NELSON WERNECK SODRÉ O centenário do general vermelho, um visionário do Brasil que ainda não somos
ANGELO AGOSTINI Jornalista, caricaturista, empresário, militante político, foi pioneiro das histórias em quadrinhos
PÁGINAS 22, 23, 24 E 25
PÁGINAS 46, 47 E 48
Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa
367 J UNHO 2011
MUNIR AHMED
Está de volta ao Brasil um acervo sinistro: a documentação do Projeto Brasil: Nunca Mais, que narra em detalhes os crimes cometidos contra 1.843 vítimas da ditadura. PÁGINAS 5, 6, 7 E 8 E EDITORIAL NA PÁGINA 4: SILÊNCIO ETERNO, SÓ NA MORTE
OS 60 ANOS DE UH, O AMOR MAIOR DE SAMUEL WAINER
COMO A DITADURA MATOU O JORNAL DE DONA NIOMAR
NO ORIENTE MÉDIO, A MULHER NÃO TEM VEZ
HERÓDOTO BARBEIRO, UMA APOSTA DA RECORD NEWS
DEPOIS QUE ELE CRIOU O JORNAL QUE CONSIDERAVA A SUA RAZÃO DE VIVER, A IMPRENSA DIÁRIA MUDOU. PÁGINAS 13, 14, 15, 16 E 17
O CORREIO TEVE MORTE LENTA, POR ASFIXIA ECONÔMICA; DEPOIS, COM REPETIDAS VIOLÊNCIAS, CONTA FUAD ATALA. PÁGINAS 18, 19, 20 E 21
ATIVISTA IRANIANA DOS DIREITOS HUMANOS, MINA AHADI DIZ QUE EM SEU PAÍS A MULHER VALE MENOS QUE UM CACHORRO. PÁGINAS 30 E 31
ÁS DO JORNALISMO ELETRÔNICO, ELE CRIOU NOVIDADES, COMO A CBN. AGORA, REFORÇA O TIME DA RECORD. PÁGINAS 36, 37, 38, 39 E 40
Editorial
DESTAQUES DESTA EDIÇÃO
SILÊNCIO ETERNO, SÓ NA MORTE HÁ EVIDENTE MISTIFICAÇÃO, temperada por indisfarçada má-fé, na atoarda que se está a fazer em torno da questão da projetada divulgação dos documentos oficiais recolhidos aos arquivos do Poder Público, que alguns pretendem sejam recobertos para sempre pelo silêncio, como se sobre eles se abatesse uma morte inexorável. OS PARTIDÁRIOS DO MORTICÍNIO documental escudam-se em razões que não resistem a uma análise mesmo perfunctória, como as contidas na alegação de que a revelação desses documentos poderia gerar desconforto nas relações com outros países, mesmo depois de decorrido mais de século entre os temas que possam estar neles referidos ou tratados. São os casos, esgrimidos em tons de superioridade no domínio da História, de episódios que se dissolveram na poeira do tempo, como as negociações para a incorporação do Acre ao território nacional, conduzidas no começo do século XX pelo maior dos nossos diplomatas, o Barão do Rio Branco, e os relatórios militares do conflito com o Paraguai, na segunda metade do século XIX. ESSAS MANIFESTAÇÕES EXTEMPORÂNEAS de suposta erudição encobrem a verdadeira motivação da resistência à abertura dos arquivos, a qual tem por objetivo real a ocultação de fatos da nossa História recen-
Jornal da ABI Número 367 - Junho de 2011
Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, André Gil, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas.
te: os tenebrosos crimes praticados pelos agentes civis e militares da ditadura, que não querem ver expostas à luz do sol as iniqüidades que cometeram. É isto que reclama a consciência democrática do País: a abertura dos arquivos e a criação da Comissão da Verdade, para que os registros dessas ignomínias possam ser conhecidos em toda a sua inteireza. É DESENCORAJADOR RECONHECER que diante do imperativo de busca e revelação da verdade carece o Governo de uma posição firme, clara, com avanços e recuos que deixam entrever que as forças do passado de terror e violência contam com a complacência de setores oficiais para postergar a adoção de medidas que já se afiguram tardias, em oposição ao propósito de construção de sociedades realmente democráticas nesta parte do Continente, como fizeram a Argentina, o Uruguai, o Chile, o Equador, países que, como o nosso, foram infelicitados por ditaduras impiedosas. SÓ AVANÇAREMOS NESSA questão se for afastada a influência de personalidades destacadas do Governo que agem contra a abertura dos arquivos, como o Ministro da Defesa Nelson Jobim, que parece ignorar que só a morte pode promover o silêncio eterno no âmbito tanto das existências individuais como da vida social.
DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer. CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.
Diretor Responsável: Maurício Azêdo
MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda
Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.
Representação de São Paulo Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br
Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.
Impressão: Gráfica Lance Rua Santa Maria, 47 - Cidade Nova Rio de Janeiro - RJ
Conselheiros Efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho.
05
Especial - Retorno à pátria: Há provas dos crimes contra1.843 vítimas da ditadura
09
Exílio - Rastros na neve, por Rodolfo Konder
13
Comemoração - A Última Hora de Samuel num seminário na ABI
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Memória - A lenta agonia do Correio da Manhã, por Fuad Atala
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Centenário - Nelson Werneck Sodré: Um intérprete do Brasil que temos. Um visionário da Nação que queremos
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P oolêmica lêmica - “Hipólito fugiu do Brasil para expor seu irremediável reacionarismo”
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Mobilização - 13 pontos essenciais para a defesa das florestas
34
Competição - A Record News contra-ataca
36
Depoimento - Heródoto Barbeiro: “O jornalismo foi um acidente em minha vida”
41
Eleição - A Academia se rendeu à mídia
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Arte - Steinberg: Um crítico da vida moderna
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História - A imprensa, segundo Agostini
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SEÇÕES ACONTECEU NA ABI
0 10
No Dia da Imprensa, consagração de Zuenir
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A ABI presente em Minas
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LIBERDADE DE IMPRENSA A mídia como um bem popular
30
DIREITOS HUMANOS “No Oriente Médio a mulher é tratada pior do que um cachorro”
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V IDAS Paulo Roberto Viola, Roberto Paulino de Souza, Valcir Almeida
50
Abdias Nascimento
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Ulysses Alves de Souza
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Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros Suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.
O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.
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ESPECIAL
A retomada do acervo do Projeto Brasil: Nunca Mais, que estava no exterior e agora passará por processo de digitalização para ficar acessível ao público, aviva as lembranças de um período sombrio da História do País e fortalece os movimentos que pedem a abertura dos arquivos secretos da ditadura, além da punição dos responsáveis por crimes como a tortura. O acervo oferece abundante massa de provas sobre os crimes praticados contra nada menos de 1.843 vítimas do regime militar.
Documentos do Acervo Brasil: Nunca Mais
HÁ PROVAS DOS CRIMES CONTRA 1.843 VÍTIMAS DA DITADURA POR PAULO CHICO Crimes como prisões arbitrárias, suspensão dos direitos civis, torturas e assassinatos são traços comuns aos governos autoritários. Há ainda outra conduta padrão entre as nações comandadas por tiranos. Como não sabem conviver com a diferença, expurgam seus opositores. No Brasil da ditadura militar pós-1964, não foi diferente. A partir do golpe, muitos brasileiros – de militares a jornalistas, de professores a estudantes, de políticos a artistas, passando por insuspeitos cidadãos comuns – experimentaram a dura provação do exílio, em nome da sobrevivência. Pois foi também para terem sua integridade pre-
servada que os documentos levantados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais, revelando parte das atrocidades cometidas pelo regime de exceção, foram enviados para o exterior. Somente agora eles são repatriados. E, melhor do que isso, estarão acessíveis a toda a população. Entre 1979 e 1985, Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, coordenou clandestinamente o Projeto, em parceria com o Pastor presbiteriano Jaime Wright. O trabalho, realizado em sigilo, resultou na cópia de mais de um milhão de páginas de cerca de 700 processos do Superior Tribunal Militar-STM. O rela-
tório completo, resultado do esforço de mais de 30 brasileiros que se dedicaram durante quase seis anos a levantar dados da História daquele período, revelava a extensão da repressão política em vigor. E teve seu ápice com a publicação, pela Editora Vozes em 1985, do livro Brasil: Nunca Mais. A obra chegou às livrarias em julho daquele ano, apenas quatro meses depois de o General João Batista Figueiredo ter deixado o poder. O clima era de abertura, é fato. Mas, não exatamente de festa. Ainda havia dúzias de incertezas quanto aos rumos políticos do País, bem como sobre a segurança do acervo recolhido até então. Jornal da ABI 367 Junho de 2011
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ESPECIAL RETORNO À PÁTRIA
blico de Repatriação do Acervo do Brasil: Nunca Mais – foi realizada na Procuradoria Regional da República de São Paulo e lotou o auditório local. Numa iniciativa do Ministério Público Federal, Armazém Memória e Arquivo Público do Estado de São Paulo, serão digitalizadas as cerca de um milhão de páginas de processos do STM, que contêm informações e evidências de episódios de violação dos direitos humanos praticados por agentes do Estado durante a ditadura. A previsão é de que o processo de digitalização demore cerca de um ano. O acervo dará corpo a novo Projeto, batizado de Brasil: Nunca Mais Digital. A maior parte do material foi trazida de Chicago, nos Estados Unidos, do Center for Research Libraries, onde vinha sendo mantida nos últimos 26 anos. São 543 rolos de microfilme. Há informações sobre 1.843 vítimas, incluindo mortos e torturados que sobreviveram. O arquivo original do projeto foi reunido, sobretudo, graças à ação de advogados, que retiravam os
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Jornal da ABI 367 Junho de 2011
OS REDATORES, KOTSCHO E FREI BETTO, MANTIVERAM SEGREDO ATÉ PARA A FAMÍLIA O jornalista Ricardo Kotscho e Frei Betto, dominicano que militou na Aliança Libertadora Nacional-ALN, foram os dois redatores do livro lançado em 1985. A eles coube a tarefa de escrever a versão final do texto, antes da revisão de Paulo Vannuchi, que é também jornalista e esteve presente no Projeto desde o seu início. A partir do gigantesco acervo original, que deu origem à obra editada pela Vozes, era possível saber quantos presos passaram pelos tribunais militares, quantos foram formalmente acusados, quantos foram presos, quantas pessoas declararam ter sido torturadas, quantas desapareceram, quais as modalidades de tortura mais praticadas, quais eram os centros de detenção. Foi possível listar nomes de médicos que davam plantão junto aos porões e de funcionários identificados pelos presos políticos. Alguns deles, obviamente, torturadores. “A maior dificuldade encontrada neste trabalho foi esconder
FRANCISCO UCHA
É
documentos legalmente durante o dia, providenciando para que os mesmos fossem secretamente fotocopiados à noite. Uma operação tão destemida quanto arriscada. O público também terá acesso a pesquisas, a matérias publicadas pela imprensa brasileira sobre o Projeto e correspondências trocadas pelos dirigentes do Brasil: Nunca Mais. Valiosas informações, na época confiadas por Dom Paulo ao Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, na Suíça. Caberá ao Arquivo Público do Estado de São Paulo a digitalização das páginas dos processos do STM. Já o acervo do CMI será digitalizado pelo Arquivo Nacional. No novo formato, todo o acervo ficará hospedado no site do Ministério Público Federal. Durante a cerimônia de repatriação foi realizada uma homenagem ao ex-Secretário de Direitos Humanos do Governo Lula, Paulo Vannuchi, que coordenou a coleta dos documentos. “O acesso aos arquivos na internet coloca o País em um novo patamar em relação às investigações e ao uso acadêmico desse conteúdo. Sendo aprovada a Comissão Nacional da Verdade, que continua a ser tema de debates na Câmara dos Deputados, em Brasília, o primeiro trabalho será um mergulho nesse material. A partir daí, poderemos realizar uma série de audiências. Há uma pressão que é crescente, e que seguirá crescendo nos próximos anos. Acabou o período da impunidade. O Brasil tem dois caminhos. O caminho de protelar mais e o caminho de fazer logo. Não existe o caminho de não fazer”, afirmou Vannuchi.
Kotscho tem orgulho de ter participado do projeto desde o início, ao lado de Frei Betto (abaixo): “A maior dificuldade foi esconder o que a gente estava fazendo, para não colocar em risco a nossa vida e a das outras pessoas envolvidas.”
de todo mundo, até da família, o que a gente estava fazendo, para não colocar em risco a nossa vida e a das outras pessoas envolvidas. Ainda vivíamos na ditadura dos generais. Como sou medroso por natureza, para mim foi ainda mais difícil. Achava sempre que estava sendo seguido, que o telefone estava grampeado, essas coisas. Por isso, mudamos várias vezes o nosso local de trabalho. E mandamos cópias de tudo para o exterior, com o conjunto do material pesquisado nos arquivos da Justiça Militar, que agora está voltando ao Brasil. Na produção do livro, o desafio era passar o ‘juridiquês’ dos processos para uma linguagem jornalística, que todo mundo pudesse entender. Deu trabalho, mas valeu a pena. Apesar de todo o medo, me senti orgulhoso de ter participado deste trabalho, junto com velhos amigos, sob o comando de Dom Paulo Evaristo e do Reverendo Jaime Wright”, disse Ricardo Kotscho ao Jornal da ABI.
ALINHADO COM A AGU, O GOVERNO VACILA EM RELAÇÃO AO SIGILO Ao mesmo tempo que o acervo dos crimes da ditadura volta ao País, paira no ar a ameaça de continuarem encobertos – e protegidos pelo anonimato – muitos dos responsáveis pelos tristes fatos ocorridos naquele período. Jornais brasileiros publicaram, na mesma semana do lançamento do Brasil: Nunca Mais Digital, a informação de que o Governo federal tendia a optar pela manutenção do ‘sigilo eterno’ de documentos sobre o período militar. Reportagem do Correio Braziliense afirmou que a Presidente Dilma Rousseff não tomará nenhuma iniciativa para rever a Lei de Anistia, em respeito ao parecer do Ministro Luiz Inácio Adams, da Advocacia Geral da União, encaminhado ao Superior Tribunal Federal-STF. Pela decisão, não haverá julgamento de crimes co-
FOLHA DIRIGIDA
fácil perceber o poder de intimidação do livro, hoje em sua 37ª edição. Com prefácio do próprio Dom Paulo, a obra, que vendeu em pouco tempo 200 mil exemplares, irritava os setores conservadores da sociedade e enraivecia os militares. Nesse cenário, o mais recomendável era fazer o percurso contrário do praticado naqueles anos de afrouxamento do regime. Se desde o início da década de 1980 havia o fluxo de retorno de brasileiros exilados ao País, o material levantado no Brasil: Nunca Mais foi microfilmado e, em 1985, remetido ao exterior, diante do temor de uma apreensão que poderia ocorrer a qualquer momento. Com o livro pronto, a tarefa de tornar pública a realidade brasileira daquele período estava cumprida. O desafio seguinte era mesmo preservar a integridade dos documentos. E assim foi feito. Passadas pouco mais de duas décadas e meia, é chegada a hora de o acervo voltar ao País. No dia 14 de junho foi anunciada a repatriação, digitalização e disponibilização desses documentos. A solenidade – chamada de Ato Pú-
muns cometidos por agentes da ditadura militar, a despeito do recurso apresentado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que cobra do Supremo uma posição em relação à submissão ou não do País à Corte Interamericana de Direitos Humanos–, que recentemente condenou o Brasil pelas mortes na luta dos militares contra a Guerrilha do Araguaia. O Deputado Federal Miro Teixeira (PDT/RJ) foi um dos parlamentares que manifestaram sua preocupação com a tendência ao retrocesso na revisão da história brasileira. “A posição de Dilma a favor do ‘segredo eterno’ sobre documentos ultra-secretos constrange a Câmara. A nossa preocupação é, não sem razão, com o silêncio. O poder do silêncio é brutal. Aqueles que detêm o conhecimento exclusivo dos fatos passam a exercer o poder sobre um conjunto enorme de pessoas. E aí a democracia fica bastante capenga”, alertou Miro, que é jornalista e membro do Conselho Consultivo da ABI.
FREI BETTO: A ABERTURA DOS ARQUIVOS EVITARÁ A AMNÉSIA HISTÓRICA A pedido do Jornal da ABI, Carlos Alberto Libânio Christo – ou, simplesmente, Frei Betto – fez
uma análise da relevância do retorno dos documentos do Brasil: Nunca Mais ao País, em especial, diante do atual contexto político. “Participei do projeto como redator do texto final, em parceria com o Ricardo Kotscho. Os documentos oriundos da Justiça Militar – e o livro é baseado exclusivamente neles – foram todos microfilmados e remetidos a dois países: Estados Unidos e Suíça. Neles está boa parte da memória da ditadura. No momento em que se fala em ‘sigilo eterno’, a abertura desses papéis ao público é de suma importância para se evitar a amnésia histórica.” Lembra Frei Betto que o Brasil é o único país da América Latina que não investigou nem puniu os crimes da ditadura militar. “Não se trata de vingança, e sim de justiça. Estou convencido de que, no futuro, os arquivos das Forças Armadas serão abertos e os criminosos – torturadores, assassinos, seqüestradores – apontados. Não se joga a História para debaixo do tapete. Por isso mesmo, é um passo muito importante a Campanha pela Memória e pela Verdade, defendida pela OAB, que também dá apoio à criação da Comissão Nacional da Verdade. Espero que seus resultados não venham tarde. E que ela tenha poderes para convocar vítimas e algozes da ditadura, abrir arquivos e promover investigações.” O Presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, concorda com a avaliação de Frei Betto. “A eternidade deve permanecer como característica exclusiva da morte. É inacreditável que a Presidente Dilma, vítima que foi do sigilo ditatorial, e com uma trajetória de lutas pela democracia, queira apoiar o ‘sigilo eterno’ de determinados documentos”, condenou, destacando que “os brasileiros têm o direito de ver os criminosos, os terroristas de Estado, no banco dos réus, com o devido processo legal. Não lutamos pelo direito deles, de torturar e de perseguir. Lutamos, sim, pelo
MARCIO ARRUDA/AGÊNCIA O GLOBO
direito dos que foram perseguidos”, concluiu Damous, lembrando que continua em curso o processo de recolhimento de assinaturas em favor da Campanha pela Memória e pela Verdade.
UM MARCA-E-DESMARCA DA MINISTRA DOS DIREITOS HUMANOS A Secretária dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ministra Maria do Rosário, chegou a marcar dois encontros na OAB do Rio, exatamente para fechar um convênio de promoção do direito à memória e à verdade. Em ambas as vezes, no entanto, desmarcou. Nova visita foi programada para 20 de julho mas, diante do aparente recuo do Governo federal, essa agenda, assim como as anteriores, parece estar ameaçada de não vingar. A parceria – que envolveria também a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, presidida por Marco Antônio Rodrigues Barbosa – teria como proposta unir forças pela abertura dos arquivos da repressão, apoio à aprovação da Comissão da Verdade no Congresso Nacional e a continuidade da Campanha pela Memória e pela Verdade, promovida pela seccional fluminense da OAB. Também o Presidente do Conselho Federal da OAB, Ophir Cavalcante, criticou a postura da Presidente Dilma Rousseff. “Repete-se a síndrome de nossos governantes que negam seu passado, que dizem que não leram o que assinaram ou pedem para esquecer o que escreveram. Parece que ela se esqueceu de seu passado de militância contra a ditadura militar ao jogar uma pá de cal sobre o pedido de revisão da Lei de Anistia, ação que possibilitaria a punição dos torturadores”, disse Cavalcante, numa referência à postura passiva da Presidente diante do parecer da Advocacia-Geral da União, assinado pelo Ministro Luís Inácio Adams.
“OS POLICIAIS CONSIDERAM OS DIREITOS HUMANOS COMO COISA DE BANDIDO” Não é de hoje que Frei Betto organiza em memórias suas experiências de militante político. Ele esteve preso por duas vezes sob a ditadura militar: em 1964, por 15 dias; e entre 1969-1973. Sua experiência na prisão está relatada nos livros Cartas da Prisão (Agir), Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira (Rocco), O Dia de Angelo (Brasiliense) e Batismo de Sangue (Rocco), este último traduzido na França e na Itália e adaptado para as telas do cinema. “O filme de Helvécio Ratton é muito fiel ao livro. É o mais realista filme sobre o regime militar. E a reação do público foi
Dom Paulo Evaristo Arns em 1979, quando coordenava clandestinamente, ao lado do Pastor Jaime Wright, o envio de documentos sigilosos que revelavam parte das atrocidades cometidas pela ditadura militar.
“PELO TEXTO ATUAL DO PL Nº 7.376, A COMISSÃO NÃO LEVARÁ A NADA” Com o sigilo eterno, então, a farsa será completa, adverte Erundina. No mais recente debate público sobre o caso, parentes de mortos e desaparecidos políticos defenderam, no dia 29 de junho, alterações no Projeto de Lei nº 7.376/10, que institui a Comissão da Verdade, durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em Brasília. Eles querem que a prioridade da Comissão seja a busca por desaparecidos políticos durante a ditadura. De acordo com a representante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Maria Amélia Teles, o Governo deve apurar os crimes ocorridos entre 1964 e 1985: “Queremos uma Comissão autônoma, com orçamento e estrutura para fazer essa investigação em todo o território nacional”. Rosário também refutou a possibilidade de participação de militares na Comissão. “As Forças Armadas estão sob suspeição até que façam uma autocrítica e venham a público assumir as violações que cometeram. Eles têm de ser depoentes”, disse.
A Deputada Federal Luiza Erundina (PSB/SP) chegou a afirmar que o Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional, que cria a Comissão da Verdade, do jeito como está sendo apresentado, não levará a nada, uma vez que inclui até representantes dos militares ao lado dos representantes dos torturados. Com a tramitação do projeto de ‘sigilo’ – eterno ou por até 50 anos – para documentos secretos e ultra-secretos, a farsa ficaria, então, completa. Ironicamente, no Congresso já se fala em uma ‘Comissão da Verdade Oculta’. Durante a audiência pública, em 29 de junho, em Brasília, o Deputado Federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) provocou tumulto entre os participantes ao dizer que a Comissão da Verdade é parcial. “Querem apurar tortura, mortes e ocultação de cadáveres, mas não querem apurar seqüestros de autoridades e o financiamento da luta armada por Fidel Castro”. Acabou vaiado e xingado por parentes de vítimas do regime, que acompanhavam a sessão.
muito positiva, pois várias vezes ele foi exibido na tv e continua a ser mostrado em faculdades e movimentos sociais.” Superados os regimes de exceção, a tortura ainda é prática recorrente no País, sobretudo pelo aparelhamento bruto das forças policiais. Será que faltam mais denúncias desses abusos, ainda hoje cometidos em presídios, delegacias e quartéis? Como banir a tortura do Brasil? “A tortura grassa no Brasil porque nossas forças policiais são despreparadas, ainda consideram os direitos humanos coisa de bandido... A culpa, portanto, é do Poder Público, que não forma policiais dignos, salvo exceções, e nem apura e pune casos de torturas em batidas policiais e delegacias”, lamenta Frei Betto. É sabido que a prática da tortura por parte de agentes do Estado é algo comum no Brasil. Os casos são denunciados pela mídia e por grupos como o Tortura Nunca Mais. “A violência em delegacias e presídios é, aqui e em países que já passaram por ditaduras, quase um velho hábito que se propa-
ga no rastro da impunidade e da falta de controle do Estado. Há também silêncio na sociedade quando se fala em direitos humanos dos presos. Essa reserva, às vezes explícita, outras camuflada, acaba se refletindo na ineficiência estatal em evitar ou coibir as agressões”, complementa Wadih Damous. Durante a ditadura militar, foi marcante a participação política ativa de resistência de centenas de religiosos, condenando a prática da tortura. Mas nem sempre foi assim, como lembra o próprio Frei Betto. “A Igreja é, toda ela, discípula de um prisioneiro político: Jesus de Nazaré, que não morreu de hepatite na cama, nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém. Foi perseguido e condenado à morte por dois poderes políticos. Infelizmente, ao longo da História, a Igreja também torturou e assassinou, como ocorreu na Inquisição. Porém, hoje a instituição condena a tortura e exige que se instaure a Comissão Nacional da Verdade. E que sejam abertos os arquivos que ainda permanecem secretos”, concluiu.
A BUSCA DOS DOCUMENTOS, PELA MADRUGADA, NUMA CORRIDA CONTRA O TEMPO Em 1979, um grupo de religiosos e advogados iniciou um projeto extremamente ambicioso: obter junto ao STM, em Brasília, informações e evidências de violações aos Direitos Humanos praticadas por agentes do aparato repressivo do Estado durante a ditadura, naquela época ainda em curso, para compilar essa documentação em um livro-denúncia. Os advogados, a partir da consulta aos processos que envolviam a defesa de presos políticos, constataram o valor histórico e jurídico dos documentos existentes. Mereceram especial atenção os depoimentos prestados no âmbito dos tribunais militares, nos quais boa parte dos presos políticos denunciou e detalhou as práticas de violência física e moral que sofreram ou presenciaram. Relatos capazes de revirar o estômago dos mais sensíveis. E de brutos também. O Projeto pretendia evitar o possível desaparecimento dos documentos durante a redemocratização. Considerava-se que a preservação desses papéis seria indispensável como fonte de pesquisa histórica – fato, aliás, irrefutável. Os mentores do projeto – em especial a advogada Eny Raimundo Moreira e a equipe do escritório do falecido advogado Heráclito Sobral Pinto – perceberam que os processos poderi-
am ser copiados, aproveitandose do prazo de 24 horas facultado pelo Tribunal para a custódia provisória de autos. A idéia logo foi acolhida pelo Reverendo Jaime Wright e pelo então Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Arns, que resolveram coordenar as atividades. Os recursos financeiros para tocar o Projeto foram obtidos junto ao CMI, então dirigido por Philip Potter, e na própria Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Paulo. É o resultado de todo esse esforço que, em breve, servirá de franco testemunho aos brasileiros. “O acervo é importante no resgate da História do País e permite que novas gerações saibam o que aconteceu naquela época, para que isso não se repita. Nas salas de aula, a meta fundamental será cumprida. Teremos um milhão de páginas que, quando indexadas em um sistema de busca moderno, poderão trazer elementos novos para muitas situações que podem ter passado despercebidas em 26 anos de pesquisa manual”, festeja Marcelo Zelic, VicePresidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. Zelic é também Coordenador do Armazém Digital, site iniciado em 2001, organizado em centros temáticos e dedicado a reunir na internet registros históricos de resistência dos mais
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ESPECIAL RETORNO À PÁTRIA
gerações e ampliar o acesso a esta memória histórica, através do desenvolvimento de práticas solidárias de cooperação para o acesso entre as instituições que possuam acervos de interesse social, cujos conteúdos fortaleçam o trabalho de educação para os Direitos Humanos. A realização do Brasil: Nunca Mais Digital, com o Ministério Público Federal e demais parceiros, representa um grande salto para a realização dos objetivos propostos pela
“PARECER DA AGU É JOGO DE CENA PARA JUSTIFICAR A INAÇÃO” Entidades de defesa dos direitos humanos censuram as mudanças de posição da Presidente Dilma Rousseff em 2008 e agora, depois que assumiu o Governo. Ainda quando era pré-candidata à Presidência da República, Dilma Rousseff afirmou, em um evento em São Paulo, que respeitaria qualquer decisão do Supremo Tribunal sobre o pedido de revisão da Lei de Anistia. Ela disse então que, por se tratar da Corte mais alta do País, as decisões do Supremo não deveriam ser contestadas. Explicitou também que não era favorável ao revanchismo, embora reconhecesse a existência de debates internos no próprio Governo, onde havia defensores da revisão da Lei. “O parecer oficial do Governo é o parecer da AGU. Como tratava-se de um Governo democrático, havia, sim, um debate interno. A partir de agora, o que vale para todos nós é que a decisão do Supremo tem que ser cumprida. Não cabe discussão a respeito”, encerrou Dilma. A posição atual da Presidente, criticada por entidades de defesa dos direitos humanos, é oposta àquela assumida publicamente, quando ainda era Ministra Chefe da Casa Civil do Governo Lula, conforme comprova parecer divulgado em 4 de dezembro de 2008, que afirma que os crimes de lesão corporal, estupro, atentado violento ao pudor, homicídio, ocultação de cadáver e tortura, praticados por agentes do Estado, “não são crimes políticos sob a ótica dos conceitos amplamente aceitos e adotados pela doutrina e pela jurisprudência.” Ao longo dos 32 anos da sanção da Lei de Anistia, os parentes de mortos e desaparecidos, expresos políticos, bem como entidades da sociedade civil e de direitos humanos, vêm lutando pelo esclarecimento dos fatos e a responsabilização dos agentes públicos envolvidos nestes crimes de lesa-humanidade ocorridos durante a ditadura. A decisão que condenou o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos
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Humanos é resultado dessa consciência, trabalho e luta. E, ao menos por respeito a este esforço cidadão, deveria ser cumprida integralmente. É o que defende, por exemplo, Marcelo Zelic. “O pronunciamento da AGU é tão somente uma tentativa de manobrar a opinião pública, uma jogada de cena para justificar a inação do Governo frente ao tema da responsabilização. É fruto de uma estratégia irresponsável, por parte de setores do Estado brasileiro, que não pensa o País e está centrada em negar a competência e as implicações constitucionais no ordenamento jurídico do Brasil de sua adesão à CIDH, protelando os mecanismos da impunidade e criando com esta negativa uma instabilidade jurídica que faz retrocederem os direitos humanos no País, servindo de estímulo para aqueles que hoje praticam arbitrariedades iguais. Tudo isso sinaliza que sempre haverá a defesa dos mecanismos da impunidade, uma vez que as decisões da OEA não possuem efeito interno no Brasil”, criticou Zelic. O Vice-Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo faz ainda uma advertência: “Seguir neste caminho será pactuar com o atraso e alinhar o Estado brasileiro com os crimes de lesa-humanidade praticados. Neste processo histórico por justiça e verdade, tal posição, além de expor os governantes e agentes públicos de hoje à contestação por crimes pelo não cumprir da sentença da OEA, deixa o País em situação desconfortável no plano internacional. Na América do Sul, os mais altos tribunais judiciários da Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai já incorporaram os parâmetros ditados pela CIDH nessa matéria, a partir de alterações efetuadas na legislação de anistia proposta pelos executivos.”
ELISABETE SAVIOLI/APESP
variados movimentos sociais. Digitalizar a íntegra do Brasil: Nunca Mais e tornar seu conteúdo acessível à distância, de forma livre e gratuita, e em uma biblioteca pública virtual, foram metas perseguidas nestes 10 anos de atividades. “Temos mapeado acervos e reunido de forma digital coleções de periódicos, depoimentos, livros, vídeos, artigos, documentos e imagens, para facilitar a troca de experiência entre as
equipe de mais de 30 pessoas que produziram o material original desta pesquisa. Em seu início, esse material chegou às universidades, ficando mais acessível ao meio acadêmico. Podia, por exemplo, ser pesquisado por acesso local através do Arquivo Edgard Leuenrouth, na Unicamp, para onde foram enviadas cópias. Agora, digitalizado, o acervo servirá para reafirmar, através da educação, os direitos fundamentais da cidadania e os Direitos Humanos.”
DOIS RELATOS, DENTRE MILHARES, DO TRATAMENTO DEGRADANTE DADO AOS PRESOS POLÍTICOS O horror sob a tortura: baratas sobre o corpo e uma introduzida no ânus “... obrigaram o acusado a colocar os testículos espaldados na cadeira; que Miranda e o escrivão Holanda com a palmatória procuravam acertar os testículos do interrogado. (...) o acusado sofreu o castigo chamado ‘telefone’, que consiste em tapas dados nos dois ouvidos ao mesmo tempo, sem que a pessoa esteja esperando; que, em virtude deste castigo, o acusado passou uma série de dias sem estar ouvindo; que três dias após, o acusado, ao limpar o ouvido, notou que este havia sangrado”. Este depoimento, que faz parte do primeiro capítulo do livro
No Ato Público de Repatriação do Acervo, Marcelo Zelic (de vermelho), Carlos Bacellar e Marlon Weichert, apresentam o Projeto Brasil: Nunca Mais Digital.
Brasil: Nunca Mais, foi dado ao Superior Tribunal Militar por Pedro Coutinho de Almeida, na época estudante de apenas 20 anos de idade, de Pernambuco. A mesma obra traz o relato de Lúcia Maria Murat Vasconcelos, de 23 anos: “... a interroganda quer ainda declarar que durante a primeira fase do interrogatório foram colocadas baratas sobre o seu corpo, e introduzida uma no seu ânus.” Essas são apenas duas das experiências de horror narradas no livro. Há outras, centenas de outras. Algumas, piores. Em contraposição ao circo de dores e humilhações, surge Dom Paulo Evaristo Arns, logo no prefácio. Palavras de estupefação diante do que é capaz de fazer o homem. Mas também de fé em relação à humanidade. “As angústias e esperanças do povo devem ser compartilhadas pela Igreja. Confiamos que esse livro, composto por especialistas, nos confirme em nossa crença no futuro. Afinal, o próprio Cristo, que ‘passou pela Terra fazendo o bem’, foi perseguido, torturado e morto. As experiências que desejo relatar no frontispício desta obra pretendem reforçar a idéia subjacen-
te em todos os capítulos, a saber, que a tortura, além de desumana, é o meio mais inadequado para levar-nos a descobrir a verdade e chegar à paz”, escreveu. Hoje Arcebispo Emérito de São Paulo, Dom Paulo contou, no mesmo prefácio, que durante os tempos da mais intensa busca pelos chamados ‘subversivos’, atendia semanalmente, na Cúria Metropolitana, a mais de vinte, e até cinqüenta pessoas. Todas em busca do paradeiro de seus parentes. “Não há ninguém que consiga descrever a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu. O que mais me impressionou, ao longo dos anos de vigília contra a tortura, porém, foi o seguinte: como se degradam os torturadores.” Assim como Eny Moreira, advogada que deu início ao processo, e Delora Wright, filha do Pastor Jaime Wright, morto em 1999, Dom Paulo Evaristo Arns também foi homenageado na solenidade de lançamento do Brasil: Nunca Mais Digital, no dia 14 de junho, em São Paulo.
DOM PAULO: “OS JOVENS PRECISAM SABER O QUE SE PASSOU” O Cardeal Emérito de São Paulo defende um debate amplo sobre o Brasil: Nunca Mais, organizado por amor à família brasileira. Às vésperas de completar 90 anos de idade, em 14 de setembro, Dom Paulo não compareceu ao lançameto do Brasil: Nunca Mais Digital, mas manifestou humildade, em carta, afirmando não ter feito nada de excepcional ao abraçar a causa dos direitos humanos no Brasil mergulhado no autoritarismo. Ainda que oficialmente sem dar entrevistas, ele abriu exceção para o Jornal da ABI, ao qual deu uma breve declaração sobre a retomada dos arquivos do Projeto que coordenou há quase três décadas. Não sem antes identificar-se como Arcebispo Emérito e jornalista filiado à ABI – atuou como redator, com centenas de artigos escritos em publicações de Petrópolis (RJ) e São Paulo –, ele
defendeu ações futuras que devem ser desenvolvidas, a partir dessa repatriação: “A volta deste material ao Brasil, num ato simbólico, é importante. Aliás, vale lembrar que este acervo também foi entregue à Universidade de Campinas. A partir de agora, o debate, a meu ver, deve ser amplo, com boa participação da sociedade e objetividade. Isto é, a comunicação aos jovens estudantes de todas as classes sociais é indispensável. Eles precisam saber o que se passou. Afinal, o Brasil: Nunca Mais foi organizado e publicado por respeito à pessoa humana. Em nome da sua dignidade. E por amor à família brasileira”, resumiu Dom Paulo.
EXÍLIO
Rastros na neve A aventura de um brasileiro exposto aos rigores de um inverno de 50 graus abaixo de zero e que não perdeu a alegria de viver mesmo sob o ar gelado que fere como um soco. POR RODOLFO KONDER ELIANE SOARES
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uando a temperatura desce a mais de 50 graus abaixo de zero, as estações de rádio transmitem advertências, no sentido de que as pessoas permaneçam em suas casas. Elas não devem sair à rua, porque a carne humana exposta, naquela temperatura, congela em apenas 30 segundos. Hoje, os termômetros registram 30 graus negativos. Olho pelas janelas envidraçadas do meu apartamento, no sétimo andar de um prédio na Sherbrooke West. Céu azul, sol brilhante. Nada mais enganador. Lá fora, o ar gelado bate nas pessoas como um soco. Tira a respiração da gente. Dói nos ossos. Devidamente agasalhado, deixo o apartamento aquecido, vou até a garagem igualmente aquecida, entro no meu velho Buick 73 e ligo o sistema de aquecimento. No estacionamento da Canadian Broadcasting Corporation -CBC, porém, não tenho direito a uma vaga nas áreas cobertas, porque não sou canadense, nem imigrante. Na verdade, possuo somente uma “permissão para trabalhar” - uma working permit. Resultado: devo estacionar num imenso pátio, ao relento. Num dia de neve intensa, cheguei ao estacionamento, à noite, depois das transmissões diárias da seção brasileira, e encontrei apenas um grosso edredom gelado, com algumas elevações suaves. O velho Buick era uma das elevações. Fui obrigado a desenterrá-lo, enquanto os tratores da CBC abriam caminhos nas passagens principais do pátio. A meteorologia não prevê neve para hoje, mas os rádios pedem que tomemos cuidado com o frio. Se venta, por exemplo, os 30 graus negativos podem baixar para 40 ou 50 abaixo de zero – com resultados surpreendentes e devastadores. Percebo logo isso, ao sair do carro. Bato a porta, apressadamente, e as chaves caem e escorregam num declive para baixo do Buick. Tiro a luva, por instantes, para pegá-las. Entre o
ato de me abaixar, esticar o braço, procurar o chaveiro, recolhê-lo e me levantar para trancar a porta, o frio congela minha mão. Entro novamente no carro, ligo o aquecimento e faço massagem na mão atingida, até senti-la de novo. Dias depois, outro fenômeno curioso e assustador me desafia. Ao sair da CBC, encontro o carro totalmente encapsulado, envolto por uma sólida camada de gelo, uma placa com mais de um dedo de espessura, que o cobre por inteiro. Tenho primeiro de derreter o gelo que esconde a fechadura, para então abrir a porta com um puxão violento. A placa se rompe, embora continue cobrindo as janelas, mesmo quando eu abaixo os vidros. O que está acontecendo? Às vezes, chove quando a temperatura ainda está acima de zero. Então, um vento gelado que vem do pólo atravessa a cidade, derrubando a temperatura e congelando a água da chuva em questão de segundos. As ruas e calçadas ficam cobertas por lâminas de gelo e, os canos, encapsulados. Apesar do frio e das suas armadilhas, a vida em Montreal me deu muitas alegrias. Jantar no res-
taurante Troika (Crescent Street) ou no A La Catalogne (Vieux Montreal), por exemplo. Ou sair de carro e subir as Montanhas Laurencianas, para freqüentar as pistas de esqui em St. Sauveur e Mont Tremblant. Ou ainda comer trutas na manteiga, perto da lareira, junto ao lago azul de St. Agathe. Nos fins de semana de folga, quando eu não precisava pegar o microfone para anunciar nossas transmissões em inglês e francês – This Is Radio Canada International – era sempre possível caminhar pelos 15 quilômetros de espaços subterrâneos de uma cidade sob a cidade. Lojas sofisticadas, belos restaurantes, cinemas, cafés e pessoas elegantes criavam o cenário impecável de uma metrópole tranqüila e civilizada. Também era possível encontrar uma bela hospedaria, à beira de algum dos 120 mil lagos cadastrados do país, que há três anos consecutivos lidera a lista da Onu das nações com melhor qualidade de vida no planeta Terra. RODOLFO KONDER, sócio da ABI, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
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Aconteceu na ABI
No Dia da Imprensa, consagração de Zuenir Num ato marcado pelo carinho dos companheiros e pela intensa emoção que o dominou, a ABI prestou homenagem a Zuenir Ventura pelos seus 80 anos, completados no dia dedicado à Imprensa. FOTOS ALCYR CAVALCÂNTI
POR CLÁUDIA S OUZA A ABI homenageou o Dia da Imprensa e o 80º aniversário do jornalista Zuenir Ventura em cerimônia realizada no dia 1° de junho na Sala Belisário de Souza, no sétimo andar do Edifício Herbert Moses, onde dezenas de pessoas,entre conselheiros, associados, colegas e antigos alunos de Mestre Zu, como dizia gigantesco banner no fundo do palco, levaram o seu abraço ao autor de Cidade Partida. A mesa de honra foi formada por Pery Cotta, Presidente do Conselho Deliberativo da Casa, pelos Diretores Domingos Meirelles e Ilma Martins da Silva, pelo jornalista Cícero Sandroni, Conselheiro da ABI e ex-Presidente da Academia Brasileira de Letras, Mary Ventura, mulher do homenageado, e pelo cartunista Ziraldo. Avesso a comemorações e homenagens, Zuenir Ventura explicou os motivos que o levaram a abrir exceção no aniversário de 80 anos: “A ABI é nossa Casa, com sua história de luta pelas liberdades. Quando entrei aqui hoje, senti uma emoção muito grande. Nunca pensei que um dia eu estaria na ABI como personagem e para comemorar meus 80 anos. É uma honra que vale a pena qualquer sacrifício, como o de me expor, para celebrar esta data junto com a ABI; afinal, não é qualquer um que faz 80 anos. Fiquei muito feliz e rendido. Só estou tenso por não gostar da exposição, mas imagina se eu gostasse.” (risos) A solenidade teve início com a saudação de Pery Cotta aos presentes e ao homenageado: “Nesta data, 1º de junho, comemoramos o Dia da Imprensa e a figura que a representa: Zuenir Ventura, Mestre Zu. Com a ausência do Presidente Maurício Azêdo, que está em Belo Horizonte para o lançamento da Representação da ABI em Minas Gerais, tive a sorte de presidir esta solenidade. Fui um dos muitos discípulos de Zuenir Ventura no início dos anos 1960, na Tribuna da Imprensa. Sua esposa, Mary, era nossa companheira de Redação. Nesta época, Zuenir já era um mestre, ou melhor, o ‘Divino Mestre’, como os repórteres do jornal o chamavam, não só pela capacidade intelectual, pelo texto espetacular, pelo dom natural da escrita, mas também por ser uma das figuras mais doces, mais cordiais, mais amigas que conheci em toda a minha vida. Ele sempre tinha uma palavra de 10
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carinho, de atenção, principalmente com o repórter que estava começando a carreira. Ele ensinava a escrever e, acima de tudo, ensinava a importância da liberdade de imprensa para a democracia. Não foi à toa que ele nasceu na data em que se comemora o Dia da Imprensa. Eu trouxe um livro que a ABI fez, provavelmente nos anos 1980, no qual uma série de profissionais de imprensa escreveram sobre o que é o jornalismo. Vou citar um trecho escrito por Zuenir: “Os redatores que me perdoem, os editores que me desculpem, os diretores que não me ouçam, os diagramadores que não me queiram mal, os cronistas e colunistas, esses então, que não me atirem pedras, mas se todos eles um dia desaparecessem e só ficasse o repórter, o jornalismo continuaria vivo.” Pery Cotta aplaudiu também o Dia da Imprensa e a luta da Associação pelas liberdades e pela categoria: “A ABI nasceu defendendo o profissional de imprensa, defendendo o repórter. Foi fundada por um jornalista ilustre e reuniu ao longo de sua trajetória um quadro de dirigentes que marcou os movimentos em defesa da liberdade de imprensa, da democracia, dos direitos humanos, do cidadão. Neste Dia da Imprensa, a ABI saúda Zuenir Ventura, um símbolo de tudo isto. Sei que você, Zuenir, não gosta muito de falar, mas gostaria de pedir que durante o seu discurso você fizesse um comentário sobre o que é liberdade de imprensa.” Dando prosseguimento à cerimônia, Ziraldo fez a entrega da placa comemorativa dos 80 anos de Zuenir Ventura: “Fui escolhido para entregar esta placa ao Zuenir porque o Presidente Maurício Azêdo sabe que esta é uma festa de velhos amigos. A consistência da amizade quem dá é o tempo, as aventuras e sofrimentos comuns. Maurício é meu amigo há 40 anos. Certa vez, eu estava participando de uma cerimônia aqui na ABI e o Maurício fez a minha apresentação, Fiquei muito comovido ao perceber que Maurício conhecia detalhes da minha vida que eu nem podia imaginar. Então, pensei: Maurício é mais meu amigo do que eu pensava. E foi por isso que ele me escolheu para entregar a homenagem ao Zuenir. Ele sabia que se convidasse o Artur Xexéo, o João Máximo, o Roberto D’ávila, ou qualquer outro, eu morreria de ciúmes. Eu morro de ciúmes do Zuenir. Para me proteger, Maurício Azêdo dedicou a mim esta missão, que é quase
Zuenir (ao centro) recebe as reverências do primeiro time da imprensa: Meirelles, Sandroni, Ziraldo e Pery Cotta.
um dever, em nome da minha belíssima amizade com Zuenir Ventura. Grandes jornalistas deste País começaram a carreira sob a batuta de Zuenir, que fez de sua vida um exemplo para tantas gerações. Em nome desta nossa amizade, em nome da ABI, eu entrego esta placa que traz inscrita a seguinte dedicatória: “A Zuenir Ventura, mestre do Jornalismo, a homenagem de seus companheiros e admiradores da Associação Brasileira de Imprensa aos seus gloriosos 80 anos. Quero encerrar a minha fala dizendo que gostar do Zuenir é fácil, é igual a gostar do Flamengo! Meus parabéns, meu querido. Desejo que você chegue aos 90!” Emocionado, Zuenir agradeceu a homenagem e sublinhou a trajetória centenária da ABI: “Acho que isto aqui não é uma homenagem, e sim um teste de resistência cardiológica. Haja coração! Esta homenagem é o melhor presente que eu poderia receber ao completar 80 anos. Sei que é menos devido às minhas hipotéticas qualidades, mas sim à generosidade desta Casa e de seu Presidente Maurício Azêdo, meu amigo. Os 103 anos da ABI são a reposta para tudo. A história da ABI é de luta pela liberdade de imprensa, e metade desta his-
tória coincide com a minha carreira jornalística, com os meus 50 anos de jornalismo. Eu acompanhei alguns desses momentos gloriosos da ABI. Não houve neste país um jornalista ameaçado que o Presidente da ABI não viesse em seu socorro e em sua defesa com palavras e ações. Eu fui amigo de dois antigos Presidentes da ABI, o Doutor Prudente de Moraes, neto, com quem trabalhei no jornal Diário Carioca, e o Doutor Barbosa Lima Sobrinho, que conheci em 1975 quando ele foi a São Paulo participar da onda de protestos e indignação pela morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura. Acompanhamos as ações de Barbosa Lima Sobrinho em todo o País, antes da campanha das Diretas Já, durante a campanha das Diretas Já, após o impeachment do Presidente Collor. Estes dois Presidentes da ABI foram personalidades fundamentais que arriscaram a própria pele nos momentos difíceis durante a ditadura do Estado Novo e na ditadura militar de 1964. Ontem e hoje, a história da ABI é a história da resistência.” Atendendo ao pedido de Pery Cotta, Zuenir falou, em seguida, sobre liberdade de imprensa:
ALCYR CAVALCÂNTI
Convidado para padrinho, Ziraldo entrega a Zuenir a placa mandada fazer pela ABI.
