Jornal da ABI 370

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Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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S ETEMBRO 2011

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

MUNIR AHMED

EDIÇÃO ESPECIAL

Julio Cortázar Eliakim Araujo Lan Nélson Rodrigues Roberto Mendes André Toral José Roberto Whitaker


NESTA EDIÇÃO ESPECIAL: JOSÉ ROBERTO WHITAKER PENTEADO, página 26 NÉLSON RODRIGUES, página 6

ELIAKIM ARAUJO, página 11

JULIO CORTÁZAR, página 4

ANDRÉ TORAL, página 18 LAN, página 39

ROBERTO MENDES, página 31

Jornal da ABI Número 370 - Setembro de 2011

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, André Gil, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira Impressão: Gráfica Lance! Rua Santa Maria, 47 - Cidade Nova - Rio de Janeiro, RJ

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CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros Efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho. Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,

Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros Suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


Editorial

Eles sabem demais e contam o que sabem POR MAURÍCIO AZÊDO O TRAÇO COMUM DAS PERSONALIDADES do jornalismo presentes nesta Edição Especial do Jornal da ABI é que são todos apaixonados pela comunicação, pelo jornalismo, ao qual devotam seu talento e dedicam ou dedicaram suas vidas, caso de Nélson Rodrigues, um dos monstros-sagrados aqui presente com suas desconcertantes opiniões, recolhidas num dia de jogo da Seleção Brasileira pelo repórter Geneton Moraes Neto. EXCEÇÃO NESSA PAIXÃO PELA comunicação seria talvez o escritor Julio Cortázar, não fora a sua literatura uma forma superior de comunicar, com o selo da ficção, experiências humanas que o tornaram um criador de dimensão mundial. Cortázar está presente aqui graças à sensibilidade e à competência do jornalista e escritor Rodolfo Konder, que, exilado no Canadá, no começo dos anos 1970, após terríveis padecimentos em prisão política no Brasil, recolheu de Cortázar informação preciosa sobre os rumos de sua obra: foi seu contato com a riqueza da Revolução Cubana que deu à sua criação literária o perfil que lhe granjeou admiração no mundo todo. ALÉM DO AMOR À COMUNICAÇÃO e ao jornalismo há entre os entrevistados, ouvidos em diferentes momentos de suas trajetórias pessoais e também da vida do País e do mundo, outras identidades que os transformaram, cada um a seu modo, em criaturas singulares, como o inconformismo revelado diante de situações que causavam repugnância às suas consciências, como no caso da decretação do

Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968, que Eliakim Araújo teve o desconforto de ler na Rádio Jornal do Brasil, e da tentativa de fraude, através do chamado “escândalo da Proconsult”, das eleições de 1982 para o Governo do Estado do Rio, rumoroso episódio que o mesmo Eliakim acompanhou pela mesma Rádio JB. Radicado há quase duas décadas em Miami, Flórida, Estados Unidos, onde mantém com a mulher, a também jornalista Leila Cordeiro, um site de grande agilidade e merecida repercussão, Eliakim faz o relato de uma aventura profissional extraordinária em que estão presentes virtudes exibidas também por outros profissionais entrevistados, como a busca da inovação e do pioneirismo. OS ASPECTOS COMUNS QUE OS relatos dos entrevistados apresentam não excluem a diversidade presente em cada trajetória individual aqui retratada, como a mudança de percurso de José Roberto Whitaker Penteado Filho, que já foi colunista de jornal especializado em publicidade e marketing e terminou por tornar-se uma autoridade nesse campo, capaz da audácia, como Diretor da Escola Superior de Propaganda e MarketingESPM, de criar um curso superior de Jornalismo depois que o Supremo Tri-

bunal Federal, numa desastrada decisão, declarou dispensável o diploma de Jornalismo ou de Comunicação Social para o exercício da profissão. AUDÁCIAS ESTÃO PRESENTES igualmente no desempenho profissional de André Toral, antropólogo e indigenista que adquiriu forte visão crítica da forma como são tratadas as populações indígenas do País, e de Roberto Mendes, um mestre da difusão do audiovisual que o grande público desconhece, apesar da larga e criativa contribuição que prestou à fixação e expansão desse bem agora essencial na vida moderna e sobretudo à divulgação do filme brasileiro, esse exilado em seu próprio país. SÃO DEPOIMENTOS DE GENTE que sabe demais e que em boa hora resolveu contar o que sabe, como esse admirável desenhista e figura humana Lanfranco Vaselli, que há décadas ilumina a criação artística e a vida cultural do Brasil com seus desenhos maravilhosos e sua alegria de viver no País como sua pátria de coração, o País do seu Flamengo, da sua Portela e das mulheres que ele exaltou com seu traço inigualável.


REPRODUÇÃO

J ULIO

CORTÁZAR Não há nada mais fantástico do que a imaginação do povo POR RODOLFO KONDER ENTREVISTA PUBLICADA EM 20 DE OUTUBRO DE 1977

O escritor argentino Julio Cortázar esteve recentemente em Quebec, para participar num encontro internacional de escritores, em Mont Gabriel, ao Norte de Montreal. Alto, magro, elegante, Cortázar parece um homem de menos de 50 anos – embora tenha comemorado o seu 63º aniversário. Recebeu-nos com uma grande cortesia, falando, com a sua voz profunda e um leve sotaque europeu, durante mais de uma hora, sobre a literatura e a literatura de Julio Cortázar.

ve, desde a primeira infância, com as palavras. Escrevi uma novela aos nove anos, com umas trinta páginas – e que minha mãe guarda e nunca me quis dar, porque teme que eu possa rasgá-la. Mas eu gostaria de vê-la. Desde os dez anos, devoro tudo o que me cai nas mãos. Li, com muito interesse, na época, os ensaios de Montaigne, aos doze anos. Lia tudo, então. Em consequüência de todas as leituras, tornava-se assim mais fácil para mim, escrever – e eu escrevia inclusive as composições de escola dos meus colegas de turma, que, por isso mesmo, gostavam ainda mais de mim.

sonata, aquilo é uma sinfonia – embora haja formas musicais que podem participar de ambas; então surge a inquietação, porque não podemos classificá-las. RODOLFO KONDER – NESTE SENTIDO, SERIA IMPOSSÍVEL, POR EXEMPLO, TRAÇAR O LIMITE ENTRE A POESIA E A PROSA, NA SUA OBRA...

Julio Cortázar – Eu, pessoalmente, seria incapaz de defini-lo, Para mim não há esse limite. Amplas passagens nas minhas novelas constituem, na minha opinião, desenvolvimentos poéticos. RODOLFO KONDER – VOCÊ

RODOLFO KONDER – CORTÁZAR: VOCÊ É MAIS DO QUE UM NOME – É UMA VASTA E COMPLEXA LITERATURA. COMO SURGIU ESTA LITERATURA E COMO ELA MODIFICOU O HOMEM, QUE OS LEITORES GERALMENTE DESCONHECEM?

Julio Cortázar – A gestação de uma literatura pode ser melhor vista pelos críticos do que pelo próprio autor. Sei que nasci para escrever, porque minha mãe me disse isso.

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Aprendi sozinho a escrever, com um jogo de cubos que continham letras. Um dia, aos dois anos de idade, li para minha mãe a manchete de um jornal; ela levou-me imediatamente a um médico, porque temia que aquela precocidade pudesse ser prejudicial à minha saúde. Com isso não estou a jactar, mas mostrando uma espécie de fatalidade, um contacto imediato, quase físico, que sempre manti-

RODOLFO KONDER - ISSO

EXPLICARÁ O

EMPREGA A

PALAVRA COMO UMA SEGUNDA VERSÃO DAS

FATO DE O SEU ESTILO LITERÁRIO NÃO PO-

COISAS A QUE SE REFEREM?

DER SER HOJE CLASSIFICADO?

Julio Cortázar – Se fizesse isso, teria uma impressão de empobrecimento. A palavra tem a sua essência própria, a sua conexão com o objeto que representa e um invento da inteligência humana – que, às vezes, pode nascer de uma certa onomatopéia, como os nomes dos animais que provêm do seu grito ou

Julio Cortázar – Alegro-me que me classifiquem o menos possível, porque considero as classificações como uma forma de compartimentação; em literatura, de empobrecimento. Há uma espécie de mania, típica do mundo ocidental, de decorrer às classificações. Isto aqui é uma

da sua cor. Acredito, porém, que a linguagem tem a sua autonomia essencial. Somente um realismo um pouco ingênuo aceitaria a identidade, a permanência de um objeto na sua objetividade, por assim dizer. Numa determinada medida, a literatura é a arte de mover os objetos e de mudá-los de lugar; é a arte de converter uma cadeira de veludo num receptáculo de muita coisa que nada tem a ver com a cadeira. RODOLFO KONDER – GARCÍA MÁRQUEZ DISSE QUE “O ESCRITOR NÃO ESCREVE A NOVELA, MAS É A NOVELA QUE ESCREVE O ESCRITOR”. ATÉ ONDE ISSO É VERDADE, NO SEU CASO?

