SÉRGIO CABRAL As emoções causadas pelo musical Sassaricando em suas montagens Brasil afora
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Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa
M AIO 2012
Millôr PÁGINA 21
MUNIR AHMED
Em esculachos, sua forma criativa de protesto, jovens de vários pontos do País organizam manifestações exigindo a punição dos que torturaram e mataram durante a ditadura militar. PÁGINA 3 E EDITORIAL A BUSCA DA VERDADE NA PÁGINA 2
PERFIL
Os talentos de Duayer, desenhista e fotógrafo PÁGINA 17
CENSURA
Os livros proibidos nos anos de chumbo PÁGINA 27
VIDAS CARLOS FUENTES • EDUARDO SANTAMARIA • STENKA CALADO
EDITORIAL
DESTAQUES
A BUSCA DA VERDADE MAURÍCIO AZÊDO COMO ESPERAVAM AS FORÇAS democráticas que enfrentaram a ditadura e puseram fim ao seu reinado de terror e barbárie, a Presidente Dilma Rousseff deu à Comissão da Verdade uma composição que se impôs ao respeito do conjunto da cidadania, pelo perfil inatacável dos nomes escolhidos, que justificam a esperança de que os crimes e torpezas praticados pela ditadura militar 1964-1985 serão afinal objeto de apuração e investigações para identificação de seus autores, de suas vítimas e dos métodos utilizados na tortura de milhares de brasileiros e para o desaparecimento e morte de centenas deles. FOI FELIZ A PRESIDENTE DA REPÚBLICA também na organização da cerimônia de posse dos membros da Comissão, para a qual convidou os Presidentes que governaram o País depois da derrocada do regime de arbítrio, permitindo-lhe definir com propriedade que aquele não era um ato de Governo, mas um ato de Estado, que representava o clímax de uma jornada de cumprimento de um conjunto de decisões adotadas pelos Governos que lhe precederam – os de José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Cada um a seu modo e segundo as condições políticas em que puderam agir, todos promoveram atos que encontraram seu coroamento na gestão atual, com a criação e a posse da Comissão. COMO TAMBÉM ERA PREVISÍVEL, vozes isoladas e absolutamente minoritárias, resíduos,
O OLHAR DE A LPINO
ainda, das concepções totalitárias e liberticidas presentes nesses desafortunados 25 anos de nossa existência nacional, tentam igualar as vítimas do terror aos agentes do Estado que perpetraram crimes hediondos em nome de uma suposta segurança nacional e do “combate à subversão”, cometida na verdade por eles próprios a partir da derrubada do Governo constitucional do Presidente João Goulart, em 1º de abril de 1964. Sob o sofisma de que seria necessário investigar as violências praticadas pelos “dois lados”, essas vozes pretenderam descaracterizar a finalidade da Comissão da Verdade, que é o levantamento dos crimes praticados pelos que rasgaram a Constituição de 18 de setembro de 1946 e implantaram e sustentaram a ditadura.
FOTO DE DUAYER CLICADA EM
TIRADENTES, MG. PERFIL NA PÁGINA 17
03 ESPECIAL DIREITOS HUMANOS - A verdade e o esculacho ○
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14 HISTÓRIA - O acidentado começo da primeira revista cultural criada no Brasil, há exatos dois séculos ○
A ESSES RESPONDEU COM PERTINÊNCIA Frei Beto em artigo publicado na Folha de S. Paulo, no qual desmascarou a falácia de tal argumento, que equivaleria, como observou, que pudessem ser comparados com os nazistas os maquis que combateram o invasor alemão que ocupou a França no começo dos anos 1940 e os judeus que se levantaram em resistência heróica contra os hitleristas no levante do gueto de Varsóvia e em outras sublevações contra os monstros que promoveram o Holocausto.
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11 L EMBRANÇA - Ipanema, por Rodolfo Konder
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16 T RÉPLICA - Dines responde a Boris Casoy ○
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17 P ERFIL - Imagens casadas ○
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21 INTERNET - Millôr imortal ○
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27 REPRESSÃO - O livro censurado ○
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33 MÚSICA - Quinteto Violado, os encantadores do Nordeste ○
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ESSA QUESTÃO ESSENCIAL NÃO COMPORTA tergiversações, nem contemporização, nem concessões de qualquer espécie: a busca da verdade – a verdade integral sobre as infâmias praticadas entre nós durante mais de duas décadas.
Publicado no portal Yahoo! Notícias, em 23 de maio.
QUINTETO VIOLADO EM ENSAIO FOTOGRÁFICO DE 1991 PARA DIVULGAÇÃO DE A MISSA DO VAQUEIRO.
38 MEMÓRIA - Um portal inimigo do esquecimento ○
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40 EXPOSIÇÃO - Uma História sem rostos ○
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42 C ULTURA - Uma viagem nas ondas do rádio ○
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SEÇÕES 120 A CONTECEU NA ABI Corpo social renova a confiança na Chapa Prudente de Morais ○
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26 L IBERDADE DE I MPRENSA Contra as violências, a federalização das investigações ○
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V IDAS 45 Santamaria, um pioneiro ○
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46 Stenka Calado, um filho do Partidão ○
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47 Carlos Fuentes, a voz de um México grandioso ○
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DIREITOS HUMANOS ESPECIAL DIVULGAÇÃO
Com a instalação da Comissão da Verdade, o Brasil vive momento histórico com o sentimento de que é possível passar a limpo o passado de atrocidades da ditadura militar. Ao mesmo tempo, crescem as ações de movimentos jovens populares, que ‘esculacham’ publicamente torturadores. Manifestações que, até por questões de segurança, são agendadas e organizadas através das redes sociais. POR PAULO CHICO
A
manhã do dia 16 de maio entrou para a História do Brasil. Na ocasião foi oficialmente instalada, em Brasília, a Comissão Nacional da Verdade, que terá o papel de resgatar e trazer a público os bastidores dos processos de tortura, estupro, morte e desaparecimento forçado dos brasileiros que resistiram à ditadura militar. Como não poderia ter deixado de ser, a solenidade, realizada no Palácio do Planalto, teve ampla cobertura da mídia. Co-
mandada por Dilma Rousseff, ela própria vítima de tortura, a cerimônia teve seu ápice no discurso emocionado da Presidente da República, que chegou às lágrimas. “O Brasil deve render homenagens às mulheres e aos homens que lutaram pela revelação da verdade histórica. Aos que entenderam e souberam convencer a nação de que o direito à verdade é tão sagrado quanto o direito que muitas famílias têm de prantear e sepultar seus entes queridos, vitimados pela
violência praticada pela ação do Estado ou por sua omissão. O nosso encontro, hoje, em momento tão importante para o País, é um privilégio propiciado pela democracia e pela convivência civilizada. É demonstração de maturidade política que tem origem nos costumes do nosso povo e nas características do nosso País”, afirmou Dilma, ao lado dos exPresidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor e José Sarney, convidados especiais do evento. JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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DIREITOS HUMANOS ESPECIAL A VERDADE E O ESCULACHO ANTÔNIOCRUZ/ABR
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JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
A Presidente Dilma Rousseff empossou os membros da Comissão de Anistia num ato de Estado, que reuniu os quatro ex-Presidentes da República vivos.
org). A exemplo do que ocorre com o Levante, no site oficial é possível acessar textos reflexivos, pautas de reivindicações, agenda dos próximos eventos e fotos dos atos já realizados. “A Comissão da Verdade, assim como os processos jurídicos, é um combate necessário no campo da luta institucional para a exposição, apuração e punição dos agentes do Estado, militares e civis, dos médicos, dos empresários e da imprensa colaboradora do regime. Mas acreditamos que apenas com a auto-organização de situações e espaços de poder popular e de memória militante poderemos re-costurar as fraturas da memória social. Sentimos a necessidade histórica de ir para as ruas buscar expor para o bairro, para os vizinhos, para a cidade e a família, colegas e toda população, nosso passado fraturado. E assim inauguramos a Frente de Esculacho Popular com a figura do famigerado médico legista da ditadura, Harry Shibata”, diz o texto de abertura do site da Frente, que segue: “Esculacho é um termo popular utilizado na maior parte das vezes para referir-se às ações de brutalidade cotidiana policial de que os agentes militarizados do Estado se utilizam, sobretudo contra a população pobre do Brasil. Os Escraches Populares na Argentina e também as Funas Chilenas foram nossa inspiração. Em todos estes países foi necessária uma forte pressão popular para o julgamento e a punição dos militares genocidas. Por isso, cansados de tanto sermos esculachados impunemente, sentimos a necessidade de construir o Esculacho Popular, como forma de expor, lembrar e acusar os responsáveis pelos crimes da ditadura, homenageando nossos mortos e desaparecidos, refletindo sobre o esquecimento e pressionando o Estado por justiça e pelo fim da impunidade”.
depois mandei e-mail para um grupo de amigos dizendo que precisaríamos fazer algo. Conhecia as ações feitas na Argentina e no Chile, e queria fazer algo parecido por aqui. Assim começamos.” Hoje, o grupo é bastante grande, com pessoas vindas dos mais diversos lugares, mas sempre amigos de amigos e conhecidos envolvidos com esse tema. “Ver o Cabo Anselmo na televisão me deu dor de estômago, urticária. Eu fiquei chocada como ele se deu ao trabalho de sair do conforto do lugar onde se esconde pra vir rir da nossa cara, sabe? Aí pensei que ‘se esse cara tá solto por aí, fazendo o que quer, temos que pelo menos botar o dedo no nariz dele e contar a todos o verme que ele é’. E juntos nós pensamos: ‘se não há justiça, haverá esculacho popular ’. Assim nasceu a Frente do EsManifestantes levam coroa de flores para o endereço de culacho Popular”, conta P.S. ao Harry Shibata, médico legista que assinou laudos para Jornal da ABI. encobrir diversos assassinatos de militantes políticos. Uma simples consulta ao Dicionário Aurélio ajuda na compreensão do termo ‘esculacho’ no contexto apresentado aqui. Embora apresente ‘esculachar’ também com as definições de espancar e esbordoar, o autor P.S. é uma jornalista de 24 anos, de São traz a seguinte explicação para a palavra Paulo. Foi depois de assistir à entrevista ‘esculachado’: desmoralizado, anarquido Cabo Anselmo (José Anselmo dos zado, avacalhado e esculhambado... É Santos, agente infiltrado das forças de nessa segunda descrição, mais fixada no repressão do Governo militar que denuncampo da moral e menos adepta à viociou diversos ex-companheiros de eslência física, que se situa o termo adotaquerda) no programa Roda Vida, na TV do pela Frente e pelo Levante Popular da Cultura, que a jovem decidiu pôr a mão Juventude, garantem os responsáveis na massa. Ou melhor, no teclado do compor ambos os movimentos. putador. “A entrevista de Anselmo foi Em tempo: o ex-militar Anselmo foi exibida em 17 de outubro de 2011. Logo o centro das atenções da reunião da DIVULGAÇÃO
ormada por sete integrantes, a Comissão da Verdade terá a missão de investigar e narrar violações dos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 – período que abrange o governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra até a publicação da Constituição Federal. Evidentemente, as investigações deverão se concentrar da fase política posterior ao golpe de 1964, quando os militares tomaram o País por mais de duas décadas. Foram anos nos quais, como nunca antes na História do Brasil, o Estado assumiu para si a vergonhosa autoria de crimes hediondos, como a tortura e a execução sumária de seus opositores, sem falar nas milhares de prisões arbitrárias e na infame prática da censura. A criação da Comissão da Verdade vinha sendo discutida já há alguns anos na esfera do Governo federal. Os muitos debates acerca de seu papel institucional e do perfil de seus componentes, bem como a demora na sua instalação, fizeram brotar na internet uma nova modalidade de mobilização popular, até então inédita por aqui. Ao mesmo tempo em que alertavam para a necessidade de veracidade na atuação da Comissão da Verdade, grupos de brasileiros cobravam celeridade política para o início dos trabalhos. Nascidos nas redes sociais, movimentos como o Levante Popular da Juventude saíram das páginas virtuais e ganharam as ruas de cidades brasileiras. “Após a nomeação da Comissão Nacional da Verdade, realizada pela Presidente Dilma, o Levante Popular da Juventude vem a público manifestar seu reconhecimento a este ato. Entendemos que esta é uma medida fundamental para que o País comece a compreender um período que foi ocultado de sua História. (...) Recentemente a manifestação de setores militares se opondo à Comissão demonstrou que a mentalidade autoritária e fascista ainda persiste em determinados segmentos da sociedade. Contudo, desta vez o silêncio foi rompido. O Levante, com um conjunto de organizações populares, se insurgiu em defesa da verdade. Torturadores já não podem mais se esconder no anonimato. As ruas e avenidas deixaram de homenagear criminosos. As comemorações ao golpe de 1964, que até então contavam com a anuência da mídia, finalmente foram constrangidas”, publicou o movimento em sua página oficial, que pode ser acessada em levante.org.br. Na prática, desde o início deste ano a mídia nacional vem abrindo espaço para tais manifestações realizadas nas principais cidades brasileiras. Esses atos, que fazem o apontamento público da presença de agentes da tortura no regime militar, quase sempre localizados em suas residências, são identificados como ‘esculachos’. A explicação para o uso deste termo consta do site oficial de outro movimento também nascido no ambiente virtual: a Frente do Esculacho Popular (frentedeesculachopopular.milharal.
UMA JOVEM ADEPTA DA PRÁTICA DO ‘ESCULACHO’
FOTOS DIVULGAÇÃO
Comissão de Anistia no dia 22 de maio, quando foi julgado pedido feito pelo próprio em 2003, solicitando sua identificação como anistiado e merecedor de reparação financeira. Por decisão unânime dos membros da Comissão, o pedido foi negado. No lugar de anistiado, Anselmo fica para a História como um delator, colaborador e cúmplice de dezenas de assassinatos, inclusive o de sua mulher, a paraguaia Soledad Barret Viedma, que estava grávida de sete meses de um filho dele. Aqui cabe breve explicação. Já depois de ter conversado com a nossa reportagem, a entrevistada P.S. pediu para ser identificada nesta matéria apenas pelas iniciais. “Até agora não sofremos nenhum tipo de represálias ou ameaças. Tomamos diversos cuidados, claro. Não falamos detalhes e dados importantes por telefone ou e-mail... Nas reuniões de organização, por exemplo, só vão as pessoas conhecidas”, afirmou ela num primeiro momento, para numa mensagem seguinte ponderar. “Paulo, tem como você colocar só minhas iniciais na matéria e não meu nome e sobrenome? Aconteceram umas coisas... Foram algumas notícias que tive agora na reunião da Frente que me deixaram bem preocupada, estou com medo de me expor. Pode ser? Por questões de segurança”. Ok, respondi. Pedido feito e atendido. O intuito básico da Frente é “publicizar ”, isto é, chamar a atenção da sociedade e da mídia para a presença, até então discreta e anônima, de agentes torturadores. E o objetivo vem sendo alcançado. Em 7 de abril, após uma passeata, a casa do médico Harry Shibata foi pichada. No asfalto em frente à residência, no bairro de Pinheiros, Zona Oeste paulistana, foi pintada a frase “Shibata, legista da ditadura”. Segundo manifestantes e documentos, o alvo da ação assinou inúmeros laudos necroscópicos atestando falsamente a causa da morte de vítimas da ditadura. Nos laudos falsificados, o médico escondia os assassinatos dos militantes sob tortura, alegando que tinham sido mortos em tiroteios, atropelamentos ou cometido suicídio. Entre os laudos forjados por Shibata está a fantasiosa versão de suicídio por enforcamento do jornalista Vladimir Herzog. Os cartazes erguidos pelos manifestantes denunciavam alguns desses casos. E apontavam a presença de um torturador aos vizinhos, moradores da rua e transeuntes. O que P.S. não previa é que a ação teria grande repercussão na mídia. “Isso foi ótimo, já que nosso objetivo é exatamente esse, informar. Quanto ao feedback das pessoas dali de perto, os poucos a que assistimos foram todos muito bons. Uma vizinha do
Para expor os torturadores, houve simulações de assassinatos e panfletagem com denúncias de seus crimes perto das residências dos acusados.
Shibata nos disse: ‘Nossa, que lindo que vocês estão fazendo isso, eu sempre tive a vontade de cuspir na cara desse cara, mas nunca tive coragem’. Também vimos uma menina, pequena, pedindo mais um panfleto e dizendo ‘que nojo, minha vó fala com esse velhinho! Me dá mais um panfleto? Vou levar pra minha professora de História!’, e por aí vai. Ficamos contentes com a repercussão.” Na avaliação de P.S., as redes sociais são mesmo o mais eficiente veículo de mobilização para campanhas de massa, como os ‘esculachos’ organizados pela Frente. “Ter a maior facilidade de comunicação pode acabar por incentivar outros movimentos populares no Brasil. Eu mesma, se visse uma ação interessante no Facebook, por exemplo, tentaria me juntar ao grupo ou montar um outro para fazer coisas semelhantes. Esperamos que seja por aí mesmo, todo mundo, junto ou em grupos diferentes, fazendo as suas diversas ações. Quanto mais, melhor.”
QUANDO O AGENTE DA REPRESSÃO MORA AO LADO Como desdobramento da manifestação, diversos jornais pautaram entrevistas com Harry Shibata. O Globo foi um deles. “Assinei o laudo de Herzog, mas não vi o seu corpo. Eu não fiz a autópsia, pois o segundo perito não participa. É praxe. Ele lê o laudo, conversa com quem fez o exame. Se estiver de acordo, assina. E eu não assinei como suicídio. O laudo dizia que ele morreu de asfixia por enforcamento. Morreu de asfixia mecânica por enforcamento. Se enforcaram ou não enforcaram, se é suicídio, homicídio ou acidente, não é função do legista. Isso é o inquérito que vai dizer. Nunca produzi um laudo falso”, garantiu o médico ao jornal, na edição que circulou no dia 20 de maio.
Na mesma entrevista, Shibata repudiou as acusações feitas pelos autores do esculacho e garantiu ter revelações a fazer para a Comissão da Verdade. E mais do que isso. Chegou a sugerir um encontro com a viúva de Herzog, Clarice, que, por infeliz coincidência, mora a apenas 300 metros de sua casa. Perguntado se faria uma revelação sobre a execução de Vlado, como era conhecido o jornalista, o médico respondeu à reportagem de O Globo: “Se for chamado, sim. Eu não quero que você publique uma coisa antes que a Comissão da Verdade saiba. Para você é um furo, para eles é um ‘atrapalho’. Eu não sei o que eles vão procurar realmente. Se a Clarice viesse aqui conversar comigo, a receberia com todo o prazer. Para ela, eu poderia até contar tudo o que eu realmente sei. Eu falaria com ela por uma questão de solidariedade”, revelou, certamente sem se dar conta do alto grau de deboche e ironia da proposta. E de crueldade, por fim. A viúva de Vlado participou da cerimônia de instalação da Comissão da Verdade, em Brasília. “Eu nem sabia que Shibata continuava vivo. Vi os cartazes nos postes da minha rua com a foto dele. Só então me dei conta. É o passado presente. Foi constrangedor. Ainda hoje, quando passo na rua dele para ir ao trabalho, eu lembro. Não sei se eu teria coragem de ir até lá”, disse Clarice Herzog. O caso de proximidade de endereços verificado entre Shibata e a viúva de Herzog não é o único. Outros chamaram a atenção ao comprovar que sombras JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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DIREITOS HUMANOS ESPECIAL A VERDADE E O ESCULACHO
de um triste passado recente podem rondar a vizinhança. “Sensação estranha essa. O que você faria se soubesse do endereço do militar responsável pela tortura e morte do seu pai? E que ele circula pelo bairro livremente? Soube hoje pelo vídeo postado no YouTube que um dos responsáveis pela morte do meu pai mora na Rua Marquês de Abrantes, Botafogo, Zona Sul do Rio, em que passo direto, sem nunca ter me dado conta de que no 218 mora a figura que mudou a vida da minha família e trouxe tanto sofrimento para nós e muitas
outras casas. O que vou fazer a respeito? Nada. Vou esperar que a Comissão da Verdade faça. O vídeo foi postado pelo Levante Popular da Juventude. No dia 26 de março, o movimento fez protestos em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, Rio de Janeiro, Belém, e Curitiba contra agentes da ditadura. Houve também em Salvador, Teófilo Otoni (em Minas), João Pessoa, Aracaju e Natal. Bacana. Criativo. Justo. Obrigado, garotada. A família agradece”, escreveu o jornalista Marcelo Rubens Paiva em seu blog no Estado de S. Paulo, em 14 de maio.
PROFUSÃO DE MANIFESTAÇÕES, POR VEZES, CONFUNDE JORNALISTAS Em meio a tamanha repercussão, houve até confusão. Há, no geral, um equívoco comum entre os jornalistas, que acham que qualquer ‘esculacho’ é organizado pelo Levante. Na verdade, há dois grupos diferentes, fazendo coisas parecidas e até construindo junto. O portal IG publicou uma série de matérias sobre a ditadura e sobre as ações populares. Numa delas, outra menina, esta ligada ao Levante Popular da Juventude, identificou-se como autora do ‘esculacho’ de Shibata, dando a suposta justificativa para a pichação da casa do médico legista. “Não queríamos depredação, mas a gente nem sempre pode controlar tudo o que acontece”, ponderou junto à reportagem. Acontece que P.S., da Frente do Esculacho Popular, sequer conhece a tal menina. Ela nega que exista disputa ou concorrência entre os dois movimentos – Frente e Levante. Mas garante que há, sim, diferenças. “São dois grupos de jovens que por acaso estavam pensando na mesma coisa na mesma hora. Acho um pouco sintomática essa coincidência, aliás. A meu ver, são jovens de uma forma ou de outra envolvidos no tema que cansaram de esperar. Não há rivalidade, mas há um ponto em que discordamos deles sim. A postura da Frente do Esculacho Popular em relação à Comissão da Verdade é mais crítica. Apoiamos a Comissão, obviamente, e esperamos que ela cumpra papel importantíssimo para a construção de uma democracia madura e de fato. Apenas lamentamos ela ter sido aprovada nesses termos e dentro de um ‘pacto do possível’ de ‘nós vamos até onde eles (os milicos de pijama) deixarem a gente ir’. O Levante Popular da Juventude, pelo menos ao que nos parece, apóia acriticamente a Comissão”, avalia P.S. A afirmação parece fazer algum sentido. Quer ver? “Para nós, o mais importante foi a Comissão ter saído, ter sido nomeada. Agora é importante que ela tenha força para executar seus trabalhos. Nós acreditamos que, na medida em que a violência da ditadura militar vier à tona, na medida em que as pessoas descobrirem quão bárbaras foram as ações dos torturadores, a justiça será um passo seguinte lógico. Porque não dá para saber 6
JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
Edison Rocha (acima) e Lira Alli, representantes da Frente do Esculacho Popular: Além de ter o site hackeado, foram postados comentários maldosos.
a verdade e não fazer nada com isso. Não é uma questão de revanchismo, mas de fazer justiça a todos que caíram ou foram torturados na luta por democracia no nosso País”, afirmaram os porta-vozes do Levante Popular da Juventude, em resposta ao Jornal da ABI.
Ao contrário da representante da Frente do Esculacho Popular, eles não tiveram receio de divulgar seus nomes publicamente: são eles Edison Rocha (Júnior) e Lira Alli. “Temos uma coordenação nacional com membros de todos os Estados onde estamos organizados. Essa coordenação é responsável por articular nacionalmente o Levante e é escolhida a cada Acampamento Nacional que nós realizamos. As retaliações que sofremos até agora foram o hackeamento do nosso site no dia 26 de março, data da primeira rodada nacional de esculachos a torturadores. Também observamos alguns comentários maldosos em nosso site e na conta no YouTube.” O Levante surgiu em 2006 no Rio Grande do Sul e se tornou nacional somente em fevereiro de 2012. Atualmente o movimento está presente em 17 Estados e participa de manifestações, além dos ‘escrachos’. Já foram realizadas duas rodadas de apontamento de torturadores: a primeira em 26 de março, envolvendo oito Estados. A segunda ocorreu em 14 de maio, com a mobilização em onze unidades. Além disso, o grupo se faz presente em atos de outra natureza, como a Luta das Mulheres (8 de março), a Luta do Movimento Negro (20 de novembro) e lutas regionais, como na greve dos professores em Minas, realizada no ano passado. Um dos apoios anunciados mais recentemente, neste mês de maio, foi à causa dos professores das universidades federais, em greve em todo o País.
“Nós articulamos jovens de locais diferentes – periferias, campo, escolas e universidades. Em cada local, os grupos tocam as suas pautas específicas, sempre tendo em vista a construção de um projeto popular para o Brasil. No caso da educação, acreditamos que a luta por salário e condições dignas de trabalho são fundamentais. Assim fortalecemos essa luta e, principalmente, usamos as redes sociais como principal meio de comunicação. Mas a prioridade é o trabalho de base no cotidiano. Não somos prepotentes ao ponto de achar que servimos de exemplo para outros movimentos populares. Ainda somos uma organização jovem e queremos aprender muita coisa com outros movimentos”, comenta Edison Rocha. O principal objetivo do movimento é levantar, mobilizar e organizar a juventude que se dispõe a sair da apatia. Influenciar a sociedade e contribuir para a construção de um País que atenda às necessidades e aos sonhos do povo. Um País com um projeto popular. “Neste sentido, a Comissão da Verdade é só uma das diversas bandeiras que levantamos, porque acreditamos que seja fundamental conhecermos e reescrevermos a nossa História, porque isso possibilita um novo olhar sobre as impunidades do presente, para que possamos construir um novo futuro”, afirma Lira Alli. Na opinião de ambos, o Levante será necessário enquanto houver injustiça no Brasil, uma sociedade ainda marcada por problemas como desemprego, falta de acesso à educação, violência policial, racismo, baixos salários, homofobia, machismo, latifúndio, trabalho escravo, falta de saneamento básico e déficit habitacional, entre outras mazelas. E qual tem sido a sensibilidade da mídia aos atos públicos movidos por tantas reivindicações? “As matérias que citam o Levante até agora têm sido boas, apesar de alguns erros como dizer que somos apenas um movimento que luta pela punição dos torturadores do período militar, não enxergando a nossa pauta por completo. No geral, a opinião pública tem recebido bem as nossas mobilizações”, julgam os porta-vozes do movimento.
FOTOS DIVULGAÇÃO
Rua Tereza Moura, 36, no Guarujá: o Levante Popular da Juventude fez o ‘esculacho’ do Tenente-Coronel reformado Maurício Lopes Lima, reconhecido por Dilma como torturador da Oban.
A HORA DO RESGATE DE UM PASSADO TENEBROSO Ao final de dois anos, a Comissão instalada pela Presidente Dilma deverá apresentar um relatório conclusivo feito a partir da análise de documentos, muitos deles sigilosos, e depoimentos. No entanto, ainda que identifique envolvidos em crimes contra os direitos humanos, a possível punição dos responsáveis poderá esbarrar nos limites estabelecidos pela Lei da Anistia, de 1979. Em 2010, a lei foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal, que rejeitou um pedido da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB pedindo a revisão do texto. Os ministros da Suprema Corte argumentaram que a anistia a guerrilheiros e agentes do Estado fora fundamental para garantir uma transição mais rápida e pacífica da ditadura para o regime democrático. Uma decisão, no mínimo, controvertida. E polêmica. “A interpretação do STF é política e absolutamente errada. E pior, afronta compromissos internacionais que o Brasil assumiu. Essa equivocada inclusão dos agentes de Estado, autores de torturas, estupros e assassinatos, como beneficiados é mera interpretação da Lei de Anistia em nome da pacificação. É uma postura meramente política e não jurídica, de quem não quer confusão, não quer revelar a verdade”, critica o advogado criminalista Técio Lins e Silva, defensor de dezenas de guerrilheiros em tribunais militares durante a ditadura. A Comissão da Verdade é constituída por José Carlos Dias, Ministro da Justiça no Governo Fernando Henrique Cardoso; Gilson Dipp, Ministro do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral; Rosa Maria Cardoso da Cunha, amiga pessoal e ex-advogada de Dilma Rousseff; Cláudio Fonteles, ProcuradorGeral da República durante o Governo Lula; Maria Rita Kehl, psicanalista; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e escritor, e Paulo Sérgio Pinheiro, atual Presidente da Comissão Internacional Independente de Investigação da Onu para a Síria. A posse dos sete membros do grupo, em 16 de maio, ocorreu num momento em que o País parece de fato disposto a rever o seu passado. E, dentro do possível, fazer o seu acerto de contas com a História.
Além das manifestações promovidas pelo Levante Popular da Juventude e pela Frente do Esculacho Popular, o lançamento de um livro chamou especial atenção neste contexto. Trata-se de Memórias de uma Guerra Suja, de Marcelo Netto e Rogério Medeiros, que chega ao mercado pela Topbooks. A obra, centrada no personagem Cláudio Guerra, um policial hoje arrependido dos ‘serviços’ prestados ao regime militar, revela o destino de mais de uma dezena de desaparecidos políticos e explica como vários líderes de esquerda foram assassinados. Em suas páginas há elucidações sobre casos emblemáticos, como o atentado ao Riocentro, o “acidente automobilístico” em que morreu a estilista Zuzu Angel, mãe do jovem Stuart Angel, assassinado pela ditadura, e os inúmeros ataques a bomba em diversas Redações de jornais. A criação da Comissão da Verdade, em novembro do ano passado, ocorreu após intensos debates no Congresso Nacional e foi criticada por setores militares, os quais alegam que os trabalhos do grupo podem ‘reabrir feridas’. Contudo, entre aqueles que defendem rigor na apuração dos crimes cometidos por agentes do Estado há certa descrença em relação ao poder de punição da Comissão, após as in-
vestigações. Para Elizabeth Silveira, Diretora do grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, a nova Comissão é apenas uma resposta burocrática do Governo à sentença da OEA e à comunidade internacional, que cobram do Brasil o esclarecimento de tais atos criminosos. “O Brasil ainda nem sabe quem são esses violadores de direitos humanos. Nós esperávamos que um Governo dito de esquerda enfrentasse essa situação”, criticou ela. Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e do Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo, crê que a Comissão brasileira veio tarde, m as a vê com bons olhos, conservando positivas expectativas. Segundo ele, o perfil ‘predominantemente jurídico’ do grupo nomeado pela Presidente Dilma Rousseff permite prever um bom embasamento legal aos trabalhos. “A Comissão abre espaço para quebrar pactos sociais de silêncio como, por exemplo, o que envol-
ve o financiamento, por parte de empresários, de ações de repressão do regime.” No mesmo dia em que foi instalada a Comissão da Verdade, entrou em vigor a Lei de Acesso a Informações Públicas, já considerada forte aliada dos trabalhos de investigação sobre crimes do regime militar. A Lei proíbe que sejam mantidas em sigilo as informações ou documentos que versem sobre a violação de direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas, e também classifica como conduta ilícita, passível de penalidades, a destruição ou subtração dos documentos por parte de agentes do Estado. “A transparência a partir de agora obrigatória, também por lei, funciona como o inibidor eficiente de todos os maus usos do dinheiro público e, também, de todas as violações dos direitos humanos. Fiscalização, controle e avaliação são a base de uma ação pública ética e honesta”, disse a Presidente Dilma.
AÇÕES POPULARES ‘APONTARAM’ O TORTURADOR DA PRESIDENTE No dia 14 de maio, cerca de 100 jovens do Levante Popular da Juventude fizeram o ‘esculhacho’ do Tenente-Coronel reformado Maurício Lopes Lima, que foi reconhecido pela Presidente Dilma Roussef como torturador da Operação Bandeirante-Oban. O ato ocorreu no Município do Guarujá, no litoral de São Paulo, na Rua Tereza Moura, 36, onde mora o militar. Em depoimento à Justiça Militar, em 1970, quando tinha apenas 22 anos, Dilma afirmou ter sido ameaçada de novas torturas por dois militares chefiados por Lopes, que chegou a ser apontado pelo Ministério Público Federal, em ação civil pública ajuizada em 2010, como um dos responsáveis pela morte ou desaparecimento de seis pessoas e pela tortura de outras 20 nos anos de 1969 e 1970. Segundo o MPF, Lopes Lima foi chefe de equipe de busca e principal orientador dos temidos interrogatórios da Oban e do Doi/ Codi. Ele, Maurício Lopes, claro, nega ter torturado qualquer preso, incluindo a hoje
Presidente. Contudo, admite que a tortura era um procedimento comum à repressão daquela época. Em impactante entrevista concedida em 2003 ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, Dilma foi perguntada de quem apanhava quando estava presa. E respondeu: “O Capitão Maurício sempre aparecia por lá”. Uma das líderes da VARPalmares, ela foi presa em 16 de janeiro de 1970, torturada e seviciada, submetida a choques e pau-de-arara durante 22 dias. Tais fatos tornam ainda mais significativas as palavras de Dilma em seu discurso na cerimônia de posse dos sete membros da Comissão. E evidencia a razão pela qual, naquele dia, ela chegou às lágrimas. “É fundamental que a população, sobretudo os jovens e as gerações futuras, conheçam nosso passado, principalmente o recente, quando muitas pessoas foram presas, torturadas e mortas. A verdade sobre o passado é fundamental para que aqueles fatos que mancharam nossa História nunca mais voltem a acontecer. A ignorância JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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DIREITOS HUMANOS ESPECIAL A VERDADE E O ESCULACHO
sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantêm latentes mágoas e rancores. A sombra e a mentira não são capazes de promover a concórdia. Novas gerações merecem a verdade, e, sobretudo, merecem a verdade aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia. É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma História sem voz. E quem dá voz à História são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la.” Curioso é perceber que os defensores dos torturadores e dos agentes da repres-
AS EXPECTATIVAS DE UM ESPECIALISTA NO TEMA Há pessoas dedicadas à causa do resgate da História de terror do regime militar que têm fé na capacidade de realização da Comissão da Verdade. “A composição é boa e indica um tremendo esforço da Presidente Dilma no sentido de formar um colegiado que fará História e será um divisor de águas. A Comissão chegará a resultados práticos, sem dúvida. Identificar os envolvidos e construir a narrativa sobre as gravíssimas violações de direitos humanos, com destaque para os casos de mortes e desaparecimentos políticos, serão os seus principais objetivos. Ao mesmo tempo, esse processo gerará subsídios para que o Judiciário tome medidas no sentido da responsabilização dos torturadores e assassinos”, aposta Vladimir Sacchetta.
são, que por vezes chegam a comemorar o aniversário do golpe de 1964, como aconteceu no Rio em 29 de março deste ano, não contam com apoio nem mesmo entre seus colegas de farda. Um grupo de militares da reserva, entre eles um herói da Segunda Guerra Mundial, o Brigadeiro Rui Moreira Lima, 93 anos, divulgou manifesto em resposta ao documento dos Clubes Militares que atacou as Ministras Maria do Rosário (dos Direitos Humanos) e Eleonora Menicucci (Mulheres). Consciente, esse grupo de militares criticou os atos de violência durante a ditadura militar e apoiou a investigação dos crimes pela Comissão da Verdade. Jornalista, pesquisador e produtor cultural, Sacchetta organizou para a Secretaria dos Direitos Humanos os livros Brasil Direitos Humanos 2008: A Realidade do País aos 60 anos da Declaração Universal; Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana: Uma História de Resistência e Luta pelos Direitos Humanos no Brasil e Habeas Corpus: a Busca dos Desaparecidos Políticos no Brasil. Atualmente ele coordena a pesquisa do projeto Resistir é preciso, do Instituto Vladimir Herzog. “O projeto resgata e conta a trajetória de setores da imprensa brasileira que, com a explícita intenção de enfrentar a ditadura que tomou o poder em 1964, nasceu, cresceu e se expandiu na clandestinidade, no exílio e, como veículos alternativos, nas bancas de jornal. O projeto já captou mais de 100 horas de depoimentos dos protagonistas dessa história, produziu livro, digitalizou 50 mil páginas de jornais, e está disponibilizando esses conteúdos para pesquisadores”, conta.
