisas estão juntas. A vida tem de tudo um pouco. Mesmo profunda, não é só dor, senão não há saída. Tenho uma dificuldade muito grande com limites. Essa é uma questão que eu tenho tentado melhorar. Tive problemas na matéria da meditação, que me levaram ao hospital. A matéria da morte me arrebentou, mas de outra maneira. Levei anos para elaborar tudo que aconteceu, mas reconheço que ganhei muito também. Por exemplo, a capacidade de transformar a minha vida de
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uma forma muito profunda. Perco uns pedaços por aí, mas depois me recomponho. É importante se aprofundar no objeto de sua investigação, mas deve haver limites e reconheço que preciso aprender a lidar melhor com eles. Jornal da ABI – Naquela matéria sobre a meditação você ficou com três hérnias...
Eliane Brum – Na cervical. Tive que sair de licença médica depois para me tratar. Lembro que havia intervalos e tempo para dormir. Mas, no total, foram mais de 100 horas na mesma posição. Para quem não tem o hábito é fatal. Tente ficar cinco minutos parado, na mesma posição, a cabeça pesa, o corpo não agüenta. No sexto dia, comecei a sentir dores terríveis, mas não queria parar. O mestre me mandou “aceitar a dor” e obedeci. Sou muito obstinada. Nos últimos dias, consegui esquecer a dor. Ela continuava lá, mas eu estava em outro lugar. Quando voltei para casa, não conseguia mais sequer amarrar os cadarços do tênis. Jornal da ABI – Mas enquanto você estudava sobre a morte, também escrevia um livro e fez um documentário. Como foi isso?
Eliane Brum – Eu tinha topado fazer a matéria e falar sobre a Gretchen era um sonho antigo. Penso que boas histórias encontram a gente e não o contrário. Quando elas nos encontram, não nos deixam em paz até serem contadas. Quando a Gretchen fez 25 anos de carreira, eu quis fazer uma matéria: uma mulher que passou a vida inteira rebolando Brasil afora deve ter muito a dizer sobre o País. Queria acompanhar a Gretchen, mas não consegui fazer essa pauta. Quando ela completou 30 anos de carreira, não estava mais pensando no assunto. Já tinha deixado para “depois”. Mas encontrei o Paschoal Samora, que é um diretor de documentário e amigo meu e surgiu a oportunidade de trabalharmos juntos. Minha idéia era acompanhar um pouco a Gretchen pelo País, ele adorou e a produtora em que trabalhava, a Mixer, bancou o projeto. Quando falamos com a Gretchen, descobrimos que ela seria candidata nas eleições, quer dizer, ficaria muito mais saborosa a história. Mas precisava ser feita naquele ano, por causa da campanha. Tive que juntar as duas coisas. Também levar junto o projeto do livro O Olho da Rua, que já estava em andamento. Jornal da ABI – Sua rotina devia ser uma loucura...
Eliane Brum – Eu sempre trabalhei muito, isso me deixa viva. Com a Ailce, havia uma rotina. Eu ligava para ela todos os dias, mais ou menos no mesmo horário, depois do almoço. Ia à casa dela uma vez por semana e passava a manhã, a tarde ou o dia todo com ela. Na sexta-feira, acompanhava o que se chama de “visitão” na enfermaria do hospital, que é quando toda a equipe visita paciente por paciente. Chegou a época em que eu tinha que viajar para acompanhar a Gretchen em Itamaracá, Pernambuco. Foram duas vezes e, como eu não tirava férias há cinco anos, aproveitei. Mesmo assim, ficava ligando para a Ailce de lá. Só que complicou, pois eu fui ficando dividida, angustiada. Na segunda oportunidade, durante a campanha política, a Ailce já havia morrido e eu estava terminando o livro. Levei as provas e ficava revisando. Enquanto toda a equipe ia descansar, eu ia revisar. Andava cheia de dicionários e vocabulários de todo tipo por causa desse trabalho. E mandava aos poucos pelo correio. Mas reconheço: o ano foi bem difícil. Jornal da ABI – Esse não foi seu primeiro documentário. Como você decidiu fazer cinema?
Eliane Brum – Durante a vida, a gente vai se abrindo para novas experiências e mudando junto. Acho que os documentários surgem de algo que eu não poderia fazer como reportagem impressa. Eu tinha que contar a história, mas tinha que encontrar um jeito de contá-la. A oportunidade aparece e você faz, não é algo tão planejado, como uma carreira. No caso da Gretchen, eu não consegui fazer como reportagem. Uma História Severina, minha primeira experiência em documentário, foi realizado em 2005. Eu acompanhava essa história e já tinha feito várias matérias sobre a anencefalia, até uma sobre o primeiro caso a ir para o Supremo. Várias mães pobres dependiam dos serviços públicos de saúde para interromper a gestação anencéfala e eram obrigadas a entrar na Justiça. Só que o processo era tão demorado, que o bebê acabava nascendo antes da decisão judicial. Houve a ação para que as mulheres que tivessem feto sem cérebro pudessem interromper a gestação sem a necessidade de entrar com ação judicial, porque esses fetos morrem em 100% dos casos, ou antes do fim da gestação, ou horas, no máximo, dias depois da gestação. Quando a ação chegou ao Supremo, o Ministro Marco Aurélio de Melo deu uma liminar determinando que enquanto não fosse julgado o mérito elas poderiam interromper a gestação. Mais tarde, em 2004, a liminar foi derrubada e até agora o Supremo não analisou o mérito. Naquela época, um dos ministros disse:
“Mas quem são essas mulheres, a gente nem sabe se essas mulheres existem”. Essa frase me indignou. Como um ministro do Supremo está julgando o destino de pessoas, de seres humanos e faz uma pergunta dessa? Eu e uma antropóloga de Brasília, a Débora Diniz, que também acompanha essa questão, conversamos por telefone e resolvemos fazer um documentário para mostrar quem eram as tais mulheres. Não sabíamos como fazer o documentário, mas começamos levantando no SUS quem eram as mulheres que tinham interrompido a gestação durante o período em que a liminar vigorou, para contar seus depoimentos. Ao ouvilas, mais de 40 delas, encontramos Severina, internada no dia do julgamento da liminar. Caiu a liminar e ela foi colocada na rua, com sua barriga. Apesar de ser analfabeta, agricultora e pobre, ela tinha enorme senso de dignidade. Queria o filho, mas sabia de sua condição, e por isso era terrível suportar a gestação. Acompanhamos tudo, inclusive, o longo dia seguinte, que os ministros do Supremo não sabem que existe por causa de suas decisões. Jornal da ABI – Hoje você está trabalhando em algum novo documentário?
Eliane Brum – Eu particularmente, não. Apenas acompanho o trabalho do meu marido. Ele está desenvolvendo um projeto para falar sobre uma linda história de amor. Bem, não um amor convencional. Mas não posso contar mais, por enquanto.
A descoberta da Coluna Prestes Jornal da ABI – Como foi reconstituir a trajetória da Coluna Prestes, um de seus primeiros, mas mais marcantes trabalhos?
Eliane Brum – Foi em 1993 e eu estava com 26 anos. A primeira grande reportagem da minha carreira. E ela foi fundadora, bem seminal. Eu me apaixonei pelo Brasil e pelo povo brasileiro nessa reportagem, pela diversidade, pelo ritmo, pelas palavras. Era uma gaúcha que tinha saído muito pouco do meu Estado. A primeira vez que andei de avião, por exemplo, foi aos 22 anos e já no jornalismo. Até então, não passava de uma guria do interior que foi para Porto Alegre. Mas não descobri apenas o Brasil, descobri também minhas possibilidades, exercitando meus limites. O mito da Coluna Prestes ainda era muito forte, muito mais presente do que hoje, até por conta do processo de redemocratização que o País atravessava. Para mim, também era muito forte. Quis refazer a Marcha porque era apaixonada pela História. Mas queria ir além do que estava regis-
que eu acompanho com muito interesse, especialmente, em São Paulo. A riqueza do que está sendo produzido é tamanha, que é um privilégio acompanhar. Outro exemplo, além desses dois, é o trabalho do Sergio Vaz, criador da Coperifa. Quando eles realizaram a primeira Semana de Arte Moderna da Periferia, eu fiz uma matéria para a Época, houve mais algum veículo que noticiou e o resto ignorou. Mas a internet divulgou, o evento repercutiu e sempre que uma nova ação é realizada todo mundo vai para cobrir. A relação está mudando. Jornal da ABI – Quais são seus próximos livros em pauta?
trado nos livros de História; queria conhecer o cotidiano e o lado humano da aventura, as dificuldades de atravessar o Brasil na época. Eu queria saber as histórias miúdas e imaginava encontrar coisas pitorescas e engraçadas. Mas quando comecei a ouvir as pessoas, deparei-me com histórias muito diferentes. A Coluna sempre andou pelos lugares mais distantes para escapar das pesadas tropas governistas. Dessa forma, passava por lugares de difícil acesso e também os mais pobres. Quando refiz a Marcha, 80 anos depois, continuavam sendo lugares muito pobres. Imagine só um número de pessoas bem maior do que a população local chegando num vilarejo, precisando comer, vestir, querendo levar o jegue, o burro, o cavalo. Quando a Coluna saía, deixava uma terra arrasada. É lógico, mas ninguém pensa. Nem eu pensava. Pior, quando comecei a ouvir histórias de saques, de estupros, de tortura e de morte. Antes de viajar, liguei para a Anita Leucádia, filha do Prestes com a Olga Benário, para pedir informações. Ela contou que pensou com o pai em refazer a jornada também, mas desistiram, pois as testemunhas daquele período estariam mortas ou velhinhas demais. Ofereceu dar uma entrevista no lugar. Eu fiquei morrendo de medo achando que não iria encontrar ninguém vivo e ninguém que se lembrasse. Mas, por fim, decidi arriscar. Ao contrário, as pessoas lembravam de tudo, porque aquilo tinha mudado a vida delas. Em qualquer lugar que chegava, pedia para falar com o morador mais antigo e era muito bem recebida. Parece que eles estavam esperando para contar aquela história, que nunca tiveram oportunidade de fazer isso. Só encontrei essa realidade porque estava aberta para recebê-la. Ali, aprendi a escutar de verdade. Jornal da ABI – Como você reagiu às críticas a esse trabalho depois de publicado?
Eliane Brum – Eu entrevistei 100 pessoas e dei a ela o nome de A História do Povo do Caminho, que não era nem de um lado e nem do outro. Eles não eram nem governistas e nem rebeldes. Eles não sabiam o que estava acontecendo, só moravam lá, no caminho. Essa consciência só havia em cidades maiores; nas menores, nem jornal chegava. Era algo explosivo e houve uma grande repercussão negativa quando a matéria foi publicada, o que foi extremamente difícil para mim. Eu era uma jovem repórter, que começava a contar histórias e elas eram postas em dúvida. Penso que faltou respeito. Não é uma única versão, mas é uma versão importante que torna a história da Coluna Prestes mais complexa, que torna a História do Brasil mais complexa. Que mostra que a História é feita de homens e não de heróis. A versão do povo do caminho enriquece, complexifica, alarga o entendimento. Mas eu tomei pau de tudo quanto era lado. Mas em 1997 ou 1998 foram abertos os arquivos de Juarez Távora, pela Fundação Getúlio Vargas, e aí foi revelada uma grande quantidade de correspondência, inclusive do comando da Coluna Prestes, com relatos de estupros, saques, torturas e crimes. Tanto que o próprio comando estava preocupado com o que ocorria. Só então a imprensa falou sobre o outro lado. Só quando documentos oficiais, dos letrados, apareceram. A História oral foi rejeitada. Mas me preparou para agüentar o tranco. Não tem nada mais brutal para um repórter que leva a sério o que faz do que ser colocado em dúvida. Jornal da ABI – Alguma crítica te marcou mais?
Eliane Brum – Não, mas até na Redação alguns foram contra mim. Fui pelo jornal Zero Hora e depois escrevi o livro. Até colegas de Redação e o Sindicato dos Jornalistas, partidos políticos e historiadores do Brasil inteiro me criticaram. Saíram algumas rese-
nhas bacanas, na Folha de S. Paulo e no Jornal do Brasil, mas outras foram bem violentas. Jornal da ABI – Isso nos leva a outra história interessante: a do Brasil desconhecido dentro do próprio Brasil. A grande violência do interior, nos garimpos, na Amazônia, onde poderosos fazem o que querem e estão acima da lei e têm a conivência de parte do Poder Público. Onde até o Governo Federal parece não ter poder para mudar essa situação. A grande imprensa fala muito pouco sobre isso. Como você disse, cabe a blogs e redes sociais divulgar. Qual seria o papel da grande imprensa nesse cenário?
Eliane Brum – O Brasil é muito grande, muito complexo e também muito vacilante. Não é só a violência que não é contada, a delicadeza também não tem espaço. Há coisas incríveis acontecendo no Norte, a Amazônia é multifacetada, mas pouco é mostrado. O problema é que não temos uma imprensa nacional, apenas aquela do Centro-Sul, de Brasília, São Paulo e Rio, que às vezes vai para outros lugares. Não é só a distância, a questão é de olhar. Porque a periferia de São Paulo, algumas vezes, torna-se tão distante quanto a Amazônia. As distâncias são subjetivas. Há exceções, mas a imprensa em geral existe para a classe média do Centro-Sul. Com a internet, isso começa lentamente a mudar. Hoje, há muita gente contando várias histórias que a gente não conhecia antes. Há jornalistas indo para esses lugares e contando histórias. Há pessoas desses lugares documentando suas histórias em vídeo, escrevendo livros, na internet.
Jornal da ABI – Você também tentou retratar essa questão do desconhecimento da periferia com matérias, como a da Brasilândia e do envolvimento dos jovens da periferia com o islamismo.
Eliane Brum – Sim. A literatura da periferia é um movimento
Eliane Brum – O próximo é uma coletânea da qual participo. É um livro que foi publicado em outubro do ano passado, na Itália, sobre os 40 anos dos Médicos Sem Fronteiras. Eles pegaram nove escritores de diferentes partes do mundo e cada um foi para um projeto dos Médicos Sem Fronteiras. Eu fui fazer a doença-deChagas, na Bolívia. O título é Dignidade! e será lançado em junho no Brasil.
Jornal da ABI – E a sua aventura no Saara? Quando será publicada?
Eliane Brum – Ainda não sei. Agora eu estou num momento de pensar. Essa é a história de Toco Lenzi, um aventureiro que está fazendo o Saara a pé e eu fiz a primeira etapa com ele. Nessa primeira etapa ele foi puxando um riquixá com mantimentos. Fiquei 20 dias andando, acompanhando seus passos, numa solidão absoluta. Passávamos dias sem encontrar ninguém... de repente encontrávamos beduínos.
Jornal da ABI – Era perigoso? Você ficou com medo?
Eliane Brum – Eu não me sentia em perigo lá. A gente saía de manhã e quando chegava meiodia o calor era absolutamente insuportável. Então, a gente parava de caminhar. Nós nos cobríamos e... em volta, um milhão de moscas! É uma coisa que ninguém fala; só quem vive lá, sabe. Ficávamos cobertos de moscas. Depois andávamos mais um pouco, mas chegava cinco da tarde e a gente parava para montar a barraca, porque depois que baixava o Sol a temperatura ia para negativo! Então, nessa hora já tinha que ter comido e com barraca para se proteger. E é engraçado: nos primeiros dias não senti sede. Mas você tem que tomar água o tempo inteiro porque há a desidratação. Eu bebi pouco e fiquei desidratada e à noite passei muito mal. Mas aprendi. Jornal da ABI – Seu trabalho exige muitas viagens. Como as concilia com a sua vida familiar?
Eliane Brum – Eu não separo a vida profissional da pessoal. Para
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“Descobri na ficção que o mais aterrorizante é ser possuído por si mesmo.” mim, tudo é pessoal, no sentido que a vida é uma só e nela há de tudo. Não faço essa separação na minha cabeça e nem no meu cotidiano. Agora, trabalho em casa. Eu moro com o João, que também trabalha em casa, então a gente tem uma vida muito boa. Embora eu trabalhe muito, eu cozinho ou ele cozinha, temos nossos espaços, cada um com seu escritório. Ele é noturno e eu sou diurna, acordo muito cedo. E eu tenho uma filha que tem 29 anos, minha única filha, que é psicanalista e mora em Porto Alegre, e já tem a vida dela. Costurar essa colcha é difícil, mas dou meus pulos. Recentemente, fui para Amsterdã participar de um festival de documentários em que o filme da Gretchen foi exibido. Minha filha foi comigo. Fui lançar o livro na Itália; o João foi comigo. Jornal da ABI – Você enveredou para a ficção ao publicar Uma Duas. O livro tem um realismo bem fantástico, com cenas quase de terror. Por que a opção por fazer um texto assim?
Eliane Brum – Não foi uma escolha planejada. O livro apare-
Um apelo da pequena Sonia A menina tem a doença-de-Chagas e faz um pedido: “Por favor, não me deixe morrer”. P OR M ARCOS S TEFANO
Sonia Cotrina Vizaga é uma menina linda, mas de olhos tristes, olhos de velha. Como tantas outras que moram nos vilarejos da província de Narciso Campero, departamento de Cochabamba, na Bolívia, ela convive com vampiros. Mas seus vampiros são bem diferentes daqueles rapazes bonitos e românticos que estão na moda e fazem suspirar adolescentes carentes mundo afora. Mais conhecidos como vinchucas, eles são insetos e assombram de verdade. À noite, sugam o sangue das pessoas que inocentemente dormem em suas camas e lhes transmitem o protozoário causador da doença-de-Chagas, mal incurável e fatal. Esse é o mais terrível pesadelo da pequena Sonia e a razão de seus olhos de velha: ela sabe que a morte ronda sua vida. Essa história é também apenas uma entre tantas que a jornalista e escritora Eliane Brum encontrou na região, uma das áreas com maior prevalência de Chagas em todo mundo; estima-se que mais de 70% da população esteja contaminada. No ano passado, ela esteve no local para produzir uma reportagem para o livro Dig-
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nidade!, obra lançada primeiramente na Itália, em comemoração aos 40 anos da organização Médicos Sem Fronteiras, e que agora ganhará versão em português no Brasil pela editora Leya. A jornalista brasileira foi uma entre nove autores de diferentes nacionalidades convidados a conhecer locais e contextos onde a ong Médicos Sem Fronteiras trabalha e escrever sobre a experiência para o livro. Além dela, participaram do projeto o ganhador do Prêmio Nobel, o peruano Mario Vargas Llosa, a escritora irlandesa Catherine Dunne, a também escritora espanhola Alicia Giménez Bartlett, o maestro e pianista norte-americano James Levine, o escritor italiano Paolo Giordano, a escritora turca Esmahan Aykol, a poeta e dançarina indiana Tishani Doshi e o músico e educador congolês Wilfried N’Sondé. “Admiro o trabalho da organização e para mim o convite soou como um desafio para conhecer um novo mundo. Só não esperava que essa nova realidade me tocaria e me transformaria tão profundamente”, conta Eliane Brum. De fato, mesmo estudando o assunto com profundidade, isso não foi suficiente para prepará-la
para a realidade chocante que encontrou. Uma realidade que inclui casas pobres e cheias de buracos, de onde inúmeros insetos saem toda noite. Eles caem sobre as pessoas e, em alguns casos, entram por suas bocas, causando a morte por asfixia. Entre as pessoas que entrevistou, Eliane falou com mulheres que perderam irmãos, filhos e maridos dessa forma. Também acompanhou o clima de medo no lugar, a tentativa de deixar lamparinas acesas, no vão esforço de não dormir e evitar o inimigo. E o desespero de mães, que choram no parto, não pela dor, mas pelo pavor real de transmitir a morte aos filhos recém-nascidos. É misturando a profundidade da investigação jornalística
ce também por causa desses dois anos que trabalhei com a morte. O confronto com a morte foi tão profundo que em determinados momentos percebi realidades que só a ficção suporta. Precisava criar outra voz para mim, para dar conta dessas realidades que não estavam me deixando mais dormir. Quem me acompanha no jornalismo vê que é uma voz muito diferente. Foi uma necessidade interna muito profunda e uma entrega muito profunda. A diferença é que quando eu faço uma reportagem, eu me esvazio totalmente, inclusive, dos meus preconceitos, dos meus julgamentos, da minha visão de mundo, para ir em direção ao outro, ser preenchida pela voz que é do outro, pela história que é do outro. Se eu vou cheia, não há espaço para eu ser preenchida. Eu preciso me esvaziar. A ficção foi um processo muito semelhante, só que no sentido oposto. Eu tive que me deixar possuir por mim mesma ou pelos outros eu. E achei isso uma experiência assustadora. Eu adoro literatura de terror, cinema de terror, ficção
Eliane Brum – Leio sempre, todo dia, mas geralmente um por vez. Há vezes que eu vou ler cinco minutos e caio dura na cama. Mas procuro manter um hábito, uma vez por semana. Eu tinha o sonho de ter uma banheira. Não é jacuzzi não, mas uma banheira nor-
com as técnicas da literatura, que ela conta tudo isso na reportagem Os vampiros da realidade só matam pobres. E também fala sobre a pequena Sonia. Na hora das despedidas, a menina agarrou nos dois braços da jornalista e fez um apelo desesperado: “Por favor, não me deixe morrer!”. Eliane ficou sem resposta. Já de volta a São Paulo, durante uma semana a jornalista ficou sem comer e, algo que nunca tinha acontecido, paralisada para escrever. “Desde pequena aprendi a me expressar escrevendo. Para mim, é como respirar. Mas eu não conseguia. Naquele momento, contar a história parecia insuficiente para ajudar a menina”, explica.
Foi difícil, mas Eliane superou o bloqueio. Não somente para sorte dos leitores, mas para o bem do trabalho de Médicos Sem Fronteiras, que está no olho do furacão, lutando contra essa e outras adversidades em 19 diferentes nações, e para o futuro da população da boliviana Narciso Campero. Ao compartilhar o pesadelo de Sonia, a jornalista brasileira espera que todos possam escutar a voz da menina e ajudar a salvar vidas. Dignidade! será lançado no Brasil em junho, com a presença dos autores e exposição de fotos dos trabalhos de Médicos Sem Fronteiras. No mesmo mês, Eliane Brum ainda fará uma palestra sobre sua reportagem no Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo.
científica. E a possessão no cinema é sempre pelo alienígena, pelo espírito, pela entidade, pelo demônio. Mas eu descobri na ficção que o mais aterrorizante é ser possuído por si mesmo. Essa possessão é uma possessão de dentro. Durante todo o tempo em que depurei os abismos, a impressão foi de viver na ficção, na história. Um processo difícil para mim e para quem convivia comigo. Eu não estava bem e sempre me alterava. A reportagem é mais rápida. A ficção mais demorada e mais avassaladora. Para piorar, depois que terminei e enviei para a editora, fui para a Bolívia, fazer o texto do livro dos Médicos Sem Fronteiras, outro momento chocante também. Jornal da ABI – Quantos livros lê por mês?