Julio Cortázar – Neste sentido não tenho falsas modéstias. As influências que sofri vêm de outras literaturas, mais do que da minha. A minha literatura está profundamente entranhada em mim, enquanto produzo; depois, desligo-me dela – e não gosto sequer de reler o que escrevi. O que escrevi torna-se um pequeno planeta que gira por conta própria. Em troca, sinto como uma presença


quase física o impacto de certas literaturas, contos e novelas, sobre mim. Isso pode ter feito de mim o que sou – e não a minha própria obra. RODOLFO KONDER – NO ITINERÁRIO QUE REYES (OS REIS; CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA) ATÉ EL LIBRO DE MANUEL (O LIVRO DE MANUEL, NOVA FRONTEIRA),

VAI DE LOS

PAPEL MAIS DESTACADO NAS MODIFICAÇÕES OCORRIDAS: OS LIVROS QUE VOCÊ LEU, OU A REALIDADE QUE OS CERCA?

Julio Cortázar – As duas coisas, por certo. O mundo da literatura de língua espanhola, o mundo cultural Francês e a sua literatura, e o mundo anglo-saxão são os três domínios literários que compartilhei ao longo da minha vida – e que amo igualmente. A acumulação desta literatura fez de mim o que sou. Mas, felizmente, há outras coisas. Até a época em que escrevi El Perseguidor, a única coisa que me havia condicionado verdadeiramente era a literatura. A partir de então, comecei a descobrir o mundo tal qual é, e não apenas a partir do espelho dos livros; e comecei a ter um primeiro sentimento de responsabilidade, e a isso que se passou a chamar compromisso, uma palavra que se presta a tantos mal-entendidos. A partir de então, a influência da história tornou-se cada vez maior – e acho que isso se nota desde a publicação de Rayuela (O Jogo da Amarelinha, Civilização Brasileira), onde há uma recusa total da história. Rayuela ainda se move num território muito individualista, ontológico e metafísico, que fala do homem como essência e não do homem como indivíduo histórico. Daí em diante, a situação mudou para mim, e a influência avassaladora da literatura foi consideravelmente substituída por um sen-

RODOLFO KONDER – QUANDO VOCÊ FALA DA HISTÓRIA, FALA DA HISTÓRIA COM H MAIÚSCULO OU DA HISTÓRIA DO COTIDIANO, QUE A GENTE LÊ NOS JORNAIS?

Julio Cortázar – Sobretudo dessa última. A história das campanhas de Aníbal ou Napoleão pode interessarme como literatura, como exercício mental, apenas como fonte de interesse estético. Quando falo de História, refiro-me concretamente à América Latina, à sua espantosa História de todos os dias.

REPRODUÇÃO

QUAIS AS FORÇAS QUE DESEMPENHARAM

timento de participação histórica, que aumenta cada dia mais.

“O contato com este povo que fez a sua Revolução foi a hora da minha verdade, como se eu descobrisse que vivia parcialmente cego, antes.”

RODOLFO KONDER – EM EL LIBRO DE MANUEL, NOTA-SE A ENTRADA DA HISTÓRIA NA SUA LITERATURA, MAS, ISSO NÃO IMPEDE QUE OS SEUS PERSONAGENS TENHAM PREOCUPAÇÕES METAFÍSICAS...

Julio Cortázar – Claro que não. Não creio que a preocupação histórica tenha que ser paga com um empobrecimento da personalidade; ao contrário, digo no prólogo que o livro é sobretudo uma tentativa de colocar todo um mundo erótico, lúdico e solar no território da História, que se reflete nos comunicados e notícias. Não é sacrificando essas coisas que faremos a revolução ou alcançaremos uma definição verdadeira de latino-americanos. RODOLFO KONDER – COMO FOI QUE A SUA LITERATURA ENTROU NA HISTÓRIA?

Julio Cortázar – Isso resultou de um acontecimento de 1959, quando um pequeno grupo de 82 barbudos desceu de uma serra e tomou Havana, derrubando um tirano sangrento que se chamava Baptista. Este episódio, que cinco anos antes me teria deixado totalmente indiferente (porque eu estaria provavelmente lendo o último livro de

RODOLFO KONDER – VOCÊ DISSE UMA VEZ QUE NÃO ESCREVIA INTENCIONALMENTE.

E AGORA?

ARQUIVO PESSOAL

Borges, muito mais fascinado por isso do que pelos telegramas nos jornais sobre a tomada de Havana), este episódio entrou em mim como um furacão mental, e, sobretudo, como um furacão moral, porque tive pela primeira vez a impressão de que tinha vivido, até então, inteiramente alheio à realidade da América Latina – e de que aquele episódio não era gratuito, e importava avaliá-lo. Fiz isso, procurei informações, fui a Cuba em 1961, voltei, depois, várias vezes. O contacto com este povo que fez a sua Revolução foi a hora da minha verdade, como se eu descobrisse que vivia parcialmente cego, antes. Dei-me conta, por exemplo, de que muita coisa importante ocorrera na Argentina (como o peronismo, no seu primeiro momento), ao meu lado, sem que eu percebesse. A Revolução Cubana foi um catalisador, talvez porque eu estivesse mais maduro. Ocorreu naquele momento, porque não poderia ocorrer antes nem depois. RODOLFO KONDER – A

SUA LITERATURA

MUDOU?

Julio Cortázar – A partir daquele contato com Cuba naturalmente a minha literatura teria de mudar em algum sentido. Eu poderia continuar escrevendo contos fantásticos, como fiz, porque não poderia renunciar a isso; poderia continuar escrevendo novelas, mas é óbvio que, por diferentes portas e janelas, começava a entrar uma linha que culmina com El Libro de Manuel. RODOLFO KONDER – SEMPRE

NA LINHA

Julio Cortázar – Quando trabalho, tenho a consciência precisa de que este trabalho que faço para mim, ao ser concluído, deixará de ser para mim. E não irá para um leitor que antes era abstrato; irá para uma gente determinada, que está a sofrer, que está a lutar, que posso conhecer ou não – mas conheço historicamente. Coisa que antes não existia para mim. enriquecer imensamente os horizontes mentais do leitor. Neste sentido, a literatura fantástica é revolucionária. Além do mais, não há nada mais fantástico do que a imaginação do povo. Basta ver o folclore, as suas lendas, os seus mitos, os seus temores, os seus animais fantásticos. Quanto mais simples é um homem, mais fantástico, o seu mundo mental. A visão científica parece-me muito necessária, mas é preciso preservar os outros horizontes, um mundo lúdico, onde se insere um mundo fantástico. Em função dessa discussão com os cubanos, escrevi três contos, que integram o livro Alguién que anda por ahí (Alguém Que Anda por Aí, Nova Fronteira) – agora proibido na Argentina. RODOLFO KONDER – O ESCRITOR COMPROMETER-SE DIRETAMENTE?

DEVE

Julio Cortázar – O fato de um escritor não estar diretamente envolvido não deve ser nunca motivo de acusação. A acusação deve nascer quando este homem está comprometido noutro plano, com a reação, com os opressores. Como os cúmplices dos ianques, na América Latina. O curioso é que, às vezes, o escritor toma posição sem saber. Há escritores que não têm consciência disso. Em Buenos Aires, por exemplo, há gente que diz: “Estou contra a violência, da direita ou da esquerda”. Essa gente não refletiu sobre um fato essencial: que a violência da esquerda é uma reação contra a primeira força a desatar a violência – da direita. Para um liberal, isso não faz a menor diferença.

DO REALISMO FANTÁSTICO?