Sacchetta não acredita que a provável pressão política exercida pelos militares consiga barrar os trabalhos da Comissão da Verdade. “Os militares rosnam desde sempre. Mas há que se separar aquela geração que atuou nos chamados porões com as que os sucederam e que hoje são homens de farda comprometidos com o futuro do País dentro dos limites constitucionais. Exorcizar esses fantasmas será de suma importância para a consolidação de uma cultura e uma educação em direitos humanos, que formará cidadãos melhores, sejam eles da caserna ou mesmo da máquina policial. Quanto ao meio político, a nossa democracia ainda tem algumas vozes dissonantes, como os Bolsonaros. (N.R.- Referência ao Deputado Federal Jair Bolsonaro, parlamentar pelo PP-RJ, e cujos filhos Carlos e Flávio também seguem carreira política). Elas são cada vez mais raras. Ainda bem.” Sacchetta aplaude as recentes manifestações populares contra os agentes da
ditadura e confessa ter vibrado com o discurso da Presidente Dilma na posse dos sete membros da Comissão da Verdade. “A moçada do Levante e de outras organizações, como a Frente do Esculacho Popular, responsável pela ação contra o Harry Shibata, é herdeira da indignação dos brasileiros que viveram debaixo do autoritarismo dos militares. E a atual geração prova com as suas iniciativas que, ao contrário do que se imagina, é politizada e atuante. Os atos estão em sintonia com o que pensa a Presidente, cujo discurso foi de Estadista com E maiúsculo. Ela não poupou nada, nem ninguém. Bem ao seu estilo, ela mesma vítima da violência da ditadura. Apesar da presença dos Ministros militares e do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas – e não poderia ser diferente –, que entraram mudos e saíram calados. Ficou claro que o esquecimento e o perdão estarão fora da pauta da Comissão”, concluiu.
PELA MUDANÇA DE NOMES DE RUAS E BENS PÚBLICOS Gilberto Maringoni é destacado militante político há 35 anos. Formado em Arquitetura, é jornalista e doutor em História Social pela Usp, professor de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e colunista do site Carta Maior. Ele destaca o perfil dos membros da Comissão. “Ela representa grande vitória da democracia. Um ponto positivo é que não há membros comprometidos com a ditadura. Mas há aspectos preocupantes. São as declarações de que seria necessário investigar as ações da esquerda, feitas por um de seus integrantes. A resistência armada só aconteceu porque todos os canais democráticos de participação política estavam fechados à época. Tal recurso foi a tímida reação à brutalidade do golpe. Não há termo de comparação. Não se espera uma ação isenta dos membros da Comissão. Ela é impossível diante de crimes contra a Humanidade. A equipe precisa esclarecer fatos e fazer justiça. Para isso, como em países que reavaliaram seu passado, será necessária intensa pressão popular.” Na avaliação de Maringoni, a atuação da Comissão certamente incomodará os militares. Mas não somente. “Os milita8
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res não deram o golpe e nem sustentaram a ditadura sozinhos. A intentona foi firmemente apoiada pelo grande empresariado, pela grande imprensa – como O Globo, Diários Associados, Bloch Editores, O Estado de S. Paulo, Editora Abril, Folha de S.Paulo, entre outros. Teve apoio da cúpula da Igreja Católica e da diplomacia estadunidense. Estamos numa fase preliminar do levantamento das responsabilidades daqueles anos, buscando os torturadores abrigados pelo manto do Estado. É um bom começo. E não é pouco. Mas é preciso apurar as responsabilidades dos mandantes e dos articuladores do golpe”, defendeu nesta entrevista ao Jornal da ABI. Em artigo publicado na Carta Maior no dia 9 de março deste ano, Maringoni chegou a propor um desdobramento prático do processo de reencontro do Brasil com seu passado de exceção. “A Comissão da Verdade de verdade poderia começar os trabalhos propondo ao Congresso uma lei simples: proibir em todo o território nacional que logradouros públicos sejam batizados com os nomes de pessoas que enxovalharam a democracia e os bons costumes. E alterar as denominações existentes.
Em São Paulo, a situação é vergonhosa. A principal rodovia do Estado chama-se Castello Branco. De tão naturalizada está a questão, que poucos param para pensar no seguinte: aquele foi o chefe da conspiração que acabou com a democracia no Brasil, em 1964”, ponderou para, em seguida, fazer uma comparação da realidade brasileira com o cenário internacional. “Na Itália não existe rua, monumento ou edifício público batizado com o nome de Benito Mussolini ou de outro funcionário graduado do regime fascista. A decisão faz parte de uma luta ideológica que busca extirpar as marcas da intolerância, da brutalidade e da xenofobia que marcaram a vida do país entre 1924 e 1944. Tampouco há na Alemanha uma avenida Adolf Hitler, um aeroporto, um viaduto Joseph Goebbels ou coisas que o valham. Aliás, evitou-se durante décadas batizar crianças com o nome Adolf, por motivos mais ou menos óbvios. Argentina, Chile e Uruguai também não fazem rapapés à memória de responsáveis pelos anos de terror institucionalizado. A cidade de Puerto Stroessner, no Paraguai, teve seu nome mudado para Ciudad Del Este, assim que o ditador foi
deposto, em 1989”, escreveu ele, que é autor de A Venezuela Que se Inventa – Poder, Petróleo e Intriga nos Tempos de Chávez, pela Editora Fundação Perseu Abramo. Maringoni é outro entusiasta dos recentes ‘esculachos’. “Eles comprovam que importante parcela da nossa juventude não se acomodou ou se acovardou. São as melhores ações políticas dos últimos anos. E, quase sempre organizadas por internet, a partir das redes sociais, exibem competência e grau de organização invejáveis. Essa moçada orgulha o País e lava a nossa alma!”, elogia ele que, no entanto, faz apenas uma ressalva ao discurso de Dilma, que emocionou o País. “Há um trecho que ficou pouco claro para mim. É quando ela diz ‘assim como respeito e reverencio os que lutaram pela democracia (...), também reconheço e valorizo pactos políticos que nos levaram à redemocratização”. Se ela estiver falando da Constituição de 1988 e das eleições, ótimo. Espero apenas que ela não esteja se referindo à Anistia de 1979, imposta pela ditadura contra a vontade da oposição da época, pois anistiou também golpistas e torturadores. Aquilo não foi um pacto.”
ENTREVISTA PAULO SILVINO RIBEIRO
“É preciso refletir sobre a efetividade das ações de esculacho e sua capacidade real de promover mudanças” DIVULGAÇÃO
Para melhor compreender os movimentos populares realizados pelos jovens que atuam no Levante Popular da Juventude e na Frente de Esculacho Popular, bem como a utilização das redes sociais para o agendamento e a promoção dos atos públicos de ‘esculacho’, o Jornal da ABI foi buscar auxílio no ambiente acadêmico. Escalado para a missão, Paulo Silvino Ribeiro concedeunos esta entrevista. Vamos, primeiro, à apresentação devida. Ele é formado em Ciências Sociais pela Unicamp, mestre em Sociologia pela Unesp e doutorando, também em Sociologia, pela Unicamp. Além disso, é professor da Faculdade Pitágoras, no campus Jundiaí/SP, e das Faculdades Integradas Campos Salles. Segue-se uma amostra do conteúdo. “Na internet fala-se de tudo. Os jovens fazem piadas sobre tudo e a todo o tempo, mas falam muito pouco de política. Será que não teríamos assunto sobre a vida política do País ou mesmo sobre nosso bairro? O que faz o movimento e a mobilização acontecerem não são os instrumentos de luta, e sim a vontade e o empenho na própria luta. Isso não depende de tecnologia. Obviamente, as redes sociais são fundamentais, mas têm como limite a questão da formação política de base que, em linhas gerais, ainda é deficiente no Brasil”, analisa o professor. Paulo Silvino Ribeiro ainda faz um alerta. Embora saudáveis, legítimas e desejadas, as manifestações dos jovens não podem desconsiderar o sistema político atual e suas representações – tais como os partidos políticos. Num Estado de Direito Democrático é por meio de tais instituições que as mudanças devem ser feitas. Ainda que, diante da maior parte da população, a classe política esteja cada vez mais desacreditada. Jornal da ABI - O Levante Popular da Juventude tem realizado manifestações pelo País, com apontamento público de torturadores do regime militar. Como explicar a mobilização dos jovens para o tema – logo eles, quase sempre acusados de alienados? Afinal, já se passaram quase três décadas desde o restabelecimento da democracia...
Paulo Silvino Ribeiro - As generalizações são sempre complicadas, para o bem ou para o mal. Os que acusam toda juventude de permanecer em uma situação de alienação do mundo desconsideram a importante atuação de organizações como esta, compostas em sua maioria por jovens. Da mesma forma, este movimento por si só, a meu ver, não indica uma mudança significativa na média da ‘visão’ sobre política do jovem brasileiro. As mobilizações deste tipo são promovidas, em geral, por estudantes universitários e, dessa forma, trata-se de um grupo com certa formação política, com senso crítico desenvolvido. E, infelizmente, esta não é a realidade predominante no seio das faculdades e universidades, pois ainda permanece um sentimento de individualismo ou apatia política entre a maioria. Grande parcela dos jovens sequer está no meio acadêmico. Isso é lamentável, pois mesmo com o acesso à informação e ao conhecimento sendo facilitado nos dias de hoje pela internet ou pelas próprias escolas, há entre os jovens quem não saiba nada sobre a ditadura. Logo, esta mobilização vem da sensibilização de só uma parte
desta juventude com a gravidade e importância da pauta política em questão. Eles compreendem que os acontecimentos do passado não estão descolados do presente, nem mesmo dos rumos que pode tomar o futuro; sendo assim é preciso ter mobilização e posicionamento. Isto é, a mobilização em questão se explica pela tomada de consciência por uma parte da juventude, e não por sua maioria. Parte esta engajada e que certamente convoca novos jovens para se juntarem às suas fileiras. Não é algo fácil. Jornal da ABI - Durante muito tempo acreditou-se que o mundo virtual fosse sinônimo de isolamento. Porém, com a proliferação das redes sociais, começamos a observar que ele também contribui para aumentar as possibilidades de mobilização das pessoas no mundo real. Essa é uma tendência irreversível? As redes sociais vieram redefinir o conceito de participação social?
Paulo Silvino Ribeiro - É uma tendência no mundo. Basta, por exemplo, pensarmos na Primavera Árabe. E que, no Brasil, já se fez presente. No entanto, penso que a efetividade de qualquer mecanismo, como as redes sociais, para a luta política perpassa primeiro pela conscientização. O que faz as pessoas ouvirem música pela internet não é a questão do fácil acesso apenas, mas o gosto a priori de cada um. Elas ouvem porque gostam, estão motivadas. O mesmo se pode pensar no tocante à política.
Basta considerarmos quais temáticas predominam entre os usuários do Facebook em seus ‘murais’. Fala-se de tudo. Eles criam piadas sobre tudo e a todo o tempo, mas falam muito pouco de política. Não teríamos assunto sobre a vida política do País ou mesmo sobre nosso bairro? O que faz o movimento e a mobilização acontecerem não são os instrumentos de luta, mas a vontade e o empenho na própria luta. Isso não depende de tecnologia. Lógico, as redes sociais são fundamentais, mas têm como limite a questão de uma formação política de base. Jornal da ABI - Proliferam na internet comunidades do tipo ‘apóio’ ou ‘não apóio’, ou ainda ‘curto’ ou ‘não curto’, absolutamente superficiais. Movimentos como o Levante Popular da Juventude e a Frente do Esculacho Popular abordam questões sérias com maior profundidade e, assim, partiram da mobilização online para ações práticas, feitas nas ruas, em frente aos prédios onde residem torturadores. Por que, nem sempre, ações coordenadas no ambiente online conseguem ganhar ‘corpo real’?
Paulo Silvino Ribeiro - Por vários motivos, e até mesmo pela falta de organização do próprio grupo que tenta encabeçar alguns movimentos. De forma mais objetiva, volto à questão da conscientização e do engajamento, pois penso que este ponto é crucial. Nas redes sociais nós podemos aumentar os contatos, mas não necessariamente aumentamos o interesse dos outros pela política... O compartilhamento de valores pela internet existe, mas se dá de forma superficial. E quando determinado assunto não encontra na sociedade certo ‘lastro’ ou ‘receptividade’, as iniciativas neste sentido tendem a estancar ou acabar. No caso da Primavera Árabe, as redes sociais apenas catalisaram um processo. É preciso que se diga que os jovens egípcios discutiam política pelas ruas de Cairo antes mesmo do levante. Logo, as redes sociais não foram o agente de mobilização de fato, mas sim o que ajudou a organizar a manifestação, viabilizando-a. Neste sentido, a discussão não se limitou ao mundo virtual, mas reverberou na sociedade que possuía uma ‘pré-disposição’ para o levante.
Jornal da ABI - Falando especificamente das ações de ‘esculacho’ de torturadores, o que elas representam neste momento? Elas vêm somar força ou colocam em xeque a eficiência da Comissão da Verdade, recentemente instalada em Brasília?
Paulo Silvino Ribeiro - Não acredito que a eficiência da Comissão da Verdade possa ser colocada em xeque, uma vez que não
apenas seus objetivos estão claros, mas seu trabalho será também avaliado. Como se viu no próprio discurso da Presidente Dilma Rousseff, o entendimento é que não haja revanchismo, mas sim que se possa permitir aos torturados e às suas famílias o acesso à verdade. Logo, ‘dar força’ à Comissão pode ser algo relativo, pois se, por um lado, as manifestações são em nome da justiça, é preciso que a autonomia da Comissão seja preservada. Ela não deve se tornar um instrumento para a promoção da vingança. Jornal da ABI - Qual sua opinião a respeito da Comissão, em especial sobre a sua composição? Acha que ela chegará a algum resultado prático?
Paulo Silvino Ribeiro - Acredito que a Presidente foi muito feliz em suas escolhas, pois uma breve análise do perfil dos integrantes indica serem pessoas não comprometidas direta ou indiretamente com quaisquer ações contra a sociedade, mas ao contrário. Entre juristas, professores e uma psicanalista, acredito que o trabalho da Comissão nestes próximos anos será muito profícuo, desvelando realidades até hoje obscuras. Contudo, o que aqui podemos chamar como resultados práticos (condenação, por exemplo) trata-se de algo mais complexo. E que no meu entendimento não se limita somente às atribuições da Comissão. Na verdade, extrapola suas responsabilidades.
Jornal da ABI - Qual o risco dessas ações de ‘esculacho’ serem interpretadas como um ajuste tardio de contas, revanchismo ou mesmo linchamento público? Pode haver, a partir delas, uma tensão social no País?
Paulo Silvino Ribeiro - Não sei se causaria uma tensão social com certas proporções, mas sim o aumento da polêmica sobre o assunto. A luta por justiça é válida e o movimento ao qual nos referimos é louvável. Mas vale ressaltar que o radicalismo que inflama os ânimos é, sim, sempre perigoso.
Jornal da ABI - Ao menos oficialmente os líderes e coordenadores das ações de ‘esculacho’ não são identificados. Isso pode comprometer parte da legitimidade do movimento?
Paulo Silvino Ribeiro - Acredito que não, e entendo que esta medida serve para garantir certa segurança aos líderes e coordenadores, os quais poderiam ser alvo de retaliação de alguma forma. Logo, compreendo que a legitimidade do movimento não fica prejudicada. O que se deve avaliar sempre em relação aos movimentos sociais é sua efetividade, isto é, sua capacidade de mobilização, de luta, de clareza ideológica, enfim.
Jornal da ABI - Seria exagero afirmar que não existe, atualmente, mecanismo mais adequado para dar ressonância aos anseios da sociedade do que as redes sociais?
Paulo Silvino Ribeiro - Certamente é exagero. Não vejo a internet como a ‘tábua de salvação’ para o debate político. Além disso, as mídias convencionais sempre ocuparam e ocuparão um papel de destaque, pois ainda me parecem os meios de comunicação mais eficazes na formação da opinião pública, principalmente quan-
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do falamos da comunicação de massa, como a televisão e o rádio. Além disso, a idéia do corpo-a-corpo, da discussão entre os amigos, entre a família, na faculdade, no trabalho, foi e ainda é – sob o meu ponto de vista – o mecanismo de melhor mobilização e debate. As redes sociais devem ser vistas como ferramentas muito importantes, diga-se de passagem. Mas estão longe de substituir o debate, o diálogo entre os pares no meio social e o poder de divulgação dos tradicionais meios de comunicação de massa. Jornal da ABI - O senhor afirmou em artigo acadêmico que ‘não poder ou não querer contar com os partidos ou entidades de classe como mecanismos de discussão e mudança política é algo negativo para a própria democracia’. Explique melhor esse conceito. A partir desta premissa, ações isoladas, como os ‘esculachos’, podem representar um tiro no pé de quem busca fortalecer o regime democrático?
Paulo Silvino Ribeiro - O funcionamento da democracia demanda organização para o embate político. Dessa forma demanda também o posicionamento político dos indivíduos por meio de partidos organizados conforme suas ideologias. Há regras e normas que organizam o Estado, a sociedade, logo a organização política. Um regime democrático sem partidos seria inviável. Repito o que já afirmei no artigo citado: dizer que os partidos políticos não servem para a política é algo tão problemático quanto propor o fim do Congresso. A importância dos movimentos sociais quanto à mobilização é inegável. Mas chamo a atenção para refletirmos sobre a efetividade dessas ações, a sua capacidade real de promover mudanças. Os movimentos podem sensibilizar, mas as mudanças reais acontecem apenas por meio do Estado. O contrário disso seria a revolução e o desmonte do Estado, mas então teríamos outra situação na qual as regras não seriam também as mesmas. Logo, neste Estado, neste contexto, é preciso se pensar nas mudanças por meio do
Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com
cumprimento das regras. Daí a necessidade de que um movimento social possa alinhar-se a um partido (ou criar um), para que, por meio do pleito político e do debate dentro de um Estado Democrático e de Direito, possa realizar seu projeto efetivamente, legitimamente. Em uma aula de introdução à política o que se aprende, desde o primeiro momento, é que os partidos políticos são os intermediadores entre a sociedade civil e o Estado. Logo, se os movimentos sociais são resultado das demandas desta mesma sociedade civil, como tais movimentos podem prescindir dos partidos? Jornal da ABI – Um dos recados dados pelos jovens que fazem parte do Levante e da Frente é justamente a descrença nos políticos e nos Governos, em suas diversas esferas. O que falta para que o Poder Público e os políticos ouçam as críticas feitas pela população em geral, nas redes sociais?
Paulo Silvino Ribeiro - Eles ouvem, mas nem sempre estão interessados em dar a devida atenção. Além disso, sabem que a grande massa não tem acesso constante à internet; logo, não seria facilmente cooptada por qualquer debate nas redes. Os
grandes escândalos, assim como algumas reivindicações sociais, só são realmente considerados quando apresentados em cadeia nacional pelas grandes emissoras de televisão e rádio, ou quando se tornam destaque em revistas e jornais. Ainda assim, as notícias na mídia escrita apenas ganham relevância quando divulgadas pela televisão ou pelo rádio. O que importa, para os políticos de modo geral, é uma opinião pública formada pelos meios de comunicação de massa, como a televisão. Assim, poderíamos dizer que eles possuem uma espécie de ‘audição seletiva’... Jornal da ABI - Acredita que a imprensa em geral – rádio, jornais, sites, televisões – também têm perdido esse bonde, isto é, subutilizado a opinião pública presente nas redes sociais, ignorando seu potencial de ‘pautar’ não só matérias, mas também as desejadas transformações sociais e políticas de que o Brasil tanto precisa?
Paulo Silvino Ribeiro - Penso que por conta de interesses comerciais as grades das programações da televisão, por exemplo, estão comprometidas com outros valores que não o debate político. Logo, tais mídias não apenas têm subutilizado a opinião
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Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro
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presente nas redes, mas desconsiderado (ou considerado parcialmente) de modo geral muitos dos principais debates da atualidade. As notícias são tratadas de uma forma fragmentada, as explicações são dadas de modo superficial e, muitas vezes, é possível perceber o caráter tendencioso de algumas afirmações, em maior ou menor grau. Modas como aquela frase de um comercial apresentado na Paraíba – ‘menos Luiza, que está no Canadá’ -- ou a família que cantava um hino cristão no qual aparece o refrão – ‘para nossa alegria!’ -- certamente tiveram maior número de compartilhamentos no Facebook do que qualquer outra notícia ou debate voltado para a política. Logo, televisão, rádio, jornal e revista – principalmente os dois primeiros, mais voltados para as massas – acabam por explorar as redes apenas no que concerne à reprodução da cultura descartável de massa. Retiram dela o que pode ser reaproveitado numa programação de conteúdo massificado. A sociedade precisa passar por um processo de transformação cultural e política, desenvolvendo um senso crítico mais apurado, o que certamente vem pela educação e pelo debate. O gosto da massa não privilegia canais com conteúdo educativo e promove um olhar distante para redes públicas de televisão, como TV Cultura, TV Brasil, TV Escola, entre outras. Prefere o outro tipo esvaziado de conotação política. Eis um problema. Neste processo, a mídia tem um papel fundamental. O que se precisa pensar é até que ponto realmente a mídia promove esta sensibilização, até que ponto se ocupa de sua função de trazer a informação? Os canais por assinatura parecem ter uma programação diferenciada neste sentido. Mas embora o número de assinantes tenha aumentado, eles ainda não estão na casa de todos os brasileiros, restringindo o acesso a este conteúdo. Logo, se na base da formulação dos programas não se tem como meta a maior politização da sociedade, a desconsideração ou consideração parcial dos debates e discussões ocorridos nas redes, podemos afirmar, é apenas uma consequência direta.
Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.
Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.
JORNAL DA ABI • MAIO DEABI 2012 O 378 JORNAL DA NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.
LEMBRANÇA
Ipanema O bairro que conhecemos nos anos 40, seu mar, seus personagens. POR RODOLFO KONDER
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avia o mar, uma imensa e insondável nação submersa, povoada de peixes, mitos e lendas. Enormes arraias flutuavam nas ondas, junto às pedras do Arpoador. Golfinhos gentis e tubarões solitários apareciam de vez em quando, entre cardumes de sardinhas e caravelas. As manhãs eram azuis e as águas, transparentes, para o desespero dos peixes e a alegria dos predadores. Uma tainha se distraía, nadava junto à superfície, brilhava ao sol – e desaparecia no bico de uma ave. “A gaivota determinada mergulha na água verde”, escreveu Paulo Mendes Campos. “Há um tempo para o peixe e um tempo para o pássaro. E dentro e fora do Homem, um tempo eterno de solidão.” Havia a praia, que se estendia do Arpoador até a subida da Avenida Niemeyer, aos pés do Morro dos Dois Irmãos. A areia branca e fina escon-
dia conchas, tatuís e vestígios de barcos naufragados que nos desafiavam com os mistérios das profundezas e do destino. À tarde, sentávamos nas dunas mais altas e olhávamos a maré, as nuvens e as ilhas do Arquipélago das Cagarras, que nos vigiavam do alto mar, manchadas e imperturbáveis. O sol descia então lentamente, diante do nosso deslumbrado silêncio. O céu parecia um quadro tachista. A noite chegava à praia no ruído discreto das marolas, trazendo para a areia os tristes vestígios cansados do dia. Havia o bairro, que na verdade começava no Arpoador, crescia, internamente, a partir da Praça General Osório, avançava pela Visconde de Pirajá, chegava até a Lagoa Rodrigo de Freitas e terminava no Bar Vinte, logo depois do Cine Astória, onde o bonde e o vento faziam a curva. Algumas ruas ainda eram de terra. A Nascimento
Silva era asfaltada, mas só a partir da Farme de Amoedo. Morei ali, na casa de número 87. Na esquina de Barão da Torre e Farme de Amoedo, “seu” Afrânio tinha um açougue. Do outro lado da rua, ficava a padaria do “seu” Manoel, pai do Paulo “Gordo”. Um quarteirão adiante, na Montenegro, um botequim onde comíamos queijo e goiabada – “Romeu e Julieta”. Logo em seguida, a escola de capoeira do Sinhozinho e a Praça da Paz, em frente à igreja. Havia a gente do bairro. Primeiro, os meninos sem sobrenome que moravam em cortiços e brigavam de gilete na mão. Joaquim, o Quim, tinha um quisto supurado na bochecha esquerda, por onde expelia a fumaça do cigarro, se lhe dessem 500 réis. Depois, chegaram os amigos de classe média – Renato Cláudio Alves Ribeiro, Paulo Saboya, Carlos Roberto Estrella, Heitor Simões de Oliveira, Luis Fernando Pinto da Veiga. Passávamos os fins de semana na praia e jogávamos sinuca no Bar do Zé, no Posto 6, em Copacabana. Vieram também as meninas, as namoradas, as primeiras paixões – Aída, Lucy, Wilma. Bebíamos todos no Veloso, no Lagoa e no Jangadeiros. Freqüentávamos os Cinemas Ipanema, Pirajá e Astória. Renato Cláudio era o mais corajoso do grupo. Na noite em que o Saboya mexeu com a mulher de um halterofilista, ele foi o único a enfrentar os amigos do ofendido, que voltaram em sua companhia até o Bar Gardênia, onde Renato e Saboya bebiam cerveja com Satamini e João de Deus. Saboya fugiu de táxi, Satamini se escondeu na cozinha do restaurante e João de Deus correu para o Cine Ipanema, em frente à Praça General Osório. Renato, ao contrário, avançou sobre os inimigos – e apanhou a noite inteira. Estrella era ousado. Certa manhã, nadou quilômetros, com Carlos Manhães, numa prancha, até às Ilhas Cagarras. Na volta à Praia de Ipanema, tiveram de se orientar pelas luzes, porque a noite caiu sobre eles ainda em pleno mar. Quase morreram. Meses depois, Manhães tentou repetir a façanha, com o irmão do Saboya, João Carlos. Ambos desapareceram no mar. Hoje com mais de cem anos, Ipanema possui memórias miúdas e fantasmas ilustres, como Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Vinícius de Morais, Tom Jobim. Leandro Konder mudou-se para o Leblon. Ivan Junqueira também já não mora mais ali. Mas a arborizada Ipanema ainda desafia o tempo, deslumbrantemente nua e discretamente orgulhosa, como era nos anos 40, quando a descobrimos e nos apaixonamos por ela. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
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ACONTECEU NA ABI
Corpo social renova a confiança na Chapa Prudente de Morais Pela oitava eleição consecutiva, associados reafirmam seu apoio ao trabalho desenvolvido desde 2004. Pela oitava eleição consecutiva desde 2004, a Chapa Prudente de Morais ganhou a aprovação dos associados da ABI, que renovaram o seu voto de confiança no trabalho que o grupo liderado pelo Presidente Maurício Azêdo vem desempenhando no comando da entidade. O referendo se consumou com a votação realizada em 27 de abril para escolha de um terço do Conselho Deliberativo com mandato para o triênio 2012-2015 e para a totalidade do Conselho Fiscal para o exercício social 2012/2013. Como vem acontecendo nos últimos pleitos, a eleição apresentou um quórum expressivo, com 134 votantes. Desse total, 125 eleitores votaram nos candidatos ao Conselho Deliberativo e 133 nos indicados para o Conselho Fiscal. Cumprimentado pelos conselheiros e associados que permaneceram na ABI até o momento da abertura dos envelopes e da contagem final dos votos, o Presidente expôs suas impressões sobre esse momento vitorioso da atual gestão. Ele chamou a atenção para a elevação do número de eleitores, que, segundo ele, reflete o acerto da decisão da ABI, em assembléia-geral, de estender o direito de voto aos sócios da categoria Colaborador: “Essa decisão deve ter tido uma influência positiva no número de votantes desta eleição. E há um significado muito especial na presença desses companheiros, pois foi uma eleição com chapa única, o que não constituía grande atrativo, mas mesmo assim houve um acréscimo do número de eleitores, o que é muito confortante para a Diretoria da ABI.” A Comissão Eleitoral foi composta pelos associados e Conselheiros Sérgio Caldieri, seu Presidente, Ilma Martins da Silva e Carlos Alberto Marques Rodrigues, mesários e escrutinadores, que anunciaram os números da votação por volta das 21 horas. Como estabelecido no edital de convocação da assembléia-geral, a votação se iniciou às 10 horas e se estendeu até às 20, quando o associado Luiz Carlos Chesther de Oliveira, cumprindo o ritual que observa há vários anos, depositou o último voto na urna instalada no 9º andar do Edifício Herbert Moses. Honrando um legado Membro do Conselho Consultivo da Casa, o associado Teixeira Heizer evocou o legado de lutas pela liberdade e pela democracia que grandes nomes do jornalismo deixaram para a ABI, o qual tem tido continuidade com a atuação da Chapa Prudente de Morais: “Essa chapa vem sucedendo a uma seqüência de ciclos excepcionais, que são 12
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FOTOS DE CARLOS DI PAOLA
muito para a categoria dos jornalistas: “Maurício tem feito excelente trabalho. O que falta agora é mais jornalistas virem para a ABI participar de alguma forma, porque aqui é a Casa do Jornalista, o ambiente onde o jornalista tem que estar presente”, disse o subeditor de Cidade de O Globo.
Sérgio Cabral, Tarcísio Holanda e Maurício Azêdo: evocação da tentativa de resistência ao golpe em 1º de abril de 1964. Abaixo, Domingos Meirelles, reeleito membro titular do Conselho.
sil”, acrescentando que a atual Diretoria está fazendo um trabalho de recuperação espetacular à frente da Casa: “Tivemos problemas administrativos no passado e o Maurício, que sempre foi um homem de trabalho, não somente na ABI, mas em toda a sua trajetória no jornalismo, apesar da idade, continua fazendo, gradativamente, um grande trabalho de recuperação da ABI”, disse Confete. Jorge Antônio Barros disse que se sentia muito feliz de poder contribuir com o seu voto para a Chapa Prudente de Morais, que faz uma gestão que tem contribuído favoráveis inteiramente à liberdade e à democracia, que começou com o Dr. Prudente, continuou com Barbosa Lima Sobrinho e chega ao Maurício Azêdo”, afirmou. O que falta: jovens Jorge Antônio Barros, de O Globo, e Rubem Confete, da Rádio Nacional, convergem na opinião de que a categoria de jornalistas precisa se aproximar mais da Casa, especialmente os mais jovens, para que tenham a oportunidade de conhecer melhor a História da entidade, que completou 104 anos no dia 7 de abril. Confete sugere que a ABI se dedique agora a fazer um trabalho que atraia o jovem jornalista, para que esse segmento profissional possa entender a força da Casa, que precisa voltar a conquistar o vigor do passado, que em parte se perdeu. “Mas eu tenho certeza de que o Maurício vai recuperar tudo isso”, declarou Rubem Confete. Ele classifica a ABI como um marco na História da Imprensa brasileira, “uma grande referência do jornalismo do Bra-
Os eleitos CO NS E LH O DE LI B E R ATIV O LHO LIB TIVO Efetivos: Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge de Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório Suplentes: Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e Wilson Fadul Filho.
C ONSELHO FISCAL Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha. Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.
“Nomes indiscutíveis” A jornalista e bailarina Ruth Lima, como sempre entusiasmada com o trabalho que vem sendo desempenhado pela atual Diretoria, disse que só tem boas referências sobre a Chapa Prudente de Morais e seu líder, que considera uma pessoa inteligente que a deixa muito contente pelo seu trabalho. Saudado efusivamente pelo Presidente Maurício Azêdo na sua chegada, o jornalista, pesquisador e escritor Sérgio Cabral disse por que dedica o seu voto à Chapa Prudente de Morais e ao Presidente da ABI, Maurício Azêdo: “A Chapa Prudente de Morais tem dois nomes que na minha cabeça são indiscutíveis, irrefutáveis, que são o próprio Prudente de Morais e o Maurício Azêdo, que eu considero um dos melhores seres humanos que conheci em toda a minha vida”, declarou. Segundo Cabral, a melhor coisa que aconteceu para os jornalistas foi ter Maurício Azêdo como Presidente da ABI: “Eu fico tranqüilo porque sei que aqui há um homem que trabalha muito, como sempre trabalhou, e é extremamente honrado. Melhor do que ele não há”, disse Cabral. Marcos: sem bajulação Quem também compareceu à eleição foi o jornalista e escritor Marcos de Castro, que este ano, junto com o colega João Máximo, conquistou a láurea principal do Prêmio João Saldanha de Jornalismo Esportivo, promovido pela Associação dos Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro-Acerj e apoiado pela ABI. Eximindo Maurício Azêdo de qualquer responsabilidade pela atual configuração do processo eleitoral, Marcos de Castro disse lamentar que a eleição tivesse apenas uma chapa única, porque entende que votação tem mais graça e mais espírito participativo quando são dois concorrentes: “Mas acho que se houvesse mais chapas concorrendo, o nosso Azêdo tem feito um trabalho tão bom na Presidência da ABI que ganharia de qualquer maneira. Isso é um depoimento sincero, não existe nenhum intuito bajulatório nas minhas palavras, porque sou amigo do Maurício há 40 anos, então não faz sentido existir bajulação entre nós dois”, disse Marcos.
De volta à ABI depois de longo período de afastamento, Fichel Davit Chargel, que ocupou diferentes Diretorias da Casa a partir dos anos 1970 (Diretoria de Sede, Diretoria das Atividades Culturais, Diretoria Administrativa), falou sobre o seu retorno à entidade: “Uma eleição é sempre importante na vida de todas as pessoas. Votar é um ato de cidadania, principalmente aqui na ABI, para onde estou retornando após seis anos de ausência. Estou muito feliz por isto.” O Vice-Presidente Tarcísio Holanda, que veio de Brasília, onde está radicado há mais de 30 anos, especialmente para votar, explicou o significado da eleição. Lembrou do tempo em que começou a freqüentar a sede da ABI e da sua relação com Maurício Azêdo: “Esta eleição vai recompor um terço de titulares e suplentes do Conselho Deliberativo da ABI e alguns colegas serão reconduzidos. Minha relação com a ABI vem de longa data. Participei, ao lado de Maurício Azêdo e de outros companheiros, como Sérgio Cabral, Fichel Davit e Ivo Cardoso, da reunião realizada nesta Casa em l de abril de 1964 contra o golpe militar. Daqui saímos para as ruas, enfrentando tiros, em defesa da democracia. São mais de 40 anos de luta”, lembrou Tarcísio.
Jesus Chediak, Alcyr Cavalcanti e Arthur Poerner confraternizam no dia da votação. Geraldo Pereira dos Santos veio de Itapeva, São Paulo, especialmente para votar. Cecília Costa, reeleita para o Conselho, eufórica com o lançamento de seu livro Diário Carioca - O Jornal Que Mudou a Imprensa Brasileira.
Pery e Caldieri reeleitos
Os que vieram votar A Adail José de Paula Adolfo Martins de Oliveira Afonso M. de A. Faria Alcyr Mesquita Cavalcanti Alfredo Aurélio de Belmont Alfredo Enio Duarte Altenir Santos Rodrigues Ana Arruda Callado Antonieta Vieira dos Santos Antônio Carlos F. Gabriel Antônio Modesto da Silveira Antônio Mota Carneiro Antonio Nery Argemiro do Carmo L. do Nascimento Arion Silveira Marinho Arthur José Poerner
Genésio Pereira dos Santos Geraldo Pereira dos Santos Gerdal Renner dos Santos Germando de Oliveira Gonçalves Getúlio Gama Gilberto Francisco Magalhães
Laura Sales Porfino Leda Acquarone Sá Ledy Mendes Gonzalez Lênin Novaes de Araújo Lóris Baena Cunha Lucy Mery C. M. Carneiro Luiz Carlos Chesther de Oliveira Luiz Carlos de Souza Luiz Edmundo Continentino Porto Luiz Eduardo Souto Aguiar Luiz Jorge de Azevedo Lobo Luiz Sérgio Caldieri
H
M
Héctor Eliseo Escobar Henrique Miranda Sá Neto Hithler Teixeira Heizer
Moacyr Andrade Manoel Pacheco dos Santos Manuel Epelbaum Márcia da Silva Guimarães Marcos Alexandre de Castro Marcus Antônio M. de Miranda Maria B. Costa Maria Elizabeth Maria Ignez Duque Estrada Bastos Maria L. Silva Martins Maria Rita Cruz Nogueira Mário Antônio Caruso Mário Augusto Jakobskind Maurílio de Souza Mauro Rodrigues Rocha Filho Milton Ximenes Lima Moacyr Bahia de Lacerda Moisés Celeman
Francisco de A. O. da Cruz Francisco Paula Freitas Francisco Silva Canavarro Froim Icek Baumwol
G
B
I
Benício Neiva de Medeiros
Ilma Martins da Silva Irene Cristina Gurgel do Amaral Israel Manoel da Paixão
C Carlos Alberto Marques Rodrigues Carlos Alberto Oliveira dos Santos Carlos Augusto de Melo Aragão Carlos de Sá Bezerra Carlos João Di Paola Celso Baltazar
D Dácio Gomes Malta Denize Legrond Domingos João Meirelles
E Edelson David Pereira Ely Moreira da Silva Emília da Conceição P. Almeida Evaldo Alves de Carvalho Everaldo Lima D’Alvarez
F Fernando Figueiredo Milfont Fernando João Abelha Sales Fichel Davit Chargel
Pery Cotta, reeleito membro titular do Conselho Deliberativo, que em 15 de maio o reconduziu, mais uma vez, por aclamação, ao cargo de Presidente de sua Mesa Diretora.