“Quando Pery Cotta me pergunta o que é liberdade de imprensa, eu digo que é uma luta permanente, já que a liberdade de imprensa sempre está ameaçada. O poder político e o poder econômico não gostam da liberdade de imprensa porque ela incomoda, fiscaliza em nome da sociedade. Quando vivenciamos o cerceamento da liberdade de imprensa, como aconteceu durante a
ditadura militar, sabemos que a censura foi, na verdade, uma censura à sociedade. Muitos jornalistas sofreram durante este período, mas a sociedade brasileira sofreu muito mais em meio às trevas em que o Brasil mergulhou. Este prédio da ABI sofreu um atentado terrorista em 1976 e teve um andar destruído. Em momentos assim, sempre havia alguém lutando. Quando ocorria um atentado contra a liberdade de imprensa em qualquer lugar do País, lá estava o Presidente da ABI. Poucas categorias profissionais são tão bem representadas quanto a nossa. Temos várias queixas na nossa história de jornalistas, aliás, gostamos muito de nos queixar. Mas nunca nos queixamos da nossa representação nesta Casa. Também fiquei muito emocionado em ser saudado pelo Ziraldo, porque nós não somos apenas colegas de alfabeto, mas também de coração. O Pery Cotta foi um querido companheiro. Ele diz que é mais novo do que eu apenas oito anos, mas eu acho que é muito mais.(risos) Trabalhamos juntos no Correio da Manhã em época de invasão de Redação. Quero terminar dizendo que a luta permanente é pela resistência que não pode ser feita por uma única pessoa, mas através das gerações que sempre terão abrigo nesta Casa.”
Cícero Sandroni: A História do Brasil é a História da Imprensa Antes do encerramento da homenagem, Cícero Sandroni discorreu sobre o papel histórico da imprensa na construção do processo democrático no País: “O Doutor Barbosa Lima Sobrinho sempre dizia que a História do Brasil é a História da Imprensa do Brasil. Não há um momento na história deste País, desde a Colônia até hoje, em que a imprensa não tenha exercido papel decisivo na concepção dos fatos. A partir da Colônia, Hipólito José da Costa – que é também patrono desta Casa – e o seu Correio Braziliense trabalharam muito pela Independência. Na época de Dom Pedro I, os jornais criaram panfletos que exerceram papel decisivo para a sua abdicação. No reinado de Dom Pedro II, como também Doutor Barbosa sempre acentuava, havia liberdade de imprensa. Durante a Regência, não. Mas em seu período como imperador de fato ele jamais censurou qualquer jornal. Os jornais diziam o que queriam e quando os ministros reclamavam, ele retrucava: ‘Se eu censurar a imprensa, como saberei o que meus ministros fazem?’ Durante a República também, assim como na abolição da Escravatura, com jornalistas como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. A imprensa fez a abolição, a imprensa fez a República”, disse, para proseguir. “Por incrível que pareça, junto com a República Velha veio a censura à imprensa no Governo Marechal Teodoro, no
Governo Floriano, que governou sob estado de sítio, no Governo Artur Bernardes, que também governou sob estado de sítio e sobre o qual o Doutor Barbosa escreveu o livro fundamental O Poder da Imprensa. Toda essa atividade da imprensa na História do Brasil é celebrada no Dia da Imprensa, que é quando aniversaria Zuenir Ventura, herdeiro dessas lutas, um desses guerreiros pela liberdade de imprensa. Hoje é o aniversário de Zuenir, mas é também o aniversário de todos nós que trabalhamos na imprensa. Muitos jornais, não vou citar aqui, estiveram do lado errado na ditadura. Sabemos que em 1964 quase toda a imprensa apoiou o golpe, mas o Zuenir não, o Ziraldo, também não. Os jornalistas não apoiaram o golpe, os jornalistas foram perseguidos, foram presos, torturados, muitos foram mortos. A História da Imprensa dos últimos 50 anos, ou talvez mais, se confunde com a história de Zuenir Ventura. E isso, como dizia Doutor Barbosa, é a história do Brasil. Parabéns, Zuenir!” Pery Cotta encerrou o evento celebrando o homenageado, que exibiu para o público um exemplar do jornal O Globo do dia 1° de junho de 2011, cuja capa comemora os seus 80 anos. “Foi também uma bela homenagem”, disse Zuenir, jornalista, aplaudido de pé pelos presentes. Colaborou Renan Castro, estudante de Comunicação Social, estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI.
Casartelli: O sionismo converteu-se depois em uma ideologia de extrema direita.
A Palestina, na visão de observador paraguaio A visão do conflito árabe-israelense do escritor Mário Casartelli. Uma concorrida noite de autógrafos marcou o lançamento do livro La Llave Entre las Piedras, do jornalista, escritor, humorista e compositor paraguaio Mário Casartelli, apresentado em 14 de junho, na ABI. A obra aborda a questão árabe-israelense, que foi tema do debate realizado em seguida ao lançamento. O evento foi promovido pela Diretoria de Cultura e Lazer e atraiu jornalistas, cineastas, entre outras personalidades da cena política e cultural do Brasil. Convidados pelo Diretor de Cultura e Lazer da ABI, Jesus Chediak, o programa contou com a presença dos cineastas Dejean Magno Pellegrini e Sílvio Tendler, da atriz e cantora Watusi e da Presidente do Comitê Estadual do PCdoB no Rio de Janeiro, Ana Rocha. Os Conselheiros Domingos Meirelles, Sérgio Caldieri e Mário Augusto Jakobskind também compareceram ao evento. A mesa de debates foi composta por Tendler, Mário Augusto Jakobskind e o autor do livro. A mediadora foi a jornalista Cláudia Furiati. Na abertura, Jesus Chediak destacou a importância do diálogo entre os dois lados envolvidos no conflito e o objetivo principal do encontro: “Hoje se passa para a sociedade uma idéia muito errônea em relação ao povo de Israel, um povo com uma história muito bonita, que todos nós respeitamos muito. Eu diria que o próprio Ocidente se estrutura em cima do semitismo. E como o Brasil tem a vocação pela paz e pela harmonia, este é um encontro de paz e harmonia entre árabes e judeus. Isso é fundamental, e esse é o nosso principal objetivo.” O evento teve início com a exibição do curta-metragem Matzeiva Juliano Mer-Khamis, de Silvio Tendler, que conta a história de Juliano Mer Khamis, um palhaço judeu que se apresentava em um teatro na cidade de Jenin, na Cisjordânia, um dos palcos dos conflitos entre israelenses e árabes. Juliano foi assassinado há dois meses na Palestina, e sua
história serve de exemplo aos que buscam a paz na região, como afirma Silvio: “Eu acho que ele é o personagem mais emblemático do que pode ser a paz. Na verdade eu faço essa homenagem a ele para mostrar que os fundamentalismos não têm limites. O Juliano morava em Haifa, era um grande ator em Israel, ia toda semana pra Jenin, pra se apresentar para aquelas crianças. Se chama Matzeiva Juliano Mer-Khamis, porque Matzeiva em hebraico quer dizer lápide, que é como se fosse uma lápide mesmo, uma homenagem.” O jornalista Domingos Meirelles reforçou a mensagem positiva passada pelo filme e o importante papel da ABI de levantar discussões com o objetivo de promover a paz: “Para a ABI é sempre um motivo de orgulho a apresentação de documentários com esse perfil, ainda mais porque está de acordo com a tradição desta Casa, que sempre foi a favor da defesa das liberdades”. Após a exibição do filme, Mário Casartelli explicou a razão do título dado ao livro, La Llave Entre las Piedras (A Chave Entre as Pedras), inspirado no protesto que acontece em todos os dias 15 de maio, quando palestinos lembram da perda de suas casas, demolidas após a criação do Estado de Israel. Na manifestação, todos caminham com chaves simbólicas nas mãos, que representam os lares perdidos no dia do “Al Nakba”, que significa “a catástrofe”, como os palestinos se referem ao dia da fundação do Estado de Israel. O autor expõe os problemas e as conseqüências do que considera o desvirtuamento do sionismo: “Como teoria, o sionismo foi uma coisa interessante, bonita, congregar todo um povo num só lugar. Mas aconteceu que essa teoria foi se desvirtuando. Lastimavelmente, o sionismo, que foi muito bom por um lado, converteu-se depois em uma ideologia de extrema direita, que terminou praticando o terrorismo de Estado”. Jornal da ABI 367 Junho de 2011
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Aconteceu na ABI
A ABI presente em Minas
As razões da Líbia, por seu embaixador
Comemorações do Dia da Imprensa incluíram a criação da nossa Representação no Estado.
A ABI abriu espaço para uma entrevista sobre a rebelião anti-Kadafi, mas no dia não apareceu um repórter.
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WELLINGTONPEDRO/IMPRENSA MG
Em concorrida cerimônia realizada na Academia Mineira de Letras, na noite do dia 1 de junho, a ABI declarou instalada a sua Representação de Minas Gerais, que tem à frente o jornalista e editor José Eustáquio de Carvalho, conhecido nos meios jornalísticos e culturais de Belo Horizonte como Taquinho e que trabalhou como repórter, redator e chefe de Redação de jornais de Minas e de sucursais de jornais e revistas de outros Estados, entre as quais IstoÉ, logo após a sua criação. O Presidente de Honra da Representação é o jornalista e professor de Direito José Mendonça, de 93 anos, que foi um dos fundadores do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1962. A Representação da ABI em Minas soma-se à de São Paulo, criada nos anos 1970. A criação da Representação integrou as comemorações do Dia da Imprensa realizadas pela ABI, a qual incluiu essa cerimônia e, no Rio, a homenagem ao jornalista Zuenir Ventura pelos seus 80 anos. Ao dar posse ao Diretor de Representação, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, salientou a alta representatividade de Eustáquio, escolhido por unanimidade pelo numeroso grupo de profissionais que integram o Conselho Consultivo da Representação. Em seu primeiro pronunciamento, Eustáquio expôs as linhas gerais da atuação da Representação, que vai concentrar esforços em iniciativas que contribuam para o aprimoramento técnico, cultural e ético dos jornalistas mineiros, promovam a troca de experiências entre os profissionais há mais tempo em atividade e os jovens profissionais e estudantes de Jornalismo e de Comunicação Social e a valorização da rica trajetória de Minas Gerais no campo do jornalismo, através da criação de unidades e serviços culturais, como o Museu da Comunicação no Estado. Tendo como mestre de cerimônia o jornalista Guilherme Mauro, neto do cineasta Humberto Mauro, um dos pioneiros do cinema brasileiro, a solenidade contou com uma mesa de honra formada pelo Presidente da Academia Mineira de Letras, escritor Orlando Vaz, pelo Professor José Mendonça e pelo Secretário de Comunicação Social do Estado de Minas Gerais, jornalista Nestor de Oliveira. Foi considerado também como integrante da mesa o jornalista Aloísio Morais, Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de Minas Gerais. Além de Mendonça, que leu o sucinto termo de instalação da Representação, de Vaz, Nestor de Oliveira, Eustáquio e Maurício, discursou no ato o jornalista Glauco de Oliveira, Diretor da Editora Book Link, do Rio de Janeiro, que editou uma plaqueta his-
O Governador (com livro na mão) recebeu o Presidente da ABI (à esquerda) e o Diretor da ABI-MG, jornalista Taquinho.
toriando os antecedentes da criação da Representação. Participaram do ato associados da ABI radicados em Belo Horizonte, como Aureclydes Ponce de Leon, Sérgio A. Neves, Vice-Presidente da Associação Mineira de Imprensa, e Rogério Faria Tavares, âncora do programa Rede Mídia, da TV Rede Minas; o ex-Deputado federal Nilmário Miranda, Presidente da Fundação Perseu Abramo, de São Paulo; o jornalista Edivaldo Farias, Diretor-Geral da TV C , Canal 6 da Net, entre dezenas de convidados. Com o Governador Na véspera da sessão, o Presidente da ABI e os membros do Conselho Consultivo da Representação foram recebidos em audiência especial pelo Governador Antônio Anastasia, que saudou a chegada da ABI a Minas Gerais e fez até um questionamento: por que isto se deu somente agora? Em seguida, a convite do Governador, que embarcaria minutos depois para as comemorações do aniversário do Município de Divinópolis, a comitiva da ABI visitou as instalações do complexo cultural que o Governo do Estado está implantando na área do Palácio da Liberdade, em razão da transferência dos órgãos de Governo para a Cidade Administrativa criada pelo Governo Aécio Neves com base em projeto de Oscar Niemeyer. Os dirigentes da ABI participaram também de uma audiência com a Presidente da Obra Social do Estado, Andréa Neves, na quarta-feira, dia 1, e de uma reunião com técnicos do Serviço Federal de Apoio à Pequena e Média Empresa de Minas-Sebrae MG, na quinta-feira, dia 2. Com estes os representantes da ABI discutiram questões relacionadas ao tema A Evolução do
Relacionamento entre a Imprensa e as Empresas no Brasil. Legalidade: Exceção Por sugestão dos companheiros de Minas, o Presidente da ABI fez na sessão na Academia Mineira de Letras uma exposição sobre o tema A ABI e a Construção da Democracia Brasileira, obra que ele definiu como extremamente difícil, dada a tradição de autoritarismo no País. Nos nossos 122 anos de regime republicano, disse, o respeito à legalidade foi exceção no País, que conheceu pouco mais de um terço sob o império de instituições democráticas, diferentemente do que aconteceu sob a própria monarquia no Governo do Imperador Dom Pedro II, que, como assinalou um de seus biógrafos, o historiador e acadêmico José Murilo de Carvalho, tinha em alto apreço a liberdade de imprensa. Se não for através da imprensa, questionava Dom Pedro II, como vou saber o que os meus ministros estão fazendo de errado? Lembrou Maurício que esse autoritarismo se manifesta já nos primeiros anos da república, com as violências praticadas no Governo do Presidente Marechal Floriano Peixoto, como relatado numa das obrasprimas da literatura brasileira, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Em sua exposição, o Presidente da ABI acentuou que a grande contribuição da Casa à construção da democracia entre nós é a sua incansável pregação, desde o princípio do século 20, da importância da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão para a convivência democrática, como, aliás, assinalado recentemente em julgamento no Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Carlos Ayres Britto, que apontou a liberdade de imprensa como um dos pilares essenciais do Estado Democrático de Direito.
Numa palestra com um diplomata, quase um incidente diplomático. Na tarde do dia 24 de maio, na sede da ABI, no Centro do Rio, o Embaixador da Líbia no Brasil, Salem Omar Zubeidy, afirmou sem papas na língua que a CIA está por trás das rebeliões que ocorreram no país nos últimos meses. Disse ele que o primeiro levante, no dia 17 de fevereiro, teria sido planejado com a colaboração da agência de inteligência norte-americana. “Soubemos que ela levou dois meses para agitar essas pessoas, levando esses rebeldes às delegacias e aos quartéis para roubarem armas pesadas. Foi isso que aconteceu em Benghazi, na parte Leste, onde se encontra a maioria islâmica e grande parte dos opositores que moravam nos Estados Unidos e se tornaram agentes da CIA”, disse Salem Omar Zubeidy. O encontro foi uma iniciativa da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, por proposta do Conselheiro Mário Augusto Jakobskind, com a intenção de pluralizar no Brasil os debates sobre a atual situação na Líbia. Ao começar sua exposição, o Embaixador agradeceu a oportunidade de “poder conversar com um segmento do povo brasileiro, e, particularmente, os progressistas da imprensa”, numa referência à ABI. Salem Omar Zubeidy acusou também a CIA de financiar algumas páginas na internet que fazem campanha contra o Governo de Muammar Kadafi. Segundo ele, depois de uma investigação, o Governo da Líbia chegou à conclusão de que as mensagens estão vinculadas a pessoas de diferentes partes do mundo que recebem financiamento da CIA. “No nosso esforço de abertura nacional para a opinião pública, pensávamos que eram líbios que viviam no exterior e que desejavam, apenas, uma nova janela de expressão na Líbia. Mas descobrimos que eles trabalhavam para a CIA. Depois do movimento que levou Kadafi ao poder, em 1969, muitas dessas pessoas se transferiram para os Estados Unidos. Nesse grupo estão membros da Irmandade Islâmica que tentaram implantar um regime islâmico na Líbia, para impor ao país normas de acordo com os seus próprios padrões”, afirmou. Disse ainda o Embaixador que o Governo líbio espera contar com um acordo para a resolução do impasse político, que tem gerado conflitos no país, e que esse entendimento seja promovido pela União Africana, numa iniciativa da qual deverão fazer parte a União Européia, as Nações Unidas e a Rússia. “Não aceitamos apenas as imposições do Conselho de Segurança da Onu, que é dominado por cinco países sob a liderança dos Estados Unidos. Querem o Kadafi fora do país, mas o líder não sairá porque não fez nada de errado e ninguém tem autoridade para ditar-lhe a saída. Somente os líbios podem decidir sobre qual é o sistema que deve vigorar no país”, concluiu. Nem um bloguinho apareceu Aberta a todos os meios de comunicação e amplamente divulgada pela ABI, a coletiva não atraiu um repórter sequer – nem de jornais, nem de rádio, nem de televisão, nem do mais acanhado blog. Mesmo assim Zubeidy falou para bom público na Sala Belisário de Souza da ABI, onde foi ouvido por mais de três horas, com tradução simultânea, por representantes de movimentos sociais e de instituições da sociedade civil interessados em conhecer informações de fontes diversificadas acerca do que se passa no mundo.
COMEMORAÇÃO
A Última Hora de Samuel num seminário na ABI Os 60 anos da fundação do diário que revolucionou a imprensa, a partir de 12 de junho de 1951, serão assinalados na Casa por uma série de debates e pelo lançamento do livro Última Hora (Como Ela Era), fruto de pesquisa e paixão do jornalista Pinheiro Júnior.
PAULO REIS/FUNDO ÚLTIMA HORA/ARQUIVO PÚBLICO
POR CLÁUDIA S OUZA A ABI vai celebrar os 60 anos do jornal Última Hora no próximo dia 13 de julho, com o lançamento do livro Última Hora(Como Ela Era) (Editora Mauad X), do jornalista Pinheiro Júnior, e a realização do seminário Última Hora – 60 anos, que vai reunir jornalistas que pertenceram aos quadros do diário, entre os quais o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, Jorge Miranda Jordão, Alcyr Cavalcanti, Benício Medeiros, Pery Cotta, Conselheiros da Associação. Fundado em 12 de junho de 1951 por Samuel Wainer, no Rio de Janeiro, o jornal atravessou longo período de efervescência social e política e deixou de circular em 1971 por força da ditadura militar, incomodada com seu estilo popular, dinâmico e inovador, que introduziu mudanças na rotina da imprensa e ampliou a área de circulação com Redações em Niterói, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Recife. Os Presidentes da República Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart marcaram a trajetória do diário, comprometido com o viés social da notícia e o espírito democrático da Redação, que reuniu Octávio Malta, Edmar Morel, Moacir Werneck de Castro, Sérgio Porto, Antônio Maria, Rubem Braga, Di Cavalcânti, Vinicius de Morais, Jorge Amado, Adalgisa Nery, Alex Viany, entre outros jornalistas, intelectuais, escritores e artistas. “Desde suas primeiras edições o jornal estabeleceu forte ligação com as aspirações e os sentimentos da grande massa do povo e sobretudo da população mais pobre. Samuel, como os companheiros o chamavam, vendo-o como um igual, ainda que no papel de líder, criara um poderoso jornal popular; um jornal sempre novo, ágil e vibrante, como ele fazia assina-
lar nos editoriais de primeira página em que explicava as freqüentes reformas que produzia”, destaca Maurício Azêdo, autor do prefácio da obra. O livro também faz referência aos períodos dramáticos do jornal, como a CPI da Última Hora, em 1953, à prisão de Samuel Wainer, em 1955, e ao fechamento do jornal. Samuel Wainer introduziu mudanças gráficas com novos usos da fotografia, cores e ilustrações, criou a figura do fotógrafo mensalista, que recebia por mês, com registro em carteira pela CLT, e formou o arquivo fotográfico do jornal. Para ilustrar as matérias, a equipe do periódico produzia centenas de fotos e ilustrações, mas apenas algumas delas eram aproveitadas na edição final, o que gerava uma “sobra” de cerca de 400 imagens por número. O acervo permaneceu sob a guarda de Pinky Wainer, filha de Samuel, até 1989, quando foi adquirido pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. É composto por mais de 166 mil cópias fotográficas, 2.223 ilustrações, 600 mil negativos e volumes encadernados das edições do jornal, que foram depositadas na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de São Paulo. O tratamento de conservação preventiva e a digitalização das imagens foram realizados pelo Projeto Última Hora – Acervo Fotográfico, a partir de 2007, no Centro de Acervo Iconográfico e Cartográfico do Arquivo Público do Estado de São Paulo. O acervo das edições do jornal foi digitalizado em 2008. O material está disponibilizado para consulta no Arquivo do Estado de São Paulo(SP), e no endereço www.arquivo estado.sp.gov.br/uhdigital, com fotos da Bienal de Arte Moderna, em 1951; da prisão do jornalista Carlos Lacerda, em 1952; das Olimpíadas de Helsinki, em 1952; do suicídio do Presidente Getúlio Vargas, em 1954; da posse de João Goulart no Senado em 1956, entre outros acontecimentos. Criada pelo caricaturista Lan, a figura do Corvo, representando o jornalista e político Carlos Lacerda, e os gorilas fardados, metáfora dos militares, é um exemplo de caricatura que ganhou destaque histórico na guerra midiática entre Carlos Lacerda e Getúlio Vargas.
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COMEMORAÇÃO A ÚLTIMA HORA DE SAMUEL NUM SEMINÁRIO NA ABI
Depois da criação de UH, a imprensa diária do Brasil nunca mais foi a mesma Em entrevista exclusiva ao Jornal da ABI, o jornalista Pinheiro Júnior falou sobre a importância da Última Hora para a História da Imprensa e sua influência na evolução política e social do País. ALCYR CAVALCANTI
JORNAL DA ABI - O QUE O MOTIVOU A ESCREVER O LIVRO?
Pinheiro Júnior – É um projeto tão antigo quanto minha vida de jornalista depois que deixei UH, na década de 1970. Fui acumulando mais informações sobre o jornal, sobre Samuel Wainer e sobre os demais companheiros de Redação, com os quais continuei mantendo contato e conversação ao longo desses últimos 40 anos. Tomava notas, fazia esboços, aprofundava pesquisas, conferia datas, telefonava e até ensaiava rápidas entrevistas com personagens que julgava importantes para construir o livro. Um livro-verdade, mas também um romance na medida das possibilidades do jornalismo narrativo. É verdade que a linha de montagem de A Última Hora (Como Ela Era) está fixada nos 17 anos que dediquei ao jornal, de repórter a seu diretor-responsável já no final da circulação desse grande órgão nacional que tinha a edição carioca como viga-mestra.
final e com o Google já inventado e ao alcance dos dedos, fui à web confirmar datas e nomes necessários para que o livro não pairasse fora do ar. JORNAL DA ABI - QUANDO E COMO O SENHOR FOI TRABALHAR EM UH?
Pinheiro Júnior: “UH era um palco iluminado por celebridades do jornalismo, da política e da inteligência artística.”
Pinheiro Júnior – Fui trabalhar em UH em 1955, quando dei baixa no Exército, aos 20 anos, como soldado obrigatório, e passei no vestibular para Jornalismo na FNFi, curso que freqüentei até o terceiro ano sem me diplomar. Com recomendação do jornalista Wilson Reis, ex-repórter sindical de Diretrizes e depois chefe de Reportagem de UH já no apagar das luzes do jornal, apresentei-me ao então diretor de Redação Paulo Silveira, que me botou direto na reportagem. Minha experiência, até então, era só de jornais estudantis, aos quais me dedicava desde o curso ginasial. JORNAL DA ABI - QUAL FOI A SUA EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL EM UH E QUANTO TEMPO O
JORNAL DA ABI - QUAL É O OBJETIVO DA OBRA? Pinheiro Júnior – Tenho a pretensão de ajudar a perpetuar a História deste que foi o diário mais fascinante da imprensa nacional. Objetivei, assim, escrever um enredo a um só tempo autêntico quanto aos fatos abordados e emocionante na medida em que tentei mostrar o comportamento de uma equipe de jornalistas com tanta liberdade de atuar e se manifestar, que até improvisava partidas de futebol de salão dentro da Redação ao final das tarefas sempre árduas, como o chamado fechamento da edição. Nas páginas do jornal, quase sempre essa liberdade também se prolongava através de reportagens e artigos. Mostro essa faceta em A Última Hora (Como Ela Era). O próprio título do livro, inspirado ou colado da coluna de Nelson Rodrigues, A Vida Como Ela É, quer demonstrar essa pretensão, vamos dizer literária, teatral, pois a Redação de UH era um “palco iluminado” por celebridades nacionais do jornalismo e da política, da intelectualidade e da inteligência artística. JORNAL DA ABI - DURANTE QUANTO TEMPO O SENHOR ESCREVEU O LIVRO? Pinheiro Júnior – Acumulei conhecimento a vida inteira, de repórter a diretor do jornal, para escrever o que me propus que fosse uma narrativa compacta e atraente. Levei aí, vamos dizer, uns 14
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50 anos. Enquanto o tempo corria, é verdade, trabalhei nos Diários Associados, no O Globo, nas TVs Educativa, Rio e Globo, na Crítica, de Manaus, no Fluminense, de Niterói... E ia escrevendo outros livros, como Mefibosete, Bombom Ladrão, mas sempre voltava a alimentar o projeto de A Última Hora (Como Ela Era). E assim, meio século de batalha corpo-acorpo com a notícia se passou. JORNAL DA ABI - QUAL FOI O MÉTODO DE TRABALHO EMPREGADO NA PESQUISA?
Pinheiro Júnior – Eu tinha meus rascunhos, minhas anotações particulares, milhares de recortes guardados, cópias de matérias, publicadas ou não, e até algumas cartas de leitores quando mantive em UH Coisas da Vida e da Morte e Cidade Nua, duas colunas que me mantinham em contato quase direto com meus leitores-fonte. Mas também recorri ao meu antigo professor de História no Curso de Jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia – Hélio Silva, autor da História da República Brasileira, obra para mim sempre recorrente; apesar de considerada apenas factual baseada em documentos, para mim é ainda insuperável. Outra fonte foi Nelson Werneck Sodré, companheiro de Redação em UH, grande editorialista, autor da História da Imprensa no Brasil, esta real e absolutamente insuperável. Por fim, na etapa
SENHOR TRABALHOU NO JORNAL?
Pinheiro Júnior – Na UH de Samuel Wainer trabalhei 17 anos. Depois fui chamado por Ary de Carvalho para ajudar na reinstalação do jornal, que foi parar nas mãos dele por força, vamos dizer assim, do destino que naquele tempo tinha o sinistro nome de ditadura militar. Reingressei desta forma duas vezes numa UH truncada em sua história, que já não era a UH autêntica de Samuel Wainer. E por duas vezes deixei o jornal, reinstalado na Avenida Gomes Freire, na mesma Redação do também assassinado Correio da Manhã, e na Rua Equador, sua última morada – por discordar das injunções impostas pela ditadura que exigia do pobre e desprotegido Ary de Carvalho muito mais do que ele podia dar sem matar o jornal popular repentinamente, pois o jornal já agonizava lentamente com Ary e com os donos que o sucederam. JORNAL DA ABI - AO LONGO DESSES ANOS DE TRABALHO, QUAIS REPORTAGENS MARCARAM A HISTÓRIA DO JORNAL? O SENHOR PODERIA CITAR TAMBÉM AS DE SUA AUTORIA?
Pinheiro Júnior – UH foi um jornal genuinamente de grandes reportagens narrativas e de denúncia. Naquela Redação de repórteres autênticos militaram José Montenegro, o primeiro jornalista brasileiro a se internar num asilo de loucos para mostrar as barbaridades que ocorri-
am nos manicômios, nesta mesma época, todas elas condenadas pela mestra Nise da Silveira. Edmar Morel foi outro célebre repórter de campanhas, por exemplo, contra o leite poluído das chamadas “vacas leiteiras” de rua, ele que era o autor de tantos livros famosos de reportagem como A Revolta da Chibata. Amado Ribeiro, o maior repórter policial de todos os tempos, autor de denúncias que marcaram época, como a dos “Matamendigos”, que implicavam o Governador Carlos Lacerda. Octavio Ribeiro, que se não conseguiu desvendar o mistério do assassinato e desaparecimento do corpo de Dana de Teffé, esteve muito perto disso. Oscar Cardoso, que descobriu o paradeiro do assaltante mais caçado do Brasil, que foi Cara de Cavalo, mas depois não pôde livrá-lo do seu fuzilamento pelo Esquadrão da Morte. Enfim, a relação é quase infinita. Quanto às minhas reportagens, gostei de fazer, às vezes sofrendo, e de curtir a repercussão de Juventude transviada, O Desaparecimento do Tenente Fernando na Amazônia, São Paulo, Capital do Império da Cocaína, Venda (Ilegal) de Terras a Estrangeiros e Primeira Trincheira da Revolução (Leiase Golpe) em Juiz de Fora. Poderia citar dezenas de outras, mas essas foram as de maior repercussão na época e de importância mais sentida por mim. JORNAL DA ABI - A TRAJETÓRIA DO JORNAL ESTÁ VINCULADA A FIGURAS COMO SAMUEL WAINER, GETÚLIO VARGAS, JUSCELINO KUBITSCHEK, JÂNIO QUADROS, JOÃO GOULART. O SENHOR PODERIA DESCREVER A INFLUÊNCIA DELES NA CONSTRUÇÃO DA UH? Pinheiro Júnior – Samuel Wainer, é claro, foi o criador de Última Hora. E de tal forma se ligou a ela que ao perdê-la para próceres da ditadura militar o jornal definhou e morreu em mãos indevidas. Getúlio Vargas, diriam sempre inimigos e até amigos com conhecimento de causa, foi o pai de UH. Getúlio voltou ao poder em 1951, depois da derrubada do Estado Novo em 1945, catapultado por uma reportagem de Samuel Wainer, intitulada ou conhecida historicamente como Ele voltará! Para recompensar Sa-
FOTOS E DESENHOS: FUNDO ÚLTIMA HORA/ARQUIVO PÚBLICO
Os fotógrafos de Última Hora registraram grandes momentos da História recente do País, como o salto tríplice de Ademar Ferreira da Silva, que conquistou a medalha de ouro nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952. Na política, dois fatos marcantes: a morte de Getúlio Vargas e a posse de João Goulart no Senado. Abaixo, caricatura de Carlos Lacerda, chamado de “Corvo”.
sua vida já não corria pelo menos perigo de morte. Mas não pôde salvar o jornal de sua vida. A ditadura matou UH numa “espécie de genocídio jornalístico”, diria Flávio Brito, o último dos grandes mancheteiros de UH junto com João Ribeiro. JORNAL DA ABI - QUAIS FORAM AS PRINCIPAIS INOVAÇÕES INTRODUZIDAS PELA UH NA ROTINA JORNALÍSTICA DA ÉPOCA?
muel – que Getúlio chamava carinhosamente de “Profeta” – o Presidente ofereceu-lhe um jornal ou a embaixada em Israel. Samuel escolheu o jornal. E Getúlio facilitou-lhe os financiamentos, inclusive através do Banco do Brasil, como era praxe na época para todos os jornais se colocarem à disposição do poder federal, fato este documentado por Nelson Werneck Sodré na sua História da Imprensa. Juscelino Kubitschek foi apoiado por UH desde os primeiros passos em Minas Gerais para chegar à Presidência da República. Depois JK apoiou UH para ajudar a reerguer o jornal que sobrevivia penosamente após a campanha de Carlos Lacerda que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas. Depois veio Jânio Quadros, o “inimigo cordial” de UH, que, embora não apoiado quando se fez Presidente-relâmpago, nunca hostilizou o jornal, que, por sua vez, parecia deixar JQ fazer as loucuras dele sem mais condenações editoriais. Por fim João Goulart adotou o velho amigo SW, quase oficialmente, como “eminência parda”. Quando Jango caiu da Presidência e fugiu pelo Sul. SW também se asilou e só voltou ao comando de seu jornal no Brasil quando percebeu que
Pinheiro Júnior – UH foi uma revolução jornalística desde o primeiro número, em 12 de junho de 1951. Os jornais da época eram acanhados, feios, tímidos, por vezes bisonhos e contraditoriamente distantes do povo-leitor. Tinham tiragem limitada, quase ridícula. UH veio convulsionar tudo isso, com uma apresentação visual a cores e ousada, um texto vibrante e ágil, titulagem quase sempre agitada e por vezes nervosa. Muitas fotos! Fotos sensacionais privilegiadas na primeira página em dimensões nunca vistas em diários nacionais. Samuel trouxera Guevara e os irmãos Parpagnoli da Argentina e entregou a missão diagramadora-paginadora a eles e a uma equipe de desenhistas que incluía gênios como Darel, Nássara e Augusto Rodrigues. Sem falar em Di Cavalcânti, que era nada menos do que colunista, depois de decorar a Redação da Praça Onze com painéis maravilhosos. Os concorrentes ficaram em pânico. Tentaram se modernizar e acompanhar UH. Mas só conseguiram muito tempo depois, porque se preocuparam muito mais em massacrar o novel rival que teimaria, porém, em continuar inovando. Inclusive com aquela revista semanal até hoje insuperável, guardadas as conquistas tecnológicas, a revista Flan de fim de semana. JORNAL DA ABI - NELSON RODRIGUES TEVE ATUAÇÃO DESTACADA NA SEÇÃO A VIDA COMO ELA É”. QUAL FOI A IMPORTÂNCIA DO TEATRÓLOGO PARA O JORNAL?
Pinheiro Júnior – É o que eu conto com destaque em A Última Hora (Como Ela
Era): Nelson Rodrigues influenciou com sua teatrologia também revolucionária a própria maneira de fazer o jornal, onde trabalhou por muitos anos, tendo como plataforma de criação a superfamosa A Vida Como Ela É. Mas houve um curtocircuito, por assim dizer, entre as fantasias de Nelson Rodrigues e os cuidados jornalísticos de UH, neste caso dramático (!) representado pessoalmente por SW. Ao usar o nome de Amado Ribeiro, com o consentimento dele, é verdade, para materializar como teatro o funcionamento de um jornal inescrupuloso imaginário ou fictício, Nelson Rodrigues rompeu com Samuel. E foi embora de UH, instalando-se no O Globo, onde Roberto Marinho o esperava de braços abertos para modernizar e enriquecer a vetusta crônica esportiva.
JORNAL DA ABI - MOACIR WERNECK DE CASTRO TAMBÉM FOI UM DOS GRANDES NOMES DO JORNAL. QUAL FOI O PAPEL DELE NA HISTÓRIA DE UH? Pinheiro Júnior – Moacir Werneck de Castro foi o redator-chefe permanente de UH. Mesmo quando assumiu a direção responsável do jornal, no impedimento de Samuel em dois exílios forçados, Moacir continuou como redatorchefe. Era, portanto, o principal editorialista. Interpretava a opinião do jornal em todos e nos mais obscuros dos momentos políticos. Mas sua participação na Redação, ainda que vibrante e poderosa, se fazia discretamente não só porque não gostava de se envolver na administração da Redação como também porque, como intelectual de primeira linha, nunca deixou que o jornalismo
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COMEMORAÇÃO A ÚLTIMA HORA DE SAMUEL NUM SEMINÁRIO NA ABI
Manchetes fortes, com valorização das fotos e quadros, davam grande impacto às primeiras páginas de Última Hora. Acima, caricatura de Armando Falcão. 1° DE OUTUBRO DE 1950
18 DE JUNHO DE 1962
diário abatesse sua carreira de escritor e tradutor. É bom lembrar que MWC foi o tradutor de Georges Bernard Shaw no Brasil (Aventuras de Uma Negrinha Que Procurava Deus) e o biógrafo mais emocionante de Simón Bolivar (O General em Seu Labirinto). JORNAL DA ABI - RUBEM BRAGA, DI CAVALVINICIUS DE MORAIS, JORGE AMADO, ADALGISA NERY, SÉRGIO PORTO (STANISLAW PONTE PRETA), ALEX VIANY E ANTÔNIO MARIA. O SENHOR PODERIA COMENTAR A ATUAÇÃO DELES EM UH? Pinheiro Júnior – Rubem Braga, sua mulher Zora Seljan, Emiliano Di Cavalcânti e Jorge Amado foram nomes que abrilhantaram UH nos primeiros anos de circulação, entre 1951 e 1954, como colaboradores freqüentes ou até permanentes. Vinicius de Morais foi o cronista-poeta, sempre solicitado a comentar com destaque fatos populares de massa, como a Copa do Mundo. É dele a célebre crônica de primeira página Vai, brasilsinho! durante a Copa da Suécia. Adalgisa Nery foi talvez a mais poderosa colunista diária de UH, atacando sempre e desafiando inimigos comuns do progresso e da democracia. Sérgio Porto – quem ignora? –, foi o Lalau das certinhas e o criador do Febeapá - Festival de Besteiras que Assola o País –, que marcaram o maior dos sucessos de UH. Alex Viany sucedeu a Zora Seljan como crítico de cinema e vibrante redator de UH-Revista, que era o segundo caderno do jornal. E Antônio Maria... Bem Antônio Maria, com sua coluna policial de Copacabana, seu jornal personalizado e sua intimidade com a noite, a música e a boemia, acabou seduzindo ou sendo seduzido pela própria Danuza Leão Wainer, num tórrido romance que a Redação acompanhou de longe mas emocionadamente. Nesta plêiade de bravos, temos que citar ainda Luís Alípio de Barros, o LAB da gastronomia e do cinema, e Manoel Bernardes Muller, o Jacintho de Thormes, da crônica social que virou samba na voz e composição de Kid Morengueira, o Moreira da Silva. Outros bravos havia e estão retratados CÂNTI,
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Grandes desenhistas tiveram seus trabalhos publicados na UH: Carlos Estêvão (acima), Nássara (abaixo, caricatura de Di Cavalcanti) e Redi.
em A Última Hora (Como Ela Era). João Etcheverry, talvez o mais importante e influente dos diretores de Redação, com a lenda que arrastava de ter sido coronel da Legião Estrangeira, é citado sempre no calor das grandes crises enfrentadas por UH. JORNAL DA ABI - UM JORNAL SÉRIO, MAS QUE NÃO DISPENSAVA O HUMOR. COMO ERA O CLIMA NA REDAÇÃO? QUE JORNALISTAS COLABORAVAM
No livro conto as melhores dessas piadas. O próprio Samuel, com sua tolerância e simpatia, contribuía para fazer da Redação um lugar sem medo, embora de muito trabalho. Como me referi aqui, em duas oportunidades Samuel surpreendeu a Redação numa improvisada partida de futebol de salão... E que fez ele? Nada, ou melhor, só advertiu os jogadores para as impertinências da gerência que poderia não compreender a desordem no fim da noite.