Exilado no Canadá em 1977, Rodoldo Konder vê a paisagem de Toronto na famosa CN Tower. No mesmo ano, encontra Cortázar em Quebec para uma entrevista exclusiva.

leitores adotaram uma atitude displicente com respeito aos novos autores. Eu, ao contrário, senti que havia, na maioria dos países latinoamericanos, gente jovem que estava a trabalhar muito bem – e os frutos desse trabalho já começam a aparecer. Basta ver a atual literatura mexicana, ou da Costa Rica, ou do Peru, ou de Cuba, naturalmente. Acho que a literatura latino-americana, neste momento, é sumamente rica e variada – e digo-o, sobretudo, por contraposição à literatura que leio, hoje, em França – uma literatura cansada, frouxa.

Julio Cortázar – Discuti o problema da literatura fantástica recentemente, com alguns escritores cubanos, que a consideram como uma literatura escapista. Acho que, ao contrário, uma certa dimensão do fantástico pode

RODOLFO KONDER – COMO VÊ A LITERATURA LATINO-AMERICANA DESTE MOMENTO?

Julio Cortázar – Sou muito otimista. Depois do boom dos anos 1960, que projetou supersonicamente cinco ou seis figuras, muitos críticos e

RODOLFO KONDER – O QUE DEVEMOS ESPERAR DE CORTÁZAR, NÓS PRÓXIMOS ANOS?

Julio Cortázar – Acabo de fazer 63 anos. Ainda me sinto jovem, mas já me cansa a vista, sinto-me mais fatigado, trabalho menos. A minha intenção é continuar a escrever contos – porque este é o veículo literário mais familiar para mim. Não sei se escreverei alguma novela. Tenho freqüentemente um sonho, há três anos: entro num escritório e vejo, numa caixa, o livro – escrito à mão cheio de fórmulas matemáticas. Isso, no sonho, é a genialidade do livro. Trata-se de um livro com o qual revolucionei definitivamente a literatura. É uma espécie de livro com que sonhava Mallarmé – onde a realidade encontraria a sua expressão final. Infelizmente, trata-se de um sonho. Ao despertar, no entanto, sinto uma grande vontade de escrever, não este livro impossível, mas uma novela. Preciso, porém, de circunstâncias pessoais mais favoráveis. Devo dizer – sem lamentações – que, nos últimos anos, especialmente desde o golpe de 11 de setembro, no Chile, levo uma vida muito extraliterária. Paris é uma plataforma a partir da qual se pode fazer muita coisa pelo Chile e pela Argentina, na medida do possível, através de tribunais internacionais, comissões e jornais. A minha vida já não é a do homem que fui, que dispunha de todo o tempo para escrever contos e novelas. Hoje, tenho pouco tempo; mas dentro desse tempo, continuarei a escrever. Entrevista publicada no jornal O Diário, de Lisboa, pertencente ao Partido Comunista Português. Ela foi feita a pedido do jornalista Miguel Urbano Rodrigues, Diretor do jornal, que viveu no Brasil como exilado durante a ditadura de Salazar e era amigo de Rodolfo. Sabendo que Cortázar estava em Quebec, pediu ao Rodolfo, que sabia estar exilado no Canadá, para fazer a entrevista.

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FOLHAPRESS

M

eu primeiro, único e último encontro com o gênio Nélson Rodrigues começou com uma dúvida devastadora: por que diabos ele teria marcado nossa entrevista justamente para a hora de um jogo da seleção brasileira? Não é possível, deve ter havido algum engano – eu pensava com meus botões, enquanto caminhava pelas calçadas do Leme, na beira-mar, no Rio de Janeiro, em direção ao apartamento do homem. Se Nélson Rodrigues escrevia aquelas crônicas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvio que ele não iria dar uma entrevista a um forasteiro pernambucano no exato momento em que a Seleção Brasileira entrava em campo, no Maracanã, com transmissão ao vivo pela tv. Se desse, como é que ele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguinte? Não, deve ter havido um grande equívoco. É melhor que eu desista. Nélson não iria dar entrevista alguma num momento tão inoportuno. Ou iria? Mergulhado num poço de constrangimento, aperto a campainha. A entrevista tinha sido marcada por telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo, vejo a imagem de Nélson Rodrigues esparramado numa poltrona. Os pés estão fora dos sapatos. Não faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de mangas curtas. Pende na parede da sala uma foto emoldurada de Nélson Rodrigues em companhia de Sônia Braga e de Neville de Almeida – atriz e diretor da versão cinematográfica de A Dama do Lotação. Quando a mulher avisa em voz alta que “o repórter de Pernambuco” estava na porta da sala, Nélson ergue os braços, agita as mãos, saúda o ilustre desconhecido com uma exclamação calorosa, como se reencontrasse um amigo de infância: “Conterrâneo! Conterrâneo!”. O cumprimento efusivo não afasta o temor de que Nélson tenha cometido um pequeno equívoco: ao marcar a entrevista para aquele horário, ele bem que pode ter se esquecido de que a Seleção Brasileira iria entrar em campo dentro de instantes. A hipótese pode parecer absurda, mas quem sou eu para menosprezar as possíveis excentricidades de nosso herói? Tento uma solução alternativa para escapar de um vexame: digo que posso voltar depois para gravar a entrevista; não quero importunálo na hora do jogo. Teatral, Nélson Rodrigues repousa a mão direita sobre o peito, como se sugerisse uma pontada no coração. Olha para a televisão, pede à mulher: “Tirem o som desse aparelho! Tirem o som desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!” A mulher e a irmã de Nélson riem da cena teatral. Hiperbólico, épico, exagerado, o homem é uma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de que acabo de me transformar em solitário e privilegiadíssimo

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NÉLSON

RODRIGUES As incríveis cenas dos bastidores de um encontro com Nélson Rodrigues, maior dramaturgo brasileiro, pernambucano exilado no Rio, estilista número um da crônica esportiva. POR GENETON MORAES NETO E NTREVISTA REALIZADA EM 1° DE MAIO DE 1978


espectador de um espetáculo teatral chamado Nélson Falcão Rodrigues, encenado pelo próprio autor. A ordem de Nélson – “tirem o som desse aparelho!” – é imediatamente atendida. O aparelho de tv fica mudo. A Seleção entra em campo: Leão; Toninho, Oscar, Amaral e Edinho; Batista, Toninho Cerezo e Rivelino; Zé Sérgio, Nunes e Zico. Assim, este forasteiro se vê de repente na condição de coadjuvante de uma cena surrealista: diante de uma tv sem som que transmitia o jogo da Seleção Brasileira contra o Peru, o autor das mais brilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasileiro simplesmente tira os olhos do vídeo para responder ao interrogatório de um visitante que chegou em hora inconveniente, munido de um gravador e um bloco de anotações. Improvisado como fotógrafo, o também pernambucano Wilson Urquisa vai flagrando, com uma velha Olympus, as poses teatrais de Nélson Rodrigues.

por exemplo, a inapetência de nossos escritores brasileiros em tratar do futebol. Numa de suas tiradas clássicas, reclamou : “Nossa literatura ignora o futebol – e repito: nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral.” A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados em nossos jornais. Virou lugar-comum dizer que Nélson Rodrigues reclamava de que nossos escritores não sabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão. A implicância de Nélson era com literatos incapazes de cobrar um lateral. Mas, a bem da verdade, os que deturpam a queixa de Nélson não estão inteiramente errados: não apareceu ainda um escritor brasileiro capaz de bater um escanteio ou um lateral... Alheio a esta fraqueza nacional, Nélson parece distante da disputa que se desenrola, ali, diante de nós, no vídeo da tv, entre a Seleção Brasileira e o escrete peruano. Faz ao

Digo a ele que não: é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah, sim!”. Teria dois outros motivos para vibrar: o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes – faria dois gols, aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo, para fechar o placar : Brasil 3 x 0 Peru. Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver? Eis: “Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz. Mas não quero ter fantasias esplêndidas. O jogo Brasil x Peru, ontem, no Mário Filho, não assustou a gente. Diz o nosso João Saldanha: “O Brasil fez seu jogo, jogo brasileiro”. Vocês entendem? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quando um de nós se esquece da própria identidade, ganha de qualquer um. Outra coisa formidável: na semana passada, um craque

questão de tirar a dúvida com o maître. Para quê? As cenas que Nélson Rodrigues protagonizou nesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista. Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dispensa ao repórter um tratamento afetuoso: chama-me de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço de Nélson, estico a conversa até o limite máximo. Não quero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que, delicadamente, interrompe o questionário no instante em que Nélson fez uma pausa para engolir uns comprimidos. Ao autografar o exemplar do livro de crônicas O Reacionário – consultado durante a entrevista –, Nélson Rodrigues oferece-me uma dedicatória dúbia: “A Geneton, amigo doce e truculento – Nélson Falcão Rodrigues”. Quase um quarto de século depois (a entrevista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço novamen-

Nélson – A coisa é a seguinte: escrever para mim, muito mais do que uma decisão profissional, é um destino. Escrever é o meu destino! Não é um caso de opção. Eu só tinha esta opção, uma vez que nasci assim. GENETON – O SENHOR SE CONSIDERA UM ESCRITOR POR VOCAÇÃO ?