J Jarbas Domingos Vaz Jerônimo Alberto de Carvalho Jesus Chediak Jesus Edgar Mendes Catoria Jesus Soares Antunes João Carlos Silva Cardoso João da Silva Leite João Di Paola Jorge Antônio Barros da Costa Jorge Ribeiro Silva Jorge Saldanha de Araújo José Alves Pinheiro Júnior José Cristino Costa Ferreira José de Ribamar da C. Veloso José Ernesto M. Vianna José Manuel de C. Mesquita José Pereira da Silva José Tarcísio Saboya Holanda
N Nacif Elias Hidd Sobrinho Nilo Marques Braga Nilson Nobre de Almeida Nivaldo Pereira
Paulo Apulcro Fonseca Pery de Araújo Cotta Prentice Mendonça de Morais
R Robson Waldhelm Rogério Marques Gomes Ronaldo David Aguinaga Ronaldo de Moura Reis Rosangela Magalhães de Amorim Rubem dos Santos Rubem Mauro Machado Ruth Pereira Lima
S Sérgio Cabral Santos Sérgio da Graça Malta Sérgio Moura Bicca Solânio Barbosa Suely de Assis Rodopiano
T Teresa Cristina F. Freire Thales José Maciel Bento
U Ubirajara M. Roulien Ulysses Cláudio Lonzetti
V Valtair de J. Almeida Vanderlei T. Bibá Venilton Pereira dos Santos Vitor Mário Iorio
W Wilson Fadul Filho
Y O
Yaldo Barbalho Lopes
Orpheu Santos Salles Oscar Maurício de Lima Azêdo
Z
L
P
Zilda Cosme Ferreira Zilmar Borges Basílio
Laerte Costa Moraes Gomes
Patrícia dos Santos Rodrigues
Reunido no 15 de maio na sessão extraordinária de posse dos eleitos na votação de 27 de abril, o Conselho Deliberativo da ABI reelegeu por aclamação os jornalistas Pery Cotta para sua presidência e Sérgio Caldieri para o cargo de 1º Secretário. Para 2º Secretário foi eleito o associado José Pereira da Silva (Pereirinha), que já vinha exercendo a função desde o princípio do ano. O Conselho reelegeu também os mebros de suas Comissões Auxiliares, que ficaram assim constituídas: Comissão de Sindicância: Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. Comissão de Ética dos Meios de Comunicação: Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos: Alcyr Cavalcanti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Wilson Fadul Filho e Yacy Nunes. Comissão Diretora da Diretoria de Assistência Social: Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. As duas eleições ocorreram após a posse dos membros efetivos e suplentes do Conselho, eleitos para o mandato 2012-2015, e dos membros do Conselho Fiscal, eleitos para o exercício social 20122013. O Conselho Fiscal é integrado pelos associados Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chester de Oliveira e Manolo Epelbaum. JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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CLÁUDIA SOUZA
em 1811. Com isso, ficamos conhecidos como pessoas interessadas em levantar a história da tipografia na Bahia. Fui, então, convidada a escrever um dos quatro ensaios que compõem o segundo volume da edição As Variedades, a primeira revista publicada no Brasil, justamente por Silva Serva. Jornal da ABI - Em que circunstâncias Silva Serva começou a se dedicar à tipografia?
Cybelle - A tipografia no Brasil tem início com a chegada de Dom João, e a Impressão Régia, com o jornal A Gazeta do Rio de Janeiro, em 1808. Três anos depois, em 1811, Silva Serva abriu um estabelecimento tipográfico na Bahia e fundou o jornal A Idade D’Ouro do Brasil. O nome tem a ver com aquela efervescência cultural, histórica e econômica, e o objetivo era divulgar o conhecimento em uma sociedade que levou 300 anos sem o consentimento de Portugal para a instalação de tipografias.
HISTÓRIA
O acidentado começo da primeira revista cultural criada no Brasil, há exatos dois séculos A historiadora Cybelle de Ipanema expõe a penosa trajetória de Silva Serva, um português que criou a pioneira publicação entre nós. P OR C LÁUDIA S OUZA
A pesquisadora e escritora Cybelle de Ipanema, sócia da ABI, dedica-se há mais de 60 anos aos estudos de imprensa, comunicação e história regional, iniciados com Marcello de Ipanema, seu marido, nos bancos escolares da Faculdade Nacional de Filosofia, da antiga Universidade do Brasil. Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Eco/UFRJ), graduada em Geografia e História, Cybelle está participando de debates e palestras sobre As Variedades ou Ensaios de Literatura, título da primeira revista literária brasileira, lançada na Bahia, em 1812, e que acaba de completar 200 anos. Em comemoração ao bicentenário, o Governo do Estado da Bahia, em parceria com a Fundação Pedro Calmon, a Associação Baiana de Imprensa, a Empresa Gráfica da Bahia-EGBA, o Núcleo de Estudos de História de Impressos da Bahia e a Universidade Federal da Bahia promoveram um evento em janeiro de 2012, quando foi lançado o volume original de As Variedades, em edição fac-si14
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milar, em conjunto com o volume Sobre a Revista As Variedades: Ensaios, com textos de Cybelle de Ipanema, Hélio Viana, Luís Guilherme Pontes Tavares e Renato Berbert de Castro, grandes estudiosos da imprensa no Brasil, em especial da revista As Variedades. Autora, com Marcello de Ipanema, das obras História da Comunicação; Imprensa Fluminense: Ensaios e Trajetos; Catálogo de Periódicos de Niterói; A Tipografia na Bahia: Documentos Sobre Suas Origens e o Empresário Silva Serva; Instrumentação do Reverbero Constitucional Fluminense; Silva Porto: Livreiro na Corte de D. João, Editor na Independência, agraciado com o Prêmio 8º Conde dos Arcos, Vice-Rei do Brasil (2008); D. Pedro I: Proclamações, Cartas e Artigos, com Pedro Calmon; História da Ilha do Governador e A Tipografia em São Paulo: Contribuição à História de Suas Origens, Cybelle concedeu ao Jornal da ABI entrevista em que detalhou a importância das Variedades para a História da Imprensa no País.
Jornal da ABI - Como surgiu a idéia de escrever sobre o tema imprensa?
Cybelle - Ao longo de toda a minha vida intelectual trabalhei com meu marido, Marcello de Ipanema, que, infelizmente, morreu há 19 anos. Contudo, continuei publicando pesquisas nossas antigas. Marcello e eu fomos colegas de faculdade. Ele iniciou os estudos de imprensa ainda garoto, freqüentando a Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional. Aprendi com ele a também gostar de imprensa. Recolhemos uma quantidade imensa de pesquisas e publicamos muitos livros juntos. Tenho publicado coisas depois da morte dele a partir desses estudos e também de pesquisas minhas. Essa vida de pesquisadora eu não pretendo abandonar nunca. Jornal da ABI- Quando vocês começaram a escrever sobre a tipografia na Bahia?
Cybelle - Em 1977, Marcelo e eu escrevemos o livro A Tipografia na Bahia: Documentos Sobre Suas Origens e o Empresário Silva Serva. Manoel Antônio da Silva Serva foi o primeiro editor na Bahia, em 1811. Ele fabricou prelo para evitar a importação, porque só havia prelos na Europa, e também tentou fabricar tipos para evitar o mesmo problema. Consegui que a Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba) fizesse a segunda edição deste livro em 2010, às vésperas dos 200 anos da tipografia de Silva Serva, que foi fundada
Jornal da ABI - Como surgiu o interesse de Silva Serva em editar uma revista?
Cybelle - Ele não se conformou apenas com o jornal. Em 1812, Silva Serva lançou a revista As Variedades ou Ensaios de Literatura. Em comemoração ao bicentenário, em janeiro de 2012, com lançamento na Biblioteca Pública da Bahia, a Fundação Pedro Calmon, na Bahia, editou fac-similarmente a revista As Variedades e o conjunto de quatro ensaios de Renato Berbert de Castro, bibliófilo baiano que levantou as publicações de Silva Serva em todo lugar; o historiador Hélio Viana, um grande estudioso, membro ilustre do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro-IHGB. Vale lembrar que Hélio Viana foi o primeiro a divulgar a revista As Variedades. Fui aluna dele na Faculdade Nacional de Filosofia, na cadeira de História do Brasil. Francisco Marques dos Santos, outro membro do IHGB, emprestou para Hélio Viana publicações antigas do início da tipografia no Brasil, entre elas um exemplar de As Variedades, que Francisco comprou em sebo no século 20, tendo encontrado o material por acaso. Hélio estudou o assunto e lançou a aplaudida obra Contribuição à História da Imprensa Brasileira. Luis Guilherme Ponte Tavares, que é também autor de um dos ensaios, tem diversos inscritos sobre a tipografia na Bahia, Partiu de Luis Guilherme o convite para que eu integrasse esta coletânea.
Jornal da ABI - Como transcorreu a trajetória de Silva Serva no Brasil?
Cybelle - Manoel Antônio da Silva Serva, português de Trás dos Montes, veio de Portugal para a Bahia e se estabeleceu tendo várias atividades, mas o seu grande interesse foi a arte tipográfica e a divulgação do conhecimento. Ele começou em 1811, vindo ao Rio e seguindo para a Inglaterra para tratar dos negócios relativos à tipografia. Era proprietário de uma loja de venda de livros no Rio de Janeiro. Ele morreu em 1819, mas a viúva, os filhos e os genros continuaram com a tipografia na Bahia até os anos 1840. Silva Serva foi o grande incentivador da divulgação da cultura na cidade de São Salvador da Bahia. Esta missão era parte da vida das pessoas que imprimiam livros.
to, o Conde dos Arcos, que ocupara o cargo de Vice-Rei no Rio de Janeiro e foi indicado em 1810, para a função de Governador da Capitania da Bahia. Então, aí, felizmente, aconteceu uma conjugação. O Conde dos Arcos era também um homem ilustrado. Silva Serva apelou para ele, pois não podia conversar diretamente com o rei, o príncipe-regente que estava aqui no Rio de Janeiro. Foi através do governador que Silva Serva fez a petição para Dom João, aqui no Rio de Janeiro, solicitando autorização para instalar a tipografia na Bahia. O surgimento da tipografia de Silva Serva deve-se ao patrocínio, ao apadrinhamento do Conde dos Arcos.
Jornal da ABI - Quem era o redator de As Variedades?
Jornal da ABI - Durante quanto tempo o jornal A Idade D’Ouro do Brasil e a revista As Variedades circularam?
Cybelle - Diogo Soares da Silva de Bivar, natural da Vila de Abranches, província da Extremadura, em Portugal, filho de pai médico, foi ilustre e deixou descendência nas áreas de Medicina, Letras e Jornalismo. Formado em Direito em Coimbra, fundou a Sociedade Literária Tiburciana e exerceu cargos em Portugal. Ele era um homem de projeção, mas foi preso e condenado a degredo perpétuo. Jornal da ABI - Qual o motivo?
Cybelle - Na ocupação francesa do país, Diogo Soares da Silva de Bivar hospedou o General Junot em Abranches. Foi preso porque agradou os franceses que invadiram Portugal. Diogo recebeu Junot em sua cidade natal , fez mesuras para o General, que inclusive lhe deu um cargo. Por isso as autoridades portuguesas mandaram prendê-lo. Ele foi processado e condenado a degredo perpétuo em Rios de Sena (Moçambique), na África. Quando o navio atracou na Bahia, Diogo conseguiu a proteção do Conde dos Arcos para cumprir a pena no Forte de São Pedro, em Salvador. Não se sabe bem as circunstâncias que envolveram este acordo. Diogo só foi liberado por Dom João em 1821. No período em que coadjuvou Silva Serva como produtor de matérias intelectuais, redigindo A Idade D’Ouro e As Variedades, Diogo estava preso. Ele escrevia e Silva Serva editava. Jornal da ABI - Assim como Diogo Soares da Silva de Bivar, Silva Serva também obteve a ajuda do Conde dos Arcos?
Cybelle - Sim. Silva Serva teve como padrinho o governador da Capitania da Bahia. Naquele tempo se chamava capitania. A capitania da Bahia foi governada por Dom Marcos de Noronha e Bri-
Cybelle - O jornal durou de 1811 a 1823, e a revista só lançou dois números, sempre atrasados. Prometeu sair em janeiro de 1812, mas só saiu em fevereiro. Foi previsto que sairiam outros números em fevereiro e em março, mas como o Diogo ficou doente, os números dois e três da revista só saíram em julho. E acabou. Jornal da ABI - Quais eram os temas abordados pela revista?
Cybelle - Assuntos culturais que pudessem interessar a sociedade. O primeiro número circulou com 30 páginas, com artigos sobre casamento, navegação, instrução militar, ciências, costumes e anedotas. O segundo número, com 67 páginas, apresentou grandes artigos sobre a filosofia antiga. Uma matéria muito vasta e importante dividida por escolas e seitas. O conteúdo da pauta demonstrava o grau de ilustração do redator, no caso, Diogo Soares da Silva de Bivar. Jornal da ABI - Os textos eram assinados? Quem pautava as matérias?
Cybelle - Naquele tempo os textos não eram assinados. Os jornais escondiam os redatores. Para descobrir, somente através de terceiros. Não é como hoje, em que existe o expediente do jornal. Naquela época só descobriria quem era o redator se desse para perceber o estilo do texto, o nível cultural. Quem naquele momento tinha ilustração suficiente para fazer uma matéria enorme sobre filosofia antiga, como escreveu Diogo? Mas ele era um advogado formado em Coimbra. Foi, inclusive, orador do Instituto Geográfico Brasileiro e tem produção bibliográfica, pareceres.
Jornal da ABI - Como os veículos se sustentavam financeiramente?
Cybelle - O editor do veículo bancava e vendia o jornal a cerca de 560 réis, uma quantia ínfima. Não sabemos exatamente qual seria o valor correspondente nos dias de hoje. Os jornais também trabalhavam com assinaturas. Isto vigorou até meados do século 19. Até os anos 18501860 os jornais viviam basicamente das assinaturas e da venda avulsa. Atualmente, a receita vem muito mais da publicidade. Contudo, nós tivemos periódicos nos quais os jornalistas tinham orgulho de não ter anúncio. Evaristo da Veiga, grande jornalista do século 19, do jornal Aurora Fluminense, era um exemplo desta postura. Ele sobrevivia com a verba dos assinantes e da venda avulsa. Silva Serva fazia o jornal para vender e revertia a verba para o próprio estabelecimento, mas a sociedade da época reunia poucos letrados. Havia muitos escravos na cidade de Salvador, no Rio de Janeiro, em São Luís e outros lugares. O número de escravos muitas vezes superava 50% do total da população. Descontando os escravos, as mulheres, que eram segregadas, os analfabetos e as crianças, sobravam os homens, e entre estes, os letrados. Daí o baixo número de leitores. Jornal da ABI - Que diferenças caracterizavam os jornais e revistas daquela época?
Cybelle - O tamanho da revista era menor. A mancha tipográfica, que ocupava a composição, tinha uns 12 centímetros. O jornal saía duas vezes por semana e procurava oferecer um número maior de matérias, com tradução de textos de jornais europeus. O grande objetivo era a ilustração, a consolidação da cultura na população da cidade. As matérias eram corridas, não tinham uma diagramação bonita, mas este era o padrão da imprensa, que estava só começando. Em 1808 você tinha a Gazeta do Rio de Janeiro, que permaneceu sozinha até 1821. Em 1811, a Idade D’Ouro do Brasil, em Salvador; em 1812, As Variedades; em 1813, a segunda revista brasileira que é O Patriota, no Rio de Janeiro. O padrão era o mesmo do início da imprensa. A mancha tipográfica muito maciça, sem o apelo do visual, da imagem. O objetivo era estimular a leitura e a formação de uma cultura pessoal.
Jornal da ABI - Qual a importância de As Variedades para a História da Imprensa no Brasil?
Cybelle- Podemos destacar o seu pioneirismo. Ela foi uma re-
“As Variedades representa uma contribuição pequena no sentido material, mas enorme pela iniciativa de alavancar a cultura na sociedade.” vista pequena em formato, pequena em extensão e conteúdo, mas teve o pioneirismo de mostrar para a sociedade que era viável. Infelizmente, não conseguiu continuar, possivelmente porque a tiragem e a aceitação não foram suficientes. Embora tenha saído em 1812, a capa da revista traz a data de 1814. As pessoas admitem que, para escoar material, eles tenham feito uma capa em 1814 para vender os exemplares que sobraram de 1812. As Variedades representa uma contribuição pequena no sentido material, mas enorme pela iniciativa de alavancar a cultura na sociedade. Depois da morte de meu marido, Marcello de Ipanema, consegui que a Universidade Federal da Bahia fizesse a segunda edição do livro sobre Silva Serva, revista e aumentada. Tive chance de oferecer subsídios de mais pesquisas e incluir estudos referentes à projeção de Manoel Joaquim da Silva Porto, que foi um livreiro no Rio de Janeiro, conterrâneo de Silva Serva. Pude ampliar porque publiquei um livro sobre de Manoel Joaquim da Silva Porto, com pesquisas nossas antigas. Peguei o material, dei uma organicidade na estrutura de livro e uma editora do Rio de Janeiro publicou. Ganhei com ele o Prêmio 8º Conde dos Arcos, ViceRei do Brasil Dom Marcos Noronha e Brito, promovido pela Academia Portuguesa de História, da qual sou membro. Jornal da ABI - A que acervos a senhora recorreu para escrever sobre os primórdios da imprensa no Brasil?
Cybelle - A maior parte da documentação para fazer o livro, em 1977, foi localizada no Ar-
quivo Nacional, mas conseguimos muito material também na Biblioteca Nacional e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Há muito material nos acervos, mas é preciso haver interesse de alguém para localizar os documentos. O IHGB, por exemplo, tem um arquivo fabuloso, documentos em quantidade. Muitos já têm sido revelados, mas quantos outros ainda estão por revelar? Pesquisa dá trabalho. Você tem despesas. Enquanto você está pesquisando, não produz para ganhar dinheiro. Sem falar no desgaste mental e no tempo despendido para redigir o material. Fazer um livro não é fácil. Felizmente, há muita gente pesquisando e muita coisa adormecida esperando o interesse das pessoas. Hoje em dia há os cursos de pós-graduação, que surgiram por aqui nas décadas de 1960 e 1970. Há um número maior de pessoas interessadas em trabalhar como assistente de pesquisa, como estagiário. Eu e Marcello fazíamos todas as pesquisas sozinhos. Pagávamos algumas pessoas apenas para nos ajudar a datilografar, mas o dinheiro era tirado do nosso bolso. Jornal da ABI - Em relação ao atual estágio da imprensa, que diferenças a senhora apontaria?
Cybelle - Ao longo de 200 anos, a imprensa se modificou muito, até mesmo pelo aspecto virtual, mas mesmo sem pensarmos na internet foram grandes os avanços registrados ao longo do século 20, especialmente nas técnicas. Posso citar a grande fase que tivemos das revistas ilustradas em litografia. Os artistas do traço, como Angelo Agostini, faziam os desenhos na pedra litográfica para imprimir. O que temos a observar até hoje é o progresso, não vemos retrocesso. Vemos o progresso com a aquisição de técnicas cada vez mais aperfeiçoadas, com a incorporação de jornalistas cada vez mais capacitados, cada vez mais brilhantes, estudiosos, formados, com uma cultura vasta. Só temos tido, felizmente, a imprensa em ascensão. Quanta gente teve medo que o jornal morresse? Isto não é verdade. A revista não vai morrer e o jornal também não vai morrer. O que virá ninguém sabe, porque as modificações acontecem a cada minuto, mas dão a idéia de que o meio jornal continuará progressista, com grandes jornalistas, grandes vultos, grandes cabeças pensantes, e as revistas cada vez mais especializadas, não se confundindo com o jornal, que é imediatista, precisa estar na boca do forno. Jornal e revista vão continuar vivos com a toda a sua pujança.
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FRANCISCO UCHA
Câmara de Niterói presta homenagem a Pinheiro Júnior Autor de Última Hora (Como Ela Era) recebe a Medalha José Cândido de Carvalho.
Alberto Dines durante entrevista que concedeu ao Jornal da ABI, no início de 2012.
TRÉPLICA
Dines responde a Boris Casoy Criador do Observatório da Imprensa conta episódios do seu relacionamento com o antigo editor da Folha de S. Paulo.
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que a categoria acatou o saneamento foi a escolha do meu nome para presidir a assembléia do Sindicato (junto com os companheiros Domingos Meirelles e Fichel Davit) que afastou da presidência o mesmo José Machado. Boris Casoy foi chamado para reassumir o comando da Redação da Folha de S.Paulo depois de 19 de setembro de 1977, quando o Governo Geisel, pressionado pelos radicais, obrigou o jornal a recuar. Foi um erro dos acionistas da Folha. Casoy não tinha condições intelectuais e morais para dirigir o jornal que iniciara o processo de distensão na imprensa. O que seria um recuo tático equivaleu a uma vergonhosa capitulação: Boris não era do esquema Golbery, mas elemento da linha-dura. Até então meus artigos na página dois eram publicados sem qualquer reparo. Ao reassumir, começaram os vetos culminando com a censura ao artigo em que denunciei o então Governador Paulo Maluf como responsável pela violenta repressão aos grevistas do ABC em maio de 1980. Se foi Casoy ou um preposto quem me demitiu por telefone é irrelevante: a violência foi igual. Caso tenha sido o preposto, acrescentem-se ao episódio as devidas doses de covardia e pusilanimidade. Poucas semanas depois da demissão, fui procurado em minha casa no Rio por um membro da família Frias com o convite formal para retornar ao jornal. Recusei, envolvido com outro projeto. Ficou claro: Boris exorbitara. Tal como o dileto amigo e companheiro de armas, Cláudio Marques. A tentativa de jogar a imundice que carrega na alma na minha história familiar não é caso isolado. Foi com uma canalhice igual que Boris derrotou FHC em 1985 num debate televisivo ao perguntar ao candidato a prefeito de São Paulo se acreditava em Deus. Já deveria estar a serviço de outra Gestapo, a religiosa, que hoje leva o nome de Opus Dei.
DIVULGAÇÃO
Boris Casoy saiu do armário. Fez bem, agora está pronto para comparecer à Comissão da Verdade quando examinar o assassinato de Vladimir Herzog. Um dos meus primeiros encontros com Casoy na Folha de S. Paulo deu-se em 1975 quando ainda administrava a Redação, antes de ser alijado por Cláudio Abramo. Estava em sua mesa, ao lado um sujeito com quem parecia ter grande intimidade e queria me apresentar: Cláudio Marques. O nome do visitante não chamou a minha atenção, isso só aconteceu semanas depois quando este mesmo Cláudio Marques começou a achincalhar Herzog através da sua coluna no Shopping News. Duas semanas depois Herzog foi preso e assassinado. Ao me apresentar a Cláudio Marques, Casoy empunhava um envelope e disse com aquele seu risinho cretino: “São cópias dos teus documentos feitas por José Machado”. José Machado era o equivalente de Cláudio Marques no jornalismo carioca, repórter de extrema direita, ligado à Polícia, encarregado da cobertura sindical no antigo JB. Estribado neste poder conseguiu eleger-se Presidente do Sindicato de Jornalistas Profissionais. Quando aceitei participar da junta interventora, convocado por companheiros ligados ao PCB, a idéia era escorraçar a bandidagem que se instalara no Sindicato carioca. A legislação da época concedia aos jornalistas descontos de 50% em passagens aéreas, isenção do primeiro imposto predial e outras regalias. Não era um Sindicato de Jornalistas, estava mais perto de um Sindicato de Ladrões. Sob a presidência do jornalista Esperidião Esper Paulo (da sucursal carioca do Estadão) e Tobias Pinheiro (do Diário de Notícias), a junta contratou uma auditoria, saneou as finanças, acabou com as mamatas e comissões. Prova de
e o teatrólogo Nélson Rodrigues, o mais Dezenas de companheiros de trabalho, famoso colunista do jornal – com seu foamigos, parentes e admiradores comparelhetim A Vida Como Ela É –, além de colaceram em 14 de maio à sessão especial da boradores do nível de Stanislaw Ponte Câmara Municipal de Niterói em homePreta, Vinícius de Moraes, João Saldanha nagem ao jornalista e escritor José Alves e Antônio Maria. Pinheiro Júnior, membro do Conselho Pinheiro Júnior estudou no Liceu Nilo Deliberativo da ABI. Pinheiro Júnior Peçanha, em Niterói, onde fez o curso giaproveitou o evento, em que recebeu a nasial e o científico. Em seguida entrou Medalha José Cândido de Carvalho, para para a Faculdade Nacional de Filosofia fazer o lançamento de seu mais recente da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, livro: A Última Hora (Como Ela Era) - Hisfreqüentando durante três anos o curso tória e Lenda de Uma Convulsão Jornalístide Jornalismo. Foi no Liceu de Niterói ca Contada por um Atuante Repórter do Jorque deu início à carreira de jornalista, nal de Samuel Wainer. A homenagem foi fundando os jornais mimeografados O proposta pelo Vereador José Antônio FerAríete, Oásis e Flâmula, além da Revista nandez, o Zaff, do PDT. Unidade Estudantil, que tinha circulaAos 77 anos, pai de três filhos e avô de ção intercolegial. Na Faculdade de Filoquatro netos, Pinheiro Júnior, natural de sofia fundou o também mimeografado Cachoeiro do Itapemirim-ES, com passaReflexão. Além de UH, trabalhou nos gem por algumas das principais Redações do País, sentiu-se duplamente gratificado. “É o que chamo de suprema sincronicidade: ser lembrado pela minha cidade e pela Câmara Municipal da terra que escolhi para viver e criar meus filhos. Mais importante ainda é receber a Medalha que tem o nome de um dos meus mais queridos amigos, com quem trabalhei e convivi, José Cândido de Carvalho”, disse Pinheiro. Antes da entrega da Medalha, o cantor Byafra e o violonista Cassio Cássio Tucunduva, Vereador José Antônio Fernandez, o Zaff e Tucunduva apresenta- Byafra, Pinheiro Júnior com o diploma e a Medalha José Cândido de Carvalho. ram, em primeira mão, a música Olga, produzijornais O Fluminense, O Globo, O Dia e A da por Byafra para lembrar os 70 anos do Crítica, de Manaus. Colaborou na Revisassassinato de Olga Benário Prestes, ta da Semana e em Manchete. Editou mulher de Luís Carlos Prestes, extraditaa Brasil Mais. Foi também redator das da para a Alemanha nazista durante a SeRádios Jornal do Brasil e Mayrink Veigunda Guerra Mundial. Junto com Byaga e do Ministério da Educação, esta enfra, Cássio e o jornalista Arthur Poerner tão dirigida pelo escritor José Cândido são parceiros na composição. de Carvalho. Chefiou também a Redação da TV Globo no Rio, foi editor na TV “Palco iluminado” Educativa e Gerente de Jornalismo da Em seu oitavo livro, Pinheiro Júnior TV Rio. Escreveu roteiros para filmes de mostra como Última Hora foi perseguida longa-metragem (Esquadrão da Morte, A desde a fundação. Envolvido em episódiDesforra e Pena de Morte) e inspirou a peça os que culminaram com o suicídio do Prede teatro Procura-se Uma Rosa. Sua prosidente Getúlio Vargas, em 1954, o jornal dução literária teve início com a reporfoi metralhado e saqueado após o golpe tagem-romance Esquadrão da Morte, esmilitar de 1964 e, finalmente, vendido a crita com o repórter Amado Ribeiro. Em pessoas influentes na ditadura, em 1972. seguida escreveu o livro de contos-rePinheiro Júnior militou em Última Hora portagens Mefibosete e Outros Absurdos, o por 17 anos, com funções de repórter a ensaio de memórias Aventuras dos Menidiretor responsável. A Redação do jornal nos Lucas Pinheiro, em parceria com os iré descrita por ele como um “palco ilumimãos Delva, Prestes, Ivo e Wellington, nado”, onde pontificaram celebridades e a novela Bombom Ladrão. como o próprio fundador Samuel Wainer
PERFIL
Imagens casadas Da arte do desenho à fotografia, a trajetória profissional de Duayer, cartunista que se revelou no Pasquim, comprova hoje múltiplos talentos. José Duayer e sua mulher, também fotógrafa, Lourdes Valle, cujos trabalhos estão disponíveis no site da Photoffice.
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Transformações, como mudanças de cidade e até mesmo eventuais trocas de profissões, não chegam a ser raridades. Cada um de nós conhece pelo menos uma pessoa que já deu algumas dessas guinadas na vida. Um pouco mais especiais, exatamente por serem raras, são as histórias de pessoas que se reinventaram por inteiro, ainda que sem abandonar as suas raízes. Sem dinamitar a sua pedra fundamental. Isto é, gente que, das suas primeiras experiências, ou dos primeiros talentos, partiu rumo ao aprimoramento e consolidação da sua arte. Este é o caso de José Duayer. Quer ver só? Mineiro de Tombos, ele morou por anos no Rio de Janeiro e desde 2009 reside em Vitória, no Espírito Santo. Do início da carreira como fotógrafo, o jornalista acabou por ter descoberta sua vocação para o desenho, com o incentivo e o aval de nomes como Henfil e Jaguar. Hoje, Duayer é um pouco de tudo isso: fotógrafo, desenhista, artista gráfico e escritor. E bem mais do que isso... Em todas as atividades alinham-se as características únicas de um artista múltiplo – resultado objetivo de uma trajetória pessoal focada na ousadia das experimentações. “Desde pequeno convivo com as imagens. Meu pai possuía uma câmera Bell &Howell 16mm e era dado, nos momentos vagos, a documentar festas populares pelo interior de Minas. Esses documentários, geralmente de 15 minutos, eram projetados em nossa casa, que possuía um pequeno cinema, para os amigos. No Natal, havia exibição na praça pública da cidade. Infelizmente um incêndio, na dé-
cada de 1980, destruiu seus mais de 100 rolos de filmes. Uma pena”, recorda Duayer quando questionado pelo Jornal da ABI sobre as primeiras centelhas de fascínio por este universo. Sob influência familiar, Duayer iniciou sua carreira como fotógrafo com passagens pela revista Manchete e Jornal do Brasil. Após levar o primeiro lugar em um concurso internacional, foi contratado por O Pasquim, em sua fase de maior sucesso. Ali, após alguns anos, incentivado por craques dos cartuns como os dois citados na abertura desta matéria, tornouse um dos cartunistas/chargistas do jornal. Ocorria, então, a primeira reinvenção profissional de sua vida. “Rapaz, eu ficava vendo aquelas feras desenhando – Jaguar, Fortuna, Henfil e Millôr, – e pensava, pretensiosamente: ‘Eu também posso fazer isso’ (risos). Bom, acabei fazendo, né? O que me motivou, de fato, foi que a fotografia como expressão já não me bastava. E um dia – aquela história de estar no lugar certo e na hora certa – bem na ante-sala do laboratório, o Henfil viu um cartum que eu tinha acabado de fazer e ia jogar fora. Ele simplesmente o pegou e me disse: ‘Cara, você não vai mais ser fotógrafo, não! Vamos pensar num nome aí pra você!’. Saiu da sala e mostrou meu desenho para o Jaguar, para o Millôr. Larguei a fotografia profissionalmente e comecei a longa carreira como cartunista e chargista. O que me deu muitas alegrias. Publiquei em quase todos os países, tive livros editados, participei de outros tantos. Não tenho o que reclamar...”, conta Duayer.
‘Casca grossa’ A mudança de rumo não o assustou. “Estava com apenas 23 anos e, com essa idade, já havia me tornado fotógrafo de O Pasquim, o que mais poderia me assustar? O Pasquim, para a geração atual saber, era o jornal em que dez entre dez jornalistas da época queriam trabalhar. Cheirava à liberdade! Coisa que não se tinha nos jornalões... Então, de verdade, o que poderia me dar insegurança de enfrentar todas aquelas feras do desenho? Já tinha me tornado ‘casca grossa’, como a gíria se refere aos mais experientes”, afirma.
Os desenhos de Duayer foram publicados nos jornais Última Hora, Diário de Notícias, Jornal do Brasil e A Crítica, e em revistas nacionais como Playboy, Status, Mad, Ficção, Revista do Faustão e Visão. Ganharam destaque até em publicações internacionais, como World Press Review, nos Estados Unidos, Free Press, na Holanda, e Liberation, editada na França. Duayer ganhou prêmios – nas áreas de fotografia e cartuns – e teve obras expostas na Europa e América Latina. “Tive muitas experiências marcantes. Na Rádio Jornal do Brasil, por exemplo, recém-saído da faculdade, tive matéria de destaque, editada em lp – distribuído como brinde – junto com as 12 ou 14 melhores do ano. Provei que alunos de escola pública estadual e moradores de uma favela, hoje ‘comunidade’, da Ilha do Governador, iam à unidade só em busca da merenda, por não terem o que comer em casa. Deu uma merda geral, pois a censura deixou passar. E porque a diretora da escola denunciou o fato num depoimento naqueles velhos e enormes gravadores cassete... Hoje a gente nem sabe o que é lp ou gravador cassete (risos). A outra experiência, não poderia deixar de ser, foi ter vivido a melhor fase de O Pasquim. Uma estrada rica e cheia de surpresas.” Mas, como manifestação jornalística, e também artística, em que medida a charge difere da fotografia? Por outro lado, em quais momentos essas linguagens se fun-
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PERFIL IMAGENS CASADAS
CONSERVATÓRIA, RJ
PIAZZAVITTORIOEMANUELE, ROMA
Fotos de Carlos Leite (acima) e Paschoal Carlos Magno que Duayer fez para O Pasquim.
GUARAPARI, ES
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dem ou complementam? “A charge é porrada. Já a fotografia, reflexão. Mas, às vezes, no meu trabalho, elas se fundem. Em especial a fotografia jornalística, ou fotojornalística, que às vezes também é uma porrada. Como exemplo, vale lembrar a foto de Wilton Junior, com a presidente Dilma Rousseff supostamente trespassada por uma espada”, aponta Duayer, que, a pedido do Jornal da ABI, prefere utilizar a análise de um mestre a arriscar-se a conceituar o próprio trabalho. “Prefiro repetir o que o Jaguar um dia falou de meu trabalho: ‘o traço de Duayer tem uma característica difícil de encontrar, pois é inconfundível desde o princípio; não parece com nenhum outro. Seu humor, com idéias brilhantes e inventivas, é sombrio; os leitores riem, mas seus personagens nunca, a não ser um riso sádico. Parafraseando o Augusto Boal, o humor de Duayer bem poderia ser chamado de humor do oprimido. Tem sempre alguém oprimindo alguém em seus cartuns’. Na fotografia, principalmente na jornalística, existe, sim, uma unidade perceptível pra quem me acompanha esses anos todos. Todos temos influências em nosso trabalho. O meu, como não poderia deixar de ser, é uma mistura de vários mestres, de tendências, com a minha bagagem intelectual, o meu passado. Enfim, você fotografa, desenha e faz sua arte com o que traz da vida.” Novos rumos Houve um momento, no entanto, em que Duayer voltou a ocupar-se prioritariamente da fotografia – deixando o desenho em segundo plano. “Isso é uma longa história. Ou aquela história do ‘bom filho à casa torna’. Mas, em linhas gerais, estava me afastando aos poucos do desenho. Minha última participação profissional foi em 1991, quando ganhei o 1º lugar no Salão de Humor do Rio de Janeiro. Isso por insistência de um grande cartunista e amigo, Dil Márcio, que me obrigou a inscrever um desenho na competição. Eu já estava procurando novos rumos. Achava que não tinha mais nada a acrescentar como cartunista/chargista e que já tinha feito a parte que me tocava. Minha vida havia dado uma guinada e eu estava de saco cheio de desenhar. Um dia, presenteei os amigos com os pincéis, canetas, penas,
tintas e parei de vez. Só voltei a desenhar uns dez anos depois, quando uma agente literária descobriu o rafe de uma história infantil e uma editora de São Paulo – a Callis – resolveu bancar. Coisas da vida, né? Só provei para mim mesmo que eu era um cara complicado e que esse dom não some nunca... Adormece, apenas.” Duayer tem-se dedicado aos livros infantis. “Hoje me permito só fazer histórias infantis ou publicar ilustrações quando os amigos editores pedem. É uma forma que encontrei de desenhar de vez em quando. O grande barato do retorno desse público é quando você vai a um encontro em alguma escola e aquela gurizada toda está com seu livro. E fazem as mais criativas perguntas sobre ele. Como veio a idéia da história, como eu desenhei tal quadro... Esse é o grande barato do livro infantil, pois viver de direito autoral neste País é uma brincadeira de mau gosto.” A maioria das adaptações profissionais de Duayer teve alguma motivação prática como, por exemplo, a falta de espaço para os cartuns no Brasil. “Você me pergunta se falta espaço nas publicações brasileiras para o cartum. Eu te pergunto: quais publicações? Os jornais acabaram (ou quase), revistas faliram e o valor pago a um cartum hoje em dia beira o ridículo. Pelo que tenho lido e escutado por aí é de dar pena...Tem gente aceitando ‘30 dinheiros’ para ter seu trabalho publicado
Ilha das Caieiras, em Vitória; Paraty (acima); Praça Oito, no Centro histórico de Vitória (ao lado), e Copacabana (abaixo): nas fotos de Lourdes Valle todos os lugares ganham um lindo equilíbrio geométrico e gráfico.