ACERVO PESSOAL
Eliane abraça Sonia e sua irmã menor: bloqueio para contar a história da menina que pediu para não morrer.
ACERVO PESSOAL
Há dois anos, em Madri, Eliane Brum recebeu das mãos de Don Juan Carlos I, o Prêmio Rey de España pela reportagem O Islã dos Manos. Abaixo, a jornalista de turbante inicia sua jornada pelo deserto do Saara, acompanhando os passos do aventureiro Toco Lenzi (que não aparece na foto). ACERVO PESSOAL
mal. Compramos um apartamento e na reforma, em 2005, consegui a banheira. Assim, uma vez por semana, vou para minha banheira com vinho, chocolate, água e um livro. Só saio quando termino o livro. Quando viajo, isso não acontece, mas na rotina de casa leio pelo menos um livro por semana. Digo pelo menos, pois tento ler mais um pouquinho todo dia. Os livros eletrônicos são mais fáceis de adquirir, não se esgotam e são mais baratos. Por isso, tenho lutado e alguns de meus livros estão sendo lançados em formato digital. A minha única reclamação com relação aos dispositivos de e-books é que não posso leválos para a banheira (risos). Jornal da ABI – Você ainda é tímida pra falar em público?
Eliane Brum – Um pouquinho, né? Sempre dá um frio na barriga. Eu sou muito para dentro, então essa coisa de me expor tem um custo. Mas me esforço, treino, busco disciplina para encarar.
Jornal da ABI – Como é para você, que é uma escutadeira, estar do outro lado, ser a faladeira?
Eliane Brum – Um pouco aflitivo de vez em quando. Quando as pessoas não gravam, não anotam, eu fico muito aflita. Tem gente que me entrevista e não anota e nem grava nada. Eu penso: “Meu Deus, como vai lembrar depois?”. Jornal da ABI – No site da Época, na página em que está sua coluna, há um espaço onde aparece uma relação das notícias mais lidas do site. Geralmente são de celebridades, futilidades, escândalos. Perceber que as pessoas buscam o raso na internet não te aflige?
Eliane Brum – Não sei, mas essa classificação depende do momento. Semana passada, duas colunas minhas estavam entre as mais lidas. Uma teve mais de 100 mil acessos só na primeira semana. Outra, Meu filho você não merece nada, teve mais de meio milhão de
acessos, é muito variado. Há aqueles leitores que sempre lêem, que sempre comentam e há aqueles flutuantes, conforme o tema. Jornal da ABI – Você já se arrependeu de ter escrito alguma coisa?
Eliane Brum – Eu sempre me arrependo. É que acho que poderia ter escrito melhor. Jornal da ABI – De não ter dado uma opinião ou de ter dado uma informação errada?
Eliane Brum – Não que não possa acontecer. Eu não vejo problema nenhum em se arrepender, em reconhecer um erro. Mas eu trabalho muito nessa coluna, não é uma coisa que escrevo sem pensar. Leio, releio, penso, estudo. Há umas que me dão um trabalho infernal. Para fazer as colunas sobre Belo Monte, tirei dinheiro da poupança e fui lá. Só consigo escrever sobre essas coisas ouvindo as pessoas e vendo. Cada uma é diferente da outra. Então é bem trabalhado, não é um texto que eu sento no domingo à noite e escrevo. Domingo à noite, eu já estou na quinhentésima revisão, de manhã passo mais três horas revisando. Eu sou super-obsessiva. Jornal da ABI – Além dos acessos, há outros tipos de repercussão?
Eliane Brum – O que é bom é que todo mundo pode comentar o meu texto. É muito raro eu pedir para retirar algum comentário. Só faço isso se ele é ofensivo. Se alguém diz que “a Eliane escreve mal”, beleza, eu deixo. Ou “a Eliane não sabe o que está falando”, tudo bem. Acho que os comentários são auto-explicativos, as pessoas se revelam muito naquilo que escrevem. Nesse caso, eu deixo escrever. Eles têm todo o direito de escrever e de comentar na minha coluna. Aliás, no fim a relação se inverte. Na internet, o leitor é um escritor também e tem uns comentários muito interessantes que me fazem pensar em coisas que eu não tinha pensado.
Prêmios e boas e más lembranças Há cerca de dois anos, Eliane Brum concedeu uma entrevista por e-mail à sua xará Eliane Martins, do ABI Online (goo.gl/oBVWc). Na época ela acabara de vencer a 27ª edição do Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha, com a reportagem O Islã dos Manos. Eliane Brum era repórter especial da revista Época e falou sobre a premiação, a vida de mãe, bastidores das reportagens que fazia e a sempre presente dúvida entre ser editora ou repórter, que assalta todo jornalista bem sucedido. Diferentemente de muitos, ela optou pela segunda carreira e explicou o porquê. A seguir, alguns destaques dessa entrevista.
PRÊMIOS “Lá em casa nós comemoramos tudo. Comemoramos as matérias quando são publicadas – já que toda a família sofre com o meu humor... (risos). Comemoramos as indicações e comemoramos quando eu ganho. O João, meu marido, me dá flores e tomamos vinho. Meus pais e meu irmão mais velho, que também mora em Ijuí (interior do RS), divulgam nos jornais e rádios da cidade. Minha mãe chega ao cúmulo de xerocar minhas matéria e distribuir entre os conhecidos. Ainda bem que eu moro em São Paulo.” (risos).
VIDA DE MÃE, MUITO JOVEM “Eu fui mãe aos 15 anos. Dos dois aos seis anos da Maíra, morei longe dela, em Porto Alegre, para fazer a faculdade. Só a via nos finais de semana. Quando me formei, fui buscá-la. Eu era foca, tinha 22 anos e ganhava um salário que era pouco mais do que o mínimo. Foi muito difícil. Vivi momentos duríssimos. Quando falo deste tempo, até hoje é difícil. Era muito desamparo, várias formas de desamparo. Nosso apartamento foi assaltado e eu não tinha dinheiro para me mudar. Passava a noite acordada, com medo de não conseguir proteger a Maíra, com tanto medo que quase
não conseguia me mexer. Às 5h30min da manhã acordava minha filha e pegávamos dois ônibus até a escola. Às vezes eu tinha de colocá-la por cima do muro, porque precisava pegar mais três ônibus para ir até o jornal, onde eu começava às 8h. Ela ficava lá, sozinha, com seis anos. Quando ia cobrir alguma coisa mais longe, não conseguia voltar a tempo para pegá-la na escola. Lembro de estar com água pela cintura, numa enchente, ligando de um orelhão para uma lista de amigos, para tentar encontrar alguém que buscasse a Maíra na escola, à noite.” “Era uma vida complicada. Eu não tinha família em Porto Alegre. Éramos só nós duas. Mas o que eu vivi é o que a maioria das mulheres de periferia vive. Passou, conseguimos e era isso. Como mãe, eu fiz o melhor possível. Não sei se foi o suficiente para a Maíra. Mas a vida é como é. E a gente faz o melhor que consegue.”
MATERNIDADE E RESPONSABILIDADE “Por outro lado, eu era muito ‘viajandona’. Ter uma filha me obrigou a construir uma vida, uma identidade, a me tornar mãe. A gente não é mãe porque tem um filho, a gente se torna mãe. É um processo. Eu queria ser alguém de quem ela pudesse se orgulhar. Isso foi importante, me deu rumo na vida.” “Ser mãe foi a experiência mais importante da minha vida. Ser mãe da Maíra me dá inteireza. Acho maluco amar alguém tanto assim como a gente ama um filho. Dias atrás estava pensando o que faria diferente, se pudesse voltar atrás. E descobri que teria de fazer todas as bobagens e aterrorizar os meus pais de novo, porque não queria que nada fosse diferente. Acho que sou mais o que sou pelos supostos erros que pelos supostos acertos. Tudo de importante que aconteceu na minha vida foi considerado ‘loucura’ pelos outros. Então, acho que está na hora de cometer mais algumas. Ando muito pacata.”
REPÓRTER OU EDITORA? “Eu gostava muito de ser editora da minha equipe. Uma equipe de três repórteres. Adoro pensar em pautas, conversar sobre pautas, discutir textos, editar as reportagens. Isso eu gostei muito. Era um divertimento. E era bacana ver as pessoas orgulhosas do que faziam. E saber que eu podia colaborar com isso. Eu gosto de ensinar. E tinha um enorme orgulho dos repórteres que trabalhavam comigo. Esta era a parte boa. A ruim era que eu tinha de participar de muitas reuniões – e eu não lido muito bem com reuniões. E quando eu fico trancada dentro da Redação por muito tempo, vou murchando. Vou ficando triste. Aí, no final de um ano eu já estava com aquela cor horrível de amarelo-redação. E cada vez mais triste. Aí pedi para voltar para a reportagem.”
REPORTAGEM PREMIADA “Nesta reportagem Islã dos Manos, por exemplo. Comecei a ver takiahs (aquele chapeuzinho que os muçulmanos usam) nos eventos que eu acompanhava na periferia de São Paulo. Aí fui fazer uma matéria sobre os escritores periféricos e conheci o Dugueto, que se tornou muçulmano. Comecei a fazer meus primeiros contatos. Eles eram muito desconfiados. Ficava andando com eles para lá e para cá, até que me deixaram chegar mais perto. Quando estava avançando, fui fazer aquela reportagem no Retiro Vipássana (O inimigo sou eu), em que fiquei mais de cem horas na mesma posição de meditação, e tive uma crise na coluna que me deixou sem conseguir trabalhar direito por meses. Perdi parte do movimento do braço direito por uns tempos. Quando voltei a andar sem dor, tive de refazer os contatos. E aí foi acontecendo. Cada um me apresentava outro, fui me aprofundando. Escutando, lendo, estudando, acompanhando, tentando entender o que me diziam, sem preconceitos, e tentando entender o que isso significava.”
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WALDEMIR BARRETO-AGÊNCIA SENADO
LIBERDADE DE IMPRENSA
Seis anos depois, Collor vence Veja na Justiça Superior Tribunal de Justiça fixa em R$ 500 mil a indenização a ele por dano moral. O ex-Presidente e Senador Fernando Collor (PMDB-AL) ganhou a disputa judicial que travava desde 2006 contra a revista Veja e a Editora Abril, que foram condenadas pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça a indenizá-lo com R$ 500 mil por danos morais. Foram também condenados os jornalistas Roberto Civita, Presidente do Conselho de Administração e Diretor da Abril, e André Petry, autor de um artigo em que Collor foi tachado de “corrupto desvairado”. A notícia da condenação foi divulgada no dia 6 de março pelo Portal do Superior Tribunal de Justiça, que fez extensa matéria sobre a decisão, informando: “O artigo de opinião intitulado O Estado Policial, publicado na edição impressa de março de 2006, bem como na internet, comparava atitudes dos Governos Collor e Lula – no primeiro, diante das denúncias feitas pelo motorista Eriberto França; no segundo, em relação às denúncias do caseiro Francenildo Costa. Durante as comparações, o articulista falou sobre as ‘traficâncias’ de Collor e o chamou de ‘corrupto desvairado’. Collor ajuizou ação de indenização por danos morais alegando que havia sido atingido por ‘uma série de calúnias, injúrias e difamações’. A sentença julgou o pedido improcedente, entendendo que o objetivo do jornalista não era atingir a honra do ex-Presidente, e sim criticar o modo como as denúncias do caseiro foram abafadas, o que não aconteceu com o motorista. Além disso, o juiz destacou que Collor foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal apenas por questões processuais e sem apreciação dos fatos, e que ‘o episódio histórico que envolveu o fim do seu mandato [como Presidente] ainda está marcado na mente das pessoas’. O entendimento do juízo de primeiro grau foi de que, confrontados os valores constitucionais do direito à imagem e da liberdade de imprensa, deve prevalecer a liberdade de imprensa. Porém, na apelação, a sentença foi reformada. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu que a simples publicação da expressão ‘corrupto desvairado’ configura dano moral, mesmo porque o ex-Presidente foi absolvido das acusações. Quanto ao confronto dos dois valores constitucionais, o Tribunal estadual decidiu que deveria prevalecer o direito à honra, pois estaria claro ‘o propósito ofensivo da matéria’. Seguindo essa opinião, o TJ-RJ fixou a indenização em R$ 60 mil. 26
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Os recursos
Tanto o ex-Presidente quanto a editora recorreram ao STJ. Para Collor, a indenização foi fixada com ‘excessiva parcimônia’. Para ele, o Tribunal estadual não levou em consideração a qualificação das partes envolvidas, a repercussão do dano causado e o lucro da editora com a publicação do artigo. A Editora Abril, por sua vez, queixouse de que o TJ-RJ não havia se manifestado sobre a liberdade de expressão, nem sobre a licitude da divulgação de informação inspirada pelo interesse público (Lei de Imprensa). Para a editora, o artigo não traz mentiras ou fatos passíveis de indenização. A Abril ainda argumentou que Collor deveria ‘ter vergonha de ter sido protagonista das maiores acusações feitas contra um Presidente da República, e não da divulgação desse mesmo fato pela imprensa, que apenas exerceu o seu dever constitucional de informação’. Lei de Imprensa
O Ministro Sidnei Beneti, relator de ambos os recursos, destacou que, como a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição Federal (julgamento do STF), o recurso da editora ficou privado desse fundamento. A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que, por conta da posição do STF, não se pode alegar violação aos dispositivos da Lei de Imprensa em recurso especial. No memorial fornecido pela editora ao relator, entretanto, a Lei de Imprensa não foi mais citada. A Abril sustentou que houve violação aos artigos 186 e 188, inciso I, do Código Civil. Segundo o Ministro, foi apenas no memorial que a editora sustentou expressamente a violação dos referidos artigos, e tal referência não pode suprir a omissão de invocação no recurso especial, pois o memorial não é levado ao conhecimento da parte contrária, e, portanto, o contraditório constitucional estaria infringido se o memorial fosse considerado para suprir o que não foi alegado no recurso. Porém, novamente sobre o não acolhimento constitucional da Lei de Imprensa, a jurisprudência do STJ entende que, nos julgamentos provindos dos tempos dessa lei, devem ser examinados os argumentos de fundo, ensejados pelo recurso. O Ministro Sidnei Beneti destacou que a análise do recurso especial não seria reexame de prova, mas apenas exame valorativo com base em fato certo – no caso, o artigo escrito e publicado – para verificar se este possuiria, ou não, caráter ofensivo.
Para a Terceira Turma do STJ, o termo “corrupto desvairado” ofende a honra de Fernando Collor.
Ofensa à honra
No entendimento da Terceira Turma do STJ, o termo usado pela revista – ‘corrupto desvairado’ – é, sim, ofensivo. O Ministro relator lembrou que o termo ofensivo ainda foi destacado pela revista, pois aparece no ‘olho’ – recurso de diagramação que realça uma parte do texto considerada marcante – da edição impressa e digital. É justamente essa parte de destaque que chama mais a atenção do leitor, mesmo aquele que não lê o artigo em seu conteúdo integral, ou apenas folheia a revista. Segundo Beneti, o termo usado não é pura crítica, é também injurioso. Por esse motivo é impossível concordar com qualquer motivo alegado pela editora, como o interesse público à informação. A injúria, de acordo com o Ministro, é a conduta mais objetiva e inescusável das três modalidades de ofensa à honra – injúria, calúnia e difamação – e, por esse motivo, não admite exceção de verdade. Na injú-
ria, não há atribuição de fato, mas de qualidade negativa do sujeito passivo. Portanto, ainda que o ex-Presidente Collor tenha sido absolvido apenas por questões processuais, e não por afastamento da acusação de corrupção, e que tenha sofrido impeachment, a ofensa não deixa de existir – e é injúria. Quanto ao valor da reparação, a Turma entendeu que o desestímulo à injúria deveria ser enfatizado, pois a expressão ‘corrupto desvairado’ poderia ter sido evitada. Além disso, o desestímulo ao escrito injurioso em veículo de comunicação com uma das maiores circulações do País autoriza a fixação de indenização mais elevada. O Ministro Beneti e o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino se posicionaram no sentido de aumentar o valor para R$ 150 mil. No entanto, os Ministros Nancy Andrighi, Massami Uyeda e Villas Bôas Cueva votaram para fixar a indenização em R$ 500 mil.”
Seis presos por grampos ilegais Em Londres, a polícia prendeu cinco homens e uma mulher suspeitos de envolvimento no caso dos grampos ilegais do tablóide News of the World. Os nomes das pessoas presas não foram revelados, mas suspeita-se que a mulher seja Rebekah Brooks, ex-editora-chefe do jornal, que, depois de 168 anos de fundação, foi fechado após denúncias de que integrantes da sua Redação praticavam escutas ilegais para conseguir reportagens exclusivas. A prisão ocorreu na madrugada de 13 de março, durante uma operação policial, conforme informou O Globo Online. Os seis foram detidos sob a acusação de conspirar para obstruir o curso da Justiça. A descrição de que entre os presos se encontra uma mulher de 43 anos, residente em Oxfordshire, é que levantou a suspeita de que ela seja
Rebekah, pois a jornalista tem a mesma idade e é dona de uma casa naquele bairro londrino. O canal de tv Sky News, que pertence ao grupo News International, do magnata Rupert Murdoch, no qual Rebekah também já ocupou cargo executivo, divulgou que a ex-editora tinha sido presa junto com o marido, Charlie Brooks. Ela já fora presa em outra ocasião, mas foi solta mediante pagamento de fiança. As prisões ocorridas são resultado de uma investigação sobre escutas ilegais praticadas por jornalistas e investigadores particulares, que trabalharam para o News of the World. O ator Hugh Grant e membros da Família Real tiveram seus celulares grampeados. Até então, 23 pessoas foram presas acusadas de participação no crime.
FOTOS: RAUL AZÊDO
Um carnaval de irregularidades no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro deste ano: desde turistas e beldades sem credenciais à proibição ao trabalho de fotógrafos.
mento que nos foi dispensado deveria ter sido melhor, com muito mais respeito”, queixou-se um fotógrafo ao Jornal da ABI. Na área de dispersão das escolas, houve caso em que o coordenador da segurança abordou um fotógrafo e lhe disse que deveria desligar a máquina, porque ali somente o pessoal da Rede Globo poderia fotografar ou filmar, como se o local fosse de propriedade da emissora ou como se ele estivesse trabalhando para a Rede Globo. Ao final da discussão ele determinou que dois seguranças acompanhassem o fotógrafo para fora da área da dispersão, já que sua credencial, apesar de indicar “trânsito livre”, só lhe daria o direito de passar de um lado para o outro, mesmo assim atravessando ou na dispersão ou pela concentração; pela pista era proibido. Numa das fotos feitas então, o turista estrangeiro, mesmo sem credencial, está tirando fotos. Interpelada pelo supervisor de coordenação da pista, Carlos Ro-
A Riotur maltratou os jornalistas no Carnaval A cobertura jornalística do desfile do Grupo 1 das Escolas de Samba do Rio de Janeiro foi marcada este ano por restrições e violências contra repórteres e fotógrafos determinadas pela Riotur, que também adotou critérios excludentes para o credenciamento de profissionais, negandolhes coletes de acesso à pista e condenando boa parte deles a um confinamento nas áreas de concentração das escolas, nas quais pouco acontece de significativo com interesse como informação. Repórteres-fotográficos tiveram que ficar agachados durante o desfile de várias escolas. Quando não eram os seguranças da Riotur, eram os de algumas escolas que
impediam os profissionais de fotografar. Os agentes da Riotur ou das escolas empurravam esses profissionais, impedindo-os, em alguns momentos, de tirar fotos. Com isso, prejudicou-se a cobertura. Foto é momento: se o profissional está lá no momento certo, sai uma boa foto; se não está, ele perde a foto. “Todos nós estávamos reclamando desse tratamento, já que para se trabalhar nessas condições, com um espaço limitado, é preciso colocar nosso profissionalismo à frente dessas questões, que achei absurdas. Quem divulga as melhores imagens do desfile das escolas de samba do Carnaval carioca somos nós, e o trata-
Requião leva o Senado a regular direito de resposta Sua justificativa: das 148 cartas enviadas nos últimos três anos à imprensa, nenhuma foi publicada. WALDEMIR BARRETO-AGÊNCIA SENADO
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou em 14 de março, por unanimidade, o Projeto de Lei nº 141/11, do Senador Roberto Requião (PMDB-PR), que regula o exercício do direito de resposta ou retificação do ofendido por matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículos de comunicação. Aprovada em decisão terminativa, a matéria seguirá direto para a Câmara dos Deputados, se não houver recurso para a votação no Plenário do Senado. O direito de resposta permanece sem regulamentação jurídica desde 2009, quando o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67). “Nos últimos três anos, o Senado enviou 148 cartas para a imprensa para a correção de erros e afirmações descabidas e sequer uma foi publicada. O projeto só quer contrabalançar a provável, e freqüente, irresponsabilidade (da imprensa), abrindo direito de resposta com rito rápido e seguro”, comentou Requião. O relator do Projeto, Senador Pedro Taques (PDT-MT), afirmou que a matéria “não pretende cercear o direito à informa-
ção”: “A liberdade de imprensa deve ser cultuada por todos, mas é bom lembrar que liberdade rima com responsabilidade. Aqui não se trata, porque seria inconstitucional, de censura prévia ou limitação de conteúdo. Trata-se só do direito de resposta. A falta de uma norma específica regulando as relações da mídia com a sociedade prejudica o pleno exercício do direito de resposta assegurado pela Constituição”. Taques justificou ajustes feitos no texto original com o argumento de compatibilizar a manifestação do ofendido pelos meios de comunicação com a garantia de liberdade de expressão, de modo a impedir excessos e eventuais arbitrariedades. Como será
Segundo Requião, a imprensa é freqüentemente irresponsável.