Nélson – Digo que, no meu caso, eu nem precisava de vocação, porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante! Eu tinha de ser aquilo. Se você chegasse junto de mim e pedisse para eu ter outra profissão, podia até dar dinheiro para que eu tivesse outro destino, não seria absolutamente possível. GENETON – O INÍCIO FOI COM FICÇÃO OU COM JORNALISMO?

Nélson – Eu estava no quarto ano primário na Escola Prudente de Morais. Uma dia, a professora – que mandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estampa, para que nós,

Cenas de um encontro com um gênio: “Ao cretino fundamental, nem água” Fui testemunha ocular de uma verdade inapelável: Nélson Rodrigues era um cronista tão perfeito que nem precisava ver o jogo. O resultado da partida, as escaramuças dos jogadores, os esquemas táticos, todas essas bobagens não passavam de detalhes secundários aos olhos do gênio. A Nélson Rodrigues importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de beques ou atacantes no retângulo verde. O relato dessas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas da objetividade” – estes pobres seres que só são capazes de enxergar a rala superfície dos fatos. A missão que Nélson Rodrigues outorgou a si mesmo era outra: traduzir em palavras a dimensão épica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que, então, perder tempo com miudezas? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na tv? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru? Para que saber se o meio-decampo do Brasil estava ou não estava inspirado? “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana. Às vezes, num córner bem ou mal batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”, ele escreveu uma vez. Nélson Rodrigues preferia se ocupar de questões metafísicas – como,

repórter uma pergunta incrível: “Quem é o nosso adversário hoje?” Informo que é o Peru. Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário. Quando Zico faz um a zero, aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo, Nélson interrompe a entrevista para inaugurar, aos brados, uma nova expressão exclamativa: “Que coisa beleza! Que coisa beleza!” Depois, pede à família: “Pessoal, com licença dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso.” Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que “fechar a máquina” significa desligar a televisão – o que, aliás, não foi feito. Nélson dispara, então, um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho: “Mas esses rapazes são uns gênios! Uns gênios!” O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era “nosso adversário”. Agora, ao ver o replay do gol recémmarcado, toma um susto: “Mas já houve dois gols?”

nosso veio me dizer : ‘Nélson, é preciso que você não se esqueça: ao cretino fundamental, nem água.’ O jogo foi lindo.” Penso com meus botões que Nélson não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotas da objetividade” se encarregariam de registrar, nas páginas esportivas, o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais? Aos cretinos fundamentais, nem água. A lista de surpresas nessa tarde no Leme não se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entrevista, Nélson pergunta ao repórter: “E então, você me achou muito reacionário?” Não, claro que não. Em seguida, pega o telefone, liga para a cozinha do Hotel Nacional, identifica-se e faz uma pergunta a um maître provavelmente atônito: “Companheiro, aqui é Nélson Rodrigues. Qual é o prato do dia?” Ouve a resposta em silêncio, desliga o telefone. Recolhido ao sossego do lar, no fim de tarde de um feriado, já parcialmente debilitado por doenças que lhe encurtavam o fôlego, Nélson jamais se animaria a ir até o Hotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fez

te a fita, releio a transcrição da entrevista. Confirmo que Nélson Rodrigues é um caso raríssimo de escritor que falava como escrevia. Só há outro caso : Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistas dos dois em certos momentos se assemelham aos textos que escreviam, o que é uma façanha: a linguagem falada normalmente é mais pobre que a linguagem escrita. Mas a regra – guardadas as naturais diferenças entre o que se fala e o que se escreve – nem sempre valia para os dois. A entrevista foi embalada por citações ao livro O Reacionário, lançado por Nélson meses antes. Durante toda a entrevista, Nélson fez, repetidas vezes, citações a histórias e personagens descritos na obra. De vez em quando, entre uma resposta e outra, ele mudava repentinamente de assunto; parecia afogado em divagações. Chegou a reclamar: “Eu estou tendo lapsos lamentáveis....”. Assim, frases de O Reacionário complementam, nesta entrevista, as respostas gravadas por Nélson Rodrigues. Os melhores momentos do diálogo improvável entre Nélson Rodrigues – o gênio que se intitulava “a flor da obsessão” – e o repórter intruso: GENETON MORAES NETO – QUANDO FOI QUE NÉLSON RODRIGUES DESCOBRIU QUE NASCERA PARA ESCREVER?

alunos, fizéssemos em torno da vaca toda uma história – disse: “Olhem aqui: Hoje vocês vão ter de escrever da própria cabeça. Agora não é mais sobre a vaca pintada”. E então deixou que cada um de nós fizesse o seu drama, o seu projeto dramático. Duas histórias tiveram o primeiro lugar. A do meu adversário era uma história de um daqueles magnatas que davam passeios. Ele descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito. E pronto. A minha foi inteiramente diferente. Eu fiz a história de uma moça que era uma fera. Quase uma dama do lotação. Um dia, o marido chega em casa mais cedo e, quando empurra assim (imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta), entra em casa, segura o amigo traidor e enfia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empatamos. O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma concessão ao convencional. Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista. Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobre adúltera que morreu de maneira tão melancólica. O traidor morreu também de maneira melancólica: direi, a bem da verdade, que a minha história causou um horror deliciado. Eu era, para todos os efeitos, um pequeno monstro. Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional

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e repórter: esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça…

GENETON – O

JORNALISMO BRASILEIRO

CONTINUA PADECENDO DE OBJETIVIDADE – QUE O SENHOR CONSIDERA UMA “DOENÇA GRAVE”?

GENETON – PARA O SENHOR – QUE É CONSIDERADO UM MESTRE NESSE OFÍCIO – O QUE É NECESSÁRIO PARA RETRATAR, NUM TEXTO TEATRAL, O MUNDO DESSES PERSONAGENS SUBURBANOS DAS NOSSAS CIDADES?

Nélson – Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcionista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro chamamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Não é apenas uma facilidade, mas um destino destino” (pronuncia em tom dramático esta palavra) GENETON – A INSPIRAÇÃO É UMA ENTIDADE QUE EXISTE PARA O SENHOR?

Nélson – O negócio da inspiração é o seguinte: eu considero a inspiração, ao contrário de Valèrie, que só via a máquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisa que o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com a experiência. GENETON – DENTRE AS PEÇAS QUE ESCREVEU, QUAL A QUE O SENHOR CONSIDERA COMO DEFINITIVA, COMO A OBRA ACABADA DO DRAMATURGO NÉLSON RODRIGUES?

Nélson – O mais importante para mim, até o momento, é o dramaturgo. Volta e meia, me sinto muito perplexo diante de certas manifestações que me induzem ao teatro, embora o teatro tenha um defeito: tenho, de vez em quando, vontade de fazer certas experiências não teatrais dentro da área de literatura, mas sem ter nada de dramático. GENETON – DENTRE AS PEÇAS JÁ ESCRITAS, QUAL É A PREDILETA?

Nélson – Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo que são todas as prediletas. Não tenho prediletas (ri). Todas são favoritas. Já pensei muito em querer discriminar qual a minha melhor peça, mas não sei.

Nélson – O idiota da objetividade é o jornalista que tem grande fama, todo mundo, quando fala dele, muda de flexão. Mas eu acho o idiota da objetividade um fracasso. Isso num julgamento absoluto. O idiota da objetividade é também um cretino fundamental. GENETON – QUAIS FORAM AS CAUSAS DA OCORRÊNCIA DESSE CULTO À OBJETIVIDADE QUE, NO CONCEITO DO SENHOR, CORRESPONDE À FALTA DE EMOÇÃO?

Nélson – Pois é, é esse o negócio (ri de novo). É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. Olhe aí (e mostra a crônica A Desumanização da Manchete): “O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copidesque, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.”