PARA A HARMONIA INTERNA? O SENHOR PODE CONTAR ALGUNS CASOS?
Pinheiro Júnior – Como quase todos os jornais que se gabam de trabalhar descontraidamente, na medida das possibilidades concedidas pelo ato de noticiar, UH tinha seus palhaços. O editor de Polícia, Augusto Donadel Jorge, confessava mesmo que sua grande frustração era nunca ter chegado a um picadeiro de verdade. Assim, Donadel era o grande piadista da Redação.
JORNAL DA ABI - EM RELAÇÃO AOS MOMENTOS DE TENSÃO, QUAIS FORAM OS MAIS DRAMÁTICOS?
Pinheiro Júnior – UH era um jornal sitiado pelas perseguições. Foi perseguido e quase fechado durante os episódios que antecederam ao suicídio de Getúlio. Logo em seguida, Samuel seria preso. Enquanto estava preso, o Marechal Teixeira Lott deu o contragolpe e mobilizou tanques de guerra para garantir a posse
14 DE MARÇO DE 1964
de Juscelino Kubitschek. Esses momentos encadeados fizeram o jornal circular a duras penas e com a Redação na “ponta dos cascos” como se dizia para acentuar dramaticidade e tensão. Depois veio o golpe militar de 31 de março/1° de abril de 1964 com a Redação da Rua Sotero dos Reis, em São Cristóvão, depredada, incendiada e metralhada. Esse foi o auge da dramaticidade a que um jornal como UH poderia chegar. Mas logo veio o AI-5 de 13 de novembro de 1968, com a Redação assaltada de fato por dois coronéis e um major de pistola na cintura e que superintenderam com rudeza e ignorância as matérias que poderiam ser publicadas, interferindo na primeira página que eu fazia sob as vistas de Moacir Werneck de Castro. Eles apontavam o dedo e diziam “isso pode”, “tira isso”, “o jornal não pode sair em preto, se sempre teve cor”, “tem que ter azul aqui”. Mas nada entendiam de jornal. E talvez sequer entendessem de censura. Por fim, a 21 de abril de 1972, veio a notícia da alienação do jornal para grupos ligados à ditadura e que, mediante a compra-arrendamento do título Última Hora, pretenderam manter o jornal em circulação. Quando aconteceu a CPI da Última Hora, o episódio do assassinato do repórter Nestor Moreira, nas dependências de uma delegacia policial no Rio, em maio de 1954, deu início a uma seqüência de acontecimentos que culminou no suicídio do Presidente Getúlio Vargas.Eu ainda não trabalhava no jornal. Entrei na Última Hora em março de 1955, quando o diário atravessava grave crise em virtude da prisão de Samuel Wainer sob a acusação de não ser brasileiro. A Redação estava sendo despejada da Praça Onze, e os salários atrasados. Samuel Wainer sempre afirmava ser brasileiro nato. O boato de que ele teria nascido na Bessarábia, atual República da Moldávia, não foi comprovado.
IMAGENS: FUNDO ÚLTIMA HORA/ARQUIVO PÚBLICO
UH, uma doce lembrança POR MAURÍCIO A ZÊDO
14 DE DEZEMBRO DE 1968
JORNAL DA ABI - QUAL FOI A FASE MAIS IMPORTANTE DA UH? POR QUÊ?
Pinheiro Júnior – Acho que UH teve duas fases importantes: uma logo após a fundação, dando cobertura ao Governo de Getúlio Vargas e valorizando os profissionais do jornalismo que tiveram seus salários compatibilizados com a função em níveis considerados os mais altos da imprensa; e outra, durante os Governos de Juscelino, Jânio e Jango, quando o jornal se expandiu criando edições locais e sucursais em Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Niterói, Brasília e Recife. Foi uma rede que se notabilizou pela fidelidade popular a partir das matrizes, pois pareciam ser duas as matrizes, no Rio e em São Paulo. Com o golpe de 1964 e o AI5, os inimigos figadais do jornal conseguiram aos poucos sufocar o jornal, não apenas com os períodos de censura rígida, mas cortando-lhe impiedosamente também as fontes de publicidade e crédito. JORNAL DA ABI - QUAL O GRANDE LEGADO Última Hora? Pinheiro Júnior – A imprensa escrita, o que hoje chamamos de mídia impressa, nunca mais foi a mesma no Brasil depois de UH. Todos os jornais trataram de se modernizar, atualizar os planejamentos gráficos, que muitos sequer tinham diagramação. E mesmo os salários e o respeito profissional parecem ter melhorado por influência de UH, principalmente com a introdução de assinaturas de matérias com mais destaque, o que era uma característica também da revista Flan. Os textos também ganharam novos coloridos e cuidados, sem falar na titulagem das matérias e nas manchetes que forçaram uma vibração muitas vezes confundida com o sensacionalismo fácil. DO JORNAL
JORNAL DA ABI-QUAL A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA E POLÍTICA DO UH PARA O PAÍS?
Pinheiro Júnior – Historicamente, UH marcou o jornalismo de tal forma que, para sempre, os compêndios mesmo virtuais terão que citar o testemunho e a participação do jornal nos grandes eventos da República de 1951 até 1972. Politica-
21 DE JULHO DE 1969
O Presidente da ABI, Herbert Moses, foi tema de diversas caricaturas na UH. A editoria de Esportes também publicou desenhos de grande impacto na última página, como o do craque Djalma Santos (abaixo).
mente, UH foi sempre o jornal que apoiou abertamente, sem subterfúgios, os políticos ligados às causas sociais e aos direitos do povo, dando voz ao cidadão comum. A ponto de, numa época de xenofobia anticomunista, UH ser tachada de “a soldo de Moscou”, o que era uma mentira deslavada confundir UH com os órgãos oficiais do Partido Comunista do Brasil. UH só não era anticomunista, como se apresentava a maioria da imprensa elitizada e defensora de inconfessáveis interesses extranacionais. Defesa essa, sim, sempre a soldo de algum interesse potencialmente antinacional, como era o caso do petróleo e da criação da Petrobras, combatidos a serviço de potências hegemônicas. JORNAL DA ABI - COMO O SENHOR AVALIA A IMPRENSA ATUAL EM RELAÇÃO AO PERÍODO RETRATADO NO LIVRO? E EM RELAÇÃO AOS JORNALISTAS?
Pinheiro Júnior – Tecnicamente a hoje mídia impressa está muito e visivelmente melhor. A valorização profissional, embora ainda desejável, como é fácil de ver pelas campanhas sindicais, também pode ser considerada em patamares melhores salarialmente do que os que se padronizavam na época. Mas a dependência econômica e o cerceamento nas Redações, conseqüentes desta situação que tem a ver com a supremacia do dinheiro vivo sobre a liberdade e o bemestar das comunidades, se acentuam a cada dia. É uma realidade a ser considerada, é preciso que se diga, porque também os jornais se converteram em empresas capitalistas de rapinagem evidente, onde há o lucro acima de tudo e sem o qual – faturamento lucrativo venha de onde vier – não há sobrevivência.
O lançamento do diário Última Hora pelo jornalista Samuel Wainer em 12 de junho de 1951 foi um dos mais notáveis acontecimentos da imprensa no Brasil no século XX. Com quase meio século de diferença em relação à criação do Correio da Manhã por Paulo Bittencourt, em 1901, e cerca de três décadas depois da fundação de A Noite e O Globo por Irineu Marinho, e do Diário Carioca por José Eduardo de Macedo Soares, nos anos 1920, Samuel Wainer incorporava ao então numeroso conjunto de diários da antiga capital um veículo que marcaria de forma vigorosa sua presença no mercado de publicações da cidade, pelo caráter inovador de sua apresentação gráfica, pela agilidade nas reportagens e na cobertura dos fatos do dia-a-dia e pela identidade de seus editoriais, das opiniões de seus colunistas e pelo tom progressista de suas reportagens. Desde suas primeiras edições o jornal estabeleceu forte ligação com as aspirações e os sentimentos da grande massa do povo e sobretudo da população mais pobre. Samuel, como os companheiros o chamavam, vendo-o como um igual, ainda que no papel de líder, criara um poderoso jornal popular; um jornal sempre novo, ágil e vibrante, como ele fazia assinalar nos editoriais de primeira página em que explicava as freqüentes reformas que produzia. É a trajetória desse jornalista de exceção e desse veículo que conquistou um lugar preeminente na História do Jornalismo no Brasil que o jornalista Pinheiro Júnior apresenta neste trabalho, fruto de demorada e meticulosa pesquisa, de longa vivência profissional e pessoal e sobretudo de uma paixão e uma admiração que o autor não dissimula. Além de profissional extraordinário, Samuel Wainer era portador de insuperável carisma, que seduzia quantos tivessem a oportunidade de conhecê-lo e de privar de sua convivência, por mais fugaz que fosse. Um dos fascinados por sua figura, seu talento e sua capacidade de comando foi precisamente o jovem jornalista Pinheiro Júnior, que teve a felicidade de participar da equipe de Samuel ainda na faculdade de Jornalismo. Sua admiração por ele estendeu-se por décadas: Pinheiro formou-se repórter, chefe de Reportagem e diretor de Redação sob a orientação e com as lições de Samuel, que o transformaram também num jornalista de escol. Desde o início da carreira, Pinheiro Júnior mereceu atenção especial de Samuel, que tinha olho clínico para a descoberta de talentos e raramente errava em suas avaliações e escolhas. Samuel designou-o para fazer uma série de reportagens que alcançaram inédita repercussão na vida do Rio de Janeiro e do País: o relato, produzido de dentro, no convívio direto com os personagens que seriam retratados, sobre um segmento social composto basicamente por jovens que tinham comportamento fora dos padrões dominantes, que justificavam a denominação genérica de juventude transviada que lhe deu o jornal, termo que a partir de então passou a figurar em estudos sociais e trabalhos acadêmicos. É esta Última Hora, desaparecida após as incontáveis perseguições a que foi submetida durante a ditadura militar de 1964-1985, que ganha sobrevida neste trabalho de Pinheiro Júnior. Tal como a lembrança do itabirano do poema de Carlos Drummond de Andrade, esta UH é agora apenas uma doce e suave lembrança. Mas como dói! Este texto é o prefácio do livro de Pinheiro Júnior.
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MEMÓRIA ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ
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e ainda circulasse, o Correio da Manhã teria completado 110 anos no último dia 15 de junho. Perseguido pela ditadura, que indireta e inintencionalmente ajudou a pavimentar, calou-se para sempre em julho de 1974. Isto porque na polêmica sucessão do renunciante Presidente Jânio Quadros, o jornal bateu-se firmemente pela posse constitucional do Vice-Presidente João Goulart, contestado pelos militares. Contra ele, no entanto, voltou-se pouco depois. Por caminhos tortuosos, Jango conseguiu com suas propostas de reformas – necessárias, porém mal conduzidas - agitar e inquietar ao mesmo tempo o campo, o meio sindical, a classe média, o empresariado e as forças armadas. Do momento em que sentiu escapar-lhes das mão as rédeas do poder, o Correio da Manhã passou a pregar ostensivamente sua saída. Veio o golpe militar de 1964, e o Correio da Manhã, tão logo identificou sua real dimensão, opôs-se decididamente ao movimento. Instalada a ditadura, foi o primeiro a ser mais duramente atingido pelo novo regime. Tragicamente para o Correio da Manhã, a saída de Jango, pela qual tanto se empenhou, consumou-se por um golpe militar. Assim, passou à História com o estigma de ter apoiado o golpe. Teriam sido decisivos para a queda de Jango os dois editoriais que o jornal publicou no momento final da gestação do golpe – o “Basta” e o “Fora”, respectivamente nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964. Há um equívoco na avaliação do papel do Correio da Manhã na deposição de Jango. Em momento algum, o jornal fez a apologia do golpe militar. Para uma folha que sempre fez da liberdade um dogma, não haveria espaço para abrigar um movimento de ruptura violenta da Constituição e da democracia. De sua campanha pela saída de João Goulart e de seus editoriais, em especial o “Basta” e o “Fora” – nada induz a uma interpretação que o aponte como jornal golpista. Esta evidência ficou bem clara nos dois editoriais: “A Nação não admite nem golpe nem contragolpe. Quer consolidar o processo democrático para a concretização das reformas essenciais de sua estrutura econômica. Mas não admite que seja o próprio Executivo, por interesses inconfessáveis, quem desencadeie a luta contra o Congresso, censure o rádio, ameace a imprensa e, com ela, todos os meios de manifestações do pensamento, abrindo o caminho à ditadura”. “A Nação não mais suporta a permanência do sr. João Goulart à frente do Governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao sr. João Goulart senão
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GOLPE MILITAR, AI-5 E ARRENDAMENTO
A lenta agonia do
Correio da Manhã POR FUAD ATALA
a de entregar o Governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao sr. João Goulart: saia” No entanto, três dias depois, ainda no fragor do golpe, com as primeiras prisões de jornalistas e invasão de domicílios, o Correio da Manhã despertou da utopia da saída constitucional que alimentara. E, em novo recuo, no dia 3 de abril estampou na primeira página o editorial “Terrorismo, não!”, no qual denunciava a quebra da ordem constitucional: “A vitória da Nação, em virtude do afastamento do sr. João Goulart, não pode ser maculada com a onda de arbitrariedade e de violência que a Polícia da Guanabara vem cometendo de ontem para hoje em desrespeito ostensivo a todas as garantias constitucionais.” “Não estamos em estado de sítio e o sr. João Goulart entregou o poder, por
vontade ou não, sem opor nenhuma resistência militar.” Desse instante até 1969, quando foi arrendado, o Correio da Manhã manteve-se em firme oposição ao regime militar, denunciando todos os seus crimes, em consequência sofrendo pesadas punições que, pouco a pouco, exauriram sua resistência. A edição do AI-5 em 13 dezembro de 1968, que marcou o momento mais duro do regime militar, assinalou também o golpe de misericórdia no Correio da Manhã. Pela posição combativa que assumiu, consoante sua tradição liberaldemocrática, tornou-se o alvo mais visado pelos militares. Sob a pressão dos seus comandos, o jornal teve cortados o crédito bancário e o acesso ao redesconto, bem como à publicidade oficial, caso único até então. Interditado várias vezes
e mutilado, seguidamente, pela censura, chegou a ter dez censores espalhados entre a Redação, a revisão e as oficinas. Já desfigurado de suas características originais, assistia impotente à prisão de membros de sua diretoria e de seus jornalistas. Niomar Moniz Sodré Bittencourt, viúva de segundas núpcias e herdeira de Paulo Bittencourt, o proprietário, foi processada como subversiva, seguidamente convocada a depor em diferentes instâncias e dependências do aparelho repressor, e por fim presa mais de uma vez. Sem ter como sobreviver, em março de 1969 o jornal pediu concordata. Mas, ante as crescentes dificuldades financeiras, sem poder cumprir os compromissos, viu-se na contingência de buscar outra solução. O jornal entrou em negociação com o grupo empresarial dirigido por Maurí-
cio Nunes de Alencar e Frederico A. Gomes da Silva, cuja principal subsidiária era a Cia. Metropolitana de Construções S.A. Uma vez concluídas as tratativas, o jornal foi arrendado no dia 7 de setembro de 1969 ao grupo. O DiretorPresidente, Maurício Nunes de Alencar, era irmão de Mário Alencar, então Senador, e do advogado, duas vezes Prefeito do Rio de Janeiro, Marcello Alencar, também integrantes da diretoria. O grupo assinava com Niomar Moniz Sodré Bittencourt, pelo prazo de quatro anos e cinco meses, um contrato em que assumia o compromisso para editar o Correio da Manhã. Como fiadora, compareceu a empresa Perfex Companhia Transporte, Engenharia, Comércio e Indústria, representada no ato pelo seu Diretor-Presidente, Maurício Nunes de Alencar. Pelo grupo, firmaram o documento Armando de Souza Faria Castro e Paulo da Cunha Silva Júnior. Como testemunhas, compareceram o diplomata Oscar Lorenzo Fernandes e o advogado, professor e escritor Hélio Jaguaribe. Para editar o jornal, o grupo criou a ECOS – Editora Comunicações e Sistemas Gráficos Ltda. A concretização do esquema para evitar a insolvência iminente só foi possível após a decisão judicial sobre a sucessão no jornal, dirigido desde a morte de Paulo Bittencourt, em 1963, pela viúva, Niomar Moniz Sodré, numa tumultuada disputa que durou seis anos com a outra herdeira, Sybil Bittencourt, filha única de primeiras núpcias de Paulo Bittencourt. Resolvida a batalha judicial entre as duas herdeiras em 14 de agosto de 1969, foi celebrado um acordo entre as partes, em escritura pública passada no 3º Ofício de Notas. O acordo confirmava os termos do testamento. Todas as ações de propriedade de Paulo Bittencourt, representativas do capital social do Correio da Manhã e da Corman Publicidade, passaram a pertencer a Niomar, sua efetiva proprietária, que por sua vez adquiriu da coherdeira as ações preferenciais. “Por vultosa quantia”, conforme revelou numa das representações que fez à Justiça, envolvendo questões do arrendamento.
e fiscalizar “a boa execução das obrigações assumidas”. E ainda, a de que Niomar abstinha-se de exercer qualquer atividade jornalística, obrigação equivalente que os arrendatários também se comprometiam a cumprir. Assim, depois de definir outras regras sobre “a boa condução do jornal”, uma cláusula estipulava que, findo o prazo, os arrendatários obrigavam-se a devolver o matutino com todos os bens e direitos cedidos ou transferidos, bem como com todos os ônus honrados, independentemente de qualquer aviso ou interpelação judicial ou extrajudicial. Niomar, no entanto, ainda fez anexar ao contrato um documento estabelecendo suas exigências pessoais. A primeira, a de que poderia publicar no Correio da Manhã, logo após a autorização do Juízo da 18ª Vara Cível, onde estava em curso a concordata, um editorial de sua “livre redação e responsabilidade” esclarecendo as razões de sua saída da direção. Em seguida, vinham enumeradas ainda outras exigências. Do cabeçalho e do expediente do jornal, pelas mesmas razões que seriam indicadas no editorial de despedida, seriam retirados no mesmo dia da publicação o seu nome, o de Edmundo e o de Paulo Bittencourt. Na diretoria, enquanto lhe conviesse, permaneceria seu filho, Antonio Moniz Sodré Neto. Seria mantida a coluna de Artes Plásticas, “com o relevo e o destaque” habituais, a cargo de colunista de sua indicação, (à época, o crítico Jayme Mau-
Em momento algum, o jornal fez a apologia do golpe militar. Para uma folha que sempre fez da liberdade um dogma, não haveria espaço para abrigar um movimento de ruptura violenta da Constituição e da democracia.
rício), podendo substituí-lo por outro que fosse do seu interesse. Continuaria a ser objetivo básico do jornal a defesa do Museu de Arte Moderna, obra que Niomar considerava o coroamento de sua atividade de mecenas das artes, e pela qual terçou armas em todas as frentes, inclusive disputando com Dom Helder Câmara o terreno onde finalmente se ergueu o Mam, inicialmente destinado à realização do Congresso Eucarístico Internacional. O documento estabelecia ainda que o Correio da Manhã garantiria espaço para publicar sua defesa e a de seus interesses pessoais. E reavivando velha rixa política, figurava, por fim, uma cláusula proibindo durante o prazo contratual qualquer menção ao nome de Juracy Montenegro Magalhães, ex-Governador da Bahia e ex-Ministro do Exterior do governo Castelo Branco, “senão sob a forma de crítica ou ataques”, ficando ele ainda proibiFOLHAPRESS
Arrendamento, último ato para a derrocada final Minucioso em seus aspectos formais, o documento manifesta a preocupação da proprietária de preservar a identidade e o patrimônio do jornal, bem como a garantia dos direitos trabalhistas dos funcionários. Continha exigências que desciam a detalhes, alguns inusitados. Uma das cláusulas, por exemplo, outorgava a Niomar Moniz Sodré Bittencourt, durante sua vigência, o direito de examinar
O Correio da Manhã foi um dos poucos jornais que não tratou com preconceito os rebelados da Revolta da Chibata, incluíndo seu líder, João Cândido, que ganhou destaque na primeira página.
Niomar Moniz Sodré foi intimada a depor num Inquérito Policial Militar depois do AI-5.
do de freqüentar a sede do jornal ou qualquer uma de suas dependências. Era o famoso “Index” redivivo do velho Correio da Manhã, do qual chegaram a constar, entre outros nomes o do Presidente Artur Bernardes (por ordem de quem, o jornal ficou sem circular de 25 de outubro de 1923 a 15 de maio de 1924), e o do escritor Lima Barreto, autor de um livro polêmico, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, no qual faz uma sátira mordaz à figura e aos métodos de Edmundo Bittencourt. Para exercer o direito de editar o jornal utilizando-se tanto do seu parque gráfico, bem como dos empregados e colaboradores, o Grupo Nunes de Alencar assumia, em contrapartida, uma série de obrigações. Entre elas o pagamento do passivo do Correio da Manhã até o valor de Cr$ 5.400.000,00, além das prestações residuais da concordata, orçadas na ocasião em Cr$ 256.152,27, juntamente com os honorários dos advogados, no valor de Cr$ 86.721,27. A mesma obrigação também deveria ser observada no pagamento e manutenção de tributos e insumos em geral. Os empreiteiros obrigavam-se ainda a editar o jornal no mínimo seis vezes por semana, observados os dias e horários habituais, sem restringir sua área de venda e influência. Por breve período, dirigiu a Redação do Correio da Manhã o jornalista Jânio de Freitas, que fez uma ampla reforma gráfica no jornal, sob a orientação do artista gráfico e escultor Amílcar de Castro. Momentaneamente, a publicação ganhou sobrevida, mas com a saída de Jânio, experiências equivocadas que desfiguraram o veículo acabaram por levá-lo a uma progressiva decadência. “Retirada” – A despedida emocionada e promessa de volta de Niomar Efetivamente, no dia 11 de setembro de 1969, sem o seu nome, o de Edmundo e o de Paulo Bittencourt no cabeçalho, Niomar publicou um editorial em que faz longa digressão historiando os problemas que passou a enfrentar após o golpe de 1964 e as razões que a levaram
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MEMÓRIA A LENTA AGONIA DO CORREIO DA MANHÃ FOTOS: ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ
a tomar a decisão do arrendamento, na expectativa de que, passada a crise e saneado o jornal, voltaria à direção. Sob o título “Retirada”, com a esperança de breve retorno à direção, ela escreve: “A partir de hoje não mais estarei na direção do Correio da Manhã. O controle jornalístico e administrativo que exerci ao longo de seis anos tumultuosos, sucedendo a Paulo Bittencourt, transfiro agora a outras mãos”. Explica a seguir que quando assumiu a direção do jornal de Paulo Bittencourt, sua “única e obsessiva” preocupação foi manter-se “à altura dele próprio”, dando continuidade à sua obra e ao seu pensamento. “Sempre tive presente aquilo que Paulo Bittencourt escreveu nestas colunas em 17 de março de 1929, ao receber o jornal de seu pai: ‘Uma palavra basta para definir a carreira do Correio da Manhã até hoje: a coragem”. Niomar prossegue: “Com uma temeridade espantosa, o fundador desta folha, repetidas vezes, arriscou a própria vida provocando quase o perigo para melhor desprezá-lo depois”. “De minha parte, avança Niomar em seu longo arrazoado, sempre considerei o Correio da Manhã não como simples herança na divisão de um espólio, mas como patrimônio moral e instituição cultural, cujo dever de proteção transformou-se na razão mesma de minha vida”. O artigo faz uma reflexão sobre os destinos da instituição, e as alternativas que lhe restaram diante do cerco implacável da ditadura: fechar o jornal ou passá-lo, provisoriamente, a terceiros. “Fechar o jornal exprimiria, internacionalmente, a mais vigorosa denúncia contra a situação antinacional que nos foi imposta. Mas significaria também desespero e abdicação, implicando mesmo um voto de desconfiança na capacidade de luta de nosso povo pelo renascimento democrático do Brasil.” No entanto, explica, pesou em suas considerações o fato de que, assim agindo, não poderia mais reabrir o jornal, pois teria de liquidar o seu patrimônio material, com o agravante de que abandonaria à própria sorte o destino de quase 600 famílias que dependiam dos funcionários que ali trabalhavam. 20
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“Sempre considerei o Correio da Manhã não como simples herança na divisão de um espólio, mas como patrimônio moral e instituição cultural, cujo dever de proteção transformou-se na razão mesma de minha vida” A seguir, Niomar enumera os dramáticos fatos que pesaram em sua decisão de passar temporariamente o jornal a terceiros, para evitar o pior. Recorda que, já enfraquecido com o cerco econômico poucos dias antes do AI-5, em 7 de dezembro de 1968, a sucursal do Correio da Manhã na esquina da Avenida Rio Branco com Almirante Barroso (o imóvel, hoje, é ocupado por uma agência de O Globo), sofreu um atentado a bomba de alto poder explosivo que destruiu todas as instalações. Na noite do dia 13, no momento mesmo em que era divulgado o AI-5, a Redação foi invadida por policiais armados de metralhadoras e revólveres e prenderam o redator-chefe Osvaldo Peralva. No início de janeiro de 1969, logo após o levantamento da censura, ocorre a apreensão de uma edição inteira do Correio da Manhã, antes mesmo de ser impressa, com a cobertura completa dos fatos que não puderam ser publicados durante o período em que esteve suspenso pela censura. Nesse mesmo ato, seguiu-se a prisão de toda a sua diretoria, a suspensão da circulação do jornal por cinco dias e a interdição da sede, escritórios, agências e oficinas gráficas. Poucos dias depois, Niomar Moniz Sodré Bittencourt teve seus direitos políticos cassados por dez anos. O editorial fala do bloqueio sem disfarce às fontes de publicidade e das perseguições econômicas a que o jornal foi submetido, provocando “o retraimento de numerosos anunciantes da área priva-
da”, agravado pelo veto à inserção de anúncios de empresas públicas. “Foi por tudo isso que decidi afastar-me da direção do Correio da Manhã, confiando-o provisoriamente à guarda de terceiros. Permaneço como Diretora-Presidente da Sociedade Anônima, porém sem qualquer
função no jornal que a empresa edita. Entrego-o aos cuidados de Maurício Nunes de Alencar e Frederico Gomes da Silva, que saberão revigorá-lo, atendendo as suas necessidades mais prementes, pois que estão isentos do ódio e da vingança de que venho sendo o alvo sistemático”.
O inestimável acervo fotográfico do Correio da Manhã, que retratou como poucos as revoltas estudantis contra a ditadura, principalmente a partir de 1968 (como as publicadas nestas duas páginas), encontram-se conservadas no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.
Niomar se despede dos “amigos que não lhe faltaram em nenhum instante”, dos companheiros “que jamais abandonaram seus postos” e dos leitores que continuaram fiéis ao jornal, “mesmo minguado e castrado” e de alguns anunciantes, “poucos, que não se deixaram atemorizar”. Com a esperança de retornar um dia, conclui, acenando com um retorno que não ocorreu: “Acredito que em breve teremos novamente o nosso jornal, o jornal que Edmundo e Paulo Bittencourt legaram a este País como a instituição mais poderosa na defesa da liberdade e da verdadeira democracia”. Três dias depois, ou seja, a 14 de setembro, marcando a responsabilidade funcional e administrativa que assumiam a partir daquela data, aparecem no cabeçalho da primeira página do jornal os nomes de Maurício Nunes de Alencar, Diretor-Presidente, e Frederico A. Gomes da Silva, Diretor-Superintendente. Nessa edição, juntamente com Paulo Germano de Magalhães, os três assinam o editorial “Definição”, no qual destacam a “responsabilidade social dos empresários” e o compromisso que assumiam “nos destinos do jornal”, a partir dali. “Eles não têm somente responsabilidades legais e econômicas, limitadas ao âmbito restrito das empresas que gerem ou administram. Têm também responsabilidade para com a sociedade, devendo ter interesse no bem estar da comunidade, do mundo social que está à sua volta”. E arrematam, seguros de que “a consciência dessas responsabilidades” é que os faz virem a público “assumindo a direção de um veículo de comunicação como o Correio da Manhã, para manifestar diretamente os nossos propósitos e as nossas intenções”, ou seja, “dizer clara e diretamente o que e como achamos
que se deva agir em benefício do nosso País, do progresso e do bem-estar da coletividade brasileira.” A chegada dos empreiteiros ao comando do jornal marca uma clara ruptura com a linha oposicionista, sustentada até então no tripé liberdade democrática, legalidade e justiça. Ao exaltar inúmeras medidas e iniciativas do governo militar, o texto revela uma mudança de eixo. “Tem sido extraordinária a colaboração das classes trabalhadoras e média para o soerguimento da economia nacional. Os efeitos do combate à inflação sobre elas tem se refletido mais direta e intensamente”. A seguir, conclama “todos os brasileiros a participarem da batalha pelo desenvolvimento”, para concluir enfaticamente: “Qualquer outra posição seria
mais cômoda. Dispensaria os ônus e encargos que ora assumimos, mas nos parece seria a mais autêntica”. Terminado o arrendamento, mais endividado do que quando mudou de mãos, Niomar recusou-se a receber o jornal de volta. Estava inteiramente dilapidado, irreconhecível. Até hoje questiona-se por que, ao contrário de outros jornais, o Correio da Manhã não conseguiu sobreviver ao furacão da ditadura. Afinal, no governo de Artur Bernardes, que governou o País sob permanente estado de sítio e rigorosa censura aos jornais, o Correio da Manhã resistiu a quase um ano de interdição, culminada com a prisão de Edmundo e Paulo Bittencourt. Poderia recuar estrategicamente, para ganhar alento mais adiante? Ou silenci-
O Correio da Manhã defendeu a liberdade e a volta à democracia com desassombro.
ar diante das torturas, dos atentados, das perseguições? Por que O Estado de S. Paulo, que mantinha postura idêntica à do Correio da Manhã e sofreu das mesmas punições, conseguiu sobreviver? Haveria outra saída? Certamente, na tentativa de dobrar o espírito indomável do jornal, o estrangulamento econômico tenazmente aplicado pela ditadura foi o fator preponderante que levou o Correio da Manhã à derrocada final. Terá colaborado também a inexperiência administrativa empresarial por parte tanto de Niomar quanto dos colaboradores que a cercaram, todos, na verdade, da melhor qualidade profissional e intelectual, como dos arrendatários, que, decididamente, não eram do ramo. Considere-se ainda a assustadora soma de punições impostas à Niomar. Teve seus direitos políticos cassados por 10 anos, foi presa em circunstâncias penosas e processada como subversiva, cumprindo um desgastante ritual de comparecimento a Auditorias Militares, numa forma de perseguição jamais vista antes no País. Ela desabafaria mais tarde: “Enfrentei com altivez todas as pressões do poder totalitário com sacrifício da minha pessoa e do próprio patrimônio.” Reunindo as peças, evidencia-se que Niomar Moniz Sodré Bittencourt caminhou consciente para o sacrifício final. No discurso que pronunciou na homenagem que amigos lhe prestaram num banquete no Museu de Arte Moderna em 26 de novembro de 1986, num tom de renúncia e prestação de contas, ela disse: “Não medi sacrifícios para permanecer fiel a mim mesma e ao destino do jornal que marchou conscientemente para a possível extinção. Tinha que optar: ou submeter-me à ditadura militar-policial com seu cortejo de prisões, de torturas, de exílios, ou travar uma lutar mortal pela independência e dignidade do País. O Correio da Manhã foi destruído pela ditadura que desgraçou o Brasil. Mas não me arrependo do que fiz no cumprimento do destino que a história me reservou. Em minhas mãos ele não fraquejou nem se curvou diante da violência e da corrupção instaladas como norma no País inteiro”. Com seu gesto, Niomar ganhou dimensão política, como observou Elio Gaspari, porém à custa do sacrifício de uma instituição cujo dogma era a liberdade, que ficará para sempre inscrita nos anais da imprensa brasileira. O Correio da Manhã circulou pela última vez em 8 de julho de 1974. Como um indigente largado à beira da estrada. Finou-se sem face, sem alma. Era apenas cinza de memória cremada. Não sobreviveu para saborear a vitória que ajudou a construir nem pôde presenciar a retomada da democracia em 1985, quando a liberdade que defendera com tamanho desassombro foi restaurada. FUAD ATALA é jornalista e está escrevendo um livro sobre o Correio da Manhã do qual este texto faz parte.
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CENTENÁRIO o dia 14 de janeiro de 1999, jornais e revistas de todo o País noticiavam a morte de Nelson Werneck Sodré, ocorrida na véspera, em Itu, interior de São Paulo. Enquanto alguns destacaram seu papel, lembrando fatos marcantes da vida e da obra do historiador, professor e general reformado, outros foram bastante econômicos ao falar sobre sua trajetória, limitando-se a mencionar que foi autor de 58 livros, entre eles obras de referência como História Militar do Brasil e História da Imprensa no Brasil, que era um marxista ortodoxo e que teve atuação destacada na campanha pelo monopólio estatal do petróleo, ainda nos anos 1940. Um registro burocrático, quase asséptico, incapaz de fugir dos tantos rótulos dados ao pensador e que reduziram sua obra a uma produção “datada”, às vezes “ultrapassada”. Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Ninguém dividiu tanto opiniões na historiografia nacional quanto Werneck Sodré. Agora, em meio às comemorações pelos cem anos de seu nascimento, um novo movimento pretende rediscutir a importância de seu trabalho. Trabalho que o qualifica não somente como um dos mais destacados intérpretes do Brasil moderno, mas também como um construtor da nação. O desafio passa por compreender autor e obra em seu próprio tempo. O “general”, como era conhecido, foi a expressão mais bem formulada da esquerda brasileira nos anos 1950 e 1960, tempo em que suas obras se tornaram verdadeiros manuais, leitura obrigatória para a intelectualidade e, principalmente, entre estudantes de História e Ciências Sociais. Porém, ao superar a historiografia empirista e factual de seu tempo, o marxista Nelson Werneck Sodré conseguiu também ultrapassar seu método para se tornar um dos principais pensadores do desenvolvimento nacional. “Ele foi não somente um dos últimos grandes pensadores da literatura e da história militar do Brasil, fazendo um panorama completo de nossa realidade.