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PERFIL IMAGENS CASADAS
como se isso fosse abrir as portas do sucesso e da continuidade... Hoje qualquer um pega uma foto, abre o photoshop, mexe daqui e dali e se diz caricaturista/chargista. Tudo nivelado por baixo.” Um cenário que não é lá muito diferente para o fotojornalismo. “O problema é o mesmo. O cara compra uma câmera ‘fuderosa’, lentes e mais lentes e se acha um profissional por ter aquele objeto fálico na mão. Como se fotografar fosse um mero clique no disparador. Além disso, os jornais contam cada vez mais com a contribuição dos leitores, que lhes enviam imagens gratuitamente, sentindo-se plenamente recompensados apenas por vêlas publicadas”, lamenta Duayer. “Aqui no Espírito Santo o mercado é muito restrito. Tanto para fotografias de arte como para cartuns. Continuamos, Lourdes e eu, com um mercado no Rio e em outros Estados. Nos valemos das redes sociais para a divulgação de nosso trabalho. Nos ressentimos de mais oportunidades de trabalho, assim como outros colegas. A fotografia voltada para eventos sociais – casamentos, batizados, formaturas e o que mais deus quiser – domina o mercado. A fotografia de arte ficou restrita a um meio mais intelectualizado”, avalia. Mas quem é Lourdes? – deve estar se perguntando a esta altura o leitor. Companheira de vida e de profissão, a capixaba Lourdes Valle foi a responsável direta pela mudança deste mineiro, radicado no Rio, para o Estado vizinho, em 2009. “Ela é especialista em História da Arte e Gestão da Cultura. E ama fotografia. Buscando maior conhecimento, foi fazer um curso na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde eu estava procurando entender os novos rumos da fotografia. Ali no Jardim Botânico nossos caminhos se cruzaram. E o resto é história... (risos) Mudei por questões familiares dela, aliadas ao desejo de dar um ‘tempo’ ao Rio e à vontade de experimentar o que é novamente morar numa cidade pequena e mais tranquila. Lembrando que minha trajetória de vida começou na pequenina Tombos, lá em Minas. Minha experiência profissional aqui – e estou sendo sincero – tem sido um ‘começar de novo’...”, confessa ele. Uma das primeiras criações conjuntas do casal foi a Photoffice, Arte & Fotografia – uma rica página digital (photoffice.com.br) onde ambos expõem seus trabalhos. “Duayer e eu gostaríamos de desenvolver e aprimorar um trabalho autoral e para isso pensamos em criar um espaço para nossas investigações. E também para debatêlas com um público interessado em fotografia e arte. Assim, em 2007, surgiu a página, buscando conquistar adeptos para a fotografia como forma de expressão artística. Todos os cursos, workshops e debates promovidos são voltados para a 20
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reinvenção da fotografia como arte e forma de desenvolvimento humano. A nossa proposta surpreende e cativa um público diferenciado, instruído e viajado, mas carente de informação sobre arte. O retorno é gratificante, mas em escala modesta, se considerarmos o crescente uso e abuso da fotografia no século XXI”, conta a própria Lourdes ao Jornal da ABI. Com tantas indas e vindas, tamanhos desvios de rota, a passagem do filme em negativo para os recursos das câmeras digitais não assustou José Duayer. “Confesso que não tive problemas, remorsos, saudosismo. É lógico que o bom e velho filme tem sua graça, sua poesia, suas idiossincrasias... Há uns três anos montei um laboratório fotográfico e foi um desastre. Não tive paciência, não agüentei o cheiro das químicas, não conseguia mais ficar naquele espaço escuro com luz vermelha. Um saco! É passado e pronto. Quando uso filme mando revelar, digitalizar e trabalho no novo velho Photoshop. Que os puristas me perdoem: photoshop é apenas um laboratório. Sem cheiro, sem intoxicação, rápido. Faz os mesmos truquezinhos sem-vergonha que fazíamos...”, provoca ele, atualmente, mais do que nunca, dedicado à arte de fotografar. Ou seria à fotografia de arte? “Sem dúvida, do ponto de vista da execução, a chamada fotografia de arte se distancia do fotojornalismo. Acredito que ela é um processo calculado. Isso sempre me atraiu, pois acredito que fotografar é mesmo um ato solitário. É você, com suas inseguranças, seus medos, suas experimentações e sua bagagem intelectual. Não há ninguém ali, no ato de fotografar, que possa te dar as mãos. Tudo passa pelo seu filtro. Já no fotojornalismo, o que conta é o calor, é o momento. Não há tempo de conjecturas. É ali e agora! Não fez, danouse...”, conclui Duayer, como que num clique decisivo e revelador do seu ofício.
AMSTERDAN, HOLANDA
Tanto na fotografia quanto nos desenhos, José Duayer sempre teve uma visão social de sua arte e a utilizou para expor a condição humana e o abuso de poder.
SANTACRUZ, ES
INTERNET
signers da Casulo, com a participação direta de Rodolfo Neder. A empresa Casulo Web Design desenvolveu toda a sua arquitetura. Há 12 anos parte de seu pessoal – profissionais hoje já conhecedores da obra de Millôr em profundidade – trabalha com seriedade para manter o vasto material do humorista no ar. Em grande forma. E sempre atualizado.
Na definição do próprio humorista, uma pessoa só morre realmente quando deixa de ser lembrada. Pois, no que depender de Rodolfo Neder e da equipe que produz o site Millôr Online, esse dia nunca vai chegar. P OR P AULO C HICO
Ao sair de cena, em 27 de março deste ano, Millôr Fernandes deixou como herança a todos os brasileiros seu inestimável acervo de criações, tão diversificado quanto os seus múltiplos talentos. É muito da produção deste desenhista, jornalista, escritor, dramaturgo e tradutor que pode ser livremente acessado no site Millôr Online, bastando para isso digitar o endereço www2.uol.com.br/ millor. Passados dois meses de sua morte, a página na internet serve, neste momento, para matar parte da saudade da genialidade ímpar deste mestre do humor. A médio e longo prazos, contudo, ela será um espaço fundamental para manter viva a obra deste artista eterno. “Acredito que o saite – como Millôr gostava de grafar esta palavra – tenha uma grande importância para a memória nacional e a cultura. Hoje, ele abrange uma enorme parte do total da obra. Mas falta muito ainda a ser colocado da sua criação na web. O ‘baú’ do Millôr ainda nos reserva algumas pérolas. Sempre haverá gratas surpresas com a sua obra, pois ela é muito vasta e variada”, aponta Rodolfo Neder, publicitário, grande amigo do jornalista e Diretor responsável pelo Millôr Online. O site surgiu a partir de uma idéia de Neder, exatamente quando a internet já ganhava expressão no Brasil, em 2000. Foi, na verdade, uma continuação natural de um cd-rom produzido por ele em 1999, com parte da obra do jornalista e que foi distribuído pelo jornal O Dia, do Rio de Janeiro. “Levei o projeto para o Uol, que estava também nascendo e ocupava pequenas salas no prédio da Folha de S.Paulo, no Centro da capital paulista. Eles toparam a parceria e em maio de 2000 foi lançado o site, com uma gran-
de festa no Copacabana Palace, no Rio. Foi uma festa linda e animada. O Millôr voltava a falar com seu público, que o seguia perplexo: não era livro, nem pintura, show, nada das criações habituais que ele entregava ao público. Era um novo suporte que passaria a guardar a sua brilhante obra.” É bom lembrar que, nessa época, poucas pessoas levavam a internet a sério, muito menos os jornalistas com mais tempo de estrada, como o próprio humorista, tradicionalmente mais agarrados ao papel e desconfiados da viabilidade das plataformas digitais. “É neste momento que surge mais um Millôr, além do dramaturgo, jornalista, escritor, poeta e mestre do humor. Nasce o Millôr internauta, o criador consagrado que usava o mais novo suporte global para colocar ao alcance do público a sua vasta obra, que se encaixa perfeitamente ali, com todas
a suas formas de escrita e de imagens”, recorda Rodolfo Neder. A chegada do site teve repercussão imediata, quase instantânea. Assim como a morte do humorista – visto por muitos de seus fãs como um verdadeiro filósofo e pensador crítico de hábitos e costumes da sociedade brasileira. “Anunciamos a partida do Millôr no Twitter e chegaram de imediato respostas de sentimentos da grande perda. Agora era pra sempre, como dizia ele. Chegamos a registrar mais de 600 postagens logo nos primeiros dez minutos! Foi uma rápida manifestação dos leitores. Eu nunca imaginei isto. Aqui a telefonia e as redes sociais sempre tiveram um papel fundamental. Mas, naquele momento, foi explosivo”, contou Rodolfo Neder em entrevista ao Jornal da ABI. O site é atualizado semanalmente por uma equipe de webde-
Ambiente virtual “O Millôr Online hoje conta com mais de oito mil páginas. Alguns dizem que é o maior site individual da internet. E conta com o apoio de um Twitter com cerca de 380 mil seguidores e, mais recentemente, uma página de Facebook que é atualizada diariamente e que também tem muitos seguidores”, informa Rodolfo Neder, que ainda hoje recorda do entusiasmo de Millôr Fernandes com a proposta de transpor as suas históricas criações para o ambiente virtual. “O trânsito que fez do papel para a web foi para ele o mais justo, pois a internet permite deixar viva a inteligência. Há professores, cientistas, universidades, imprensa, literatura, poesia, escritores, bibliotecas, música... E muita gente interessada por tudo isso. Este era e é um grande terreno fértil para o Millôr. E quando começamos com a história do site ele dava palpites. Aliás, fazia isso o tempo todo. Falávamos diariamente ao telefone. Longas conversas. Mandava semanalmente a sua colaboração via email, com novos materiais em texto e imagem. Millôr sempre foi ligado em tecnologia... Convivi com ele durante mais de 40 anos. Foi o primeiro a ter fax nos anos 1970, quando o aparelho custava uma fortuna. Foi o primeiro, dentre os meus conhecidos, a comprar um computador nos anos 1980, quando eles sequer eram fabricados no Brasil. Rapidamente começou a explorar ao máximo seu 356 e o software CorelDraw para os desenhos. Há vários deles no site.” A composição do menu principal do site dá a exata idéia dos inúmeros talentos
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INTERNET MILLÔR IMORTAL
DIVULGAÇÃO
A equipe que mantém o site de Millôr Fernandes, com Rodolfo Neder (esquerda) à frente.
de seu personagem-título. Com apenas um clique é possível acessar Bíblia do Caos, Biografia, Charges, Clássicos, Devora-me, Dicionário, Fábulas Fabulosas, Frases e Manchetes, Humor Negro, Livre Pensar, Logos do Millôr, Millôr na Imprensa, Millôr no Pasquim, Murais, Pif-Paf, Poemas, Sexo, Teatro, Vídeo e tantos outros espaços. Dentre as inúmeras preciosidades disponíveis no site, o Jornal da ABI publica um texto de autoria de Millôr sobre o colega Chico Anysio, falecido em 23 de março deste ano. Da página do Millôr no Facebook, o Jornal da ABI publica também uma das inúmeras mensagens de pesar enviadas pelas redes sociais: Millôr, meu amigo, escrita pelo jornalista Jânio de Freitas. Rodolfo Neder diz não temer que eventuais disputas jurídicas, em especial relacionadas a direitos autorais, terminem por ameaçar a continuidade do site. “A nossa decisão, de toda a equipe, é continuar com a página no ar. A obra do Millôr, quer por seu valor, quer por sua vastidão, é infinita. Pega também um público muito jovem, pois não há limite de idade para entendê-lo. Ele é universal. Prova disso é que somos porto seguro para as pesquisas de muitas escolas, por parte de estudantes das primeiras séries. E, em todas as faixas etárias, sua audiência é qualificada. Não vejo por que haveria disputa jurídica, pois toda a família do Millôr acompanha o site. E, seguramente, nós conversaremos mais adiante. No que diz respeito ao Uol, que nos hospeda como mantenedor, também continuamos trabalhando normalmente”. Para Neder, o significado pleno da falta do jornalista ainda será percebido. “O Millôr pertencia a uma geração excepcional que deu grandes humoristas, escritores e desenhistas, todos de enorme poder criativo. Eles se concentraram num determinado momento em O Pasquim. Os tempos e os costumes mudaram. E a televisão, já faz alguns anos, cunhou um novo tipo de humorismo – ligeiro, barato, óbvio e um tanto idiota, que faz apenas rir. Millôr fazia bem além disso. E é justamente essa provocação da reflexão que, acredito, nos fará mais falta.” 22
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Pot-pourri de ilustrações de Millôr Fernandes em diversos períodos, desde a época em que assinava Vão Gôgo na revista O Cruzeiro, passando pelo Pasquim e Veja. Millôr sempre desenhou o seu nome das mais diversas e criativas formas, como se pode ver nesta e na próxima página.
RETRATOS 3X4
Millôr, meu amigo
Chico Anísio, por Millôr Fernandes DIVULGAÇÃO
Chico Anísio nasceu numa agência de produções chamada Maranguape que mais tarde transformou em sua cidade natal. Começou a fazer graça aos sete anos de idade, mas ainda conserva inúmeras cicatrizes. É ligeiramente amargo, mas bota muito açúcar. Só caiu do galho uma vez, porém conseguiu se salvar agarrando-se a um galho de cima. Faz tremendo sucesso na televisão, mas em casa nem tanto, porque lá é ao vivo. Sabe tudo que não sabe, mas até hoje ignora o que aprendeu. É assim, magro por afinidade, já que só se alimenta dos próprios erros técnicos. Um dia deixou crescer a barba, mas, como as mulheres se rasparam, ele resolveu se escanhoar de novo. Ah, mulher ele não só gosta muito, como parece até que é desses que não têm outro jeito. Pra fazer rir, tem uma receita fácil, comprime o cerebelo contra o occipital, empina os músculos abdominais, retesa os trapézios e costureiros, prende a respiração durante cinco minutos, abre a boca e fecha os olhos. Isso tudo naturalmente, seguro ao mastro. Nas boates, já viram?, seus dentes brilham. Tem muitos amigos, alguns inimigos, um chofer, um time de botões, uma grande determinação profissional e quando crescer vai ser meritíssimo. Falar em muitos amigos, ele tem tantos, que entre eles figuram até dois inimigos. Seu maior azar foi receber o Prêmio Nobel da Paz exatamente na hora da briga. O que ele faz, faz, e o que não faz deixa pros outros fazerem. Por ser dos que estão aqui, sempre que vai, volta. Só uma vez não voltou nunca mais, mas ninguém lhe conta porque senão ele cai em prantos. Seu maior desejo é ser eremita, mas o pessoal que lota o teatro não deixa. Seu pai, que nasceu uma geração antes dele, sempre lhe disse que tomasse cuidado com os filhos que o transformariam em antepassado. Ele porém tem dois, um mais velho do que o outro. Já foi assaltante, em filme, e assaltado na vida real. Tem uma saúde de ferro mas preferia de matéria plástica, que não enferruja. Se pesa de meia em meia hora, complexo do dia em que levou uma surra de um peso pesado. É homem, o que até um cego pode verificar facilmente; brasileiro, coisa que o deixa muito subdesenvolvido; casado três vezes no civil, no religioso e na cama; técnico de futebol como todo mundo e amante do belo-horrível aquele ao qual comparecem com presteza os bravos soldados do fogo.
P OR J ANIO DE F REITAS
Muito dado, diz publicamente que dá (só no “Canto de Ossanha”), mas ninguém sabe a quem, e onde, e como, e quando. Uma de suas maiores ambições era ser rapsodo, mas acabou Chico Anísio, que basta passar a mão e a gente vê logo que é de outra plumagem. Às vezes se arrepende e ateia fogo às vestes, depois de colocá-las bem longe do corpo. Circense e altaneiro, é uma espécie de palmeira que venta sempre ao contrário. Fraco em matemática e bom em meteorologia, tem cálculos no coração e um sopro na vesícula. Dona Rose, em casa, finge não perceber que ele é um terrível comediante. Os filhos, coitados, estes nem suspeitam de que espécie de Adão é feito o pai. Pois, quando ri, Chico mostra a arquitetura de que é feito o drama dos que choram. Quem o vê assim, às 3 da tarde, jamais poderá imaginar que já são 7 e meia. De avião prefere nem passar por baixo. É a favor de todos os vícios, devidamente curados. Tem uma sede de prazer, um hábito de cantar, muitos sintomas apriorísticos e em seu teatro ninguém entra sem pagar. Mas, em compensação, também ninguém paga sem entrar. Num mundo de tanta cuca fundida é um dos raros que podem garantir a própria saúde mental tem até atestado. É a favor da reforma tributária sem dor, do parto agrário e do cão sem coleira. Acredita num mundo mais justo, mais do que justo, bem apertadinho. Uma só frustração: até hoje, o Todo Poderoso ainda não lhe deu o alvará de localização.
Ele não era humorista, mas um pensador brilhante, ilimitado nos temas e incessante no seu exercício. Millôr, além de tudo o que criou, e criou de tudo, criou também um engano involuntário. A propósito dele mesmo, mas não o engano do nome. Milton de verdade, na certidão e por desejo paternal, Millôr por sargentada de um militar que cismou ser o t um segundo l e o traço do t um circunflexo no o: “É Millôr!”. Miltinho até os 17 ou 18, Millôr para sempre. O outro engano recaiu sobre nós. Acompanhou Millôr desde a primeira página do Pif-Paf no longínquo O Cruzeiro e agora se mostra com toda intensidade, nos jornais, nas tvs, nas conversas sobre “o humorista Millôr”. Mas desengane-se: Millôr não era humorista. Millôr foi um pensador. Brilhante e fertilíssimo pensador. Ilimitado nos temas e incessante no seu exercício de pensador. O humor foi uma linguagem para o pensador. Uma das linguagens. Como a palavra, escrita ou vocalizada. Como o traço e as cores no desenho e na pintura, de uma riqueza de sentidos só comparável à preciosidade da criação estética. Como a elaboração cênica e verbal do autor de teatro. O humor foi a mais presente e perceptível linguagem de Millôr, mas linguagem do pensador. Cada sentença e cada texto, cada pintura e cada peça, cada conversa de Millôr conteve, sempre, um significado ético, ou humanístico, ou crítico, e mais, mais – sempre o significado adicional, além do visível e do audível. E, no final, ali estava a razão de ser do escrito, do desenhado, do dito. E nada construído: nascido, simplesmente. Pensador de hábitos inesperados. Quando Paulo Mendes Campos, Marco Aurélio Mattos e eu, o caçula aceito, chegáva-
mos de manhã à praia, já Millôr havia feito ginástica em uma academia precursora e repetido corridas na areia. Encontros por anos e anos, cujas conversas não terminaram ainda: percorrem com freqüência minha cabeça, em pedaços que esperavam continuação ou que são inesquecíveis. Eram três intelectuais gigantescos, a me injetar, sem querer, perplexidades e curiosidades, um dia porque alguém decidira ler Humboldt, no outro porque alguém descobrira uma sutileza ainda impercebida em certa passagem de Shakespeare, ou um pintor, um livro, muitos livros – tudo terminava em livros. O último de nossos almoços regulares, que desde as dificuldades físicas de Millôr estavam transferidos para o seu estúdio, foi também o último seu com amigos. Naquele dia, ainda Luis Gravatá e Cora Rónai. Foi suave, mais longo do que o habitual por insistência do Millôr. No dia seguinte, de repente, Millôr iniciou longo período de vida quase toda em ausências. Quando dirigiu a Casa Laura Alvim, Eliana Caruso fez uma edição fac-similar da revista Pif-Paf, que Millôr lançou depois de deixar O Cruzeiro. Tiveram comigo a gentileza de me entregar o texto de apresentação. Terminei-o com uma frase mais ou menos assim: “Tive a sorte de conhecer um gênio”. Mais do que conhecer, a sorte me permitiu o convívio. Foi uma amizade de quase 60 anos, sem baixios, com intimidade bastante para as confidências nas aflições e em coisas pessoais, para solidariedade e confiança. Minha gratidão, meu amigo Millôr. Texto publicado no dia 29 de março na página oficial de Millôr Fernandes no Facebook (facebook.com/ millorfernandes).
Texto originalmente publicado na revista Veja em 1970, Republicado no livroTrinta Anos de Mim Mesmo e disponível no site Millôr Online.
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LIBERDADE DE IMPRENSA
Notícias de uma guerra pública
Contra as violências, a federalização das investigações
Assassinatos, ameaças e violências transformaram o exercício do jornalismo no México e em Honduras num risco permanente.
Entidades de imprensa reúnem-se com a Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, Ministra Maria do Rosário Nunes, e apresentam propostas para proteção dos jornalistas no exercício da atividade profissional.
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VALTER CAMPANATO/ABR
A federalização das investigações sobre violências contra jornalistas no exercício da atividade profissional, através da Polícia Federal, sem sacrifício da autonomia dos Estados, poderá costituir-se numa medida concreta de prevenção e desestímulo à prática dessas violências e principalmente dos homicídios, como o de que foi vítima em 23 de abril passado, em São Luís, o jornalista Décio de Sá, do jornal O Estado do Maranhão, abatido a tiros, num crime encomendado, num restaurante da capital maranhense. A proposta foi apresentada à Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, Ministra Maria do Rosário Nunes, em reunião que ela promoveu em seu Gabinete, em 3 de maio, Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, com a participação de entidades de imprensa, entre as quais a ABI, representada no encontro por seu Presidente, Maurício Azêdo. Participaram da reunião também o Presidente da Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj, Celso Schröder; o Diretor-Executivo da Associação Nacional de Jornais-ANL, Ricardo Pedreira; e o Diretor da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da ComunicaçãoAltercom, Renato Rovai, o qual revelou que a entidade, fundada recentemente, reúne blogueiros e outros comunicadores que se expressam através da internet. Igualmente convidado, o Presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo-Abraji, Fernando Rodrigues, enviou mensagem expondo a opinião da entidade a respeito do tema. Prestigiada pela Ministra, que fez questão de que a Casa dividisse com ela a presidência dos trabalhos, a ABI expôs a preocupação da comunidade jornalística diante da possibilidade de o assassinato do jornalista Décio de Sá juntar-se à série de crimes contra jornalistas que não são investigados pelas autoridades policiais dos Estados. Disse Maurício que entre fevereiro de 2011 e abril de 2012 houve pelo menos cinco mortes de jornalistas, sem que esses crimes gerassem a identificação dos autores e sua responsabilização penal. Daí a importância da participação da Polícia Federal no acompanhamento das investigações, para esclarecimento dos crimes e, com isso, o desestímulo à prática de violências contra os jornalistas e os veículos de comunicação. Ao se pronunciar sobre as propostas apresentadas, a Ministra Maria do Rosário salientou que encara as violências con-
Ministra Maria do Rosário: “A violência contra jornalistas é um atentado também contra a livre expressão da imprensa”.
tra jornalistas como cometidas também contra o conjunto da sociedade, porquanto eles exercem uma atividade que visa à informação da coletividade. “Entendemos – disse – que a violência contra um jornalista é um atentado não só contra a pessoa humana, mas também contra a livre expressão da imprensa neste País, pois sabemos que se trata, em geral, de uma tentativa de determinados grupos criminosos de calar os profissionais da comunicação, que constantemente veiculam denúncias contra esses grupos.” A Ministra informou que discutirá a proposta de federalização das investigações com o Ministério da Justiça, independentemente de medidas que adotaria desde logo no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos, como a criação de um Comitê de Acompanhamento para monitorar e desenvolver ações para combater o aumento da violência contra esse segmento profissional. “Com este instrumento, teremos como fazer um acompanhamento mais detalhado sobre esses casos, criando estatísticas e políticas públicas para garantir que esses crimes sejam punidos e coibidos”, acrescentou a Ministra, que colocou à disposição das entidades de jornalistas a central de atendimento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, para recebimento, através do Disque 100, de denúncias de violências contra jornalistas. Texto do Jornal da ABI, com informações de reportagem de Edmilson Felisberto de Freitas, da Assessoria de Comunicação Social da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Na América Latina e no Caribe não há formalmente nenhuma guerra. Mas conflitos, antes silenciosos, estouram cada vez mais violentos e ameaçadores. O alvo é a imprensa livre e independente. Em jogo, a liberdade de pensamento, de expressão e de informação em toda a região. Estima-se que pelo menos 24 jornalistas tenham sido assassinados em seis países latino-americanos e caribenhos apenas nos primeiros quatro meses deste ano. Sem contar com vários outros que estão desaparecidos ou sofrendo ameaças de todo tipo. Uma das situações mais tensas é a do México, onde oito profissionais foram mortos desde o começo do ano. No dia 3 deste mês de maio, data em que se comemora o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, foram encontrados os corpos de quatro fotojornalistas, três homens e uma mulher, no Estado de Veracruz. Todos estavam mutilados, desmembrados e com sinais evidentes de tortura. Poucos dias antes, em 28 de abril, o corpo de Regina Martinez, correspondente da revista Proceso, foi encontrado no banheiro de sua casa, em Xalapa, capital de Veracruz. Trazia hematomas que denunciavam espancamento. Segundo as investigações promovidas pelo gabinete do Procurador-Geral do Estado, a causa mais provável da morte é “asfixia por estrangulamento”. Todos esses brutais assassinatos foram tratados como um “recado” do crime organizado, que comanda o tráfico de drogas e de pessoas em Veracruz, para os jornalistas que teimam em denunciar esquemas de corrupção em conluio com políticos locais e ações criminosas. Nos últimos anos, cerca de 80 profissionais foram assassinados ou estão desaparecidos no país. O que fez o Congresso mexicano aprovar recentemente uma lei de proteção para quem defende os direitos humanos e que pode garantir o fim da impunidade para tais crimes. Para os especialistas, apesar de significar um avanço importante, a lei ainda é insuficiente para resolver problemas estruturais, aqueles que deixam ativistas e jornalistas vulneráveis e permitem a violência. “Ainda assim, ela dará condições às autoridades para que respondam com firmeza às ameaças, especialmente nas províncias mais afastadas e no interior, onde os jornalistas estão mais sujeitos às pressões do mundo das drogas”, aposta Brisa Solis, da organização não-governamental Centro Nacional de Comunicação Social-Cencos. Agora, organizações da sociedade civil pressionam o Governo do Presidente Felipe Calderón para que sancione e oficialize a lei. Em vigor, ela garantirá a adoção de medidas de proteção, em no máximo 36 horas, para jornalistas que forem ameaçados. Enquanto isso, mais
pressões, na forma do cumprimento de ameaças, são esperadas em toda a nação. Ameaças, mortes e mobilização Entre os países latino-americanos que sofrem com censuras judiciais e crimes contra profissionais da impressa estão o Brasil, a Colômbia, a Bolívia e a Argentina. Mas é em Honduras, pequena nação de 8 milhões de habitantes, na América Central, que informar tornouse um verdadeiro risco à vida. Apenas de janeiro a maio de 2012, cinco profissionais foram brutalmente assassinados, vítimas de crimes por armas de fogo, facadas e estrangulamento. Além disso, há pressão levantada por meio de ações judiciais contra profissionais da imprensa, expropriação de meios privados de comunicação, atentados contra pessoas e equipamentos, seqüestros e ameaças dos mais diferentes tipos. “Ser membro de um sindicato como o dos jornalistas é, por si só, uma ocupação de alto risco”, explica Ramón Custodio, do Comissariado Nacional dos Direitos Humanos do Estado-Conadeh, agência estatal responsável por um levantamento feito nos últimos dias sobre a situação da liberdade de imprensa em Honduras. Apesar de compromissos públicos assumidos pelo Governo perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no ano passado, para assegurar a segurança dos jornalistas e da expectativa de uma nova lei, ao estilo da mexicana, que proteja os profissionais e garanta que crimes não passem impunes, a recente onda de violência não pára de crescer. Em abril, a Anistia Internacional enviou uma carta pública ao Presidente Porfírio Lobo, pedindo providências contra a criminalidade e proteção para jornalistas ameaçados. Profissionais locais da imprensa também se organizam, promovem manifestações, vigílias e campanhas, como a “No dispare, soy periodista”. “Estamos iniciando uma mobilização, mas precisamos de muito mais apoio, principalmente de entidades de fora do país, que nos ajudem a pressionar as autoridades”, diz a jornalista e blogueira Itsmania Pineda Platero, em contato com o Jornal da ABI. A primeira ameaça contra sua vida aconteceu no dia 6 de janeiro. “Puta, você vai morrer”, dizia uma voz ao telefone. Desde então, elas não pararam mais e são cada vez mais duras e aterrorizantes. Em meio ao fogo cruzado, ela não admite parar e desabafa: “O que queremos é uma investigação completa, independente e imparcial das autoridades. Tudo precisa ser tornado público, os responsáveis precisam responder perante a Justiça e o Governo precisa proteger os jornalistas, tal como prometeu fazer pela primeira vez ainda em novembro de 2010, durante a Revisão Periódica Universal da Onu”.
REPRESSÃO
O LIVRO CENSURADO ´E
P OR P AULO C HICO
e atinge grande repercussão nos meios acadêmico e cultural. Em suas 184 páginas, a edição caprichada faz um minucioso inventário da mordaça imposta a diversos autores da época. E comprova o quanto a censura, além de autoritária, é burra. A reprodução de pareceres e documentos permite ao leitor entender melhor – ou, na verdade, não compreender de fato – a peculiar lógica das ações dos censores. Ficam logo evidentes a arbitrariedade e a falta de qualquer justificativa técnica ou de bom senso para vetar este ou aquele livro, bem como para liberar um terceiro. A partir da leitura dos superficiais relatórios, as obras literárias pareciam monstros de parca envergadura moral. Era preciso, pois, defender a sociedade do ataque planejado por autores quase sempre devassos, a fim de protegê-la de atos que, supostamente, colocariam em xeque a moral e os costumes dos brasileiros, mergulhando-nos na pornografia. Pura balela, enfim. “O projeto do meu livro surgiu após a leitura de Roteiro da Intolerância: A Censura Cinematográfica no Brasil, de Inimá Ferreira Simões, lançado em 1999. Vários dos filmes censurados que constavam no livro de Simões eram adaptações de obras
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bastante conhecida a ação da censura durante as duas décadas de ditadura militar no Brasil, instaurada pelo golpe de 1964. Letras de músicas foram vetadas (Chico Buarque chegou a assinar composições sob o pseudônimo Julinho da Adelaide, numa tentativa de despistar os censores), atores espancados (no episódio que envolveu o elenco de Roda Viva, peça do mesmo Chico dirigida por José Celso Martinez Corrêa, na noite de 18 de julho de 1968, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo) e novelas de televisão proibidas (caso da primeira versão de Roque Santeiro, de Dias Gomes, barrada em 1975, no dia em que estrearia na TV Globo). E os jornais e revistas? O que dizer das matérias cortadas, da execução de jornalistas e da presença ostensiva de agentes em diversas Redações? Há, contudo, um setor cultural onde a ação intimidadora da tesoura se fez presente, embora pouco documentada. Pois a triste história da censura a livros durante o período militar finalmente ganha uma obra dedicada exclusivamente ao tema. Coube à pesquisadora Sandra Reimão, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Programa de PósGraduação da Escola de Comunicações e Artes, ambos da Universidade de São Paulo-Usp, corrigir essa omissão histórica, e trazer ao público de hoje o relato dos desmandos que tentaram impedir que obras literárias chegassem aos leitores do passado. Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar, editado pela Edusp/ Fapesp, foi lançado em dezembro de 2011,
Obra da pesquisadora Sandra Reimão conta a história da censura aos livros no Brasil da ditadura militar. Uma página quase esquecida de um triste passado em que os censores, do alto de seu baixo conhecimento, decidiam o que os brasileiros podiam ouvir, assistir e ler.