A proposta assegura ao ofendido a divulgação de resposta gratuita e proporcional ao agravo, mas impede o exercício desse direito em caso de retratação espontânea do veículo, resguardando a possibilidade de ação de reparação por dano moral. O ofendido deverá exercer o direito de resposta no prazo de 60 dias, contado da data da primeira divulgação. Es-
berto Osório, que é Secretário Municipal de Conservação e Serviços Públicos da Prefeitura do Rio, uma funcionária da Riotur disse que o turista estava ali autorizado por alguém da empresa, mesmo sem credencial. Em outra foto, o homem de colete azul proibiu o fotógrafo, em dado momento, de tirar fotos do Governador Sérgio Cabral. Indagado por que esta sua atitude, ele respondeu que havia fotógrafos demais tirando fotos do Governador. Diante do propósito do fotógrafo de tirar fotos do Governador, ele respondeu: “Você não vai tirar mais foto alguma”. Ele está de colete azul, mas sem credencial. Ao fundo, um casal: o homem era da segurança do Prefeito Eduardo Paes. Os dois estavam credenciados. Na última foto, um grupo de mulheres está sem credencial e ninguém as retirou da pista. Neste caso todos os seguranças da Riotur foram complacentes.
tará excluída essa possibilidade para comentários de leitores feitos em sites dos veículos de comunicação. A exigência do pedido de resposta deverá ser enviada por correspondência com aviso de recebimento ao responsável pelo veículo. O PLS nº 141/11 estabelece ainda que o juiz, após receber o pedido de resposta ou retificação, terá 24 horas para mandar citar o responsável pelo veículo de comunicação. A sentença deverá ser expedida em, no máximo, 30 dias após o ajuizamento da ação, salvo na hipótese de conversão do pedido em reparação por perdas e danos. Para o relator, não haverá risco de inconstitucionalidade se a retratação espontânea ocorrer de modo proporcional ao agravo, ou seja, for divulgada com o mesmo destaque, publicidade, periodicidade e dimensão. O ofendido deverá avaliar se a réplica voluntária cumpriu essas exigências; caso não se sinta atendido, poderá entrar com contestação na Justiça. Sobre a obrigatoriedade de quem garantiu direito de resposta por liminar, teve essa decisão revista em sentença e precisaria arcar com as custas processuais e despesas pela veiculação da resposta, o relator explicou que essa providência tinha a intenção de evitar ações temerárias (sem fundamento) contra a mídia, inclusive com fins políticos. O Senador Demóstenes Torres(DemGO) sugeriu imputar essa taxação apenas em caso comprovado de ação temerária. (Simone Franco /Agência Senado)
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LIBERDADE DE IMPRENSA
DIREITOS HUMANOS
No México, crime contra jornalistas agora é federal Legislação visa desestimular a violência contra a imprensa: desde 2000 foram assassinados 68 jornalistas e 13 estão desaparecidos. contra a liberdade de expressão. Catalina Botero, Relatora Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos-CIDH, afirmou que a impunidade é o maior problema enfrentado pelos jornalistas: “A impunidade é uma das formas de destruição da democracia e a violência contra jornalistas no México representa uma ofensa ao exercício da liberdade de expressão e ao Estado de Direito. Nunca na História do nosso país foram registrados tantos crimes contra jornalistas”. Relatório sobre liberdade de expressão da Organização das Nações Unidas registra que, desde 2000, 68 jornalistas foram assassinados e 13 estão desaparecidos no México. Em outubro de 2011, a Comissão Nacional de Direitos Humanos do México publicou um guia para implementar medidas de segurança em caso de ataques a jornalistas, após o relatório da Onu e da Organização dos Estados Americanos (OEA) concluir que o país é o mais perigoso para o exercício do jornalismo nas Américas. Alguns editores de jornais, principalmente do Norte do país, optaram pela autocensura devido aos ataques do narcotráfico a repórteres. Desde 2006, o México enfrenta uma guerra contra os cartéis de drogas. Mais de 34 mil pessoas morreram nos conflitos.
REINO UNIDO MUDA ÓRGÃO DE RECLAMAÇÕES
melhor das hipóteses apenas um exercício de tapa na cara” —, o diretor da organização David Hunt disse que após a reformulação os britânicos receberão “um regulador da imprensa com dentes pela primeira vez”. Segundo ele, o grupo ganhará “uma estrutura auto-regulatória independente que todos irão aprovar”.
A Comissão de Reclamações contra a Imprensa do Reino Unido será fechada e posteriormente substituída por outra organização. O órgão é subordinado ao Parlamento da Grã-Bretanha e foi muito criticado depois dos escândalos dos grampos telefônicos, que provocaram o fechamento do tablóide dominical News of the World, pertencente ao magnata australiano Rupert Murdoch. Um diretor de transição foi nomeado para conduzir o processo de reestruturação da Comissão e buscar a formação de outro organismo, que terá uma equipe diferente, mas com os mesmos recursos. A votação pelo fechamento da atual Comissão foi decidida durante uma reunião realizada em fevereiro e anunciada em 8 de março. A Comissão de Reclamações contra a Imprensa é formada com representantes dos meios de comunicação e foi acusada de ineficiência pelas pessoas que tiveram seus telefones grampeados ilegalmente pelos tablóides do Reino Unido. As vítimas estão recorrendo à Justiça pedindo reparação. A Comissão tinha o poder de exigir direito de resposta aos jornais, mas sem aplicar multas nos veículos. Uma das suas principais acusadoras é a autora do livro Harry Potter, J. K. Rowling, que teve seu telefone grampeado por um jornalista do News of the World. Numa alusão a J. K. Rowling — que chamou a Comissão de “sem dente, e na
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HOMENAGEM A MARIE COLVIN, MORTA NA SÍRIA Parentes, amigos e centenas de pessoas participaram, em 12 de março, do funeral, em Oyster Bay, Long Island, próximo de Nova York, da jornalista Marie Colvin, morta na Síria no exercício da profissão no dia 22 de fevereiro. Colvin trabalhava para o Sunday Times, de propriedade do magnata australiano Rupert Murdoch, que compareceu à cerimônia. O Redator-Chefe do jornal, John Whiterow, também esteve presente ao ato. Ela foi lembrada como uma pessoa que “acreditava na vida e tinha paixão pela profissão”. Ela estava com 56 anos e ficou conhecida pelas coberturas de guerra das quais participou. Sua morte ocorreu durante um bombardeio na cidade de Homs, na Síria, considerada reduto da oposição ao Governo de Bashar al-Assad. Ao relatar a homenagem à repórter, Rupert Murdoch disse que “foi uma cerimônia comovente”. Whiterow disse que a retirada do corpo de Marie Colvin da Síria foi uma operação muito difícil, que necessitou de “muitas ações diplomáticas”.
Há até crianças entre as vítimas. A Anistia Internacional divulgou um relatório no qual revela que a tortura, maus-tratos, seqüestros e assassinatos estão sendo impostos aos opositores do Governo sírio em “níveis sem precedentes”, assim como os “ataques sistemáticos” à população civil. A organização de defesa dos direitos humanos está exigindo que as autoridades sírias parem de realizar prisões arbitrárias de pessoas que expressam pacificamente sua oposição ao Governo, que ponham fim ao uso da tortura e de outros tipos de violência e que permitam o acesso de observadores estrangeiros ao país. Ela também pede que o Conselho de Segurança da ONU conceda ao Tribunal Penal Internacional a missão de investigar o que considera crimes contra a humanidade e que a comunidade internacional impeça a venda de armamento ao Governo de Damasco. Intitulado Eu queria morrer, em referência à frase de um prisioneiro, o documento da Anistia Internacional apresenta os depoimentos de dezenas de opositores sírios refugiados na Jordânia, que relatam cerca de 30 métodos de tortura utilizados pelas forças do Presidente da Síria, Bashar Al-Assad, que há um ano enfrenta uma guerra contra o seu regime autoritário. Os testemunhos foram coletados em meados de fevereiro último. Os ex-detentos afirmaram que foram isolados em espaços pequenos durante dias ou trancados com cadáveres e presos doentes. Também há casos de vítimas que permaneceram penduradas em gan-
UN PHOTO/REUTERS/SANA
O Senado do México aprovou um projeto de Lei que autoriza autoridades federais a investigar e punir crimes contra jornalistas e qualquer ato que afete o direito à informação, liberdade de expressão e de imprensa. As denúncias poderão ser feitas por vítimas ou propostas por autoridades. De acordo com os Senadores, o projeto, que altera o artigo 73 da Constituição, para estabelecer o crime de ataque à liberdade de expressão, expressa “a necessidade de responder de forma eficaz a uma demanda social forte e é de grande importância dentro do sistema legal mexicano, uma vez que irá estabelecer mecanismos para a proteção adequada desses direitos”: “Jornalistas, defensores e ativistas de direitos humanos se encontram no pior momento de suas vidas profissionais em virtude das agressões que sofrem e da inércia das autoridades competentes”. Os parlamentares destacaram que o Estado não poderá interferir em assuntos da competência da imprensa, mas dará suporte para a resolução de questões fora de seu âmbito. Os senadores assinalaram que os Ministérios da Segurança Pública e da Defesa Nacional, além da Marinha, e dos centros de investigação de Segurança Nacional e de Inteligência Nacional, oferecem estrutura para viabilizar as ações de prevenção e combate aos crimes
Anistia denuncia torturas na Síria
Relatório da Anistia Internacional afirma que o Presidente da Síria, Bashar Al-Assad, impõe violência sem limites aos cidadãos do país.
chos durante dias enquanto eram espancadas, submetidas a posições de estresse e tendo a pele arrancada com pinças. De acordo com o documento da Anistia, há crianças entre as vítimas de tortura. “Os testemunhos que ouvimos dão esclarecimentos perturbadores sobre um sistema de detenção e interrogatórios que, um ano após o início dos protestos, parece ser destinado principalmente a degradar, humilhar e aterrorizar as vítimas para que elas fiquem em silêncio”, disse Ann Harrison, do Programa de Oriente Médio e Norte da África da Anistia Internacional.
Chineses curtem entrevistas dos que vão morrer O programa Entrevista Antes da Execução, que vai ao ar semanalmente em uma emissora de tv na província de Henan, região central da China, está fazendo grande sucesso com audiência de milhões de telespectadores. As reportagens são da jornalista Ding Yu, que conversa com assassinos condenados à morte. A notícia foi publicada na BBC News Magazine. A pauta da semana é baseada num levantamento que a equipe de Ding faz nos tribunais, para encontrar casos e escolher os entrevistados. De acordo com a BBC, do ponto de vista da cultura ocidental, um programa dessa natureza não seria bem visto. A apresentadora discorda: “Alguns telespectadores podem considerar cruel pedir a um criminoso que conceda uma entrevista quando já está prestes a ser executado. Pelo contrário, eles querem ser ouvidos”, disse Ding Yu à BBC.
Ela contou que alguns detentos que entrevistou disseram que estavam “satisfeitos” pela oportunidade de falar coisas que os angustiavam na prisão. Um deles disse à Ding: “Na prisão, não havia alguém com quem eu quisesse falar sobre acontecimentos do passado”. De acordo com a produção, o objetivo do programa é encontrar casos “que sirvam de alerta para outras pessoas”. Por causa disso, antes do início das entrevistas é emitida mensagem pedindo que “a humanidade perceba o valor da vida”. Pela legislação da China, 55 tipos de crime podem levar à decretação da pena de morte, entre os quais assassinato, traição, rebelião armada, suborno, entre outros. O programa só tem foco para os crimes violentos, e não entrevista prisioneiros políticos. O programa é exibido aos sábados à noite, para cerca de 40 milhões de telespectadores e já está entre os dez de maior audiência na província chinesa.
DIREITOS HUMANOS
Manifesto denuncia torturadores Declaração de militares da reserva tem vocação golpista, dizem entidades democráticas. Entidades representativas e personalidades destacadas de São Paulo lançaram na primeira quinzena de março manifesto de repúdio à manifestação de militares da reserva que “tentam golpear a democracia e envolver as Forças Armadas dos dias de hoje na defesa dos crimes cometidos”. Firmada pela ABI, a declaração, intitulada “Instalar imediatamente a Comissão da Verdade. Punir os militares que afrontam a democracia”, tem o seguinte teor: “Testemunhamos nos últimos dias, entre militares da reserva, o ressurgir de vozes lúgubres, de oposição à criação e ao
Major Curió na mira do MP da União Sete procuradores o acusaram na Justiça Federal pelo seqüestro de cinco militantes da Guerrilha do Araguaia. O Ministério Público Federal ajuizou no dia 14 de março, na Justiça Federal em Marabá, Pará, denúncia contra o coronel da reserva do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura (na época conhecido como Dr. Luchini), pelo crime de seqüestro qualificado contra os militantes Maria Célia Corrêa, a Rosinha; Hélio Luiz Navarro Magalhães, o Edinho; Daniel Ribeiro Callado, o Doca; Antônio de Pádua Costa, o Piauí; e Telma Regina Cordeiro Corrêa, a Lia, capturados durante a repressão à Guerrilha do Araguaia na década de 1970 e até hoje desaparecidos. O grupo foi seqüestrado entre janeiro e setembro de 1974. Após sessões de tortura, não houve mais notícia sobre o paradeiro de nenhum deles. Pessoas que participaram das ações dos militares estão arroladas entre as testemunhas. Com surpreendente rapidez, o Juiz João César de Matos, da 2ª Vara Federal de Marabá, apreciou e rejeitou a denúncia, sob o fundamento de que a Lei de Anistia de 1979 anistiou supostos autores de crimes políticos durante a ditadura militar. Matos emitiu seu despacho no dia 16, dois dias após a apresentação da denúncia. Os Procuradores da República Tiago Rabelo e André Casagrande Raupp, de Marabá; Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Jr., de Belém; Ivan Marx, de Uruguaiana; Andrey Borges de Mendonça, de Ribeirão Preto; e Sérgio Suiama, de São Paulo sustentam na denúncia que o crime de seqüestro é permanente enquanto as vítimas não forem encontradas e não se enquadram, portanto, na Lei de Anistia. A íntegra da denúncia está disponível no site www.pgr.mpf.gov.br. (Cláudia Souza)
funcionamento da Comissão Nacional da Verdade. As manobras dos indivíduos que buscam calar o direito à Memória, à Verdade e à Justiça tentam, por um lado, golpear a democracia, atingir e desmoralizar o Governo federal e suas autoridades; por outro lado, envolver as Forças Armadas dos dias de hoje na defesa dos crimes cometidos, há décadas, pela ditadura militar, e implicá-las na defesa de militares e civis que foram os executores desses crimes. O chamado “Manifesto à Nação” assinado por militares da reserva, entre os quais conhecidos torturadores, é uma
enorme afronta ao Governo federal legitimamente eleito e aos Poderes da República, e seus ataques à Comissão Nacional da Verdade são inadmissíveis. Externamos nosso integral apoio à decisão da Presidenta Dilma Rousseff e do Ministro da Defesa, Celso Amorim, de punir esses autores de crimes de desacato, e reiteramos a necessidade da instalação imediata da Comissão Nacional da Verdade, único instrumento capaz de investigar, conhecer e divulgar a verdade sobre as graves violações de direitos humanos praticadas pelos órgãos de repressão da ditadura militar, e a sanção de
seus autores, nos termos da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal quanto aos crimes permanentes. Por fim, face ao crescimento das adesões de militares a esse manifesto de vocação golpista, a punição aos seus subscritores tornou-se uma questão não só imprescindível, como urgente, sob pena de fragilizarem-se a democracia e os Poderes constitucionais da República. Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.”
IstoÉ revela farsa na execução de Marighella O Delegado Sérgio Fleury e seus agentes montaram um cenário para difundir a versão de que ele foi morto numa troca de tiros. Um depoimento do fotógrafo Sérgio Vital Tafner Jorge acabou com a farsa montada sobre a morte do guerrilheiro Carlos Marighella, executado a tiros disparados por agentes da ditadura militar (1964-1985), na noite de 4 de novembro de 1969. “Eu vi os policiais colocando o corpo dele no banco de trás do carro”, revelou o fotógrafo que fez o registro de Marighella depois de morto. Seu depoimento foi dado à revista IstoÉ e publicado com exclusividade na edição nº 2208, ano 36, que circulou no dia 6 de março. A história de Sérgio desmontou a versão da ditadura para a forma como se deu o assassinato de Carlos Marighella. Líder da Ação Libertadora Nacional (ALN) e considerado inimigo número 1 do Governo militar, de acordo com a revista ele foi metralhado em uma emboscada na Alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Segundo a reportagem, na versão dos militares “o guerrilheiro fora atraído para um ‘ponto’ com religiosos dominicanos simpatizantes da ALN e trocara tiros com os agentes que varejavam o local do encontro”. Sérgio nessa época estava com 33 anos e era fotógrafo da revista Manchete. Ele fotografou Marighella estirado no banco traseiro do Fusca dos dominicanos. “Barriga à mostra, calça aberta, dois filetes de sangue escorrendo pelo rosto”, conforme assinala um trecho da matéria. Atualmente com 75 anos de idade, Sérgio Taffner disse à IstoÉ que toda a cena de Marighella morto “foi uma farsa”. Ele revelou à reportagem que resolveu contar a verdade depois que soube que o também fotógrafo Silvaldo Leung Vieira contou à Folha de S.Paulo, em 5 de janeiro, que a sua foto usada pelo Exército como prova do suicídio de Vladimir Herzog, nas dependências do Doi-Codi de São Paulo, era uma “encenação criada pelos militares”.
Sérgio Taffner declarou ao repórter Alan Rodrigues que se sentia incomodado em não contar a verdade, e que passados 40 anos do acontecimento viu que “tinha chegado a hora de contar ”: “O Brasil mudou”. A operação que resultou na morte de Marighella foi conduzida pelo então Delegado linha-dura Sérgio Paranhos Fleury. Sérgio e outros colegas fotojornalistas chegaram ao local aproximadamente às 20h, mas foram impedidos de documentar a cena. “Não quero ouvir nenhum clique! Todos encostados no muro, com as máquinas no chão!”, teria ordenado aos fotógrafos o Delegado, um dos mais temidos e cruéis agentes da ditadura.
Segundo o relato do fotógrafo, Marighella estava no banco da frente do Fusca, com uma perna dentro e outra fora do carro; os dois braços estavam caídos e não havia quase registro de sangue em sua roupa. Seu corpo foi colocado no banco de trás do automóvel por três policiais; só então os fotógrafos foram autorizados a fazer os registros. A intenção de Sérgio é relatar esse episódio à Comissão da Verdade. Para provar que a versão dos militares para a morte de Marighella foi uma “armação”, voltou ao local onde o guerrilheiro foi executado e, com a ajuda de um amigo, fez uma reprodução da cena que presenciou há 40 anos. (José Reinaldo Marques)
Farsa também na morte de Herzog Uma foto divulgada pelo Deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ) reforça a tese de que o suposto “suicídio” de Vladimir Herzog foi realmente uma farsa. O parlamentar disse a O Globo que a fotografia é muito esclarecedora sobre as condições reais da morte do jornalista, ocorrida em 25 de outubro de 1975, nas dependências do DoiCodi de São Paulo. “Omitida na época, a foto reforça a farsa do suicídio de Herzog, porque mostra mais claramente a posição das grades da cadeia”, disse o deputado ao jornal. Na fotografia distribuída aos jornais na época da morte de Herzog vêse a imagem do seu corpo amarrado por uma corda no pescoço, onde não aparece a parte de cima das grades. Essa imagem foi usada pelo Instituto de Criminalística para justificar a versão de que Herzog teria se suicidado —
que não fora assassinado na prisão. Miro Teixeira divulgou a cópia da fotografia e uma carta do General Newton Cruz, na época chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), ao seu superior General João Baptista Figueiredo. Segundo O Globo, na carta Newton Cruz fala em “disputa interna pelo poder no comando do regime” e garante que a foto não fora distribuída à imprensa. O material foi publicado também no site leidoshomens.com. br, no dia 6 de março. Para reforçar que Herzog jamais poderia ter provocado a própria morte, ao analisar a imagem apresentada por Miro Teixeira, o site comenta que “a cinta passada em torno do pescoço da vítima estava amarrada em uma barra de ferro a 1,63 m de altura, o que impedia a suspensão em vão livre do corpo de Vladimir Herzog”.