GENETON – QUE AUTORES BRASILEIROS DE

pórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer. A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um sujeito queria uma vala especial para o canário, o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismo de antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituído pela veracidade, que, como se sabe, canta muito menos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.

que é que você pode fazer contra o cara? Deu um tiro no peito, ia ser deposto. E só porque ia ser deposto ele se mata. Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor. Então, o que fazia ele? Propunha à pequena o suicídio, um pacto suicida. Rara era a pequena que duvidava. O lindo era a vontade, o encanto com que esse par de amorosos se matava e cumpria o seu destino. Esse é que é o caso. GENETON – QUER DIZER ENTÃO QUE NA HISTÓRIA RECENTE DO BRASIL O SUICÍDIO DE GETÚLIO VARGAS SERIA O ÚLTIMO GRANDE FATO QUE MERECERIA UM PONTO DE EXCLAMAÇÃO DO SENHOR NUMA MANCHETE DE JORNAL?

Nélson – Olhe: quando eu digo merecer a manchete de jornal… (interrompe, olha para a televisão, comenta a iminência de um gol da seleção brasileira, distrai-se, retoma a conversa de um ponto anterior). Você compreendeu como é o caso? Antes de certo tempo aí, achavam que era uma coisa gravíssima o sujeito se matar, era uma covardia. E nem ele nem a menina acreditavam que isso fosse um defeito, o defeito de se matar: alguém ter o direito de destruir o próprio amor e o amor do outro. Mas os dois se destruíram. O sujeito achava que era uma maneira de coroar o próprio amor. Agora, a nossa realidade está realmente muito pobre, muito vazia, sem um certo apelo dramático. Ninguém hoje quer morrer, ninguém quer se suicidar! Ali o sujeito só queria destruir o amor. E aí a sogra ia cuspir na morte do sujeito que lhe matara a filha. GENETON – O SENHOR LÊ A CHAMADA IMPRENSA ALTERNATIVA?

Nélson – Alternativa o quê? GENETON – QUE FATOS OU SITUAÇÕES BRA-

GENETON – A AUSÊNCIA DE UM PONTO DE

UM PONTO DE EXCLAMAÇÃO NUMA MAN-

DEIROS ARTISTAS DO TEATRO?

EXCLAMAÇÃO NUMA MANCHETE FAZ FALTA

CHETE DE JORNAL?

GENETON – A IMPRENSA ALTERNATIVA, ESSES NOVOS JORNAIS QUE TÊM SURGIDO, O SENHOR LÊ?

Nélson – Vou pular esta, porque tenho autores que são inimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Um autor que é um amigo tem todos os defeitos…

AO LEITOR COMUM?

Nélson (pensativo, com olhar distante) – Deixe-me ver… O negócio é o seguinte: houve num desastre uma coisa atroz que foi uma explosão. Morreram seiscentos sujeitos, segundo as manchetes da ocasião. Todo mundo fazia coro… E outro caso de repórter que não era idiota da objetividade: o sujeito foi fazer a cobertura de um desastre de trem. Geralmente, em desastre de trem, morria gente pra burro. Agora, morre muito menos, não sei por quê. Mas qual é o fato? Deixe-me ver… Ah, o suicídio de Getúlio Vargas foi de uma brutalidade incrível. Uma coisa bonita é que foi uma coisa misteriosa, aí é que não entrou objetividade nenhuma. Morreu, então o cara passa a ser um deus. O

Nélson – Eu leio de vez em quando mas não faço questão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal não é o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leio um jornal que não seja rigorosamente o jornal da véspera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do próprio dia. São fatos da véspera , figuras da véspera. O fato do dia não existe e ou só existe para rádio e as tvs. No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal. E assim o marido que matava a mulher e a mulher que matava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o dramatismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre

HOJE O SENHOR CONSIDERA COMO VERDA-

GENETON – O SENHOR DIZ SEMPRE QUE “A ADMIRAÇÃO CORROMPE”. É O CASO?

Nélson – É isso, é o caso. A admiração corrompe. O amigo que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa nenhuma, porque ele próprio não consegue se prender. Então, começa a fazer insinuações e etc… Como eu sinto, evidentemente, o nosso amigo, o inimigo, com a maior facilidade, então eu prefiro o inimigo (ri). GENETON – SE O SENHOR FOSSE LEVADO A FAZER UMA HIPOTÉTICA OPÇÃO ENTRE O TEATRO E O JORNALISMO, QUAL DOS DOIS PREFERIRIA?

Nélson – O teatro! E não é um problema de qualidade intelectual não.

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“A Noite era um jornal amado. O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou a não ler. Ler ou não ler era um detalhe insignificante.”

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SILEIRAS O SENHOR CONTEMPLARIA COM

Nélson – Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância, havia primeiro o Correio da Manhã, um jornalaço. E havia A Noite – que vendia muito mais. E era um jornal muito mais amado pelo leitor. A Noite era um jornal amado (acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia mal isto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismo permitia, por exemplo, que você fosse fazer a cobertura de um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro, uma gaiola e metesse a gaiola com um pássaro lá num certo ponto da casa em chamas. E aí o repórter que não era idiota da objetividade dizia que o nosso querido fotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminava dizendo: “Morreu cantando” (a essa altura, Nélson Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O re-

“A novela dá de comer à nossa fome de mentira.”

nós e a notícia, entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ou privada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de moda do que charleston, do que o tango. GENETON – NÃO HÁ NENHUM FATO DO DIA…

Nélson – Pelo menos a gente tem essa impressão. O que nós chamávamos antigamente de furo não existe mais. Todos hoje acham que podem viver sem o furo, ao passo que, no meu tempo, quando eu era garoto, um furo de reportagem era tudo. Era o grande momento da carreira. Agora, para falar de manchete, outro fato formidável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São Francisco era o local próprio para o sujeito se manifestar. E quando havia muitos interessados em se manifestar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fizeram uma coisa qualquer com o Chefe de Polícia. E o Chefe de Polícia – que era um santo – assinou uma portaria proibindo os estudantes não sei de quê nem ninguém sabe. Tudo que houve foi por conta da falta de bossa, da falta de inteligência dos nossos queridos estudantes. E então os estudantes resolveram fazer um “enterro” do Chefe de Polícia – que era um velho general, sujeito que acreditava em honra, num tempo em que ninguém sabia o que era honra. O general era um santo homem e então achou que aquilo era brincadeira de estudante. E lá foi ele dizendo aos queridos investigadores que não queria machucar ninguém. Nada de bala, nada de punhal, dizia o nosso general. E no dia do “enterro”, os estudantes carregavam o caixão, todos levando uma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens da Polícia, furiosos com a questão, simplesmente acharam de matar três estudantes. Aí foi aquela coisa tremenda. Houve então uma manchete, a manchete mortal da imprensa brasileira. Um jornal descobriu uma manchete fantástica (muda a flexão de voz, entusiasmado). A manchete quase derruba a Presidência da República, a Vice-Presidência, o Chefe de Polícia imediatamente se demitiu, foi embora, não quis mais nada, achando-se culpado. Inventaram uma manchete que até hoje eu gosto de ouvir… GENETON – QUAL FOI?

Nélson – Era assim: Primavera de Sangue (pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quase derruba o Presidente da República, o Ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete. Quero dizer que, se você quiser, com uma frase bem trabalhada, você resolve o caso. GENETON – DE QUANDO FOI ESSA MANCHETE?

Nélson – Eu era garoto, tenho


agora sessenta e cinco anos. E foi na altura dos meus dez anos. Agora, eu sei disso tudo pelas informações do pessoal. O cara que fez esta manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil réis. Só o Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião (ri). GENETON – O SENHOR SE INTERESSA POR POLÍTICA PARTIDÁRIA?

Nélson – Eu não sou ninguém para dizer certas coisas, mas o bom no brasileiro é que ele, sem saber de nada, diz coisas horrendas. GENETON – QUAIS SÃO OS POLÍTICOS BRASILEIROS QUE O FASCINARAM OU FASCINAM HOJE? EXISTE ALGUM NOME QUE O SENHOR QUEIRA CITAR?