ARQUIVO PESSOAL OLGA SODRÉ
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Nelson Werneck Sodré
UM INTÉRPRETE DO BRASIL QUE TEMOS. UM VISIONÁRIO DA NAÇÃO QUE QUEREMOS Há cem anos nascia o autor de clássicos como História da Imprensa no Brasil e História Militar do Brasil e um dos grandes historiadores e pensadores do País. P OR M ARCOS STEFANO 22
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Foi um homem à frente de seu tempo. rias que escrevia e sendo remunerado por Seu estudo da imprensa nacional é picada artigo.Em pouco mais de duas décaoneiro e até hoje o mais completo, a das, o “general” publicou pelo menos ponto de ser considerado um precursor 1.023 crônicas e críticas, material preserdo movimento de comunicação no vado no acervo do historiador, que após País. Mesmo com a ênfase no século passua morte foi doado à Biblioteca Nacional. sado, sua obra continua atual e oportuO ingresso na literatura aconteceria na, levantando o debate sobre que tipo ainda em 1938, com a publicação de seu de desenvolvimento o País precisa, baprimeiro grande livro, História da Literaseado na cultura ou apenas tecnicista. tura Brasileira, no qual faz uma análise Lembrando que foi um dos primeiros de questões literárias a partir das relações críticos do neoliberalismo e uma das de propriedade e dos conflitos sociais. primeiras vozes a discutir a globalizaNos sete anos seguintes, Werneck Sodré ção”, explica a psicóloga Olga Regina lançaria ainda outros seis livros. A literaFrugoli Sodré, filha de Nelson e curatura não lhe rendeu apenas fama e uma dora de sua obra. promissora carreira. Trouxe novas amiWerneck Sodré fazia parte de outra zades e com elas a definição de posturas geração de historiadores que não costupolíticas. No começo dos anos 1940, ele mava ter formação acadêmica especijá era amigo de Graciliano Ramos e Joralizada porque inexistiam cursos univerge Amado, e membro do então Partido sitários do ramo no Brasil até à década de Comunista do Brasil-PCB. 1930. Ao unir a carreira militar à formaO sucesso literário coincidiu com ção como sociólogo e historiador marxisuma brilhante carreira no Exército. Deta, conseguiu respeito e tornou-se mito, pois de cursar a Escola de Comando e apesar dos críticos, que o viam como um Estado-Maior, tornou-se professor da Quixote. Nascido no Rio de Janeiro, em instituição e chefe do Curso de História 27 de abril de 1911, ingressou no ColéMilitar. Em 1950, a convite do futuro gio Militar, ainda em 1924, e na Escola Ministro da Guerra, General Newton Militar do Realengo, em 1930. Formado, Etillac Leal, Werneck Sodré ingressou na fez a “declaração de aspirante” e foi serdiretoria do Clube Militar e mostrou-se vir em Itu, no interior paulista. um dos mais entusiasmados defensores “Era um tempo em que os sociólogos da campanha O petróleo é nosso, que lue historiadores se formavam em Direito, tava pelo monopólio estatal da pesquisa Medicina e Engenharia. Estudavam em e lavra do óleo negro no Brasil. Como academias militares ou seminários catódiretor do Departamento Cultural do licos. Tinham forte cultura geral, com Clube, também publicava artigos na conhecimentos de línguas, literatura, revista da entidade, alguns claramente humanidades e ciências da natureza. identificados com as posições sustentaMas não eram acadêdas pelo PCB. Toda micos e tendiam à O “general”, como era essa militância políticondição de polígraca, no entanto, cobraconhecido, foi a fos, estudando diferia seu preço. expressão mais bem rentes campos do saComo represália às ber. Esses traços posuas posições, Werneformulada da esquerda dem ser encontrados ck Sodré foi desligado brasileira nos anos 1950 da Escola de Estadono perfil dos clássie 1960, tempo em que Maior e designado cos Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sérgio suas obras se tornaram para postos de menor Buarque de Holanda, expressão. Primeiro, verdadeiros manuais, Câmara Cascudo, como oficial de artileitura obrigatória para lharia numa guarniAfonso de Taunay e o próprio Werneck Soção em Cruz Alta, a intelectualidade. dré, que no começo interior do Rio Grande sua carreira, ainda como crítico literáde do Sul, unidade em que ficou duranrio, apoiou-se no positivismo e no natute cinco anos. Depois, lotado numa Cirralismo. Sua sempre presente preocupacunscrição de Recrutamento, no Rio. ção social foi se adensando aos poucos Apesar da posição, a volta à Capital Fecom o apelo à tradição marxista”, explica deral não foi de toda ruim. Em 1956, ele o professor Marcos Silva, da Faculdade de começou a colaborar com o vespertino Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Última Hora, escrevendo a seção literáUniversidade de São Paulo-FFLCH/Usp e ria e os editoriais do jornal. No mesmo organizador do Dicionário Crítico Nelson período, ainda passou a integrar a CoWerneck Sodré (Editora UFRJ). missão Diretora da Biblioteca do Exército, colaborar com periódico nacionaSatânia na imprensa lista O Semanário e atuar como profesParalela à militar, Werneck Sodré desor do Instituto Superior de Estudos Brasenvolvia outra carreira, esta na imprensileiros-Iseb. sa. A estréia aconteceu em 1929, com a No Instituto, duas tendências dispupublicação do conto Satânia na revista tavam os debates sobre o desenvolviO Cruzeiro. Cinco anos depois, tornoumento brasileiro desde o Governo de se colaborador regular do Correio PaulisJuscelino Kubitschek. De um lado, os tano, escrevendo para o jornal duas vepartidários da participação de capitais zes por semana. Como ele mesmo admiestrangeiros na economia brasileira para tiu, agora era um “homem de imprenacelerar o ritmo de sua expansão. Do sa”, assinando o rodapé das críticas literáoutro, aqueles que defendiam o caráter
FOTOS: ARQUIVO PESSOAL OLGA SODRÉ
Nelson Werneck em dois momento familiares: ele aparece de uniforme à esquerda, logo atrás de sua mãe, Amélia Werneck Sodré – ao centro de blusa branca. Logo atrás dela, à direita, está seu pai, Heitor de Abreu Sodré. Abaixo, numa pose ao lado de sua esposa, Yolanda.
autônomo do processo de industrialização do País. A presença do capital estrangeiro, para estes, só seria admitida sob o rígido controle do Estado. Era com a segunda que Nelson Werneck Sodré se identificava e para a qual desenvolveu estudos sobre a relação entre o colonialismo e o capitalismo, a formação e constituição das classes sociais no Brasil e a discussão de quem seria o povo brasileiro e que papel poderia desempenhar na luta antiimperialista. A participação no Iseb também foi marcada pelo retorno do historiador à publicação de livros. Antídoto do empirismo As disputas com as alas conservadoras no Exército contrastavam com a crescente popularidade de Werneck entre a esquerda, principalmente intelectuais e estudantes universitários. Para eles, seus livros eram obrigatórios e serviam como um antídoto a uma historiografia que, na época, era por demais empirista, factualista e personificada no Rio de Janeiro. Mas Werneck Sodré não se limitou a escrever e lecionar no Iseb. Crítico dos livros didáticos de História do Brasil usados no ensino secundário, ele iniciou
o projeto História Nova do Brasil. Com a ajuda de estagiários do Instituto, a idéia era elaborar uma literatura diferenciada para os docentes. Cinco obras foram publicadas, a metade do que fora elaborado. Graças ao golpe militar. Era apenas mais um capítulo de um conflito que se arrastava há tempos. Após a renúncia do Presidente Jânio Quadros, em 1961, Werneck Sodré apoiara com entusiasmo a posse do Vice-Presidente, João Goulart. Algo proibitivo para os ministros militares. Por isso, foi preso e interrogado durante dez dias. Destacado contra sua vontade para servir em Belém (PA), passou à reserva no começo de 1962. Fazendo jus à alcunha. Como fora promovido a coronel no ano anterior e possuía o curso de Estado-Maior, deixou a ativa como general-de-brigada. Agora, de fato, general, queria se dedicar a escrever e lecionar. E assim foi pelos dois anos seguintes. Porém, o advento do regime militar foi um verdadeiro golpe em suas pretensões. Em 1964, o Iseb foi fechado. Ele teve os direitos políticos cassados por dez anos. Refugiado em uma fazenda de parentes em Fernandópolis, Werneck Sodré acabou preJornal da ABI 367 Junho de 2011
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CENTENÁRIO NELSON WERNECK SODRÉ
ALEXANDRE MAGNO
Marcos Silva: Sodré é um precursor que viu o tempo recente como História.
cias, como Ofício de Escritor (1965) e Memórias de um Soldado (1967). A partir de 1978, quando publicou A Verdade sobre o Iseb, voltou-se para temas polêmicos da História do Brasil e assumiu uma postura cada vez mais crítica. Em relação à política nacional e em relação às novas tendências da historiografia, das quais denunciava “descaminhos ideológicos” e “concessões oportunistas”. “Há em tudo que escrevi uma direção e um sentido”, costumava dizer, reafirmando a vocação didática e política de sua escrita e respondendo a seus críticos de direita, do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, e de esquerda, da Universidade de São Paulo. “Infelizmente, como ele também bem o percebia, a vitória da contra-revolução de 1964 teve uma conseqüência quase fatal para sua historiografia: a “demonstração” de alguns dos erros mais evidentes do nacional-desenvolvimentismo, do populismo e do marxismo isebianos, e a eleição de bodes expiatórios, no caso, o Iseb, a História Nova e os livros de Nelson Werneck Sodré. Contra a “fábrica de ideologias” e o marxismo mecanicista e economicista era necessário desenvolver um outro marxismo – menos “ideológico”, mais “científico”, academicamente “bem comportado”, analisou em 1999, em artigo publicado na revista Ciência Hoje, o professor Francisco José Calazans Falcon, da Universidade Salgado de Oliveira.
so no dia 26 de maio. Em seguida, enviado ao Rio de Janeiro, permaneceu detido durante 57 dias. Ao ser solto, a única certeza é de que a vida não seria mais a mesma. Não teria mais o direito de ensinar, muito menos as páginas da imprensa para divulgar seu pensamento. Mesmo diante da violência dos coturnos, negou-se a deixar o País e se exilar. Permaneceu por aqui. A partir de então teria outro tipo de páginas em branco para escrever: as dos livros. Ainda que muitos deles tenham sido apreendidos das livrarias. Também não deixou de ser uma poderosa influência: “Não o conhecia pessoalmente. Mas Ano Nelson Werneck Sodré lia seus livros com prazer e proveito, Na luta pela justa reabilitação de um especialmente depois de sua prisão numa dos mais expressivos pensadores brasileidas fortalezas da Guanabara, logo após a ros, Olga Sodré conta com uma ajuda exquartelada. Era também um general, mas pressiva: uma rede de mais de 80 acadêdesagradava com seus pensamentos os micos, do mestrado ao pós-doutorado de homens que haviam tomado o poder. várias universidades brasileiras. E a peSodré se tornou citação obrigatória de quena Itu, cidade das grandes coisas, no todos os pesquisadointerior de São Paulo, res que estudam o tornou-se uma espéAo ser solto, a única processo brasileiro de centro desse certeza é de que a vida cie como um todo, e não movimento. Afinal, em seus departamen- não seria mais a mesma. o “berço da Repúblitos estanques. Um Não teria mais o direito ca”, onde passou seus dias e hoje dos líderes mais resde ensinar, muito menos últimos está sepultado, tem peitados da nossa inas páginas da imprensa grande importância telectualidade, nunsimbólica. Foi lá, no ca se deixou fascinar para divulgar seu quartel do Regimenpela badalação inpensamento. Mesmo to de Artilharia, o faconseqüente de certa diante da violência dos moso Regimento Deépoca, nem pelo radiodoro, que galgou calismo carreirista coturnos, negou-se a primeiros postos que marcou a carreideixar o País e se exilar. seus militares. Lá também ra de tantos. Nunca conheceu uma moça chamada Yolanda deixou de ser um ponto de referência do Frugoli, com quem viria a se casar. pensamento brasileiro. Teórico do nacioNo início do ano, o prefeito da cidade, nalismo, jamais se tornou xenófobo”, esHerculano Júnior, declarou 2011 como creveu recentemente o jornalista Caro “Ano do Centenário de Nelson Wernelos Heitor Cony, em sua coluna no jorck Sodré”. Desde então, debates e evennal Folha de S. Paulo. tos como o Jornalista 2.0 já foram realiA partir de 1965, o general lançou zados. Mas o objetivo é tornar isso nacidiversas obras de referência, como Históonal, fomentando outras iniciativas em ria Militar do Brasil, História da Imprensa vários lugares do Brasil. Para tanto, duas no Brasil, Fundamentos Teóricos do Marinstituições trabalham ativamente: o xismo e Brasil – Radiografia de um ModeIseb Nelson Werneck Sodré, entidade lo, este último escrito e lançado em Bucriada por Olga em 2008, e o Centro de enos Aires, na Argentina, em 1973. TamEstudos Nelson Werneck Sodré, levantabém obras pessoais, com suas experiên24
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Olga Sodré: Meu pai foi um ícone da soberania e do desenvolvimento independente do Brasil.
POR I VAN A LVES FILHO do agora como um departamento do Instituto Cultural de Itu. Já há encontros e atividades organizados em parceria com universidades, a Academia Brasileira de Letras, a Associação Nacional de História, a Biblioteca Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil e a ABI. Entre 2 e 6 de setembro, no Congresso Brasileiro de Comunicação, o Intercom, que será realizado no Recife (PE), haverá uma homenagem e o relançamento de História da Imprensa no Brasil, em edição atualizada. “Essa é uma das grandes notícias do centenário, já que o livro é um clássico não superado na historiografia da área. Uma análise que não é só minha. Existe desde os anos 1970, quando foi apontado assim pelo jornal Movimento. Nele, Werneck Sodré associa a história de nossa imprensa à história do capitalismo brasileiro. Todavia, não esquece do nascimento conjunto da imprensa empresarial e de imprensas operárias e de outros tipos de organizações. Não um objeto inerte de estudo, mas agente social importante, em que se destacaram diferentes intelectuais, de escritores a políticos, que a defendem ou confrontam. Mais uma vez, Sodré se mostrou um precursor que, muito antes de outros, viu o tempo recente como História”, analisa o professor Marcos Silva. As comemorações do centenário do decano dos historiadores marxistas estão sendo organizadas como oportunidade para compreender o significado de sua vida e obra. Para Olga Sodré, seu pai foi um ícone da soberania e do desenvolvimento independente do Brasil. A exemplo do ambientalista Chico Mendes, que lutou pela Amazônia. Exagero? Segundo ela, não. Tanto que lembra de uma história vivida por ela mesma, enquanto fazia pós-doutorado no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-Uerj, em 2007. “Meu orientador, o psicanalista Jurandir Freire, observou a importância que eu dava ao trabalho de meu pai no desenvolvimento psicológico de jovens. Curioso, indagou quem era meu pai. Quando soube que era o general, disse: “Mas não é apenas seu pai. É o pai da nação”.
historiador Nelson Werneck Sodré e meu pai, jornalista Ivan Alves, foram grandes amigos. Mais do que isso, até: foram companheiros de lutas partidárias, uma vez que ambos pertenceram aos quadros do Partido Comunista Brasileiro. Vivenciaram juntos os embates pela nacionalização do petróleo e ajudaram a organizar a resistência democrática ao golpe de 1964. Apesar da grande amizade existente entre eles, eu mesmo só travei conhecimento pessoal com Nelson Werneck em Paris, em meados da década de 1970. Soube por sua filha, Olga, da estada dele na cidade e fui ao seu encontro. Fui muito bem recebido e logo começamos a conversar. Aproveitei para agradecer a ele a remessa de algumas obras sobre o Quilombo dos Palmares (sobretudo um livro editado pela Biblioteca do Exército, O Reino Negro de Palmares). Eu estava pesquisando o célebre quilombo alagoano na França e em Portugal e o Nelson, generosamente, resolvera me apoiar nisso.Seu ato comoveu o historiador-aprendiz que eu era. Nelson Werneck Sodré entendera perfeitamente as dificuldades com que eu me deparava para encontrar certos livros no exterior – e sabia, por meu pai, que eu havia sido preso no Brasil e não poderia retornar tão cedo ao Brasil. Muito tempo depois desse episódio, mais precisamente em 1988, quando lancei o livro Memorial dos Palmares, desloquei-me até sua casa para lhe presentear com um exemplar da obra. Não poderia mesmo deixar de fazê-lo. Democrata exemplar, Nelson sabia conviver com o contraditório e as diferenças, reconhecendo a pluralidade presente nas sociedades humanas. Eu me lembro de que me aconselhou a ler, por exemplo,O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, de Afonso Arinos de Melo Franco. E mais de uma vez confessou para mim sua admiração pela obra monumental de Hélio Silva, um historiador de orientação católica. Nelson per-
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Nelson Werneck, o general vermelho Lembranças do historiador cuja disciplina intelectual adveio de sua colaboração de mais de 60 anos em artigos para a imprensa.
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tenceu à primeira geração que se debruçou conceitualmente sobre os rumos da nossa História, após o extraordinário trabalho de garimpagem realizado por pesquisadores como Varnhagen e Taunay nos arquivos brasileiros e estrangeiros, algumas décadas antes. Ou seja, ele foi um dos promotores da primeira grande síntese da História brasileira, entre os anos 1930 e 1960, juntamente com Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. E isso não é pouco. Humanista, professor de lógica, militar nacionalista, Nelson Werneck Sodré encarava o marxismo como um humanismo também, advindo daí sua identificação com a contribuição de teóricos como György Lukács e Antonio Gramsci. A base da sua disciplina intelectual se deu por intermédio da imprensa, já que Nelson Werneck colaborou com alguns dos maiores jornais brasileiros durante seis décadas, ininterruptamente. Posso escrever isso no Jornal da ABI – dirigido pelo meu querido amigo Maurício Azêdo – sem medo de errar: o historiador Nelson Werneck Sodré não existiria sem a disciplina que adquiriu em leituras voltadas para a elaboração de textos críticos posteriormente publicados na nossa imprensa. Ele mesmo reconhecia isso em algumas conversas que manteve comigo. Aprendi muito com Nelson Werneck Sodré, ao longo de mais de 20 anos de convivência com ele. Para minha honra e alegria, chegamos a lançar uma obra juntos, Tudo é Política, em mais uma prova da imensa generosidade dele. Com Nelson, eu sempre me senti inteiramente livre para emitir opiniões acerca doprocesso histórico brasileiro. Eu me recordo que debatia com ele questões um tanto quanto complicadas, que tinham a ver com a natureza do modo de produção em vigor no Brasil Colônia, e ele me escutava com infinita paciência. E, por vezes, até concordava comigo... O trecho reproduzido a seguir traduz bem meu sentimen-
to em relação a esse posicionamento de Nelson Werneck Sodré: “Eu me lembro de que tive algumas conversas com o Nelson sobre esse problema do uso dos conceitos e das categorias históricas. Elas muito me fortaleceram a prosseguir em minhas próprias inquietações. Explico. No cerne do problema, estava a noção marxista de modo de produção e a sua aplicação à realidade brasileira, mais exatamente ao período colonial. Havia o conceito criado por Karl Marx, mas havia, igualmente, a vida concreta. Era preciso estabelecer um vaivém entre o conceito e o real. Eu concordava com ele quando definia o período colonial à luz das estruturas escravistas. Como ele, também, eu pensava que não havia modo de produção historicamente novo. ‘Onde estão as suas leis próprias?’, interrogava-se Nelson. Ou seja, não bastava adjetivar o suposto modo de produção, acrescentar a ele o qualificativo colonial para que se tornasse um modo de produção historicamente novo. Essas conversas nós as mantínhamos aí por volta de 1986, 1987. Eu disse em determinada ocasião ao Nelson que, a meu juízo, o conceito de modo de produção colonial revelava uma contradição embutida nos seus próprios termos. Pois modo de produção, no sentido concreto da expressão, implicava, forçosamente – esta era minha alegação –, que uma determinada realidade estivesse em condições de se auto-reproduzir, de forjar as suas próprias bases materiais, adequando-as a relações de produção também determinadas, que lhes correspondessem. Ocorre que o próprio estatuto de colônia era a sua dependência diante do exterior, da Metrópole. Uma colônia vive para satisfazer demandas externas – e o Brasil não seria muito diferente disso. Vale dizer, não existe modo de produção dependente – ao contrário, a independência é uma condição do próprio modo de produção. Assim, o que era específico do escravismo brasileiro – o seu traço colonial, forjado
pela submissão formal da nova área sulamericana ao capital em expansão na Europa –, ao invés de apontar para a formação de um modo de produção historicamente novo, invalidava, muito pelo contrário, a própria aplicação do conceito aos primórdios da nossa História. Defendi mais tarde no Memorial dos Palmares – e o Nelson não estava longe de concordar comigo – que no Brasil colonial vigorava uma forma social escravista de produção (afinal, o caráter da existência social da força de trabalho repousava na atividade compulsória). E que essa forma empalmava relações de produção erguidas sobre uma base material que dependia de uma outra realidade para se reproduzir (força de trabalho africana trazida pelo tráfico de escravos; existência de capitais, mercados e técnicas de trabalho inteiramente dependentes da Europa etc. ‘Sem Angola não há Brasil’, já vaticinava Padre Antônio Vieira. Posto nesses termos, o conceito de modo de produção não nos servia.” Escrevi isso há dez anos,creio eu. E ao reler essa passagem, não posso deixar de me emocionar. Com ele e outros velhos lutadores do Partido, aprendi a importância de pesquisar a realidade brasileira, para efetivamente transformá-la. Mais: aprendi que o sonho de um Brasil melhor para todos foi o grande motor de sua obra. Meu último contato pessoal com Nelson Werneck Sodré ocorreu por ocasião do lançamento de Tudo é Política, no Paço Imperial, em 1998. Palco memorável das lutas pela Independência brasileira, impossível haver local mais adequado para se propagar a sua obra. No dia seguinte, eu embarcava para a França e ele ainda me pediu para que transmitisse seu abraço ao grande historiador marxista Pierre Vilar. Apenas três meses depois, Nelson faleceria, em Itu, no interior de São Paulo. Muito obrigado por tudo, Nelson. Sinto sua falta ainda hoje. E sei que interpreto o sentimento de centenas de amigos e admiradores de sua obra – absolutamente inseparável de sua extraordinária trajetória. Jornalista e historiador, sócio da Casa, Ivan Alves Filho é membro da Comissão de Ética dos Meios de Comunicação da ABI.
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Liberdade de imprensa BETO OLIVEIRA/AGÊNCIA CAMARA
A mídia como um bem popular Sob a liderança da Deputada Federal Luiza Erundina (PSB-SP), é lançada a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular com o objetivo de questionar a histórica concentração do controle dos veículos de comunicação no Brasil. POR P AULO C HICO Históricos são os entraves para a democratização da produção e do acesso à mídia no Brasil. Não foram poucos os debates, e mesmo as iniciativas já ensaiadas nesta direção. De concreto, contudo, poucos foram os avanços. No dia 19 de abril, a Câmara dos Deputados lançou a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular. Trata-se de uma iniciativa de parlamentares e membros da sociedade civil para acompanhar e defender ações que ampliem o direito à liberdade de expressão e comunicação. Inicialmente, a Frente conta com a adesão de 181 parlamentares de 18 bancadas e cerca de 100 entidades da sociedade civil. Para a Deputada Federal Luiza Erundina (PSB-SP), que coordena o grupo, o apoio mostra que o Brasil está, enfim, preparado para debater o assunto. Será mesmo? “É importante ter a sociedade civil engajada nessa luta. Vamos discutir e acompanhar a implementação de uma política de comunicação neste País”, diz Erundina, que espera ainda este ano definir pontos como a proposta que fixa o marco regulatório das comunicações e a aplicação dos recursos no Plano Nacional de Banda Larga. “Neste sentido, é importante nos mobilizarmos para conseguir a democratização”, explica. Além de Luiza Erundina, fazem parte da Frente parlamentares como Emiliano José (PT-BA), Jean Wyllys (PSOLRJ), Luciana Santos (PCdoB/PE), Paulo Pimenta (PT/RS), Paulo Teixeira (PT-SP) e Chico Alencar (Psol-RJ). Organizações sociais como o Instituto Bem-Estar Brasil, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB e o Movimento Negro também integram o grupo. O objetivo é mostrar que o controle da mídia já existe no Brasil, mas não se dá no desejado campo social. Exatamente pela deturpação do sistema, ele é privado, exercido pelos donos das emissoras, como se fossem donos de uma propriedade particular absoluta – numa espécie de ditadura exercida sobre bens públicos, isto é, as freqüências de rádio e tv. Nesta entrevista ao Jornal da ABI, a Deputada Erundina fala dos principais obstáculos enfrentados na luta pela democratização do acesso aos meios de co28
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municação. O primeiro diz respeito justamente às ações de órgãos federais e empresas privadas que, para o grupo, buscam cercear a liberdade de expressão. “Nós não podemos continuar com essa prática em que um grupo restrito de famílias monopoliza a informação e a restringe. E só vamos conseguir isso se tivermos um olhar amplo sobre o problema junto à população”, defende. Sua entrevista, a seguir. JORNAL DA ABI - Q UAL O OBJETIVO DA FRENTE PARLAMENTAR PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O DIREITO À COMUNICAÇÃO? COMO COORDENADORA, QUAL ACREDITA QUE SERÁ O SEU MAIOR DESAFIO? Luiza Erundina – A Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular é uma iniciativa de parlamentares da Câmara dos Deputados, em parceria com entidades da sociedade civil, e visa a promover, acompanhar e apoiar ações que contribuam para o exercício da liberdade de expressão e o direito humano à comunicação. Ela é coordenada por um coletivo formado por deputados de todas as bancadas partidárias da Câmara e por representantes de entidades da sociedade, e tem caráter paritário. O maior desafio é ser reconhecida e firmar-se como mecanismo de interlocução e articulação entre os três segmentos diretamente interessados na definição de um novo marco regulatório e da política de comunicação do País: o Governo, o Congresso e a sociedade civil organizada, o que compreende as entidades sociais e o setor empresarial.
Erundina: O controle de políticos nos veículos compromete a qualidade e a ética da comunicação.
te sobre o tema, tendo como referência as propostas aprovadas na I Conferência de Comunicação. No mês de maio, a Coordenação promoveu reunião de planejamento das atividades da Frente e fezse representar nos eventos que se realizaram nos Estados – entre outros, encontros de blogueiros e o Seminário Marco regulatório – Propostas para uma Comunicação Democrática, promovido pelo Foro Nacional pela Democratização da Comunicação-FNDC, nos dias 20 e 21 de maio, no Rio de Janeiro. JORNAL DA ABI – A SENHORA ACREDITA QUE HAVERÁ RESSONÂNCIA PARA A FRENTE NA CÂMA-
JORNAL DA ABI - QUAIS AS PRINCIPAIS PRO-
RA, UMA VEZ QUE MUITOS POLÍTICOS SÃO DONOS
POSTAS E AÇÕES E A AGENDA DA FRENTE NESTES
OU ESTÃO LIGADOS A GRANDES CONGLOMERADOS
DOIS PRIMEIROS MESES?
DE COMUNICAÇÃO ESPALHADOS PELO PAÍS? OS
Luiza Erundina – O ato de lançamento da Frente Parlamentar ocorreu na Câmara dos Deputados, no dia 19 de abril de 2011, quando foram aprovados o Manifesto e o Estatuto e feita a eleição da coordenação colegiada da Frente. A primeira atividade da Frente, após o ato de lançamento, foi a realização de uma audiência pública com o Ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, no dia 25 de abril, na Câmara dos Deputados, para discutir o processo de elaboração do novo marco regulatório das comunicações. Ocorreu então intenso e produtivo deba-
DEPUTADOS ABRIRÃO ESPAÇO PARA UM DEBATE
lamentar, ajudará na criação de condições políticas para se promoverem as mudanças necessárias. JORNAL DA ABI - ACREDITA QUE ESSE PONTO – EXATAMENTE O CONTROLE DA MÍDIA POR POLÍTICOS E SEU CONSEQÜENTE USO ELEITORAL – É UM DOS ASPECTOS MAIS CRÍTICOS, QUE COLOCAM EM RISCO A QUALIDADE E A ÉTICA DA COMUNICAÇÃO NO PAÍS?
Luiza Erundina – A concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos e a influência e o controle de políticos nesse setor certamente comprometem a qualidade e a ética da comunicação. Isso é agravado pela ausência de mecanismos de participação da sociedade e de controle público. Qualquer proposta neste sentido é logo criticada e tida como ameaça à liberdade de expressão.
SOBRE A DEMOCRATIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO, ESTANDO BOA PARTE DELES CONCENTRADOS EM SUAS PRÓPRIAS MÃOS?
Luiza Erundina – Os deputados terão de se envolver no debate, a partir do momento em que o Governo encaminhar para a Câmara a proposta de novo marco regulatório. Enquanto isso, audiências públicas ocorrem nas Comissões para discutir temas relacionados à matéria. Certamente haverá resistência, mas a participação de representantes da sociedade nos debates, através da Frente Par-
JORNAL DA ABI - E A PRÓPRIA MÍDIA, ISTO É, JORNAIS, TELEVISÕES E RÁDIOS? ESSES CANAIS TÊM DIVULGADO A CRIAÇÃO DA FRENTE PARLAMENTAR E DEBATIDO SUAS PROPOSTAS? OU MANTÊM-SE À MARGEM DO PROCESSO?
Luiza Erundina – A mídia se mantém alheia à criação e atuação da Frente Parlamentar, inclusive as entidades empresariais do setor foram convidadas a integrar a Frente, mas declinaram do convite. Por outro lado, a mídia alternativa acompanha com grande interesse, sobretudo as
redes sociais que participam dos debates e divulgam as atividades da Frente.
JORNAL DA ABI - A INTERNET É, CADA VEZ MAIS, FERRAMENTA FUNDAMENTAL PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À INFORMAÇÃO E AO CONHECIMENTO. POR QUE OS SERVIÇOS DE BANDA LARGA SÃO TÃO CAROS NO BRASIL? O GOVERNO NÃO PODERIA – E DEVERIA – INTERVIR NESTE MERCADO?
Luiza Erundina – Para que a população de menor nível de renda tenha acesso aos serviços de banda larga de qualidade e de baixo preço é preciso, sim, que o Governo intervenha nesse mercado, participando diretamente da instalação de redes e da prestação desse serviço a preços subsidiados, de modo a universalizar o acesso à informação e ao conhecimento da população das regiões mais distantes e menos desenvolvidas. Atualmente, o serviço de banda larga está concentrado na região Sudeste do País, a preço elevado. É preciso, pois, aumentar a competitividade das operadoras, para forçar a redução do preço e melhorar a qualidade em termos de velocidade. Para tanto, esperase a implantação do Plano Nacional de Banda Larga, que enfrenta resistência das operadoras desse serviço no País.
Jornalista morto com 6 tiros no Rio Grande do Norte A organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras-RSF divulgou comunicado em repúdio ao assassinato do jornalista e blogueiro Ednaldo Figueira (foto), 36 anos, no dia 15 de junho, em Serra do Mel, no Rio Grande do Norte. Ednaldo foi morto com seis tiros na saída do trabalho. Os disparos teriam sido feitos por três desconhecidos que circulavam em uma motocicleta. Fundador e proprietário do diário O Serrano e colaborador do blog Serra do Mel (serradomel-rn.com), Ednaldo era Presidente do Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores e conhecido como principal opositor do Prefeito de Serra do Mel, Josivan Bibiano de Azevedo, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). A nota do RSF informa que Ednaldo teria publicado recentemente uma reportagem sobre a gestão do orçamento municipal. O Presidente do PT do Rio Grande do Norte, Eraldo Paiva, informou ao Diário de Natal que o jornalista vinha recebendo ameaças, e anunciou a abertura de uma comissão de investigação para atuar no caso.
“O contexto de sérias tensões políticas constatado em Serra do Mel leva a privilegiar a pista política. No entanto, ter um blog e tratar do tema sensível, como é a corrupção, constitui um risco no Brasil, como já demonstrou em março deste ano o atentado de que escapou com vida Ricardo Gama, no Rio de Janeiro. Será fundamental, nesse novo caso, que o conjunto da classe política local se mobilize pela averiguação da verdade, em nome da defesa das liberdades e do debate democrático”, disse em nota a Repórteres Sem Fronteiras. A organização relembrou ainda “a forte presença na região do crime organizado, o qual poderia estar por trás desse assassinato, tendo em conta o modo operatório.” Desde o início de 2011 houve dois assassinatos de jornalistas no Brasil: Luciano Leitão Pedrosa, funcionário da Rádio Metropolitana FM e apresentador de um programa no canal local TV Vitória, foi morto no dia 9 de abril, em Pernambuco; Valério Nascimento, proprietário e diretor do jornal Panorama Geral, foi morto em 3 de maio, no Estado do Rio de Janeiro. (Cláudia Souza) REPRODUÇÃO
JORNAL DA ABI - COMO EXPLICAR QUE O CONSELHO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DO CONGRESSO ESTEJA PARADO HÁ CINCO ANOS? QUAL SUA IMPORTÂNCIA E QUAL DEVE SER O PAPEL DESSE CONSELHO? ACREDITA QUE SE CONSEGUIRÁ REATIVÁ-LO? Luiza Erundina – O único mecanismo de participação que existe é esse Conselho de Comunicação Social, que está desativado por todo este tempo por omissão da Presidência do Senado, que não convoca sessão do Congresso para eleger novos Conselheiros. Embora mitigado em suas prerrogativas, por ser apenas um órgão de consulta e assessoria do Congresso, durante o tempo em que funcionou – apenas dois mandatos – o Conselho elaborou importantes estudos. Contudo, o que se precisa mesmo é de um Conselho de Comunicação Social com caráter deliberativo e paritário, com representantes eleitos diretamente pelos segmentos que compõem o setor das comunicações no País. Lancei mão de todos os meios de que o meu mandato dispõe na tentativa de que o Conselho fosse reativado, mas não consegui. Fiz, inclusive, uma representação ao Procurador-Geral do Ministério Público Federal, no sentido de que questionasse a Presidência do Senado sobre a omissão. Porém, sem sucesso.
Luiza Erundina – Não está sendo proposto um controle de mídia, alias, um termo já estigmatizado, e sim que a sociedade possa participar democraticamente na construção de uma comunicação mais democrática e pluralista. O controle social terá que acontecer. É o Estado que faz a outorga, a sociedade vai ter o controle.
JORNAL DA ABI - A MÍDIA BRASILEIRA REFLETE, DE FATO, O QUE É O BRASIL? C OMO TOR-
JORNAL DA ABI - A SENHORA TEM LONGA
NÁ-LA MAIS PARTICIPATIVA, PLURALISTA E DEMO-
TRAJETÓRIA POLÍTICA, COM PASSAGEM HISTÓRICA
CRÁTICA?
PELA PREFEITURA DE SÃO PAULO. COMO DEFINI-
Luiza Erundina – A mídia brasileira não reflete, de fato, a realidade atual do País. Daí a necessidade de um marco regulatório que corresponda à revolução tecnológica da era digital e da convergência de plataformas de mídia. Ademais, é preciso teruma política de comunicação que democratize os meios de comunicação; assegure o controle público sobre eles; e garanta a todas e todos os cidadãos brasileiros o direito à comunicação. JORNAL DA ABI - HISTORICAMENTE, QUAIS GRUPOS A SENHORA CONSIDERA OS MAIS EXCLUÍDOS DE PARTICIPAÇÃO E REPRESENTATIVIDADE NA MÍDIA NO BRASIL? COMO INCLUÍ-LOS, POR EXEMPLO, NA PRODUÇÃO E NA PAUTA DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO?
Luiza Erundina – Historicamente, as mulheres, os afrodescendentes e as minorias têm sido os segmentos mais excluídos de representatividade na mídia no Brasil, como também o são econômica, social, cultural e politicamente. Só com a radicalização da democracia no País, o que supõe ampla e profunda reforma do sistema político brasileiro, será possível eliminar as desigualdades e corrigir o desequilíbrio na distribuição de poder, especialmente o poder da mídia. JORNAL DA ABI – A SENHORA FALA EM DEMOCRATIZAÇÃO. MAS NÃO TEME QUE O PROJETO DA FRENTE ACABE POR SER CONFUNDIDO COM UMA PROPOSTA DE REGULAÇÃO DA MÍDIA?
RIA A RELAÇÃO DA POLÍTICA LUIZA ERUNDINA COM A MÍDIA? ELA FOI SEMPRE CORRETA E CORDIAL OU, POR VEZES, A SENHORA SE SENTIU INCOMPREENDIDA E ATÉ MESMO VÍTIMA DE PRECONCEITOS?
Luiza Erundina – Como Prefeita, minha relação com a mídia não foi nada fácil. Minha vitória eleitoral surpreendeu e contrariou os caciques da política paulistana, para quem foi intolerável serem derrotados por uma mulher, nordestina, pobre e de esquerda. Além de serem sistematicamente críticos, certos veículos de comunicação não noticiavam as realizações do nosso Governo e se recusavam a cobrir os atos oficiais, mesmo quando eram de interesse público, como a entrega, por exemplo, de obras importantes. Como Deputada federal, já no quarto mandato, continuo sendo discriminada pela mídia, em razão da minha atuação, desde o primeiro mandato parlamentar, na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, onde luto pela democratização das comunicações, sobretudo questionando as regras de outorga e renovação de concessões. Há pouco tempo fui vetada pelo dono de uma emissora de rádio de São Paulo de participar de um programa jornalístico para o qual tinha sido convidada pela produção. Esse é o preço que pago por usar as prerrogativas do mandato parlamentar na defesa do interesse público. Contudo, tenho bom relacionamento com jornalistas e demais trabalhadores do setor.
Promotor do interior de SP quer quebrar sigilo da fonte Num comunicado divulgado em 27 de junho, a ABI expressou seu protesto contra a decisão das autoridades policiais de São José do Rio Preto, São Paulo, e do representante local do Ministério Público do Estado de pressionar o jornal Diário da Região para revelar a fonte das informações que vem publicando sobre a investigação de irregularidades administrativas no Município. “O comportamento dessas autoridades – disse a ABI – constitui grave agressão à liberdade de imprensa, disfarçada sob o eufemismo de que o Diário da Região vem publicando informações acerca de investigações que ocorreriam
sob segredo de Justiça. Essa alegação carece de fundamento constitucional, pois a obrigação de manter e resguardar segredos de Justiça em procedimentos policiais ou judiciais é das autoridades que a decretaram, e não dos jornalistas ou da imprensa. A obrigação dos jornalistas é com a divulgação de informações, e não com o seu ocultamento.” “A ABI está solidária com os companheiros do Diário da Região e estima que eles mobilizem o quanto antes os meios judiciais de garantir o seu direito de acesso à informação”, conclui a nota, firmada pelo Presidente da ABI, Maurício Azêdo.
Exílio, o destino de 70 jornalistas no mundo O relatório anual do Comitê de Proteção aos Jornalistas-CPJ, divulgado no dia 20 de junho, em homenagem ao Dia Mundial do Refugiado, informa que 70 jornalistas foram exilados nos últimos 12 meses em razão de sua atuação profissional. Em 2010, 85 jornalistas foram exilados. A pesquisa considerou jornalistas que deixaram seus países de origem por motivos profissionais e estão exilados há mais de três meses. Do total, 82% saíram dos países em virtude de ameaças de prisão. Violência, assédio físico e moral e constantes ameaças também motiva-
ram o exílio. O relatório não leva em consideração o deslocamento de jornalistas por razões financeiras, violência generalizada ou por mudança de ocupação profissional. Irã e Cuba lideram a lista de países com maior número de jornalistas exilados. Informa o CPJ que em cada um desses dois países foram exilados 18 profissionais nos últimos 12 meses. O Irã lidera o ranking do CPJ pelo segundo ano consecutivo. Desde 2001, quando o CPJ iniciou este estudo, 649 jornalistas foram exilados, metade deles oriundos da Etiópia, Somália, Iraque e Zimbábue. (Cláudia Souza)
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“No Oriente Médio a mulher é tratada pior do que um cachorro” Militante dos direitos humanos exilada na Alemanha, a iraniana Mina Ahadi descreve as desumanas restrições impostas às mulheres em seu país e no mundo muçulmano, onde, diz, a mulher é tratada como animal. DEPOIMENTO A ARCÍRIO B. GOUVÊA N ETO
REPRODUÇÃO
Uma das mulheres mais admiráveis da atualidade, a iraniana Mina Ahadi, nascida na cidade de Abhar, em 1956, esteve no Brasil, convidada pelo Instituto Millenium, para participar do 2º Fórum Democracia & Liberdade, realizado em São Paulo. Visitou também o Rio de Janeiro, onde fez uma palestra no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais-Ibmec, e Brasília, onde manteve encontros com órgãos do Governo ligados aos direitos humanos. Mina apareceu no cenário mundial ao ter uma atuação de impressionante coragem na defesa da sua compatriota Sakineh Mohammadi Ashtiani (foto), condenada à morte por apedrejamento e que, diante da manifestação de repúdio da opinião pública e da mídia do mundo inteiro, teve a pena suspensa. Ela nos deu essa entrevista exclusiva no Rio, na sede do Ibmec; como só fala os idiomas persa e alemão, a entrevista não teria sido possível sem a tradução do alemão para o português feita pela jornalista Christiane Romeo, que a acompanhava. Fundadora do Comitê Internacional contra o Apedrejamento e ainda do Conselho Central dos Ex-Muçulmanos e criadora dos sites notonemore execution.org e stopstonningnow.com, Mina integra também o Comitê Central e o Politburo do Partido Comunista Iraniano. Em 2008, foi agraciada com um prêmio da mídia de Viena, por seu livro Ich habe abgeschworen (Eu Abjurei), publicado em 2007, em co-autoria com Sina Vogt. Durante a Revolução iraniana, ela estava em Tabriz e participou ativamente do movimento. Seu marido, também um ativista político, foi executado no dia do aniversário de casamento. A execução foi uma motivação ainda maior para sua luta contra o apedrejamento no Irã. Mãe de duas filhas, Mina Ahadi mora há 14 anos na Alemanha e recentemente ajudou a libertar a iraniana Nazanin Fateh, também condenada ao apedrejamento. Por causa das ameaças de morte, ela vive sob proteção da Polícia alemã: ao criar o Conselho Central dos ExMuçulmanos, entidade de apoio às pessoas que abdicaram da fé islâmica, passou a receber ameaças de morte que a obrigam a viver quase reclusa. Renunciar ao Islã é considerado entre muçulmanos uma ofensa grave, punível com a pena de morte. No entanto, hoje, em razão de seu trabalho e de organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, nenhum dos países onde vigora a “sharia” (conjunto de leis islâmicas), como a Arábia Saudita, aplicou esta sentença nos últimos anos. Porém, dois grupos radicais muçulmanos, os “talibãs”, no Afeganistão, e os “shebab”, na Somália, ainda recorrem a essa punição. Até mesmo no Irã, onde, segundo a imprensa, seis pessoas foram apedrejadas nos últimos cinco anos, este tipo de condenação por adultério ou fornicação é cada vez menos freqüente, analisa Malcolm Smart, diretor do Departamento do Oriente Médio e do Magreb da Anistia Internacional: “Atualmente, não se aplica muito no Oriente Médio, nem no mundo muçulmano, nem mesmo no Irã”, revela. Neste depoimento, Mina Ahadi traça um quadro das agressões aos direitos humanos e às mulheres no Islã. Seu relato. 30
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"No panorama atual, e por que não dizer de sempre, do mundo islâmico, é muito difícil ser mulher, ser ideologicamente contrário aos sistemas crônicos e milenares de tratamento à pessoa e dos disparates praticados por líderes que se perpetuam no poder. E chegam à barbárie de interferir para que as Constituições desses países tenham artigos que penalizem os cidadãos e, principalmente, a mulher com as penas mais abjetas e humilhantes possíveis. E o que me deixa mais constrangida e indignada é que isso se passa em pleno século XXI e diante do olhar complacente dos países do Ocidente. Quero dizer que, apesar de ser iraniana e, portanto, originária de uma cultura completamente diferente, não estou indiferente aos problemas femininos mundiais, mesmo morando na Alemanha e distante do mundo árabe. Mas na Alemanha sei exatamente todas as situações aflitivas por que passam as mulheres no Brasil e em tantos lugares. Entristeço-me muito, pois somente com a ajuda masculina podemos subverter esse, digamos, padrão estabelecido; ela vem, em tantos países, de forma lenta e preconceituosa. Até o ginásio, vesti meu véu, cobri meu rosto, mostrando apenas meus olhos. Mas (quer saber?) já queria usar minissaia, sapato alto, óculos escuros. Não para me ocidentalizar, nada disso, e sim para me rebelar, para transgredir, para dizer que tudo aquilo era uma grande besteira e um imenso retrocesso social. No primeiro dia na Universidade de Tabriz, onde estudava Medicina, joguei o véu fora, coloquei um vestido e fui assim estudar (risos). As meninas me olharam espantadas; no entanto, no dia seguinte, algumas apareceram também de vestido. Por dentro eu ria satisfeita, havia conseguido uma vitória. Na universidade logo conheci uns rapazes e moças de esquerda. Protestávamos timidamente contra tudo e todos, pois naquele tempo (final do Governo do aiatolá Khomeini) não podíamos nem ler um livro que não fosse de nosso curso ou religioso e já éramos considerados subversivos. Fazíamos passeata, dispersada na força, a pancada mesmo, e eu lá. Eu queria ficar na frente, ser a primeira e, por isso mesmo, também a primeira a apanhar (mais risos). Fazia questão de me expor, para eles saberem que eu existia e me opunha ao regime opressivo. Um dia apareceram lá uns jornalistas da BBC de Londres e fizeram uma reportagem sobre o nosso movimento. Eu tinha 24 anos, hoje tenho 54, portanto, há 30 anos esse Governo está no poder. Quero deixar bem claro que não me refiro à política externa do Irã e à interferência em nossos assuntos internos por parte dos Estados Unidos. Se uns podem ter bomba atômica, por que outros países não podem? Estou apenas comentando essa situação. Por favor, não estou afirmando que temos. Segundo o Presidente Ahmadinejad (Mahmoud), nossa utilização de energia nuclear é pacífica e devemos acreditar nisso, mas quem
MICHAEL KOOREN/REUTERS
Direitos humanos
Mina Ahadi: Falei em todos os lugares em que me permitem falar e não tenho medo de perder minha vida em prol dessa causa.
tem que decidir sobre isso somos nós. Todos os países têm o direito inalienável, sagrado, de decidir sobre seu destino, de comandar seu veículo e não deixar que outros o dirijam por ele. Dizia então que não me refiro à política externa do Irã. Minha luta é contra o não cumprimento dos direitos humanos em meu país e no mundo árabe. Não faço política, tento mostrar ao mundo islâmico que existe algo chamado direitos humanos que precisa ser conhecido por lá e cumprido. A mulher não pode mais ser tratada abaixo de um animal, não pode mais ser alguém pela metade. Ser submetida a toda sorte de penas, como o aviltante apedrejamento e a submissão às ordens do homem. Lá, uma mulher não pode, por exemplo, pedir o divórcio.