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CINEMA ÁLVARO DA COSTA/FOLHAPRESS
Joaquim Pedro de Andrade: “Só me interessa o Brasil” Menos badalado entre os papas do Cinema Novo, o cineasta tem sua obra completa restaurada e lançada em dvd. P OR C ELSO S ABADIN
Ele não era polêmico como Gláuber Rocha, nem pioneiro como Nelson Pereira dos Santos. Mas revendo-se sua obra percebe-se que Joaquim Pedro de Andrade foi um dos mais versáteis e completos cineastas do movimento cinemanovista brasileiro. Todos os seus longas e curtas foram minuciosa e exaustivamente restaurados pela Cinemateca Brasileira, dentro das mais modernas técnicas digitais disponíveis no mercado. E o resultado deste trabalho está numa caixa de seis dvds lançada pela VideoFilmes. Aliás, mais que uma simples caixa de dvds: incluindo livretos explicativos, textos da época e novos documentários, trata-se de uma aula de cinema brasileiro. O material é indispensável para quem quiser entender um pouco mais da nossa História, do nosso cinema e deste cineasta que certa vez afirmou: “Só sei falar de Brasil; só me interessa o Brasil”. O carioca Joaquim Pedro de Andrade, que completaria 80 anos no próximo dia 25 de maio, nasceu em berço intelectual. Era filho de Rodrigo Melo Franco de Andrade, fundador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico NacionalIphan, cuja casa era freqüentada por representantes dos mais diversos setores da inteligência brasileira. Como os cursos superiores ligados ao setor artístico não eram bem vistos, o jovem Joaquim Pedro começou a estudar Física na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro. Mas o “bichinho” do cinema logo o contaminou. Na Faculdade, era assíduo freqüentador do cineclube e passou a escrever sobre cinema no jornal dos estudantes. Ainda de forma amadora, chegou a atuar no filme Les Thibault, de Saulo Pereira de Melo, e a trabalhar como assistente de direção no curta Caminhos, de Paulo César Saraceni. Percebendo que a Física não faria parte do mundo de Joaquim Pedro, seu pai o direcionou para um trabalho de restauração da obra Os Passos da Paixão, de Aleijadinho. O rapaz não se tornaria um restaurador, mas a experiência acabou influenciando sua temática como cineasta. 30
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A primeira experiência cinematográfica profissional de Joaquim Pedro foi como assistente de direção de Rebelião em Vila Rica, que Geraldo e Renato Santos Pereira escreveram e dirigiram em 1957. Dois anos depois, dirigiria seu primeiro curta, O Poeta do Castelo e o Mestre de Apipucos, financiado pelo Instituto Nacional do Livro, sobre o poeta Manuel Bandeira e o escritor Gilberto Freyre. Mais tarde, Joaquim Pedro, a pedido do próprio Gilberto Freyre, dividiu o curta em dois. O primeiro, O Poeta do Castelo, se centraliza na solidão de Manuel Bandeira em seu claustrofóbico apartamento do Rio. E o segundo, O Mestre de Apipucos, enfoca Gilberto Freyre em sua confortável residência às margens da praia de Boa Viagem. Um instigante contraste que ao mesmo tempo une e separa dois grandes nomes da literatura brasileira. Uma bolsa em Paris
Em 1960 Joaquim Pedro escreve e dirige o curta Couro de Gato, nitidamente influenciado por Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos. Rodado no Morro do Cantagalo, no Rio, o filme conta a tocante história de um grupo de meninos que rouba gatos para vender aos fabricantes de tamborins. Dois anos depois, o curta seria incorporado ao longa em episódios Cinco Vezes Favela. Com uma bela fotografia de Mário Carneiro e música de Carlos Lyra, Couro de Gato chama a atenção do Ministério da Cultura da França, que convida seu diretor para uma bolsa de estudos em Paris. Terminada a temporada francesa, em 1963 Joaquim Pedro é convidado pelo fotógrafo, produtor, jornalista, roteirista e entusiasta cinematográfico Luiz Carlos Barreto para dirigir uma de suas idéias mais afetivas: um documentário sobre o ídolo popular Garrincha, na época já bicampeão mundial de futebol. Joaquim Pedro aceita e estréia no longa metragem com Garrincha, Alegria do Povo, co-roteirizado pelo jornalista Armando Nogueira. Com o sucesso do filme e um início de consolidação de carreira, Joaquim Pedro decide então fundar sua própria produtora, a Filmes do Serro, em 1965. Para o longa de estréia da nova empresa, o cineasta acerta em cheio ao adaptar o poema de
Carlos Drummond de Andrade O Padre, A Moça e filmar o quase homônimo O Padre e a Moça, estrelado por Helena Ignez e por um jovem e promissor ator de teatro, estreante nas telas, chamado Paulo José. Decupado com precisão, fotografado com arte e interpretado com perfeição, o filme ratifica o talento de Joaquim Pedro e imediatamente o eleva à categoria dos grandes cineastas daquele fervilhante momento do cinema brasileiro. Ganha dois prêmios no Festival de Brasília e entra na Mostra Competitiva de Berlim. Profundamente ligado à intelectualidade nacional e, conseqüentemente, comunista para os padrões da época, Joaquim Pedro é preso pela ditadura militar em 1969 e liberado alguns dias depois. No mesmo ano, começa a filmar aquele que seria o seu maior sucesso de público e de crítica: Macunaíma, livremente baseado no livro de Mário de Andrade. Tropicalista, irreverente, cinemanovista e antropofágico, o filme é um delírio criativo dos mais pulsantes da época e utiliza dois atores para viver o mesmo personagem-título: Paulo José e Grande Otelo. Os censores, provavelmente perdidos e sem compreender muito do que se passava na tela,
limitaram-se a cortar cenas de nudez e uma ou outra referência política que porventura vieram a entender. O dvd resgata a cópia integral, sem os cortes da época. Três anos depois, em 1972, o Governo militar se esmera nas comemorações do sesquicentenário da Independência do Brasil. O então Ministro da Educação Jarbas Passarinho recomenda que os cineastas se inspirem nos grandes feitos históricos da nossa Pátria para realizar seus filmes. Não por acaso, é o ano de lançamento do chapa-branca Independência ou Morte, com Tarcísio Meira. Mas certamente o sempre irônico e combativo Joaquim Pedro jamais se prestaria a este tipo de serviço público-político. Pelo contrário: na contramão dos livros oficiais de História, lança Os Inconfidentes, com José Wilker no papel de Tiradentes, filme que investiga a fundo os bastidores da Inconfidência, atualiza a revolução mineira para o momento contemporâneo, e desmascara o perfil ufanista do herói que virou feriado nacional em 21 de abril. Tudo o que a ditadura não queria. Em seu quinto longa, Guerra Conjugal, de 1975, Joaquim Pedro deixa um pouco a política de lado e prefere focar a sempre
delicada questão dos relacionamentos amorosos. Afinal, é a era da pornochanchada, e uma boa dose de erotismo era ingrediente primordial para a sobrevivência de um filme nas bilheterias. Mesmo que o sexo viesse revestido de uma ferina crítica social. Joaquim Pedro adapta então para um único roteiro vários contos de Dalton Trevisan, cruza histórias, desenvolve personagens intrigantes e cria um painel de vidas bizarras com um certo tempero rodrigueano. Como de costume, extrai o melhor de seu elenco,
e é preciso nos enquadramentos e no manuseio da câmera. Resultado: mais quatro prêmios no Festival de Brasília (incluindo melhor filme e melhor direção), exibição em Portugal, e participação no New York Film Festival. Seu longa seguinte (e derradeiro) viria em 1981 com O Homem do Pau Brasil, uma visão bastante livre, irreverente e poética da vida do escritor Oswald de Andrade. Se em Macunaíma Joaquim Pedro utilizou dois atores para viver um único personagem, aqui ele repete a dose: Ítala
Nandi e Flávio Galvão, juntos, recriam um hiperativo Oswald de Andrade, em várias de suas polêmicas facetas. O filme dá ao seu diretor, novamente, o prêmio máximo em Brasília, mas não alcança a mesma repercussão popular e de crítica de seus trabalhos anteriores. Não haveria outros. Em 10 de setembro de 1988, com apenas 56 anos, o fumante inveterado Joaquim Pedro de Andrade é vencido por um câncer no pulmão, sem conseguir concretizar o sonho de adaptar Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre,
para as telas. O Cinema Novo já não existia mais. Nem Gláuber, nem a pornochanchada. O cinema brasileiro encaminhavase para o fundo de um poço que chegaria menos de dois anos depois, com Fernando Collor desmontando a Embrafilme e quase destruindo nossa Sétima Arte. Uma derrocada que Joaquim Pedro não chegou a ver. Mesmo porque, se visse, certamente saberia transformar mais esta adversidade num filme-denúncia ou protesto. Com muita técnica, arte e competência, como era de seu elegante feitio.
fique nas mãos de um só homem. Principalmente de um militar”. Em tempos de ditadura, os ideais de liberdade da inconfidência mineira ganham amplidão muito maior e muito mais atual no filme de Joaquim Pedro. Entre os extras, o curta O Aleijadinho, que Joaquim Pedro dirigiu a partir de um roteiro empolado e barroco escrito pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa.
A Coleção Joaquim Pedro de Andrade Sete longas e muitos extras preciosos fazem deste lançamento uma obra irretocável. REPRODUÇÃO
GARRINCHA, A ALEGRIA DO POVO
Primeiro longa de ficção dirigido por Joaquim Pedro, O Padre e a Moça já sinaliza o talento do cineasta, que se ratificaria em seus trabalhos futuros. Com belos e longos planos, e decupagem minuciosamente estudada, o filme se passa numa cidadezinha isolada pela serra, onde “as coisas mudam tão devagar que ninguém sente”. Um lugar onde as pessoas iam em busca de ouro e esmeraldas, encontravam diamante, mas não sabiam o valor do que achavam. Com o tempo, tudo foi drenado, e a cidade explorada até o último pedaço de terra, formando o cenário perfeito para a trama de amor, negação e loucura encabeçada por Helena Ignez e Paulo José, aqui estreando no cinema. O filme faz uma crítica feroz ao conformismo da Igreja, que usa o nome de Deus para pregar a mesmice. A trilha é de Carlos Lyra, produção de Luiz Carlos Barreto e fotografia, deslumbrante, de Mário Carneiro. O dvd traz como bônus os 3 primeiros curtas de Joaquim Pedro: O Mestre de Apipucos (9') documentário sobre o dia-a-dia de Gilberto Freyre, O Poeta do Castelo (11'), sobre e com Manuel Bandeira, e Couro de Gato (13' ), que lhe rendeu uma bolsa de estudos na França.
MACUNAÍMA Em seu terceiro longa, Joaquim Pedro abandona o rigor formal de sua ficção de estréia e escancara a antropofagia modernista nesta sua visão muito particular do livro de Mário de Andrade. O Macunaíma de Joaquim Pedro, que apesar de comunhar o mesmo sobrenome não tem nenhum parentesco nem com Mário, nem com Oswald, é uma releitura alegórica e cinemanovista do famoso “herói sem nenhum caráter”. Grande Otelo e Paulo José, por incrível que pareça, dividem o papel título, com extremos bom humor e irreverência. São deliciosas as cenas feitas na rua, quase documentais, sem nenhuma preocupação em saber se a anônima população olhava ou não para a câmera. Com direito a Luiz Gonzaga, Simonal, Jorge Ben, Angela Maria, Silvio Caldas e Roberto Carlos na trilha sonora.
A fotografia, coloridíssima, começou a ser desenvolvida por Guido Cosulich, que teve de se ausentar do filme antes de terminar o trabalho. Quem a completou foi Affonso Beato, que anos mais tarde se consagraria no mercado internacional como Diretor de Fotografia de vários filmes de Pedro Almodóvar. Beato também foi consultor da atual restauração digital de Macunaíma. Entre os extras, destaque para o documentário de 23 minutos Brasília Contradições de uma Cidade, dirigido por Joaquim Pedro, com roteiro dele, Luís Sala e Jean-Claude Bernardet. Proibido pela censura da época (1968), o filme já sinalizava que a nova capital brasileira estava fadada ao fracasso, tanto antropológica, como social e urbanisticamente. Motivo: o operariado que a construiu estava rapidamente sendo expulso do lugar, e favelizando as cidades-satélites. A narração é de Ferreira Gullar.
GUERRA CONJUGAL Adaptação de contos de Dalton Trevisan, que Joaquim Pedro costura eficientemente num único longa onde os relacionamentos amorosos ganham contornos eróticos e até doentios. Como a época é das pornochanchadas, o material publicitário do filme, também disponível no dvd, o posiciona escancaradamente como se ele fosse uma comédia, o que efetivamente não é. Há um trailer totalmente ilustrado com apimentados cartuns de Jaguar, e um outro com frases como “cueca contra calcinha na guerra do amor”. Tudo por uma questão de sobrevivência dentro de uma realidade de mercado que, naqueles anos 1970, exigia humor e erotismo das produções brasileiras. Ainda que Guerra Conjugal traga cenas de nudez e sexo, o filme é muito mais que isso, abordando temas como violência, taras e traições com refinada ironia. Travesti-lo de Pornochanchada pode ter sido ainda uma estratégia para iludir a censura. Nos extras, dois destaques: os curtas A Linguagem da Persuasão e Vereda Tropical. Mesmo sendo um filme técnico feito para o Senac, A Linguagem da Persuasão traz uma forte dose de crítica social, questionando, já em 1970, os caminhos da comunicação de massa, que sufocava as individualidades a favor de uma forma massificante de se pensar ou se agir. Ou até de não se pensar e não se agir. Já Vereda Tropical foi um dos episódios (provavelmente o mais comentado) do longa Contos Eróticos. Com muito bom humor, fala de um tímido professor (Claudio Cavalcanti) que sacia a sua solidão sexual fazendo amor com... melancias.
OS INCONFIDENTES O quarto longa de Joaquim Pedro de Andrade nasceu de um pedido do então Ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Mas que ninguém pense que o cineasta estava sendo conivente com o regime ditatorial que ele tanto combatia. Muito pelo contrário. Joaquim Pedro utilizou-se de toda a sua conhecida ironia para “atender” ao Ministro, que na época solicitou que os cineastas brasileiros fizessem filmes sobre episódios heróicos de nossa história. Xará de Tiradentes, Joaquim pesquisou então exaustivamente os textos dos Autos da Devassa (sobre o julgamento dos revoltosos mineiros), mesclou-os com os poemas dos inconfidentes e de Cecília Meireles, e chegou a um roteiro precioso e crítico contra todo tipo de opressão. Como diz o trailer original do filme, também no dvd, Os Inconfidentes mostra “a verdade sobre uma história mal contada”, e “A história que não está nos livros e que não se aprende no colégio”. “Sai daqui e vai pensar no perigo de ser ignorante”, diz um dos personagens. Ou então “É o que temos de evitar no futuro: que tudo
O HOMEM DO PAU BRASIL
REPRODUÇÃO
Em exuberante preto e branco, o documentário traz imagens históricas e até impensáveis para os dias de hoje. Como por exemplo Garrincha, já campeão do mundo, dirigindo seu humilde fusquinha até sua pequena cidade natal, Pau Grande, no Rio de Janeiro. Há também o registro das camisas do Botafogo, ainda imaculadamente sem patrocínios, numa época em que o Brasil sequer conhecia a palavra marketing. Os primeiros 15 minutos do filme são de marcante beleza cinematográfica, só com imagens, sem locuções ou depoimentos. Com direito a música sinfônica na trilha sonora e um roteiro libertário, sem preocupações didáticas ou cronológicas. “Fiquei sabendo que tinha as pernas tortas lendo o jornal”, afirma o sempre ingênuo Garrincha, imortalizado pela câmera de Joaquim Pedro. Entre os extras, destaque para o emotivo documentário Histórias Cruzadas, de 52 minutos, dirigido por Alice de Andrade, filha de Joaquim Pedro. O filme traz depoimentos dos cineastas Nelson Pereira dos Santos, JeanClaude Bernardet, Cacá Diegues e Walter Lima Jr., entre outros. É Nelson Pereira, inclusive, quem credita a inspiração da criação do Cinema Novo Brasileiro ao Neo Realismo Italiano: “Se os italianos faziam filmes na rua, com aquele povo que saiu destroçado de uma guerra prolongada, por que não fazer a mesma coisa com o nosso povo que é sempre destroçado, como se a gente vivesse permanentemente no pósGuerra?”, pergunta o cineasta no documentário. Já Cacá Diegues brinca: “O Cinema Novo tinha um programa simples, simplesinho. Era, primeiro, mudar a história do cinema, segundo, mudar a história do Brasil e terceiro, mudar o planeta. Era só isso que a gente queria”
O PADRE E A MOÇA
Último longa de Joaquim Pedro de Andrade, O Homem do Pau Brasil é uma leitura alegórica da vida de Oswald de Andrade, transposta para o cinema com muita liberdade criativa. O elenco é de encher os olhos, reunindo Grande Otelo, Dina Sfat, Etty Frazer, Othon Bastos, Paulo José, Miriam Muniz, Wilson Grey, Sérgio Mamberti, Antônio Pitanga e muitos outros. Oswald é intepretado por Flávio Galvão e Ítala Nandi. Segundo Suzana de Moraes, que foi assistente de direção de Joaquim Pedro, “é um filme erudito. É uma comédia rasgada, mas a construção desta comédia é muito culta”. Entre os extras, destaque para O Tempo e a Glória matéria especial que Joaquim Pedro fez com o escritor Pedro Nava para a TVE. É curioso também um extra de 8 minutos no qual Marília Gabriela entrevista Joaquim Pedro para o programa TV Mulher, em 1982. Durante a entrevista, a apresentadora comete o erro comum de qualificar Oswald e Mário de Andrade como irmãos, e é prontamente corrigida pelo cineasta.
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HISTÓRIA
Uma lição de imprensa A História dos jornais Opinião e Movimento revela a importância da reportagem e da perspectiva crítica para a produção de informação. Para antigos colaboradores desses veículos, falta uma imprensa relevante hoje no Brasil. P OR V ERÔNICA C OUTO
O que falta à imprensa de hoje? O que eles não têm, que tinham os jornais Opinião e o Movimento, criados na década de 1970, fase sangrenta da ditadura militar, mas desassombrados na pauta, mesmo sob censura e com grandes riscos para seus colaboradores? A substância fundamental que sobrava lá e agora escasseia, na opinião de alguns que conheceram de perto a História desses jornais, é principalmente informação de qualidade. Apurações consistentes custam caro, e, para financiá-las, é preciso contar com uma rede grande de leitores e apoiadores. O jornalista Raimundo Pereira, que esteve à frente da Redação das duas publicações, em diferentes momentos, explica. "A grande questão é a dos recursos, e o Movimento, um semanário, conseguiu levantá-los." Em setembro passado, Pereira reuniu-se na Livraria Cultura, em São Paulo, a outros profissionais que participaram dessa Redação lendária, para o lançamento do livro Jornal Movimento – Uma Reportagem, escrito por Carlos Azevedo, com a colaboração de Marina Amaral e Natália Viana. A grande maioria desses jornalistas hoje critica a mídia. Tanto Movimento quanto Opinião investiam na busca da informação e no registro da realidade brasileira, com jornalistas de primeira linha, viagens, tempo para conhecer a fundo lugares, pessoas e circunstâncias. 32
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"Palpite todo mundo dá, o importante é a informação", alerta Raimundo Pereira. Na opinião dele, tentativas recentes de blogs ou revistas de se contraporem à grande mídia ainda não acertaram o tom. "Estão produzindo matérias ruins ou muito opinativas. Isso não é tarefa da imprensa popular, mas da imprensa dos partidos. O jornalismo deve levantar debates amplos, convencer a partir dos fatos e de um conjunto de idéias diferentes." E qual seria a pauta mais relevante da atualidade? Para Raimundo, tratar a questão democrática do ponto de vista do interesse dos trabalhadores e dar uma boa interpretação para temas nacionais. Por exemplo, diz o editor de Movimento, acompanhar o setor do petróleo, em que o Brasil se candidata a grande produtor global, a partir das reservas encontradas na camada pré-sal. "Se a gente bobear, parte dessa imensa massa de recursos vai servir para fazer superávit primário", alerta Raimundo, que cita, preocupado, o alto índice de terceirização e o esvaziamento do valor agreado da indústria nacional. Ou seja, as matérias da imprensa popular, na avaliação dele, deveriam mostrar o que falta na política industrial, analisar os investimentos, os projetos tecnológicos e os encaminhamentos que estão sendo dados a decisões estratégicas para o País. "O jornal precisa ter um programa", proclama Raimundo Pereira. O movimen-
to popular e a imprensa têm agora liberdade, que lhes faltava na época de Opinião e Movimento. Mas não contam, diz ele, com uma proposta comum, capaz de atrair forças suficientes para colocar de pé um projeto editorial como foram aqueles. Isso não significa, contudo, que não existam causas importantes. "Muita gente acredita que é preciso buscar uma democracia qualificada, com bandeiras do interesse popular."
A edição apreendida: o número 24 de Opinião não circulou no dia 16 de abril de 1973.