Nélson (Pausa de alguns minutos, ele está pensando) – Num desses momentos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado, porque para

um sujeito se apresentava como brasileiro, as pessoas de bem respondiam: “Não te conheço!”. E muitos duvidavam que o Pão de Açúcar ou o poente do Leblon fossem brasileiros. Olhe: houve tempo em que a mulher mais séria do mundo, mais digna, mais respeitável se deixava envolver por um poeta, se abandonava por um soneto. Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje, o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois de quinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já não adianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorou da minha tia Yayá. E se você perguntar “Qual foi o maior homem que você viu no mundo?”, eu acho que esse tio está no segundo ou terceiro lugar, porque o desgraçado, ele amava a mi-

“Em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu.”

com oitenta e tantos anos, sempre bêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigo o meu horror ao bêbado. Mas ele me ensinou também uma série de coisas lindas. Por exemplo: o amor. Meu tio Chico me ensinou a amar. Embriagou-se em cada minuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante e depois. Yayá costurava para o casal não morrer de fome. Mas eu, menino, queria amar e ser amado como esse alcoólatra enlouquecido. Era um amor que hoje não existiria. A minha tia Yayá deu graças a Deus que ele tivesse se apagado. Agora ninguém ama mais, eis o que comecei a descobrir desde os treze anos de batalha. Você ponha aí: o meu tio Chico e sua bem amada Yayá. Era um negócio impressionante. GENETON – POR QUE É QUE O SENHOR DIZ, DESSE JEITO, QUE HOJE NINGUÉM AMA MAIS? AGÊNCIA O GLOBO

tive um cachorro, o nosso querido Boogie-Woogie, que ficava diante da minha casa amando sua querida cachorra. Ela ficava lá, digníssima, empinada, recebendo as homenagens. Os carros passavam e achavam o cachorro louco. E esse nosso amigo, o cachorro, era muito mais humano que a mulher dos nossos tempos. Elas se meteram a bestas. GENETON – O BRASILEIRO CONTINUA SENDO UM “NARCISO ÀS AVESSAS QUE COSPE NA PRÓPRIA IMAGEM”, COMO O SENHOR DIZIA?

Nélson – Continua, continua! GENETON – QUAL É O REMÉDIO PARA ISSO?

achar um sujeito, poder dizer um político interessante… Eu acho que só Napoleão Bonaparte! (ri). GENETON – O SENHOR JÁ DISSE QUE UM DOS TRAÇOS DO CARÁTER NACIONAL É O FATO DE QUE O BRASILEIRO ADERE A QUALQUER PASSEATA. QUAIS SERIAM OS PRINCIPAIS TRA-

nha tia Yayá. Ele já não precisava mais beber para estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso, fazia uma considerável economia de dinheiro… Em minha família houve um bêbado indubitável, foi este meu tio Chico. Como sujeito que bebe muito, ele durou pra burro. Morreu

ÇOS DO NOSSO CARÁTER NACIONAL?

Nélson – O brasileiro é um tipo gozadíssimo. O diabo é que o brasileiro não pode se esforçar muito porque senão cai na chanchada trágica. O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um desses que em pleno velório põe a mão na viúva. E a viúva é também um caso sério porque este negócio de viúva vocacional é um fato. Há realmente um repertório sensacional de casos. O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. Houve um tempo em que nem o Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil sabia quem era o brasileiro. Mas se

“É incrível esse negócio da mulher moderna. Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina.”

Nélson – Meu bem, se a evidência objetiva e espetacular vale alguma coisa, o homem não ama mais. E não ama mais porque o nosso cenário se povoa de sujeitos que são débeis mentais absolutos. O sujeito já não acredita em amor, pra começo de conversa. Não acredita em amor. O sujeito acha que todo mundo é a mesma coisa, e apesar disto, se diz marxista. É uma coisa esterilizante que há na vida brasileira, sobretudo carioca. O carioca é esse sujeito fascinante só na base dos defeitos que tem. Arranja logo casamento e é uma besta. E todo mundo diz: “Oh, que coisa, que amor!”. E eu me lembro de uma menina grã-fina mesmo… Aliás, diga-se de passagem que eu não acredito na existência da grã-fina nem do grãfino. Dou-lhes este nome. Mas é incrível esse negócio da mulher moderna (fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento). Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco feminina. Eu

Nélson – O remédio para isso? Nunca. Para isso não há remédio. Veja que o Brasil ganhou três vezes o campeonato mundial. Se ganhou três vezes, e se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo, tudo salvo. Ganhou três vezes no futebol, feito como esse ninguém teve e não se conhece isso. O brasileiro tem virtudes. É bom fazer uma ressalva nesses defeitos que digo. Isso o torna extremamente simpático. Aquela volubilidade… O sujeito ora ama aqui, ora ama ali… Vai lá pra chegada do trem elétrico, vai arranjando os seus amores que, aliás, duram geralmente vinte e um dias, quando duram. Há pessoas que casam e lá na sacristia estão os convidados fazendo apostas sobre a duração daquele casamento. E você pode ficar sossegado porque aquele casamento está inteiramente liquidado antes do começo. Há amores, entendeu, que o sujeito traz consigo e realmente são sinceros. Mas evidentemente, não existe este amor, porque o nosso querido Brasil… Olhe: em 1958, quando o nosso querido Brasil voltou campeão da Copa, foi o maior futebol que jamais se viu… Diga-se de passagem que eu considero o brasileiro o maior sujeito do mundo. O europeu já está esgotado. O europeu tem na casa dele pires de mil anos. Escadas de mil anos. Tudo é velho pra burro. Já com o brasileiro é inteiramente diferente. É como se ele estivesse sempre há quinze minutos do fato. Um negócio genial. (Nélson tinha mudado de assunto; volta ao futebol) Basta o sujeito passar quinze minutos assistindo a

um jogo importante desses camaradas. Esses rapazes são uns gênios. Mas o sujeito pensa que isso não é importante e sai, nem liga. Mas quando o negócio vai se transmitir em forma de gorjeta, aí então o brasileiro é um feroz… GENETON – O SENHOR DIZ TAMBÉM QUE A PAISAGEM DOS PAÍSES DESENVOLVIDOS É TRISTE SEM IMAGINAÇÃO…

Nélson – É. Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, costumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. É trágica a falta de imaginação da paisagem no país desenvolvido. O desenvolvimento é burro, ao passo que o subdesenvolvimento pode tentar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida. O diabo é que o Burle Marx, no Brasil, faz o que nem o europeu faria lá. O nosso Burle Marx retira a flor da paisagem. Dizem que o Amazonas é a coisa mais gigantesca do mundo. O nosso Burle Marx só usa uma cor, a verde, e danem-se as outras cores. Fiz esta anotação e ele me disse numa entrevista dele que o teatrólogo Nélson Rodrigues, com certeza, não estava olhando para a paisagem, não viu outra cor, se não a verde. Fui espiar lá e, realmente, o

“Se o brasileiro não fosse o otário que é, estava tudo salvo.” único paisagista do Aterro do Flamengo é o Exército, porque acrescentou, ao Monumento dos Pracinhas, algumas flores, umas dezessete flores. O paisagista foi o Ministro da Guerra. O nosso querido Burle Marx, a quem muito admiro, não pôs flores no Aterro, e com a maior tranqüilidade do mundo. Não precisa prestar atenção… O negócio das cores… (Nesta altura da conversa, ele ri e confessa: “Eu estou tendo lapsos lamentáveis…”). Você sabe o que é o sujeito fazer uma bobagem e negar a verdade? Se ele aceitar o erro, está bem. Agora, quando o sujeito fica impune… A impunidade faz de um São Francisco de Assis um canalha. Ele comete um ato e ninguém o prende, ninguém o ameaça, sequer. É este o caso de Burle Marx. Como ele está faturando cada vez mais, não liga por ter feito um jardim onde só existe uma cor e onde não tem uma violeta. Ele está cada vez faturando mais, e mais fiel aos seus erros, porque descobriu que o erro está muito mais perto do êxito. Já falei pra burro, agora você está satisfeito, não é? E vai querer continuar…

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GENETON – AGORA, UMA EXPLICAÇÃO PARA

“A Europa é uma burrice aparelhada de museus.”

AS CAUSAS DO RANCOR E DA IRONIA FEROZ QUE O SENHOR CULTIVA DIANTE DE SEUS PERSONAGENS, COMO POR EXEMPLO, “AS VER-

“Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. O repórter mente pouco, mente cada vez menos.”

Nélson – O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem achar que elas tenham obrigação de agir como grã-finas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonieta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina…”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácio e ela disse: “Se não tem pão, comam brioche”. Então, a Maria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto, eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um erro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina do mundo é a Maria Antonieta. De então para cá nunca mais vi uma grã-fina. E muito menos uma grãfina paulista que é gorducha, porque tem dinheiro à beça para comer. E come. Mas não existe. A nossa querida grã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro, e está furiosa porque não tem, então assume diversas atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: “Na minha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finas não existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.