“MULHERES NÃO PODIAM CONTESTAR SEUS MARIDOS E, SENDO ASSIM, NÃO PODERIAM REQUERER O DIVÓRCIO” Uma amiga minha, médica cirurgiã, procurou o juiz para requerer o divórcio. Ele perguntou a ela por que razão queria se divorciar. Ela respondeu que o marido a submetia a toda sorte de maus tratos. O juiz então exigiu que relatasse os maustratos. Minha amiga falou que apanhava sempre, que era ofendida diariamente por palavras e atitudes, forçada a fazer sexo quando não queria e muito mais. Calmamente o juiz a mandou ir para casa, que isso não era nada e mulheres não podiam contestar seus maridos e, sendo assim, não poderiam requerer o divórcio. Lembro-me de quando eu era criança e era obrigada (obrigada para mim, porque na sociedade é uma coisa normal) a servir meus irmãos na mesa, quando comíamos. Um dizia: “Mina, vai pegar
minha água”; outro: “Mina, traga meu doce ou meu chá”. E era assim o dia todo. Eles nem faziam por mal, era assim com seu pai, foi assim com seu avô e agiram dessa maneira nossos antepassados. A mulher, em muitas famílias, é vista abaixo de um cachorro. No entanto, hoje vejo que em escala menor é um problema global. No Brasil, metade da população é de mulheres, mas apenas 20% ocupam cargos no Congresso. É uma coisa doida, maluca. Uma ordem sexual em que a mulher não pode nem dizer um “não quero”, sem liberdade de escolha nem de opinião. Uma sociedade feita para os homens. Uma mulher, por exemplo, não pode fundar um partido. Vocês no Brasil não têm idéia do que seja isso. Quando um dia resolvi não usar o véu e mostrar meu rosto, um fato normal em qualquer sociedade civilizada, começou o grande drama da minha vida. Mas essa reportagem da BBC, como eu disse, espalhou nosso movimento pelo mundo todo. Foi ótimo. E o mundo acordou para o problema. Essa minha via-crucis (para usar uma imagem cristã) começou cedo. Em 1980, meu marido, estudante de Física, foi preso, torturado e morto. A Polícia ficou uma semana em minha casa e eu escondida em outro lugar, fugindo daqui pra ali. Ao todo sete pessoas ligadas a mim, entre amigos e familiares, foram executadas, sem julgamento. Cada dia eu ficava em uma casa diferente, mudando sempre. Mas as pessoas que me abrigavam tinham medo, muito medo, se fossem pegas era morte na certa. Um dia aconteceu um fato inacreditável. Estava escondida na casa de um amigo, e ele me disse: ‘Se chegar a Polícia você pula pela janela. Só pra te avisar, eu moro no 3º andar’. Concordei, não tinha outra saída. Nessa mesma noite chegou a Polícia. Acordei sobressaltada com uma enorme confusão no prédio. Ele bateu levemente na porta do meu quarto e sussurrou: “Mina, eles estão aí se joga, se joga logo”. Eu fui até a janela, olhei pra baixo e pensei: “Não vou me jogar coisa nenhuma, não posso me jogar. Não vou morrer dessa forma inglória e covarde. Eles que me prendam, que tenham, pelo menos, o trabalho de me prender e me matar”. Mas não era a mim que procuravam, era outra pessoa. Pegaram-na e foram embora. Imagine se eu tivesse me jogado. Dali, fugi para o Kurdistão, aos trancos e barrancos. Fiquei morando numa cidade do interior. Sabiam quem eu era. Ensinaram-me a trabalhar no rádio. Tive um programa de boa audiência, sempre em defesa dos direitos humanos e da mulher. Permaneci no Kurdistão por quatro anos. Depois fui morar em um vilarejo, praticamente feito de tendas, entre o Irã e o Iraque, na época da guerra entre os dois países e sobrevivi, aos ataques aéreos. Servia como médica cirurgiã em um campo de refugiados e feridos e me sentia bem ali, trabalhando como voluntária. Eram umas tendas legais, tinham até cinema. Vivi de experiência em experiência
por cerca de dez anos até fugir para Viena, na Áustria, em 1990 e depois para Colônia, na Alemanha, em 1996. Há dois anos estou em casa, à noite, e recebo uma ligação telefônica de um estudante do Irã muito assustado em que ele dizia: “Por favor, me ajude, minha mãe, Sakineh Mohammadi Ashtiani, vai ser apedrejada”. Respondi: “Vou ajudar”. E perguntei: “O que é isso, apedrejamento?” Ele disse que ela havia sido julgada por adultério, condenada e a pena era essa. Então, me surpreendi, pois não havia esse artigo na Constituição iraniana, embora exista na “sharia”. É que, no período posterior à minha fuga, ela havia sido mudada, covarde e cruelmente, para acrescentar itens que causassem sofrimento e humilhação às mulheres.
“A LEI DIZ QUE ELAS TÊM DE SER GRANDES O SUFICIENTE PARA MACHUCAR A VÍTIMA, MAS NÃO PARA MATÁ-LA NO PRIMEIRO OU SEGUNDO GOLPE.”
Para o mundo ocidental e para as felizes mulheres que moram aqui e não sabem o que é um apedrejamento, vou descrevê-lo. Abre-se um buraco no chão, o suficiente para caber uma pessoa em pé. Busca-se a vítima em tal dia e tal hora, em geral ao amanhecer, e conduzem-na pelas ruas, enrolada em uma túnica mortuária, para que seja alvo da curiosidade alheia e jogam-na no buraco e cobrem-na de terra até o peito; no caso dos homens, até à cintura. Dependendo da condenação, é o juiz quem atira a primeira pedra. Mas pode ser também uma das testemunhas. Se a vítima é uma mulher sentenciada por adultério, por exemplo, tanto o seu marido quanto a família dele podem lançar as primeiras pedras. A lei diz que elas têm de ser grandes o suficiente para machucar a vítima, mas não para matá-la no primeiro ou segundo golpe. Os homens então começam a atirar tantas pedras quantas sejam necessárias para que ela morra. E o grande momento desse circo de horror é saber quem atirará a última pedra. Quando isso acontece, aquele que atirou essa pedra maldita é exaltado, festejado e tratado como herói. No Irã, o homem é enterrado até à cintura; a mulher, até o peito. Se o condenado conseguir sair sozinho, se livra da morte. Em outros países, são presos a uma árvore ou lançados ao chão, às vezes com os rostos cobertos, outras vezes, não. Praticamente todos os dias eu recebo chamadas de condenados me pedindo ajuda para esse tipo degradante de condenação. As prisões estão lotadas. Há, inclusive, crianças e adolescentes aguardando fazer 18 anos para serem executados. Esse crime não é somente praticado pelos que ali estão, é de todo o país, é de toda a humanidade. Se não houver uma pressão mundial eles não vão parar com essa barbárie e me sinto honrada por esta entrevista à Associação Brasileira de Imprensa, pois preciso da ajuda de entidades dessa importância para extinguir
uma prática que remete à pré-história da raça humana. Não descansarei enquanto não acabar com essa violência que fere todos os princípios dos direitos humanos nos países em que é praticada e que é bom que se revele: não é somente no Irã, é também no Sudão, Afeganistão, Nigéria, Arábia Saudita, Somália. Minha vida é dedicada a essa luta. Já falei em todos os lugares do mundo em que me permitem falar e não tenho medo de perder minha vida em prol dessa causa. Lutei contra o apedrejamento de Nazanin Fateh, engenheira petrolífera, mãe de dois filhos, e consegui salvá-la. Mas em 2001, na Nigéria, cheguei tarde para salvar uma outra da morte. Quando viu os homens virem buscá-la, ela desmaiou. Foi levada numa maca ao local do apedrejamento e morta. Morta como se mata um animal selvagem e morta por homens muito mais culpados do que ela. Nunca a frase de Jesus foi tão verdadeira: “Quem não tiver culpa que atire a primeira pedra”. E desde quando adultério é crime de morte em uma sociedade moderna? É crime de morte nos países em que existe como arma política de intimidação. Para impor o medo, o terror. Como forma de manter a autoridade. Os mesmos processos utilizados pelos governantes da Idade Média no mundo islâmico. Em alguns países, como na Nigéria, conseguimos salvar algumas mulheres do apedrejamento (digo conseguimos porque hoje outras pessoas estão comigo nessa luta). Desde que fundei o Comitê Internacional contra o Apedrejamento e ainda os sites notonemoreexecution.org e stopstonningnow.com as denúncias de apedrejamento e crimes de toda ordem contra as mulheres chegam diariamente e nós tentamos resolvê-los da melhor forma possível, principalmente com o precioso apoio dos meios de comunicação. Embora tenha uma ideologia definida de esquerda, busco unicamente o objetivo de salvar vidas humanas inocentes. Dirigentes de direita já me ajudaram e dirigentes de esquerda já se mostraram mesquinhos com minha luta. Quantos governantes de países das mais variadas tendências ideológicas já deram de ombros aos meus apelos, dizendo que o Irã e as outras nações que praticam crimes contra os direitos humanos e as mulheres são países muçulmanos e lá é assim mesmo, é normal. Seria normal se as mães, as mulheres ou as filhas deles fossem apedrejadas? Eu esperava mais de determinados líderes ocidentais. Estranhei, inclusive, o fato de o Presidente Luíz Inácio Lula da Silva, embora o respeite muito, ter abraçado o Presidente Mahmoud Ahmadinejad, anunciado ser seu amigo e não tê-lo pressionado para acabar com as práticas medievais aplicadas contra as mulheres no Irã. Fez exatamente o que outros líderes fizeram. Pergunto: por que fechar os olhos para o que acontece nesse campo, só porque existem outros interesses em jogo, como o comercial e o econômico? Mas com relação à Sakineh, a partici-
pação do Brasil foi louvável, especialmente dos meios de comunicação. E posso garantir que pesou muito na decisão de reverter sua execução. Sakineh já está salva. Por quê? Graças à repercussão que o caso alcançou, o regime não pode mais executá-la - nem pública nem clandestinamente. O Governo já está convencido disso. Apenas busca achar um meio de não sair desmoralizado do episódio. Todo esse processo, no fim, foi bom para o Irã. Chamou a atenção do mundo para a barbárie do regime. Antes do caso Sakineh, a preocupação dos países em relação ao Irã se limitava à questão nuclear. Estive em Brasília ontem (dia 5 de maio) e mantive encontros com a Ministra Maria do Rosário, Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, o Senador Paulo Paim (PT— RS) e o Asssessor Especial da Presidência da República Marco Aurélio Garcia, porém saí de lá desapontada. Esperava atitudes mais enérgicas, mais objetivas e senti apenas respostas evasivas e “vamos ver ”. Já conheço esse comportamento dos dirigentes ocidentais. É apenas uma forma cortês de dizer: “Não temos nada com isso”. Na Europa é a mesma coisa. Os países mantêm relações comerciais com o Irã e outras nações do Oriente Médio; então, não querem se envolver. Isso no campo oficial, porque as organizações não-governamentais nos auxiliam bastante. No entanto, aos poucos, timidamente, vamos nos impondo. Antes, na Europa, éramos estrangeiros, hoje somos muçulmanos. Na Alemanha, somos mais de três milhões. E nos respeitam, especialmente no campo religioso. E não aceitamos que organizações árabes que não conhecemos a fundo, no seu núcleo ideológico, na sua infra-estrutura, falem por nós e decidam o que devemos fazer. No fundo, muitas dessas organizações querem apenas fazer política ou espalhar controvérsias e desentendimentos.
“SOMOS UMA CULTURA MILENAR, RIQUÍSSIMA E INTELIGENTE, QUE MUITO INFLUENCIOU O MODO DE VIDA OCIDENTAL.”
Recentemente, na Suíça, houve um debate sobre os minaretes. E em vários outros países da Europa a discussão sobre o Islã se acentua e todos procuram nos conhecer melhor. Aqui mesmo no Brasil fez sucesso a novela O Clone. Nunca o Oriente Médio esteve tão em evidência na mídia e nossa cultura e religiosidade foram motivo de curiosidade. Porém, é necessário que o Ocidente compreenda que não somos uma massa disforme e alienada; somos uma cultura milenar, riquíssima e inteligente, que muito influenciou o modo de vida ocidental. Nas minhas andanças pelo mundo tento mostrar que a mulher pode e quer participar. Na maioria das vezes falo para uma platéia de homens, mas adoro estar ao lado deles (a gargalhada e o rosto vermelho como tomate mostraram uma Mina Ahadi bem globalizada), mas cerJornal da ABI 367 Junho de 2011
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POLÊMICA
DEPOIMENTO MINA AHADI
tamente eles transmitem o que eu digo para suas mulheres. Eu gasto tanto dinheiro com ligações telefônicas para todo o mundo, nessa luta, que minha filha diz que com essa quantia poderia ter comprado carros e casas (embora esteja sempre ao meu lado nesse trabalho), mas creio que não seria mais recompensador do que divulgar aos quatro cantos as ofensas à dignidade e moral da mulher árabe. No entanto, enquanto evoluímos em outros campos, no dos direitos humanos estacionamos e mesmo em alguns aspectos regredimos. Nestes 30 anos, desde que começou a minha luta, 150 mulheres morreram apedrejadas no mundo árabe e 50 gays. E muitas mulheres e gays pensam: “Se eu não for apedrejado agora poderei ser no futuro”. E vivem com essa neurose opressiva na mente pela vida afora. Mas Deus quer que todos nos amemos. Tem uma música famosa no Irã que diz: “Vamos amar, dançar, ser felizes, ser alegres e curtir a vida, porque o amor é universal e eterno”. Estou contente por estar no Rio de Janeiro, um lugar onde as mulheres alcançaram, ou melhor, obtiveram uma liberdade invejável, a liberdade de ir às praias e mostrar seus belos corpos de biquínis sumários (risos), de freqüentar a vida noturna, de sair no Carnaval e, acima de tudo, de impor sua vontade, seu pensamento, de exercer seu direito à liberdade de expressão. Mas para isso tiveram a participação masculina. Essas são relações recentes, num mundo onde existem agora o Facebook, o Orkut, o Twitter, a tv, as redes sociais. No entanto, no Oriente Médio parece que tudo anda como há mil anos. Líderes como Kadafi (Muammar), Mubarack (Hosni), Ahmadinejad, entre outros, precisam ser extirpados da sociedade. Não de uma forma cruel, ou por interferência externa através da força, mas por decisões tomadas em votação pelos países integrantes da Onu. Decisões tomadas de forma civilizada e humana, sem colocar mais violência e miséria em uma região tão devastada pelas tragédias. Atingir o âmago da questão, a sua essência milenar, através de meios saudáveis e amigos e não oportunistas, casuais e interesseiros. Hoje estamos muito próximos uns dos outros, a tv, a internet nos aproximaram definitivamente. Não existem mais o homem e a mulher brasileiros, iranianos, americanos, franceses, chineses, existe o ser humano global, universal. Portanto, o resultado disso é que todos os dramas agora são nossos dramas, todas as tragédias são nossas tragédias e todas as vitórias e conquistas nossas também. Hoje os meios de comunicação criaram um só homem e uma só mulher, unidos, todos, pelos olhos atentos dos satélites. E, acima de tudo, com a consciência, depois de tantas calamidades, de que estamos todos no mesmo barco e se não remarmos direito ele afundará”. CONTATOS DE MINA AHADI E-mail: minaahadi@aol.com Telefone: 0049(0) 1775692413
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“Hipólito fugiu do Brasil para expor seu irremediável reacionarismo” Em editorial na sua CartaCapital, Mino Carta contesta o título de Herói Nacional do criador do Correio Braziliense, como lembrado pelo Jornal da ABI, e ataca Merval Pereira e Roberto Civita. Com a veemência de seu estilo, o jornalista Mino Carta contestou as galas de Herói Nacional atribuídas a Hipólito da Costa em texto da Edição 366 Extra do Jornal da ABI, acusandoo de fugir do Brasil para expor seu “irremediável reacionarismo em Londres”. Em editorial publicado na sua revista CartaCapital, Edição número 652, de 29 de junho passado, Mino aproveita para espalhar brasas, atacando os jornalistas Merval Pereira, recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras, e Roberto Civita, Presidente da Editora Abril. Diz Mino: Teste: quem escreveu o texto seguinte? “Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis; mas ninguém aborrece mais do que nós, que essas reformas sejam feitas pelo povo, pois conhecemos as más consequências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo, e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo”. Respostas: A) Editorialista de O Globo; B) Merval Pereira; C) Hipólito José da Costa; D) Editorialista da Província de São Paulo; E) Benito Mussolini. Esclarecimentos. O Globo dispensa apresentações, Merval Pereira nem se fale, a fama de sua pena transpõe fronteiras, bem como seu culto ao pronome “que”. Província de São Paulo é o jornal que precedeu O Estado de S. Paulo, o berço do Estadão. Benito Mussolini, também conhecido como Il Duce, é o fundador do fascismo e ditador da Itália por mais de duas décadas, até o final da Segunda Guerra Mundial. (Esta informação é dedicada ao governador Tarso Genro e a uma plêiade de juristas do STF). Hipólito José da Costa, jornalista, fundador do Correio Braziliense em 1808, impresso em Londres, foi designado primeiro Herói Nacional pela Presidência da República no ano passado. O teste, admito, não é fácil, e em benefício de quem até esta linha hesita em busca da resposta, docemente declino: Hipólito José da Costa. A ele o Jornal da ABI entrega a capa ao comemorar em edição extra o Dia da Imprensa e tecer loas ao brasileiro que imprimia seu jornal
“O fundador do Correio Braziliense é perfeito como Herói Nacional santificado pela mídia nativa.” fora do país para escapar à censura de D. João VI, aboletado no Rio, capital da colônia. Maçom e liberal, o nosso herói. E antecessor de Merval Pereira na entronização do pronome “que”. Extraio o trecho de Hipólito que motiva o teste de um magistral ensaio de Raymundo Faoro, Existe um Pensamento Político Brasileiro? A leitura, tanto do jornalista quanto do pensador, leva-me à conclusão inescapável de que o fundador do Correio Braziliense é perfeito como Herói Nacional santificado pela mídia nativa. Até o mundo mineral percebe que os herdeiros da casa-grande mantêm intacta a repulsa às demandas, por mais tímidas, dos herdeiros da senzala. Ensina Faoro no seu ensaio que os exilados dos começos do século XIX “não se mostravam fascinados pelos princípios da Revolução Francesa”, a ponto de defini-los “abomináveis”. Vigora, esclarece o historiador, “o liberalismo como tática absolutista”. E acrescenta: “A participação popular no liberalismo, ao contrário da democracia, exclui da cidadania não
somente o escravo, mas os setores negativamente privilegiados (…) sem escândalo ostensivo”. Hipólito José da Costa foge do Brasil para livremente expor em Londres o seu irremediável reacionarismo, próprio até hoje de larga porção dos privilegiados da terra e prontamente endossado pela mídia nativa, a do pensamento único, baseado, essencialmente, na aversão e no temor da pressão popular. E na certeza de que liberdade de imprensa é a de omitir e mesmo mentir, de todo modo de publicar a versão em lugar do fato. É do próprio Faoro uma frase que sempre repito: “Querem um país de 20 mil habitantes e uma democracia sem povo”. Como Hipólito José da Costa e como os jornalistas atuais, caninamente a serviço dos interesses do patrão, que chamam de colega. Deste ponto de vista, o primeiro Herói Nacional merece a elevação aos altares midiáticos e patrióticos. O jornalismo brasileiro já foi, porém, muito melhor do que o de Hipólito e de Merval Pereira, ao menos pela qualidade dos praticantes. Foi o jornalismo dos enviados especiais à frente italiana da Segunda Guerra Mundial, Rubem Braga e Joel Silveira, ou de um mestre autêntico como Claudio Abramo, citado por Rodolfo Konder em artigo publicado na edição extra do Jornal da ABI. Ou o da Realidade, tema de outro artigo, de Paulo Chico, a revista mensal de um grupo de excelentes profissionais, quase todos meus ex-companheiros em Quatro Rodas, jornalistas que, além de muito bem formados, lidavam com o vernáculo com extremo desembaraço. A respeito deste artigo de Paulo Chico, só tenho a sublinhar para não me sentir remoto seguidor de Hipólito José da Costa, que Roberto Civita, editor da Realidade – na qualidade de filho do dono da Abril, não é e nunca foi jornalista, e sim patrão. E ainda é quem entregou a minha cabeça a um soturno indivíduo chamado Armando Falcão, que no país dos herdeiros da casa-grande e da senzala foi ministro, imaginem, da Justiça do ditador Ernesto Geisel. Nada de surpresas, o mesmo Roberto Civita quase dois anos antes tentara, diante dos meus olhos estupefatos, entregar a cabeça de Millôr Fernandes ao General Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil. Felizmente, Golbery não era Falcão.
MOBILIZAÇÃO
MUNIR AHMED
13 pontos essenciais para a defesa das florestas A convite da ex-Senadora Marina Silva, a ABI integrou-se ao Comitê Brasil em Defesa das Florestas, que definiu 13 pontos essenciais para uma atuação eficaz contra o desmatamento. Seu representante no Comitê é o jornalista Silvestre Gorgulho, diretor da Folha do Meio Ambiente e antigo militante ambientalista.
O mutirão para lançamento do Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável funcionou. Além da ex-Senadora e ex-Ministra do Meio Ambiente Marina Silva, outras estrelas participaram do evento, que aconteceu no dia 7 de junho no Auditório do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em Brasília. Estiveram presentes as atrizes Letícia Sabatella, que deu um depoimento emocionante; Christiane Torloni, que comandou o cerimonial e leu o Manifesto de criação do Comitê; o ator Victor Fasano, vários senadores, deputados e pelo menos uma dezena de entidades e líderes de movimentos sociais. O encontro foi comandado por cinco entidades de porte: Ordem dos Advogados do Brasil-OAB, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil-Conic, ABI e SOS Amazônia. O objetivo principal do Comitê é promover uma mobilização pelo Brasil, à semelhança do Diretas Já e o projeto da Ficha Limpa. Foi aberta uma campanha que pretende coletar 1 milhão de assinaturas contrárias ao texto do novo Código Florestal, na forma como foi aprovado pela Câmara dos Deputados. Para a ex-Ministra Marina Silva, a mentalidade dos brasileiros é melhor do que a do Congresso que votou esse projeto: “Devemos sair daqui para ir além da agenda de conversas com líderes, partidos e com a Presidente Dilma Rousseff, para cumprir a agenda Um Milhão contra a Devastação”. Segundo a ex-Ministra, o esforço de coletar 1 milhão de assinaturas contra o código e de organizar manifestações públicas será fundamental para dar respaldo àqueles que decidirão sobre a forma como o novo código será aprovado. “Tudo depende de uma sustentabilidade ética e política”, lembrou Marina,
que acaba de criar o Instituto Marina Silva-IMAS. Christiane Torloni dividiu com Letícia Sabatella o charme e a posição cultural do movimento. Christiane, que representa o Movimento Amazônia para Sempre, lembrou a campanha Diretas Já, pela redemocratização do País: “Na época, conseguimos colocar mais de 1 milhão de pessoas nas ruas. Acho isso perfeitamente viável, para convencer aqueles que têm de ser convencidos e de constranger aqueles que têm de ser constrangidos.” A atriz Letícia Sabatella, que há pouco dirigiu o documentário Os Palhaços Sagrados da Tribo Krahô, é rígida defensora das questões ambientais. Sempre empresta sua imagem e seu talento na defesa e preservação da natureza. Durante o lançamento do Comitê, ela fez um depoimento emocionado e, por várias vezes, pediu a palavra para complementar dados, informações e, sobretudo, motivar as pessoas para a causa em questão: o Código Florestal. Representando a ABI, o jornalista Silvestre Gorgulho, que é diretor da Folha do Meio Ambiente e membro do Conselho Deliberativo da Casa,, lembrou a participação da entidade em todas as grandes causas nacionais: “A ABI é uma entidade historicamente comprometida com a liberdade de expressão, com a ética e nunca deixou de estar presente quando o tema ou a luta era a favor do Brasil e da sociedade brasileira”. Gorgulho acrescentou que a ABI se dispõe a participar ativamente das discussões e debates pontuais sobre desmatamento da Amazônia e sobre o Código Florestal. “A imprensa brasileira tem papel importante na educação e na conscientização das pessoas para defesa da floresta, na divulgação dos crimes ambientais e contra o povo da floresta e, sobretudo, tem uma história quase centenária de luta por justiça social e justiça política”, disse Gorgulho.
As principais propostas para salvar nossas matas Os pontos principais da ação do Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável. 1. Tratamento diferenciado para agricultores familiares, permitindo que sob a lógica do interesse social possam manter ocupações em área de reserva legal para desmatamentos consolidados. 2. Fortalecimento dos instrumentos de governança e de controle de novos desmatamentos ilegais, como o embargo das áreas desmatadas ilegalmente, a figura do crime de desmatamento e a corresponsabilidade dos financiadores de produção em áreas desmatadas ilegalmente. 3. Recomposição obrigatória de 15 dos 30 metros de APP de rio de até 10m de largura limitada apenas à agricultura familiar desde que com ações que comprovem a ausência de riscos socioambientais. 4. Regularização da produção agrícola com suspensão de aplicação de multas aos agricultores (que não se enquadrem no conceito de agricultura familiar) caso ingressem em até um ano nos programas de regularização ambiental (federal ou estaduais) que deverão ser implementados em até seis meses da publicação da lei e assumam o compromisso de recompor ou compensar as reservas legais em áreas prioritárias para conservação da biodiversidade e recursos hídricos.
7. Utilização de áreas de topo de morro e áreas entre 25 e 45º de declividade já desmatadas em zonas rurais, com espécies arbóreas e sistemas agroflorestais, desde que sob manejo adequado, medidas de conservação do solo, medidas que inibam novos desmatamentos e recomposição de reservas legais (sem cômputo da área na RL). 8. Possibilidade de uso sustentável em áreas de planícies inundáveis conforme regulamento específico a ser editado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente-Conama atendendo a especificidades dos Biomas Pantanal e nas áreas inundáveis da Amazônia. 9. Possibilidade de redução da RL de 80% para 50% na Amazônia nos casos de Municípios com mais de 50% do seu território abrigados por Unidades de conservação e terras indígenas. 10. Manutenção dos atuais parâmetros das áreas de preservação permanente, com reinserção no rol das APPs dos topos de morro, manguezais, dunas, áreas acima de 1800m e restingas fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues. 11. Manutenção do atual regime de competência para autorização de desmatamento com ênfase na competência estadual.
5. Programa de pagamento por serviços ambientais e instrumentos econômicos voltados a pequenos produtores rurais familiares e inserção da recomposição e conservação de APP e reserva legal.
12. Cadastro ambiental rural georreferenciado obrigatório para a regularização de todos os imóveis rurais com cadastramento gratuito para a pequena propriedade rural
6. Cômputo das APPs no cálculo da reserva legal para pequena agricultura, não sendo válido para novos desmatamentos.
13. Incentivos econômicos para os produtores rurais que não se utilizarem das flexibilizações previstas na lei.
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FOTOS FRANCISCO UCHA
COMPETIÇÃO
A Record News contra-ataca Criada há quatro anos para ser o primeiro canal aberto exclusivamente de notícias, a emissora paulista contrata Heródoto Barbeiro e investe em atrações com mais conteúdo e análise. P OR M ARCOS S TEFANO “Atenção, câmeras... No ar!” A primeira vez que se ouviu para valer essa expressão nos estúdios da Record News, no tradicional bairro da Barra Funda, Zona Oeste da cidade de São Paulo, foi às 20 horas do dia 27 de setembro de 2007. Pairava no ambiente um clima de grandes expectativas, justificado por altos investimentos em equipamentos de última geração – os mesmos usados por emissoras como a inglesa BBC, a japonesa NHK e a árabe Al Jazeera – contratação de profissionais renomados, e também por se tratar do primeiro canal dedicado exclusivamente a notícias na televisão aberta brasileira. Passados quatro anos desse grande momento, a empresa se diz satisfeita com os resultados, mas ainda busca a tão esperada revolução no telejornalismo nacional. E para alcançá-la aposta em novos investimentos, desta vez na qualificação da programação. O primeiro passo foi a contratação de Heródoto Barbeiro, para comandar a principal atração da casa, o Jornal da Record News, e de conceituados especialistas para comentar os mais diversos assuntos, de política e economia à música, passando por saúde e esporte. Agora, a idéia é juntar cada vez mais o hardnews com a análise, ganhando profundidade e atraindo novos públicos. As mudanças começam a ser sentidas aos poucos. Quando o âncora Heródoto Barbeiro e a apresentadora Thalita Oliveira entram no newsroom, o elegante e paramentado estúdio que a Record News mantém para apresentações ao vivo, e se dirigem à bancada para transmitir mais uma edição do telejornal, o agito é grande. Ao fundo, servindo como um cenário high tech, estão 60 posições em que trabalham, correndo de um lado para o outro, os jornalistas da casa. A concentração precisa ser total, já que o objetivo é transformar o Jornal da Record News no noticiário de maior interatividade da televisão. A atração, no ar desde o último dia 28 de maio, começa às 21 horas e vai até as 22 horas. No portal do grupo, o R7.com, o internauta consegue acompanhar os bastidores dez minutos antes e depois desse horário. Antes do início do telejornal, fica sabendo das principais atrações da noite, acompanha comentários sobre os assuntos em pauta e é chamado pelos apresentadores para comentar matérias, participar de enquetes e enviar dúvidas sobre os assuntos do dia. Depois, geralmente, acompanha a apresentação acústica de um músico, que toca no encerramento da pro-
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gramação e traz mais uma ou duas músicas para os internautas. “A pessoa consegue assistir ao jornal em tempo real pela internet. O sinal é perfeito, não trava nem cai, graças às parcerias e ao investimento feito pelo portal. O broadcast já foi pensado para ser visto pela rede e com total interação. Para comentar, não é preciso abrir outra página e entrar na rede social. Botões de interatividade dão acesso imediato ao Facebook, ao Twitter e ao e-mail”, diz Marco Antonio Nascimento, Coordenador-Geral do Jornal da Record News. Talvez a melhor novidade para os internautas não esteja no começo nem no fim, mas no meio. Na rede, os intervalos comerciais de cinco minutos são “vazados”, ou seja, o público pode acompanhar os bastidores. Não somente isso. O noticiário praticamente não pára. Dá para acompanhar os apresentadores se ajeitando ou arrumando o cabelo, mas também interagir, já que os comentaristas permanecem respondendo perguntas e debatendo com Heródoto e Thalita dúvidas e sugestões dos internautas. Assim, depois de acompanhar o médico infectologista David Uip, Diretor-Técnico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, comentando a fraca participação da população em uma campanha de vacinação contra a gripe, por exemplo, as pessoas podem debater outros pontos com ele. “Por que alguém fica gripado mesmo depois de tomar a vacina?” “Não há mesmo riscos para quem toma a vacina?” Até descobrir que o medo das agulhas de que tantos padecem é compartilhado também pelo âncora do telejornal, o próprio Heródoto Barbeiro. Jornal tablet
Nos últimos três meses, a rotina de Marco Antonio Nascimento e da Coordenadora-Geral do Jornal da Record News, Maria das Neves Martinez, foi a de fazer contatos, marcar conversas e participar de reuniões. A missão não era simples. Os dois deveriam montar um time de notáveis, que reunisse especialistas de diversas áreas para serem comentaristas do telejornal. Como a programação deveria fugir do formato tradicional, com apenas uma posição, ocupada de maneira onipre-
Marco Antonio Nascimento e Maria Martinez participaram de muitas reuniões para escolher os comentaristas que dividiriam espaço com Heródoto Barbeiro: “Precisávamos de gente com conteúdo, capaz de manter o interesse”. Já Ailton Mineiro Nasser (acima) diz que é um grande equívoco comparar a Record News com emissoras abertas não segmentadas.
sente pelo apresentador da atração, a ordem era trazer mais gente e qualificar o debate. Reuniram onze personalidades, entre elas o cirurgião Adib Jatene, a atriz Beth Goulart, os jornalistas especializados Cosme Rímoli, Daniel Castro, Nirlando Beirão e Ricardo Kotscho, o economista Roberto Macedo e o crítico de cinema Rubens Ewald Filho. Muita densidade? Para quem pensa assim, a dupla ainda trouxe um humorista stand up, o ator e publicitário Bruno Motta, responsável por dar um ar mais leve e divertido ao noticiário. Além dessa turma de comentaristas fixos, há também alguns que comparecem de forma mais esporádica. É a “equipe olímpica” da emissora, encarregada de preparar o terreno para o Pan-Americano de Guadalajara, no México, ainda este ano, e para as Olimpíadas de Londres, na Inglaterra, em 2012, eventos que serão transmitidos pela Record. Dela fazem parte o narrador Álvaro José e ídolos do esporte brasileiro, como Magic Paula e Oscar Schmidt, do basquete; Robson Caetano, do atletismo; e Luísa Parente, da ginástica.
“Temos um grupo de comentaristas que se revezam na bancada muito maior que outros jornais. Os fixos vêm uma vez por semana. Apenas os de política e economia vêm duas. Mas a prioridade na hora de reuni-los foi a qualidade. Precisávamos de gente com conteúdo, capaz de manter o interesse”, explica Maria Martinez. Segundo os coordenadores, a comprovação de que o alvo foi atingido aconteceu durante a saída de Antônio Palocci do Ministério. Durante a semana toda, Ricardo Kotscho adiantou que o ex-Ministro da Casa Civil estava rumo à guilhotina. Eventualmente, ganhava sobrevida por um motivo ou outro. Mas quando saiu a notícia de que pediu demissão, o Jornal da Record News estendeu seu horário para dar a informação e analisá-la. “Aquele dia, tivemos que improvisar. Mas o Kotscho é um insider information. Junto com Heródoto, formam uma dupla imbatível. Eles conseguiram segurar o jornal por duas horas, sem script, sem TP e sem interrupção. Apenas fazendo alguns links e entrevistas, muitas vezes por telefone. Isso não é para qualquer um”, defende Nascimento. Fugir da tradicional receita “mundo cão + bichinho + mulher pelada” é um mandamento não somente no jornal, mas na nova linha de programação da Record News. Sensacionalismo, de fato, é um assunto tratado com muito cuidado na emissora. O que não significa que casos de polícia, ou como diz o canal “segurança pública”, sejam ignorados. Pelo contrário. Recentemente, quando o Bope invadiu o Morro do Alemão, no Rio, e confrontou o tráfico local, foram dedicadas quase 30 horas diretas de programação. Mas é um caso excepcional, tratado como uma cobertura especial, um tipo de plantão – o Alerta News. Mesmo tratamento dispensado no começo do ano às
enchentes de Teresópolis, também no Rio, e à visita do Presidente Barack Obama ao Brasil. Não vale apelar. Datena pode estar no mesmo grupo, mas vai continuar trabalhando no estúdio vizinho. Outro ponto que os profissionais da Record News fazem questão de garantir é que não existe qualquer tipo de ingerência da empresa em seu trabalho, censura ou mesmo obrigação de realizar determinadas matérias. A preocupação se dá por conta da guerra que a Igreja Universal do Reino de Deus travou com alguns veículos de comunicação há poucos anos. “Não vi isso por aqui. Temos mais liberdade do que em vários outros grandes veículos. Mas meu contrato me garante isenção e independência. Se não fosse assim, jamais teria aceito o convite para vir trabalhar aqui”, deixa claro Heródoto Barbeiro. A fórmula parece fazer sucesso e agradar diferentes tipos de públicos. Além da classe C, que já assiste ao canal, a Record News tem crescido muito entre as classes A e B. Prova disso é a comunidade virtual do Jornal da Record News no Facebook, que conta com mais de 2 mil seguidores, que se reúnem periodicamente para debater o noticiário. E já escolheram um novo slogan para ele: “O primeiro jornal tablet do mundo”.
Ibope é difícil.” A análise vem de uma sala que fica junto à newsroom da Record News. Para conversar com Ailton Mineiro Nasser, Chefe de Redação, é preciso fechar a porta de vidro. É a única forma de o trabalho lá fora não atrapalhar o papo de dentro e vice-versa. Com 20 anos de empresa, ele ajudou a implantar o canal e há um ano está à sua frente. “A Record News deve ser comparada a outros segmentados, como a MTV, que tantas vezes já superamos em audiência. Estamos reformulando para agregar conceito e credibilidade, não diretamente audiência. Por isso, trouxemos o Heródoto”, afirma ele. Telejornais devem continuar sendo os carros-chefe da emissora. Hoje, além do Jornal da Record News o canal tem outros noticiosos nacionais como Página 1 e o Record News Brasil. Completam a lista produções que, apesar de serem regionais, são exibidas em rede, caso do Record News Nordeste, feito em Salvador (BA), Record News Paulista, em Araraquara (SP), Record News Sul, em Porto Alegre (RS), Record
Quando o assunto é o futuro, Mineiro evita entrar em muitos detalhes. As mudanças acontecem aos poucos e nesse mercado discrição é palavra de ordem. Além do mais, ninguém quer perder a audiência na classe C, a que mais assiste à tv aberta. Nem as potenciais 20 milhões de parabólicas espalhadas pela imensidão nacional. Território em que o sinal da Record News consegue atingir 75 milhões de pessoas. Uma pesquisa encomendada pela direção da emissora ouviu 1.200 pessoas na Grande São Paulo. Descobriu que quase todas identificavam o canal com o jornalismo, 83% consideravam a programação ótima e 9% boa. Manter esses números é tão necessário quanto ampliar a penetração nas classes A e B. Para tanto, será fundamental não ser mais pesado, mas se tornar mais plural. Esse parece ser um desafio quase histórico, que remete ainda aos tempos da extinta Rede Mulher. E que não se restringe à Record News ou a qualquer outro canal de notícias. É um desafio para toda a televisão brasileira.
Quem opina para o espectador da Record
Popular X profundo
As mudanças na programação da emissora começaram em novembro do ano passado. Além de alterações no design, estrearam quatro novas atrações e foi inaugurado outro estúdio para os programas gravados. Mudanças ainda tímidas e que coincidiram também com as realizadas pelos concorrentes Globo News e Band News. Mesmo agora, as novidades devem ser sentidas gradualmente, mais no horário nobre. A verdade é que a Record News busca aumentar sua audiência junto a outras classes sociais, mas não quer perder o público já consolidado. Assim, mesmo com mais profundidade, o tom leve, popular sem ser polularesco, será mantido. “O novo jornal tem o objetivo de consolidar o modelo de telejornalismo que a Record vem desenvolvendo há alguns anos. O noticiário conversará com o telespectador, com linguagem fácil”, apontou o Vice-Presidente de Jornalismo, Douglas Tavolaro, na entrevista coletiva que apresentou a nova equipe do noticioso. A equação faz todo o sentido com os números que os executivos do canal têm em suas mãos. “Segundo os números do Ibope, apesar de a audiência na televisão aberta da Record News ser pequena na disputa contra outras emissoras, bate de longe seus concorrentes diretos, outros canais só de notícias. Nas oito praças em que é feito o levantamento, ela alcança 54% mais audiência do que a Globo News e quase 800% mais que a Band News”, diz Tavolaro. O problema é que a comparação é difícil de ser feita. Isso porque para calcular a audiência da Record News é preciso somar a tv aberta, em que funciona em UHF, e na fechada. Já a Globo News, Band News, Fox News, CNN em espanhol e outras estão disponíveis apenas na tv paga. “É um grande equívoco nos comparar com emissoras abertas não segmentadas. Queremos avançar, inclusive em faturamento, mas pela natureza do nosso canal, sem futebol, sem novelas e sem sensacionalismo, chegar a dois pontos no
News Centro-Oeste, em Brasília (DF), e Record News Grande São Paulo. Além deles, devem ser feitos novos investimentos em atrações temáticas e programas de entrevista. À noite, no chamado horário nobre, esses gêneros já dominam a grade, com o Entrevista Record, feito a cada dia por um apresentador diferente e com temas que variam de atualidades e cultura a mundo, e depois com o Brasília Ao Vivo, focando autoridades, e Economia e Negócios. Especula-se que Heródoto Barbeiro possa comandar um programa de entrevista, talvez uma nova versão do Roda Viva. Outra coisa que deve ser anunciada em breve é uma parceria com a revista Brasileiros. Claro, a primeira coisa que vem à mente de quem conhece a publicação é a possibilidade de um novo programa com grandes reportagens. Infelizmente, não é isso em que a emissora está pensando. Já há espaço para alguns documentários. A nova parceria deve render mesmo uma atração que envolva entrevistas e debates, quem sabe nos moldes do antigo Manhattan Connection.
São estes os notáveis que fazem as análises do Jornal da Record News. ADIB JATENE - SAÚDE Cirurgião cardiovascular, professor emérito da Faculdade de Medicina da Usp, cientista brasileiro com contribuições originais na área de Bioengenharia e no campo da cirurgia cardíaca, tendo desenvolvido técnicas cirúrgicas reconhecidas internacionalmente. Já foi Secretário de Estado da Saúde de São Paulo e Ministro da Saúde. É Diretor-Geral do Hospital do Coração-HCor e Coordenador da Comissão de Avaliação das Escolas Médicas MecEC-SeSu.
BETH G OULART - CULTURA Atriz, atuou em mais de vinte peças de teatro desde 1974. Ganhou diversos prêmios, como melhor atriz do Prêmio Shell-Rio, por Decadência, de Steven Berkoff, em 2000, e o Prêmio Qualidade Brasil por Somos Irmãs, de Sandra Louzada. Participou de vinte novelas, especiais de tv e minisséries. Atualmente faz parte do elenco da novela da Record Vidas em Jogo, de Cristianne Fridman.
BRUNO MOTTA - HUMOR Ator e publicitário, começou como comediante stand up em 1998, no Prêmio Multishow de Bom Humor, do qual foi um dos cinco vencedores. Um dos pioneiros em stand up no Brasil, durante dois anos participou do núcleo de humor da MTV. É apresentador de
Improvável, webserie de improviso e humor com mais de 150 milhões de visitas. Seu canal particular de vídeos no YouTube está entre os 15 mais vistos e assinados do mundo.
COSME RÍMOLI - ESPORTE Trabalhou 22 anos no Jornal da Tarde. Começou com seu blog no Uol no início de 2009 e em sete meses teve mais de 11 milhões de acessos. Cobriu as últimas cinco Copas do Mundo, cinco Eliminatórias para a Copa, quatro Copas América e dezenas de finais entre Libertadores, Brasileiros e Campeonatos Paulistas. Atualmente, seu blog está no portal R7.
DAVID UIP - SAÚDE Médico Infectologista, é diretor técnico do Instituto de Infectologia Emilio Ribas. É professor livre docente e professor Titular do Departamento de Clínica Médica da FUABC. Foi DiretorPresidente da Fundação Zerbini, Diretor-Executivo do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP e assessor especial do Estado de São Paulo no Governo Mário Covas. Coordenador do Programa de AIDS e Endemias de Angola. Comentarista de saúde.
tornou-se colunista de televisão, cargo que ocupou até setembro de 2009.
NIRLANDO BEIRÃO Cientista social e jornalista desde 1967, tem oito livros publicados. É um “senhor revista”, tendo participado do lançamento de Caras, IstoÉ, Senhor, Forbes Brasil, Wish Report e agora do relançamento de Status. Trabalhou ainda para Veja, Playboy, O Estado de S. Paulo e CartaCapital. Hoje, é também Diretor-Adjunto da revista Brasileiros.