Entre os problemas nacionais ele destaca os vínculos que permanecem do Estado com o capital financeiro, mesmo. "A taxa de juros é a mais alta do mundo desde 1992, desde o Governo de Fernando Collor." O que poderia explicar a queda, também citada pelo jornalista, nas taxas de crescimento do PIB, reduzidas à metade do que foram antes da crise de 2008 – de 5% a 7% ao ano, em média, para previsões atuais de cerca de 3,5%. "As remessas de lucro e dividendos, que sempre foram uma medida da espoliação do País, estiveram abaixo dos US$ 5 bilhões ao ano, em média, até durante o Governo FHC; as últimas estimativas apontam para US$ 38 bilhões ao ano. Estamos tentando ajudar os países ricos, mandando dinheiro para os banqueiros e para o grande capital." O jornalista Luís Marcos Gomes pilotava a Redação do Opinião junto com Pereira e Tonico Ferreira, antes de se transferir para o Movimento. Era militante da Ação Popular-AP, quadro precoce do movimento estudantil, muitas vezes preso e processado. Também acredita que exista o que dizer fora do padrão da grande mídia. E resume o que considerava os traços fundamentais dos dois projetos. "Esses jornais eram muito críticos, não tinham postura doutrinária, tentavam seguir os fatos, especialmente aqueles ignorados pela mídia, traziam análises – por exemplo, dos resultados das eleições, das derrotas do regime –, davam espaço às campanhas pela anistia e às bandeiras da Constituinte, faziam a defesa das liberdades democráticas. Investiam com tudo na reportagem." O repórter Murilo Carvalho (autor de O Rastro do Jaguar) andou por muitos lugares do Brasil para produzir as "cenas brasileiras". Com ele, a fotógrafa Lucia Reggiani conta que conheceu festas populares, mercados, a cara das pessoas, as casas de cidades do interior do Nordeste, do Norte, e revelou tudo nas páginas do Movimento. Sucursais funcionavam no Rio de Janeiro, em Nova York, Buenos Aires, Paris, etc. "A questão é ter recursos materiais para produzir jornais assim", reconhece Gomes. "O livro (de Azevedo) coloca a discussão sobre o papel da imprensa popular e democrática. Mas estamos num momento de muita dispersão e fragmentação, em que é difícil criar projetos capazes de congregar pessoal com bagagem crítica." O que se vê na grande imprensa, na opinião dele, é cada vez mais a mistura de informação com posição editorial. "É preciso procurar na internet, pelo mundo, quem possa te dar informação mais qualificada. No caso da guerra do Iraque, por exemplo, os repórteres estão acompanhando o avanço das tropas americanas, e não cobrindo a guerra." Na avaliação de Gomes (autor de Sociedade dos Socialistas Vivos e Os Homens do Presidente), outro problema é o brutal enxugamento a que foram submetidas as equipes. "As Redações foram muito reduzidas, violentamente, enquanto aumentou na mesma proporção o controle editorial das famílias proprietárias dos jornais. Houve uma editorialização da informação, inclusive com o beneplácito dos grandes colunistas. Alguns profissionais ainda têm independência, mas são exce-
ções. A imprensa hoje está monocórdia, e me cansa." Jornal para golpear
No livro Jornal Movimento - Uma Reportagem, lemos que o Opinião, até o número 24, passou de uma tiragem de 28 mil para cerca de 38 mil exemplares vendidos. Para se ter uma idéia, a revista Veja, que ainda tinha credibilidade e prestígio, vendia pouco mais de 40 mil nas bancas, e a Visão, também nas bancas, perto de 10 mil. "A Redação de Opinião chegou a ser uma das maiores do País, em termos de esforços mobilizados a favor dela. Fora do País, era um negócio maior ainda: tinha o Robert Kennedy mandando entrevistas, tinha essas grandes publicações estrangeiras cedendo direitos para o Opinião só porque ele resistia à censura." No livro, Raimundo Pereira calcula que foram produzidas 121 edições em dois anos e três meses, tempo em que ele o editou. Mas, ao todo, o jornal circulou de 1972 a abril de 1977. O Opinião, com sede no Rio de Janeiro, foi criado pelo mineiro Fernando Gasparian. Ele havia integrado o Conselho Nacional de Economia no Governo João Goulart, era um empresário com presença na indústria têxtil e amigo de Rubens Paiva, que seria assassinado pelo regime militar. O Brasil vivia com medo, e Gasparian teve papel bastante fora do comum, lembra Gomes. "O jornal surgiu no final de 1972, quando a situação política era bem desfavorável. A resistência tinha sido degolada, reinava a ditadura. A decisão de abrir um jornal legal para golpear o Governo teve grande impacto na opinião pública. Foi uma atitude muito corajosa." O número zero custava Cr$ 2,50, formato tablóide, 26 páginas. Gasparian se comprometeu a respeitar a independência editorial da Redação, que
entregou à chefia de Raimundo Pereira, a essa altura já dono de um Prêmio Esso e um profissional reconhecido. Ele reuniu um conjunto de jornalistas talentosos, intelectuais, e jogou na praça discussões sobre modelo econômico, dívida externa, distribuição de renda. Tratou de assuntos nevrálgicos: sucessão dos generais, sistema habitacional, salários, e passou a reproduzir as edições semanais do Le Monde. O Opinião noticiava até os "acidentes" fabricados pela repressão – atropelamentos, por exemplo –, apontando a farsa que pretendia escamotear os assassinatos de perseguidos políticos. Já no primeiro número, estavam lá o economista Celso Furtado, o escritor Antonio Callado, o crítico e ensaísta Otto Maria Carpeaux. "Opinião não aceitava a lista de temas a serem evitados, feita pela Polícia Federal", diz Gomes. Mas a censura foi apertando o cerco. Primeiro, por meio de avisos. Depois, exigiu que levassem as matérias para um funcionário, que morava no Flamengo, analisar; em seguida, um censor se instalou na Redação; até que foi necessário empacotar todo o jornal e remeter para a Polícia Federal em Brasília. "A PF o devolvia com cortes em títulos, palavras, charges, fotos, ilustrações, capas. E a gente tinha que refazer o jornal daquele jeito", conta Gomes. Um desafio para o pessoal da arte. "Os artistas gráficos faziam coisas incríveis para produzir o jornal com a sobra, além de tentar mandar sinais, por exemplo, aplicando tarjas pretas." Entre eles, nomes como Cássio Loredano, Elifas Andreato, Rubens Grillo. E depois, em Movimento, também Chico Caruso, Jaime Leão, e muitos outros. Opinião esteve sob censura até 1978, embora ela tenha sido suspensa na maioria dos jornais em 1976. Um
atentado terrorista, ainda que sem vítimas, levou Gasparian à decisão de fechar o jornal, em 1981. Pauta popular
Movimento já nasceu censurado, cortado desde o número zero, em 1975. Surgiu de uma divergência política incontornável entre o editor Raimundo Pereira e o dono do Opinião, Fernando Gasparian, que o demitiu. "O Gasparian cometeu um erro grande. Ele me chamou e disse que eu estava demitido; quase todos saíram em solidariedade." Entre os que deixaram o projeto, não só repórteres e editores, mas colaboradores como Maurício Azêdo, Aguinaldo Silva, Aloísio Biondi. Alguns mantiveram o apoio aos dois veículos, como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O desacordo se deu em torno da abertura política, proposta no Governo do General Ernesto Geisel. O dono do jornal era a favor; o editor, contra. "O Gasparian acreditava que a abertura do Geisel era boa para nós; não era", diz Pereira, que também critica os termos violentos em que a distensão se deu. Um processo no qual foram mortos vários militantes de esquerda, como contrapartida sinistra. "A abertura era real, mas não se podia ter ilusão quanto ao propósito da ditadura." O contexto nacional estava mudando, lembra Marcos Gomes, que também acompanhou o editor ao novo jornal. "Em 1974, o MDB tinha faturado sua grande vitória eleitoral, com os chamados autênticos, e o Geisel tentou manobrar esse cenário, lançando a idéia da distensão. Respeitamos muito o Gasparian, que se arriscou muito e era realmente um nacionalista e democrata, mas houve um problema com o entendimento do significado dessa abertura. Ele chegou a propor anúncios gratuitos para a
Petrobras, empresa da qual o Geisel havia sido Presidente." Segundo Raimundo Pereira, foi um jornal feito por esse grupo que se fortalecia, formado por autênticos do MDB e um conjunto de jornalistas, que quis aproveitar a abertura para uma cobertura ampla das mobilizações populares, da anistia, na medida do possível. Ele deixou o Opinião, no Rio de Janeiro, e se mudou para São Paulo, para estar mais perto do movimento social. No auge, centenas de militantes vendiam de mão em mão, em vários pontos do País, uma média de 1,5 mil a 3 mil exemplares nos finais de semana. A tiragem total podia chegar a 200 mil exemplares por mês, incluindo a distribuição em bancas e para assinantes – que era feita então pela Editora Abril. Ao longo de sua história, teve Movimento cinco edições apreendidas, censuradas na íntegra, entre elas uma especial sobre a situação da mulher no Brasil (veja o quadro na página 34). Audálio Dantas, que era Presidente do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo quando se integrou ao Conselho do Movimento, durante o lançamento do livro de Azevedo lembrou a dificuldade que era colocar o jornal na rua. "Movimento foi o mais sacrificado. Houve semanas em que a angústia do Raimundo [Pereira] era que não podíamos fazer nada. Sobravam 20% do jornal. E todo mundo tentava correr para preencher os espaços que não podiam ficar em branco, porque estavam censurados. Era um ato de heroísmo. Tínhamos que fazer esse jornal, porque havia necessidade de dizer as coisas." A gestão interna se marcava por grande liberdade, com reunião de pauta concorrida, debates, assembléia. "Não tinha um dono", diz Gomes. Inicialmente, uma campanha de venda de cotas levantou recursos com 500 acionistas do jornal, que sobreviveu tam-
Um show de capas: Jayme Leão, Rubem Grilo, Chico Caruso, Elifas Andreato e outros grandes ilustradores participaram ativamente da produção dos jornais Opinião e Movimento.
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HISTÓRIA UMA LIÇÃO DE IMPRENSA
bém de assinantes (chegou a quase 10 mil leitores fiéis) e da circulação em banca. Contou também com o idealismo de profissionais dispostos a ganhar menos do que na grande imprensa. A editora de Movimento pertencia a um Conselho de Redação, representante do conjunto das forças que o constituíam. Cada jornalista comprava uma cota das ações, por exemplo, por Cr$ 300,00, e doava 51% para esse Conselho, que assim detinha o controle da publicação e representava os profissionais e os apoios que constituíam a frente de apoio. Mesmo assim, o Movimento sofreu com os atentados terroristas que atingiram as bancas de jornais que expunham os exemplares, especialmente durante o Governo do General João Figueiredo. "Muitos jornaleiros pararam de vender o jornal, com medo", lembra Gomes. "E o projeto já estava sangrando violentamente nas suas finanças, quando uma assembléia-geral dos acionistas decidiu encerrar o jornal em 1981." Raimundo Pereira dirige atualmente a revista Retrato do Brasil, na editora Manifesto, há 15 anos no mercado. A empresa não tem dívidas, mas alcança uma tiragem de 20 mil exemplares com a publicação
mensal, quase a metade dos números obtidos pelo jornal semanal Movimento. A estratégia para equilibrar a menor disponibilidade de recursos com uma apuração consistente das informações, diz Pereira, é fazer edições temáticas, em que pautas relevantes concentram o esforço de reportagem. O número de setembro da Retrato do Brasil traz 16 páginas sobre petróleo – como o Brasil poderá disputar a tecnologia de exploração na camada do présal, em que grandes empresas multinacionais ganham cada vez mais espaço. Sobre a saída de colaboradores da revista, este ano, para ingressar no Psol, Raimundo diz que é uma determinação do veículo não criticar o PT. "Nossa postura não é falar mal, mas apresentar fatos, aproveitar o que foi feito e lutar para que se faça mais. Mas não ficar reclamando nos jornais." As diferenças entre Raimundo Pereira e Fernando Gasparian não desfizeram os laços de admiração. "Antes de Gasparian morrer [em 2006], conversamos algumas vezes. No que me concerne, terminamos como amigos. Sempre tive respeito por ele. Nós tínhamos um projeto conjunto, de fazer um site reunindo material do Opinião e do Movimento.
Homenageamos o Gasparian na festa dos 30 anos de lançamento do Movimento." Apesar do engajamento de Gasparian na idéia da distensão do regime, o Opinião de jeito nenhum se tornou o "jornal da abertura", e continuou sua vocação de denúncia e sob censura violenta, lembra Pereira. A novidade, em Movimento, foi a gestão de-
mocrática, inspirada no francês Le Monde de então, e a cobertura das ações do movimento social. "Viemos para São Paulo porque sabíamos que havia aqui uma participação mais destacada, devido à proximidade do movimento popular, nos bairros, fábricas", conta Raimundo.
UM JORNAL LIVRE, SEM PATRÃO MULHERES, PAUTA PROIBIDA As singularidades de Movimento, onde a opinião dos jornalistas prevalecia. O autor de Jornal Movimento - Uma Reportagem, Carlos Azevedo, aponta as distinções sutis nos conteúdos dos dois jornais. "Como pertencia a um empresário, um capitalista, o Opinião tinha tendência mais nacionalista, menos inclinado a apoiar greves, lutas de trabalhadores. Estava voltado para a luta contra o capital estrangeiro, à defesa do desenvolvimento nacional e às questões democráticas, que eram inevitáveis." Já Movimento, diz, era um veículo sem patrão, em sistema de co-gestão, que iria enfatizar a cobertura das lutas sociais, da reforma agrária, do arrocho salarial, e cobrar de forma mais direta a revogação da legislação de exceção e o restabelecimento da democracia. "Será mais agudo no enfrentamento direto da ditadura. E, por isso, vai enfrentar uma censura muito dura." A grande imprensa evitava o confronto. "Ou estava omissa, temendo a censura, ou concordava com a ditadura", diz Azevedo. "Por isso, era tão importante que surgisse uma imprensa alternativa, pela necessidade de essas questões serem debatidas." E é também pelo exemplo do que conseguiram produzir que Azevedo considerou relevante contar a História do jornal. "E de um grupo de jornalistas extremamente corajosos, ousados e talentosos, que, sob uma ditadura militar, consegue abrir uma vereda para promover o debate político no País. Esses profissionais ajudaram os processos de democratização." O trabalho para a publicação do livro Jornal Movimento - Uma Reportagem começou ainda em 2003, quando ele considerou a idéia de apresentar a proposta ao
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Ministério da Cultura para conseguir incentivo fiscal da Lei Rouanet. Desistiu devido à burocracia necessária, mas em 2008 Raimundo Pereira retomou o projeto e conseguiu financiamento da Petrobras, pouco mais de R$ 200 mil, para um trabalho de dois anos de pesquisas, busca de documentos, realização de mais de 60 entrevistas. Foram consultados principalmente o Arquivo Público do Estado de São Paulo, os arquivos da Universidade de Campinas-Unicamp, o Arquivo Nacional do Ministério da Justiça – especialmente sobre a censura imposta aos conteúdos – e arquivos pessoais de jornalistas que tiveram atuação marcante no jornal: o próprio Raimundo Pereira, Flávio de Carvalho, Sérgio Buarque de Gusmão. O próprio processo de gestão do Movimento, que envolvia a participação dos jornalistas, num modelo inédito, ajudou no trabalho. "A história está muito documentada, porque o jornal tinha assembléias internas, com atas", diz. Azevedo espera que o livro estimule o fortalecimento de uma imprensa mais crítica no País, onde, na sua visão, a informação relevante anda em falta. "São os grandes ladrões enforcando os pequenos ladrões. E as coisas não se resolvem." Na pauta, ele gostaria de ver temas como a superação da desigualdade e da concentração de riqueza. Fatores que, na opinião dele, resultam em corrupção e violência. "Agora é moda: todo repórter que se acha repórter precisa ter um corrupto na mira; pega um ali, outra lá. Mas ninguém examina a corrupção nas grandes corporações, como se os empresários fossem todos virtuosos. E os políticos, ladrões."
A censura cortou 95% das matérias de uma edição especial de Movimento dedicada a um tema tabu: as mulheres, sua vida, suas lutas. Adélia Borges e Sérgio Buarque de Gusmão eram casados e trabalhavam em O Estado de S.Paulo na época da criação do jornal Movimento. Decidiram que ele ia sair do diário para se juntar à equipe de Raimundo Pereira, e ela continuaria no Estadão, que pagava bem mais, colaborando com o projeto de forma informal. Uma dessas colaborações foi uma edição especial sobre a mulher, produzida no segundo semestre 1976. "Tirei férias para coordenar a edição, com uma pauta centrada na questão da mulher e do trabalho", lembra Adélia. Os colaboradores foram à rua buscar as mulheres: cenas brasileiras e perfis para mostrar as quebradeiras de coco babaçu, as empregadas domésticas, trabalhadoras de várias partes do País. Havia artigos de Paul Singer, capa de Elifas Andreato, panorama amplo como nunca tinha sido feito sobre o trabalho feminino. A censura cortou 95% desse esforço de reportagem, riscando um X sobre tudo, inclusive a capa. "Foi um desespero", recorda Adélia. Não teve salvação. Os 5% restantes de conteúdo foram publicados com uma matéria entre tantas, na edição do Movimento de 20 de setembro de 1976. Mesmo tão reduzidíssima, a reportagem teve impacto. O Deputado Ulysses Guimarães levou o texto ao Congresso, mostrou aos parlamentares as mãos estragadas das quebradeiras.
Como editora contribuinte, Adélia tentava levar à edição do Movimento bandeiras feministas. "Para várias pessoas de esquerda, trazer essas questões da vida privada não era prioritário. Alguns acreditavam que era uma manobra diversionista. Mas Movimento não se deixou contaminar por isso, o Raimundo Pereira é um editor fantástico e tinha abertura para esse tema." Depois, Adélia Borges passou a trabalhar na imprensa feminista, no Mulherio, um dos principais jornais a tratar da questão e a abrir caminho para revelar os problemas das mulheres.
EVENTO
Exposição celebra pioneiros dos quadrinhos brasileiros Quadrinhos’51 reúne produções raras de desenhistas que trabalharam no Brasil nas décadas de 1940 a 1970 e lembra primeira exposição sobre o tema realizada em São Paulo. P OR S ERGIO L UCCAS
A técnica e o talento dos pioneiros das histórias em quadrinhos no Brasil podem ser apreciados pelo público no Museu Belas-Artes de São Paulo (MuBA), palco da exposição Quadrinhos’51, que traz desenhos originais de alguns dos mais importantes artistas nacionais das décadas de 1940 a 1970, além de esboços, páginas inacabadas e jamais publicadas de vários artistas e publicações raras editadas nesse período. “Este evento é uma celebração da Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, realizada em 1951, em São Paulo, hoje reconhecida em enciclopédias de diversos países como a primeira do gênero no mundo”, diz Álvaro de Moya, desenhista, roteirista e produtor que organizou a histórica exposição há 61 anos, juntamente com Jayme Cortez, Syllas Roberg, Reinaldo de Oliveira e Miguel Penteado. Segundo Moya, “a exposição, que tem curadoria do jornalista Francisco Ucha, apresenta principalmente trabalhos de uma geração de profissionais talentosos que tiveram papel fundamental na evolução da hq no Brasil, valorizando-a como uma nova linguagem e como arte, a despeito dos preconceitos enfrentados na época”. Dentre os trabalhos selecionados, o público da mostra poderá ver de perto artesfinais de Gutemberg Monteiro, que é sócio da ABI e tem 95 anos, do próprio Álvaro de Moya, além de Rodolfo Zalla, Jayme Cortez, Miguel Penteado, Antonino Homobono, Shimamoto, André Le Blanc, Primaggio, Eugênio Colonnese, José Lanzelotti, entre outros gênios do traço. A exposição Quadrinhos’51 também traz alguns originais de desenhistas estrangeiros, todos do acervo de Alvaro de Moya, tais como Will Eisner, Jerry Robinson, Jim Davis, Mort Walker, Leonard Starr e Serpieri. Presente ao coquetel de abertura da mostra, no dia 21 de março, o desenhista Primaggio Mantovi, que trabalhou na Rio Gráfica e na Editora Abril, disse ao Jornal da ABI que a exposição é um resgate importante da memória do desenho de história em quadrinhos no Brasil. “Artistas da nossa geração têm aqui a oportunidade de mostrar ao público de hoje a qualidade e a técnica de seus trabalhos, que precisam ser preservados e divulgados.” Primaggio conta que sua principal criação em mais de 40 anos de carreira foi o
Entre os expositores, Gutemberg Monteiro, artista que desenhou durante 40 anos Tom & Jerry; Rodolfo Zalla, que se especializou em histórias de terror, e Lanzellotti, com trabalhos baseados na cultura brasileira.
palhaço Sacarrolha (exposto no museu), mas na juventude gostava mesmo era de desenhar o cowboy Rocky Lane – de quem era fã desde criança –, história em quadrinhos que ele roteirizou e desenhou durante três anos para a Rio Gráfica e Editora, na década de 1960, depois que as aventuras do personagem pararam de ser publicadas nos Estados Unidos. Sacarrolha completa 40 anos neste ano e Primaggio está preparando uma edição especial com todo o histórico de como foi criado, as edições publicadas, as fases que passou, além de dicas de como é o processo de criação de um personagem. Paralelamente, vai lançar um livro sobre roteiro de históri-
as em quadrinhos, explicando a técnica que desenvolveu no seu processo de trabalho. “Naquela época era comum o artista fazer uma revista inteira, texto, roteiro, capa, todo o trabalho. Isso me deu grande experiência e versatilidade. O mercado hoje trabalha com várias equipes de desenhistas, cada uma cuidando de uma etapa do processo, e a tecnologia agiliza e dá qualidade final à produção”, diz ele. Os originais expostos no Museu BelasArtes retratam isso. Muitos têm colagens e instruções para impressão, e dão a exata dimensão de como eram produzidos os quadrinhos naquele tempo, além de mostrar a técnica de cada desenhista.
Obras do desenhista argentino Rodolfo Zalla, que veio para o Brasil em 1964, também ganharam espaço na mostra, com destaque para tiras do seu personagem “Jacaré” Mendonça – hoje praticamente esquecido –, que foram publicadas diariamente no Segundo Caderno do jornal Última Hora, assim que ele chegou ao Brasil. “Cada geração de desenhistas tem uma forma própria de se expressar compatível com a realidade do seu tempo. Esta exposição retrata uma época em que os artistas tinham uma relação diferente com o papel e com os instrumentos de trabalho. Com os recursos tecnológicos de hoje o processo de produção mudou muito, mas o fundamental continua sendo a criatividade”, comentou Zalla na abertura da exposição. A exposição Quadrinhos´51 também apresenta aos visitantes publicações raras de grande valor histórico como O Pato Donald, n°1; Pererê, n°1, de Ziraldo; exemplares de O Tico-Tico, um deles de 1908; O Globo Juvenil, de 1949; Raimundo, o Cangaceiro, números 1 e 2, de José Lanzellotti; Edição Maravilhosa e Epopéia, da Ebal, Zas Traz número 1, revista editada por Jayme Cortez que publicou as primeiras histórias em quadrinhos do Mauricio de Sousa, e muitos outras raridades. Do acervo de Álvaro de Moya o visitante verá também preciosidades como a revista Mad n° 11, de 1954; El Corazón Delator, adaptação de Alberto Breccia em formato gigante da obra de Edgar Allan Poe impressa em serigrafia e revistas número 1 da Turma da Mônica editadas na Europa. A mostra ficará aberta até o dia 26 de maio no MuBA com expectativa de atrair grande público, segundo o curador do museu, William Keri. “Por ser um museu vinculado ao Centro Universitário Belas-Artes de São Paulo valorizamos as áreas de Comunicação e Cultura, Arquitetura, Arte e Design. Uma exposição de quadrinhos é muito bemvinda justamente por envolver uma série de linguagens, do gráfico ao cinematográfico, que tem tudo a ver com o nosso foco e para nossos 5 mil alunos essa inter-relação é muito importante”, comenta ele. Durante os dois meses de exposição serão realizadas oito mesas de debates, todos os sábados às 14 horas, com a presença de profissionais como os jornalistas Jotabê Medeiros, Álvaro de Moya, Gonçalo Júnior, Celso Sabadin e Gilberto Maringoni; dos desenhistas Primaggio Mantovi e Rodolfo Zalla; do autor de tv Walter Negrão e dos especialistas em quadrinhos Sidney Gusman e Maurício Kus. Mais informações podem ser obtidas no site quadrinhos51.wordpress.com. JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
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HOMENAGEM
Bastos Tigre, uma fera de múltiplos talentos Em todas as atividades em que se lançou, Manuel Bastos Tigre fez história. Impossível falar de jornalismo, publicidade, poesia, música popular e biblioteconomia sem prestar as devidas homenagens a este ilustre pernambucano, nascido há 130 anos. P OR P AULO C HICO
Há homens que entram para a História por seu talento. Outros, por terem levado a vida à frente de seu tempo. Bastos Tigre conseguiu um feito, pois atendeu plenamente a estes dois requisitos. Foi um precursor dos artistas multimídias e multifacetados no Brasil, em razão da riqueza e profundidade com as quais exercia todos os seus ofícios e trabalhos culturais. Nascido em Recife/PE no dia 12 de março de 1882, portanto há 130 anos, foi jornalista, escritor, poeta, compositor, publicitário, bibliotecário e engenheiro. Faleceu em 2 de agosto de 1957, no Rio de Janeiro. Manuel Bastos Tigre freqüentou, aos cinco anos de idade, a Aula Pública Mista da Rua Santo Elias, na capital pernambucana. Logo em seguida ingressou no Colégio Diocesano de Olinda. Revelou desde cedo seu talento literário na composição de belas odes cívicas e sonetos, onde mestres e colegas eram satirizados, deixando desde cedo evidente seu talento para o humor. No Seminário local revelou seu lado jornalista. Fundou em 1896 o jornal humorístico O Vigia, onde fazia ácidas críticas a colegas e professores. Os exemplares eram quase sempre confiscados a cada nova edição. Mas ele não desanimava. Sociólogo e pesquisador cultural, Fábio Siqueira é um verdadeiro apaixonado pela rica obra do jornalista de múltiplos talentos. “Desde muito jovem, tenho a ventura de freqüentar a excelente Biblioteca Bastos Tigre da ABI, que sempre muito me ajudou nas pesquisas culturais que realizo. Também tive contato com as obras teatrais e jornalísticas dele, e desde logo tive interesse em conhecer mais e melhor a sua fantástica trajetória”, conta ele, que se tornou um dos principais especialistas do autor no País. Foi basicamente a partir de sua vinda para o Rio de Janeiro – o que ocorreu em 1899, ano em que embarca num navio para a então capital federal – que Bastos Tigre diversificaria seus talentos. Após matricular-se como ouvinte no curso geral da Escola Politécnica, forma-se engenheiro civil, em 1906, pela Escola Nacional de Engenharia, também no Rio. Mais tarde especializa-se em eletricidade nos Estados Unidos, onde permaneceu por cerca de três anos, diplomando-se pela Bliss School, de Washington. De volta ao Brasil, trabalhou como engenheiro do 36
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Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil. Da sua vida universitária e de uma época trepidante do Rio de Janeiro, tudo revelou, através de seus poemas satíricos, com extraordinário humorismo. Em meio à trajetória acadêmica, iniciou a vida de jornalista em 1902, quando colaborou na revista humorística Tagarela. Prestou depois seus serviços nos principais órgãos da imprensa do Rio, como A Noite, Gazeta de Notícias, A Rua, Careta e O Malho. No Correio da Manhã manteve durante mais de cinco décadas Pingos e Respingos, seção em que comentava, sempre com humor, os fatos mais pitorescos do Rio, do País e até do mundo. “Como jornalista, sua contribuição é muito vasta, pois trabalhou em praticamente todos os jornais do Rio de sua época. Foi fundador da revista D. Quixote em 1917” conta Fábio Siqueira. Na avaliação do pesquisador, o processo inicial de formação de Bastos Tigre,
Na revista D.Quixote de 9 de janeiro de 1918, uma homenagem aos “obreiros da imprensa”.