ANIBAL PHILOT-AGÊNCIA O GLOBO

DADEIRAS GRÃ-FINAS”…

“Daqui a duzentos anos, os historiadores vão chamar este final de século de “a mais cínica das épocas”. O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas.” “Sexo é para operário.” “O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História.” “A pior forma de solidão é a companhia de um paulista.” “Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos.”

GENETON– E AS “ESTAGIÁRIAS DE CALCANHAR SUJO”?

Nélson – Já as estagiárias têm uma existência feroz…(ri, acentua o tom de voz). Sobre nossa querida estagiária, eu vou te dizer o seguinte: é incrível. Meninas que não serviriam para babá nem poderiam entrar num cinema para ver filme francês ou meu próprio filme, A Dama do Lotação, fazem atitudes que os bocós consideram geniais. O que assombra na estagiária não é a sua graça pessoal, mais discutível, menos discutível, segundo cada caso. O que me assombra são as suas perguntas e repito: são as perguntas que tornam a estagiária um ser tão misterioso e absurdo como certas imagens de aquário. Uma dessas meninas irreais de Redação é bem capaz de atropelar um presidente, um rajá, um gangster ou um santo ou, simplesmente, uma dessas velhas internacionais que embarcam em todos os aeroportos e perguntar: “Que me diz o senhor, ou a senhora, de Jesus Cristo do Nada Absoluto, do Todo Universal ou da pílula?” Você veja: uma delas foi incumbida de entrevistar um milionário. Ligou para a casa do milionário, disse: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. Do outro lado, uma voz responde: “Dr. Fulano não está passando bem”. E a menina insiste: “Então, pergunta a ele se…”. Desligam e a estagiária disca novamente, não com o dedo, mas com o lápis: “Eu queria falar com o Dr. Fulano”. A pessoa diz, desatinada: “Minha senhora, o Dr. Fulano acaba de ter um enfarte. Enfarte, minha senhora, enfarte. A senhora quer que eu diga mais do que estou dizendo?”. E a estagiária: “Vai lá e

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Pérolas rodrigueanas A coleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. Rui Castro organizou, para a Companhia das Letras, um volume que reúne, sob o título de Flor de Obsessão, as “mil melhores frases” do homem. Se quisesse, reuniria três mil, como estas vinte:

“As grandes convivências estão a um milímetro do tédio.” “Todo tímido é candidato a um crime sexual.” “Todas as vaias são boas, inclusive as más.” “O Presidente que deixa o poder passa a ser, automaticamente, um chato.” “Não gosto de minha voz. Eu a tenho sob protesto. Há entre mim e minha voz uma incompatibilidade irreversível.”

“O brasileiro é um feriado.” “O Brasil é um elefante geográfico. Falta-lhe, porém, um rajá, isto é, um líder que o monte.” “Sou a maior velhice da América Latina. Já me confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias.”

“Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf.” “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota.” “Na vida, o importante é fracassar.”

“Sou um suburbano. Acho que a vida é mais profunda depois da Praça Saenz Peña. O único lugar onde ainda há o suicídio por amor, onde ainda se morre e se mata por amor, é na Zona Norte.” “O adulto não existe. O homem é um menino perene.”

pergunta a ele o que é que ele acha da pílula. Eu espero”. A família do enfartado toda se descabelando… o que, aliás, é raro, porque, no nosso tempo, a família chora muito pouco. O inimigo da morte – que é o clínico – dá logo um furioso calmante. A estagiária então liga novamente. Dá sinal de ocupado. Continuou, com uma obstinação fatalista. E sempre ocupado. Uma hora depois, atendem. Era uma mulher que ou estava gripada ou chorando. A estagiária diz: “Por obséquio, eu queria falar com o Dr. Fulano”. Responde a voz feminina: “O Dr. Fulano acaba de falecer”. E a estagiária: “A senhora diz a ele que é só uma perguntinha”… e etc. Agora, há um dado que me parece essencial. As entrevistas das estagiárias têm uma virtude rara: nunca saem. Falo por experiência própria. Quase todos os dias, uma estagiária me caça pelo telefone. E eu falo sobre todos os temas e personalidades. Opinei sobre os Kennedy, João XXIII, o Kaiser, Gandhi. No dia seguinte, abro o jornal e vejo que não saiu uma linha. Mas uma coisa curiosa: não só as estagiárias. Profissionais da melhor qualidade estão seguindo a mesma linha. Posso dizer que a nossa imprensa criou o novo gênero de entrevistas que não serão publicadas nem a tiro. GENETON – O QUE É QUE O RECIFE SIGNIFICA PARA O SENHOR HOJE?

Nélson – Eu gosto do Recife pra burro. Vim de lá aos cinco anos de idade. Fiquei lá até o ano de 1929. Você veja: me dá pena estar pensando no Recife e nunca ir lá. Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife. GENETON – O VOLTAR ?

SENHOR NÃO PENSA EM

Nélson – De vez em quando eu faço evocações... (Um dos textos do livro O Reacionário traz lembranças da cidade). Toda a minha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitanga brava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ou primeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir. GENETON – O SENHOR NÃO VOLTA AO RECIFE PORQUE TEM MEDO DE AVIÃO?

Nélson – Acho chato viajar de avião, não quero voar, a não ser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil. GENETON – QUAL FOI A ÚLTIMA VEZ QUE O SENHOR ESTEVE NO RECIFE?

Nélson – Em 1929. Tenho um sadio horror de avião.


FRANCISCO UCHA

ELIAKIM

A RAUJO

É importante estar sempre na luta, nunca se acomodar POR FRANCISCO UCHA Uma pergunta despertava minha curiosidade, assim que conheci a voz de Eliakim Araujo ouvindo a programação da Rádio Jornal do Brasil, nos anos 1970: por que um locutor com aquela impostação ainda não estava na tv? Não digo, com isso, que a Rádio JB não fosse o veículo apropriado para o seu talento. Mas havia um movimento na televisão brasileira da época em busca de novos apresentadores para os telejornais e a voz de Eliakim certamente não poderia passar despercebida. E não passou. Nesta entrevista ao Jornal da ABI, realizada num lindo dia ensolarado na Flórida, em sua casa situada num condomínio à beira de um lago em Penbroke Pines, Eliakim esclareceu essa dúvida e contou muitas histórias importantes dos bastidores da imprensa da época. O locutor e redator da Rádio JB falou de sua rebeldia, dos momentos que marcaram sua profissão durante a ditadu-

ra, da tensão que viveu na Rede Globo ao apresentar o Jornal da Globo ao lado da mulher, Leila Cordeiro, e da felicidade das mudanças. Sim. Aconteceram muitas. A maior de todas: aceitar o desafio de vir para Miami apresentar a versão em português do CBS Telenotícias. Agora, comemorando 50 anos de carreira em plena atividade, Eliakim Araujo fala com entusiasmo dos novos projetos. E Leila Cordeiro nos dá a alegria de sua presença ao chegar no final da entrevista a tempo de expor algumas de suas opiniões. Foi uma tarde muito agradável, mas que deixou aberta uma nova questão: com tantos canais na tv por assinatura do Brasil, infestada de programas mal produzidos, por que não há espaço para um programa produzido em Miami pelo primeiro casal-notícia da tv brasileira? Isso eles não souberam responder.

JORNAL DA ABI – VAMOS RESGATAR UM COMO FOI O SEU INÍCIO PROFISSIONAL?

POUCO DA SUA HISTÓRIA?

Eliakim Araujo – Hoje, me preparando para a entrevista, fui mexer numa gaveta e resgatei minha primeira carteira de trabalho, eu tinha 20 anos. E o meu primeiro contrato foi com a Rádio Continental, como redator, no dia 1º de junho de 1961. Fiz 50 anos de profissão! A Rádio Continental era do Rubens Berardo. O chefe do jornalismo era o Paulo Goldrajch, um grande criminalista, mas também um grande jornalista. A gente estudava junto desde o vestibular e falei: “Paulinho, eu precisava trabalhar, ganhar algum”. E o Paulinho me botou como redator. Mais tarde, ainda na Continental, peguei a renúncia do Jânio, em 1961, e a anunciei na rádio! Então, passei a ser redator e locutor. Eu redigia e ia para o microfone. Tudo era muito precário, mas muito bom de aprendizado. Tinha um rádio-escuta, e as informações sobre o Jânio eram de que ele pegou um avião e ia para Viracopos, quando renunciou em agosto, logo depois daquela cerimônia em que ele condecorou o Guevara. E a gente fazia muito de improviso, do jeito que o telex chegava! Eram poucas as agências de notícias e eu ia para o microfone e lia em cima do telex! Muito legal.