RICARDO KOTSCHO Jornalista desde 1964, trabalhou em praticamente todos os principais veículos da imprensa brasileira, nas funções de repórter, editor, chefe de reportagem e diretor de Redação. Foi correspondente na Europa nos anos 1970 e exerceu o cargo de Secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República no Governo Lula, no período 2003-2004. Tem 19 livros publicados, entre eles, Do Golpe ao Planalto - Uma Vida de Repórter. Um dos fundadores da revista Brasileiros, criada há quatro anos, atua também como repórter especial da publicação.
DANIEL CASTRO - CULTURA Jornalista e blogueiro do R7, trabalhou no Notícias Populares e na Folha de S. Paulo. Em julho de 2000,
ROBERTO MACEDO Economista pela Usp com mestrado e doutorado em Harvard. É articulista do jornal
O Estado de S.Paulo, consultor nas áreas de Economia e Ensino Superior e professor associado da Fundação Armando Álvares PenteadoFaap. No Governo Federal, exerceu os cargos de Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e Presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas-Ipea.
RUBENS EWALD - CINEMA Com mais de 40 anos de profissão, foi o primeiro a escrever sobre filmes na tv, sobre vídeo, depois sobre dvd. Hoje, tem um blog no R7. Também é conhecido como o Homem do Oscar, depois de comentar 25 vezes a festa para o Brasil. Já trabalhou nos principais órgãos de imprensa do Brasil e emissoras de televisão. É autor de 30 livros , entre eles Dicionário de Cineastas, editado pela primeira vez em 1977. Também escreveu telenovelas, como Éramos Seis, foi ator e roteirista de cinema. Professor de pósgraduação da Faap.
CHRISTINA LEMOS É jornalista em Brasília. Especializada em política, testemunhou os principais acontecimentos da vida pública dos últimos 20 anos na esfera federal. É repórter especial do Jornal da Record e comanda o programa de entrevistas diário Brasília ao Vivo, na Record News.
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FRANCISCO UCHA
DEPOIMENTO
Depois de deixar a CBN e a TV Cultura, um dos apresentadores mais conhecidos do rádio e da televisão chega à Record News para realizar um novo projeto em jornalismo multimídia. POR F RANCISCO U CHA E M ARCOS S TEFANO
Uma das últimas mudanças a agitar o jornalismo brasileiro aconteceu no mês de fevereiro. O apresentador Heródoto Barbeiro trocou a Rádio CBN e a TV Cultura, duas emissoras em que fez história e nas quais se tornou um dos rostos e uma das vozes mais marcantes da imprensa, pelo emergente canal de notícias Record News. Para muitos, algo surpreendente, já que o jornalista foi um dos fundadores da rádio e chegou ao posto de Diretor do Sistema Globo de Rádio, em São Paulo. Também porque estava à frente daquele que é talvez o mais importante programa de entrevistas da televisão no Brasil, o Roda Viva. Ainda mais quando se leva em conta que sua nova missão não é nada simples, já que sua nova casa ainda busca afirmação com o aumento da audiência. A notícia espantou fãs e público. Porém, para quem conhece a trajetória de Barbeiro, não se trata de nenhuma novidade. Filho de operário, Heródoto cresceu na Baixada do Glicério, região central da Cidade de São Paulo, em meio a manifestações comunistas, protestos sindicais e muita agitação. Desde cedo, aprendeu a
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fazer jornalzinho escolar, improvisando um mimeógrafo com a assadeira da mãe. No entanto, já adulto, decidiu que sua vocação era lecionar. Até cursou Direito e abriu escritório com o pai, mas preferiu fazer História e seguir a carreira acadêmica, como professor em escolas, cursinhos e na Universidade de São Paulo-Usp. Ao todo, foram 25 anos ensinando História Contemporânea. Heródoto deixou de falar e escrever no passado para usar os verbos do presente por imposição legal. Ainda nos anos 1970, depois de ser comentarista na TV Gazeta, começou a trabalhar na Rádio Jovem Pan, mas foi avisado de que, se quisesse continuar, precisava do diploma em jornalismo. O que para a maioria seria o fim precoce de uma carreira ou, no mínimo, uma grande tortura, para ele se tornou um prazer. Voltar aos bancos escolares era sempre uma alegria para ele. Tanto que chegou a cursar japonês na universidade para viver melhor sua fé, como monge budista leigo. Dessa vez, foi fazer Jornalismo na tradicional Faculdade Cásper Líbero. Não rompeu com a car-
reira docente de uma hora para outra. A transição foi gradual. Só parou de lecionar quando não foi mais possível conciliar as duas coisas. Mas o País não perdeu um professor. Apenas amplificou sua voz, para que pudesse falar não mais para centenas, mas para milhares. Na entrevista que concedeu ao Jornal da ABI, já nos estúdios da Record News, Barbeiro contou histórias curiosas e inusitadas sobre sua caminhada, falou sobre as expectativas em relação ao novo trabalho, religião, sua paixão por kombis e fez revelações. Apesar de ser um dos mais renomados profissionais da imprensa brasileira, o jornalismo em sua vida é apenas um acidente, o Roda Viva trazia grandes entrevistados, mas era muito difícil de se fazer e, mesmo com tantas especulações sobre seu futuro na nova emissora, ele não teme falta de liberdade editorial por conta do histórico de disputas entre a Igreja Universal do Reino de Deus e diversos veículos de imprensa. “Está tudo em contrato. Se não tivesse liberdade, não teria vindo.”
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nal e o distribuíamos na escola. Só depois passamos a usar um mimeógrafo da marca Gestetner, fabricado na Alemanha Oriental, na sede do PCB.
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JORNAL DA ABI – VOCÊ FOI FILIADO AO PCB? Heródoto – Não, mas tinha bom relacionamento com o pessoal. Com o Partido aprendemos a fazer críticas à escola, à Secretaria de Educação. Chegávamos mais cedo no colégio e colocávamos o jornal debaixo das carteiras de todo mundo. Quando o pessoal entrava, encontrava a publicação. Essa foi a primeira experiência e, depois dela, segui a carreira de professor. Dei aula por 25 anos – 12 na Usp –, e só estudei para ser professor. O jornalismo na minha vida foi um acidente que ocorreu um pouco mais tarde.
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Em 1955, em frente à borracharia do pai, Heródoto faz pose agachado ao lado esquerdo do irmão Hipócrates. Junto com eles estão vários vizinhos. Abaixo, aos 8 anos, como aluno do segundo ano da Escola Nossa Senhora da Paz, em 1954, ano do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
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dão e na seguinte a Última Hora. Quem não trouxesse não ficaria na aula. De cara, metade não tinha trazido o jornal e mandei todos para fora. Quando acabou a aula, a coordenadora me esperava na porta. Ali ninguém era mandado para fora. Por pouco, quem não ia embora era eu. Mas mantive o método. Na outra semana 80% tinham o jornal. E, aos poucos, o pessoal passou a entrar na escola com o jornal debaixo do braço, para mostrar que estava lendo. Virou hit, todo mundo queria jornal. Essa é a minha outra ligação com a mídia. No cursinho, toda santa aula eu dizia para os caras: “Vocês estão lendo jornal? Não dá para explicar coisas do passado se vocês não sabem o que está acontecendo agora. Se vocês querem passar no vestibular, têm que ler jornal”. Eu achava que era uma forma não só de eles aprenderem um pouco de História, mas principalmente de se integrarem dentro do mundo em que viviam. JORNAL DA ABI – MAS O CURSINHO SERVIU
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Heródoto – Eu era professor de História Contemporânea, tanto que adotei um método de aula baseado na leitura do jornal. Numa situação daquelas viradas da vida, perdi todos os meus empregos e fui parar num colégio mais elitista em São Paulo, o Pueri Domus. Sempre dei aula em faculdade e cursinho, mas foi a primeira vez na vida que eu fui lecionar no ensino básico e no médio. Era um curso de educação política e a diretora me perguntou que material didático eu usaria. Quando disse que era só o jornal, ela se espantou. Na sala, avisei que uma semana usaríamos a Folha de S. Paulo, na outra o Esta-
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JORNAL DA ABI – SERÁ QUE FOI UM ACIDENTE MESMO?
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JORNAL DA ABI – COMO ERAM ESSES PRIMEIROS JORNAIS QUE VOCÊ FEZ? Heródoto – Meus amigos eram todos ativistas políticos. Aprendi a fazer um jornalzinho colocando uma gelatina dentro de uma assadeira de bolo. Escrevia o texto no papel carbono e o colocava na gelatina. Aí era só ir colocando folhas em branco em cima. Funcionava como um carimbo. Eu e meu irmão fazíamos o jor-
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JORNAL DA ABI – VOCÊ JÁ DECLAROU QUE COMO SE TORNOU UM? Heródoto – Bem, minha ligação com a imprensa vem da infância. Sempre estudei em escola pública, e quando entrei para a faculdade, com 20 anos, eu precisava trabalhar. Fui dar aula na mesma escola onde eu tinha estudado, lá na Baixada do Glicério, que era uma escola paroquial. Foi o meu primeiro emprego, como professor de Inglês, porque à noite eu estudei na União Cultural BrasilEstados Unidos. Na época, eu já tinha sete anos de curso de Inglês. A Secretaria da Educação fazia um exame, e se você passasse, eles lhe davam uma autorização precária para dar aula. Recebi essa autorização e comecei dando aula de Inglês. Dali, passei a trabalhar no Madureira, o Supletivo. Nessa altura, não pensava em ser jornalista, ainda que já tivesse feito jornais. Eu morava no Parque Dom Pedro II. Ali tinha a sede do Partido Comunista e de várias centrais sindicais. Meu pai tinha um bar por ali e, quando havia greve e manifestação de operários, chegava a Meganha – a Meganha era a antiga força pública. Todo mundo corria para dentro do bar. Eu devia ter uns 10 anos de idade. Junto com meu pai e minha mãe nos escondíamos atrás do balcão; o resto apanhava de borracha.
NÃO PENSAVA EM SER JORNALISTA.
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mecânico e office-boy – na época não havia motoboy, eu era office-boy e fazia serviços para os comerciantes da região do Centro velho. Conheci muito o Centro velho, de andar por ali entregando correspondência. Fiz todo tipo de trabalho manual, minha família era pobre e eu tinha que ajudar – éramos cinco irmãos. Na Baixada do Glicério tinha um chalé de jogo do bicho, obviamente proibido. Às tardes, aquilo virava um jogo paralelo de cavalos. Era de grupo, fora da lei, e eles alugaram o último andar de um prédio e botaram portas de aço para a Polícia não atrapalhar. Alugavam os telefones dos vizinhos, porque todos os jogos eram passados por telefone. E quem fazia as ligações? Eu. Eu entrava no chalé, quando já estavam todos os bookmakers sentados e mexia nas linhas telefônicas, no forro do prédio. Um dia chegou a Polícia, com um machado para derrubar a porta e pegar todo mundo. Derrubaram a primeira, mas a segunda era de aço. Demoraram e deu tempo para os caras apagarem tudo, queimarem documentos e não deixar nenhum vestígio. E eu desci pela lateral do prédio de três andares, pelo lado de fora. Como todos os fios telefônicos passavam por ali, pendurei-me neles e caí fora.
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JORNAL DA ABI – COMO FOI A SUA INFÂNCIA? Heródoto – Meu pai foi roceiro no interiorzão até os 17 anos de idade, quando fugiu do sítio do meu avô para a casa do irmão dele, e depois veio para São Paulo. Meu pai foi operário numa fábrica de metalurgia em São Paulo, que existe até hoje, chamada Indústria Aliança, que faz trincos etc. Encontrou a minha mãe aqui; ela também vinha do interior, de Dois Córregos, e trabalhava numa fábrica de botão. Então, meus pais eram operários. Depois disso, meu pai começou a estudar porque os irmãos dele começaram a bancá-lo, com 17 anos de idade. Ele comprou um bar na região da Baixada do Glicério, em frente ao quartel do Parque Dom Pedro II. Na época não era uma região tão deteriorada quanto hoje, mas já era uma região de operários. Eu fui educado nesse lugar. De dono de bar, meu pai virou dono de oficina mecânica e borracharia, e eu comecei a trabalhar com ele aos 14 anos de idade. Então, fui borracheiro,
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JORNAL DA ABI – VOCÊ FICOU 28 ANOS NO SISTEMA GLOBO DE RÁDIO. A PONTO DO JUCA KFOURI FALAR QUE A RÁDIO CBN E HERÓDOTO BARBEIRO ERAM SINÔNIMOS. MEXE CONTIGO? E EM RELAÇÃO À TV CULTURA, VOCÊ ESTAVA DESGASTADO? Heródoto – É que ele foi meu aluno no cursinho, mas é mais velho do que eu (risos). É uma brincadeira. Mas estou com 65 e entendi que era hora de novos desafios. Em relação à Cultura, trabalhei 22 anos lá. A primeira vez que eu passei na emissora, ainda quando trabalhava na Jovem Pan, passava um programa chamado Vox Populi, sem apresentador. Ou seja, o entrevistado falava diretamente com a câmera. Nos últimos seis meses, eles resolveram colocar um apresentador e me convidaram e eu fui, como frila. Isso foi antes de eu trabalhar no SBT. Depois que saí do SBT, fui pedir emprego na Cultura para o Jorge Costelli, que era diretor de telejornalismo. Trabalhei no Jornal da Cultura, apresentado pelo Rodolfo Konder, como comentarista, editor, editor de reportagem, repórter, repórter de link, redator e depois apresentei alguns programas, como o Cesta Básica, Opinião Nacional, em duas oportunidades o Roda Viva, e o que eu mais fiz lá foi o Jornal da Cultura. Também saí de lá em busca de novos desafios.
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JORNAL DA ABI – VOCÊ DEIXOU O SISTEMA GLOBO DE RÁDIO, A TV CULTURA E VEIO PARA A RECORD NEWS. COMO É QUE FOI ESSE DESAFIO? Heródoto Barbeiro – Eu vim fazer parte de uma equipe que está construindo mais um espaço de jornalismo ao lado de outros bons espaços que a gente tem. Acho que é um desafio que qualquer jornalista gostaria de ter, qualquer um que tivesse sido convidado gostaria de fazer. Eu tenho no meu contrato: liberdade editorial, possibilidade de abrir mais espaços, comentaristas respeitados e isentos, pessoas que não estão em outras mídias eletrônicas, ou seja, nós estamos contribuindo para a diversidade. Então, qualquer jornalista toparia.
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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
DE PONTE PARA SUA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA NA TELEVISÃO, CERTO?
Heródoto – Foi no Objetivo da Avenida Paulista. Na época, só havia aulas para Medicina e o Dráuzio Varella me convidou para fazer aulas de revisão. Por esse tempo, eles importaram uns equipamentos de televisão, coisa que ninguém tinha, e montaram num local pelo qual eu passava todo dia. Não tinha como não ver. Curioso, procurei um diretor para saber do que se tratava. Ele disse que pretendiJornal da ABI 367 Junho de 2011
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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
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Heródoto – Minha mãe era católica praticante, tanto que fiz a pré-escola na Escola Paroquial Nossa Senhora da Paz. Meu pai era absolutamente ateu, porque o pai dele, de origem portuguesa, era chamado de marrano em Portugal, um tipo de cristãonovo que não era nem católico nem judeu. Meu pai não teve formação religiosa e eu cresci católico por causa de minha mãe, fui
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JORNAL DA ABI – QUANDO O BUDISMO ENTROU EM SUA VIDA?
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Heródoto – Não, ainda nem pensava em viver do jornalismo. Eu fiz esse curso porque precisava do diploma. No momento em que você se matriculava, você tinha tam-
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JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA VOCÊ JÁ ESTAVA DECIDIDO A MUDAR DE LADO?
JORNAL DA ABI – COMO FOI SUA ROTINA NA CASPER LÍBERO? VOCÊ IA TODOS OS DIAS À AULA? Heródoto – Ia, pois eu trabalhava naquele prédio. Para mim era uma moleza. Eu começava às 6 horas da manhã na Jovem Pan. Saía às 9 e ficava no cursinho até às 13 horas. Algumas vezes, dava aulas na Usp, no período da tarde, e voltava à Cásper, à noite. Era pós-graduado, mas nunca tive dedicação de tempo integral, sempre parcial.
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Heródoto – Por volta de 1975, quando entrei na Faculdade Cásper Líbero, tive a grata surpresa de perceber que 90% da sala de aula já era composta por jornalistas formados, pessoas experientes e que já trabalhavam em veículos de comunicação. Eu era o único foca, sem experiência nenhuma, a não ser um pouco da Gazeta e da Jovem Pan. Lá, eu encontro repórter especial do Estadão, o Getúlio Bittencourt, encontro Maria Adelaide Amaral, encontro Carlos Costa, hoje professor da própria Cásper e na época editor-chefe da Playboy. Esses caras foram meus colegas. Então, imagine como se aprende ao estar numa sala dessas. Eu via a dificuldade dos professores para dar aula para esses caras, era um fuá. O Gaudêncio Torquato brigava todo dia, porque ele abria a boca e chovia discussão na sala de aula. Aprendi muito naquele dia-a-dia.
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JORNAL DA ABI – FOI TAMBÉM UMA INFLUÊNCIA PARA CURSAR JORNALISMO?
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pois fez Direito. Era aquele cara que entrava na sala e dava esporro no juiz, dizendo quando estava falando bobagem.
Heródoto – Eu passei a fazer uma coluna de política chamada Ponto e Contraponto na Gazeta de Pinheiros, a escrever artigos também para outros jornais e a receber melhor. A transição foi mesmo em 1992, quando já tinha muita coisa para fazer na área de jornalismo, e tive que diminuir a quantidade de aulas. Eu fui parar na UniSantana, para dar aula de História do Pensamento Econômico. Estava com oito aulas, diminuí para quatro, pois gostava daquilo e, por fim, parei. Não agüentava mais o ritmo, pois eram aulas noturnas.
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bém uma autorização “precária”, e eu me filiei no Sindicato dos Jornalistas, porque também podia, lá na Rua Rego Freitas. Minha atividade, o meu ganhapão era dar aula, e eu precisava porque tinha a minha família, ajudava meus irmãos. Eu vivia de dar aula, mas fui conciliando.
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JORNAL DA ABI – VOCÊ É ADVOGADO? Heródoto – Tive escritório com meu pai. Ele era um homem simples, que veio da roça e virou advogado depois de velho. Sempre me incentivou a estudar. Inclusive, fiz dois anos de japonês na Usp por conta dessa influência. Minha mãe era semianalfabeta. Tinha habilidade com coisas práticas, mas nenhuma cultura acadêmica. Meu pai também era um cara simples, mas apaixonado pelas letras. Gostava tanto da História da Grécia que aprendeu a ler grego e latim e deu aos filhos nomes de gregos: um se chama Hipócrates, o outro Teofrasto, o outro Aristóteles... (risos). Os autores dele eram Eça de Queirós, Padre Vieira, Camões... só clássicos. Ele sabia partes inteiras de Os Lusíadas de cor. Um autodidata que só de-
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JORNAL DA ABI – POR QUÊ? Heródoto – Fiquei intimidado, não sabia como funcionava. Lá tinha o Joseval Peixoto, que hoje está no SBT; o Franco Neto, que é um monstro da locução; o [Antonio] Del Fiol, outro monstro da locução; e um cara que eu aprendi a admirar muito, o pai do Emerson Fittipaldi – o Barão Fittipaldi. Era uma mesa comprida, uma bancada, e eu fui aprendendo com eles. Em certa altura , o departamento de Recursos Humanos da empresa disse que tinha que ter diploma de Jornalismo. Eu era formado em História e Direito, com registro na OAB, pós-graduação, mestrado, mas não tinha o bendito diploma.
até coroinha na Igreja de São Gonçalo, na Praça João Mendes. Na juventude, com a influência de muitos colegas comunistas que eram ateus, aos poucos eu passei a ser crítico da Igreja Católica, a religião era “o ópio do povo”. Parei definitivamente de ir à igreja por causa da amizade com um rapaz que era neto de um dos primeiros líderes operários do País, chamado Edgard Leuenroth, lá na década de 1930. Virei anarquista, freqüentando as reuniões no Brás, na Rua Rubino de Oliveira, 555. Na escola, quando tinha aula de religião, só ia para brigar com o padre.
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Heródoto ao lado da esposa Walkiria e do jornalista Márcio Bernardes (de branco) e do locutor esportivo Oscar Ulisses durante a entrega do Prêmio APCA de Jornalismo, em 1988, quando trabalhava na Rádio Excelsior (ao lado).
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JORNAL DA ABI – FICOU BOM? Heródoto – Quebrou o galho durante seis meses. Depois, chegou uma equipe profissional da Record que eles haviam contratado para produzir o tal telecurso. Aprendi muito com eles e gravei 30 horas sobre História do Brasil. Recentemente, eles me deram uma aula gravada sobre política externa no Segundo Reinado. Eu estou de cabelo comprido, foi o maior sarro. Bom, no mesmo prédio funciona a TV Gazeta e um dia eu me encontrei com o Marco Aurélio, um dos diretores da emissora. Sabendo do que estava acontecendo, ele me perguntou se eu não queria participar de um programa da casa. Minha tarefa seria comentar as notícias junto com outros professores de cursinho em uma atração chamada Show de Ensino. Logo comecei a apresentar o programa e a participar também de outros. Depois, recebi convite para trabalhar como comentarista na Rádio Jovem Pan, na área de política internacional. Nunca tinha entrado num estúdio de rádio na vida; no primeiro dia, não consegui fazer nenhum comentário.
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am gravar aulas para um telecurso. Como o projeto era só para o outro ano, o equipamento já estava em funcionamento e o intervalo era de 40 minutos, propus fazermos um jornalzinho para os alunos. Quem faria? Eu mesmo, afinal, era professor de História Contemporânea. Assim, entrava no estúdio ao lado de um câmera man e fazia tudo sem ganhar nada e sem qualquer orientação.
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DEPOIMENTO HERÓDOTO BARBEIRO
JORNAL DA ABI – DEVE TER ARRUMADO CONFUSÃO COM A FAMÍLIA...
Heródoto – Minha mãe dizia que eu não ia progredir, que isso era contra Deus. Ela ficava louca da vida. Meu pai lavava as mãos, porque não acreditava em nada. Foi nessa situação que, com 21 anos, eu conheci na Usp um professor catedrático chamado Ricardo Mauro Gonçalves, de História Oriental. Naquela época, você podia escolher uma ou duas cadeiras optativas e eu escolhi História Oriental por ter morado ao lado de um bairro oriental. Muitos dos meus amigos de infância eram japoneses e eu vivia na casa deles. Já fazendo o curso, descobri que o Ricardo era monge da comunidade Soto Zenshu, na Liberdade. E um dia ele me perguntou se eu não queria dar umas aulas particulares de Inglês. Fui e conheci a esposa do superior do templo. Ela queria dar aula de ikebana (arranjos florais) para a esposa do cônsul britânico, mas não sabia inglês. Queria aprender pelo menos o bê-a-bá. Só que ela não falava português, só japonês (risos). Acabei não dando as aulas, mas já que estava ali comecei a fazer perguntas ao Ricardo. Descobri que se tratava de um templo budista da comunidade japonesa, que não havia brasileiros. Ele era o único porque, quando criança, foi adotado como filho pelo superior do templo. Falava fluentemente japonês, chinês, sabia tudo, era e é um gênio. Eu entrei naquela sala enorme chamada zendro, sala de meditação. “E aquele magrinho, quem é?”, eu perguntei. “Aquele é o Buda”, respondeu. “Mas Buda não é o gordão?” “Não, Buda é esse; aquele gordão é um cara que vem do Panteão japonês.” Não tinha reza, missa, só sessão de meditação, no sábado à noite. Fiquei interessado, mas sábado era dia da balada (risos). “Se você quiser vir, venha; se não quiser, não venha”, ele disse. Fui. Quando cheguei, não sabia o que fazer. Sentei virado para a parede branca por dois períodos de meia hora. “Mas vou meditar sobre o quê?”, perguntei. “Isso é problema seu”, disse o Ricardo. Começou a meditação e ele, com os paramentos de monge, com uma vara comprida na mão, andava pela sala e batia com aquilo na pessoa. Em vez de olhar para a parede, ficava observando isso. Na segunda parte, o superior, sentado imóvel na frente, começou a fazer uma palestra sobre a doutrina do budismo, em japonês. O Ricardo traduzia, simultaneamente, para o português. Terminou, mas tinha um chá verde que eu nunca tinha tomado – o
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na FM. E é assim até hoje. Uma mesa ficava ao lado da outra, trabalhando como se estivessem em cadeia. Cada uma com seus anunciantes comerciais e uma janela de cinco minutos reservada para tanto. Mas separadas, nunca preenchiam o tempo. Assumi a responsabilidade e juntamos as janelas. O rapaz do comercial veio na minha sala, apontou para mim e falou o seguinte: “Se nós perdermos faturamento, você vai ser responsabilizado”. Eu expliquei que ninguém ia sair; se a gente estava dando dois canais pro cara, por que ele iria sair? É aquela dificuldade de achar que AM é diferente de FM, aquele ranço do passado. Provamos para as agências de publicidade: o problema não era de ordem técnica, apenas comercial. E o faturamento disparou.
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GUIR COISAS EXCLUSIVAS, INFORMAÇÕES DE BASTIDORES, E O JORNALISMO INVESTIGATIVO DELA CONSEGUE MUITAS VEZES TER ACESSO À INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA COM MAIS FACILIDADE.
COMO VOCÊ VÊ ESSE TRABALHO? Heródoto – Eu acho que a gente tem que se ver sempre do lado do público, se é bom para o público. Eles cobrem, fazem notícia e divulgam, então eu acho ótimo. Por exemplo, pegue a Folha de S. Paulo, talvez o mais importante jornal impresso do País, no caso das denúncias contra o Palocci. Não foi ela que começou com isso? É uma coisa ruim? Eu acho que não. JORNAL DA ABI – A QUESTÃO É, QUANDO HÁ
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JORNAL DA ABI – POR SER LÍDER, A GLOBO TEM UMA FACILIDADE MUITO GRANDE EM CONSE-
DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADAPARA UM VEÍCULO, OS CONCORRENTES PODEM RECLAMAR...
Heródoto – Eu acho que em vez de reclamar do termômetro devemos olhar a febre. Eu acho que isso demonstra competência. Acho que a gente tem que se esforçar para ser tão bom quanto eles. O público só tem a ganhar com isso.
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Heródoto – Quando o projeto ficou pronto, eu encontrei com o José Roberto Marinho e ele disse que estava pronto para botar no ar. A proposta era colocar na AM 780. Mas por que não tentar na FM? Seria o nosso grande diferencial competitivo. Quando a discussão chegou à diretoria, a confusão foi enorme. Não passava pela cabeça de ninguém que jornalismo poderia ser feito em FM. Rádio falada era em AM. FM era rádio musical. Mas eu insisti e fiquei quatro anos enchendo o saco. A CBN começou no 780 da AM e foi para a FM quando um canal chamado Rádio X, do qual eu era gerente de jornalismo, mudou o diretor. O faturamento estava no vermelho e a emissora sairia do ar. Quando eu soube, corri na sala do cara, aqui em São Paulo, e perguntei se podia colocar a CBN durante três meses até encontrarem uma nova programação. O pessoal do departamento técnico queria brigar comigo, mas colocamos a mesma programação da AM
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JORNAL DA ABI – QUANTO TEMPO DEMOROU PARA O PROJETO DA CBN DAR CERTO?
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JORNAL DA ABI – E AGORA, COM A INTERNET E AS MÍDIAS SOCIAIS, A POSSIBILIDADE DE INTERAÇÃO SE TORNA BEM MAIOR... Heródoto – Essa confluência de mídias nos está dando a oportunidade de protagonizar algo inédito no jornalismo brasileiro: fazer o primeiro telejornal transmídia. No Jornal da Record News estamos simultaneamente na televisão e internet, mas a nossa internet abre dez minutos antes e fecha quinze minutos depois da televisão. E outra coisa: como estamos na internet, podemos ser vistos no mundo inteiro. E eles desenharam uma página onde você vê o jornal, e já tem o Facebook, o Twitter, e link para e-mail... não precisa abrir nada. Nossa interatividade é total, porque não estamos fazendo jornal de televisão aqui. Estamos fazendo jornal de televisão e internet simultaneamente, se a gente for por esse conceito.
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Heródoto – Como disse, primeiro foi uma decisão da empresa. Mas eu já vinha desenvolvendo um projeto assim na Rádio Excelsior, por encomenda da diretoria da empresa. O Sistema Globo tomou a decisão de iniciar uma nova emissora, juntaram várias pessoas sob o comando do José Roberto Marinho, que foi quem liderou o processo, e criamos a CBN. Fui com ele na DM9 para escolher o nome. Quando você falava radio on news, olhava mais para as rádios americanas, porque o movimento da segmentação eletrônica aconteceu primeiro nos Estados Unidos. Em São Paulo havia três rádios jornalísticas – Jovem Pan, Eldorado e Bandeirantes –, mas que eram parte jornalística e parte talk show ou talk radio. Os concorrentes eram muito bons e precisávamos de um diferencial. Como os concorrentes faziam jornal apenas de manhã e no fim da tarde, queríamos aproveitar também os outros períodos e durante toda a semana. A inspiração veio da CNN, que na época estourou no Brasil por causa da Guerra do Golfo. Aliás, o nome CBN deixa isso claro. Quando entrevistei o Pete Arnold, repórter da CNN, para o Roda Viva, perguntei como tinham sido suas transmissões durante os ataques a Bagdá. Ele respondeu que trabalhava para a CNN TV, mas fez CNN Rádio, porque teve um blecaute quando começou e ficou narrando no escuro durante todo o ataque. As pessoas não conseguem perceber a diferença conceitual entre rádio e televisão; acham que rádio é o equipamento que tem botãozinho e a televisão é aquele que aparece imagem. Eu ouço rádio hoje num equipamento que não tem botão, o computador da minha sala. E quando
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JORNAL DA ABI – E COMO SURGIU A IDÉIA DE FAZER UMA RÁDIO SÓ DE NOTÍCIAS?
entra um repórter em nossa programação, só com a foto e ele falando ao telefone, aquilo é rádio e não televisão. Nós, jornalistas, fazemos confusão: aquilo que é comunicação só de áudio, não importa o aparelho doméstico, é rádio. Se eu precisar da imagem para entender a mensagem, é televisão. Pegue o programa da Ana Maria Braga e tira a imagem, você vai ver que boa parte do programa dela é narrativo – é rádio. Por quê? Porque é dirigido para a dona de casa, e a dona de casa não pode ficar sentada na frente da televisão, ela está trabalhando, ouve o programa e de vez em quando dá uma olhada. Por isso que eu respondi que eu faço jornalismo, eu não faço rádio ou televisão.
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JORNAL DA ABI – HÁ 20 ANOS SURGIU A CBN. COMO COMEÇOU ESSA HISTÓRIA? Heródoto – Trabalhei nas empresas do Grupo Globo por 28 anos. Entrei na tv para cobrir férias e fiquei. Trabalhei na Rádio Globo, na Rádio Excelsior, na Rádio Rural. Fui gerente de jornalismo, diretor de jornalismo do Sistema Globo de Rádio, diretor substituto regional, aprendi gestão, área comercial, marketing, coisa que não sabia. No meio disso tudo, houve a decisão da empresa de abrir uma nova rádio e fui um dos redatores do projeto da CBN.
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KOMBI. ISSO SIM É VIVER NO FIO DA NAVALHA... VOCÊ GOSTA DE KOMBI MESMO? Heródoto – Como gosto! Meu pai teve oficina um tempo e comprou uma Kombi. Era um carro grande, de socorro, que podia levar todas as ferramentas. Quando parei de trabalhar com isso, meu irmão, que também gostava de Kombi, pro-
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JORNAL DA ABI – VOCÊ TAMBÉM COMENTOU UMA VEZ QUE ANDAVA A 120 KM POR HORA NUMA
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JORNAL DA ABI – POR QUANTO TEMPO VOCÊ TRABALHOU NA JOVEM PAN? Heródoto – Sete anos. Depois, fiquei outros dois anos no SBT. Na Jovem Pan, eu fiz reportagem de helicóptero, tinha tirado brevê. Convidava meus colegas para dar uma volta de avião no aeroclube. Fui dar aula no Objetivo, em Ribeirão Preto, pilotando. Dividimos a grana com mais três e fomos. Sempre andei assim, no fio da navalha.
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Heródoto – Não acho que fiz rádio e televisão; eu faço jornalismo. Aprendi que o jornalismo é jornalismo em qualquer das plataformas. Além de rádio e televisão, tive coluna em jornal, o Diário Popular, que depois virou Diário de S. Paulo, por uns sete anos. Fiz jornalismo em cima das características técnicas de cada uma das plataformas. Agora também estou na internet. Sinto-me confortável em qualquer uma, o importante é sentir a repercussão do público. Por exemplo: de manhã as pessoas estão muito mais disponíveis para ouvir do que ver, então o confortável de manhã é fazer rádio. À noite, o cara senta na poltrona para ver televisão, então ao fazer jornalismo à noite, na televisão, você tem uma maior resposta do público.
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JORNAL DA ABI – VOCÊ FEZ RÁDIO E TELEVISÃO. QUAL É O SEU PREFERIDO?
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pôs que a gente comprasse uma, meio a meio. Compramos uma e não paramos mais. Quando ele desistiu, eu continuei. Tenho uma propriedade em uma área de reserva ambiental de Mata Atlântica, na Serra do Mar, e como as estradas são de barro, prefiro ir de Kombi.
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Heródoto – Sim, a base do budismo é a meditação e eu faço nos buracos do dia. Não precisa nem estar sentado, nem raspar o cabelo, nem colocar um manto amarelo, que é muito mais hábito de outras culturas. Escrevi um pequeno livro sobre o budismo chamado Buda: Mito e Realidade. Quando você estuda religião, o budismo aparece, mas não é esotérico, não tem esse conceito de um deus criador do céu e da terra. Não tem conversão, proselitismo. Eu diria mais, que o budismo é um way of life, por ser classificado como um sistema religioso, mas não monoteísta como são o cristianismo, o judaísmo, o islamismo.
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JORNAL DA ABI – VOCÊ CONTINUA FREQÜENTANDO?
“EU FIZ REPORTAGEM DE HELICÓPTERO, TINHA TIRADO BREVÊ. CONVIDAVA MEUS COLEGAS PARA DAR UMA VOLTA DE AVIÃO NO AEROCLUBE. FUI DAR AULA NO OBJETIVO, EM RIBEIRÃO PRETO, PILOTANDO.”
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bancha –, sem açúcar, um negócio horroroso. Perguntei se ele não me daria uns livros para ler, doutrina, catecismo. Ele explicou que não, porque o ensinamento do zen não se traduz oralmente e nem por escrito. Eu só aprenderia indo lá. Aquilo para mim foi um desafio: como aprender sem ninguém para ensinar? Continuei para desafiar aqueles caras, mas acabei ficando e por muitos anos. Recebi o título de monge leigo, o nome de um patriarca da comunidade, Gento Ryotetsu. Hoje sou um budista independente.
JORNAL DA ABI – O QUE SIGNIFICOU PARA SUA CARREIRA DE JORNALISTA COMANDAR UM DOS PRINCIPAIS PROGRAMAS DE ENTREVISTAS DA TV BRASILEIRA, O RODA VIVA? COMO LIDAVA COM ENTREVISTADOS MAIS ARREDIOS?
Heródoto – O Roda Viva era um programa muito difícil de apresentar. Além de o entrevistado ficar distante, ele ficava no meio de uma arena, os outros jornalistas convidados, geralmente quatro, ficavam do outro lado da bancada. Assim era preciso uma atenção intensa para dar seguimento ao programa, uma vez que as perguntas nem sempre estavam amarradas umas com as outras. Alguns convidados faziam perguntas muito longas, uma verdadeira tese para contrapor ao entrevistado, especialmente se fosse um acadêmico. Certa vez o convidado era o sociólogo Manuel Castells, autor do livro A Sociedade Em Rede. Ele foi trazido ao programa por Dona Ruth Cardoso, que ficou no bastidor assistindo a entrevista. As perguntas estavam muito longas. No intervalo, falei com os colegas que estávamos em um programa de tevê e não em uma banca de doutorado, e por isso pedia perguntas mais diretas e curtas, Na volta, Jornal da ABI 367 Junho de 2011
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FRANCISCO UCHA
DEPOIMENTO HERÓDOTO BARBEIRO
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Ao lado da apresentadora Thalita Oliveira, Heródoto grava as chamadas do Jornal da Record News momentos antes de entrar no ar. Na internet o programa começa minutos antes para que os internautas possam acompanhar os bastidores das gravações.
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Jornal da ABI 367 Junho de 2011
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faculdades de Jornalismo são necessárias, porque a gente precisa aprender a fazer jornalismo em algum lugar. Se chegar na Redação e pedir para aprender, não vão nem me deixar entrar. Na escola se pode aprender e entender qual é a função social do jornalismo, sua importância para a construção da democracia e a formação de consciência crítica na população. Contudo, um diploma não garante isso. Pelo contrário, algumas escolas são verdadeiros estelionatos educacionais, não formam ninguém, mas dão diplomas. Imagine se para escrever um livro fosse necessário ter diploma do curso de Letras! Creio que, na nossa profissão, o julgamento deve ser apoiado na competência e no conhecimento que se tem dos limites éticos e funcionais do jornalismo. JORNAL DA ABI – A QUALIDADE DO ENSINO DE JORNALISMO NAS FACULDADES PODE SER CONSIDERADA BOA?
Heródoto – Não creio. Boa parte delas fez o essencial virar supérfluo e o supérfluo virar essencial. Como se pode imaginar uma disciplina que ensina alunos a ler o tele prompter, enviar e-mails, ler com voz de locutorzão e não ensina a essência do jornalismo? Tenho ido a muitas escolas para debates e palestras e avalio o que está sendo feito por lá pelo nível das perguntas apresentadas. E a coisa não anda bem...
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Heródoto – Creio que uma boa escola de Jornalismo é importante. Acho que as
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LA SUA VOCAÇÃO DE PROFESSOR. NO BRASIL, HÁ UMA FALTA DE BONS LIVROS NA FORMAÇÃO DOS FUTUROS JORNALISTAS?
Heródoto – Há muitos livros bons, escritos por jornalistas extraordinários como o Cláudio Abramo, Mino Carta, Clóvis Rossi, Ricardo Kotcho, e muitos outros. Há também bons manuais no mercado. O que falta é o comprometimento das escolas com a excelência da qualidade do ensino. Olha que interessante: no momento em que muitas escolas estão esvaziadas por causa do diploma, a ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) abre o curso de Jornalismo com o Eugênio Bucci. Aparentemente, na contramão do que está acontecendo. Não sei quem é que bolou isso lá*, mas alguém viu que, quando se tem uma boa escola, haverá alunos, gente que queira aprender.
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JORNAL DA ABI – VOCÊ É AUTOR DE DIVERSOS MANUAIS SOBRE JORNALISMO, O QUE REVE-
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OPINIÃO SOBRE O ASSUNTO?
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OBRIGATORIEDADE DO DIPLOMA. QUAL É A SUA
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JORNAL DA ABI – VOCÊ DEFENDEU A FORMAÇÃO EM JORNALISMO, MAS QUESTIONOU A
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Heródoto – Sabe por quê? Porque eu sempre lutei por isso. Desde que eu trabalhava na CBN coleciono histórias sobre como a programação foi colocada na in-
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JORNAL DA ABI – E ESSA JUNÇÃO DE MÍDIAS OFERECE AINDA MAIS OPORTUNIDADES PARA ISSO...
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JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ A RELAÇÃO ENTRE A INTERNET E O FUTURO DO JORNALISMO? Heródoto – O jornalismo vai sobreviver na internet só para quem tiver credibilidade. A questão vai ser conteúdo e credibilidade. Se eu não tiver essas duas coisas, posso ter blog, portal, site, dinheiro e ninguém vai acreditar no que eu escrevo. Agora, se eu abro um blog do Noblat, tem credibilidade. O do Luis Nassif tem credibilidade, assim como o da Miriam Leitão. E estão em veículos que não são os tradicionais. No blog do “Zé das Couves”, eu não vou acreditar, posso até ler e ir atrás e apurar para saber se é verdade. Sem credibilidade e conteúdo, vai morrer.
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ternet, coisas que não dá para acreditar. Uma hora eu vou contar essas histórias. Não vou fazer um livro sobre isso, mas estou contando fatos que podem ajudar a esclarecer situações. Sempre lutei para que houvesse integração. Jornalistas têm a obrigação de levantar a cabeça e olhar o que está acontecendo no mundo, mas uma boa parte só olha o umbigo, porque quer manter o emprego, porque quer um lugar na bancada que lhe dê prestígio. Os outros setores também só olham o umbigo: se não der certo, quem é que vai ser responsável? Ninguém quer assumir as responsabilidades pela mudança. Mas quando você levanta a cabeça, começa a perceber que vários paradigmas estão sendo quebrados. Ou você se enquadra no processo histórico ou vai ser atropelado por ele. É só você olhar para ver que uma boa parte das pessoas imersas no processo histórico não enxergam as mudanças, e nós estamos imersos. Acho que estamos passando por um fenômeno arrasador, um processo que entre outras coisas levará à desintermediação do jornalista, que é uma coisa a ser pensada. Se eu tenho um twitter, não dependo de um jornalista para falar com o público. Eu ponho no twitter e mando direto para o público. Qualquer cidadão hoje pode ser jornalista. É só seguir as regras do jornalismo – sem diploma.