teatrólogo e editor de revistas, pois nas peças do teatro de revista o elemento da música tinha grande importância. Sua vida literária foi inaugurada com a publicação do livro Saguão da Posteridade, em 1902, tendo a capa desenhada por um amigo, o ilustre caricaturista e também teatrólogo Raul Pederneiras. Por tudo isso, observa-se uma tênue mas firme linha que une todas as atividades, desenvolvidas com brilhantismo. Ocupou o cargo de inspetor federal do ensino secundário – de início como publicitário. Foi uma espécie de mestre nesse ramo e fez escola nessa moderna arma de negócios. Criou vários slogans que ainda hoje são usados e ficarão para sempre na lembrança dos brasileiros. É de Bastos Tigre o famoso slogan da Bayer, que correu todo o mundo, garantindo a qualidade dos produtos da empresa: “Se é Bayer é bom”, pregava. Foi ele ainda quem fez a letra para Ary Barroso musicar e Orlando Silva cantar, em 1934, o Chopp em Garrafa, inspirado no produto que a Brahma passara a engarrafar naquele ano. Para o Restaurante Roma bolou um slogan – ‘quem tem boca vai a Roma’ – ainda hoje presente no falar do povo brasileiro. Teatro, música e livros, outras atividades
ainda em Pernambuco, foi o pontapé que ajuda a explicar a personalidade do profissional em que se transformaria. “Em minha ótica, sua pluralidade é fruto de uma junção de fatores, como a sólida formação que teve no Colégio do Seminário de Olinda, cidade que já contava com uma Faculdade de Direito, a primeira do Nordeste, no final do século XIX, somada à vivência no Rio de Janeiro, onde se formou engenheiro na Escola Politécnica e local onde tomou contato e travou amizade com intelectuais e personalidades culturais de então, de variadas gerações. Aliás, o traço de excepcionalidade de Bastos Tigre e de colegas de sua época, como Luiz Peixoto, Oduvaldo Viana, Viriato Correia, Bricio de Abreu, Procópio Ferreira e Jaime Costa, dentre muitos outros, talvez seja o grande legado dessa ‘geração de sábios’ para a cultura e a arte do Brasil”, aponta o especialista. Na vasta obra de Manuel Bastos Tigre, suas áreas de atuação se comunicam com intensa constância. A vida musical de compositor se interliga com a rotina de
Suas atividades como escritor fizeram-no conquistar o 1º Prêmio de Poesias da Academia Brasileira de Letras, com a obra Meu Bebê. Deixou, como poeta, uma bela obra educativa, dedicada à infância. Sob o pseudônimo de “D. Xiquote” publicou livros de versos carregados de humor, como Saguão da Posteridade, Poesias Humorísticas, Versos Perversos e Moinhos de Vento. No teatro estreou em 1906, com a peça Maxixe, de sua autoria e Batista Coelho. Escreveu outras peças, como Grão-de-Bico (1915), De Pernas Pro Ar (com Cândido Castro, 1916), Viva o Amor (com Eduardo Vitorino, 1924) e Ziguezague (1926). Outra faceta de destaque de Bastos foi a de compositor de música popular. No Carnaval de 1906, fez sucesso com o tango-chula Vem Cá Mulata, parceria com Arquimedes de Oliveira, gravado pela atriz Maria Lino. Em 1907, obteve mais um sucesso com o tango O Vatapá, feito em parceria com Paulino Sacramento e João Foca. Com Eduardo Souto, assinou a letra de Saudade. Com o mesmo parceiro fez Amizade Amorosa, gravada por Del Nigri. Em 1915, escreveu a revista Grão de Bico. No mesmo ano, escreveu outra revista, Rapadura, em parceria com Rêgo Barros. Em 1926, compôs em parceria com Sinhô o samba Cassino Maxixe, lançado no espetáculo de comédia Sorte Grande, que inaugurou o Teatro Cassino. O profissional de múltiplos talentos ainda teve ativa atuação política. Foi líder estudantil e se engajou de corpo e alma em campanhas políticas e outras manifestações públicas, como a defesa da obrigatoriedade do ensino a toda a população. Sempre teve militância progressista. Por isso mesmo, ao longo de sua vida, foi reconhecido pelos seus pares, leitores e admiradores em geral. Ganhou respeitabilidade da crítica cultural especializa-
LIVROS
da. “Infelizmente, hoje seu nome está um pouco esquecido e isso é uma grande injustiça”, conclui Fábio Siqueira. Em vida, no entanto, Bastos Tigre colecionava elogios de seus contemporâneos. “Ele representa o humor e a ironia na geração intelectual mais brilhante do Brasil”, chegou a declarar o jornalista Herbert Moses, que ocupou a presidência da ABI de 1931 a 1964. “Era um belo espírito, sempre entusiasmado, perenemente jovem, irradiando simpatia, animando com sua presença e estímulo todas as conquistas das boas letras”, pregava Anibal Freire, outro dono de talentos múltiplos – foi advogado, jornalista, magistrado, professor, político e membro da ABL. “Foi o maior poeta de sua geração. Lastimo que não tenha sido nosso companheiro na Academia”, concordava o também imortal Múcio Leão. Bastos Tigre participou de forma decisiva, em 1917, da criação da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais-SBAT, órgão responsável por gerenciar o pagamento dos direitos autorais de obras teatrais aos seus respectivos criadores. A organização foi criada a partir de uma proposta da compositora Chiquinha Gonzaga e contou com o apoio de diversos jornalistas e dramaturgos da época. Nessa fase da vida passou a dedicar-se inteiramente aos livros, não mais abandonando as estantes das bibliotecas. Inscreveu-se no primeiro concurso realizado no Brasil para o cargo de bibliotecário, conquistando o primeiro lugar. Teve oportunidade de demonstrar os autênticos conhecimentos da técnica da Biblioteconomia quando da apresentação da tese sobre a aplicação do Sistema de Classificação Decimal, na organização lógica dos conhecimentos em trabalhos de Bibliografia e Biblioteconomia. Serviu no Museu Nacional, depois na Biblioteca da ABI e, finalmente, na Biblioteca Central da Universidade do Brasil, onde exerceu o cargo de Diretor. Trabalhou nessa função por mais de 20 anos quando a morte interrompeu a sua magistral carreira. Decano dos bibliotecários, foi agraciado com uma das maiores distinções da classe, sendo-lhe conferido o Prêmio Paula Brito e a Resolução número 5, de 11 de março de 1958, do Poder Legislativo do Distrito Federal, que instituiu o Dia do Bibliotecário, que passou a ser comemorado em 12 de março, data de seu nascimento. “Como bibliotecário, Bastos Tigre ajudou de forma inestimável o desenvolvimento dessa profissão, inclusive com a fundação de cursos especializados tempos depois. Considerava a Biblioteconomia ‘um estudo hermético para os raros curiosos. Para o público, o bibliotecário era um almoxarife de livros”, explica Fábio Siqueira, que, num exercício imaginativo, arrisca supor como este brasileiro se posicionaria profissionalmente nos dias de hoje. “Com certeza, Bastos Tigre estaria completamente adaptado às novas mídias. Mas, creio eu, continuando a escrever em jornais, paixão que ele cultivou a vida toda, e escrevendo peças teatrais, especialmente cômicas. Figuras como ele fazem muita falta no cenário artístico brasileiro atual.”
O inferno de Zahra Uma novela gráfica clama pelos direitos humanos. P OR C ESAR S ILVA
Muito do que acontece no Irã se torna notícia rapidamente. Principalmente quando envolvem os Estados Unidos e a União Européia, as sanções econômicas e sua contrapartida, manifestada nas ameaças do Presidente Mahmoud Ahmadinejad a vários países do Ocidente e a Israel. Mas nem tudo é reportado. E parte do que chega aos noticiários nem sempre é imparcial. Assim, muitas denúncias surgem através das formas mais inesperadas. É o caso do livro O Paraíso de Zahra, uma novela gráfica assinada por Amir (roteiro) e Khalil (desenhos), artistas norte-americanos de ascendência árabe cujos nomes verdadeiros são mantidos em segredo por motivos óbvios. Inicialmente a obra foi publicada na internet, traduzida para doze idiomas e lida por milhões de pessoas ao redor do mundo. Agora ela está disponível no Brasil, em versão impressa, com 272 páginas, lançada pela Editora Leya/Barba Negra. O Paraíso de Zahra conta a história de Zahra Alavi, uma mãe à procura do filho Mehdi, desaparecido durante as manifes-
tações populares que se seguiram às eleições iranianas realizadas em 2009, que elegeram Ahmadinejad, candidato da situação de um país dominado por uma teocracia e assolado pela repressão. Mir Houssein Mousavi, o candidato derrotado, acusou a eleição de ter sido fraudada, o que detonou uma enorme convulsão popular, reprimida com extrema violência pelo Governo do aiatolá Khamenei, que prendeu e fez desaparecer enorme quantidade de manifestantes, a maioria jovens estudantes, além de diversos líderes da oposição iraniana. O relato é contado pela ótica de seu outro filho, Hassan, que através de um blog narra a peregrinação de sua mãe por hospitais, prisões e cemitérios de Teerã, bem como suas próprias experiências na busca por informações que levem ao irmão desaparecido. A narrativa se desenrola entre 16 de junho e 19 de agosto de 2009, em capítulos independentes que vão revelando aos poucos a cruel realidade de um país dominado pela corrupção de um governo de exceção, onde uma democracia de fachada e o patrulhamento religi-
oso servem, de fato, para manter o status quo de quem detém o poder. A história de Zahra Alavi é uma ficção, mas os fatos que a cercam não, e um deles vazou para o mundo: a morte de Neda Agha Soltan, assassinada pela milícia Basij do Governo iraniano durante as manifestações de 2009. Um vídeo que está disponível no Youtube (goo.gl/tf5LV) mostra a jovem sangrando até a morte nos braços do Dr. Arash Hejavi, por acaso editor dos livros de Paulo Coelho no Irã. Ao saber do ocorrido, Coelho divulgou a gravação que, alimentado pelo prestígio do autor, se espalhou ampla e rapidamente pela internet, criando um enorme embaraço para o Governo iraniano. Embora seja um autor de sucesso entre os iranianos, os livros de Coelho foram proibidos no Irã, e a editora que os publicava, fechada. Neda tornou-se símbolo da revolta do povo contra o Governo iraniano e é assim citada em O Paraíso da Zahra. Os dois dramas, o real de Neda e o ficcional de Zahra não são exclusivos desse infeliz estado de coisas. Em muitos lugares no mundo, inclusive no Brasil, pessoas sofreram e ainda sofrem conseqüências das ações de governos autoritários e do abuso do poder. Os argumentos e as ideologias são muitos e variados, mas os resultados são sempre os mesmos: jovens mortos e mães de luto. Ainda há milhares de desaparecidos, cujas famílias esperam aflitas que lhes sejam entregues os corpos de seus filhos, apenas para serem sepultados dignamente. Além do explosivo conteúdo político, O Paraíso de Zahra é uma maravilhosa peça de arte. As ilustrações de Khalil são elegantes e mostram em detalhes as ruas de Teerã e o modo de vida de seu povo, em muitos aspectos, incrivelmente familiar aos brasileiros. O livro traz apêndices valiosos, entre os quais um glossário de termos e nomes árabes, muito útil para entender os conceitos políticos, históricos e culturais citados na história, um posfácio sobre as origens da obra, um relato sobre as eleições presidenciais iranianas em 2009, artigos sobre a história de Neda e sobre a prisão de Kahrizak, e o Omid (“Esperança”, em persa), uma relação de treze páginas, com texto corrido em corpo cinco, com nomes de milhares de vítimas do Governo iraniano. O título do livro é propositalmente ambíguo. O Paraíso de Zahra pode ser interpretado como o sonho de redenção de Zahra Alavi, mas é também o nome de um cemitério sagrado em Teerã; muitos acreditam que quem for enterrado lá certamente subirá ao paraíso. Zahra também é o primeiro nome da esposa de Mir Houssein Mousavi, uma das líderes do movimento reformista iraniano. Não deve ser por acaso. A história ainda dialoga muito intimamente com o clássico moderno Persépolis (2007, Companhia das Letras), novela gráfica da cartunista iraniana Marjane Satrapi, que conta outro drama político vivido no Irã. Graficamente, o livro é elegante, muito bem impresso em papel branco encorpado, com capas em cartão com laminação fosca, relevo seco e detalhes em dourado. Mas nada disso diminui o mal-estar de se saber que tudo aquilo está acontecendo agora mesmo e não há nada que possamos fazer, a não ser lembrar, que é a única coisa que Amir e Khalil esperam de nós.
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DOCUMENTAÇÃO
GUSTAVO SCATENA/IMAGEM PAULISTA
POR SÉRGIO LUCCAS
O desejo do apaixonado colecionador de livros raros José Mindlin está se concretizando. Ele dizia que contraiu o “vírus” do amor à leitura e ao livro aos 13 anos e, desde então, procurou inoculá-lo no maior número de pessoas, especialmente crianças e jovens. Esse amor incondicional e a necessidade de compartilhá-lo materializaram-se ao longo de mais de oitenta anos na maior e mais importante coleção brasiliana formada por um particular no Brasil. Agora, uma parte desse acervo pode ser disseminado por todo o planeta graças à digitalização dos títulos de domínio público que já estão disponíveis na internet, a partir do site Brasiliana Usp (brasiliana.usp.br). A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin nasceu da decisão da família Mindlin de tornar pública sua biblioteca doando a parte brasiliana do seu acervo à Universidade em maio de 2006. São 38
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17 mil títulos nacionais e estrangeiros e mais de 40 mil volumes, que contemplam parte significativa das obras de literatura brasileira e portuguesa, relatos de viajantes, manuscritos históricos e literários (originais e provas tipográficas), periódicos, livros científicos e didáticos, iconografia (estampas e álbuns ilustrados) e livros de artistas (gravuras). Em janeiro de 2005, a Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Usp criou um órgão para abrigar e integrar esse acervo e seus livros e manuscritos raros, como uma primeira edição de Hans Staden, datada do século XVI; originais datilografados de Vidas Secas e Grande Sertão: Veredas, com anotações do próprio Graciliano Ramos; as primeiras edições da obra completa de Machado de Assis, José de Alencar, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e Augusto dos Anjos, entre outras preciosidades.
“O Projeto Brasiliana Usp tem uma concepção ampla, prevendo não só a construção de um edifício moderno de 14 mil metros quadrados para abrigar os acervos da Brasiliana Mindlin, da coleção do bibliófilo Rubens Borba de Moraes – guardada por Guita e José Mindlin desde a sua morte – e do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB); mas também um grande laboratório de digitalização unificado das coleções e disponibilização para as pessoas, criando condições de acesso total a elas pela internet”, explica o professor de História do Brasil Colonial da Usp, Pedro Luiz Puntoni, Coordenador-Geral do Projeto e Diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
DIGITALIZAÇÃO DE ACERVOS MEMORIAIS
Considerado um projeto estratégico pelo Ministério da Cultura, por cooperar
para o estabelecimento de uma política pública de digitalização de acervos memoriais no Brasil, o Brasiliana Usp recebeu inicialmente doação de R$ 4 milhões da Fundação Lampadia, de Lichtenstein, que apóia projetos de divulgação científica em todo o mundo, e R$ 2 milhões da Petrobrás, via Lei Rouanet. Enquanto a obra da sede da biblioteca no campus da Usp era iniciada no final de 2006, a Comissão de Implantação do Projeto dedicava-se ao desenvolvimento da Brasiliana Digital, uma biblioteca digital que atendesse aos princípios de preservação de acervo da Brasiliana da Usp, de democratização do acesso e de suporte à investigação. Esse projeto foi aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo-Fapesp, em outubro de 2008, e a fase piloto de implantação começou em 2009, em parceria com o Knoma - Laboratório de Engenharia de Conhecimento do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. O Laboratório da Brasiliana Digital (LBD) ganhou sede provisória junto ao canteiro da obra do edifício da Brasiliana Usp, onde foi instalada toda a estrutura de hardware e de rede necessária para que uma equipe de mais de quarenta profissionais – entre professores, pesquisadores e estagiários – pudesse iniciar os trabalhos de pesquisa e digitalização do acervo. “O robô Maria Bonita adquirido para digitalizar as obras foi para a casa do Dr. Mindlin, no bairro do Brooklin. Depois de digitalizadas, as imagens eram enviadas pela internet para nossa sede. Aqui elas eram tratadas, processadas e os arquivos preparados para posterior disponibilização online no nosso site”, conta Puntoni. Paralelamente ao processo de digitalização do acervo, a equipe do Projeto Brasiliana Usp estudou diversos modelos de bibliotecas digitais existentes no mundo para elaborar e executar um projeto próprio que facilitasse o acesso e a navegação dos internautas. “Chegamos a um software – a Plataforma Corisco –, resultado do cruzamento de vários softwares livres, como o DSpace, criado pelas bibliotecas do Massachusetts Institute of Technology – MIT. Acoplamos outros recursos a ele, fizemos mudanças no design e o personalizamos de modo a facilitar a vida dos usuários. A navegação é bem simples e toda a busca fica concentrada numa página, depois abrem-se outras”, ressalta Puntoni.
DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À CULTURA
A Brasiliana Digital está acessível na internet desde junho de 2009. Começou com 300 títulos disponíveis, hoje são mais de 3 mil, entre livros clássicos, periódicos, dicionários, relatos de viagens e imagens, apresentados por especialistas e ao alcance de estudantes, professores, pesquisadores e público em geral. Todos os dias são colocados, em média, quatro
novos livros no site. A meta é inserir 400 por mês, incluindo também as obras do acervo da Biblioteca de Obras Raras e Especiais da Usp/Bore-Usp e das bibliotecas de suas faculdades. Segundo o diretor da Biblioteca, o site da Brasiliana Digital recebe em média 2 mil visitantes únicos por dia. Esses acessos caem um pouco nos períodos de férias e finais de semana. A maioria é de internautas do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo, mas há muitos visitantes também de Portugal e dos Estados Unidos. As obras mais procuradas são de literatura brasileira com destaque para as coleções de Machado de Assis, Vinícius de Moraes e as Cartas e Sermões do Padre Antonio Vieira. “Pelas consultas que temos por e-mail e pelo Twitter percebemos que os usuários mais freqüentes são estudantes que estão fazendo teses de mestrado ou doutorado e universitários em geral, mas acredito que esse universo seja bem maior e crescerá com mais divulgação na mídia”, comenta Puntoni, lembrando que uma reportagem exibida no Jornal Nacional, em 2009, gerou uma demanda de 15 mil usuários por dia. Para aumentar a oferta de títulos na biblioteca digital já estão em operação cinco novas máquinas de digitalização que farão companhia à Maria Bonita, a primeira robozinha utilizada na digitalização do acervo. São duas máquinas Kirtas Skyview, que permitem a digitalização de grandes formatos, e três Kirtas Kabis III, que são parecidas com a Maria Bonita e vieram para aumentar o ritmo da digitalização de livros da Usp. Mas ainda é necessário aumentar o quadro de pessoal, principalmente de bibliotecários, para catalogar as obras digitalizadas.