Sandra Reimão: A censura a livros foi marcada pela ausência de critérios, mesclando batidas policiais, apreensões, confiscos e coerção física.
literárias. Decidi pesquisar se os livros que haviam inspirado os filmes censurados também haviam sofrido censura. Mas tive uma grande surpresa ao descobrir que
não havia nenhum levantamento sistemático da literatura censurada no período da ditadura. Havia apenas listagens parciais, sem especificações claras para identificar tais obras. Foi quando decidi fazer esse levantamento”, conta Sandra Reimão em entrevista ao Jornal da ABI. Definida a proposta editorial, e a partir de bibliografias e da análise de documentos do Departamento de Censura e Diversões Públicas-DCDP, além de entrevistas com os autores e editores censurados, Sandra realizou um levantamento sistemático das obras vetadas. Mais do que isso: traçou um panorama histórico da atuação censória do Governo militar em relação à arte e à cultura – e, claro, aos livros, em particular. Depois desse quadro geral, analisou especificamente os casos de censura por ela considerados mais emblemáticos. São eles Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, Dez Estórias Imorais, de Aguinaldo Silva, Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós, e ainda dois contos eróticos: Mister Curitiba, de Dalton Trevisan, e O Cobrador, este também de Rubem Fonseca. Sandra mostra que, da lista total de aproximadamente 500 livros submetidos ao DCDP cuja documentação foi preservada, cerca de 140 são de autores nacionais. Desses livros, 70 foram vetados, entre obras de ficção, não-ficção, eróticos/pornográficos e peças de teatro censuradas para publicação em livro. No terreno do erotismo, Adelaide Carraro e Cassandra Rios foram as autoras que mais tiveram publicações enquadradas. No campo da não-ficção, foram censurados títulos como O Mundo do Socialismo, de Caio Prado Jr, A Universidade Necessária, de Darcy Ribeiro, A Mulher na Construção do Mundo Futuro, de Rose Marie Muraro, O Despertar da Revolução Brasileira, de Márcio Moreira Alves, História Militar no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, e O Poder Jovem, de Arthur Poerner. No caso do livro de Aguinaldo Silva, jornalista e autor de telenovelas de sucesso como Fina Estampa, Pedra Sobre Pedra, Senhora do Destino e Tieta, embora a capa de Dez Estórias Imorais sugira conteúdo essencialmente sexual, “o dominante no significado do termo imoral é mesmo a imoralidade da pobreza, da exclusão, da falta de perspectiva dos personagens”, esclarece Sandra Reimão. Ainda segundo a pesquisadora, parece também ter pesa-
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REPRESSÃO O LIVRO CENSURADO
do contra a obra o perfil do próprio escritor – envolvido com ações em defesa dos homossexuais e principal editor do contestador jornal gay O Lampião. No parecer do censor que analisou a obra de Aguinaldo, dos dez contos presentes no livro, dois mereceram veto por conter ‘matéria imprópria’. Sobre um deles – intitulado Um Homem, Sua Maldade, e a Marinha Nacional – o documento destacava que a história do marinheiro trazia “suas aventuras com mulheres depravadas e o seu envolvimento homossexual com um capitão-de- corveta”. Já em Proclamação Final, o personagem “ofende a Igreja com críticas mordazes e indecentes sobre monges e padres, assim como ao tomar a hóstia lhe deu enjôo, sendo obrigado a vomitar. Além do mais, há ofensa aos militares em geral, chamando-os de estúpidos”, aponta o relatório do censor. Tudo era forte demais, aos olhos do Governo da época. Resultado? Censurado! As peculiaridades da censura. E a defesa dos ‘bons costumes’
Um ponto importante destacado na pesquisa de Sandra Reimão é que a censura, durante a ditadura militar, teve atuações bem diferenciadas, não só nos variados períodos e estilos de Governo, como também em relação aos diversos meios de comunicação. Ou seja, havia mesmo uma espécie de ‘hierarquização’ da censura, o que resultava em atuações diversas em virtude do potencial impacto do veículo utilizado. Nesse sentido, letristas de mpb, autores e diretores de teatro, jornalistas, produtores de tv, cineastas e escritores sofreram sanções em medidas distintas. “Quanto mais público uma determinada produção cultural pudesse ter, mais ela seria ‘alvo’ de censura. Houve uma censura mais forte sobre a televisão e a imprensa, e um pouco mais leve em relação aos livros, cujo público em geral é menor que o daqueles veículos”, diz SandraReimão. “Outro dado interessante apresentado no trabalho é que o número de livros analisados e censurados pelo DCDP aumentou após 1975 (Governo Geisel) e até 1979 foi maior do que durante o Governo Médici (1969-1974), período considerado por muitos como o mais repressivo. Esses dados precisam ser mais bem compreendidos, mas uma possível explicação preliminar pode estar relacionada ao fato de que no Governo Médici, com o clima de repressão bem mais explícito, muitos editores teriam preferido não editar certos títulos, pois provavelmente seriam automaticamente censurados. Ou seja, teria, nesta fase, prevalecido a autocensura, o que é terrível. Já no Governo Geisel, com as promessas de abertura política, é possível que a autocensura tenha diminuído, levando à edição de mais obras que afrontavam a ditadura, consequentemente proibidas”, conta Sandra. Tendo como foco a atuação do Serviço de Censura de Diversões Públicas, setor do DCDP, órgão do Governo Federal responsável pela censura a livros, a obra reconstrói sobretudo a censura oficial a livros de ficção. Antes disso, a autora relembra o quadro da censura no período que vai do golpe de 1964 até a edição do Decreto nº 1.077, que, em janeiro de 1970, estabeleceu a cen28
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sura prévia a livros e periódicos via DCDP. Sandra conta, por exemplo, que um dos primeiros atos dos golpistas, já no dia 3 de abril de 1964, foi o fechamento da Editorial Vitória, empresa ligada ao Partido Comunista Brasileiro-PCB. Segundo a pesquisadora, entre o golpe e a decretação do radical Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, “a censura a livros no Brasil foi marcada por uma atuação confusa e multifacetada e pela ausência de critérios, mesclando batidas policiais, apreensões, confiscos e coerção física”. Esse quadro iria transformar-se logo depois. O Decreto nº 1.077, cujo foco era a repressão a obras que atentassem contra a ‘moral e os bons costumes’, chegava a alertar que a publicação de determinadas obras, sobretudo as mais ousadas do ponto de vista comportamental, ‘obedeciam a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional’. Dessa forma, qualquer livro poderia ser considerado atentatório. E, ao menos no campo teórico, passava a ser mais fácil para a ditadura defender a censura moral que a censura política. A postura do Governo chegou a provocar manifestos de renomados escritores, como Jorge Amado e Erico Veríssimo, que declararam que em nenhuma circunstância mandariam os seus originais para o crivo dos censores. “Nós preferimos parar de publicar no Brasil e só publicar no exterior”, ameaçaram, em ações coordenadas que fizeram o Governo recuar parcialmente, liberando da avaliação prévia obras ‘de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático, bem como as que não versarem sobre
A carta de protesto da ABI pela censura ao conto O Cobrador, de Rubem Fonseca, vencedor do Prêmio Status de Literatura em 1978.
temas referentes a sexo, moralidade pública e bons costumes’. O que teria sido, então, mais censurado nos livros da época: a subversão política ou a de costumes? Com a palavra, Sandra Reimão. “Para os censores, havia uma correlação clara entre a destruição dos valores morais e a segurança nacional. Uma das conclusões do livro é que, quando tratamos da década de 1970, não é possível separar o universo moral do universo político. Fica claro que para a direita não havia como separar a subversão política da comportamental. Tudo isso era visto como uma coisa só. Para os poderosos da época, a moral e os bons costumes favoreceriam a ordem social. Não nos esqueçamos de que
parte dos militares entendia a sexualidade como possível ferramenta do expansionismo comunista”. A pesquisadora ainda destaca que, mesmo sob o pesado manto da censura, a imprensa e diversos de seus órgãos de representação, sempre que possível, condenaram os vetos às obras literárias. “É preciso lembrar, como mostram alguns dos anexos reproduzidos ao final do livro, a forte participação da sociedade civil questionando as arbitrariedades do Governo nesse setor. A imprensa tomou essa posição por algumas vezes. E a própria Associação Brasileira de Imprensa, por exemplo, protestou, em 1978, contra a proibição da publicação, na revista Status, do conto O Cobrador, de Rubem Fonseca”, conclui. No final da obra, a autora faz um passeio pela história das proibições às publicações impressas no Brasil, passando pelo início das atividades de edição, em 1808, até o Estado Novo de Getúlio Vargas, na ditadura de 1937 a 1945, quando livros foram apreendidos em livrarias e até mesmo incinerados. Ao contextualizar a produção literária e as formas de impedir a veiculação das formulações dos autores na ditadura, Sandra Reimão revela a seus leitores as contradições da censura aos livros e, mais profundo do que isso, os efeitos danosos para a cultura brasileira do cerceamento à liberdade de expressão, fruto amargo da ausência de democracia.
Os pareceres de dois censores, chamados de “Técnicos de Censura”, para os livros de Aguinaldo Silva e Rubem Fonseca: enquanto o primeiro foi censurado por conter “matéria imprópria”, com “ofensa aos militares em geral”, o segundo foi vetado por retratar “personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática de deliquência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referência a sanções”.
DEPOIMENTOS DE DOIS AUTORES CENSURADOS Mocidade Independente de Padre Miguel, ainda me propôs uma versão teatral, mas também foi proibida. Depois de passar mais de três meses no Doi-Codi em 1970 e já exilado na Alemanha, recebi, em 1977, um exemplar de uma edição clandestina, produzida por estudantes da Puc de São Paulo. Com a anistia, o Ênio lançou a terceira, em 1979. A quarta saiu em 1995, pelo Centro de Memória da Juventude, em São Paulo, com prefácio do atual Senador Lindbergh Fari-
O PODER JOVEM RESISTE P OR A RTHUR P OERNER
DIVULGAÇÃO
FRANCISCO UCHA
O Poder Jovem foi o meu terceiro livro, depois de Assim Marcha a Família (1965), uma crítica às marchas que mobilizaram a opinião pública para o golpe militar, e Argélia: o Caminho da Independência (1966), sobre a vitória, quatro anos antes, da guerra de libertação do país africano. Escrevi-o, sobretudo, para rechaçar o principal argumento invocado pela ditadura na repressão às manifestações estudantis, o de que estudante não deveria “se meter” em política, pois “sua função é estudar, assim como a do padre é rezar ”. A de militar politicamente deveria, portanto, ser reservada aos militares. Quando comecei a escrever O Poder Jovem, no segundo semestre de 1966, eu tinha 26 anos, acabara de me tornar o mais jovem brasileiro a ter os direitos políticos suspensos por dez anos, por decreto presidencial do Marechal Castelo Branco, e respondia a IPM (Inquérito Policial Militar) por ter sido diretor do semanário Folha da Semana, o primeiro jornal alternativo de resistência à ditadura, onde brilharam, entre outros, Maurício Azêdo, Sérgio Cabral e Otto Maria Carpeaux. Era redator e articulista do Correio da Manhã, que liderava a resistência na imprensa do País, e cursava a Faculdade Nacional de Direito, onde participava diretamente do movimento estudantil, através do Caco (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira). Sem perder de vista a idéia central de refutar a argumentação ditatorial, pesquisei muito na Biblioteca Nacional e fui beneficiado pela preciosa contribuição de ex-líderes estudantis, como o ex-Ministro Hélio de Almeida e o ex-Deputado José Gomes Talarico. Descobri que desde, pelos menos, 1710, quando jovens seminaristas repeliram a invasão do Rio de Janeiro pelo corsário francês Jean-François Duclerc, a juventude brasileira teve participação política – algumas vezes, decisiva em nossa história. No início de 1968, o movimento estudantil, em fase ascendente, assumira a liderança da resistência nacional à ditadura, já que os movimentos sociais, principalmente os sindicais, haviam sido esmagados. O meu editor, Ênio Silveira, da
as, e a quinta, revisada, ampliada e atualizada, em 2004, pela Booklink, do Rio, com prefácio do atual Ministro dos Esportes, Aldo Rebelo. Com esta, viajei de Manaus a Porto Alegre numa Caravana da Une, lançando o livro e fazendo palestras em 16 universidades de 15 Estados. Não sei dizer se a minha prisão pelos militares foi por causa d’O Poder Jovem. Acho que, como certas premiações culturais, ela foi mais pelo conjunto da obra... Rio de Janeiro, 14 de maio de 2012
Civilização Brasileira, que também editara os dois livros anteriores, intensificou as pressões para que eu lhe entregasse os originais, mas eu adiava o ponto final porque a cada dia ocorriam fatos relevantes que eu não queria deixar de fora do livro. O querido amigo, extraordinária presença na história cultural do nosso povo, mais experiente e menos otimista do que eu, já pressentia o momento em que a publicação se tornaria impossível. Rendi-me. Em 28 de março, o assassinato do estudante paraense Edson Luís de Lima Souto, numa invasão policial do restaurante do Calabouço, me obrigou a escrever uma Nota Complementar ao livro. E o Ênio, sem qualquer ressalva aos originais, me comunicou que, com o agravamento da situação, o livro, já com o prefácio escrito por outro querido amigo, o dicionarista Antônio Houaiss, precisaria de mais um texto, uma espécie de salvo-conduto que garantisse a sua circulação. Rejeitei os nomes inicialmente aventados para um segundo prefácio, dos Governadores de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e de São Paulo, Abreu Sodré. Acuado, acabei solicitando o texto ao General nacionalista Pery Constant Bevilaqua, que, pelos seus votos liberais no Superior Tribunal Militar, acabaria punido pelo Ato Institucional nº 5. O prefácio do Houaiss virou apresentação. O livro foi lançado em 26 de julho de 1968, na atual Universidade Cândido Mendes. E ficou algumas semanas na lista dos mais vendidos da então recém-lançada revista Veja, o suficiente para que eu pudesse comprar o primeiro e único carro da minha vida, um Fusca de segunda mão. No período de clandestinidade que vivi depois de fugir pelas janelas do Correio da Manhã na noite do AI-5, soube que havia sido um dos primeiros 20 livros oficialmente proibidos, mediante portaria do Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid. Menos mal: esgotado nas livrarias, já não sobravam exemplares para apreensão. Um jovem pernambucano, o então futuro carnavalesco Fernando Pinto, da
UM SENTIMENTO DE VERGONHA P OR A GUINALDO S ILVA
Aqui em Portugal, onde estou neste momento, não tenho condições de dizer em que ano Dez Estórias Imorais foi publicado. Talvez no final dos anos 1960, ou bem no começo dos anos 1970. (N.R. A primeira edição é de 1967, uma brochura de tamanho pequeno, com 148 páginas. Houve ainda uma segunda edição em 1969). Era um livro de contos que, sem maiores pretensões, reunia as minhas primeiras histórias, escritas bem ainda na adolescência. O título foi idéia do editor, Hermenegildo Sá Cavalcanti, da Gráfica Record, que publicou a obra. Foi ele mesmo que me informou sobre a proibição do livro. “Foi proibido por quê?” – eu perguntei na época, e ele não soube responder. Não havia ninguém de plantão para responder aos desmandos praticados pelos censores da ditadura. Como nenhum deles explicou até hoje por que fui preso na noite do dia 5 de novembro de 1969, levado para a Ilha das Flores e lá ‘abandonado’ por 70 dias. O que senti na época, e o que sinto agora, quando recordo esses episódios? Vergo-
nha. Uma estranha vergonha, que não consigo explicar. Não vergonha de mim, ou de alguma coisa que tenha feito, mas vergonha do que ‘eles fizeram’. A censura é uma violência eu sei, isso deve ser dito mil vezes. Mas pra quem a sofre, ela é principalmente vexaminosa. Dez Estórias Imorais, na verdade, nem era um livro que valesse o esforço dos censores, não tinha nada que justificasse a proibição, além do título, que era só um chamariz para o seu conteúdo. Hoje, dizem que os tempos mudaram. Mas eu sinto que uma nova forma de censura se abate sobre nós, e ela é tão abjeta quanto a da ditadura. É a censura do politicamente correto, que aos poucos vai moldando até a linguagem das pessoas, decidindo o que elas podem dizer, para chegar ao estágio final de dizer o que elas podem pensar. O que eu sinto quando sou afetado por esta nova censura? O mesmo que senti nas muitas vezes em que fui atingido pela outra: vergonha. Não de mim, nem do que tenha feito, mas de quem se dá a esse trabalho infame de decidir pelos outros. Portugal, 16 de maio de 2012 JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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REPRESSÃO O LIVRO CENSURADO
MALDITAS ESCRITORAS Os livros pornográficos de Cassandra Rios e Adelaide Carraro provocaram a ira da censura no regime militar e fizeram delas os escritores mais perseguidos da História do País. P OR G ONÇALO J UNIOR
O
dete Rios era, em 1947, uma menina de 15 anos, quando decidiu que estava na hora de publicar seu primeiro romance. Nascida e criada no bairro paulistano de Perdizes, com seus sobrados de classe média, a garota não se encaixava no perfil de uma menina comum, por causa da quantidade de textos que havia escrito. Cursava a terceira série do ginásio particular vizinho à sua casa e tinha gavetas abarrotadas de manuscritos. Desde poesias e crônicas a novelas, contos e, pasmem, dois romances finalizados. Nada parecido com as histórias açucaradas da mítica “Biblioteca das Moças”, coleção muito popular na época e destinada a alimentar o sonho do príncipe encantado das adolescentes. Tanto que, certa vez, como escrevia durante a aula e passava as folhas para as colegas, um texto seu acabou em confusão: a professora apreendeu o que era parte de um capitulo de Carne em Delírio – trazia a descrição de um tórrido momento de sexo entre duas garotas. Odete levou suspensão de
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Recortes da Realidade (acima) e de O Pasquim (ao lado): Perseguidas pela censura, as escritoras foram destaque nas páginas dessas publicações.
três dias. A pena funcionou como leve batismo de fogo para o que estava por vir. Nada que a abalasse, porém. Determinada, a menina queria ver um livro seu publicado o mais rápido possível. A estréia, tinha decidido, seria com A Volúpia do Pecado, a ousada e desafiadora história de amor entre duas adolescentes – o homossexualismo feminino se tornaria o tema predominante em seus livros e um escândalo sem precedentes na literatura brasileira. Sem conhecer nenhuma editora, Odete recorreu à lista telefônica e fez contato pessoalmente, uma por uma. Quando não a despachavam sumariamente, contou ela à revista Realidade, em 1970, as editoras pediam que deixasse os originais e viesse saber a resposta alguns dias depois. Na terceira negativa, decidiu fazer um teste: suprimiu um capítulo e confirmou sua desconfiança de que os
editores não liam os originais que recebiam. Decidiu arranjar dinheiro e bancar ela mesma a impressão. Seus pais, espanhóis católicos da Galícia, tinham meios para isso, mas a adolescente temia que se lessem o romance, reprovariam a idéia. Odete virou secretária de um advogado amigo da família e passou a juntar cada centavo que recebia para a entrada de 50% que a gráfica lhe pediu – do total de 50 mil cruzeiros. Fez as contas e viu que teria de trabalhar ao menos três anos para conseguir o dinheiro. O resto, tinha absoluta convicção, pagaria com as vendas dos 2 mil exemplares encomendados. Como o pai era contra a filha trabalhar, a mãe (Dona) Damiana fez um acordo secreto com ela: pagaria a entrada do livro e, em troca, ela deixaria o emprego. Odete concordou, mas fez uma exigência: a mãe jamais leria o conteúdo da obra. Quase um
ano se passou entre a primeira busca por uma editora e o momento em que teve um exemplar fresquinho em suas mãos. Vivia, assim, o momento mais emocionante de sua vida. Desde os 13 anos, a escritora usava pseudônimo de Cassandra, emprestado da princesa da mitologia grega que carregava uma maldição: ao mesmo tempo em que tinha o poder de prever o futuro, trazia a desgraça de jamais ser acreditada. Uma escolha, sem dúvida, enigmática. E que não demoraria a se mostrar assim. A alegria de ter a obra nas livrarias aos 16 anos veio acompanhada do esforço para impedir que algumas pessoas – a família, os professores e os colegas – a lessem, ante o moralismo que imperava na época e que ela havia aprendido à força com a punição no colégio. Como tinha a segunda parcela da impressão para pagar, Odete percorreu as livrarias da cidade e, em pouco tempo, as mil cópias foram vendidas. Quando voltou à gráfica para buscar os outros mil exemplares, o dono lhe fez uma proposta que, por ser inexperiente, aceitou de imediato: “Em vez de você nos pagar os 25 mil que nos deve, eu lhe dou 20 mil e ficamos com seu livro”. Até ser proibido de circular, 14 anos depois, foram nove reedições de que ela jamais viu um centavo de direitos autorais. Uma coisa a magoou: nenhum jornalista quis fazer uma resenha e ela concluiu que estava abaixo da crítica. Atentado ao pudor
Agora, um salto na história para 1962. Começava no Fórum de São Paulo, na Praça João Mendes, um processo contra a escritora Cassandra Rios, em que se pedia a proibição de todos os seus livros. Os jornais faziam grande estardalhaço por causa das acusações: pornografia, atenta-
do ou ultraje público ao pudor e outras categorias que constavam no Código Penal brasileiro. “Eu disse, minha filha, que você ia enfrentar o mundo!”, recordou Dona Damiana. E Odete argumentou: “Eu só queria, mãe, que eles soubessem a diferença entre a minha vida particular e as muitas vidas dos meus personagens. Será que isso é tão difícil?” Uma manchete de jornal alardeava: “Cassandra Rios procurada pela Delegacia de Costumes!” Ela tinha escrito, até então, dez livros. Desses, oito foram banidos por ordem de um juiz, ao final da ação que a condenou. Mais nova de três irmãs, nascida de um casal burguês católico, bem de vida, Odete tinha sido namoradeira e até noivara duas vezes nos tempos de estudante. Até que forjou o casamento com a ajuda de um amigo para sair de casa. Com suas histórias povoadas de lésbicas e poucos pudores, tornou-se amada e odiada com a mesma intensidade. Por causa da publicidade nas páginas policiais, virou um monstro para os moralistas e fez nascer o mito Cassandra. O fato de ser homossexual assumida a colocou na linha de acusações das mais absurdas por seus detratores no decorrer da década, como observou Realidade. Dizia-se que ela mantinha em casa um harém de menininhas, que teria seduzido e roubado a esposa do próprio irmão e de ter ela mesma vivido tudo de perversão que seus personagens protagonizavam nos livros. Mesmo assim, Odete continuou a trabalhar sobre o mesmo tema. De 1962 a 1969, escreveu mais 13 títulos. Estimou-se em 300 mil o total de exemplares vendidos a cada ano nesse período – ou a média de seis mil por semana. “Bom mesmo é Cassandra Rios, essa escancara tudo”, diziam seus leitores. Cassandra era tão teimosa e irritava tanto quem a perseguia que, como nenhum grande editor teve coragem de publicar seus livros depois da condenação de 1962, ou visse neles alguma qualidade que justificasse algum risco, ela montou no ano seguinte sua própria empresa, na Avenida São João, 439, galeria 24 de Maio, loja 119, Centro de São Paulo, onde depois seria montada a Galeria do Rock. Nascia
a minúscula Livraria Cassandra Rios Editora. Com tantos livros vetados, lançou três inéditos em um ano e conseguiu manter seu negócio, enquanto novos títulos brotavam como cascata de sua imaginação. Numa velocidade surpreendente, lançou de um a dois por ano. Nesse período, tornouse um ícone de resistência a que a História ainda não fez justiça. Uma postura de confrontamento que aparecia em títulos como Eu Demônia, que alcançou dez edições nos anos de 1960.
sandra Rios, Adelaide Carraro (1925-1992) vendia montanhas de livros com outro enfoque sexual: o da decadência moral das elites paulistanas. De grande beleza, Adelaide se tornou conhecida quando lançou, em 1963, Eu e o Governador, que teria vendido 70 mil exemplares na primeira semana de lançamento – e chegaria a 500 mil em alguns anos. A obra se tornou um escândalo político nacional, pois a autora teria romanceado uma experiência íntima que tivera com o Governador paulista Jânio Quadros na década anterior. A obra saiu pela Livraria Exposição do Livro, com sede na Avenida São Paulo, 526. Logo depois, Adelaide voltou ao tema com o provocativo Falência das Elites, pela mesma editora.
Um decreto castrador
Em 1970, no momento mais crítico da repressão da ditadura militar, Cassandra Rios chegou a uma posição jamais alcançada por uma escritora brasileira: a de ser a primeira mulher a bater um milhão de exemplares vendidos – na verdade, havia passado de dois milhões, divulgou-se depois – e a única no Brasil a viver exclusivamente dos direitos autorais de seus livros – entre os homens, somente Jorge Amado e José Mauro de Vasconcelos a acompanhavam. Algumas de suas obras alcançaram dez edições regulares, fora as clandestinas, rodadas sem sua autorização em gráficas de fundo de quintal em todo o País. Era a glória e seria a sua ruína. Enquanto Cassandra negociava com uma editora inglesa para ser publicada na Europa, o Presidente Emílio Garrastazu Médici baixava o Decreto nº 1.077, no dia 26 de janeiro de 1970, uma declaração de guerra à “licenciosidade”. Ou seja, investia com rigor contra as editoras de revistas e de livros que tratassem de sexo – até 1978, mais de 500 livros seriam proibidos de circular no Brasil. Imediatamente, todos os romances de Cassandra se tornaram proscritos. Sem exceção. Não era só uma questão moral. Pornografia virara algo inaceitável pelo regime militar, apesar da explosão da revolução sexual que se disseminava pelo mundo, plantada já na década de 1950, com o surgimento da pílula anticoncepcional. Pouca gente sabe, mas a campanha moralista em 1963 e 1964, que ajudou a derrubar o Presidente João Goulart, incluía em seus
Cassandra Rios na capa do Pasquim: entrevista provocante.
manifestos um esforço contra revistas e livros que pregavam o amor livre, o prazer sexual das mulheres, a livre fantasia sexual e até o direito de gostar do mesmo sexo. Por outro lado, o sexo impresso também estava ligado à subversão. O Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, jurista renomado e um obcecado pelo tema pornografia, acreditava que havia por trás da defesa da “publicidade” do sexo um bem articulado plano idealizado pelos comunistas de Moscou para desestruturar a família nos países que defendiam a liberdade – o que incluía os que viviam sob uma ditadura militar. Não deixava de ser curioso que os comunistas diziam que a pornografia era um dos aspectos da decadência capitalista e não deveria ser tolerada. O que mais indignava os paladinos dos bons costumes, entretanto, era que na linha de frente desses tempos de pré-revolução sexual havia duas mulheres escritoras, supostamente filhas de respeitadas famílias de classe média, que teimavam em fazer “apologia” ao tema. Além de Cas-
Talento precoce
Quatro anos mais nova que Cassandra, Adelaide Carraro teve uma origem digna de um romance folhetinesco e trágico do século 19. Nascida no distrito de Rocinha, Município de Vinhedo, próximo a São Paulo, filha de pais pobres descendentes de italianos que viviam da lavoura, quando tinha quatro anos de idade ela e mais oito irmãos ficaram órfãos e acabaram num orfanato – onde teria até passado fome. A mãe morrera no parto do nono filho e o pai fora assassinado a facadas logo depois, ao tentar separar uma briga. Adelaide, como Cassandra, mostrou também talento para escrever precocemente. Seu primeiro texto que chegou ao conhecimento público foi a crônica Mãe, que lhe rendeu um prêmio aos 13 anos de idade e foi publicado num jornal de sua cidade. Após os sucessos de estréia com Eu e o Governador e de Falência das elites, que vendeu mais de cem mil exemplares em um ano, ela continuou a lançar livros com títulos fortes: Os Padres Também Amam, Eu Mataria o Presidente, Carniça e O Travesti.
Cassandra Rios e Adelaide Carraro foram criticadas ferozmente desde seus primeiros livros que tratavam de experiências eróticas e da decadência moral da sociedade.
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REPRESSÃO O LIVRO CENSURADO
O cerco contra Cassandra Rios, enquanto isso, transformou-a em assunto de capa de O Pasquim, então o porta-voz da imprensa contra a ditadura. Na edição de 26 de agosto de 1976, o semanário trouxe uma entrevista exclusiva com ela e o destaque de que sozinha teve mais livros censurados que D. H. Lawrence, Henry Miller e James Joyce juntos – os três eram alvos constantes da censura. Eram, até aquele momento, 36 títulos proibidos de circular – ou seja, tudo que ela havia escrito até então. “Não há pornográfico nos meus livros. Mas santo de casa não faz milagres. Eu sou como banana, fruto da terra. E quem dá valor ao fruto da terra?. Eu não fui lida por quem deveria ter lido, nem do modo como deveria ter sido lida, senão não me tachariam de pornográfica”, afirmou. E surpreendeu ao dizer que sua obra era “extremamente, essencialmente moralista”: “Eu sou moralista, nos meus livros há moralismo”. Ao saber da proibição de seus livros, comparou: “Fiquei como uma mãe traumatizada que não sabia que lá fora estava havendo guerra. Seus filhos estavam viajando, estourou uma guerra e todos morreram. É assim que me sinto em relação a meus livros”.
nistas e o desejo de liberdade de exibir mais o corpo – ventos de liberdade que a revolução sexual pregava e a Censura tentava de toda forma impedir que entrassem no Brasil. Assim, o sexo ajudava a minar uma ditadura, que já não mais conseguia iludir a população com o propagado milagre econômico, forjado pela mão de ferro da repressão. Portanto, contraditoriamente, o sexo continuava uma perigosa arma subversiva. Tanto que, em 1975, mais da metade dos espetáculos teatrais em cartaz no Rio de Janeiro, de acordo com levantamento do conserva-
pela liberdade sexual, porém, não arrefeceu. A atriz Odete Lara lançou sem meios-termos o livro Eu Nua, autobiografia considerada imoral por muitos. Os editores, contrariando os censores, “descobriam” – desnudavam era o melhor termo – as mulheres nas capas dos livros para atrair leitores, mas sempre consultando a Polícia sobre “o que podia e o que não podia” ser mostrado. Aos poucos, ousaram a ponto de lançar principalmente livros eróticos sem registro e sem consultar Brasília. A maioria dessas editoras de livros atuava de forma clandestina na região
dor jornal A Crítica, tratavam de sexo “de maneira declaradamente comercial, o que vale dizer, conferindo ao teatro um valor apenas material, lucrativo”, como descreveu o autor do artigo, o cineasta Orlando Senna. O assunto sexo era, na opinião de Senna, abordado de modo superficial, “preconcebidamente achincalhador, esquivandose de oferecer qualquer tipo de informação e qualquer nível de opinião ou posicionamento e, por isso mesmo, exercendo um estranho veto à capacidade de pensar de seus realizadores como também à capacidade de pensar do público”. Embora o regime militar tenha sido pressionado a suspender a censura prévia aos jornais diários em 1975, a Polícia Federal se manteve inabalável na sua cruzada contra a presença do sexo em qualquer forma de expressão. A pressão
central de São Paulo, na chamada Boca do Lixo, mais conhecida por sua produção de filmes de pornochanchada. Dentre elas, destacavam-se Ebex Brasil, Edições Sucessos Literários, L. Oren, Royal e Global GD, que depois se tornaria uma conceituada editora de livros sobre a ditadura militar. Esses pequenos empresários usavam todas as artimanhas possíveis para fugir da Polícia e até enganar os leitores. Como, por exemplo, informar na ficha que a Editora Universal ficava em Recife, quando, na verdade, sua sede ocupava um casarão na Rua do Triunfo, coração da Boca. Poucos além de Cassandra Rios e Adelaide Carraro assumiam o próprio nome em suas obras. A maioria usava pseudônimos em inglês – Lee Gryens, Roy Thomas, Marilyn Monray e P. A. Gusman. Os mais constantes eram Brigitte Bijou e G. Pop. Mas alguns
Ficha policial
Tão polêmica e boa vendedora de livros quanto ela só Adelaide Carraro. Em 1977, quando continuava a ser perseguida pela ditadura, ela acumulava uma extensa ficha policial por causa de seus livros: dos 23 títulos publicados até aquele momento, que passavam dos dois milhões de exemplares vendidos, 11 estavam proibidos de circular pela censura e outros tinham sofrido cortes. Ela havia sofrido somente no regime militar cinco processos criminais e fora presa 18 vezes por atentado contra a moral e os bons costumes. “Para a Polícia Federal, meus livros são pornográficos. Para mim, não são”, defendeu-se, numa longa entrevista ao jornal O Pasquim, naquele ano. “Eu acho que o escritor tem que falar a verdade. Tem que ser como os grandes pintores, Gauguin, Renoir, Rafael, Goya, que pintavam as mulheres nuas. O escritor deve escrever aquilo que sente, de que adianta cobrir o sexo se é aquilo do qual nascemos. O sexo para mim é lindo, maravilhoso... O que para mim é uma realidade, para a censura é imoralidade.” Cassandra e Adelaide ganhavam mais e mais exposição e linchamento policial à medida que o sexo avançava, em meados da década de 1970, com discussões como a criação da lei do divórcio, as idéias femi32
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recorriam a pseudônimos em português, como Márcia Fagundes Varella e João Francisco de Lima. Abertura ao sexo
Após a aprovação da lei do divórcio, em abril de 1977, numa luta que durou mais de 30 anos, a ditadura começou a sinalizar mais abertura ao sexo no ano seguinte. E tomou a iniciativa de encomendar uma “reformulação” da Censura e de seus critérios – que começaria a ser aplicada somente em 1979. Liberou-se, por exemplo, o romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e as obras de Cassandra e Adelaide – que ainda demorariam a encontrar editores interessados em publicá-las, pois havia ainda risco de apreensão. No teatro, Plínio Marcos pôde encenar de novo Navalha na Carne e Dois Perdidos Numa Noite Suja, mas Abajur Lilás e Barrela continuaram sob veto. Por causa de fatos assim, boa parte da classe artística via com desconfianças o processo de abertura em seu meio. “Tudo isso é reversível na hora que assim desejarem”, disse a descrente Fernanda Montenegro. Afinal, havia muito a avançar. Dos filmes brasileiros interditados desde o AI-5, apenas dois tinham sido liberados – Iracema, Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanski e Orlando Senna, e Contos Eróticos, de Joaquim Pedro Santos e Eduardo Escorel. O Decreto nº 1.077 perdeu a eficácia em 26 de fevereiro de 1980, exatamente no dia de seu décimo aniversário. Um acordo entre o Ministério da Justiça e editores de revistas e livros, além de produtores e distribuidores de filmes, estabeleceu que a liberação total do sexo – que incluía o nu frontal – seria iniciada a partir daquele momento. Mas havia uma condição: excessos não seriam tolerados. Tudo fugiu ao controle dos censores. Em poucos meses, o erótico foi trocado pela pornografia e o País viu as livrarias e bancas serem inundadas de publicações de sexo explícito. Cassandra e Adelaide receberam uma atenção especial nesse momento. Pela primeira vez, duas grandes editoras resolveram reeditar suas obras: a Record e a Global, respectivamente. Os livros voltaram ao mercado em edições bem produzidas, com belas fotos nas capas e acabamento primoroso. Muita gente correu para ver por que as duas eram tão perseguidas. A ditadura, nesse momento, agonizava. E, como sempre, lá estavam as escritoras mais amaldiçoadas da literatura brasileira em todos os tempos, em pé, de cabeça erguida. E respeitadas, a única coisa que gostariam de ser desde que sentaram para escrever seu primeiro livro.
FRANCISCO UCHA
MÚSICA
Os encantadores do Nordeste O grupo que revolucionou a música nordestina na década de 1970, colocando-a no cenário musical brasileiro, comemora seus 40 anos e relembra Luiz Gonzaga. POR FRANCISCO UCHA O panorama musical e cultural no final da década de 1960 e início da década de 1970 fervilhava com os Festivais da Canção. A Jovem Guarda era passado. A Bossa Nova cedia lugar à música de protesto. E a ditadura mostrava a sua verdadeira e mais cruel face, perseguindo, censurando, matando e torturando. Éramos, enfim, tricampeões. Mas o caldeirão cultural do Nordeste estava inquieto. Mais precisamente em Pernambuco, alguns jovens músicos intimamente ligados à cultura popular, pesquisadores da raiz musical nordestina, de repente surgem para a fama depois do lançamento, em 1972, de seu primeiro disco, chamado simplesmente de Quinteto Violado. Na capa, um plágio que correu o mundo. No disco, uma sonoridade do mais alto nível, com músicas memorá-
veis, como a belíssima adaptação para a clássica canção Asa Branca, de Luiz Gonzaga. Esse primeiro disco entrou para a História e mudou o cenário musical brasileiro, chamando a atenção do Brasil urbano para o cancioneiro regional. Mas esse grupo já havia participado de um lançamento musical bem-sucedido e premiado. Com o objetivo de presentear os clientes de sua agência, o publicitário paulista Marcus Pereira lançou A Música Popular do Nordeste, um conjunto de quatro lps que teve à frente o trabalho de um Quinteto em início de carreira. Durante oito meses, numa abrangente pesquisa, o grupo registrou violeiros, emboladores, bandas de pífanos e as diversas manifestações musicais nordestinas, como frevos, cirandas, cavalos-marinhos. Essa obra aca-
bou recebendo o prêmio de Disco do Ano do Museu da Imagem e do Som. Comemorando 40 anos de carreira, o Quinteto Violado iniciou uma turnê de shows, que incluiu também uma exposição, o lançamento do dvd 40 anos – Quinteto Violado e de um livro escrito por José Teles. Quando de sua passagem por São Paulo, Marcelo Melo e o Quinteto concederam esta entrevista ao Jornal da ABI,na qual falam de sua carreira, do trabalho de pesquisa que ainda realizam, da Fundação Quinteto Violado e da imprensa, que não olha com muita atenção as raízes brasileiras. Marcelo, único remanescente do grupo original, relembra também com carinho e emoção do Rei do Baião, que deu norte à musicalidade do Quinteto e foi sua ‘estrela-guia’. JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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Quinteto Violado em Copacabana em 1972, com sua formação inicial (da esquerda para direita): Marcelo Melo, Luciano Pimentel, Fernando Filizola, Sando e Toinho Alves. Abaixo, em 1977, numa foto publicitária com trajes de vaqueiro (gibão de couro): Zé da Flauta entra no lugar de Sando.
Jornal da ABI – Conte como foi o surgimento do Quinteto Violado há 40 anos. Como foi a descoberta dessa sonoridade que revolucionou a música nordestina?
Marcelo Melo – O Quinteto surgiu quando a gente se reencontrou, eu e Toinho. Eu fiz curso de engenheiro agrônomo, trabalhei dois anos como agrônomo. No período que passei fazendo universidade, me encontrei com Toinho, conversamos... Jornal da ABI – Ele fazia o quê?