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Grupo Record, uma emissora voltada para o jornalismo. Eu não trabalho na Record aberta. Um dos comentaristas que convidamos, o Nirlando Beirão, queria saber o que devia falar. Quando eu disse que ele teria total liberdade, falaria o que quisesse, disse que nunca tinha chegado numa empresa para trabalhar e disseram a ele que ele podia falar o que quiser. Isso é mais uma demonstração da intenção do Grupo de abrir espaço para as pessoas falarem. Eu tenho uma garantia, uma cláusula no contrato me dando liberdade editorial. Se eu não tiver liberdade editorial, quebra-se o contrato, paga-se uma multa e eu vou embora. Mas não é isso o que eu estou sentido aqui. Até agora – e já estamos na 14ª edição no ar – há total liberdade. Existe um bom senso, equilíbrio, e ninguém disse que não se pode falar do Papa ou do que está acontecendo por aí. Igual ao trabalho que fazia no Grupo Globo. Quando houve aquela guerra lá no Rio, entre o Roberto Marinho e o Brizola, muitas vezes o Brizola falou na CBN. Nunca ninguém ligou para mim dizendo que não podia colocar o Brizola no ar. Agora, é óbvio que eu não ia colocar ele no ar para falar mal do Doutor Marinho. Dei voz a ele porque, primeiro, ele era Governador no Rio e depois por ser um líder respeitado no País. E ele, inteligentemente, não ia me colocar numa posição difícil, atacando o dono da emissora. Na época, o Lula não falava em lugar nenhum, mas falava na CBN. Estou falando da minha experiência pessoal. Cada vez que tinha um assunto relevante, estava lá o Brizola no ar. Ninguém nunca me falou para ser assim ou assado. Agora, a gente sofre dois julgamentos: um sobre o que se faz agora e o outro, o da História. Se a empresa está assumindo essa postura de isenção e liberdade de expressão, então por que não aproveitar? Os deslizes serão julgados pela História. Os grupos de comunicação responderão perante a História. O projeto agora é fazer jornalismo? Mãos à obra!
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AGORA TRABALHA NUMA EMPRESA LIGADA À
IGREJA UNIVERSAL, QUE TEM UM CURRÍCULO DE ESCÂNDALOS E DE CENSURA À IMPRENSA. ESSES CONFLITOS E PROCESSOS NÃO O DEIXARAM DESCONFORTÁVEL AO VIR PARA A RECORD NEWS? Heródoto – Não me veio à mente porque eu estou vindo trabalhar na Record News, que é uma emissora segmentada do
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JORNAL DA ABI – VAMOS TOCAR NUM ASSUNTO DELICADO E QUE ENVOLVE ISENÇÃO. VOCÊ
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Heródoto – Realmente, mas penso que é falta de atenção, mesmo por parte do mais rodado jornalista. Até aquele personagem que já deu inúmeras entrevistas sempre tem algo novo e diferente para falar. Recentemente, o jornalista Ricardo Kotscho e eu entrevistamos o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso para o Jornal da Record News. Kotscho faz entrevistas maravilhosas para a revista Brasileiros. Pouco antes, fizemos uma checagem das perguntas para selecionar aquelas que Fernando Henrique não tinha ainda respondido em outros veículos, para garantir uma diferença com outras entrevistas. Deu trabalho, mas ficou original e muito interessante. O caminho para fugir da mesmice passa por aí.
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PERFICIALIDADE?
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LOS NÃO ESTÃO CAINDO NA MESMICE E NA SU-
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BRASILEIRA? ULTIMAMENTE , DIVERSOS VEÍCU-
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DE QUALIDADE DAS ENTREVISTAS NA IMPRENSA
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JORNAL DA ABI – O QUE ACHA DO NÍVEL
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Heródoto – Creio que é preciso estudar os temas, preparar perguntas, conhecer o currículo do entrevistado e segurar o ego. Este é um bom servo, mas um péssimo senhor. Sem controle, o entrevistador quer tomar o espaço do entrevistado. É preciso não esquecer nunca que o jornalista é o intermediário entre o público e o convidado, portanto, as melhores perguntas são aquelas que mais satisfazem o público.
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JORNAL DA ABI – QUAL A RECEITA PARA UMA BOA ENTREVISTA?
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Heródoto – Era uma rodada com os candidatos a Presidente. Eu já tinha feito uma pela manhã na CBN, e depois fiz à noite, no Roda Viva. Eu nem imaginava que ele pudesse ficar tão descontrolado com um assunto de campanha, não era uma calúnia e nem invasão de privacidade. Era um assunto público, e eu não entendo porque ele ficou tão bravo.
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DISCUSSÃO SOBRE O VALOR CARÍSSIMO DO PEDÁGIO NAS ESTRADAS DE SÃO PAULO...
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JORNAL DA ABI – TAMBÉM HOUVE UMA ENTREVISTA SUA COM O JOSÉ SERRA, EM QUE HÁ UMA
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o primeiro entrevistador fez uma pergunta de sete minutos! Passei pelo programa duas vezes e foi uma oportunidade extraordinária de acompanhar e participar de entrevistas com pessoas notáveis, como o professor Florestan Fernandes. Apresentei a série de entrevistas com presidenciáveis, e na primeira houve um entrevero entre o candidato Orestes Quércia, do PMDB, e o jornalista Rui Xavier. Quem quiser pode assistir pelo site YouTube, procurando o programa comemorativo dos 20 Anos do Roda Viva.
* O Jornal da ABI entrevistou o responsável pela criação do curso de Jornalismo na Escola Superior de Propaganda e Marketing e publicará a entrevista em próxima edição.
ELEIÇÃO
DIVULGAÇÃO
A Academia se rendeu à mídia Entre o jornalista Merval Pereira, autor de dois livros mas que lhe assegurava boa repercussão nos meios de comunicação, e o escritor Antônio Torres, com 17 livros publicados, a Academia preferiu o mais midiático. tava muito bem cotado e ganhou, Ziraldo, Isabel Lustosa e eu. O que me levou A convocação de eleições diretas cosa me candidatar de novo foi a minha tuma ser o meio mais sensato para a rerelação de amizade com o saudoso Mosolução de processos sucessórios, sobreacyr Scliar, a quem conheci durante um tudo em regimes democráticos. O resulpériplo de palestras pela Alemanha, em tado das urnas é, por definição, incontes1985, e seguimos em frente, palestrando tável. Embora, nem sempre, compreenjuntos de Porto Alegre a Porto de Galisível. Por vezes, a matemática dos númenhas, do Rio de Janeiro a Frankfurt. Éraros parece desprovida de lógica. As decimos autores de uma mesma geração – e sões coletivas parecem carecer de razão. muito afinados. E, para mim, não foi A Academia Brasileira de Letras elegeu surpresa o resultado da eleição. Quando no dia 2 de junho o jornalista carioca fiz minha inscrição, percebi que a candiMerval Pereira para a cadeira número 31 datura do Merval já estava bem pavimenda instituição. Aos 61 anos, o colunista tada... Assim mesmo me mantive na do jornal O Globo e comentarista da disputa, que transcorreu com muita eleGlobo News e da Rádio CBN substituigância”, relata o escritor. rá o escritor gaúcho Moacyr Scliar, faleEmbora não queira julgar méritos, cido em 27 de fevereiro. Antônio Torres confirPreterido na disputa, no ma ter recebido alguns “Esta eleição me outro lado do ‘ringue’, e artigos que saíram reaproximou da Casa, dos aparentemente com meem sua defesa, e condecuja agenda cultural naram de forma conlhores ‘armas’, estava Antônio Torres, nocaute- sempre me interessou. tundente a opção feita ado pelo placar final da Academia. Assim como também pela“De disputa. Merval recebeu certa forma, en25 dos 39 votos possíveis me aproximou do tendo a razão dessa polêe superou o escritor baiamica. Não há dúvidas de próprio Merval no, que teve 13 votos. que a ABL faz parte do Pereira, que é uma Votaram por carta 26 acaimaginário nacional. E, dêmicos; na sessão,12. pessoa de fino trato.” justamente por isso, a Houve uma abstenção. galera reage como se de Ao anúncio da vitória do jornalista alguma maneira fizesse parte dela. E aí sucederam-se, especialmente na interentram as idiossincrasias políticas, as dinet, diversas manifestações de espanto e ferenças ideológicas.... Isso é o que imadescontentamento diante da opção feigino”, aponta ele, que, no entanto, não ta pelos acadêmicos. Afinal, como comconfirma nem descarta a possibilidade preender que um jornalista, com apenas de se inscrever em novas disputas por um livro solo publicado – O Lulismo no uma vaga na Casa. “É de mau gosto – ou Poder, editado pela Record e, na verdade, agouro – se falar nisso, quando todas as uma coletânea de seus artigos em O cadeiras estão muito bem ocupadas”, Globo – pudesse levar a melhor na dispudespista. ta com um escritor renomado, premiaNas críticas feitas à escolha de Merval, do diversas vezes no Brasil e no exterior, fato ocorrido sobretudo em sites e blogs autor de 11 romances, 1 livro de contos, de escritores e jornalistas, foi levantada, 1 livro infantil, 1 livro de crônicas, perfis com bastante freqüência, a dúvida sobre e memórias, além de diversos projetos o que teria motivado a preferência dos especiais? Pois, se o resultado do pleito imortais pelo jornalista – e não pelo esgerou polêmica e estupefação geral, parecritor. Houve quem enxergasse na opção ce não ter surpreendido Antônio Torres. da ABL por um dos comentaristas polí“Esta foi a segunda vez que disputei ticos mais conhecidos e respeitados do uma vaga na ABL. Na primeira, concorPaís, e contratado de um dos maiores gruri à cadeira que havia pertencido a Zélia pos de comunicação do Brasil, uma estraGattai. Fui incentivado por amigos da tégia para aproximar-se da mídia, até Bahia, que achavam que aquela era uma mesmo em busca de maior visibilidade. vaga baiana. Naquela ocasião, houve Uma artimanha que pode até render fruuma enxurrada de candidatos, mais de 20, tos imediatos. Mas que, a longo prazo, dos quais só uns quatro tiveram votos: colocaria em risco o prestígio da centeLuiz Paulo Horta, que desde o início esnária instituição.
POR P AULO C HICO
Torres: A galera reage como se fosse da Academia.
“Quero dizer o seguinte: o meu apreço pela ABL independe dos resultados nos dois pleitos dos quais participei. Não se esqueça de que a instituição já me agraciou com o seu maior prêmio, o Machado de Assis, para o conjunto da obra, e que lhe sou muito grato por isso. Além do mais, esta eleição me reaproximou da Casa, cuja agenda cultural sempre me interessou. Assim como também me aproximou do próprio Merval Pereira, que é uma pessoa de fino trato. Isto posto, diria que a ABL, pelo seu peso institucional e a relevância de seus eventos, tem presença garantida na mídia, constantemente. E que é um direito dela eleger quem achar melhor”, concluiu Antônio Torres. Na internet, uma reação indignada
Ao tomar conhecimento do resultado da eleição para a escolha do novo titular da cadeira 31, o Presidente da ABL, Marcos Vinicios Vilaça, declarou: “Com a eleição de Merval Pereira para a sucessão do saudoso escritor e médico Moacyr Scliar, mantém-se a tradição da presença de grandes jornalistas na Academia. Muitos passaram por esta Casa, desde Joaquim Nabuco”.
Vozes dissonantes questionam a Medalha dada a Ronaldinho Gaúcho Fora dos muros da Academia, porém, a reação parece não ter sido tão positiva. Em muitos casos, a reprovação chegou a se apresentar de forma raivosa, em violência pouco velada. E não só exatamente pelo placar da eleição, mas também devido a posturas recentes da Academia. “A população brasileira continua a aceitar, incontinenti, as formas pelas quais as instituições e os homens impõem uma constante massificação da mediocridade em detrimento de valores reais. Tal letargia reverbera-se em todas as esferas da sociedade, forjando-se uma nação irrelevantemente cívica e submissa. Os nossos valores, aqueles que deveriam ser reverenciados, são tripudiados publicamente e chegam a ser aplaudidos por uma turba dócil e ignóbil. Poucos são os que ousam levantar a voz! Não se vêem protestos e observa-se que a imprensa encontra-se atrelada aos podero-
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ELEIÇÃO A ACADEMIA SE RENDEU À MÍDIA
foram perpetradas?”, questionou ele ao sos e políticos sem ética. Essa dormência Jornal da ABI. levará à perda de uma geração, criada sem Em seu artigo, o Promotor saiu em compromissos éticos, com pouca intelifranca defesa do escritor, cuja candidatugência, cultura e a consciência moral ra não encontrou respaldo junto aos corroída”, disparou João Arlindo Corrêa colegas de academia. “Os livros de AntôNeto, no artigo A Academia Brasileira de nio Torres ajudaram o Brasil a tornar-se Letras, o Jogador e o Imortal. Não entenum país conhecido, foram traduzidos e deu o título? Leia o próximo trecho. são respeitados na Itália, Argentina, “É no campo cultural que são criadas México, Estados Unidos, Alemanha, Inessas excrescências. Um País sem cultuglaterra, Portugal, Bélgica, Holanda, Israra e que não venera as suas raízes é mais el, Bulgária. Um Táxi para Viena D’Áustria fácil de ser manipulado. Exemplo dessa e Essa Terra, traduzidos na França, levaletargia vem sendo reiteradamente posram o Governo Francês, em 1999, a lhe to em prática pela instituição que deveconferir o título de ‘Caria primar pelo resguardo da cultura na sua forma “Um País sem cultura valeiro das Artes e das LeNão se pode atrimais sublime: a Acadee que não venera as tras’. buir o mesmo peso litemia Brasileira de Letras! Não bastasse ter concedi- suas raízes é mais fácil rário ao jornalista Merval do ao jogador Ronaldide ser manipulado.” Pereira, embora tenha o mesmo, como moeda de nho Gaúcho, no dia 11 troca, a visibilidade e o poder proporciode abril passado, a Medalha Joaquim Nanados pela Rede Globo.” buco, maior comenda da ABL, em comeEm tom indignado, João Arlindo moração aos 110 anos do nascimento do Corrêa Neto lembra ainda que, além da escritor paraibano e imortal José Lins do compilação de artigos de O Globo, MerRego, agora, em mais uma escolha desasval Pereira assinou outro livro, em 1979, trada, a Casa preteriu o grande escritor feito a quatro mãos - A Segunda Guerra, Antônio Torres em favor do jornalista a Sucessão de Geisel, em parceria com Merval Pereira. A Academia Brasileira de André Gustavo Stumpf. Letras demonstra, mais uma vez, que é “Antônio Torres passa a fazer compacomposta por pessoas que não estão sinnhia a outro injustiçado, o poeta Mário tonizadas com a cultura do País. Uma peQuintana. Na verdade, para que se fizesquena elite provinciana e atrasada sobrese justiça, não deveria haver inscrição põe valores e atropela a história.” para a eleição na Academia Brasileira de João Arlindo Corrêa Neto é PromoLetras. A escolha prévia dos candidatos tor de Justiça e atual Vice-Presidente da deveria ser feita pelos imortais em votaConamp (Associação Nacional dos Memções ‘secretas’, como ocorre na eleição bros do Ministério Público), com sede em papal. Nos grandes jornais, nenhuma Brasília/DF. Antes de tudo isso, no encrítica. A imprensa emudeceu! Os intetanto, é um apaixonado pelo universo lectuais não denunciaram o ridículo do das letras. Escreve crônicas, ensaios e poresultado e o povo, mais uma vez, passa esia, além, é claro, de artigos jurídicos. a achar o medíocre natural. Resta espeTem várias crônicas publicadas em jorrar que Ronaldinho Gaúcho leia o exemnais e sites. plar do livro que ganhou, Flamengo é Puro “Escrevi sobre o assunto em razão da Amor. E que Merval Pereira adquira talenanemia da ABL no que concerne à cultuto literário, inspirado pelo ambiente.” ra do País, esta, sempre relegada a plano inferior, em todos os níveis de governo - federal, estadual e municipal – e instiCríticas a uma polêmica antiga tuições. Acho a forma de escolha dos Em texto originalmente publicado no membros da ABL ultrapassada e não periódico Fazendo Media, em 5 de junho, meritória! Quantas injustiças já não e replicado em diversos sites, como o do
ESTATUTOS DA A CADEMIA BRASILEIRA DE L ETRAS Art. 1º - A Academia Brasileira de Letras, com sede no Rio de Janeiro, tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional, e funcionará de acordo com as normas estabelecidas em seu Regimento Interno. § 1º - A Academia compõe-se de 40 membros efetivos e perpétuos, dos quais 25, pelo menos, residentes no Rio de Janeiro, e de 20 membros correspondentes estrangeiros, constituindo-se desde já com os membros que assinarem os presentes Estatutos. § 2º - Constituída a Academia, será o número de seus membros completado mediante eleição por escrutínio secreto; do mesmo
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modo serão preenchidas as vagas que de futuro ocorrerem no quadro dos seus membros efetivos ou correspondentes. Art. 2º - Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de nacionalidade, exigem-se para os membros correspondentes. Art. 3º - A administração da Academia compete a um Presidente, um Secretário-Geral, um Primeiro-Secretário, um Segundo-Secretário e um
ra acepção da palavra. Antônio Torres jornalista Luís Nassif, Mário Augusto obteve apenas 13 votos dos acadêmicos, Jakobskind também avaliou o processo que voltaram a dever uma satisfação à sucessório da cadeira 31 da ABL. História.” “A memória do escritor Moacyr Scliar Fotógrafo, redator de jornal, sócio de foi conspurcada pelos integrantes da Acauma pequena editora de livros clássicos demia Brasileira de Letras. É que a cadeie coordenador da Ação da Cidadania na ra vaga com a morte do escritor gaúcho cidade de Além Paraíba, em Minas Gerais, vai ser ocupada agora pelo jornalista das Carlos Moura escreveu mensagem enOrganizações Globo, Merval Pereira. Os dereçada a Merval Pereira, que também acadêmicos que votaram no jornalista foi publicada em diversos sites e blogs. autor de um livro que agradou apenas os “É com incomensurável aprazimenopositores de Lula devem ser cobrados, to que venho cumprimentar-lhe por sua porque se dobraram ao esquema global. recente eleição como novo membro da Votaram plim-plim”, escreveu. ABL. Fez-se assim o reconhecimento de No artigo, cujo título é Uma Afronta sua prolífera, matizada e estilisticamente aos Gaúchos, Jakobskind, também Conirretocável prosa literária, exibida diariselheiro da ABI, seguiu em sua análise. amente nas páginas de O Globo (…) Sua “Imaginava-se que, apesar dos pesares, a presença nos salões machadianos da AveABL já havia se redimido dos tempos em nida Presidente Wilson – logradouro que chegou a escolher como acadêmico cujo nome desatualizou-se e que, hoje, o então General Aurélio de Lira Tavares, poderia ser mais adequadamente chamaMinistro do Exército, e isso em plena dido de Avenida Presidente Bush – irá, com tadura. Em anos anteriores, Getúlio Varcerteza, dignificar uma casa onde pontigas, que nunca primou por sabedoria no ficam alguns nomes seminais de nossas mundo das letras, também foi escolhido. letras, como Marco Maciel, Paulo Coelho Pobre Moacyr Scliar, que nesta altura do e Ivo Pitanguy”, provocou ele, esquecencampeonato, não só pelos seus antecedo-se de fazer referência a dentes literários, um granoutros acadêmicos cujas de escritor, como por seu “O Merval é um no campo das letras passado político vinculado homem da mídia, obras – apontam analistas – são às causas progressistas, dealguém que, na mais descartáveis do que ve estar indignado com a escolha dos acadêmicos. política brasileira, exatamente eternas. repercussão do Segundo Jakobskind, não tem importância. casoHouve também na mídia imé de hoje que a ABL comete Isso pesa para pressa. Na matéria Eleição equívocos em relação ao Rio Grande do Sul. “A Casa alguns acadêmicos.” reaviva discussão sobre requisitos para entrar na ignorou Fausto Wolf, este ABL, publicada pela Folha de S.Paulo em sim um brilhante jornalista e escritor, 4 de junho, dois dias após a eleição, o natural do Rio Grande do Sul. Deixou de repórter Fabio Victor trouxe à tona uma colocar o fardão em uma das maiores história interessante. A controvérsia dos figuras literárias da região e de todo o critérios das eleições na ABL deriva, na País, o escritor Mário Quintana. Irônico verdade, de um debate tão antigo quancomo sempre foi, Quintana deve estar to a própria instituição, fundada em ironizando com Scliar sobre o que repre1897. Em seu discurso naquele ano, Josenta para a literatura brasileira o ingresaquim Nabuco (1849-1910), um dos so na ABL de um global como Merval fundadores da Casa, já defendia a expanPereira. Provavelmente vai ironizar mais são dos limites do perfil de seus membros: ainda quando tomar conhecimento do “Algumas das nossas individualidades noticiário da mídia de mercado sobre o mais salientes nos estudos morais e pofato. Realmente é o cúmulo não escolher líticos, no jornalismo e na ciência, deixao escritor, este sim escritor na verdadei-
Tesoureiro, eleitos anualmente por escrutínio secreto e reelegíveis. § 1º - O Presidente dirige os trabalhos da Academia e a representa em juízo e nas suas relações com terceiros. § 2º - As funções dos três Secretários serão discriminadas no Regimento. § 3º - Ao Tesoureiro incumbe a guarda e a administração do patrimônio social, de acordo com os outros membros da Diretoria. Art. 4º - A Academia terá uma comissão de contas, composta de três membros e eleita anualmente, além das demais comissões que forem criadas pelo Regimento. Art. 5º - A Academia funciona com
cinco membros e delibera com dez.
e da cultura nacional.
Parágrafo único. Para eleições exige-se, em primeira assembléia, a maioria absoluta dos membros residentes no Rio de Janeiro.
Art. 9º - No caso de extinção da Academia, liquidado o seu passivo, reverterá o saldo, que houver, em favor da União, se antes não se resolver seja transferido a algum estabelecimento público ou outra associação nacional que tenha fins idênticos ou análogos aos seus.
Art. 6º - Sem vênia da Academia nenhum Acadêmico tem o direito de declarar essa qualidade nos livros que publicar. Art. 7º - Os membros da Academia não respondem individualmente pelas obrigações contraídas em nome dela, expressa ou implicitamente, pelos seus representantes.
Art. 10º - Para reforma destes estatutos, extinção da Academia e aplicação do patrimônio acadêmico, no caso do art. 9º, será preciso o voto expresso da maioria absoluta dos membros efetivos da Academia. Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1897.
Art. 8º - A Academia poderá aceitar auxílios oficiais e particulares, bem como encargos que visem o progresso das letras
Machado de Assis, Presidente Joaquim Nabuco, Secretário-Geral Rodrigo Octavio, Primeiro-Secretário Silva Ramos, Segundo-Secretário Inglês de Sousa, Tesoureiro
Mensagens ram de ser lembradas. A literatura quer que as ciências, ainda as mais altas, lhe dêem a parte que lhe pertence em todo o domínio da forma”. Em sintonia com o pensamento de Nabuco, a abertura – que parece cada vez mais ‘ampla e irrestrita’ – é, ultimamente, uma política deliberada do presidente da ABL, Marcos Vinicios Vilaça, que insere entre a programação da entidade, em sua sede, shows de samba e condecorações a jogadores de futebol. Na mesma matéria, o crítico literário Fábio Lucas, membro das Academias Paulista e Mineira de Letras e candidato derrotado à ABL em 2008, acredita que a Casa de Machado de Assis está mesmo exagerando na dose. “As academias – a ABL e as estaduais – estão reunindo mais notáveis de outras áreas do que da literatura. É justo que aspiremos a um maior número de escritores”. O romancista Cristóvão Tezza aponta que a diversidade resulta do caráter clubístico da ABL. “É uma instituição privada, um clube, que estabelece seus próprios critérios e vive sob o impacto de ondas políticas”. Também ouvido pelo repórter da Folha de S.Paulo, o jornalista e acadêmico Cícero Sandroni, que já presidiu a ABL, destaca o componente político da eleição. “O Merval é um homem da mídia, alguém que, na política brasileira, tem importância. Isso pesa para alguns acadêmicos”, reconhece, para completar logo em seguida: “Votei no Torres, mas isso não quer dizer que não queira o Merval. Ele vem nos ajudar a construir uma Academia mais ampla”, aposta.
Após a Sessão de Saudade, o processo de escolha Na prática, a sucessão entre os imortais funciona assim. Uma vaga na ABL só é aberta com a morte de um de seus 40 membros. Ao fim da chamada Sessão de Saudade, em que o acadêmico morto é homenageado, é declarada oficialmente a vacância da cadeira. A partir daí, os interessados podem se candidatar num prazo de 60 dias. É preciso enviar uma correspondência à ABL com um currículo, formalizando o interesse. As eleições ocorrem cerca de um mês depois do encerramento das inscrições. Não há outra maneira de ingressar na Academia. Todos os interessados precisam passar pelo processo eleitoral. Apenas os membros efetivos podem votar. Portanto, caso haja apenas uma vaga em aberto, 39 integrantes têm direito a voto. Aqueles que não puderem comparecer à sede da ABL na data da eleição, têm a opção de votar por carta. A votação, ao menos teoricamente, é secreta. Em várias ocasiões, diversos membros declaram abertamente sua intenção. Em alguns casos, a preferência por um candidato é tão clara que é possível contabilizar seus votos previamente. O novo membro é eleito por maioria absoluta de votos – metade mais um. De acordo com as regras da Academia, previstas em seu estatuto, para se candidatar é preciso ter nacionalidade brasileira e ter publicado ao menos um obra de ‘reconhecido’ valor cultural ou literário – e aí parece residir boa parte da fundamen-
tação dos críticos à eleição de Merval. Faltaria ao jornalista ‘representatividade’ e ‘peso’ literário – sobretudo quando confrontado ao rival Antônio Torres. Porém, é inegável que, desde a sua origem, a ABL previa a reserva de alguns assentos para ‘personalidades’, pessoas que se destacassem em outras áreas. Quem sai derrotado de uma primeira disputa pode, como já ocorreu com o escritor baiano, candidatar-se novamente. Foi assim com Paulo Coelho, que, numa segunda tentativa, acabou eleito em 2002, derrotando o cientista político Hélio Jaguaribe, graças ao que poderia trazer de retorno e visibilidade à Casa, por tratar-se de um best-seller internacional. Apesar de inspirar disputas acirradas, com verdadeiras campanhas nos bastidores dos chás das cinco, a perspectiva de ocupar uma das cadeiras da ABL não deslumbra a todos. Grandes escritores como Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector nunca se candidataram. Apontado como candidato imbatível, caso queira concorrer, o poeta Ferreira Gullar descarta a possibilidade de vir a disputar uma vaga na Academia. E avalia que é difícil uma Casa nos moldes da ABL se manter fora do jogo de interesses e pressões políticas. “Não pertenço a nenhuma instituição para não ter de lidar com esses problemas. Já tenho problemas demais”, diz, ressalvando que considera Merval Pereira um escritor e um homem inteligente.
Merval: Nabuco já defendia uma Academia mais ampla O novo acadêmico acha naturais os reparos à sua eleição. E cita um opinamento de Joaquim Nabuco no primeiro ano da ABL, em 1897.
CALU VALVERDE
Passado o clima de controvérsias que se seguiu à eleição, o compasso é de espera pela posse do novo membro da ABL – ritual cercado de cuidados cerimoniais, e previsto para setembro próximo. Enquanto prepara seu discurso oficial de posse, o que será que Merval Pereira teria a dizer sobre toda essa polêmica? Pois bem. Assim como o candidato derrotado, o vencedor também falou ao Jornal da ABI. “Considero uma honraria participar da ABL, a instituição cultural mais importante do País. Li todas as matérias nos blogs e nos jornais sobre a minha eleição com natural interesse, e, excetuando-se as que tentaram inutilmente politizar a escolha, acho que é normal haver esse debate quando um ‘não escritor ’ é escolhido, embora o tema esteja um pouco batido e tenha sido ultrapassado pela realidade já há algum tempo”, afirma o jornalista de O Globo, que segue em sua análise. “A ABL, fundada em 1897, teve já naquele ano um debate sobre o tema. Joaquim Nabuco, um dos fundadores, defendia que ela fosse mais ampla, a
exemplo da Academia Francesa. Sua tese foi vitoriosa, a tal ponto que, se pegarmos o livro Academia Brasileira de Letras - Subsídios para sua História (1940-2008), poderemos ver que na História da Casa, entre os profissionais liberais, há mais jornalistas que escritores. E a categoria profissional de jornalistas só é menos numerosa que a do magistério público. Na História da ABL está registrada a presença de grandes nomes da imprensa como Assis Chateaubriand, Austregésilo de Athayde; Carlos Castello Branco, Roberto Marinho e Barbosa Lima Sobrinho, para ficarmos apenas nos que já morreram. Além disso, na cadeira 31 que ocupo, há vários jornalistas, como o próprio fundador Pedro Luis, Moacyr Scliar, a quem sucedi, José Candido de Carvalho, Paulo Setubal e Cassiano Ricardo. Assim, é possível perceber que é uma discussão anacrônica essa de colocar a profissão de escritor em oposição a outras profissões ou atividades intelectuais, cujos integrantes a ABL recebe historicamente”, concluiu Merval. Palavra de imortal.
E DIÇÃO ESPECIAL
Ucha Parabéns novamente! Agora, estou lendo com a devida "facilidade". Excelente trabalho de edição. Esse conjunto de matérias talvez seja o verdadeiro livro sobre Realidade. É a revista vista de vários ângulos, por várias pessoas e em suas três fases. Parabéns mesmo. Grande abraço JOSÉ CARLOS MARÃO Prezado Maurício Azêdo: A edição extra do Jornal da ABI – A Imprensa e o Dia da Imprensa – é documento histórico. Valioso pela estrutura temática, depoimentos, reprodução de fotos, emociona e acirra o interesse do leitor. A partir da capa, a história da imprensa nacional chega ao leitor no editorial do Presidente da ABI, na pena de Rodolfo Konder, na de Alberto Dines, no depoimento de Zuenir Ventura, na relevância da revista Realidade, na ascensão da mulher no jornalismo. Parabéns ao Presidente da ABI pela excelência dessa edição especial. ANNA MARIA MARTINS, Escritora Caro Rodolfo Konder: Impressionou-me vivamente a Edição Extra do Jornal da ABI de maio de 2011, pela enérgica defesa da liberdade de imprensa, bem como pela documentação histórica do jornalismo brasileiro, a começar pelo patrono Hipólito da Costa. Considero instigantes as evocações de Lima Barreto e da inesquecível revista Realidade por parte de Marcos Stefano e Paulo Chico. Boas matérias investigativas e opinativas, como raramente se vê em nossa imprensa. Parabéns, FÁBIO LUCAS
REFLEXÃO
Além de nos enriquecer com comentários e denúncias a respeito do lado noturno da nossa História, a Associação Brasileira de Imprensa, através do seu Jornal da ABI, nos dá matéria para reflexão imprescindível ao nosso trabalho e merece o apoio efetivo dos jornalistas. Parabéns pela atividade jornalística e suas implicações corajosamente políticas. Um forte abraço do LEANDRO KONDER
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ARTE
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os Estados Unidos, ele já foi considerado o “Delacroix do rabisco” e o “Voltaire visual” por conseguir retratar a “alma americana” melhor do que os próprios artistas nascidos no país. Mas essa é apenas uma das facetas do romeno Saul Steinberg (1914-1999) no mundo das artes. Grande nome entre os cartunistas que brilharam nas páginas da revista The New Yorker, onde trabalhou por mais de 50 anos e se tornou conhecido por suas 87 capas e mais de 1.200 ilustrações, ele também integra a vanguarda européia dos artistas gráficos no pós-guerra e, com a mistura de temas e estilos, é considerado um dos principais desenhistas do século XX e intérpretes da vida moderna. Agora, uma exposição no Rio de Janeiro, organizada numa parceria entre o Instituto Moreira Salles e a Pinacoteca de São Paulo, e um novo livro com memórias e reflexões do artista resgatam para o público brasileiro parte dessa extensa obra, revelando um pouco mais sobre a imensa influência do repórter que desenhava em vez de escrever. Repórter, neste caso, não é mera força de expressão, pois era assim mesmo que Steinberg se considerava: um observador da vida. Fosse sua ou do universo que o rodeava. Com simpatia e humor, ele cutucava o que de mais sólido havia e passava a limpo clichês, idealizações, tipos populares, comportamentos, lugares e convenções – os chamados totens da sociedade, que podiam ser Papai Noel, Tio Sam, o dólar, as estrelas do cinema ou o fascínio pelos pioneiros. Em um de seus trabalhos mais conhecidos, capa da The New Yorker de 29 de março de 1976, ele esboça um tipo de mapa-múndi a partir de Manhattan, paraíso do cosmopolitismo e do provincianismo, fazendo uma síntese perfeita do imaginário de uma população. No primeiro plano, a Nona Avenida é a realidade para a metrópole que se desdobra na Décima Avenida e praticamente acaba no Rio Hudson. Outros Estados como Nebraska, Texas e Utah, grandes cidades como Los Angeles, Chicago e a capital Washington, os vizinhos México e Canadá não passam de localidades vagas, distantes, desérticas, que por pouco não se confundem, como China, Japão e Sibéria, regiões pouco delineadas e que no pensamento de muitos nova-iorquinos não deveriam passar, realmente, de miragens. Diferentemente de outros cartunistas, em Steinberg o traço que retrata lugares-comuns alcança sua eficácia máxima por meio de uma ironia refinada e uma visão privilegiada. Um cartunista ligeiro, mas que também era um artista “sério”. Sempre fugindo dos convencionalismos acadêmicos e conjugando como poucos uma série de estilos. “Em seu trabalho seria possível reconstruir uma formidável tradição com base apenas em cartuns: a economia formal de seu conterrâneo Brancusi, a liberdade das linhas de Miró e Klee, as estranhas justaposições dos surrealistas, as colagens cubistas, o rigor formal dos construtivistas. Tudo isso não apenas como forma, mas como
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Nesta foto de Evelyn Hofer, Saul Steinberg de mãos dadas a um recorte de si próprio quando era menino.
STEINBERG
tra coletiva organizada pelo MoMA, em 1946, com o título Fourteen Americans, em que apareceu ao lado de outros artistas gráficos importantes da época. A segunda, uma individual inaugurada em 1952, nas galerias Sidney Janis e Betty Parsons. Por fim, a última, uma exposição montada pelo Museu de Arte de São Paulo-Masp, também em 1952, dirigido então por Pietro Maria Bardi, que conhecia Steinberg de tempos comuns em Milão. Na mostra atual há uma quantidade generosa de cowboys, trens, monumentos fictícios, pássaros, gatos e outros bichos, mulheres em casacos de pele, desfiles, desenhos de arquitetura, bombardeios e falsos documentos (passaportes com assinaturas ilegíveis, selos e carimbos que Steinberg colecionava). Em alguns casos, longas séries com variações gráficas. Vários deles, diferentes dos livros e revistas em que apareceram, agora estão em tamanho natural. Inclusive, os desenhos murais que o artista criou para a Trienal de Milão, de 1954. São quatro desenhos em rolos de papel e proporções arquitetônicas. Pela primeira vez, A Linha, com seus dez metros de comprimento; Tipos de Arquitetura, com sete metros; Litorais do Mediterrâneo, com cinco metros; e Cidades da Itália, com três metros, são expostos em conjunto. Ainda integram a mostra dois trabalhos com inspiração brasileira: Pernambuco, uma mistura de personagens, bichos e motivos locais, e Grande Hotel de Belém, ambos baseados em anotações e cartões-
Um crítico da vida moderna Conhecido pelos cartuns e ilustrações publicados na conceituada revista The New Yorker, Saul Steinberg foi um grande artista das linhas. Uma exposição e um livro de memórias relembram a importância de suas obras, muito além do jornalismo. P OR M ARCOS STEFANO AUTO-RETRATO COM CARRO, C. 1947 TINTA SOBRE PAPEL SAUL STEINBERG/ THE SAUL STEINBERG FOUNDATION
conteúdo. Mais a ironia dos dadaístas”, escreve o crítico Rodrigo Naves, em um perfil do artista publicado originalmente no primeiro número da revista Serrote e que integra o catálogo da exposição Saul Steinberg: As Aventuras da Linha, em cartaz no Centro Cultural do IMS no Rio desde o dia 28 de maio e que em setembro irá para a Pinacoteca de São Paulo. Fazem parte da mostra 111 desenhos produzidos pelo cartunista entre 1940 e
1960, tempo em que ele se credencia como grande artista internacional. Um período em que ainda caminhava para se tornar o “traço mais arguto da The New Yorker”. “É um momento revelador, capaz de mostrar a lógica por trás do artista, um sujeito para quem o propósito da caricatura não era explorar o ridículo, o cômico, mas servir de ponto em que realidade e imaginação se choquem”, diz a historiadora Roberta Saraiva, curadora da exposição. Para tanto, foram selecionados trabalhos que fizeram parte de três importantes exposições. A primeira, uma mos-
postais colecionados pelo artista durante sua viagem ao País nos anos 50. “Steinberg conseguia, usando apenas uma única linha, questionar em seus desenhos o papel da rotina humana. A exposição cerca um momento de maturação e denota o gênio que segurava o lápis”, avalia Roberta Saraiva, responsável também pela organização do catálogo, uma peça à parte nessa história, já que, além de trazer as imagens da mostra, publica pela primeira vez as impressões do artista em seu caderninho durante a andança pelo Brasil, em que conheceu, ao lado da esposa, a pintora Hedda Sterne, Aparecida, Petrópolis, Salvador, Recife, Belém, Manaus, Rio e São Paulo. No livro, Saraiva e o ilustrador Daniel Bueno apresentam um diário dessa viagem, que se junta a uma entrevista do artista para Grace Glueck, da Art in America, de 1970; o texto já citado de Rodrigo Naves, publicado na Serrote, em 2009; um texto de 1952, do então professor Flavio Motta, da Fau-Usp, publicado no Diário de S. Paulo; e o perfil de Steinberg, que Adam Gopnik escreveu para a The New Yorker, quando o cartunista faleceu. Na vanguarda, antes da pop art Cédulas de dinheiro, rótulos de mercadorias ou selos postais. Tudo podia ser usado por Steinberg em sua obra. E não
SUBÚRBIO II, C. 1950-1951. TINTA E CRAYON SOBRE PAPEL. SAUL STEINBERG/THE SAUL STEINBERG FOUNDATION
como os cubistas utilizavam, com estrita função formal. Eram parte do conteúdo. O crítico norte-americano Harold Rosenberg, autor de alguns dos melhores ensaios sobre sua obra, via no artista um homem na vanguarda de seu tempo, incorporando em seus desenhos procedimentos que na arte pop só se tornariam mais comuns a partir de 1960. Traços que pode explorar ainda mais ao escolher as páginas da imprensa como sua tela. “Minha obra é meu diário. Reflete o que li, minhas atrapalhações com as pessoas, lugares, estados de espírito; diferentes formas de esquizofrenia que todos temos e que é burrice tentar disfarçar ”, contou o cartunista na entrevista a Grace Glueck, em 1970. Mesmo assim, é notório o avanço do artista, do particular para o abstrato, do material para o cerebral e do cômico para o universal. Mais do que em outros, sua obra é fruto de seu – nosso – tempo. Nascido em 1914 em uma família judaica romena, Saul Steinberg tinha poucos meses de vida quando sua família se mudou para Bucareste. Ali passaria toda a infância e adolescência, iniciando os estudos de filosofia e literatura na universidade local. Mas não os concluiria. Com 19 anos, decidiu se mudar para Milão, onde viveria oito anos e se graduaria em Arquitetura. Também por lá publicaria seus primeiros desenhos na imprensa. Os trabalhos que fez para a revista satírica Bertoldo lhe proporcionariam certa fama e lhe abririam portas, inclusive, na revista Sombra, do Rio de Janeiro. Esse primeiro namoro foi interrompido pelas crescentes ameaças fascistas de Mussolini, que levaram Steinberg a deixar a Europa em 1941. Depois de uma estada forçada em Santo Domingo, o cartunista chegaria aos Estados Unidos. Mas precisaria de mais algum tempo antes de fazer sucesso no Novo Mundo. Em 1943, já naturalizado, serviu na Marinha norte-americana em missões na China, na Índia e na Itália. Além da experiência, essas viagens lhe renderam desenhos marcantes. De volta à América, casou-se com Hedda Sterne, em 1944, e estabeleceu-se em Nova York. Foi dali que o franzino
GEORGETOWN CUISINE, 1967, LÁPIS DE COR, ÓLEO, GUACHE E TINTA SOBRE JORNAL. SAUL STEINBERG/ THE SAUL STEINBERG FOUDATION
Steinberg começou a cutucar com humor e simpatia o que o Tio Sam produzia de mais sólido, publicando prolificamente nas principais revistas do país, especialmente no templo maior do jornalismo literário, a The New Yorker.
ACIMA: FOTOGRAFIA DA TERCEIRA AVENIDA, 1951. TINTA SOBRE IMPRESSÃO EM GELATINA DE PRATA. ABAIXO: DESFILE, 1950. TINTA E GRAFITE SOBRE PAPEL SAUL STEINBERG/ THE PACE GALLERY, NOVA YORK
Relatos ao amigo Parte das lembranças da extensa carreira foi contada em longas conversas com o amigo, também escritor e desenhista italiano Aldo Buzzi, travadas na casa de Steinberg, em Long Island, antes de sua morte. Editadas, elas deram origem ao livro Reflexos e Sombras, agora lançado em português pela primeira vez pelo IMS, com direito a ser a única amplamente ilustrada, com 63 imagens. Não se trata simplesmente de um livro autobiográfico, mas de memórias que permitem entender a obra do cartunista e finas reflexões sobre seu ofício, sobre o mundo artístico e sobre os conflitos presentes naqueles que fazem algo único, como a necessidade de vender ou comercializar suas obras. “O ofício do cartunista é difícil. É preciso ser editor de si mesmo e cortar, cortar, cortar. Uma pintura, uma colagem de desenhos a lápis, uma paisagem – tudo isso eu faço com prazer e facilidade. São delícias em comparação com a tortura de encontrar uma idéia e representá-la em seguida de modo menos pessoal possível, porque de outro modo se prejudicaria a clareza da idéia. Pela manhã, pego o caderno e a lapiseira e começo a desenhar. O que fazer? O que farei? Sinto-me perdido, as idéias parecem finitas. Mas depois não é bem assim; e essas horas matinais, de observação e reflexão, ao longo dos anos conservaram em mim uma espécie de vigor intelectual. O mais difícil é cortar rápido um bom número de coisas. Outras vezes, o computador da mente deve fazer um elemento vertical percorrer todas as linhas horizontais das possibilidades. Mas, sobretudo, preciso ser capaz de associar as idéias das maneiras mais imprevisíveis”, revela o mestre do desenho em Reflexos e Sombras, prova de que até quando se desenha em vez de escrever o ofício do repórter continua sendo mais transpiração do que inspiração.