UMA LEI CONTRA A PRESERVAÇÃO
Um fator limitante à expansão da oferta de novos títulos no site é a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos do autor no Brasil. A lei brasileira permite apenas a digitalização e reprodução das obras que já se encontrarem em domínio público, 70 anos após a morte do autor. Pesquisadores querem alterações na legislação lembrando que o papel no qual o livro é impresso tem vida útil de 50 anos, ou até menos sem o devido cuidado. Assim, os originais quando autorizados pelo prazo legal não existirão
Já estão disponíveis na internet publicações raríssimas, como a revista de antropofagia, página dominical publicada no Diário de S.Paulo sob orientação de Oswald de Andrade (acima a “segunda dentição” de 7 de abril de 1929). Abaixo, publicações com textos de Monteiro Lobato e Olavo Bilac.
mais implicando uma perda irreparável ao patrimônio cultural brasileiro. É o caso das primeiras edições dos modernistas, como a de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. No começo do século passado, o papel dos livros era branqueado com uma argila, o caulim. “Provavelmente, usaram muito caulim, e o papel ficou quebradiço. “Certamente, vão desaparecer com o tempo”, diz Puntoni. “Respeitamos a lei e não colocamos online livros e periódicos que não estejam em domínio público. Mas aguardamos que o Ministério da Cultura consiga futuramente mudanças na lei, que estabeleçam limites ao direito de autor em relação às bibliotecas, arquivos e centros de documentação. Na Inglaterra, por exemplo, desde 1956, bibliotecas e arquivos têm possibilidades de fazer cópias de seu acervo para fins de preservação e pesquisa. No Brasil isso não existe”, critica o professor. Dos 184 países membros do Organização Mundial da Propriedade Intelectual somente 21 não têm em suas leis limites ao direito autoral para atender bibliotecas e centros de documentação. O Brasil faz parte dessa minoria, ao lado de Haiti, Burundi, Líbia e outros. “Uma coisa é publicar a obra de um autor, colocá-la na internet; outra é digitalizá-la para evitar o manuseio e preservá-la. Se o pesquisador vem aqui e quer consultar um original, mas a obra é frágil, nós o orientamos a ver o original digitalizado na tela dos nossos computadores, fazer suas anotações, mas sem tirar cópia.” O diretor da Biblioteca Brasiliana Usp diz ainda que todos os livros e documentos digitalizados e disponibilizados no site são de domínio público, ou seja, as pessoas podem consultar, descarregar, imprimir e copiar. Há apenas uma exceção: o acervo completo dos poemas de Vinicius de Moraes, ainda sob proteção da Lei de Direitos Autorais, mas que teve a publicação digital autorizada pela VM Empreendimentos Artísticos e Culturais, detentora dos direitos autorais do poeta. A coleção em versão digital reúne 15 livros, dentre os quais Caminho para a Distância (1933) e a primeira edição de Orfeu da Conceição: Tragédia Carioca (1956). “O Dr. Mindlin tinha todas as primeiras edições dos livros de poesia de Vinicius inclusive com dedicatórias a ele. A família já havia autorizado, tanto
que há um site sobre ele na rede mundial, com acesso livre a toda sua obra. Os herdeiros tiveram uma visão moderna em relação ao digital e nem por isso deixaram de vender os livros. Uma postura muito fechada dos detentores de direitos autorais apenas vai culminar com o esquecimento do autor e da sua obra, já a divulgação em várias formas de mídia só amplia o interesse dos leitores”, defende Pedro Puntoni.
BRASILIANA DE CASA NOVA
O Projeto Brasiliana Usp está prestes a concluir uma de suas principais etapas: a inauguração da sede da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da Usp, na Cidade Universitária, prevista para setembro deste ano. Para conclusão da obra e suas instalações a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo-FUsp recebeu R$ 17,2 milhões do BNDES. Os recursos estão sendo aplicados na preparação do acervo e na aquisição de equipamentos para a finalização de obras civis no interior do edifício que abrigará a coleção. “O que estamos fazendo agora na casa da família Mindlin é a identificação e catalogação, etiquetagem de radiofreqüência em cada livro, organizando tudo para o transporte do acervo para a nova sede a partir de junho” informa Puntoni. A promessa é que a Biblioteca Mindlin irá introduzir um novo formato de acesso às obras, oferecendo ao público equipamentos de última geração para consulta e pesquisa, como iPads, com o objetivo de possibilitar o acesso ao maior conteúdo digital possível. Além da torre de livros – três andares revestidos de vidro –, o complexo de 14 mil metros quadrados terá ainda auditório multimídia, espaço de exposições e um café. O novo edifício será também a nova sede das operações do Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da Usp. Lá estarão instalados ainda o Centro Guita Mindlin, especializado na conservação e restauro do papel e do livro; o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros, e a Biblioteca de Obras Raras e Especiais da Usp. Após a inauguração e com os novos laboratórios instalados, a Usp pretende implantar um curso de extensão universitária em digitalização, além de cursos de formação nas novas tecnologias da informação e na implantação de bibliotecas digitais. JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
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LIVROS REPRODUÇÃO
Uma aula literária sobre Allan Poe O Corvo e Suas Traduções analisa a obra mais importante do escritor norte-americano a partir de suas principais traduções. P OR C ESAR S ILVA
A poesia é um grande mistério e, a princípio, parece fácil versejar. Afinal, os poetas o fazem com tanta naturalidade que parece ser um dom genético ou uma inspiração vinda diretamente dos deuses. Às vezes essa inspiração realmente emerge de um estado de consciência alterada por alguma patologia psicológica, pelo uso de drogas ou por um delírio criativo que nem o próprio autor sabe explicar. Contudo, também pode ser fruto de planejamento, apoiado em uma exaustiva atividade intelectual. A crítica tende a desvalorizar o trabalho artístico obtido a partir de métodos científicos. Por isso muita gente não gostou quando um dos mais importantes escritores da língua inglesa, o poeta “louco” Edgar Allan Poe (1809-1849) explicou, no ensaio A Filosofia da Composição (1846), o passo-a-passo que cumpriu para chegar ao resultado absolutamente incomparável de seu poema mais famoso, O Corvo (The Raven), escrito em 1845. Parece mesmo existir um anticlímax ao olhar o poema a partir de seus bastidores, uma vez que o efeito, quando visto sob os holofotes da ribalta, se apresenta como algo certamente vindo de uma alma torturada. O clima tenebroso, reforçado por rimas guturais e aliterações angustiantes não parece ser resultado de um cálculo matemático. Ou não deveria ser, para o bem de todas as nossas certezas. São essas algumas das preocupações que o poeta e tradutor mineiro Ivo Barroso explora como organizador da antologia O Corvo e Suas Traduções. Originalmente publicado em 1998, pela Editora Lacerda, o volume retornou em 2011 pela Editora Leya, em sua terceira edição. Além do poema original em inglês, o livro reúne nada menos que 11 traduções, três para o francês, de Charles Baudelaire (1853), Stéphane Mallarmé (1888) e Didier Lamaison (1998), seguidas das mais importantes versões para a língua portuguesa: Machado de Assis (1883), Emílio de Menezes (1917), Fernando Pessoa (1924), Gondin da Fonseca (1928), Milton Amado (1943), Benedicto Lopes (1956), Alexei Bueno (1980) e Jorge Wanderley (1997). É curioso notar como um mesmo texto original pode ter traduções tão diferentes entre si. A obra inclui ainda um artigo biográfico sobre Poe e o já citado ensaio, uma 40
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aula de criação literária, mas que deixa as questões técnicas da poesia ao gosto do leitor. Barroso detalha algumas delas, bem como as diversas tentativas de seus tradutores em transpor para o português todas as filigranas da versão original. Alguns tiveram mais sucesso que outros, mas todas as traduções têm seu valor como verdadeiros documentos de sua época. E, como a cereja no bolo, uma apresentação assinada por Carlos Heitor Cony, de todo simpática à obra do autor americano. O volume tem 153 páginas e ótima legibilidade, com diagramação perfeita em fonte Berkeley impressa em papel pólen de aspecto muito confortável, de tal forma que as explicações de Poe sobre a construção “matemática” do poema parecem fazer todo o sentido, mesmo que sua vida conturbada reforce a idéia de um talento alienado e irracional. Tido como ébrio de alma torturada que morreu praticamente na indigência, parece lícito vê-lo como um louco em contínuo estado de desespero. Sua ficção perturbadora supõe confirmar os aspectos sombrios de sua vida, mas visto na perspectiva facilitada pela leitura de O Corvo e Suas Traduções, revela uma inteligência sagaz, racional e criativa. Um autor adiante de seu tempo
Edgar Allan Poe foi um dos mais influentes escritores do século XIX, considerado um dos precursores da legítima literatura norte-americana. Foi pioneiro naquilo que hoje chamamos de literatura de gênero, à qual deu ares de profunda dignidade artística. Em 2009, o mundo comemorou os 200 anos de seu nascimento, e sua obra ainda é fonte de referência na literatura, cinema, teatro e muitas outras artes. Poe nasceu em 19 de janeiro de 1809, em Boston, Massachusets (EUA). Filho de atores itinerantes, desde a infância não teve muita sorte. Abandonado pelo pai e perdendo a mãe aos quatro anos de idade, foi criado por seu tio John Allan, um rico mercador de tabaco que lhe emprestou o sobrenome, mas que nunca o adotou e com quem teve muitos desentendimentos, sendo afinal deserdado. Começou a escrever poesias aos 13 nos, ao mesmo tempo em que se envolvia numa vida boêmia e dissoluta que o impediu de concluir os estudos, sendo ex-
pulso tanto da Universidade de Virgínia como da Academia Militar de West Point. Aos 16 anos, publicou seu primeiro livro, a coletânea poética Tamerlane and Other Poems. Em 1833 ganhou um concurso com Manuscrito Encontrado Numa Garrafa (Manuscript Found in a Bottle), um de seus contos mais famosos. Em 1835, Poe foi vice-diretor da revista Southern Literary Messenger, na qual publicou os contos Berenice e Morella. Foi redator da Burton´s Gentleman’s Magazine na qual publicou A Queda da Casa de Usher (The Fall of the House of Usher) em 1837. Em 1840, teve sua primeira coletânea de contos publicada, Tales of the Grotresque and Arabesque. No ano seguinte, como redator da revista Grahan’s Magazine, inaugurou o gênero policial ao publicar o clássico Os Crimes da Rua Morgue (The Murders in the Rue Morgue). Este aparente sucesso profissional não se refletia em sua realidade pessoal. Poe casara-se em 1836 com sua prima Virgínia, de 14 anos. A vida do casal era difícil e Virgínia sofria de tuberculose. Ainda assim, Poe escreveu, nesse período, algumas de suas melhores histórias, como O Retrato Oval (The Oval Portrait), O Poço e o Pêndulo (The Pit and the Pendulum) e O Gato Preto (The Black Cat), consagrando-se em 1845 com o poema O Corvo, publicado pela primeira vez no jornal Evenning Mirror. Em 1846, Poe mudou-se para uma casa no Bronx, a Poe Cottage, hoje um ponto turístico aberto ao público, onde Virgínia morreu no ano seguinte. Deprimido, Poe entregou-se definitivamente ao alcoolismo. Depois de uma breve estada em Nova York, com a saúde debilitada, foi enfim encontra-
do inconsciente nas ruas de Baltimore. Faleceu no Washington College Hospital em 7 de outubro de 1849, após vários dias em delírio pelo excesso de drogas e bebida. A obra de Poe foi recuperada pelas traduções do poeta Charles Baldelaire, publicadas na França a partir de 1852. Somente com a insistência de alguns ensaístas europeus é que seu valor foi finalmente revelado e aceito por seus conterrâneos. Suas histórias estão entre as mais adaptadas para o cinema e praticamente todas ganharam versões filmadas. O Corvo tem pelo menos duas: as de Lew Landers (1935) e Roger Corman (1963). Uma nova versão está prestes a estrear, dirigida por James McTeigue com John Cusack no papel de Poe. Também há muitas versões para filmes em episódios, séries de televisão e desenhos animados, sem esquecer das centenas de adaptações para as histórias em quadrinhos. Poe tem sido sistematicamente estudado nas universidades, de forma que nem seria preciso exemplificar os sinais de sua maestria como contador de histórias e estilista das letras. Há quem o critique pela recorrência do discurso em primeira pessoa, das histórias sombrias e depressivas, porém temos que reconhecer que são muito bem construídas, repletas de idéias tantas que continuam a ressoar até os dias de hoje. Não são raros os escritores, das mais variadas vertentes e estilos, que reputam a Poe a inspiração para sua decisão de abraçar a arte. A literatura de Poe mantém-se atualizada e continua a dialogar com vários gêneros modernos nas mais diversas artes. Um feito notável para um poeta infeliz que morreu na miséria e foi sepultado como indigente.
VIDAS
Jean Giraud, o artista que sonha O adeus a um dos mais influentes artistas do século 20. P OR C ESAR S ILVA
A Nona Arte perdeu em 10 de março um de seus maiores nomes. Depois de uma longa batalha contra o câncer, morreu aos 73 anos o genial quadrinista francês Jean Henri Gaston Giraud, que assinava suas obras simplesmente como Gir ou como Moebius, quando começou a desenhar as histórias fantásticas características dos Humanóides Associados. Ilustrador de uma obra vultosa, que inclui Tenente Blueberry – faroeste de referência no gênero – e a fantasia científica Saga do Incal, Jean Giraud foi um dos mais influentes artistas do traço da segunda metade do século 20. Nascido em 1938 em Nogent-sur-Marne, subúrbio de Paris, Giraud foi criado pelos avós depois que seus pais se divorciaram. Começou a estudar sozinho a arte do desenho e, aos 16 anos, entrou para a École des Arts Apliqués, em Paris. Cumpriu serviço militar na Argélia e estreou profissionalmente nos quadrinhos aos 18 anos, fazendo a série de tiras Frank et Jeremie para a revista Far West. Em 1961 tornou-se aprendiz do cartunista belga Jijé (Jerry Spring). No ano seguinte, Gir iniciou uma frutuosa parceria com o roteirista Jean Michel Charlier na tira de faroeste Fort Navajo, na qual surgiria seu personagem de maior sucesso, Tenente Blueberry (abaixo), que ele ilustraria ao longo de toda a vida. A série principal, formada por 28 álbuns originalmente publicados pela Editora Dargaut, conta a história de um oficial do Exército americano que, depois da Guerra da Secessão, é lotado num forte de fronteira, onde se aproxima do modo de vida dos nativos. Blueberry torna-se um aliado deles e, por isso, vai enfrentar muitas dificuldades em sua relação com os brancos. No Brasil, poucos álbuns da série foram publicados ou até republicados, existindo ainda um amplo lapso de histórias inéditas. Em 1963, Gir criou o pseudônimo Moebius para assinar trabalhos de fantasia e ficção científica na revista Hara-Kiri. Abandonado por alguns anos, Moebius voltaria em 1974 na revista Metal Hurlant, publicada pela Les Humanoïdes Associés, editora criada por ele e outros três grandes quadrinistas: Jean-Pierre Dionnet, Philippe Druillet e Bernard Farkas. As séries A Garagem Hermética e Arzach (acima), publicadas na Metal Hurlant, tornaram o artista uma verdadeira franquia dos quadrinhos. As histórias de enredo caótico e fragmentado, bem como os desenhos exaustivamente detalhados, foram creditados à influência de drogas alucinógenas que Gir teria experimentado em uma viagem ao México, mas o estilo de narrativa e traço influenciou artistas no mundo inteiro. A maior parte das histórias desta fase foi publicada no Brasil nos álbuns da Editora L&PM, O Homem é Bom? (1984) e Major
Fatal (1988), e também na minissérie Os Mundos Fantásticos de Moebius, publicada pela Editora Globo entre 1991 e 1992. A Editora Nemo publicou recentemente dois álbuns luxuosos com algumas das primeiras histórias de Moebius. Em 1981, mais um grande sucesso: com roteiro do escritor chileno Alejandro Jodorowsky, Moebius lançou o álbum O Incal Negro, que seria a gênese de um rico universo de fantasia científica. Em 1988, seu incomparável estilo de desenhar iluminou o universo dos comics americanos na grafic novel Surfista Prateado, da Marvel Comics, com roteiro de Stan Lee. Um dos trabalhos mais recentes do mestre foi um episódio de Halo Grafic Novel, inspirado numa conhecida série de jogos eletrônicos, publicado no Brasil em 2008 pela Panini Comics. Além dos quadrinhos, Moebius esteve diversas vezes envolvido com o cinema. Primeiro, ao trabalhar na pré-produção de um filme que Jodorowsky pretendia fazer para o romance de ficção científica Duna (Dune), de Frank Herbert, que pode ser considerado o mais influente filme de cinema jamais produzido. Algumas das idéias de Moebius para esse projeto seriam finalmente aproveitadas no filme realizado por David Linch em 1984, com produção de Dino De Laurentiis. Moebius esteve na equipe de Alien (1979), de Ridley Scott, e a hq The Long Tomorrow, com roteiro de Dan O’Bannon, foi base visual para o cult movie Blade Runner (1982) do mesmo diretor, baseado em um romance de Philip K. Dick. O longa O Quinto Elemento (The Fifth Element, 1997), de Luc Besson, também usou e abusou das concepções visuais do artista nessa mesma história. Moebius também teve alguma participação nos filmes O Segredo do Abismo (The Abiss, 1989, James Cameron), Tron (1981, Steven Lisberger) e Willow (1988, Ron Howard). Nos desenhos animados, trabalhou intensamente em Heavy Metal: Universo em Fantasia (1981), no episódio “Taarna”, e no fenomenal O Garoto do Espaço (Les Maîtres du Temps, 1982) de Rene Laloux, baseado em um romance de Stephan Wull, entre outros. Giraud foi grande amigo do quadrinista e cineasta japonês Hayao Miyazaki. Tanto que deu à sua filha o nome de Nausicaä, em homenagem à personagem criada por Miyazaki em sua obra-prima Nausicaä no Vale dos Ventos. Apesar de seu talento indiscutível, a maior parte da obra premiada de Giraud, seja como Gir ou como Moebius ,encontrase indisponível no Brasil.
O que está aqui embaixo... No início dos anos 1980, Moebius era o grande nome dos quadrinhos. Suas histórias lisérgicas, de estilo incomum e elegante, influenciaram artistas em todo o mundo. Quando uniu seu talento ao do roteirista, escritor e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky na criação de O Incal Negro, o primeiro volume da saga espacial de John Difool, estava lançada a pedra fundamental de um épico de ficção científica no estilo surrealista dos dois autores: uma sinergia perfeita e potencializada. A história, originalmente formada pelos álbuns O Incal Negro (L’Incal Noir, 1981), O Incal Luminoso (L’Incal Lumieère, 1982), O Que Está Embaixo (Ce Qui Est Em Bas, 1983), O Que Está em Cima (Ce Qui Est Em Haut, 1985), A Quintessência: A Galáxia Que Sonha (Le Cinquième Essence: Galaxie Qui Songue, 1988) e Planeta Difool (La Planète Difool), conta a investigação alucinada do detetive particular John Difool a respeito do Incal, um objeto misterioso que acidentalmente lhe veio parar às mãos e é foco de interesse de dois grupos antagônicos liderados pelo Meta-Barão e o
Tecno-Papa. Difool vive numa violenta megalópole futurista na qual convivem ciborgues, robôs e toda sorte de raças póshumanas e alienígenas. A história tem de tudo um pouco: ação, aventura, humor, erotismo, discussões gnósticas e muito delírio, ao ponto de ser praticamente irresumível, além de ter uma leitura aberta que aceita diversas interpretações. A Devir Livraria, que anteriormente trouxe para o Brasil a saga completa publicada em três volumes e colorizada digitalmente, acaba de lançar a especialíssima edição definitiva Incal Integral, com toda a história reunida em um único e poderoso volume de 308 páginas em papel couchê, encadernação costurada em capa dura e mantendo as cores como foram originalmente idealizadas. O formato é ligeiramente menor que o original. Não foi a intenção, mas Incal Integral é uma linda homenagem a este artista maiúsculo. Moebius também é, neste momento, interesse da jovem Editora Nemo, ligada à Editora Autêntica. Em 2011, a Nemo lançou dois belíssimos álbuns do artista: Arzach e Absoluten Calfeutrail & Outras Histórias, reunindo peças curtas de Moebius, algumas inéditas e outras já publicadas nas edições da L&PM e da Globo. Os volumes mantêm o formato original (24,5 x 32 cm) e têm respectivamente 56 e 96 páginas em papel couchê com cadernos costurados e capas duras. A maior parte das histórias está em preto e branco, mas boa parte de Arzach é colorida. A Nemo promete para breve mais três volumes da coleção: O Homem é Bom?, A Garagem Hermética e As Férias do Major.
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VIDAS
Um dos mais versáteis e cultos intelectuais do País, ele esbanjava talento nos muitos campos a que dedicou sua inteligência e criatividade. P OR P AULO C HICO
M
ais do que uma simples rima, Millôr era sinônimo de Humor. Uma graça nacional que, depois de décadas de serviços prestados como jornalista, escritor, tradutor, cartunista, frasista e cronista, fez de seu último ato um fato capaz de arrancar lágrimas – e não mais risos – do público que tanto o admirava. E acompanhava. Aos 88 anos, Millôr Fernandes morreu de falência múltipla dos órgãos na noite de 27 de março, em seu apartamento em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro. O poder de síntese que aplicava em suas geniais sacadas, que combinavam acidez crítica e ridicularização elegante do senso comum, fez falta à imprensa no momento de despedir-se do Grande Mestre. Não era para menos. Talvez fosse necessário até mais. Logo na manhã de 28 de março os principais sites do País apressaram-se em dar destaque ao falecimento de Millôr, ocorrido no dia anterior, abrindo espaço para a publicação, sempre em tom de homenagem, de sua biografia e produção, além das despedidas emocionadas de colegas e amigos. O mesmo fizeram os jornais impressos no dia seguinte, nas seções de obituários. Com passagens por veículos como O Cruzeiro, O Pasquim, Jornal do Brasil e Veja, o reverenciado humorista participou de
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algumas das principais transformações da imprensa brasileira no século XX, logo tornando-se um dos mais queridos cronistas do País. Millôr nasceu Milton, em 16 de agosto de 1923, no Méier, na Zona Norte do Rio. Como que num sinal de nobreza de berço, sempre grafava o nome do bairro como ‘Meyer’. O nome artístico estranho foi fruto de erro de registro no cartório, a partir da confusa caligrafia que daria origem à certidão. Para completar, sua carteira de identidade trazia 25 de maio de 1924 como data de nascimento – dia em que, na verdade, apenas fora feito o registro do pequeno. Era comum, na época, que os pais registrassem seus filhos com meses ou até anos de atraso. O equívoco no nome de batismo somente foi descoberto pelo próprio na adolescência, aos 17 anos, quando decidiu passar a adotar a nomeação acidental, com a qual se tornaria nacionalmente conhecido. Não só de pequenos equívocos, mas também de grandes tragédias, foi feita a vida de Millôr. Perdeu o pai e a mãe ainda muito cedo, em 1925 e 1934, respectivamente. Ambos os traumas foram decisivos para dar corpo à sua descrença religiosa. Irmão de Hélio Fernandes, jornalista combativo e Diretor da Tribuna da Imprensa, Millôr apresentou um quadro de acidente vascular cerebral em 2011,
permanecendo por diversos meses internado. Passou longo período em coma. Faleceu somente no dia 27 de março, depois da perda de dois sobrinhos próximos, os jornalistas Rodolfo Fernandes e Hélio Fernandes Filho, que durante meses estiveram internados junto a ele na mesma clínica, no mesmo andar. Filhos de Hélio Fernandes, ambos faleceram no ano passado. O primeiro no dia 27 de agosto. O segundo em 28 de outubro. Para Hélio, a perda do irmão é irreparável. “A morte dele vai reacender o debate e a polêmica sobre as palavras ‘genial’ e ‘insubstituível’. Em apenas uma semana perdemos duas grandes figuras, ele e o Chico Anysio, que faleceu no dia 23 de março. O Millôr dominou todos os setores e fez tudo muito bem. Uma vez me perguntaram se eu era muito amigo dele e eu disse: ele é meu irmão, jornalista da minha geração e gênio, como é que eu vou concorrer?”, ponderou.