Marcelo – Ele era químico. Trabalhava na indústria, mas tocava nos bailes da vida, fazia parte de vários conjuntos e tinha um quarteto vocal com o Naná Vasconcelos, mais um outro músico e um cantor. Ele me chamou e eu fiz parte de Os Bossa Norte. Com esse grupo participamos de vários Festivais. Eu fazia parte de um grupo de teatro e música que era o pessoal de vanguarda em Pernambuco com uma referência cultural muito rica. Era a época do TPN (Teatro Popular do Nordeste), do Grupo Construção, havia os Festivais de música, e essa coisa toda. A gente se reencontrou depois de eu passar dois anos fora do Brasil fazendo pós-graduação. Quando assumi a minha profissão como engenheiro agrônomo, tive que me afastar um pouco da música. Eu me interessava mais pelo lado social da agricultura, mas a situação política do País estava muito difícil. E isso dificultava meu trabalho no campo. Eu tinha essa outra opção, que era a música. Fora do Brasil fiz música com uns amigos africanos que tinham gravado o último disco com o Vandré cantando, Nas Terras do Benvirá. Aí voltei para cá e disse: ‘Vou mexer com música’. A outra possibilidade que existia era a de trabalhar numa universidade e seguir carreira acadêmica. Mas para mim era muito difícil ficar numa universidade ensinando problemas brasileiros. Foi quando eu e Toinho nos encontramos e começamos a compartilhar idéias sobre uma coisa e outra, sobretudo a leitura dos cancioneiros nordestinos e, principalmente, a musicalidade de Luiz Lua Gonzaga. Então a gente fez os arranjos de Asa Branca, de Vozes da Seca, e começamos a tocar temas dos folguedos populares que eu tinha pesquisado na época em que fazia parte do grupo Construção. Era bumba-meu-boi, cavalo-marinho, ciranda e outras músicas. Jornal da ABI – Músicas populares com uma nova leitura...
Marcelo – O Quinteto apresentou uma nova leitura para a música nordestina, dos folguedos populares, dos cancioneiros e composições do próprio grupo. Tínha34
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mos essas três facetas para trabalhar. Foi quando nos encontramos com Hermilo Borba Filho. Ele ouvia o Quinteto ainda nos primeiros momentos, tentando mostrar aquela sonoridade nova que a gente apresentava para a música nordestina, e nos apresentou a Marcus Pereira, um publicitário de São Paulo que tinha um estúdio com Válter Santos. Marcus Pereira disse que estava com um projeto de fazer um mapeamento da música brasileira regional. Aí Hermilo disse que conhecia um grupo que estava seriamente envolvido com isso, com uma proposta cultural muito importante. Quando Marcus nos encontrou, adorou, ficou apaixonado pelo trabalho da gente e nos contratou para fazer a primeira coleção de lps, que era A Música Popular do Nordeste. Foi um brinde para os clientes da agência de publicidade dele. A gente pesquisava, documentava e fazia uma releitura da sonoridade nordestina. Está tudo naqueles quatro discos. Jornal da ABI – Como era feito esse trabalho de pesquisa?
Marcelo – Era botar um gravador na mão e viajar pelo interior, conhecer os cantadores, coquistas, emboladores, violeiros... Jornal da ABI – Só você e o Toinho?
Marcelo – Eu, Toinho, Fernando Filizola, que na época era o violeiro da gente. Ia também o Luciano Pimentel, que era o baterista e pesquisador e trabalhou com pessoas que pesquisavam profundamente o maracatu, os ritmos afros; era um camarada que também fazia jazz, música de baile, tocava nos grupos de baile, enfim, todos tinham vivência com a musicalidade de identidade nordestina. Jornal da ABI – Qual era a formação deles?
Marcelo – Toinho era químico, Fernando tinha feito administração... Jornal da ABI – Era paixão mesmo.
Marcelo – Paixão. E vocação musical. Era mais um trabalho intui-
tivo. Luciano Pimentel trabalhava numa banda de música da Prefeitura. Ele estudava música para tocar na banda. Tocava tudo. Quando nos juntamos para fazer essa leitura da música nordestina, trouxe um diferencial. E a gente conseguiu provocar um interesse da juventude que estava perdida, porque todos estavam saindo de uma ferida na cultura brasileira que os militares provocaram, pelo afastamento de pensar o Brasil, de pensar a identidade brasileira, de pensar a realidade que tivesse a ver com a nossa História, com as raízes culturais, porque eles eram muito assustados com qualquer manifestação, havia um maniqueísmo terrível, tudo para eles era contra o Governo. Os intelectuais do Brasil foram afastados, o movimento da Bossa Nova caiu em desuso, o Tropicalismo era um movimento quase anárquico e satírico com aquela situação. Tudo para eles era agressão. Botaram Vandré para fora, Edu Lobo saiu, todo mundo saiu e ficou aquele vazio. Aí aparece o Quinteto trabalhando com elementos de raiz, manifestando a emoção do povo através da poesia natural, espontânea, que não havia como contestar. Esse foi o grande mérito do Quinteto.
De fazer que os elementos de raiz popular, de identidade, começassem a aflorar. E facilitou muito a compreensão aqui do ‘Sul Maravilha’, onde se situava o núcleo da produção industrial e cultural brasileira. Tudo o que vinha de lá do Nordeste era muito discriminado. Nós trouxemos Luiz Gonzaga para se apresentar nos teatros do Brasil. As pessoas precisam tomar conhecimento disso: não foi com a volta de Caetano e Gil, que começaram a cantar Gonzaga, não. Provavelmente através deles Gonzaga tenha tido maior espaço na mídia, mas a gente fez aqui o primeiro circuito universitário com Luiz Gonzaga. Alberto Oliveira foi quem coordenou isso. Gonzaguinha abria o show e Gonzaga entrava com a gente. E Gonzaga emocionou-se ao ouvir a leitura que o Quinteto Violado fazia da obra dele. Chorou. Ele disse: ‘A mais bela leitura de Asa Branca foi feita por vocês.’ Nós o aproximamos novamente de Gonzaguinha, que era o cara que estava se revelando o grande compositor, mas era considerado um menino “malcriado” que vivia a fazer críticas e músicas de protesto nos Festivais universitários. E Gonzaga trazia junto dele um sanfoneiro quase desconhecido,
que era Dominguinhos. Essa história foi um dos primeiros momentos do Quinteto. E a gente começou a perceber que o caminho era esse. E a gente não se preocupou mais em buscar o sucesso, explorar a música que podia vender mais; a nossa vontade não era essa. Tanto que todos os nossos discos dentro da gravadora Phonogram foram lançados através de seu selo nobre: o selo Phillips. Eles colocaram um produtor mais formal dentro do estúdio, que era o Paulo Coelho! Ele chegou a dar pitaco nos discos da gente. E o Quinteto estava ali sendo respeitado por todos, mas eles não sabiam como trabalhar o projeto do Quinteto. Jornal da ABI – Esse problema não persiste até hoje? A produção nordestina não é recebida com certo preconceito aqui?
Marcelo – Hoje, mais não. Hoje é mais respeitado e todo mundo atenta para o celeiro de manifestações de qualidade que há no Nordeste. A gente consegue preservar e manter uma certa unidade na produção. Temos 40 anos e praticamente 36 obras de lançamentos além de mais umas 12 de replicações e discos que foram lançados fora do Brasil. Quando fizemos 25 anos, Sérgio Cabral deu um depoimento no livro que a gente escreveu – Bodas de Frevo – onde ele dizia que o Quinteto foi um divisor de águas, existe a música nordestina antes e depois do Quinteto Violado. Porque a gente implantou uma sonoridade que nunca tinha sido feita.
Jornal da ABI – Vocês tinham noção disso?
Marcelo – Foi acontecendo. O Toinho é uma pessoa de uma genialidade fora do normal. E é muito humilde também. Ele ia fazendo as coisas. A gente nunca trouxe nenhum arranjador para fazer nada conosco, tudo era a gente que ia fazendo. Ele trazia uma idéia e nós íamos agregando; ele sabia a potencialidade de cada instrumentista do Quinteto e as coisas iam acontecendo. O resultado era um encantamento quando as pessoas nos ouviam. A gente provocou uma mudança de paradigma com relação à música nordestina e à música regional. Por onde o Quinteto passava as pessoas queriam saber qual era a fórmula. E não era uma fórmula não, era uma coisa intuitiva, espontânea, uma coisa natural que a gente ia fazendo. E como existia uma riqueza tão vasta de gêneros, de ritmos, de musicalidade, de poesia no Nordeste, isso ia fluindo. A matériaprima é muito grande. Tanto que na mesma época surgiu o Movimento Armorial, que era uma coisa idealizada por Ariano [Suassuna],
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Em 1981 o Quinteto Violado se apresentou no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, junto com Luiz Gonzaga: um show antológico.
a concepção teórica e filosófica do movimento era de Ariano, juntamente com os músicos. Eles pegavam a mesma matéria-prima que nós trabalhamos, mas levavam para a bancada de músicos de sinfônica, de conservatório, e faziam arranjos naquele molde. A música ficava com uma característica mais erudita, mais elitizada, mas não deixava de ser bela. Então eles começaram a se encantar com aquilo. E o Quinteto ia pelo caminho mais popular, porque a gente vem do interior, a gente viveu as manifestações das feiras populares, das cantorias, dos cocos, das emboladas, dos pastoris, dos reisados; a gente estava dentro dessas coisas. E era muito dentro de uma mentalidade do Hermílo Borba Filho, pesquisador que criou o Teatro Popular do Nordeste. Dudu Alves – Eu acho interessante também notar que é por causa dessa proposta musical que o Quinteto chega aos 40 anos ainda inovando, sempre tentando mostrar um arranjo diferente. A gente fez um disco em homenagem ao centenário de Adoniran Barbosa onde o Quinteto Violado faz uma leitura da obra de Adoniran Barbosa, junto com Jackson do Pandeiro. Mas o que a gente pôde observar é que durante todas as homenagens que foram feitas ao Adoniran não se viu nenhuma inovação musical. São apenas os artistas cantando aquilo que já foi cantado, sem ter uma interpretação diferenciada... Marcelo – Um formato previsível. É você ouvir a introdução e saber o que é que vai cantar. A gente toca essas músicas de Adoniran e Jackson, e quando começa ninguém sabe que música vai sair dali. E de repente sai uma música exageradamente badalada e tocada, como é o Trem das Onze, Iracema, Tiro ao Álvaro, Cabo Tenório. Dudu – Ainda hoje a gente continua fazendo aquelas pesquisas. Na Fundação Quinteto Violado a gente tem um grande projeto que é o registro de ícones culturais. Dentro desse projeto, a gente cria vários projetos interligados de pesquisa. Vamos ao interior para descobrir os valores culturais da região, como a Zabé da Loca, que é uma senhora de mais de 80 anos que tocava pífano, e de repente ela estava ali, morando numa caverna. Jornal da ABI – Como vocês conseguem chegar nessas descobertas?
Dudu – São contatos. A equipe vai à região e faz um levantamento. E quando descobrimos algo com potencial, definimos qual é o produto que vai gerar. Pode ser um livro, um dvd, um cd, várias coisas. Marcelo – Na região sisaleira da Bahia, no Sul do Estado, a gente
Abaixo, a capa do primeiro disco do Quinteto: plágio da gravadora rendeu processo.
encontrou umas mulheres que trabalhavam na colheita e preparação do sisal. Tinham uma cooperativa. Entramos na casa dessas mulheres que produziam e mandavam o material para a cooperativa. Aquelas mulheres tecendo, trançando o sisal... e a gente sentou com elas e começou a conversar. Perguntamos se elas não cantavam, quando estavam fazendo a coleta das folhas do sisal. Daí a pouco começaram a cantar! A partir dessa experiência montamos o disco As Cantadeiras do Sisal, que foi lindo! Dudu – Fizemos também um trabalho numa cooperativa em Serrita. O Toinho juntou os vaqueiros, gravou o aboio, que é o canto de trabalho deles, e montamos o Coral de Aboios. E esse grupo teve uma repercussão muito grande, porque veio para São Paulo e participou da peça Além da Linha da Água, que era do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, encenada com Marília Pêra. Esse trabalho de pesquisa que a gente mantém vivo resgata valores que às vezes estão escondidos naquela região e que não se imagina que de repente vai surgir uma coisa tão bonita. Jornal da ABI – Além desse trabalho de pesquisa, a Fundação procura fazer mais o quê?
Dudu – Hoje tem pesquisa sobre cavalhada, sobre os índios em Águas Belas, tem um trabalho que a gente fez na margem do Rio São Francisco. Nós pesquisamos em várias cidadezinhas daquela região a musicalidade das populações ribeirinhas. E tem também um trabalho de capacitação, chamado Cidadão da Arte, um projeto que a gente faz para meninos de 17 e 18 anos que moram em comunidades carentes. Fazemos um trabalho de capacitação para técnico de som, técnico de iluminação, montagem de palco, que são os profissionais que trabalham nos bastidores e que antigamente se aprendia na marra queimando muito equipamento... Marcelo – Não existia uma formação formal para esses técnicos.
E isso é uma maneira de fazer uma inserção social. A Fundação é uma continuação do nosso trabalho, de nosso projeto de proposta social, uma forma de dar uma contribuição com o nosso acervo, com a nossa experiência, com a nossa vivência nesse mundo cultural periférico, de ambiente rural e urbano, uma coisa que não tem um apoio e nem tem investimento das instituições oficiais de cultura e de educação. Jornal da ABI – Voltando aos primórdios, como foi essa história do plágio da capa do primeiro disco do Quinteto Violado?
Marcelo – No livro Lá Vêm os Violados, do jornalista José Teles, está bem explicado isso. A gente gravou o disco em 1972 e em 1975 fomos convidados pela própria gravadora para participar de uma grande festa no Midem, que era um mercado de edição musical, em Cannes, na França, e o Quinteto levou esse primeiro disco, além de Berra Boi e A Feira. O disco Quinteto Violado teve que ir sem a capa porque havia um processo de uma banda de rock*, pois o desenho da nossa capa era igual ao disco da banda e mudava apenas o chapéu, que era de um vaqueiro. Jornal da ABI – Mas como a gravadora lança o disco com uma capa exatamente igual a outro lançado na mesma época?
Marcelo – Eu achei essa capa linda (risos). O pessoal da gravadora viu o desenho da capa do disco da banda européia e achou arrojado, porque parece um cavaleiro em um campo árido, com a violência do cangaceiro, e acharam que a idéia foi boa. E foi realmente a grande partida da música nordestina através dessa imagem. Foi muito elogiada a capa. Mas infelizmente foi chupada de outra idéia.
Jornal da ABI – Mas quem foi o responsável? Eles acharam que ninguém ia notar o plágio?
Marcelo – Foi o departamento de arte da própria gravadora. Um rapaz chamado Aldo Luiz, que era o res-
ponsável por criar todas as capas. Depois disso, nós passamos a ter o controle de criação de todas as nossas capas! Eles nem questionaram. Jornal da ABI – O Quinteto Violado já teve várias formações. Como se mantém a mesma sonoridade passando por tantos músicos?
Marcelo – É a paixão, e a gente também realmente imprimiu uma linguagem. Essa proposta cultural está arraigada dentro do nosso coração. Porque este aqui (aponta para Dudu) é filho de Toinho. Aquele ali é sobrinho de Toinho. O outro é irmão daquele. Então é uma famí-
que essa convivência sonora começou a provar que a música do Quinteto vai além de qualquer instrumento. Marcelo – Outra coisa importante é que a gente não permitiu que o nosso trabalho envelhecesse. Eu tocava um violão acústico e Toinho tocava um baixo acústico. Mas isso não significava que a gente não pudesse passar para um baixo mais moderno e que eu tocasse um violão com efeitos diferenciados. Isso não importa. A gente usa o que for necessário a serviço da nossa proposta. Isso é o que eu acho fundamental. Nós não fazemos música para museu. A música é dinâmica porque a cultura é dinâmica. Jornal da ABI – A imprensa percebe isso?
Marcelo – O Quinteto não está incluído dentro dos grandes meios de mídia. Nunca fomos convidados para tocar no Som Brasil. Nos deram um prêmio de melhor da música popular brasileira como grupo regional em cima da leitura que fizemos de Adoniran e fizeram um programa todo sobre Adoniran e não chamaram o Quinteto. Mas isso não incomoda a gente, não é essa a nossa preocupação. Já ganhamos vários prêmios e recebemos Comenda do Mérito Cultural do Ministério da Cultura sem que o Quinteto esteja nessa mídia em que normalmente muitos músicos estão. Jornal da ABI – Mas isso não demonstra um olhar desleixado da imprensa sobre a cultura brasileira? Vocês notam diferença entre a imprensa do Sul e a do Nordeste?
lia de músicos que cresceu ouvindo essa harmonia. Quando eu e o Toinho criamos o Quinteto, Dudu tinha um ou dois anos de idade e acompanhava a gente no dia-a-dia. Dudu – É. Eu entrei para o Quinteto em 1990 já com essa proposta de trazer o teclado para o grupo. Jornal da ABI – Foi difícil trabalhar com seu pai e implantar o teclado?
Dudu – Trabalhei com ele e o grande drama era exatamente esse. Era trazer um teclado, um instrumento elétrico, para um Quinteto que trabalhava com viola. Então eu trouxe um pouco dessa proposta de sonoridade do Armorial, utilizando as cordas de violino, de cello, e também dar um apoio sonoro, de fazer o timbre da viola, o som da flauta. E aos poucos fui inserindo um pouco do timbre do piano, porque eu acho
Dudu – O próprio jornalista que trabalhou conosco na assessoria de imprensa conversou sobre isso. Ele nos falou que a imprensa que cobre cultura dá mais atenção para alguns setores mais importantes, que dão as diretrizes das coisas. Também há uma meninada que está chegando ao mercado de trabalho e que só pega informação muito ligeira. E não pesquisa muito. O Quinteto não tem essa preocupação de ter uma música de sucesso e trabalha o conteúdo... Marcelo – Nada é gratuito dentro dos nossos projetos, da nossa obra. Dudu – O que a gente sentiu é que essa meninada está acostumada a pegar aquela coisa muito mastigada, e quando pega um trabalho desse, que tem conteúdo, * Trata-se do disco Charge!, da banda inglesa Paladin, também lançado em 1972. A imagem é uma ilustração de Roger Dean, mais conhecido pelas criativas capas dos discos da banda Yes.
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Foto que compôs a contracapa do lp Pilogamia do Baião, de 1979.
que dá um certo trabalho para pesquisar e ver a importância cultural daquela música, daquela história, eles travam. Jornal da ABI – A imprensa de hoje não conhece o Quinteto Violado?
Marcelo – Com certeza. Mas quando os jornalistas mais jovens se dão ao trabalho de ouvir e de pesquisar, eles ficam encantados e começam a se interessar. Tanto que este ano foi um ano muito feliz para o Quinteto, porque nós conseguimos elaborar ações e produtos que permitiram uma presença na mídia muito interessante. Teve o livro Lá Vêm os Violados, do José Teles; a exposição que percorreu um circuito nacional; o novo dvd que resgata esses 40 anos através de um show montado com uma produção muito cuidada. No ano passado, o Quinteto foi homenageado no São João – que é uma festa muito importante em Pernambuco. Fomos o símbolo da Cultura Junina naquele ano. Fizemos concertos com a sinfônica. Recentemente estivemos em Brasília nos apresentando e quem assistiu ao nosso concerto foi o Senador Cristovam Buarque, que veio me abraçar chorando. Ele disse ‘Vocês não sabem o quanto foram importantes na minha formação, o quanto eu me emocionei ouvindo vocês tocarem’. O Luiz Carlos Prestes Filho, que viveu exilado na Rússia, disse “o alumbramento que tinha quando recebia um disco de vocês era como se eu estivesse ouvindo musicalmente a cultura do meu País, da minha terra, com a legitimidade que vocês conseguem imprimir”. Dudu – Em termos de mídia, eu acho que a internet é uma coisa que veio abrir muito essas barreiras. Passou uma fase que a mídia determinava o que era sucesso. Hoje em dia as pessoas tem mais possibilidades de chegar àquilo que elas querem ouvir. A internet abre muito essas portas. E o Quinteto tem Facebook, tem Twitter, tem o site, tem Orkut. A quantidade de vídeos do Quinteto no YouTube é muito grande. Marcelo – Em abril estivemos no programa do Rolando Boldrin (Sr. Brasil, TV Cultura). E depois ele me enviou um e-mail falando “Marcelo, fiquei tão encantado com a presença de vocês, para mim é tão importante que eu antecipei o programa, agreguei outras passagens de vocês por aqui e fiz um programa homenageando os quarenta anos do Quinteto”. Jornal da ABI – Você não falou sobre a imprensa do Nordeste.
Dudu – Quem escreveu o nosso livro foi o José Teles, que é um crítico de música do Jornal do Comércio, de Recife, e o Quinteto é mui36
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to bem relacionado com a Imprensa. No Brasil todo. Marcelo – Em Brasília fomos muito bem recebidos, em Curitiba também, no Rio tivemos a TV Brasil, que fez um especial, a TV Senado, em todos os lugares a Imprensa tem nos procurado muito. Dudu – Existe uma imprensa que é muito preocupada com um viés cultural. A gente é muito bem relacionado com esse segmento mais atuante da imprensa. Marcelo – Aqui em São Paulo fizemos o programa do Boldrin e o Metrópolis, da TV Cultura. Jornal da ABI – Alguma revista procurou vocês por conta dos 40 anos e desses shows no Rio, em São Paulo, Curitiba?
Marcelo – A Brasileiros. Vai sair uma página com o Quinteto. Jornal da ABI – Veja, Época, IstoÉ?
Marcelo – Não, não, nenhuma.
Jornal da ABI – Dessa nova geração que está fazendo música regional no Nordeste, você acha que o Quinteto Violado serviu de inspiração para alguns?
Marcelo – O Quinteto foi a escola. O próprio Lenine disse num depoimento que o Quinteto faz parte da genética dele, do dna dele. Aí tem Marcelo Melo, tem Santana o Cantador, Chico Science... Dudu – Agora mesmo teve um depoimento do cantor do Asa de Águia, que é completamente diferente da gente, mas que disse que o Quinteto foi uma referência muito importante para ele se situar. Jornal da ABI – Gostaria que cada um desse um depoimento sobre o início e a emoção de tocar no Quinteto Violado.
Dudu Alves – Sou filho de Toinho, entrei no Quinteto em 1990. Já tinha sido convidado pelo meu pai antes. Eu tinha uma banda instrumental chamada Man-
tra, que trabalhava a música brasileira com uma linguagem regional. Acho que foi um iniciozinho para essa minha caminhada no Quinteto. Mas quando ele me chamou a primeira vez, eu disse: ‘Rapaz, acho que não vai dar certo não’. Mas foi com o tempo que eu comecei a botar na minha cabeça qual era a linguagem que o Quinteto podia ter; o que é que o teclado ia fazer dentro do Quinteto Violado. E quando eu entrei foi como convidado. Passei algum tempo tocando como convidado para depois fazer parte como integrante do grupo. E para mim foi uma emoção muito grande porque quando eu comecei a tocar teclado eu não tinha como objetivo fazer parte do Quinteto. Eu tocava teclado porque eu gostava e curtia aquilo. Mas quando passei a trabalhar com o Quinteto, além de uma satisfação profissional, pude colocar muito do que eu pensava como tecladista na obra do grupo; pude aprender muito e tive a oportunidade de vivenciar muito mais o meu tempo com o meu pai, que, quando eu era pequenininho, viajava muito com o Quinteto. Nós tínhamos um relacionamento muito afastado nos meus primeiros dez anos de vida. Essa carência eu consegui reverter e vivenciar com ele nesse período em que a gente trabalhou junto. Depois ele veio a falecer, mas feliz da vida, pois cumpriu a missão dele, e eu também fiquei superfeliz de ter vivido esses momentos tão importantes com ele. E agora com o Quinteto Violado seguindo em frente, que é uma coisa que a gente não vai deixar parar nunca. Sandro Lins – Nasci em Olinda e já estou há dois anos e uns quebradinhos; entrei em 2010. Desde pequeno meus pais escutavam o Quinteto e eu comecei a me interessar pela música e quando comecei a estudar música, escutava o Quinteto. Os arranjos deles
eram um negócio difícil de ser tocado. Quando comecei a tocar com artistas em Recife, conheci Roberto [Medeiros], e ele me chamou para tocar com os filhos dele, que tinham uma banda chamada Alfabeto. Era tudo menino de nove anos, dez. Quando veio a falecer o Toinho, Roberto me chamou para tocar no Quinteto, eu fiquei animado! Tocar numa banda famosa, e tal, aquele sonho de músico, de querer estourar. Aí Roberto me disse: ‘Tu toca contrabaixo acústico?’. Eu falei ‘Toco’. ‘Tem instrumento?’ ‘Tenho’, respondi. Mas eu não tinha. Não sabia tocar nem tinha o baixo! Ciano me conhecia, e disse: ‘Rapaz, tu vai tocar esse negócio mesmo?’ Vou tocar! Fui na internet, pesquisei o baixo, fui na reunião, Marcelo falou comigo, perguntou se eu estava a fim, acertou tudo, e no outro dia eu já fui comprar um baixo vertical. Me deram o repertório e disseram: ‘você ensaia esta semana, pois na outra a gente já viaja para tocar’. Fui para casa e comecei a estudar! Fui no YouTube e comecei a ver como a galera tocava, dia e noite! A minha mulher me dizia ‘Tu vai endoidar!’. Pedi demissão do trabalho – eu trabalhava numa empresa de computação – e deixei tudo para me dedicar. Vendi a moto para comprar o baixo, foi uma mudança radical, mas foi para o bem. Acreditei em mim e estou aqui até agora. Ciano Alves – Sou de Garanhuns e já estou há quase 30 anos no Quinteto. Entrei em 1979. Desde pequeno eu escuto o Quinteto Violado e a primeira vez que eu vi um show deles foi em 1972: eles fizeram a inauguração do Teatro de Garanhuns. Parecia que eu estava vendo o Pink Floyd, o Rolling Stones, aquela produção do teatro! Eu gostava de música e estava procurando por um instrumento para me dedicar. Quando vi a flauta, disse: ‘Esse instrumento aí é bem interessante, menorzinho, o cabra carregava em todo canto’. Aí, meu pai falou que flauta não era um bom instrumento, bom era trombone, bateria, trompete. (risos) Eu falei: ‘Não, eu quero flauta’. Mas lá em Garanhuns não tinha conservatório nem ninguém que desse aula de flauta e comecei estudando flauta-doce com um tio. Depois de um bom tempo eu vim para Recife e passei a estudar no Conservatório. Depois de uns quatro anos estudando, Toinho mandou uma carta para mim dizendo que em tal data eu ia entrar no Quinteto para fazer um show em Salvador. Isso foi mais ou menos em 1979. ‘Mas sem ensaiar com o grupo? Toinho é doido!’, falei. Jornal da ABI – Mas Toinho sabia que você tocava bem?
Ciano – Sabia que eu estava estudando no Conservatório. Mandou os discos do Quinteto para mim, em Recife. Minha mãe ainda morava em Garanhuns, voltei para lá, me tranquei num quarto e fiquei um mês direto pegando a acústica, porque era difícil de pegar a acústica do Quinteto. Eu entrei no lugar do Zé da Flauta. Para mim o Quinteto é uma família, isso aqui é minha casa. Jornal da ABI – Mas eles saíram por quê?
Marcelo – O primeiro músico foi o Sando [Alexandre Johnson dos Anjos] que era um garoto de 14 anos. Um virtuoso. O pai e a família toda era de músicos eruditos, e ele já tinha feito até concertos com sinfônica e concertos com Armorial. Toda a formação dele era em cima de Vivaldi, fazia música erudita. E como todo menino, gostava de tocar um chorinho, frevo. Aí disseram pra gente: ‘Fala com o pai dele, pois ele daria certo para fazer um trabalho com vocês’. A gente chamou, eles resistiram, mas acabaram concordando. Ele era muito novo, começamos a viajar... nos primeiros dez anos viajamos muito! Foram milhares de quilômetros por estradas brasileiras com o ônibus da gente, porque não tinha como viajar de avião. Nós montamos uma estrutura num motorhome, um ônibus adequado, com leito, com tudo ali dentro, todo o instrumental, som, tudo o que a gente tinha que levar. Aí Sando começou a ter a carência da vida de criança, de ir para a escola, de brincar. A família mudou-se do Recife para o Rio Grande do Norte, todos contratados pela sinfônica de lá, e não deu para continuar. No livro há um depoimento dele dizendo como ele lamentou não ter o amadurecimento necessário para acompanhar o Quinteto. Aí chamei Zé da Flauta, que era um músico que tinha tocado com Alceu [Valença] e ele tocou com a gente, mas também não agüentou o ritmo. Já era casado, muito novo, a mulher não aceitou bem, só sei que em 1979 disse que ia parar. Foi quando veio essa batata-quente para o Ciano, e ele assumiu até hoje e substituiu à altura. Dudu – Acho que não só substituiu. Cada um que entra no Quinteto não entra com a função de substituir, ele vem para contribuir e somar. Nunca exigimos que Sandro no contrabaixo fizesse o que Toinho fazia, porque não vai fazer nunca. Ele aprendeu aquele caminho a partir da sonoridade que ele tira no baixo, inserir aquilo dentro do Quinteto. Marcelo – São os valores que vão se agregando à proposta. Toinho tinha uma linguagem ins-
Show realizado em tributo a Adoniram Barbosa e Jackson do Pandeiro em 2010.
trumental, e ele tem outra. Mas não significa que vai se comparar, quem é melhor; é outra coisa. E essa capacidade que ele tem, essa musicalidade, e a forma de execução é fundamental. Jornal da ABI – Continuando os depoimentos, agora o Roberto...
Roberto Medeiros – Já estou há 27 anos no Quinteto. Sou de Garanhuns, irmão do Ciano. E a gente é sobrinho de Toinho. A minha formação vem de banda de música. Meu pai foi maestro numa época e queria que um filho dele tocasse um instrumento de sopro. Ciano tocava flauta, e ele dizia que flauta era um instru-
sos] Soprava forte que só a gota! Então o meu pai me colocou na banda. Mas fui vendo que não era esse o meu caminho quando entrei numa banda de baile que meu pai tinha também. E lá eu encontrei uma tumbadora, que o pai tinha comprado, e eu vi aquele negócio e fiquei encantado. Meti a mão e comecei a tocar. Foi quando minha família veio para Recife e eu fui trabalhar numa firma de equipamento de som. Aprendi a mexer em mesa de som e Toinho me chamou para trabalhar no Quinteto, como técnico de som. Fiz muitos shows com o Quinteto Violado fazendo o som, mas minha vontade era tocar.
Estamos até hoje e vamos ficar muito tempo. Isto aqui é uma família. Sandro está entrando agora, mas já dei muito cascudo nele quando era menino: ele tocava com meu filho. Hoje tenho a alegria que Toinho teve, de ter um filho que toca bateria também, toca percussão – o João Roberto –, que toca no grupo durante o Carnaval. E para mim é uma alegria. Creio que este Quinteto não vai acabar nunca; sempre estará se renovando. Já tem gente na cadeira esperando a hora de entrar. Raminho – Meu pai é sanfoneiro e a minha formação musical veio de um trio de forró. Lá em casa eu escutava Luiz Gonzaga,
JOSE MARCOS
zabumba’. Aí sim eu tive a honra de conhecer Toinho e ele me deixou muito à vontade. Quando o Roberto me convidou, a gente começou a ensaiar, tocar, já para o projeto, e para mim foi uma honra. Eu ia tocar só no São João em 2003, e quando terminou o projeto... eu me lembro como se fosse hoje: estava lá sentado sozinho na Fundação Quinteto Violado, tomando um café, quando Toinho chegou, sentou na cadeira ao lado e disse assim: ‘Você quer ficar tocando com a gente?’ Para mim foi uma honra. Na época já estava agendada uma viagem do Quinteto para a França e Toinho me falou: ‘Você não vai nessa viagem, quem vai é outro percussionista, mas você já faz parte do Quinteto. Este prédio aqui é a sua casa. Não deixe de vir aqui.’ Não esqueci isso nunca mais. Eu não viajei, mas me senti como se estivesse lá com eles. É uma escola, na verdade, e eu aprendi a fórmula de tocar com sanfoneiro, com trio, e com o Quinteto. Não é fácil. Você tem que saber usar a zabumba no momento certo, com a batida que não choque com a bateria, com a forma de tocar o contrabaixo, tudo isso eu fui aprendendo. Roberto também me deixou à vontade e me incentivou a tocar outros instrumentos. E espero tocar por mais dez, vinte anos, quem sabe. Jornal da ABI – Marcelo, qual foi a sua maior emoção com Luiz Gonzaga?
mento muito sensível, que o bom era trombone, trompete, saxofone. E entrei na banda de música fazendo percussão, tocando surdo, caixa, mas pai queria que a gente tocasse instrumento de sopro. Mas não tinha como. Ele me deu um sax, passei um mês soprando naquela desgraça e não saía nada. Ficava tonto. Descobri depois que estava com um caroço de abacate dentro. (risos) Trocamos de instrumento. Me botou para tocar um instrumentozinho que nem existe mais, que era uma trompa que chamavam de ‘cachorrinho’, tinha quatro dígitos e a função dela na orquestra era fazer os contrapontos. Era horrível. E o pai disse que era muito pobre tocar esse instrumento. ‘Você tem que tocar um saxofone!’. E insistiu tanto que eu comecei a ter aula de saxofone e comecei a fazer um som danado, depois que tirei o caroço de abacate. [ri-
Sempre que o cara dava uma bobeira, eu estava lá pegando os instrumentos dele e tocando. Na época era o Luciano Pimentel, que para mim foi uma grande escola. Hoje, no Quinteto, na hora de tocar Asa Branca, eu faço ganzá com uma mão e o resto da bateria com a outra, e era o Luciano que fazia isso. Ele tinha essa forma de tocar diferente, e cada vez que eu toco Asa Branca estou homenageando ele. Acho que poucos músicos conseguem fazer isso. Mas eu não era baterista; me tornei baterista depois. Nem me considero um baterista, eu me considero um percussionista misturado com baterista! Para mim o Quinteto sempre foi e sempre será uma escola. Aprendi muita coisa com Toinho, levei muita bronca. Toinho era bravo, mas ele falava forte para a gente aprender. Toinho foi embora antes do combinado e a gente ficou com o Quinteto Violado...
Trio Nordestino, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos; a escola era essa. E meu pai, além de ser sanfoneiro, consertava acordeom. Consertava os instrumentos de Luiz Gonzaga, que comprava sanfona em São Paulo e levava para meu pai afinar. Eu sempre tive instrumento em casa: sanfona, zabumba, violão, piano, bateria, o que você imaginar tinha. E eu pegava em tudo quanto era instrumento. Meu pai queria que eu fosse sanfoneiro, era o sonho dele. Até em escola de futebol ele me botou. É que na época ele tocava no Forró do Náutico e através da amizade ele conseguiu que eu fosse jogar futebol lá. Aí eu fugia da concentração e ia para o forró que tinha do lado. Eu ficava lá dando canja, tocando, e acabei seguindo a carreira de músico. Foi quando o Roberto me ligou para tocar num projeto chamado Chinelada e me disse: ‘Você vai tocar
Marcelo – O meu encontro pessoal com Luiz Gonzaga aconteceu logo no início do Quinteto, quando a gente fez o circuito universitário aqui, com Gonzaguinha e Dominguinhos. JornaldaABI–Vocêsjátinhamfeito o novo arranjo de Asa Branca?
Marcelo – Já. Na realidade, desde menino, em Campina Grande, meu pai tinha loja de eletrodomésticos e vendia discos. E a gente sabia que na época junina tinha sempre o novo baião de Luiz Gonzaga: Chofer de Praça, Cortando Pano, Acauã, músicas todas que tocavam nas difusoras, nas praças, nas feiras. Eu cresci ouvindo o Luiz Gonzaga tocar nas rádios, era um encantamento para mim a música dele. Quando eu o encontrei pela primeira vez com a sanfona branca, todo paramentado, eu me emocionei muito. Eu chorei. Mas aí a gente foi se aproximando, e ele, muito carinhoso com a gente, já tinha referências da sonori-
dade do Quinteto, e quando aceitou fazer esse circuito universitário foi uma forma também de trabalhar com o Gonzaguinha, com quem tinha um relacionamento cheio de dificuldades. Tivemos também uma grande afinidade com Dominguinhos, que se tornou um irmão; quando ia para Recife, muitas vezes ficou hospedado na minha casa. Então Gonzaga ficou muito encantado, levou a gente para a casa dele na Ilha do Governador... a gente se aproximou muito. Numa das vezes em que fomos fazer um show no Rio Grande do Norte, num forró, Gonzaga ia se apresentar com a gente e ele foi no meu carro. Fui buscá-lo no hotel e nós viajamos três horas para lá e três horas para cá. Nessa viagem ele me contou toda a história da vida dele. Eu lamentei não ter um gravador. Me contou tudo: a relação dele com Gonzaguinha, a história dele no Rio de Janeiro, a saída de Exu, a volta; enfim, ele abriu o coração comigo. Jornal da ABI – Você escreveu isso?