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HISTÓRIA
REPRODUÇÃO
A IMPRENSA, SEGUNDO
Agostini Jornalista, caricaturista, empreendedor, militante político e precursor das histórias em quadrinhos no Brasil, Angelo Agostini tem sua densa trajetória narrada em livro.
P OR F RANCISCO U CHA Até onde se sabe, tudo começou em setembro de 1864, quando, numa livraria no Centro de São Paulo, um pequeno grupo de jornalistas bem-humorados lançou um jornal que se diferenciava em tamanho, conteúdo e apresentação dos outros jornais da época. O nome era tão provocador quanto estranho: Diabo Coxo. Esta pequena publicação com veia humorística passou a circular semanalmente com apenas oito páginas, sendo que quatro delas traziam as primeiras ilustrações produzidas por um desenhista que viria a ser o principal artista gráfico daquela época, Angelo Agostini. Essa personalidade é de grande importância para a História da Imprensa no Brasil. Agora ela é tema de uma obra essencial para quem quer conhecer um pouco mais sobre os primeiros passos de nosso jornalismo: Angelo Agostini – A Imprensa Ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910, de Gilberto Maringoni (Devir, 256 páginas). O livro, lançado recentemente, é uma atualização da tese de doutorado defendida pelo autor em 2006, fruto de uma pesquisa de quase 20 anos que começou em meados da década de 1980, ao lado do amigo e quadrinista Ofeliano de Almeida. “Começamos a pesquisar os quadrinhos de Agostini e ficamos espantados com a alta qualidade narrativa e gráfica 46
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dessa produção, que vai de 1869 a 1905. A partir daí, me dediquei a investigar a trajetória do artista italiano. No final dos anos 1990, tive a felicidade de comprar uma coleção da Revista Illustrada e de Don Quixote, publicações lançadas por Agostini em fins do século XIX. Com esse material nas mãos decidi o tema de meu doutorado”, explica Maringoni. No livro, o autor não poupa palavras de elogio ao grande jornalista, caricaturista, repórter, editor e militante político que lutou com veemência pelo fim da escravidão. Além disso, Agostini foi um dos pioneiros na criação de histórias em quadrinhos no mundo. “Se as imagens que chegaram até nós do final do período colonial têm em Debret e Rugendas seus principais autores, o registro visual das duas décadas e meia que precederam a República encontra no artista italiano sua mais perfeita tradução. Ele, seguramente, produziu entre nós a mais extensa representação gráfica de uma sociedade que sai da monarquia e do regime de trabalho servil, rumo a se tornar uma república elitista que teima em empurrar para frente suas contradições profundas.” Nascido na Itália, em Piemonte, no dia 8 de abril de 1843, Agostini passou parte da infância e adolescência em Paris, onde estudou na Escola de Belas-Artes e teve a oportunidade de conhecer o sucesso da imprensa ilustrada francesa em seu
auge. Ao chegar ao Rio de Janeiro em 1859, apaixonou-se pelo País e logo decidiu fincar raízes aqui e não retornar à Europa. No ano seguinte mudou-se para São Paulo. Foi nessa época que Henrique Fleiuss fundou, no Rio de Janeiro, A Semana Illustrada, com um personagem satírico chamado de Dr. Semana que se tornou muito popular. Foi o primeiro a fazer sucesso com uma publicação ilustrada. Quatro anos depois, seria a vez de Agostini lançar seu Diabo Coxo, em São Paulo. Na segunda série da publicação, a partir de julho de 1865, Agostini tem uma visível evolução, com um traço mais maduro e textos mais aprimorados. É nesse momento que a obra do artista ganha as características que marcariam seu trabalho nos anos seguintes, com ilustrações panorâmicas finalizadas com grande esmero – muitas vezes ocupando duas páginas –, e reportagens visuais que culminariam com o desenvolvimento de histórias gráficas seqüenciais. Em 1866, com Américo de Campos e Antônio Manuel Reis, o artista cria o jornal O Cabrião, outro periódico semanal onde publica diversos desenhos críticos sobre a Guerra do Paraguai. Nesse jornal, apenas dois meses depois de seu lançamento, Agostini enfrenta sua primeira grande batalha, e esta se torna um marco histórico na imprensa brasileira: o jornal sofreu o primeiro processo criminal movido no Brasil por causa de um desenho. A publicação da charge O cemitério da Consolação no Dia de Finados, na edição de 4 de novembro, foi considerada de “mau gosto” e a discussão sobre o assunto repercutiu até na Capital. Felizmente a Justiça da época era célere e o jornal foi absolvido em 10 de dezembro. Essa história é contada em detalhes no livro de Maringoni. Também exímio ilustrador e quadrinista, Gilberto Maringoni foi chargista de O Estado de S. Paulo entre 1989 e 1996, publicou quadrinhos no Brasil e no exterior, entre os quais o elogiado álbum Tocaia, lançado pela Devir em 2009. É autor de onze livros e, como seu biografado, tem múltiplos talentos. Desde que começou a pesquisar a vida de Agostini,
O primeiro número de Diabo Coxo, “jornal domingueiro” de oito páginas. Metade delas ilustrada por Angelo Agostini.
formou-se em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Usp, tornou-se pesquisador do Ipea e professor de Jornalismo na Fundação Casper Líbero, além de ser doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, também da Usp. Não foi um trabalho simples saber quem foi Angelo Agostini. “Eu tinha idéia de escrever uma biografia”, lembra Maringoni. “Mas esbarrei num fato curioso: apesar de ter publicado intensamente durante quase 40 anos, poucos são os registros sobre como era Agostini, seus hábitos, sua vida pessoal etc. Os poucos contemporâneos que a ele se referem o elogiam tanto que o material mais encobre do que revela a personalidade do artista. Assim tive de fazer uma biografia analítica, isto é, mesclar o pouco do que se sabe de sua vida com os registros deixados por ele nas cerca de 3.200 páginas que ilustrou e em outras tantas que escreveu, entre 1864 e 1907”. Maringoni acrescenta que Agostini é um personagem riquíssimo e pouco estudado, cita três bons trabalhos sobre o artista e faz uma comparação com o seu livro.
Apenas dois meses depois de seu lançamento, O Cabrião, de Agostini entra para a história como a primeira publicação do Brasil a ser processada por causa de uma charge: muitos ficaram incomodados com as caveiras no Cemitério da Consolação. Ao lado, a Revista Illustrada, a maior criação de Agostini, e que marcou seu auge profissional.
“Os artigos de Antonio Luiz Cagnin; a dissertação de mestrado de Marcus Tadeu Daniel Ribeiro, sobre a Revista Illustrada; e o doutorado de Marcelo Balaban, publicado recentemente, aprofundamse em aspectos importantes da obra do desenhista. No meu caso, tentei examinar toda a sua trajetória. Há vantagens e desvantagens nisso. Podemos perder em profundidade, em alguns tópicos, mas ficamos com uma visão ampla sobre sua carreira.” E exatamente aí reside a importância do livro Angelo Agostini – A Imprensa Ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910. Com um personagem tão importante e com tão pouca informação sobre esse período, o trabalho de Maringoni nos dá uma visão muito clara do desenvolvimento artístico de Agostini e tecnológico da imprensa, apresentando dados bem documentados e muitas curiosidades. O livro é dividido em cinco partes – o início em São Paulo; os primeiros tempos na Corte; a Revista Illustrada; o Don Quixote; os últimos anos. A Revista Illustrada, o principal empreendimento jornalístico de Agostini, recebe atenção especial na obra por se tratar do período mais longo em que o artista permaneceu à frente de uma publicação. Este período coincide com a decadência da monarquia e a campanha da abolição. Quando retorna ao Rio de
Janeiro em 1867, ele passa a colaborar em O Arlequim, e no ano seguinte, na revista Vida Fluminense – onde publicou Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte, considerada a primeira história em quadrinhos brasileira. Entre 1869 e 1875, colaborou em O Mosquito, porém a natureza empreendedora de Agostini falou mais alto e, em 1876, ele funda sua mais importante publicação. “À frente da Revista Illustrada, Agostini torna-se uma referência jornalística, estética e política, publicando trabalhos de grande impacto na opinião pública. Sua inventividade e criatividade na criação de narrativas gráficas e na denúncia política não têm paralelo na imprensa de então”, salienta Maringoni em seu livro. Ironicamente, 12 anos depois, no auge do sucesso e perto de ver o fim da monarquia, Angelo Agostini se muda para a França, onde permanece até outubro de 1894. Foi um período sombrio em sua vida. Não se sabe exatamente por que ele tomou essa decisão, mas o fato é que, em 11 de outubro de 1888, embarcava no vapor Portugal. Uma comitiva de notáveis acompanhou-o ao navio, entre eles Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Álvaro Alvim, entre muitas personalidades de destaque. Agostini acabou não acompanhando de perto o golpe militar que derrubou a monarquia e exilou a Família Real. O traço de Agostini denunciava o horror da tortura aos escravos, ao mesmo tempo em que divertia com a comédia de Nhô-Quim, um personagem pioneiro nas histórias em quadrinhos mundiais.
Seis anos se passaram, e quando retornou a situação não era mais a mesma. A Revista Illustrada não tinha mais o mesmo vigor e o panorama político mudara completamente. Mas Agostini não perde tempo e começa a pensar numa nova publicação, Don Quixote, que começaria a circular no início de 1895. Seu lançamento aproveitou a curiosidade popular que cercou um trágico acidente numa barca na Baía de Guanabara. Numa brilhante estratégia de marketing – muito antes de a palavra “marketing” existir com a conotação de hoje em dia –, Agostini fez circular um suplemento com a ilustração do desastre e anunciava a novidade editorial. Foi um sucesso o lançamento. O início do fim
Apesar do alto nível gráfico das ilustrações de Agostini, esse estilo de publicação começava, aos poucos, a ficar ultrapassado devido às novas técnicas e máquinas que surgiam. A imprensa mudava rapidamente e se tornava um empreendimento empresarial de porte. O fim das pequenas publicações estava próximo. Foi nesse período também que se evidenciou uma faceta escondida do desenhista. Maringoni se surpreendeu com a descoberta de que “de radical abolicionista”, Agostini se revela, nos anos seguintes, um racista exaltado. “Fiquei intrigado e isso ampliou os horizontes de meu trabalho. Consegui perceber que o movimento abolicionista branco não existiu especialmente por solidariedade aos negros. Seu papel foi muito mais o de modernizar o País, criar trabalho assalariado, alargar o exíguo mercado interno de então e possibilitar a industrialização e uma nova inserção do Brasil no mercado internacional. Os negros foram relegados à própria sorte, num projeto de reconfiguração social que tinha na imigração do trabalhador europeu o centro de uma política de embranquecimento do País. Outros já se referiram ao fenômeno. Acho que minha contribuição é examinar como isso se expressou na imprensa.” Don Quixote foi a última publicação litografada relevante a circular no Rio de Janeiro. Agostini lutava com todas as suas armas, e se endividava. Mas a publicação fecha as suas portas em 1903, época em que Pereira Passos assume a Prefeitura da Capital e começa a fazer revolução para modernizar a cidade. Um ano antes surge O Malho, que seria editada pela mesma casa publicadora que mais tarde lançaria O Tico-Tico e se tornaria uma potência editorial. Novos ilustradores e caricaturistas ganham fama, entre eles,
Crispim, K. Lixto e Raul Pederneiras, que se tornaria Presidente da ABI. O novo traço não lembra em nada o estilo rebuscado de Agostini; pouco a pouco, sua fama desaparece. Agostini passa a colaborar com publicações como Gazeta de Notícias e O Malho. Nesta ele cria, em outubro de 1904, um conto para crianças chamado Por Causa de um Cachorro, na forma de quadrinhos, uma das coisas que ele mais sabia fazer. A receptividade do público a uma história criada especialmente para o público infantil foi excelente e a empresa viu aí uma nova fatia de mercado a explorar. Logo uma nova equipe começava a planejar o lançamento de um produto infantil. Assim, o primeiro número de O Tico-Tico, Jornal das Crianças
A elegância do traço de Agostini num dos seus últimos trabalhos: a capa de O Malho.
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HISTÓRIA A IMPRENSA, SEGUNDO AGOSTINI
começa a circular em 11 de outubro de 1905, com seu logotipo desenhado por Angelo Agostini (acima). Dez dias depois O Malho anuncia a volta do mais importante personagem do artista: Zé Caipora retornaria após uma interrupção de dois anos de sua última aparição nas páginas do Don Quixote. Nesse período Agostini colaborava nas duas mais importantes publicações da casa editorial de O Malho. Mas ele não tinha o mesmo vigor e, no início de1908, o artista encerraria uma carreira de 43 anos. Dois anos depois, em 23 de janeiro de 1910, morreria praticamente esquecido.
O livro de Maringoni se encerra com um texto extra que ele chama de “Anexo”: uma carta de Angelo Agostini aos seus assinantes, publicada na última edição de Don Quixote, de 10 de janeiro de 1903, na qual ele faz um balanço de sua carreira e fala das agruras de ser empreendedor e jornalista no Brasil. Maringoni termina seu texto com uma frase de José do Patrocínio sobre o grande artista: “O presente já o estima; o futuro há de adorá-lo”. Maringoni acrescenta, dando um aspecto de realidade e esperança: “O futuro é muito longo. Ainda não o adora, mas começa a descobri-lo”.
Os pioneirismos de Nhô Quim e Zé Caipora
Tournachon. A dupla endiabrada Max und Moritz, famosa criação do pintor e caricaturista alemão Wilhelm Busch, chegou em 1865 e, dois anos depois Ally Sloper começaria a ser publicado regularmente na revista britânica Judy. O personagem era desenhado por Charles H. Ross, que também escrevia as histórias, e arte-finalizado com elegância por sua mulher, a cartunista francesa Marie Duval, pseudônimo de Emilie de Tessier. Uma diferença de 67 anos separam a criação de Topffer e The Yellow Kid, do desenhista norte-americano Richard F. Outcault, que era alardeado aos quatro ventos como o primeiro personagem dos quadrinhos. Mas ele só começou a ser publicado em 1894. Até o nosso Zé Caipora estreou bem antes do garoto amarelo lançado no New York World, de Joseph Pulitzer. Quando começou a desenhar As Aventuras de Zé Caipora, em 27 de janeiro de 1883, Agostini já era um quarentão famoso, dono da principal publicação ilustrada da Corte e de um traço refinado. Criado para ser cômico, o personagem ganha nova dimensão criativa e gráfica quando se torna um aventureiro. A arte seqüencial de Agostini é dinâmica, ágil, elegante e, como linguagem moderna de quadrinhos, antecede em muito tempo seus congêneres Tarzan e Príncipe Valente, ambos de Hal Foster; e Flash Gordon e Jim das Selvas, de Alex Raymond. Como ressalta Athos Cardoso em seu livro, “cabe a Angelo Agostini o título de avô das tiras de aventura, como precursor da temática e a Zé Caipora, o de primeiro herói brasileiro e universal do gênero”. Realmente, As Aventuras de Zé Caipora pode ser considerada, sem sombra de dúvidas, a primeira história em quadrinhos de aventura do mundo. Que nos desculpe Hal Foster. Agora só falta o Conselho Editorial do Senado Federal autorizar uma terceira reimpressão do livro, pois a segunda edição também já se encontra esgotada. A memória brasileira merece.
Outra obra importantíssima para o resgate da obra de Angelo Agostini na História da cultura brasileira é o livro As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora, de autoria do pesquisador Athos Eichler Cardoso, cuja primeira edição foi lançada em 2002 dentro da série Edições do Senado Federal. O livro recebeu o troféu HQ Mix na categoria Valorização dos Quadrinhos. Esse foi um dos motivos para o lançamento de uma segunda edição em 2005. O álbum reproduz com cuidadoso trabalho de restauração digital os capítulos de As Aventuras de Nhô-Quim, ou Impressões de uma Viagem à Corte, publicados em página dupla na Vida Fluminense, e As Aventuras do Zé Caipora, publicadas na Revista Illustrada, em Don Quixote e, numa última fase, em O Malho. Folhear esta publicação impressa em papel couchê e no formato A4 é voltar no tempo e descobrir um verdadeiro tesouro artístico, criativo e absolutamente pioneiro. É compreender melhor como era o Brasil, sua gente e seus costumes em fins do século 19. A recuperação desses documentos, portanto, é essencial para manter um registro iconográfico fiel do período. Publicada a partir de 1869, As Aventuras de Nhô-Quim foi a primeira história em quadrinhos brasileira e a quinta do mundo. A primazia de ser o pioneiro coube a um caricaturista suíço, Rodolphe Topffer, que publicou em 1827 a história Monsieux Vieux Bois. Hoje o autor é considerado o pai dos quadrinhos, apesar de seus traços serem bem primários, quase infantis. Em 1848 surgiu Monsieur Reac, criado pelo fotógrafo e desenhista francês Nadar, pseudônimo de Gaspard-Félix 48
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Duas páginas com a dinâmica arte seqüencial de As Aventuras de Zé Caipora: já é hora de se reivindicar para Agostini a autoria da primeira história em quadrinhos de aventura do mundo. Pioneiro nesse gênero, ele antecedeu Buck Rogers e Tarzan, de Hal Foster, em 46 anos.
Vidas
Paulino, líder precoce
Estava tudo nos trinques para ele lançar uma nova edição de outra de suas biografias, a da Princesa Isabel, mas o coração não lhe deu tempo. alizada no Auditório Oscar Guanabarino, reuniu dois membros da Academia Brasileira de Letras – Cícero Sandroni e Murilo Melo Filho –, o então Diretor da Biblioteca Nacional, jornalista, escritor e professor Muniz Sodré, a Diretora do Museu Nacional de Belas-Artes, Mônica Xexéo, e a historiadora Mary Del Priore. Sandroni fez aplaudida conferência sobre o tema Dois Séculos de Araújo Porto-Alegre: Valores Culturais, Éticos e Morais, Acima de Tudo. Nascido em 16 de maio de 1947 e sócio da ABI desde 29 de março de 1983,Viola era fascinado pela vida e pela obra de personalidades do Segundo Reinado, sobre as quais vivia pesquisando e buscando ângulos novos para apresentar ao público. São elas que compõem sua sólida e diversificada bibliografia, expressa em títulos como Dom Pedro II e a Princesa Isabel; Princesa Isabel, Uma Viagem no Tempo; Bezerra de Menezes, O Abolicionista do Império; Francisco de Paula, O Eremita da Caridade; O Segundo Reinado na Visão do Espiritismo e o citado Barão de Santo Ângelo, O Espírita da Corte. Em suas pesquisas Viola levantou documentos inéditos sobre Araújo Porto-Alegre, entre os quais uma carta que ele guardava a sete chaves. Cônsul do Brasil entre 1856 e 1879, quando morreu,
ARQUIVO PESSOAL
Faltavam uns poucos dias para o jornalista e escritor Paulo Roberto Viola realizar um projeto que acalentava com grande carinho: o lançamento de nova edição de uma de suas biografias, a da Princesa Isabel, programado para a ABI no dia 13 de maio, a grande data que orna o nome da autora da Lei Áurea. O coração foi injusto com Viola: exatamente duas semanas antes da data do evento, ele teve um ataque cardíaco fulminante. “Meu pai desencarnou”, informou em email à ABI seu filho Luiz Viola, numa alusão à crença de Paulo Roberto, que era um dos mais destacados jornalistas e escritores espíritas do País. Este seria o segundo lançamento que Paulo Roberto Viola faria na ABI, onde promoveu em novembro de 2009 prestigiada sessão de apresentação de uma de suas obras mais importantes, Barão de Santo Ângelo, O Espírita da Corte, biografia de uma das mais importantes personalidades do País no século 19. Poeta, político, jornalista, pintor, caricaturista, arquiteto, crítico de arte, professor e diplomata, Araújo Porto-Alegre foi o introdutor da ilustração na imprensa brasileira em 1839, quando tinha pouco mais de 33 anos. No ato então realizado, Viola deu prova do respeito que granjeara como pesquisador e escritor: a sessão, re-
na Prússia, na Saxônia e em Lisboa, depois de ter ocupado cargos de confiança no Império, como o de Diretor da Seção de Belas-Artes do Museu Nacional e pintor da Câmara Imperial, ele não revelava sua crença espírita, “por medo de falhar com o juramento de fidelidade à Igreja Católica exigido pelo cargo que ocupava como funcionário do Estado. Porto-Alegre guardou este segredo para manter o emprego e não ser vítima de discriminação”, conta Paulo Roberto Viola.
Valcir Almeida, um pioneiro Dono de uma gráfica no Município, o empresário Valcir Almeida só não se tornou o primeiro publisher de Nova Iguaçu porque outro visionário se antecipou a ele: o jornalista Raul Azêdo Netto, que trabalhou num antigo semanário da cidade, o Correio de Maxambomba, do empresário Dionísio Bassi, enraizou-se na imprensa local e terminou por criar o primeiro jornal diário iguaçuano, o Correio Diário, que ele manteve com extremadas dificuldades. Longe de ficar enciumado, Valcir Almeida procurou aliar-se a Raul Azêdo para utilizar a experiência deste na implantação de seu projeto jornalístico: a criação de um jornal diário. Azêdo tinha larga experiência profissional, iniciada no fim dos anos 40 no diário comunista Imprensa Popular, do Rio de Janeiro, e continuada depois nos diários Hoje, de São Paulo, proibido de circular pelo Governo Dutra, e Notícias de Hoje, que sucedera ao Hoje após a proibição do primeiro. Na trajetória profissional de Azêdo, sabia Valcir, constavam passagens pelos
REPRODUÇÃO
O nome era extenso – Roberto Paulino Fernando Ludolf Soares de Souza — assim como era imenso, também, o carinho com que tratava não apenas os amigos, mas igualmente as pessoas comuns com que se relacionava. Com grande estatura, mais de um metro e 80, que logo o destacava em qualquer grupo, olhos esverdeados, sorriso franco, natural, ele era descrito como a simpatia em pessoa. Confirmou isso no contato com a comunidade da Mangueira, que passara a freqüentar quase como uma extensão da família, que era sócia de uma fábrica de ladrilhos e azulejos instalada na Rua Visconde de Niterói, no sopé do morro, na qual começou a trabalhar. Era o começo dos anos 1960, a quadra da Mangueira ocupava nos dias de ensaio o piso de barro do pátio de carga e descarga da empresa. Ali Roberto Paulino se enturmou com os bambas da escola, que ainda não haviam alcançado o renome merecido: Hélio Turco, Cícero, Pelado, Padeirinho, Preto Rico. Filho de celebrado cirurgião, o Doutor Roberto Paulino, considerado então um dos ases da cirurgia do Rio de Janeiro, o jovem Roberto não seguiu nem o caminho do pai nem a tradição industrial da família, que tinha prestígio e influência na Federação das Indústrias. Preferiu formar-se em Direito, ainda que sem a pretensão de advogar. O diploma cobria-o de respeito ainda maior na comunidade, que o tratava carinhosamente de Doutor Robertinho, festejando o menino que se iniciara ali muito moço. Alçado precocemente a uma liderança que não cobiçava, Paulino tornou-se um dos mais jovens Presidentes da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e a conduziu a dois campeonatos entre 1960 e 1963. Em 2003 ele lançou livro Do Country Club à Mangueira, no qual relata esta passagem de sua vida. A vocação real de Paulino era, porém, o jornalismo, no qual, já maduro, se iniciou como repórter, trabalhou como redator copidesque e se tornou colunista, desobrigado das tarefas do dia-a-dia do fechamento das edições. Seu currículo inclui passagens pelo antigo O Jornal, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo. Atribui-se a ele uma boutade de cordial crítica aos copidesques. Na Redação de O Jornal, um redator iniciante teria tropeçado na grafia da palavra descanso e queria saber se a escreveria com s ou ç. Paulino respondeu de plano: “Põe com s, companheiro, que o descanso será mais reparador”. Paulino estava com 76 anos. Faleceu no dia 24 de junho de choque séptico. Deixou três filhos, nove netos e dois bisnetos.
Viola, o biógrafo de Araújo Porto-Alegre
principais jornais do Rio, como repórter, redator, editor, chefe de reportagem, secretário gráfico. A aventura profissional anterior de Azêdo fora o arrendamento do diário Luta Democrática, de Tenório Cavalcânti, que, cassado pelo golpe militar de 1° de abril e afastado do jornalismo, cedeu o jornal sem qualquer contrapartida econômico-financeira, desde que
Azêdo assumisse, como assumiu, estes compromissos editoriais: manter a linha nacionalista da Luta; defender os interessses do nascente Estado do Rio de Janeiro; tomar posição ao lado dos trabalhadores e de suas lutas; condenar a política e as ações do regime militar. Lançaram-se assim Valcir e Azêdo à criação e produção do diário Hoje, no qual Valcir via o embrião de uma sólida imprensa diária em Nova Iguaçu, vaticínio que se confirmou em poucos anos; Azêdo, de seu lado, via na criação do jornal a oportunidade de ampliação do mercado de trabalho de companheiros afastados das Redações do Rio de Janeiro, como Artur Cantalice e João Duque Estrada Meyer, que ele convidou para integrar a equipe do Hoje. Sua morte inesperada, em 21 de maio de 1979, não impediu que Valcir mantivesse o projeto, hoje transformado no principal empreendimento jornalístico de Nova Iguaçu. Valcir faleceu no dia 24 de junho. Deixou mulher, dois filhos e netos. Estava com 78 anos. Jornal da ABI 367 Junho de 2011
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Vidas DIVULGAÇÃO/RETRATOS DO BRASIL NEGRO
No adeus a Abdias, Lula, Cabral e axé O ex-Presidente foi uma das personalidades que prestaram homenagem póstuma ao mais destacado membro do movimento negro no Brasil, falecido no Rio de Janeiro aos 97 anos. POR J OSÉ R EINALDO M ARQUES
ta plástico, uma pessoa com uma elegância cultural que lhe dava um peso muito significativo na luta pela igualdade racial e pelo respeito religioso. Um brasileiro que marcou a História do País”, disse o Governador. Estiveram presentes também à cerimônia os Deputados federais Edson Santos (PT-RJ) e Benedita da Silva (PT-RJ), o exDeputado federal Vivaldo Barbosa (PDT-RJ), o jornalista e exDeputado federal Carlos Alberto de Oliveira, o Caó.
JOSÁ MEDEIROS/ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
Com grande movimentação de pessoas, desde o final da tarde do dia 26 de maio a Cinelândia foi o cenário de uma das homenagens póstumas ao jornalista, ator, diretor de teatro, artista plástico e ex-Senador Abdias Nascimento (1914-2011), cujo corpo foi velado no saguão da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Associado da ABI desde 1948, ele morreu aos 97 anos, no dia 23, no Rio, e teve o corpo cremado na manhã do dia 27. Abdias estava internado no Hospital dos Servidores, no Centro do Rio, há cerca de dois meses, com quadro de diabetes. Centenas de militantes e lideranças do movimento negro brasileiro e autoridades lotaram o ambiente da entrada principal da Casa legislativa carioca, para participar do velório de Abdias, que contou também com a presença do Governador do Rio, Sérgio Cabral, e do Cerimônia ecumênica ex-Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Ícone das lutas contra o racismo no Brasil, por mais Lula chegou ao velório na companhia do Governade 40 anos, e uma das maiores autoridades brasileiras em dor e disse que o preconceito racial, contra o qual Abrelações raciais, Abdias Nascimento foi saudado com dias foi um lutador incansável, é uma doença difícil de uma celebração ecumênica autorizada pela família com curar. E falou sobre a condição do negro no Brasil: a participação de integrantes da Comissão Contra a “Acho que os negros já conquistaram muito espaço Intolerância Religiosa-CCIR, formada por representandesde a Constituição de 1988, mas ainda falta muito. tes do candomblé, umbanda, Igreja Católica, comuniO preconceito é uma doença que não tem cura fácil. O dades judaica e islâmica, igrejas evangélica e protestante. remédio para combater o preconceito racial leva anos, As manifestações de apreço à figura de Abdias foram limas penso que estamos avançando.” deradas pela viúva, Elisa Larkin do Nascimento, que lemLula lembrou os anos de militância política e as inibrou que entre os importantes itens da agenda de lutas de ciativas de Abdias inclusive na esfera pública em prol Abdias Nascimento se encontrava também a defesa pela da igualdade racial no Brasil e disse que as políticas de igualdade dos direitos da mulher, “da mulher negra espeAção Afirmativa implantadas no País foram adotadas cificamente para a qual ele sempre teve essa atenção”. inspiradas também na sua contribuição para o avanço Elisa Larkin ressaltou que Abdias foi também um dos desse processo. grandes defensores dos direitos Através de nota enviada ao dos quilombolas, que na cerimôSindicato dos Jornalistas do Munia foram representados por nicípio do Rio de Janeiro, Lula já moradores do quilombo de havia se manifestado dizendo Campinho, de Parati, que é um que Abdias foi um lutador bridos lugares que Abdias visitou lhante e incansável contra o rapara uma de suas pesquisas no cismo e por um Brasil melhor. início dos anos 1980. “Militante político, jornalista, Como pesquisador e artista professor, intelectual e artista, plástico, Abdias Nascimento sua coragem e inteligência na sempre manifestou apreço pedefesa dos direitos e da auto-eslas religiões de matriz africana, tima dos afro-brasileiros são um e com isso ganhou o respeito e exemplo e motivo de orgulho a consideração das irmandades para todos nós. Nesse momento do candomblé e da umbanda, de dor, me solidarizo com sua escomo ficou claro na saudação posa, Elisa Larkin Nascimento, especial que recebeu da ialorixá com todos os parentes e amiMãe Beata de Iemanjá: gos”, disse Lula por meio da nota. “Estou aqui neste momento O Governador Sérgio Cabral não para me despedir de você e também destacou a importânsim para lhe dar um até logo, cia de Abdias Nascimento na pois nosso pai Olorum (Orixá luta contra o racismo, elogianque representa a divindade mádo a maneira como o ex-Senaxima) quando precisa de um de Abdias Nascimento caracterizado como Otelo, na dor conduziu suas propostas de seus filhos prediletos ele o chapeça baseada em Shakespeare que comemorou defesa dos direitos dos negros: o segundo aniversário do Teatro Experimental do ma para o seu verdadeiro convíNegro, no Teatro Regina, em 1946. “Ele era um intelectual, artisvio, e assim, neste momento, ele 50
Jornal da ABI 367 Junho de 2011
lhe escolheu, meu irmão e meu professor. Porém, sabendo que esta lacuna não haverá quem preencha, a lacuna do teu potencial, da sua sabedoria física e mental. Grande guerreiro, “Oxun rerê catiri catê”, declarou Mãe Beata, em uma saudação iorubá referindo-se a Oxum, Orixá da qual Abdias era devoto. Mãe Beata acrescentou que na qualidade de mulher negra nasceu para lutar, aprendeu muitas coisas e mais ainda com a convivência com Abdias: “Recebi aprendizado dos nossos ancestrais. Porém, em ti também me espelhei, acredite continuarei na luta e não hei de fraquejar, a tua estrada eu seguirei, sou a sua irmã Beata de Iemanjá.” Como Zumbi Sob forte emoção, Benedita da Silva disse que com a morte de Abdias os negros perderam a sua grande liderança, mas que o legado dele tem proporcionado ao País avançar com a experiência e a importância da sua determinação na defesa do povo negro brasileiro. Disse Benedita que Abdias era um líder que se tornou uma referência nacional, a exemplo de Zumbi dos Palmares: “Ele é o nosso Zumbi, na expressão máxima de liderança que fez com que os adversários o respeitassem pela dignidade e fecundidade com que defendeu o seu ideal e os ideais de todos os negros”, afirmou a Deputada, referindo-se às lutas do ex-Senador. Disse Benedita da Silva que tudo aquilo que produziu Abdias Nascimento estará sempre presente na vida de todos os brasileiros, pois deixou um grande legado, por meio da arte “onde se destacam as marcas da religiosidade de matriz africana que sempre defendeu”, do Teatro Experimental do Negro e nos livros que escreveu. O radialista e pesquisador Rubem Confete falou da importância histórica do porto do Valongo, no Centro do Rio, por onde chegavam os escravos. Segundo ele, esse foi um dos pontos da conversa que teve com Abdias em um encontro na Nigéria, em 1977, quando este estava no exílio: “Foi daí que Abdias lançou para o mundo a grande verdade dos problemas de quatro milhões de negros que
desembarcaram no porto do Valongo no Rio de Janeiro”, afirmou. Confete lembrou que foi nesse momento que Abdias se juntou a Elisa Larkin do Nascimento, que era acusada pelo movimento negro afro-americano de ser agente da Agência de Inteligência norte-americana-CIA: “Era um momento crítico e os Panteras Negras diziam ‘cuidado com essa mulher’, porque ela é da CIA. Mas graças a ela o nosso mestre Abdias Nascimento evoluiu ainda mais a partir daqueles anos. Essa é uma questão que temos que discutir hoje. O porto do Valongo está aí e por ele se constrói a nossa História. Esse homem nos deixou um legado e cabe a cada um de nós prosseguir. Axé Abdias, Axé Elisa!”, declarou o radialista. Um memorial no Rio Aproveitando a deixa de Rubem Confete, o Coordenador da Comissão Contra a Intolerância Religiosa, Ivanir dos Santos, sugeriu que o Estado do Rio erga um memorial em homenagem a Abdias Nascimento no antigo porto do Valongo. A proposta foi apresentada ao Governador Sérgio Cabral, que gostou da idéia e disse que vai aguardar uma manifestação da família para tratar do assunto. Para Ivanir dos Santos, a importância de Abdias para o Movimento Negro brasileiro pode ser medida pela coerência entre o discurso e as atitudes: “Ele foi uma fonte de inspiração para mim, principalmente pela coerência que manteve até os últimos dias de sua vida. Abdias nunca abandonou a agenda do movimento negro, nem quando assumiu cargos públicos, como Secretário de Estado no Rio, Deputado e Senador. Ele foi um dos pioneiros dessa agenda. A herança que deixou para nós, vamos deixar para as outras gerações”, afirmou Ivanir dos Santos. O historiador Joel Rufino dos Santos, que conviveu com Abdias por mais de três décadas, destacou a firmeza com que eletratava a causa política, sem nunca perder a gentileza no trato pessoal, inclusive com seus oponentes: “Sou testemunha da luta dele há 40 anos. A sua batalha contra o racismo foi um embate pela justiça social. Mas o que sempre me impressionou era o contraste entre a ênfase que ele dava nos discursos e a delicadeza nas relações pessoais”, declarou Joel. A atriz Léa Garcia – que foi casada com Abdias e uma das integrantes do Teatro Experimental do Negro-TEN, fundado por ele em 1944 – disse que a emoção do momento quase a impedia de descrever tudo de importante que ele fez em relação à política no Brasil e em benefício da igualdade racial dentro do País e no mundo: “Abdias é o nosso ícone, não o estamos perdendo, pois ele estará sempre presente nas questões políticas e raciais brasileiras. Eu agradeço ao Abdias o incentivo que me deu, por ter me dado essa possibilidade de representar. Eu sou agradecida de ele ter feito parte da minha vida como companheiro e pai dos meus filhos, avô dos meus netos. Ele foi uma pessoa que me orientou muito dentro da minha profissão”, afirmou Léa Garcia. A família de Abdias informou que as cinzas do líder negro serão depositadas na Serra da Barriga, em Alagoas, local onde foi mantido pelos escravos o quilombo dos Palmares, o maior símbolo da resistência negra no Brasil, durante o período da escravidão. O poeta Ele Semog, biógrafo de Abdias, falou sobre a importância da trajetória do líder negro: “Abdias, de fato, é uma referência de luta do movimento negro do século passado, e continua sendo neste século e enquanto o racismo não for superado no Brasil. Ele conseguiu, ao longo de sua vida, nunca fraquejar em relação às lutas do povo negro. E também em relação à consciência de uma identidade racial de matriz africana, com a responsabilidade que ele tinha como cidadão na construção da democracia brasileira. O mais bonito da vida dele foi ter conseguido ser um líder quase que unânime para todos nós do movimento negro”.
Ulysses, o homem do texto Integrante das equipes que, sob a liderança de Mino Carta, criaram o Jornal da Tarde, em 1966, e a revista Veja, em 1968, Ulysses Alves de Souza iniciou no domínio da técnica de redação jornalística dezenas de profissionais, como Sandro Vaia, Sérgio Rondino e Tão Gomes Pinto, que relembraram esta sua contribuição à imprensa, diante da notícia de seu falecimento, em São Paulo, aos 85 anos, em 27 de maio passado. Uru, seu apelido, foi assim evocado por estes seus companheiros:
jornais do interior. Em vez disso, saiu com aquela turma que acompanhou o Mino Carta para fazer a Veja. Depois da Veja, o perdi de vista. Sei que fazia algumas assessorias, que trabalhou em alguns órgãos públicos, mas que nunca mais o vi. Era uma figura de livro. Seria, tranqüilamente, personagem de alguma coletânea sobre velhos jornalistas, se alguém tivesse escrito uma. Acho que ele já era um velho jornalista quando nós nem jornalistas éramos ainda.”
SANDRO VAIA “Eu arrumei emprego no JT através de uma carta que mandei ao Marcelino Ritter, redator-chefe do Estadão, que a encaminhou ao Mino Carta. Ele achou a carta de alguma forma interessante e mandou o Ulysses me telefonar e me chamar para uma entrevista. Foi, portanto, meu primeiro contato e meu primeiro chefe de reportagem do JT, que me mandou fazer uma matéria na CMTC, que ficava na Rua Martins Fontes, do lado do jornal. Eu, moleque do interior, não sabia onde era e gastei uma boa hora para achar uma coisa que ficava a 50 metros da Redação. Fazia parte do método de chefia dele não facilitar a vida do repórter. O apelido dele era “Uru”, e tinha uns 15 anos a mais do que eu. Era mais velho que o Mino Carta. Era um chefe de reportagem tipo “old fashion”, aqueles que nos filmes americanos usavam uma viseira e um elástico na altura do braço, lembra? Tinha um humor sarcástico, quase destrutivo, mas daqueles que no fundo escondem uma boa alma. Lembro que ele, como uma espécie de preceptor do Luiz Merlino, aquele jovem santista meio aristocrático que foi morto pela repressão, praticou uma célebre crueldade: lia a matéria, devolvia e dizia: não serve nem pra jogar no lixo. Aí o pobre Merlino suava sangue para reescrever, entregava pra ele, que lia e dizia: agora, sim, serve pra jogar no lixo. E jogava. Tinha um grande sonho, que nunca chegou nem perto de realizar: criar uma rede de
SÉRGIO RONDINO “Para mim Ulysses Alves de Souza é inesquecível. Março de 1967, chego ao Jornal da Tarde para meu primeiro dia na Redação. Estagiário, 20 anos, foca trêmulo, fui encaminhado ao Ulysses, então chefe da Reportagem Geral. Apresenteime. Mal interrompeu o que fazia. Deu-me um recorte de jornal e ordenou: escreva 20 linhas sobre esta notícia. Passei uma eternidade no suplício dessas 20 linhas. Terminei, lá estava Ulysses em pé, conversando com alguém. Aproximei-me e estendi a lauda. Ele a pegou e amassou sem ler. Apenas disse: – Isso não serve nem para jogar no lixo. Faça de novo! Puta que pariu! No que foi que errei? Se ele nem leu… Obedientemente, lá fui eu escrever de novo. Mais algumas horas torturantes depois, tirei a lauda da Olivetti e lá fui novamente em direção ao chefe – que mais uma vez estava em pé falando com alguém. “Porra, como esse cara conversa…” Estendi a lauda. Ele pegou e novamente nem leu. Amassou o papel e me disse: – Ótimo, agora já dá para jogar no lixo. Volte amanhã. A bolinha voou em direção à lata e o foca retirou-se com o rabo entre as pernas, humilhado, espumando de ódio. Tenho essas imagens na mente como se tivessem ocorrido ontem. Inesquecível. Nos tempos que se seguiram, claro, descobri que aquele tratamento era pura diversão dele. E que aquele velho rabugento não era um velho
rabugento. Só fazia o gênero rabugento para encher o saco dos focas. Hoje me divirto lembrando aquele dia – e sinto enorme saudade! Convivemos pouco tempo, pois Ulysses logo deixou o jornal, junto com Mino Carta. E poucas vezes o encontrei nos anos seguintes. Mas só me lembro dele como um bom sujeito.” TÃO GOMES PINTO Sobre o Uru: devo minha carreira ao Ulysses Alves de Souza. Trabalhávamos mesa a mesa no inesquecível Notícias Populares , do Jean Mellé. Ele era ‘editor de Internacional’ do NP. Devia ter outro emprego, pois sempre chegava na Redação por volta das 18h30min. Não havia, na época, sequer teletipos. Motoboys precursores levavam o material das agências internacionais em rolos e deixavam nas portarias. Como também não tínhamos porteiro, muito menos portaria, várias vezes os entregadores da AP, UPI, France Presse, Ansa, etc…. deixavam os rolos na minha mesa, vizinha à do Ulysses, para eu entregar ao editor de Internacional. Escusado dizer que o Ulysses, também conhecido como Uru, era o único funcionário da editoria. Ele chegava, limpava a mesa, me pedia os rolos com o noticiário das agências…Ia desenrolando e lendo… Às vezes achava alguma notícia interessante, principalmente no material da Ansa e da France Presse. Então gritava para o Narciso Kalili, que era o diretor de Redação: “Eu tenho uma chamada pra primeira”. Gritava, porque a mesa do Kalili ficava a menos de 10 passos de distância. Lembro do dia em que o Uru gritou: “Eu tenho a manchete!” De fato, a manchete do NP no dia seguinte saiu da área internacional, notícia transmitida pela Ansa ou France Presse: “Família janta rapaz com vinho na Argentina!”. Esse era o Uru, com quem eu trabalharia no JT e na Veja por anos a fio… Um jornalista à moda antiga, como não se fazem mais… (Fonte: 50anosdetextos.com.br)
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