O INÍCIO DA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Hélio lembrou com saudade do estilo de vida saudável de Millôr, que se orgulhava de ter sido um dos inventores do frescobol. Afeitos à prática esportiva, os irmãos costumavam correr do Arpoador ao Leblon. O Diretor da Tribuna da Imprensa faz um breve resumo da carreira do irmão. “Ele começou a desenhar aos 15, 16 anos, depois parava. E quando voltava, voltava melhor ainda. Fez traduções de Shakespeare, escreveu uma peça para Fernanda Montenegro com título de uma só palavra, É..., trabalhou em O Cruzeiro numa época em que a circulação da revista batia recordes. O Pif Paf foi a ponte dele para a imortalidade. Até hoje todos os cartunistas novos pediam sugestões a ele antes de começar... Ele era o farol de todos. O Millôr é uma parte da História”, conclui. “Eu era menino e lia os cartuns da revista Pif Paf, do Millôr. Ficava encantado com aquilo. Era um humor corrosivo, que foi me formando como cartunista. O Millôr é o maior de todos, inaugurou o humor moderno brasileiro. O desenho dele era intuitivo. E foi um escritor brilhante”, recorda o cartunista Angeli. Paulo Caruso concorda: “O Millôr era o nosso ídolo, era o guru do Méier, como se
ANA BRANCO/AGÊNCIA O GLOBO
O Brasil perde Humor Fernandes
intitulava. Ele foi um cara que marcou muito a História da imprensa no Brasil pelo inconformismo e pela liberdade que tinha de pensar e agir. Tanto na área de artes gráficas quanto nas artes plásticas, passando pela literatura, tradução de textos de teatro e criação como dramaturgo”. Millôr fez roteiros de filmes, programas de televisão, shows e musicais e foi um dos mais produtivos tradutores de teatro do País. Com seus textos e desenhos marcados pela ironia, duplos sentidos e trocadilhos, ajudou a construir uma crônica crítica e bem-humorada da sociedade brasileira e de nosso povo. “Lamento a perda do amigo e de uma das grandes cabeças do País. Ele foi um grande intelectual, livre pensador, é um grande exemplo para o Brasil. Ele soube pensar o País, tinha posições sempre claras, corajosas. Eu acho que, pelo fato de ser rotulado como humorista, talvez muita gente não tenha prestado atenção a esse outro lado dele”, aponta Luis Fernando Veríssimo, que, junto a Millôr e Jô Soares, escreveu Humor nos Tempos de Collor, livro lançado em 1992. Órfão desde cedo, passou a morar na casa de parentes e começou a trabalhar logo aos 15 anos, quando entrou para a revista O Cruzeiro, onde já dava os primeiros sinais de sua paixão gráfica alimentada sobretudo pela leitura dos quadrinhos, gênero que era sua principal paixão. O ano era o de 1938, e logo em seguida o garoto, vencedor de um concurso de crônicas promovido pela revista A Cigarra, foi trabalhar com o editor Frederico Chateaubriand. Num dia em que um anunciante não enviou as quatro páginas de publicidade prometidas, Chateaubriand encarregou o jovem recém-chegado de preencher o espaço em branco: Millôr assinou como Vão Gogo e o sucesso foi tanto que o pseudônimo ganhou espaço permanente na coluna “Poste escrito”. Millôr assume a direção de A Cigarra, cargo que ocuparia por três anos. Embalado pelo sucesso, e ainda sob o pseudônimo Vão Gogo, começa a escrever uma coluna no Diário da Noite e passa a dirigir também as revistas O Guri, com histórias em quadrinhos, e Detetive, dedicada a contos policiais Em 1941, o jovem volta para a revista O Cruzeiro, que passa, ao longo dos anos, da tiragem de 11 mil para 750 mil exemplares semanais. Por 18 anos, assina a coluna Pif-Paf, ainda utilizando o pseudônimo. Passa a dedicar-se às atividades de escritor, tradutor e autor de teatro. Em 1946, faz sua estréia literária com Eva sem Costela. Sete anos depois é montada sua primeira peça de teatro, Uma Mulher em Três Atos. Em 1964 edita a revista humorística Pif-Paf, uma das pioneiras da imprensa alternativa, onda que iria explodir cinco anos depois, com a fundação de O Pasquim, da qual também participou, ao lado de nomes como Jaguar, Paulo Francis, Ivan Lessa e Tarso de Castro. É Sérgio Cabral, dessa mesma equipe de fundadores de O Pasquim, quem fala ao Jornal da ABI sobre a partida e a importância do amigo. “Millôr chegou aos 88 anos de vida e cerca de 75 de vida profissional exclusivamente no jornalismo.
Mesmo aos 14 anos de idade, ou 13, como ele próprio afirmou algumas vezes, estava numa Redação, a da revista O Cruzeiro, embora trabalhando como contínuo. Não demorou muito para nascer o jornalista e, em seguida, surgir a página de humor mais inteligente do Brasil, a Pif Paf, que me fez, desde criança, admirador de Millôr Fernandes. Aliás, uma brincadeira que adorava fazer era citar frases dele publicadas na revista, mas esquecidas por ele. Numa dessas vezes, falávamos de um escritor medíocre, o que me levou a sentenciar: ‘Antigamente, os animais falavam. Hoje, escrevem’, frase que ele adorou e achou que fora criada por mim. ‘Infelizmente, a frase é sua’, disse pra ele, que ficou feliz com a novidade, pois não tinha a menor idéia de que era dele. Millôr foi o ser humano mais inteligente que conheci. Não sei de outro brasileiro para quem caiba tão bem o adjetivo de genial.” Sérgio Cabral lembra ainda da postura de Millôr quando da fase mais conturbada de O Pasquim, que vivia em conflito com a censura e as arbitrariedades do Governo militar. “Quando a ditadura prendeu, de uma só vez, dez profissionais do jornal, imaginou, naturalmente, que liquidara a nossa publicação. Ela ignorava que permanecera em liberdade um jornalista capaz de substituir os dez – inclusive imitando o estilo de cada um – e, com a ajuda de Henfil e de Marta Alencar, levar o jornal às bancas. Foi preciso adotar uma decisão mais radical, a proibição do jornal circular, para conter Millôr, Henfil e Marta. A propósito, lembro-me agora de que a partir das primeiras prisões foi no estúdio dele que me escondi. Mas, consciente de que ali não seria tão seguro, ele próprio articulou um lugar para eu dormir na noite seguinte, o apartamento de Leila Diniz, o que, cá entre nós, não perdia nada para o estúdio dele em matéria de perigo. Mas na terceira noite não havia outro jeito: dormi na prisão mesmo.”
OS RECURSOS DE UM TALENTO MÚLTIPLO
A criatividade de Millôr se fez presente em livros como Lições de Um Ignorante (1963), Fábulas Fabulosas (1964), Trinta Anos de Mim Mesmo (1972), Esta é a Verdadeira História do Paraíso (também 1972), Devora-me ou te Decifro (1976), Que País é Este? (1978), Diário da Nova República (1985), Eros Uma Vez (1987) e Millôr Definitivo - A Bíblia do Caos (1994). A saída de O Cruzeiro, em 1963, foi provocada por uma sátira ao Gênesis. Sua crítica a Deus (expressa nos versos “essa pressa leviana/ demonstra o incompetente/ fazer o mundo em sete dias/ com a eternidade pela frente”) foi atacada em editorial publicado na própria revista, em resposta às pressões da Igreja Católica, enquanto o humorista estava de férias. JORNAL DA ABI 376 • MARÇO DE 2012
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VIDAS TREZE LIÇÕES DE UM GÊNIO, POR MILLÔR • A verdadeira amizade é aquela que nos permite falar, ao amigo, de todos os seus defeitos e de todas as nossas qualidades. • As pessoas que falam muito mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades. • Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem. • Viver é desenhar sem borracha. • Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim. • Capitalismo é a exploração do homem pelo homem; comunismo é o contrário.
Na TV Tupi do Rio de Janeiro criou o quadro ‘Treze Lições de um Ignorante’, que provocou a ira e a censura do democrata Presidente Juscelino Kubitschek. Teve a atração suspensa depois de criticar a primeira-dama do País: “Dona Sara Kubitschek chegou ontem ao Brasil depois de cinco meses de viagem à Europa e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho”, escreveu. Como artista gráfico, em 1956 divide a primeira colocação na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires com o desenhista norte-americano Saul Steinberg. Em 1957, ganha uma exposição individual de suas obras no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Nos palcos, como dramaturgo, o talento de Millôr esteve presente em textos e montagens de sucesso, como Pif-Paf – Edição Extra! (de 1952, com músicas de Ari Barroso), Liberdade, Liberdade (1965, parceria com Flávio Rangel), Memórias de um Sargento de Milícias (1966, com músicas de Marco Antônio e Nelson Lins e Barros), Computa, Computador, Computa (1972) e É... (1977, sucesso estrelado pelo casal Fernanda Montenegro e Fernando Torres). Tradutor, fez as versões em português de clássicos como Hamlet, de Shakespeare, Assim é se lhe Parece, de Pirandello, e Antígona, de Sófocles, entre outras, num total
de 74 obras. “Millôr era importante desde que trabalhava na revista O Cruzeiro, há muitos anos. Ele criou um tipo de humor muito culto, inteligente, instruído, influenciado por pessoas como o Saul Steinberg. Além disso, era um grande tradutor. O Hamlet traduzido por ele é uma maravilha”, define o cineasta Arnaldo Jabor. Ao longo de toda a carreira, o fundamental para Millôr foi manter a liberdade de pensar e publicar. Sua passagem pela Veja em dois períodos – de 1968 a 1982 e, depois, de 2004 a 2009 – foi marcada por duelos com a direção da revista. Na campanha eleitoral para Governador do Rio de Janeiro em 1982, o jornalista declarou publicamente seu apoio ao então candidato Leonel Brizola – o que não o impediu de criticá-lo anos depois, quando já no poder. A direção da publicação queria que Millôr não declarasse publicamente seu apoio ao líder pedetista – e o humorista acabou deixando a Redação. Na entressafra da Veja, Millôr colaborou durante anos no Jornal do Brasil onde, num espaço quadrado de destaque na nobre página de opinião, publicava charges, pequenos textos e poemas. Sua atuação foi marcante exatamente no efervescente período de transição do regime militar para a Nova República, com especial atenção às críticas à atuação política e,
• Jornalista tem de estar sempre na oposição. • Não devemos resistir às tentações: elas podem não voltar. • Quem mata o tempo não é assassino, mas sim um suicida. • O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris. • Viva o Brasil, onde o ano inteiro é primeiro de abril. • Goze. Quem sabe essa é a última dose? • O pior não é morrer. É não poder espantar as moscas.
Millôr Fernandes no traço do colega de Redação de O Cruzeiro Appe.
sobretudo, literária do Presidente empossado José Sarney. No ano de 2000, comprovando sua inesgotável capacidade de adaptação às novidades, o humorista inicia o site Mi-
llôr Online. Ao longo deste ano também assinaria uma coluna no caderno Mais!, da Folha de S.Paulo. Há poucos anos, investiu no Twitter, pelo qual se comunicava com mais de 360 mil seguidores. A rica trajetória profissional de Millôr foi lembrada pelo Presidente da ABI, Maurício Azêdo. “A ABI lamenta a morte dele, um profissional talentoso e polivalente, um intelectual destacado em diversas áreas, como no desenho, no jornalismo e no teatro. Era um intelectual superdotado que teve atuação importante também no combate à censura na ditadura militar, quando fez parte da equipe do O Pasquim.” O velório de Millôr Fernandes ocorreu no dia 29 de março, no cemitério Memorial do Carmo, no Caju, Zona Portuária do Rio, e atraiu centenas de amigos e admiradores. O corpo do escritor foi cremado.
FERNANDO MAIA/AGÊNCIA O GLOBO
Ernâni, o mais veloz na fala O turfe brasileiro perdeu em 17 de março um dos maiores de seus incentivadores: o jornalista e locutor Ernâni Pires Ferreira, que morreu aos 77 anos de edema pulmonar e parada cardio-respiratória na UTI do Hospital Espanhol, no Centro do Rio, onde estava internado. Ernâni entrou para a História do turfe brasileiro, na qual ficou conhecido como a “voz do Jockey Club”, onde foi locutor oficial durante mais de 40 anos consecutivos (1967 a 2007) e o principal narrador do Grande Prêmio Brasil. Transmitiu mais de 70 mil páreos e fez narrações também na Argentina, Uruguai, França e Inglaterra. Em 17 de julho de 1983, durante a disputa de um páreo, entrou para o Guiness Book – O Livro dos Recordes, ao se tornar a primeira pessoa no mundo capaz de falar velozmente
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352 palavras por minuto, superando a marca que era do ex-Presidente norte-americano John Kennedy. Durante 15 anos Ernâni apresentou o quadro Barbadas do dia no programa Globo Esporte, na TV Globo. Com uma participação feita com humor, ele costumava se apresentar fantasiado, para transmitir aos telespectadores as notícias do turfe.Em 2008, quando já não estava mais atuando como narrador do GP Brasil, foi homenageado no Clássico Imprensa, que naquele ano ganhou o seu nome. Luiz Roberto, filho de Ernâni, informou que o pai estava sofrendo de depressão:”Ele vinha tentando curtir um pouco mais a vida, no último ano, mas sua saúde ficou debilitada”. Ernâni nasceu em 1º de novembro de 1934, em
Pernambuco. Ainda menino se transferiu com a família para o Rio de Janeiro e começou a freqüentar o
Jockey na companhia do pai. Daí se originou seu interesse pela profissionalização na área do turfe.
Linduarte Noronha, pioneiro do Cinema Novo Uma homenagem ao realizador do documentário Aruanda, que abriu caminho para filmes sobre a realidade brasileira nos anos 1970.
Lá pelos fins da década de 1950, quando juntos, Linduarte e eu cursamos a Faculdade de Direito da Paraíba, no entardecer de um sábado, em João Pessoa, algo iria nortear ideologicamente a nossa visão do mundo: uma conferência do revolucionário educador Paulo Freire. A partir daquele encontro começamos a olhar e compreender a sociedade invisível, aquela que pulula nos subterrâneos dos estratos sociais e cujos gritos e dores são abafados. Com Linduarte eu convivi por longos anos, desde os bancos acadêmicos até as cátedras universitárias, quando fomos atingidos pelo golpe militar de 1964. Quantas vezes, e foram muitas, ele ia estudar na minha casa à rua das Trincheiras, em João Pessoa, onde eu morava com a família. Já naquela época, ele era possuidor de uma forte convicção marxista. Na avidez de conhecermos o mundo dos grandes pensadores, como Marcuse, Marx, Lênin, Gramsci, Lukàcs, Althusser, Paulo Freire, Adorno, Euclides da Cunha, nos fizemos ausentes de aulas na faculdade. Ecos das palavras indignadas de Voltaire, Victor Hugo, Castro Alves, Pablo Neruda e Garcia Lorca chegavam até nós. Ao escrever esta matéria, contemplo numa distância de mais de meio século aquele personagem com quem comunguei pensamentos e ideais que nos embalaram na arte e na política. Linduarte Noronha marcou um destino. Com ingentes esforços e desafiadora determinação, ele retratou a multidão dos condenados da vida. Que ruidosos momentos a nossa geração viveu! Paremos por um instante diante daquele vulto cuja vida nos legou uma história de insubmissão aos poderosos e soube construir uma arte criativa face aos oportunistas de todo o jaez. Documentou os desencontrados de uma sociedade egoísta. Deixou-nos esta flama. Tudo nele irradiava uma aura criadora, um não sei quê de indefinido e místico no seu porte introspectivo. No fundo das obras precursoras ou nas ações revolucionárias, lá onde elas plantam as suas raízes, encontramos sempre uma razão de rebeldia contra o status quo. O que nos ligou, a mim e a Linduarte Noronha, foi um sentimento de inquietude, de paixão, a romper o que as forças dirigentes da sociedade queriam nos impor como cultura dominante. Que época de apaixonada embriaguez! Queríamos empurrar o carrilhão da humanidade para novos tempos e desafiar uma arte encastelada numa estética por
FRANCISCO FRANÇA/JORNAL DA PARAÍBA/FOLHAPRESS
P OR A GASSIZ A LMEIDA
meio da qual se visava apenas satisfazer o gozo de uma literatice balofa. Onde se fez revolucionária a obra deste cineasta do inconformismo? Rompeu com uma cultura atrelada aos balcões das bilheterias. O golpe militar de 1964 nos lançou numa opressiva incerteza, fazendo-nos cúmplices de comuns pensamentos. Sob uma mesma visão ideológica, olhamos os excluídos do mundo. Ele, pelas lentes da arte cênica, eu, pelo eco das palavras. Ele, trazendo para si, silenciosamente, a dor dos desamparados que retratava, eu, desferindo em gritos a condenação aos espoliadores dos camponeses. A ditadura militar nos arrancou violentamente da universidade. O curta- metragem Aruanda, precursor do Cinema Novo, revolucionou a cinematografia no País. O futuro de um Brasil brasileiro, que abraçamos, tombou sob as botas do militarismo. Eu olhava com melancolia a raça negra da Serra do Talhado, projetada em Aruanda, a terra da promissão, ele sabia ouvir os gritos dos camponeses esmagados no eito da cana de açúcar. Certa vez, mostrei a Linduarte um bilhete que Pedro Fazendeiro, morto e desaparecido pela ditadura militar, recebeu de um sicário do latifúndio: Desligue-se das Ligas Camponesas ou você terá o mesmo destino de João Pedro Teixeira. Ele me olhou e disse: “Que elite covarde esta do Brasil.” Tínhamos a impulsionar os nossos ideais forças vivas sob o pálio de uma chama que nos fazia indignados ante as injusti-
ças. Assim, aconteça o que acontecer somos filhos daquele momento histórico da geração de 1960. Que personagem era aquele? Passos lentos, olhar introspectivo, voz mansa quase pedindo desculpas aos interlocutores, alma aberta às grandes sensibilidades. Quando lhe relatava, lá pelos fins da década de 1950, as minhas lutas contra o implacável coronelismo enquistado na região de Cabaceiras e em outras desafiadoras contendas, sobretudo na organização das Ligas Camponesas contra a opressão do latifúndio, ele me ouvia com inebriez sacerdotal. Então, me perguntava sobre os quilombolas de Boa-Vista, Cabaceiras e Congo. Queria se informar das condições de vida destas comunidades negras. Um sentimento comum de indignação nos unia. Num certo dia do ano de 1957, Linduarte me falou emocionado de sua viagem à serra do Talhado, em Santa Luzia do Sabugi, onde conheceu o quilombo Olho d’Água, situado às bordas do planalto da Borborema, a cerca de 20 quilômetros da cidade, e das oleiras, mulheres que trabalhavam artesanalmente com peças de cerâmica. Tudo ali, para nós, se apresentava numa extraordinária visão, envolvendo num espanto que nos fazia mergulhar no imponderável. Por horas e horas, Linduarte me relatava a saga da comunidade negra, que chegou naquela serra tangida pelas infames condições de vida nos engenhos de açúcar e nos latifúndios da zona da mata no Nordeste.
Após conhecermos a história daquela comunidade, isolada no meio da Serra do Talhado, começamos a compreender a formação de dezenas e dezenas de quilombolas. Num dado momento, Linduarte meio trêmulo de emoção, pega-me pelo braço e solta estas palavras: “Vou documentar aquele cenário humano”. Ali começavam a surgir os primeiros lampejos de Aruanda, a obra que abriu uma nova visão à cinematografia no Brasil. A partir daquela hora, o criador de Aruanda vestia a sua criação de forte ideologia para os embates do mundo. Parecia que toda a História da raça africana, desde os confins das terras escravizadas, penetrava em sua mente. Repetia obsessivamente esta idéia: ‘Preciso retratar aquela comunidade, preciso.... preciso.’ Seus olhos embriagavam-se de luz, e um estado de êxtase o envolvia. Não era o destino das individualidades que Linduarte contemplava. Não! Ele mergulhava na essência da própria condição humana. Buscava encontrar o ritmo da História dos agrupamentos humanos a se debater ante as injustiças sociais. Assim ele olhou o quilombo do Olho d’Água do Talhado. Euclides da Cunha imortalizou a resistência de Canudos; Linduarte Noronha retratou o grito surdo dos condenados do Talhado. Publicado originalmente no site do Centro de Referência dos Direitos Humanos do Agreste da Paraíba como homenagem a Linduarte Noronha, realizador do documentário Aruanda, falecido em 30 de janeiro passado.
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VIDAS
O ADEUS AO
NOSSO CHICO Para fazer um tributo a Chico Anysio, dez cartunistas concordaram em enviar para o Jornal da ABI suas homenagens ao grande humorista. Várias delas publicadas na imprensa no dia seguinte ao falecimento do grande humorista, ocorrido em 23 de março. Outras três foram publicadas no livro É Mentira, Chico?, de Ziraldo.
Nesta página, Chico Caruso (O Globo), Jean Galvão, Nei Lima (Meia Hora), J.Bosco (O Liberal), Aroeira (O Dia) e Amarildo (É Mentira, Chico?). Na página seguinte, Ziraldo e Baptistão (É Mentira, Chico?), Benett (Gazeta do Povo) e Dálcio (Correio Popular).
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