Marcelo – Eu escrevi um pouco. Depois que ele faleceu um historiador de Pernambuco, o Souto Maior, me pediu que desse um depoimento na Fundação Joaquim Nabuco, mas não consegui ir porque estava viajando. Então escrevi e foi lido lá. Essa relação com Gonzaga foi um alumbramento para mim. Eu digo sempre, e é verdade: toda a sonoridade do Quinteto foi estabelecida a partir das leituras que a gente fez da obra de Luiz Gonzaga. Ele foi fundamental na definição de nossa sonoridade, com Asa Branca, com Acauã, com Vozes da Seca, com Baião na Garoa, com Arranjo de Algodão; enfim, a gente começou a trabalhar a música dele e descobrir a qualidade musical que ele emprestava aos grandes poetas que se aproximaram dele, como o Zé Dantas, meu preferido, mas há muitos grandes poetas que estiveram juntos com Gonzaga. A relação dele com o Quinteto foi a de uma estrela-guia. Agora mesmo vamos fazer uma homenagem a esse primeiro encontro nosso com Luiz Gonzaga. Vamos fazer um show com Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha, lá em Recife, chamado Quinteto Violado e Daniel Gonzaga contam Gonzagão e Gonzaguinha. A gente está convidando um poeta cantador que é o Santana, e a menina sanfoneira que é Lu [Lucyane Pereira Alves] e seu grupo Clã Brasil. Nós vamos fazer isso em homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga. Estamos gravando um cd com momentos da nossa leitura da obra dele que chama Quinteto Canta Gonzagão, dentro da celebração desses cem anos.
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CANINDÉ SOARES
MEMÓRIA
a gente não ganhe, mas eu vou morrer lutando”, anuncia Sandro. Uma guinada: a História da Imprensa
Um portal inimigo do esquecimento Iniciativa do jornalista Sandro Fortunato, o portal Memória Viva completa 14 anos na internet, com direito a novidades. Espaço digital é cada vez mais reconhecido como fonte confiável de consulta para curiosos e pesquisadores. P OR P AULO C HICO
Reza a lenda que o Brasil é um país sem memória. Poucos, na verdade, devem ousar discordar desta afirmação. A real questão, contudo, é saber se tal desconhecimento sobre o passado é fruto de inexplicável vocação para a ignorância ou consequência da falta de oportunidades de acesso à formação e à informação. Não é de hoje, felizmente, que várias iniciativas tentam mudar este triste cenário. Foi para tornar público o baú de recordações, permitindo a ampla disseminação de parte da rica História do País, que no dia 20 de abril de 1998 entrava no ar o Memória Viva, portal editado pelo jornalista e fotógrafo Sandro Fortunato. “Comecei a navegar pela web em 1995. Naquela época, qualquer um que trabalhasse com pesquisas estava eufórico com a transformação que aconteceria a partir da possibilidade de ter todas as informações surgindo na tela do computador ou, quando isso não fosse possível ou suficiente, pelo menos uma seta indicando o caminho a ser seguido. Sempre me interessei por História e biografias. Em 1996 ou 1997, já era fácil encontrar muita informação sobre personalidades e acontecimentos históricos, em inglês. Principalmente sobre os Estados Unidos ou de países europeus. Em 1998, eu ainda procurava páginas sobre per38
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sonalidades brasileiras que admiro e não encontrava grande coisa. Então, resolvi deixar de ser apenas um pesquisador passivo e me tornar um provedor de informações para outros pesquisadores e curiosos”, conta Sandro ao Jornal da ABI. Foi assim que em 21 de março de 1998 entrava no ar o site sobre Luz del Fuego – uma espécie de embrião do futuro Memória Viva. Imediatamente, seu lançamento apareceu em todas as revistas especializadas em internet e nos cadernos de informática. Sandro logo se empolgou com a repercussão e... click! Em menos de um mês estava criado o portal. Além do perfil da bailarina e naturista capixaba, o site de estréia trazia os nomes de Tancredo Neves, Wilson Grey e Grande Otelo, dentre outros. Até 2003, novos perfis foram acrescentados periodicamente: Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato, Câmara Cascudo... “O nome Memória Viva foi escolhido justamente para chamar a atenção para este que é um dos mais graves problemas nacionais. Temos uma educação fraca e nos admiramos facilmente com o que vem de fora. Adoramos imitar os outros e não tratamos de fortalecer nossa pró-
pria cultura. Abandonamos nossas tradições e as trocamos pelos maus costumes de outras sociedades, nos deixando dominar culturalmente. Os brasileiros que se preocupam e fazem algo por isso formariam, no máximo, um pequeno Município. Se não conhecemos nossa História e não preservamos a memória, a tendência é não termos uma identidade cultural. Fica fácil baixar a cabeça para as culturas estrangeiras e, o que é pior, sem qualquer filtro. O Memória Viva está aí para arregimentar um pequeno exército. Drummondianos contra vampiros cintilantes. Lobatianos encaram os bruxinhos fofos. Cascudianos defendendo nossas fronteiras da invasão de zumbis. Pode até ser que
Durante os cinco primeiros anos, o Memória Viva foi um portal exclusivamente de sites biográficos dedicados a personalidades brasileiras. “De 2001 a 2003, trabalhei no Senado Federal. Nesse período, ajudei em uma pesquisa sobre Juscelino Kubitschek para uma publicação feita por uma das Secretarias e a grande fonte foi a revista O Cruzeiro. Desde os tempos da faculdade, sempre fui interessado em História do Jornalismo. Aproveitei esse mergulho em alguns acervos e fui reproduzindo – por scanner ou fotocópia – muitas das matérias que encontrava com a idéia de que poderiam servir para produzir futuros sites de outras personalidades. Quando o site completou cinco anos, ele foi para sua primeira final no Prêmio iBest. Quando voltei da festa de premiação, achei que estava na hora de dar um novo gás ao Memória Viva. Daí me veio a idéia de fazer uma homenagem à revista O Cruzeiro com um site que a fizesse reviver, apresentando uma edição a cada semana. E assim foi feito”, recorda Fortunato. Esta foi a primeira grande mudança do Memória Viva, que este ano completa 14 anos. O portal deixava de ter apenas biografias e passava a tratar também da História da Imprensa brasileira. A guinada foi um sucesso e noticiada em jornais e revistas de todo o País. Memória Viva foi finalista das edições seguintes do iBest: em 2004, Top 10 na categoria Arte & Cultura e novamente Top 3 na Regional; em 2005, vencedor da categoria Arte & Cultura por votação popular e Top 3 por indicação da Academia iBest. A partir de então, o foco principal se manteve nas biografias e na História do jornalismo, mas o portal foi acompanhando a evolução da internet e usando as plataformas que foram surgindo: blogs, redes de compartilhamento de imagens, microblog e redes sociais, oferecendo cobertura jornalística focada no mundo cultural, por clipagem, ou com reportagens próprias. Exatamente por tratar-se de fonte de pesquisa, inclusive, sobre a História do Jornalismo no Brasil, o Memória Viva tem em sua credibilidade seu maior patrimônio, como destaca seu criador. “Hoje cumprimos, principalmente, o papel de uma fonte confiável. Eu não saberia dizer quantos trabalhos acadêmicos e livros tiveram o portal como uma de suas fontes e, muitas vezes, sua fonte principal. No último ano e meio, só de pedidos diretos, chegados por e-mail ou Facebook, colaborei com aproximadamente 50 trabalhos de conclusão de cursos ou teses de mestrado e doutorado. Isso sem falar em quem chega por lá, acha o que está procurando no próprio portal e nem faz contato direto. Em relação a livros, já comprei, sem saber, vários em que o Memória Viva havia servido como fonte de pesquisa. E só coisa boa! De autores como Gonçalo Jr. a Ana Maria Bahiana. E, sem querer parecer arrogante ou dono de todo o conhe-
cimento, eu diria que outros, até bem conhecidos, teriam evitado sérios erros se tivessem feito uma rápida consulta ao site. Mas sempre há a possibilidade de corrigir algo na edição seguinte”, aconselha. Os números dão a dimensão do poder de fogo do portal. “Atualmente, como quase tudo na web que não seja o Google (o grande Deus que responde tudo) e o Facebook (o grande compartilhador de inutilidades), há uma considerável oscilação no número de visitas, que tem ficado entre 45 mil e 90 mil mensais, que geram até meio milhão de páginas vistas por mês. Isso pode parecer muito, mas não vejo assim. A quantidade de informações disponibilizadas durante estes 14 anos é gigantesca; então, chega gente procurando pelos mais variados temas, desde algo que tenha um site enorme no Memória Viva a uma informação dada uma única vez, sete anos atrás, em um pequeno post no blog”, revela Sandro Fortunato, para quem o portal antecipou uma movimentação natural do mercado. “Acredito que ainda sejam bem poucas as iniciativas desse tipo, de digitalização da nossa memória, mas o quadro já melhorou muito. Sobretudo nos últimos cinco anos, quando as grandes bibliotecas começaram a digitalizar e disponibilizar os seus acervos. Há também outras iniciativas pessoais, que acabam ficando meio escondidas, pois não têm a devida visibilidade. Mas quem sabe pesquisar descobre qualquer coisa que exista”, acredita. Grandes nomes e temas abordados no portal sempre aparecem nos primeiros resultados de busca no Google. Muitas vezes, em segundo, logo após a Wikipédia. Por vezes, pode até mesmo descobrir que o texto da Wikipédia teve como fonte – surpresa! – exatamente o Memória Viva. Eventualmente, há picos de visitações relacionadas aos homenageados com sites. E verdadeiras explosões, como da vez em que Jô Soares abriu o site em seu telão durante entrevista em seu programa da TV Globo com João Moreira Salles. O ‘Gordo’ quase derrubou o servidor, às duas da manhã, no meio de um feriadão. Foram 3 mil acessos simultâneos, que provocaram grande lentidão, e mais 30 mil acessos nas dez horas seguintes. “Eu não ficaria chateado se ele fizesse isso uma vez por mês”, brinca Sandro. “Isso aconteceu há alguns anos. Hoje, muito mais gente acessa a internet e eu gostaria de testar a capacidade do nosso servidor. Os sites de O Cruzeiro, Drummond, Vinicius de Moraes, Luz del Fuego e Câmara Cascudo são as maiores portas de entrada. Os principais pedidos estão relacionados à História do Jornalismo e de personalidades muito evidenciadas pela imprensa”, diz ele, que, em virtude das pesquisas, leva uma vida quase nômade. Divide seu tempo entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Na atual fase, porém, reside com maior freqüência em Natal, no Rio Grande do Norte. Sucesso, apesar das dificuldades
Atento às tendências do universo digital, Sandro investiu pesado, no último ano e meio, em ferramentas como o Twitter e o Facebook. “Apesar de o grande sucesso
ção do portal, sua manutendessas redes ser o humor – e ção técnica, atualização nas quanto mais baixo o nível, redes sociais e de conteúdo, maior o seu sucesso –, existe ou mesmo interatividade quem esteja interessado em com os seguidores. História, cultura e preservaO Memória Viva, acredita ção da memória. O perfil Sandro Fortunato, leva às úldeve lotar em breve e a Fan timas conseqüências uma das Page, lançada em fevereiro primeiras tarefas do jornalisdeste ano, tem atraído mil mo: registrar a história. “Eu novos ‘curtidores’ por mês. não diria que o jornalismo é o O público é extremamente meio mais eficaz de se produdiversificado. Vai do aluno zir memória, mas é o mais code ensino médio ao doutomum e que faz isso em maior rando, do curioso ao pesquiescala. O jornalista é memosador, do saudosista ao admirialista sem querer. E sem se rador de imagens antigas. Na preocupar com isso, sem fazer área acadêmica, a procura é da forma mais adequada. Demaior por parte de alunos de pois de muitos anos de trabaHistória, Jornalismo e Letras. lho você se dá conta que, de alNo Facebook, os comentáriguma forma, atuou como meos vão da conversa corrimorialista: aquela entrevista queira àqueles, poucos, que Os sites de Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade no Memória que foi a maior ou a última de trazem informações comViva estão com visual renovado, novas funções e mais interatividade. uma celebridade, aquela foto plementares. Infelizmente, de um lugar que não existe há também aquele tipo semdos sites... “Com o tempo, você vai deimais, aquela matéria à qual você nem deu pre pronto a agredir, espécime comum nas xando algumas coisas de lado para poder muita atenção na época, mas que acabou redes sociais. Pessoas que não entendem fazer melhor aquelas de que mais gosta. se tornando referência para entender o que ali é um ambiente cultural, e que acreO lado de jornalista e pesquisador falou momento.” ditam que polemizar raivosamente seja mais alto e fui abandonando a parte técO editor ressalta que como tudo isso sinal de inteligência. Não deixo correr nica, o trabalho de webmaster. Isso foi costuma ser feito às pressas e sem a presolto. Se quiser dar porrada, que vá a um deixando os sites envelhecidos. Atualocupação de que seja mantido para as geevento de UFC”, avisa Sandro. mente, conto com ajuda de dois amigos rações futuras, é normal que se incorra em Ele sabe que são raros os sites pessoais e grandes profissionais dessa área: José erros ou mesmo na falta de informações que duram tanto tempo. Alguns, bem Luiz Coe, que cuida dos problemas relaque poderiam ser importantes. “Quando produzidos e importantes, não resistiram cionados à hospedagem e com quem trovocê se debruça em coleções inteiras de por metade desses 14 anos. As dificuldaco idéias sobre as tendências da internet periódicos e as lê com atenção e critério, des enfrentadas por esses espaços são di(ele é desenvolvedor do Uol), e Jonatas de forma minuciosa, percebe que não versas, diz Sandro. “Na verdade, são todas Oliveira, que vem renovando completapode confiar na primeira coisa que enconas possíveis. O único apoio real que tive, mente os sites biográficos, desde a protra, por mais que aquilo seja tido como durante uma década, foi o de hospedagem gramação visual à parte de busca interna uma grande referência. Aliás, isso é algo gratuita em um bom provedor em Natal, e integração com as redes sociais e de que pode ser percebido todos os dias abrinonde o site nasceu. Patrocínio eu nunca compartilhamento. Os dois primeiros já do os jornais impressos ou assistindo aos tive. Nem um só centavo. As pesquisas e refeitos são os do Drummond e do Vinitelejornais. Quando a informação envolve matérias que fiz em várias partes do País cius. Essa renovação começou agora e vai número de pessoas, cifras e quantidades aconteceram porque morei em diversos continuar durante este ano.” em geral, sempre há divergências. Os erros lugares durante esse tempo, porque aproOutras novidades marcam o aniversánem sempre são corrigidos. Quando são, veitei convites para aulas e palestras e, rio do Memória Viva. Agora é possível aparecem em erratas minúsculas não neprincipalmente, porque eu mesmo banfazer busca interna e todo o conteúdo está cessariamente na edição seguinte. Faz-se quei, mesmo sem ter condições.” integrado ao Facebook, Twitter e YouTuo registro, mas é de uma memória falha”, Tamanha dedicação, por vezes, tumulbe. Os próximos sites a serem atualizados aponta Sandro, para quem o jornalismo tua a vida profissional deste jornalista são os de Luz del Fuego, Câmara Cascudo, comumente comete outros deslizes. Na carioca. “Em determinados momentos, o Carlos Estevão e O Cruzeiro. Além deles, verdade, pecados bem mais graves do que Memória Viva acaba tomando um tempo novos sites biográficos surgirão até o próo simples descuido na apuração. que eu gostaria de empregar em outras ximo ano – os de Lima Barreto e Augus“Sofremos com a falta de independênatividades. No momento, estou termito dos Anjos. Uma catalogação da reviscia do jornalismo. Um veículo bate e ounando a biografia do Appe e há quase cinta Realidade também está sendo feita. E tro assopra, dependendo dos compromeco anos pesquiso para escrever a de Cara área chamada Memória Viva Hoje, que timentos, ânimos e caprichos de cada los Estevão, ambos desenhistas de O Cruapresenta matérias produzidas pelo pordono. É preciso ter cuidado com o tipo de zeiro. Mesmo com as dificuldades desse tal, voltará a ser atualizada. jornalismo feito, para evitar o tom novetipo de trabalho, creio que as duas já tePara Sandro, a recompensa por tanto lístico, de escândalo ou verossimilhante. riam sido terminadas se eu não dedicastrabalho é, claro, ganhar prêmios. E, acima A excessiva confiança no que é dito nas se tanto tempo ao portal. Por outro lado, de tudo, ver o resultado de suas pesquisas matérias jornalísticas provoca falsas meos livros são uma evolução do trabalho deem centenas de reportagens e ajudar inúmórias que enganam não apenas os leigos, senvolvido na internet. Portanto, o jeito meros trabalhos acadêmicos. “Sei que temas os próprios jornalistas, quando atuam é ter paciência e me manter tão organizanho uma quantidade diária de ‘alunos’ que como biógrafos e memorialistas. Assim, o do quanto for possível para dar conta de professor algum terá durante a vida toda. erro fugaz e inofensivo do jornal ou revista tudo, inclusive das atividades como jornaTudo isso é legal, mas não sou do tipo oré repetido e eternizado em livros. Não é à lista, colecionador e negociador de periógulhoso nem gosto de aparecer. Alguns toa que os historiadores criticam as incurdicos e livros antigos. Gosto de tudo o que elogios sinceros são bem-vindos e quando sões de jornalistas no campo da pesquisa faço, mas quando diminuir esse ritmo de vejo que ajudei realmente em uma pesquisa memorialística. Reportar a reportagem 17 ou 18 horas diárias de trabalho voltarei séria, que vai ser útil e atingirá um bom alheia é cair em erro dos mais primários a ter uma vida... E vai ser ótimo!”, espera. público, vibro como se aquele fosse tampara um jornalista. Temos que esquecer a “A equipe do Memória Viva é formada bém um trabalho meu”, confessa o jornapressa e a superficialidade tão comuns à por Sandro Fortunato, por mim e eu lista que, como presente pelo aniversário profissão nos dias atuais. O mergulho premesmo”, responde o incansável editor. do site, gostaria de contar com uma equicisa ser mais profundo”, sentencia. Durante quase todo o tempo, ele faz tudo pe que o deixasse livre para pesquisar e esFaz sentido. Afinal, além de viva, é precisozinho: pesquisa, reportagem, fotogracrever, sem preocupações com a alimentaso manter a memória sempre lúcida, correta. fia, edição de textos e imagens, montagem
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EXPOSIÇÃO
Uma História sem rostos
VISTA DA CIDADE A PARTIR DO CAMINHO DA TABATINGUERA, SÃO PAULO, C. 1862. MILITÃO AUGUSTO AZEVEDO.
Uma imagem pode falar mais que mil palavras e até derrubar teses e teorias a respeito de um fato histórico. Há mais de uma década, o Instituto Moreira Salles tem-se dedicado a montar o que já é um dos maiores acervos da memória visual do País, com mais de 20 mil imagens, entre fotografias e ilustrações de técnicas diversas. Um material cada vez mais usado por pesquisadores que procuram novas fontes para ampliar ou contar melhor a História do Brasil. São registros em sua maioria raros e até pouco tempo de difícil acesso, vindos de importantes coleções particulares ou adquiridas de modo avulso. A exposição Panoramas: A Paisagem Brasileira no Acervo do Instituto Moreira Salles, que a instituição promove até 17 de junho no Museu de Arte Brasileira, da Fundação Armando Alvares Penteado – Faap, em São Paulo, tem entre os seus propósitos justamente isso: revelar a faceta visual da construção de um País que, ao longo do século 20, em parte, passou à margem dos livros escolares. O singular é que a exposição não tem nenhum rosto de pessoas. Apenas paisagens, principalmente do Rio de Janeiro, sempre mais visada por fotógrafos e artistas não só por ser a então capital do País, como por suas belezas naturais, transformadas em cartões-postais que correram o mundo. É uma espécie de história visual do Brasil. Por isso a importância e o alcance desse evento. Deve interessar tanto a pesquisadores e acadêmicos quanto estudantes de todos os níveis dos ensinos fundamental, básico e médio, além de qualquer um interessado em História. Um dos curadores da mostra, Sergio Burgi, explica que era comum no século 19 a realização de eventos de grande interesse público, com fotos e pinturas 40
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Exposição do Instituto Moreira Salles mostra facetas do Brasil antigo, com fotos raras e pinturas de paisagens urbanas dos primórdios do nascimento de uma nação. gigantes que mostravam visões panorâmicas das cidades. “A relação de proximidade temática na representação desse período entre a foto e a pintura é muito forte”, destaca ele. “Havia sinergia nessas formas de comunicação visual”, acrescenta. Um dos propósitos da exposição, ressalta Burgi, é permitir ao público o que chama de “experiência de imersão”, com imagens de 360 graus, parecidas com os eventos que se faziam na época. Um dos painéis com esse propósito mede 13 metros de largura por 1,6 metro de altura – trata-se de uma visão pintada do Rio a partir do Morro do Castelo, exibida em Paris. “Tudo o que se vê é anterior à invenção do cinema”, observa ele, para destacar que mesmo sem imagens com movimento criaram-se formas curiosas de explorar os sentidos e a imaginação do visitante. “Essas mostras eram pensadas como espetáculos de massa, com a cobrança de ingressos.” Afinal, as revistas ilustradas só se consolidariam nas duas primeiras décadas do século seguinte. Ver a própria cidade em miniatura, identificar ruas e prédios e se localizar eram uma forma de atração que despertava interesse de todos. Imagens assim do Rio, por exemplo, foram exibidas em pelo menos três eventos em Londres e em Paris.
A maioria das imagens do instituto – 17 mil – é formada por fotografias do século 19, tiradas a partir de 1840, até o começo do século 20. O restante – 3 mil – reúne ilustrações diversas – litografias, gravuras, aquarelas e desenhos, datados entre 1820 e 1920. No segundo bloco estão imagens feitas com técnicas anteriores à invenção da fotografia, mas que continuaram a ser feitas por décadas. Desse universo, 280 obras podem ser vistas pelo público. A mostra inclui ainda fotografias e ilustrações de antigas regiões coloniais – Salvador, Recife, Olinda, Santos, Mariana e Ouro Preto – e cafeeiras do século 19, como o interior de São Paulo. E registros da rica e variada vegetação de diversas regiões, rochas, rios e cadeias de montanhas, temas exóticos que eram apreciados por viajantes e naturalistas. Entre os registros fotográficos se destacam, por exemplo, os instantâneos que Marc Ferrez (1843-1923) fez para
a Comissão Geológica e Geográfica do Império e por Georges Leuzinger (18131892) para o zoólogo e geólogo suíço Louis Agassiz (1807-1873). Na mostra, podem ser vistas também gravuras, desenhos e litografias de artistas viajantes, como os alemães Johann Moritz Rugendas (1802-1858) e Carl Friedrich von Martius (1794-1868) e o inglês Charles Landseer (1799-1879), entre outros que visitaram o País. “Empenhados em registrar tudo o que viam, esses artistas deixaram um grande legado em papel, como esboços naturalistas, estudos preparatórios, aquarelas e gravuras, que, reproduzidas em larga escala, ilustravam álbuns de suvenir e livros de viagem”, explica Carlos Martins, que também participou da curadoria, juntamente com Julia Kovensky. Segundo eles, Panoramas quer mostrar os procedimentos que moldaram a representação da paisagem brasileira no decorrer do
LARGO DO CAPIM, EM FRENTE À IGREJA DE SÃO FRANCISCO, SÃO PAULO, C. 1862. MILITÃO AUGUSTO AZEVEDO.
século 19 e deixaram importantes registros da paisagem urbana e natural, hoje de grande valor para reconstituição histórica daquele século de grandes transformações sociais, políticas e urbanas. Um dos destaques é a reconstituição cenográfica de uma rotunda, nome que se dava aos edifícios de forma cilíndrica construídos especialmente para abrigar grandes panoramas. No local, pode-se apreciar uma imagem de 11 metros de perímetro. Uma sala equipada com cinco projetores e uma tela de 3 metros de altura por 20 metros de comprimento, em formato semicircular, faz projeções seqüenciais de panoramas de cidades brasileiras, entre fotografias e gravuras. Para quem quiser se aprofundar nas técnicas usadas, basta entrar na sala voltada para a História dos ofícios relacionados à captação e reprodução de imagens, onde são exibidos e descritos os materiais e técnicas utilizados no registro iconográfico e fotográfico do século 19: pedras litográficas, câmaras escuras, máquinas fotográficas, lentes e equipamentos que pertenceram a Ferrez, entre outros itens. Ferrez foi um pioneiro, segundo Burgi, em explorar a fotografia de forma mais elaborada. Outro pavimento apresenta técnicas de impressão que existiam na época, ainda rudimentares, mas que, junto com a fotografia, ajudaram no desenvolvimento da reprodução da imagem por meios fotomecânicos, que facilitaria ainda mais a multiplicação da imagem e o surgimento das revistas ilustradas. De acordo com os curadores, aliado à expansão da comunicação por meio da circulação de imagens em múltiplos suportes, o formato panorâmico se estabeleceu ao longo do século 19 como uma das principais formas de representação iconográfica. Eles destacam que a coleção iconográfica de Martha e Érico Stickel, incorporada recentemente ao acervo do Instituto, enriqueceu ainda mais o conteúdo da mostra. E veio se somar à coleção de fotografias oitocentistas existente no Instituto, onde se destaca a Coleção Gilberto Ferrez. A intenção da mostra, resumem os curadores, é ressaltar como a comunicação visual foi fundamental para a divulgação da forma como era o Brasil naquela época, algo que não costuma ficar muito claro para as gerações de hoje, bombardeadas por tanta informação. Daí o cuidado na elaboração do catálogo, que traz um amplo estudo sobre a importância do panorama para a memória visual do País. Toda a diagramação foi pensada, assim como a impressão, para ser uma amostragem fiel de como esses eventos ocorriam no século 19. Daí a opção, por exemplo, de preservar as dobras que revelam a montagem/trucagem para reproduzir uma cidade de modo mais amplo possível – na verdade, fotografavam-se “pedaços” da cidade de um mesmo ponto e depois se juntava tudo como um grande quebra-cabeça. “Fizemos a opção por reverenciar o sentido material da exposição no catálogo, de criar representação dos objetos”, justifica Sergio Burgi.
JARDIM DA GLÓRIA, COM A AVENIDA BEIRA MAR À ESQUERDA, E ENTRADA DA BARRA, RIO DE JANEIRO, C. 1906. MARC FERREZ/COLEÇÃO GILBERTO FERREZ
LITOGRAFIA A SÉPIA SOBRE PAPEL. JULES MARTIN (1832-C. 1907).
PANORAMA DA GAMBOA, RIO DE JANEIRO, C. 1865. GEORGES LEUZINGER.
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FOTOS REPRODUÇÃO
CULTURA
Uma viagem nas ondas do rádio
CUSTÓDIO MESQUITA
Livro fundamental de Sérgio Cabral, que trata do papel desempenhado pelo rádio no Brasil e de sua estreita relação com a formatação da nossa música popular, ganha nova edição, revista e ampliada.
ARY BARROSO
P OR P AULO C HICO
MOREIRA DA SILVA
ORLANDO SILVA
DORIVAL CAYMMI
NARA LEÃO
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Apesar de todos os vaticínios e maus agouros fartamente proferidos quando do impacto do surgimento da televisão, na década de 1950, o rádio está aí. Sobreviveu. Gerações mais novas, nascidas na era digital, hoje perdem pouco tempo diante da tv. Costumam manter-se informadas via internet – quando e sobre o que querem – em aparelhos que cabem na palma da mão. Mesmo assim, diante de tamanha revolução, o rádio permanece no ar. Boa parte de seus ouvintes atuais, no entanto, não têm a mínima noção do papel desempenhado pelo veículo no início do século passado. De sua importância para a unidade do País, do ponto de vista informativo e de formação de uma identidade cultural nacional – com a criação de conceitos que permanecem em sintonia. A sigla mpb, que categorizou a escola mais tradicional da música popular brasileira, é apenas um deles. Uma viagem por esse rico período do nosso rádio, e da própria História do País, é o que propõe o livro MPB na Era do Rádio, que acaba de ser relançado em homenagem aos 90 anos da primeira transmissão radiofônica realizada no Brasil. De autoria do jornalista, pesquisador e escritor Sérgio Cabral, a obra traça um vasto panorama sobre diversos aspectos da música popular, em um registro que começa no fim do século XIX e chega à Bossa Nova – atravessando a ‘fase de ouro’ das emissoras por aqui. Publicada pela Editora Nacional, a nova edição é uma versão revista, aumentada e ainda mais caprichada do texto original publicado em 1996. “Em relação à primeira edição, houve um reforço substancial de fotografias e uma boa ‘penteada’ no texto, com alguns acréscimos e correções. A propósito: os jornalistas atuais ainda ‘penteiam’ os seus textos ou estou borocochô ao usar expressões do meu tempo de jovem?”, brincou o bem-humorado Sérgio Cabral, em entrevista ao Jornal da ABI. O rádio e a música, por sinal, são dois temas recorrentes na ampla obra do jornalista, que já escreveu livros sobre o radialista Almirante (No Tempo de Almirante – Uma História do Rádio e da MPB) e perfis de artistas como Tom Jobim, Nara Leão, Pixinguinha, Ary Barroso e Elizeth Cardoso. “De fato, a importância do rádio para a música popular é fundamental.
Ela só entrou na chamada sociedade de consumo nos primeiros anos da década de 1930, quando as rádios passaram a ser o mais importante veículo de divulgação musical. O povo só cantava no Carnaval o que aprendia no rádio. Até os primeiros anos da década de 1960, a música era a grande atração dos ouvintes, o que explica, por exemplo, o êxito da Rádio Nacional, que tinha sob contrato, com total exclusividade, muitas dezenas de cantores e cantoras, além de uma orquestra com os melhores músicos do Brasil”, conta Sérgio, que, também apaixonado pelo Carnaval, acaba de ter relançada, pela mesma editora, outra de suas obras – o livro Escolas de Samba do Rio de Janeiro, um original de 1974. Em MPB na Era do Rádio Sérgio parte de 1922, com a transmissão, em 7 de setembro daquele ano, do discurso do Presidente da República Epitácio Pessoa nas comemorações do centenário da Independência, feito que contou com o apoio de 80 receptores, instalados nas cidades do Rio, São Paulo, Niterói e Petrópolis. Cabral passa ainda pela Rádio Sociedade, inaugurada por Edgar Roquete Pinto e Henrique Morize, em 1923, e pela Rádio Clube do Brasil, surgida em 1924. Num processo de contextualização política, aborda a fase Getúlio Vargas e a Revolução de 1930, com o controle do rádio por uma comissão nomeada pelo Presidente; e a assinatura, em 1º de maio de 1932, da lei que autorizava as emissoras a veicularem propaganda em seus programas – o incentivo comercial que deu o impulso final para o desenvolvimento do veículo no Brasil. É sobretudo nesta década de 1930 que o rádio se consolida, e vive a tal ‘fase de ouro’, na qual presta serviços fundamentais à cultura e chega a mudar hábitos dos brasileiros. Deste período são contadas passagens como a ascensão das primeiras estrelas musicais, o samba do Estácio, a popularização das marchinhas e do Carnaval, o Estado Novo e a ditadura Vargas, a Política da Boa Vizinhança, com o sucesso internacional de Carmem Miranda, a cobertura da Segunda Guerra Mundial, o surgimento de novos gêneros como o baião e a influência da música americana
sobre o samba-canção. No livro, Sérgio Cabral fala ainda sobre o boom da Bossa Nova e a perda do espaço do rádio para a televisão – com o sucesso dos festivais musicais. Mensurados e respeitados os avanços tecnológicos, será que éramos mais felizes, ou mais bem informados, na ‘época de ouro’ do rádio no Brasil? Será que o saudosismo, neste caso, consegue sobrepor-se à razão? “Não sei se éramos mais felizes. Mas, sem dúvida, no tempo em que havia o predomínio do rádio sobre a televisão o noticiário era mais ‘quente’. E não me refiro apenas ao Repórter Esso, da Rádio Nacional, e ao Cacique Informa, da Rádio Tupi. O trabalho da reportagem da Emissora Continental, só ele, mereceria um livro, se a História do rádio tivesse um tratamento melhor, que permitisse aos pesquisadores hoje conhecer as emissoras de meio século atrás”, observa Cabral. Tamanha era a importância do rádio que ele era utilizado, com poucos pudores e generosas doses de assombro, como instrumento político. “Os governos, de modo geral, sempre utilizaram o rádio. Isso explica, por exemplo, que todo Presidente da República, inclusive a nossa Dilma, fosse contemplado com horários especiais para vender o seu peixe no rádio. Ele chega mais perto do alvo. O primeiro a utilizá-lo foi Getúlio Vargas, no primeiro Governo, seguindo exemplo vindo dos Estados Unidos. Franklin Roosevelt dizia dever sua popularidade junto aos americanos, em grande parte, às suas intervenções radiofônicas. Numa democracia, o rádio também está aberto à oposição, o que foi péssimo para Getúlio, cuja popularidade no segundo Governo caía na proporção inversa ao sucesso do líder oposicionista Carlos Lacerda, em suas falas na Rádio Globo. Quanto à música, ela foi utilizada fortemente para fazer propaganda apenas no primeiro Governo de Getúlio, período, aliás, em que criou A Voz do Brasil”, explica o autor. A mpb, formatada e nacionalmente conhecida graças ao rádio, hoje dispõe de pouco espaço e prestígio junto à maioria das estações. “Não é de hoje que a música popular brasileira é abandonada pelo
BIA GUEDES/AGÊNCIA O GLOBO
rádio. Com poucas exceções, as emissoras preferem a música americana. Já ouvi uma FM em que até os locutores falavam inglês. Imaginei na hora que se tratava de um novo método de ensino da língua, o áudio colonial”, provoca Sérgio, que destaca alguns personagens vitais na construção da mpb que, mundo afora, é reconhecida como a mais requintada manifestação da cultura popular brasileira. No quesito prestígio internacional, talvez divida espaço somente com as telenovelas. “Nomes como Pixinguinha, Carmem Miranda e Noel Rosa foram alguns dos principais responsáveis pela popularização da nossa música com a obra que criaram. Foram também importantes personagens do rádio, pois o conjunto de Pixinguinha pontificou em várias emissoras. Carmem, por sua vez, era tão popular que foi a primeira cantora a ganhar um contrato de exclusividade, com a Rádio Mayrink Veiga. E Noel Rosa não só cantou em rádio como trabalhou nele, como contra-regra do Programa Casé, o mais importante da década de 1930 (ver Jornal da ABI 375). Mas o que fez desses três (além de alguns outros, como Ary Barroso, Wilson Batista, Geraldo Pereira e Dorival Caymmi) artistas realmente eternos foi a obra maravilhosa que criaram.” Mas, afinal, onde foi que o rádio errou? “O rádio mudou muito, provavelmente por culpa da televisão. No meu livro, fixei 1958 como o último ano da chamada ‘era do rádio’, expressão criada por Woody Allen, é bom lembrar. Foi naquele ano que Almirante sofreu o derrame cerebral cuja seqüela principal foi a perda da articulação para falar. Para um
radialista, nada pior. O derrame afastou do rádio um de seus maiores representantes – ao lado de Renato Murce. Saía de cena aquele rádio com programas bem produzidos, com script, e participação de cantores, radioatores, orquestras... Quando a tv passou a fazer isso, contando, inclusive, com o trabalho de grandes radialistas, ele foi esvaziado e passou a tocar discos. Deu mais ênfase aos programas esportivos. Logo depois, sem dúvida, o ‘jabá’ foi um tiro no pé não só das emissoras, como das próprias gravadoras e artistas. A música de carnaval, por exemplo, acabou principalmente por causa desse jogo de interesses comerciais. Aliás, meu primeiro processo na Lei de Imprensa nasceu de uma campanha que fiz no Jornal do Brasil contra os disc-jóqueis que tomavam dinheiro de cantores, compositores e, principalmente, das gravadoras e editoras.” Se ao longo das 144 páginas de MPB na Era do Rádio Sérgio Cabral faz uma viagem ao passado do rádio brasileiro, nesta entrevista o autor faz, a pedido do Jornal da ABI, uma observação sobre o presente. “O rádio, de fato, faz falta para os jovens profissionais da música. Mas os tempos de hoje são outros e já estão aparecendo novos ídolos surgidos na internet”. E faz uma aposta sobre o futuro do veículo. “Acho que o Jornalismo é o melhor caminho para as emissoras de rádio, pelo menos enquanto não se resolve qual o caminho da música nestes tempos de ampla pirataria e de internet. Sou ouvinte de uma emissora inteiramente dedicada ao Jornalismo e fico muito satisfeito por chegar ao fim do dia e me sentir bem informado.”
As emoções de Cabral com Sassaricando P OR C LÁUDIA S OUZA
Desde a sua estréia em 2007, o musical Sassaricando - E o Rio Inventou a Marchinha, do jornalista e pesquisador Sérgio Cabral e da historiadora Rosa Maria Araújo, percorreu as principais capitais brasileiras e foi agraciado com sete prêmios. Cerca de 200 mil espectadores aplaudiram as mais de 200 apresentações. O repertório resgata a riqueza da música popular brasileira e do Carnaval em uma revista teatral que traduz a crônica da cidade do Rio de Janeiro. O êxito nos palcos rendeu frutos como o Bloco Sassaricando, que desfila nos sábados de Carnaval, no bairro da Glória, Zona Sul do Rio, e o musical É Com Esse Que eu Vou... - O Samba de Carnaval na Rua e no Salão, com canções gravadas entre 1920 e 1970, de Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Haroldo Lobo, Roberto Roberti, Wilson Batista e Noel Rosa, entre outros grandes nomes da mpb. Sassaricando emociona um público heterogêneo marcado pela grande diversi-
dade cultural do Brasil. As impressões se multiplicam e muitas vezes se repetem nas várias regiões do País, apontando surpresas inesgotáveis, habilmente observadas por Sérgio Cabral, presente em grande parte das apresentações. Na entrevista a seguir, Cabral revela histórias deliciosas sobre a trajetória de Sassaricando e o que vai dentro do coração do povo brasileiro. Jornal da ABI – Sassaricando é sinônimo de sucesso em todo o Brasil. Sérgio Cabral – É exatamente isso. Nos apresentamos de Manaus a Porto Alegre, ininterruptamente, desde 2007, sempre com casa cheia e muitos aplausos. Porém, está cada vez mais difícil repetir o espetáculo, não por falta de público, mas porque precisamos de patrocínio e sem isto o espetáculo não se sustenta. É uma luta todos os anos, a cada temporada, para conseguir este aporte, mas nunca perco a esperança. Jornal da ABI – As reações do público variam de acordo com cada região? JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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CULTURA AS EMOÇÕES DE CABRAL COM SASSARICANDO
Sérgio Cabral – Observo uma coisa curiosa em relação às apresentações no País, pois em cada região há uma música que se destaca. Em Porto Alegre, por exemplo, quando se canta “Bota o retrato do velho outra vez / Bota no mesmo lugar...”, de Haroldo Lobo e Marino Pinto, sobre Getúlio Vargas, é uma gritaria danada. É impressionante como ainda há gente apaixonada por Getúlio. O público aplaude muito. Outra situação semelhante aconteceu em Brasília, onde nos apresentamos duas vezes. Em uma delas foi justamente naquele período em que Brasília enfrentava a falta de chuvas, uma secura terrível. Então, quando lá se cantou “Tomara que chova três dias sem parar /A minha grande mágoa / é lá em casa não ter água / Eu preciso me lavar” foi uma maravilha, foi sensacional! Jornal da ABI – Qual é o perfil do público de Sassaricando? Sérgio Cabral – Em relação ao público posso afirmar que boa parte dele é formada por pessoas que, em virtude da idade, conhecem as músicas. Sassaricando é um espetáculo que tem forte presença de idosos. Eles se emocionam, cantam, riem e choram. Mas é verdade que a garotada também se emociona, e, aliás, isto é o que me deixa mais feliz. Já vi gente de 17, 18 anos chorar de emoção. Quando se canta Cidade Maravilhosa, eles se abraçam e choram. Jornal da ABI – Ao longo desses anos em cartaz, o que mais o emocionou em relação ao espetáculo? Sérgio Cabral – Entre todos os episódios relacionados ao êxito de Sassaricando, o que mais me marcou foi a carta que uma senhora enviou para o Ancelmo Góis e ele me cedeu uma cópia. Ela contou no texto que a mãe dela sofria de Alzheimer em estágio avançado, já não falava com ninguém, não saía de casa e vivia em estado de depressão permanente. Num esforço gigantesco, esta senhora conseguiu levar a mãe doente para ver Sassaricando. Resumindo: a mãe dela cantou o tempo todo e, o que é mais surpreendente, no final do show ela estava junto ao palco pulando carnaval. Acredito que com isso Sassaricando pode ser indicado também como tratamento médico (risos). Felizmente, não tenho nenhum problema de auto-estima, mas se tivesse, ver Sassaricando seria o tratamento mais indicado. Você não imagina o que as pessoas falam para mim após o espetáculo. Em todo o Brasil, elas agradecem e me abraçam com alegria, como seu eu fosse merecedor desta gratidão. Jornal da ABI – Com a certeza deste retorno positivo do público, o que você espera para as próximas temporadas? Sérgio Cabral – Eu gostaria que acontecesse com Sassaricando o que algumas pessoas recomendaram em carta a jornal 44
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O musical de Sérgio Cabral e Rosa Maria de Araújo (abaixo) já foi apresentado em 16 Estados, recebendo em cada um cenários diferentes (ao alto). O elenco também sofreu mudanças, mas o repertório, com 89 marchinhas, teve uns poucos cortes, sem perder o conteúdo original.
e em muitas em mensagens enviadas para mim. A idéia é que Sassaricando fosse tombado pelo Governo do Estado ou pela Prefeitura, mas sei que isto não será possível, já que sou pai do Governador do Rio e vão classificar como um ato de nepotismo. Muita gente acredita que Sassaricando deveria ser apresentado no Rio de Janeiro como uma espécie de amostra da cidade, por ter um perfil muito carioca. Já me disseram, inclusive, que Sassaricando seria no Rio de Janeiro o equivalente à peça “A Ratoeira”, em cartaz em Londres há décadas, uma marca da capital londrina. Eu concordo e adoraria morrer sabendo que Sassaricando vai continuar. Jornal da ABI – A partir de suas observações do espetáculo, há alguma situação que se repete em todas as regiões do País? Sérgio Cabral – Eu presto atenção vendo o espetáculo e uma das coisas que me chama a atenção é que a música popular
brasileira, o samba e a marchinha, são muito machistas. Uma das virtudes de Sassaricando é mostrar, através da marchinha, o Brasil e os brasileiros. Dividimos o show em vários atos temáticos com este objetivo. Tem um, por exemplo, sobre preconceito, porque a marchinha manifesta preconceitos terríveis. Uma das que fez maior sucesso no País diz: “O teu cabelo não nega, mulata / porque és mulata na cor/ mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero seu amor”. Eu nunca ouvi uma coisa mais racista do que esta! Mas o pessoal canta. Em relação ao machismo isso ocorre também. A mulher é muito maltratada na música popular, especialmente na marchinha. O meu termômetro é uma marchinha cantada logo no início do espetáculo que diz:”Quando a mulher é boa, / é boa, muito boa / o homem deve ter cuidado e capricho / mas quando ela é feia, / é feia, muito feia, / pode matar que é bicho.” E as pessoas riem, assim como você está rindo agora (risos). Você ri, né? Não fica indignada com isso? É curioso como as coisas também podem ser observadas sob a lógica do humor...
de mágoa / Toma café e, depois de muito tempo / Ele pergunta / Vovó, eu já posso beber água? / Pode, pode, Lourival! / Beber água não faz mal.” As pessoas acham engraçado. Mas o maior sucesso de público é Bandeira Branca, de Láercio Alves e Max Nunes. Nesta música o teatro todo canta junto pela primeira vez. É impressionante. Fico sentado ouvindo e prestando atenção. O público, em geral, começa a cantar timidamente e vai num crescendo com muita vibração. Esta música agrada a todos, inclusive os mais jovens, que também se emocionam. Não sou estudioso de psicologia, mas como psicanalista de botequim eu diria que é o inconsciente coletivo do povo. As pessoas ouvem aquelas músicas que marcaram a música popular brasileira e o Carnaval, que transmitem alegria e irreverência. Resgatamos esses sentimentos para roteirizar o espetáculo. Ali está um Brasil feliz.
Jornal da ABI – Que outro tipo de preconceito vocês abordam? Sérgio Cabral – Segmentamos o espetáculo não esperando alguma reação do público, mas para mostrar que o preconceito existe em várias situações. Sobre homossexualismo temos várias marchinhas como Cabeleira do Zezé e Vai ver que é, esta última diz assim: “Se veste de baiana / para fingir que é mulher, / vai ver que é, / vai ver que é”, e vai por aí.
Jornal da ABI – Ao longo das temporadas o elenco sofreu mudanças? Sérgio Cabral – Sim, mas o repertório se manteve. Fizemos alguns cortes, mas nada que interferisse no conteúdo original. Dá pena fazer um show só com 89 marchinhas. Na verdade, tinha que ter umas 400 marchinhas, mas seria um show de cinco horas de duração, o que é inviável. O interessante é que o texto do espetáculo é dos compositores. Descobri com isso que os nossos compositores são também grandes dramaturgos, grandes autores teatrais enrustidos. São eles que fazem a história do show, e o fazem muito bem por sinal.
Jornal da ABI – Que marchinhas fazem maior sucesso no show? Sérgio Cabral – Tem uma marchinha que é engraçada, que vai pelo humor, chamase Criado com Vó, de José Mariano Barbosa e Marambá, que diz assim: “O Lourival sempre foi assim / Cheio de dengo, cheio
Jornal da ABI – Algum tempo depois, Sassaricando acabou dando origem ao musical É Com Este Que Eu Vou. Sérgio Cabral – Em 1932, a Prefeitura do Distrito Federal criou um concurso anual para escolher a melhor marcha e o melhor samba de Carnaval, porque o
VIDAS Carnaval era feito de marchas e sambas. Como realizamos um show sobre marchas, achamos que seria fundamental fazer um espetáculo sobre samba. Viajamos com É Com Este Que Eu Vou por todo o Brasil. Fomos muito bem recebidos, mas não tanto quanto Sassaricando, justamente pela falta daquela alegria da marchinha. O público quer se divertir. Em vários Estados do Brasil, contudo, o sucesso de É Com Este Que Eu Vou nos surpreendeu. Em Curitiba, no Teatro Guaíra, mais de duas mil pessoas cantaram e aplaudiram algumas das grandes páginas da música brasileira como Ai, Que Saudades da Amélia, de Mário Lago e Ataulfo Alves; A Fonte Secou, de Marcleo, Monsueto Menezes e Tuffy Lauar; Se eu Errei, de Risadinha, Humberto Carvalho e Edu Rocha. Melodias lindas, sempre falando de amor. Para nós ficou mais difícil não falar só de amor, mas deu para tratar de outros temas como pobreza, riqueza, trabalho, orgia. Jornal da ABI – Que diferenças marcam os dois espetáculos? Sérgio Cabral – Na minha opinião, É Com Este Que eu Vou é mais bonito do que Sassaricando, porque os sambas são mais bonitos, mas não têm a alegria nem a diversidade temática da marchinha. Posso afirmar que 95% dos sambas de Carnaval falam de amor, em geral amores infelizes. Eles cantam que a mulher foi embora e sempre botam a culpa nela. A coitada da mulher é responsável por tudo. Tem um samba de Ataulfo Alves e Wilson Batista, vencedor do carnaval de 1940, cujo título é “Seu Oscar”, foi gravado na época por Ciro Monteiro. Este samba reúne uma história muito marcante para mim. Comecei a comprar os meus discos na década de 1950, quando saíram os primeiros lps. Comprei um disco do Ciro Monteiro com gravações das décadas de 1930 e 1940. Nessa época, eu morava em Cavalcante com meus avós. Minha avó não podia andar e passava o dia inteiro deitada na cama ouvindo música no rádio. Um dia eu estava em casa quando começou a tocar “Seu Oscar ” no rádio: “Cheguei cansado do trabalho / logo a vizinha me chamou / Oh, seu Oscar, está fazendo meia hora / que a sua mulher foi embora / e um bilhete deixou. / E o bilhete assim dizia / Não posso mais, eu quero é viver na orgia / Fiz tudo para fazer ver seu bemestar / até no Cais do Porto eu fui parar / martirizando meu corpo noite e dia, / mas tudo em vão, ela é mesmo da orgia”. Ao ouvir aquele sofrimento todo, minha avó gritou lá de dentro: – Cachorra!!! Não ri, não, poxa. Minha avó ficou muito indignada e solidária ao cara, o tal Oscar (risos). Esse negócio de machismo é uma coisa impressionante... Jornal da ABI – Como pesquisador da música brasileira, você poderia comentar a trajetória da marchinha entre 1930 e 1980. Sérgio Cabral – De lá para cá a marchinha praticamente acabou. O Carnaval carioca é uma história de perdas. Perdemos a tradição, perdemos a música de Car-
MARCHINHAS RETRATO DO VELHO (1951) HAROLDO LOBO E MARINO PINTO
Bota o retrato do Velho outra vez Bota no mesmo lugar Bota o retrato do Velho outra vez Bota no mesmo lugar O sorriso do Velhinho faz a gente trabalhar O sorriso do Velhinho faz a gente trabalhar Eu já botei o meu E tu não vais botar Eu já enfeitei o meu E tu, não vais enfeitar? O sorriso do Velhinho faz a gente trabalhar.
TOMARA QUE CHOVA (1951) PAQUITO E ROMEU GENTIL
Tomara que chova, Três dias sem parar, Tomara que chova, Três dias sem parar. A minha grande mágoa, É lá em casa Não ter água, Eu preciso me lavar. De promessa eu ando cheio, Quando eu conto, A minha vida, Ninguém quer acreditar, Trabalho não me cansa, O que cansa é pensar, Que lá em casa não tem água, Nem pra cozinhar.
CIDADE MARAVILHOSA (1935) ANDRÉ FILHO
Cidade Maravilhosa, Cheia de encantos mil! Cidade Maravilhosa, Coração do meu Brasil! Cidade Maravilhosa, Cheia de encantos mil! Cidade Maravilhosa, Coração do meu Brasil! Berço do samba e das lindas canções Que vivem n’alma da gente, És o altar dos nossos corações Que cantam alegremente. Cidade Maravilhosa, Cheia de encantos mil! (estribilho) Jardim florido de amor e saudade, Terra que a todos seduz, Que Deus te cubra de felicidade, Ninho de sonho e de luz.
PODE MATAR QUE É BICHO (1949) HAROLDO LOBO, MILTON DE OLIVEIRA, FRANCISCO ALVES
Quando a mulher é boa, É boa, é muito boa, O homem deve ter, Cuidado e capricho, Também quando ela é feia, É feia, muito feia, Pode matar que é bicho... (bis) A mulher quando é um pedaço, Faz o homem bancar o carrapicho, Mas quando não é bonita, Ele mesmo às vezes grita: Pode matar que é bicho...
VAI VER QUE É (1959) CARVALHINHO E PAULO GRACINDO
Se veste de baiana Pra fingir que é mulher Vai ver que é Vai ver que é No Baile do Teatro Ele diz que é Salomé Vai ver que é Vai ver que é Cuidado, minha gente Com esse tipo de rapaz Nervosinho bate o pé Vai ver que é Vai ver que é.
naval, perdemos os ranchos carnavalescos, e as grandes-sociedades, que eram centenárias. Mas não vamos chorar. Perfeito Fortuna criou na Fundição Progresso um concurso de marchinhas, de que eu já participei como jurado. São marchinhas maravilhosas. Mas todos nós sabemos que para uma música acontecer no Carnaval ela precisa de divulgação. Entretanto, as emissoras de rádio só querem saber de música norte-americana ou de coisas fáceis como “ai, se eu te pego”. A história da música de Carnaval é marcada pela luta de seus compositores por divulgação. Nos últimos anos, quando ainda havia marcha e samba, vigorava muito o chamado “jabá”. Foi isso que desmoralizou o mercado. Jornal da ABI – Você acredita que o samba-enredo ocupou o lugar da marchinha? Sérgio Cabral – O samba-enredo só começou a ser gravado no fim da década de 1960, exatamente quando estava saindo de cena a antiga música de Carnaval, que eram a marchinha e o samba. O samba-enredo ocupou este espaço, até porque era uma novidade samba-enredo em disco. Novidade que durou pouco. As escolas de samba foram muito prejudicadas pelo excesso de foliões. Para desfilar com cinco mil pessoas dentro do tempo determinado é preciso cantar correndo e sair correndo. Então, o samba acelerou e hoje em dia apresenta um andamento insuportável. Eu não agüento. É uma pena. Às vezes ouço sambas que teriam qualidade se tivessem outra cadência, outro andamento, outro ritmo. Virou uma marcha mal feita. Infelizmente, as pessoas não percebem o que está acontecendo e continuam repetindo esta fórmula que se espalhou. Você vai a uma escola de samba pequena e percebe que eles também cantam correndo, sem precisar disso. Mas quem sou seu para discutir... Jornal da ABI – Em que projetos você está trabalhando atualmente? Sérgio Cabral – Gosto muito de escrever para teatro. Ainda para este ano de 2012 eu e a Rosa Maria Araújo estamos adaptando Sassaricando para a platéia infantil. Vai se chamar Sassariquinho. Esta é uma novidade em primeira mão. A idéia foi de uma colega da nossa produção, a Amanda. Pretendemos ter personagens como Rei Momo e colocar pelo menos dois cantores mirins no palco. Serão as mesmas marchinhas, só que para crianças. Cortamos algumas músicas e acrescentamos outras como Me Dá um Dinheiro aí. Vamos formar platéia e introduzir as crianças no mundo maravilhoso da marchinha. Outro projeto que ainda está bem verde é um espetáculo musical sobre Getúlio Vargas. Atualmente, estou escrevendo a biografia de Carlos Manga, meu primeiro personagem vivo. Além disso, faço um programa na Rádio Roquete Pinto, escrevo para o jornal Lance! e tenho trezentas e cinqüenta mil encomendas de shows. Um trabalho danado, mas vale a pena.
Santamaria, um pioneiro Um dos fundadores do atual Correio Braziliense, criado pelo jornalista Assis Chateaubriand para crescer com a nova capital da República, inaugurada em 21 de abril de 1960, Eduardo Santamaria não pensou duas vezes quando o convidaram, um ano antes, em 1959, para se mudar do Rio para Brasília, a fim de integrar a Redação do jornal que os Diários Associados criariam na cidade ainda em construção. Santamaria era um jovem de 27 anos, mas já ostentava um currículo profissional que justificava tal convite. Entre seus trabalhos profissionais figurara, nos primeiros dias daquele ano, a cobertura dos combates finais entre os revolucionários de Fidel Castro, que tomavam Havana, e as tropas em debandada do ditador cubano Fulgencio Batista, deposto após prolongada e impiedosa ditadura. Antes de chegar ao Correio, Santamaria integrou as Redações de Última Hora, Jornal do Brasil, no qual foi Chefe de Reportagem, e O Dia, veículos em que teve atuação de ponta, como ocorreria também no nascente diário de Brasília. Neste, entre outras missões, teve o privilégio de entrevistar o Presidente John Kennedy logo depois que este tomou posse no Governo dos Estados Unidos. Sem negar o respeito devido ao Presidente do Brasil, Santamaria tornou-se amigo de Juscelino Kubitschek, que mandou construir uma sede provisória para o seu Governo, o logo chamado Catetinho, e freqüentava a Redação do Correio, quando pernoitava em Brasília, o que se tornou freqüente nos primeiros meses de 1960, e acompanhava o fechamento das edições, sem procurar interferir na orientação do jornal e em seu noticiário. Depois, o Presidente acompanhava a tropa de repórteres e editores em incursões pela noite de Brasília, em jornadas boêmias que atenuavam a aridez da vida na capital. Essa convivência com JK rendeu a Santamaria histórias que ele lembrava e contava com bom humor, reproduzindo o clima de um Brasil que há muito deixara de existir. Santamaria, que era formado em Direito e, depois que voltou a viver no Rio, foi editor da Tribuna do Advogado, órgão da Ordem dos Advogados do Brasil/Seção RJ, estava com 80 anos e sofria do mal de Alzheimer. Ele faleceu em Niterói, RJ, no dia 17 de abril. Deixou viúva, Elza Santamaria, os filhos Eduardo e Paula e cinco netos. JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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VIDAS
Stenka Calado, um filho do Partidão
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JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
Stenka Calado soube dos aspectos romanescos da vida do pai por sua mãe, que lhe contou que Jaime começou a vida profissional como barbeiro, profissão do pai, e chegou a trabalhar como tal na Polícia Militar da Paraíba, para onde se mudou com os dois primeiros filhos, Nadedja e Stenka, a fim de fugir da perseguição policial em Pernambuco. Na PM, ele teve o pressentimento de que não iria se dar bem: Um dos oficiais a que atendia olhava-o fixamente pelo espelho e dizia: “Acho que te conheço, mas não
se, acercou-se do corpo inerte e lhe deu um tiro certeiro no coração. Com Bezerra estavam um investigador do Dops e um guarda ferroviário. O enterro de Jaime Calado reuniu uma multidão de mais 5 mil pessoas, em razão do prestígio que ele conquistara como destacado orador, um dos maiores que o Ceará conhecera, e da comoção causada pelas circunstâncias da sua morte. Na entrada da casa onde se fez o velório, um enorme pote de barro reunia donativos em dinheiro para a família do
sei de onde”. Antes que ele se lembrasse de onde, Jaime Calado mudou-se para o Ceará, onde o casal teve mais quatro filhos: Klara, homenagem à líder feminista alemã Klara Zettting; Marat, homenagem a Jean-Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa; Ludmila, guerrilheira soviética que, contava Jaime Calado, matara mais de mil alemães durante a Segunda Guerra Mundial; Olga, homenagem a Olga Benário Prestes, mulher de Luís Carlos Prestes, entregue à Alemanha nazista pelo Chefe de Polícia da ditadura do Estado Novo, Felinto Strubling Müller. Artesão habilidoso, Jaime Calado estava montando um palanque no qual discursaria, na Praça José de Alencar, quando o avisaram de que os integralistas estavam espancando um estudante no interior do teatro ali situado. Calado largou as ferramentas e foi socorrer o companheiro; ao pisar no segundo degrau da escadaria de acesso à entrada principal do teatro, foi golpeado na cabeça e caiu desacordado. Um oficial do Exército, Tenente Bezerra, conhecido integralista cearen-
morto. Com os recursos assim amealhados, a direção do Partido comprou uma casa para a viúva e os filhos de Jaime Calado. Dessa solidariedade fez parte, anos depois, a admissão de Stenka como repórter-auxiliar do diário Imprensa Popular, assim que ele e a família se mudaram para o Rio de Janeiro, tangidos pela grande seca que assolou o Nordeste nos anos 1950. Sua mãe também foi admitida no jornal, como revisora.
RICARDO MEDEIROS/ARQUIVO SD
Foi no diário Imprensa Popular, do Partido Comunista Brasileiro-PCB, que ainda não tinha a denominação de Partidão, que Stenka do Amaral Calado, um moço de 18 anos, fez a sua iniciação como jornalista profissional. Ao acolhêlo em sua equipe, o Partido cumpria mais um compromisso que assumira para a proteção de Stenka e de sua família, depois que o chefe da casa, o jornalista Jaime Calado, foi assassinado em 29 de julho de 1949 nos confrontos travados nas ruas de Fortaleza, Ceará, entre militantes do PCB e partidários do líder integralista Plínio Salgado, que faria um comício na capital cearense, já como parte de sua campanha para a eleição presidencial de 1950. Contrariando a orientação do Comitê Central do Partido, Jaime Calado resolveu impedir que Plínio Salgado discursasse. Era uma ação planejada, para a qual sua família tinha feito panelões de angu com grande quantidade de pimenta, para jogar contra os galinhas-verdes – eram assim chamados os partidários de Plínio – que se atrevessem a aparecer na Praça José de Alencar, onde se realizaria o comício de seu líder. Calado era então repórter do diário comunista O Democrata, editado em Fortaleza, no qual foi admitido pelo Partido depois de um périplo de aventuras que começaram em Portugal, onde seu pai, membro do Partido Comunista Português, atuava na oposição ao Primeiro-Ministro e ditador Oliveira Salazar até que, fugindo da perseguição policial, veio para o Recife e passou a lutar contra a ditadura do Estado Novo. Preso, processado e condenado, libertado em precário estado de saúde provocado pelas torturas que sofreu, o filho de imigrantes resolveu atuar contra a ditadura na clandestinidade e para isso trocou de nome (o de José Ferreira Guimarães, seu nome de família, foi substituído pelo de Jaime Calado). Com o novo nome casou-se no Recife, onde teve seis filhos, aos quais deu os nomes de revolucionários: à primogênita, o de Nadedja, homenagem à companheira de Vladimir Lênin, Nadedja Krupskaia; a ela se seguiu o de Stenka, homenagem ao líder cossaco Stenka Razin, promovido pós-morte a tenente do Exército Vermelho depois da vitória da Revolução de Outubro. Quando soube pelos líderes da Revolução Bolchevique que seu objetivo era derrubar o czar, Razin invadiu sozinho o Palácio do Governo, foi capturado, pendurado num poste e esquartejado. Seus despojos foram arrastados pelas ruas de Moscou, para servir de exemplo.
te!, contou. “Confundido com um garçom, pude circular livremente no meio daquela confusão. Passei boa parte do dia entrevistando craques: Didi, Nílton Santos, Bellini... No final da tarde, ditei a matéria pelo telefone. Não pense que era fácil: levava horas.” Então na idade de prestar serviço militar, Stenka foi considerado durante três anos seguidos como “excesso de contingente” do Exército; como não podia trabalhar com carteira assinada, por falta do certificado de reservista, teve de sobreviver fazendo bicos, principalmente vendas de casa em casa. Liberado finalmente do serviço militar, em 1962 bateu à porta da Gazeta de Notícias, diário então de orientação getulista, e foi chamado pelo secretário de Redação, o gaúcho Osmar Flores, para fazer um teste. “Minha primeira matéria foi uma coletiva de Leonel Brizola na ABI. O caudilho havia encerrado um Governo badaladíssimo no Rio Grande do Sul – quando, entre outras proezas, nacionalizou a Bond & Share – e se mudara para o Rio, onde anunciou sua candidatura a Deputado federal pelo PTB do antigo Distrito Federal. Fui aprovado no teste. Brizola, por sua vez, foi eleito com a maior votação da História do Rio.” Stenka iniciou assim uma atividade profissional que o levou a três Estados – Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo – , à Capital e às Redações dos principais jornais do País e de importantes emissoras de rádio (Rádio Mayrink Veiga, Rádio Mauá): Correio da Manhã, O Globo, Correio Braziliense, O Jornal, Última Hora, A Tribuna, de Vitória, ES, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo. Ele trabalhou também em assessorias de imprensa – na Impacto de Comunicação, na Companhia Vale do Rio Doce quando presidida por Eliezer Batista, pai do bilionário Eike Batista, na Brasif, concessionária monopolista de freeshops nos aeroportos do País. Em Vitória, sua última parada profissional e onde viveu 12 anos, associou-se ao jornalista Rogério Medeiros para a edição de um site mensal que, pelo sucesso, logo se transformou em site diário. Com Medeiros ele lançou em agosto de 2010 o livro Um Novo Espírito Santo – Onde a Corrupção Veste Toga, editado pela Editora Capital Cultural, no qual eles narram as investigações feitas pela Polícia Federal acerca da corrupção na Justiça do Estado e incriminam o então Governador Paulo Hartung. O título “Novo Espírito Santo” era uma alusão irônica ao slogan publicitário do Governo Hartung. Stenka, que era divorciado e tinha quatro filhos, morreu de câncer no Hospital Cardoso Fontes, no Rio, em 21 de abril passado, aos 72 anos. A ele sobreviveram seus irmãos Nadedja, Klara, Ludmila, Olga e Marat, o caçula, que criou e mantém o Blog do Marat.
Trajetória Em entrevista concedida em 27 de julho de 2010 ao jornalista Geraldo Hasse e divulgada na Edição 600 do Observatório da Imprensa, Stenka Calado traçou essa biografia do pai, pouco conhecida até pelos membros antigos do Partidão, e expôs sua trajetória na imprensa, que começou com a primeira missão que o diário do PCB lhe confiou, em junho de 1958: a de cobrir no Aeroporto do Galeão a chegada da Seleção Brasileira de Futebol, campeã do mundo. Stenka foi com uma calça emprestada por um tio e um paletó de outro parente. “Foi minha sor-
REPRODUÇÃO
A voz de um México grandioso Carlos Fuentes colocou seu país noutro patamar de importância internacional e deixou romances marcantes na literatura latino-americana P OR G ONÇALO J UNIOR
Em agosto de 2000, pouco mais de um ano antes dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, o escritor mexicano Carlos Fuentes (19282012) iniciou uma série de artigos que, embora no calor da hora, tornaram-se um retrato equilibrado e crítico de uma época. Os textos, reunidos no livro Contra Bush (Editora Rocco, 2004), traziam um olhar de independência, de não subserviência e de tomada de posição em relação à política externa do Presidente George W. Bush. Fuentes, então, tomou uma postura que faria dele um ícone de resistência à truculência do governante americano. Nessa posição, entretanto, não perdeu a pose e nem sucumbiu a vaidades. Em quase 30 artigos, escritos até junho de 2004, apontou em análises profundas e bem fundamentadas os efeitos negativos da política norte-americana, principalmente quanto aos países da América Latina. Também se tornou seguidor da corrente mundial que lutava por uma vida intermediária entre a arrogância e o intervencionismo de Bush e a violência antidemocrática de países governados por regimes totalitários. Fuentes teve uma vida marcada pela coerência ideológica e de atitudes e se destacava pelo olhar crítico sobre a sociedade mexicana contemporânea, cuja concentração de renda e vínculo com a corrupção no poder público muito o incomodavam. Andou pela esquerda como muitos de seus pares latino-americanos escritores e jornalistas, viu as utopias socialistas desaparecerem, sem nunca abrir mão da sua liberdade e independência de expressar idéias que versavam contra as injustiças do mundo. Em diversas ocasiões se manifestou a favor de Fidel Castro embora, em algumas outras oportunidades, fizesse críticas importantes ao governante cubano. Não teve pudores nem crise de consciência também para elogiar a abertura política e econômica inici-
ada por Raul Castro. Sua generosidade aparecia na postura de crítico da injustiça social, que refletia em seu trabalho não apenas o seu grande valor literário, mas também a sua profunda consciência da realidade dolorosa da vida para os povos da América Latina, como lembrou o secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), o chileno José Miguel Insulza. A morte do escritor, aos 83 anos, no dia 15 de maio, em decorrência de problemas cardíacos, não fez apenas desaparecer um dos maiores escritores latino-americanos da segunda metade do século 20. Fuentes era uma instituição nacional no México, um pensador moderado e respeitado por todas as facções ideológicas, um dos nomes mais importantes e influentes de seu povo. E uma voz fundamental na América Latina. Foi o penúltimo escritor de uma geração brilhante e que agora sobrevive na figura infelizmente reclusa de Gabriel Garcia Márquez, que passou a primeira década do novo século lutando contra graves problemas de saúde e publicou apenas um livro. Fuentes, na verdade, era panamenho de nascimento por um desses acidentes do destino, pois seu pai era diplomata mexicano e morou em diversas capitais latino-americanas – inclusive no Rio de Janeiro –, além de ter vivido em Washington também. Sua visão de mundo veio, sem dúvida, de todos esses lugares por onde morou na infância e juventude, mas ligou-se tanto ao México e à sua condição de pátria que seguiu a profissão do pai e passou a representar seu país em vários cantos do globo. Aos 16 anos, Fuentes voltou ao México para estudar e se formar e ali residiu até 1965. Formou-se em Direito pela Universidade Nacional Autônoma de México e em Economia, pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra, Suíça. Já escritor famoso, ocupou o cargo de
Carlos Fuentes em 1987, na Feira Internacional do Livro de Miami.
embaixador do México na França, até renunciar em 1977, em protesto contra a nomeação do ex-presidente mexicano Díaz Ordaz como primeiro embaixador do México na Espanha após a morte de Franco. Passou a dividir a criação literária com o ofício de professor em três das mais importantes universidades do mundo – Harvard, Cambridge, Princeton –, além de outras instituições norte-americanas de renome internacional. As letras, porém, o consagraram ainda mais nas três décadas seguintes como um dos grandes escritores do século 20. Nesse segmento, mostrou talento tanto como romancista quanto novelista e ensaísta. Nesta categoria, mostrava sua devoção a seu país e pela América Latina em livros como O Espelho Enterrado – Reflexões Sobre a Espanha e o Novo Mundo, que já nasceu como obra de referência. Os ensaios do volume foram baseados na série de televisão que o próprio Fuentes escreveu e apresentou para um canal mexicano. Seu desafio foi mostrar, com equilíbrio, porém sem esconder sua paixão, a trajetória de cinco séculos da conquista das Américas pelos espanhóis. Para isso, pontuou episódios que considerou mais importantes. Como os espelhos ibéricos de Cervantes e Velásquez aos espelhos enterrados em tumbas indígenas no México. Da expulsão dos árabes da Espanha ao massacre dos povos milenares da América Pré-colombiana (astecas e incas). Tratou ainda de El Cid e Simon Bolívar, até chegar aos caudilhos, às revoluções de independência e às atuais tensões de fronteira entre México e Estados Unidos, ele discorreu "sobre o assombroso jogo de reflexos que é a construção da identidade hispano-americana". Foi na ficção que Carlos Fuentes encontrou ressonância para suas idéias e ganhou popularidade, ao escrever romances e novelas hoje clássicos como Aura (1962), Terra Nostra (1975) e Gringo Velho
(1985). Aura foi uma experiência além do realismo fantástico, que flertou com o terror sobrenatural do século 18, simbolizado pelas obras do alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), numa surpreendente trama que misturava vampirismo e imortalidade. Mal compreendida, a obra chegou a ser censurada pelo Ministro do Trabalho do México. Seu último romance lançado no Brasil, em 2011, foi Adão no Éden, que tinha como protagonista o jovem Adão Gorozpe, filho de família pobre que, por méritos pessoais e um casamento por interesse, torna-se um dos maiores advogados do país e figura de destaque na sociedade mexicana. Em nome de sua posição, Gorozpe se submete a rituais sociais e familiares que no fundo despreza, e convive com uma família com a qual não tem qualquer afinidade. Assim como em Aura, o autor, mais uma vez, flertou com o surrealismo e o realismo mágico, a partir de recursos narrativos como saltos temporais e a inclusão de notícias de jornal e assuntos diversos, com ênfase na corrupção que parece tomar conta do México. Assim como em seus livros, o tempo jamais conseguiu abalar as convicções de Carlos Fuentes. Uma postura que levou o colega Mario Vargas Llosa a escrever um emocionado depoimento no jornal El País. Ele contou que o sentimento ao saber da morte do amigo foi de muita dor. "Com ele, desaparece um escritor cujo trabalho e cuja presença deixou marcas profundas. Suas histórias, romances e ensaios são inspirados principalmente pela história e problemas do México, mas ele era um homem universal, que sabia muitas literaturas, em muitas línguas, e viveu de forma comprometida com todos os grandes problemas políticos e culturais destes tempos". Para Vargas Llosa, ele sempre foi um grande promotor da cultura e trabalhou incansavelmente para reunir escritores e leitores de língua espanhola em ambos os lados do Atlântico. "Era um trabalhador, disciplinado e com entusiasmo, e ao mesmo tempo um grande viajante, com uma curiosidade universal, porque ele estava interessado em todas as manifestações da vida cultural e política e escreveu brilhantemente, especialmente em prosa. Não só seus amigos, mas também seus leitores sentirão muitas saudades dele." Carlos Fuentes era a essência do escritor e do pensador completos em toda a sua complexidade e amplo alcance possíveis. Alguns diriam hoje que preenchia o modelo antigo de intelectual militante, daquele que não conseguia abrir mão do papel quixotesco que atribuía a si mesmo de transformar o mundo para melhor pelo dom da palavra – da reflexão pela crítica, mesmo sutil ou ficcional. Nesse sentido, homem e criador se fundiam, numa automobilização constante diante da necessidade de mudança imediata do estado das coisas que, para ele, resumia-se à expressão injustiça social. Aos que ficam cabe agora mensurar o quanto esse artista da escrita foi importante para seu país e seu povo. E perceber mais adiante a falta que ele vai fazer como uma voz capaz de atravessar fronteiras e falar para o mundo. JORNAL DA ABI 378 • MAIO DE 2012
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