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JORNAL DA ABI – VOCÊ NASCEU EM GUAXUPÉ. QUANDO ENTRA O RIO DE JANEIRO NA SUA VIDA?

Eliakim Araujo – Meus pais são pernambucanos. Papai era funcionário do Banco do Brasil no Nordeste e para ascender no trabalho viu que tinha que se mudar. Então, de Pernambuco conseguiu transferência para São Paulo, de São Paulo para Minas, e eu nasci em Minas. Sou o único mineiro da família! Depois ele veio para o Rio. No banco, os colegas dele eram quase todos nordestinos e o Rio de Janeiro era uma cidade de funcionalismo público. E papai era um desses milhares de nordestinos que vinham através do banco ou através do funcionalismo público. Eu era muito pequeno, vim de carona. Papai trabalhava na agência de Madureira e ali ficamos. Nós éramos seis irmãos. De Madureira fomos para a Tijuca, já garoto, adolescente. Na Tijuca, fiz o ginásio no Colégio Batista e o clássico no Lafayete. Daí, fiz a Faculdade de Direito, não fiz Jornalismo. Fui para a Faculdade Federal de Direito em 1961. Sou da última turma da FDB, que no ano seguinte passou a ser UFRJ. E eu peguei o golpe nesse período, exatamente no quarto ano da faculdade. JORNAL DA ABI – ENTÃO, VOCÊ JÁ TRABALHAVA NA RÁDIO?

Eliakim Araujo – Sim, eu entrei na rádio no primeiro ano da faculdade, mas não fiquei lá nem um ano, porque eles não pagavam salário, não pagavam nada. No dia da renúncia do Jânio pagaram um pouquinho. Consultei um advogado, Cláudio Jorge, que era um advogado trabalhista e todos entraram com uma ação. E a emissora não mandava advogado, e o juiz determinava na hora. Então uma dívida que era de 60 mil, passou para 142 mil, e eu ganhei seis meses depois. Tanto que, com esse dinheirinho, comprei o meu primeiro fusquinha. Aí, com essa experiência de rádio, fiquei um pouco afastado. Voltei dois anos depois para a Rádio Eldorado, que era uma emissora do Estadão no Rio de Janeiro. Uma coisa curiosa: entrei na vaga do José Carlos Araújo. Aí a Globo comprou a Eldorado no período em que eu estava lá; o José Carlos foi fazer ponta no Esporte e eu entrei nessa vaga que surgiu via Orlando de Souza, o chefe dos locutores e amigo do José Carlos, que tinha sido meu colega. A partir daí nunca mais larguei. JORNAL DA ABI – DETALHE MAIS COMO VOCÊ PASSA DE REDATOR PARA LOCUTOR. DE ONDE VINHA ESSA VOCAÇÃO?

Eliakim Araujo – Entrei na Rádio Continental para ser redator. A gente pegava o telex e transformava em texto. Eu estava na faculdade, gostava de escrever. Mas apareceu uma vaga de locutor, e falei: “Por que não posso ser locutor também? Vou fazer um teste”. Então passei a acumular as duas funções. Por que eu dou para isso? Não sei, seria uma vocação? O que me lembro é que

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desde garoto gostava de ficar imitando os locutores de rádio. Tinha um professor de Química que era meio surdo, e as aulas eram num anfiteatro. A turma era muito sacana, e eu ficava lá atrás imitando a Rádio Relógio Federal: “ao terceiro sinal, dez horas e doze minutos”, e a turma inteira “Pi! Pi! Pi!” (imitando as batidas do relógio da rádio) O professor ficava doido. Ninguém queria saber de Química, eram todos do ramo de letras. (risos) Desde pequeno eu gostava muito de ouvir rádio, escutar noticiário. Lembro dos prefixos dos noticiários da Rádio Nacional. Isso é coisa de maluco, só um cara muito maluco é que guarda isso! Acabei indo fazer Reportagem Ducal na Rádio Continental. Ducal era uma loja de roupas famosa. Mas sempre fiz redação também. Mesmo na Rádio JB eu participava do fechamento do jornal. Era uma novidade. Naquele tempo, locutor era locutor e redator era redator. Ana Maria Machado, chefe de jornalismo da Rádio, gostava de sentar comigo e a gente fechava o jornal juntos. Dava palpite aqui e ali, às vezes sentava para escrever. Depois, quando cheguei na Globo, a Alice Maria me pediu: “Quero que você escreva também”. JORNAL

DA

ABI – NA GLOBO

VOCÊ FOI

CONTRATADO COM ESSA CONDIÇÃO?

Eliakim Araujo – Não com essa, mas já começava um processo de renovação. O padrão era Cid Moreira, o locutor puro, nato, muito bom, excepcional. (Sergio) Chapelin, que tinha sido meu colega na Rádio JB, era o locutor standard. Eu vinha da Rádio JB, onde havia um programa de debates às 9 da manhã. Quando saí do Noturno, em 1980, tentamos fazer uma rádio all news, que era uma novidade – como hoje faz a CBN –, e eu fiquei encarregado de coordenar a rádio. Então, saí dali e fui para o horário matutino, que era das 6 às 10, e ali criamos um programa de debates com o Paulo Goldrajch, que foi o meu primeiro entrevistado. Tudo de improviso. Comecei o programa e disse: “Se você quiser participar, faça uma pergunta, nosso convidado é o advogado Paulo Goldrajch” e o tema era o linchamento de Macaé, um acontecimento horrível que tinha ocorrido, de violência. Foi um monte de telefonemas. Aí chega o Carlos Lemos, o Diretor da Rádio: “O que é isso que eu ouvi aí? Gostei! Vai continuar amanhã”. E eu disse “Mas Lemos, não tenho estrutura, foi tudo de improviso”. “Pega uma pessoa do jornalismo para trabalhar com você”. Aí eu chamei o André Luiz Azevedo para ser o meu produtor. O debate das nove horas foi um programa que marcou muito. Então quando eu saí e fui para a Globo, fui com esse know-how todo, que já tinha adquirido na rádio. Foi por isso que a Alice Maria falou que queria que eu redigisse, que tivesse uma participação maior. Funcionou até certo ponto, porque na Globo é

“A Rádio JB sempre foi muito resistente. Estava feliz em trabalhar lá por isso também, porque a gente resistia.” impossível ter liberdade total. Você pode ir até a página cinco, dali em diante não pode. Certas expressões que você usa... por exemplo, não podia dizer que Pinochet era ditador. “Ditador Pinochet, de jeito nenhum, não se diz aqui. É o Presidente Pinochet.” “Mas ele é ditador!”, eu dizia. “Mas não pode”. São as regras da Globo, que sempre existiram e sempre existirão. JORNAL DA ABI – O JORNALISMO NÃO ERA A SUA META NA FACULDADE?

Eliakim Araujo – Não, eu entrei para fazer curso de Direito. JORNAL DA ABI – VOCÊ SE VIA COMO ADVOGADO?

Eliakim Araujo – Não. E achei que eu tinha vocação, porque todos da minha turma foram fazer Direito. JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ DECIDIU?

Eliakim Araujo – Eu não decidi. Foi o acaso que me levou à rádio. Até o primeiro ano fui um bom aluno de Direito, com notas altíssimas, grandes professores. Mas eu fazia política, e a política foi roubando o tempo do estudo. Aí veio a rádio, misturou com a política e fui deixando o curso em segundo plano. Mas concluí, fui até o final, consegui me formar em Direito. Mas a partir dali eu percebi que o meu negócio era o jornalismo, era o que estava na veia e segui em frente. JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ COMEÇOU NA RÁDIO JORNAL DO BRASIL?

Eliakim Araujo – Comecei na Rádio JB em janeiro de 1965 e fiquei

até maio de 1983. Você entrava como locutor puro. De três em três horas trocava o locutor. Era música e informação. O Chapelin entrou junto comigo, dois ou três meses antes. Éramos os garotos da rádio. Havia veteranos lá, Jorge da Silva, Alberto Cury, só tinha estrelas, e nós éramos novinhos, eu e o Chapelin temos exatamente a mesma idade. E ali entramos e começamos a revolucionar, porque havia um estilo impostado de voz e a gente começou a mudar isso. O titular era o Cury, mas quando apresentávamos o jornal como um dos locutores substitutos, começamos a dar um tom mais informal na transmissão da notícia. Comentário não tanto, porque rádio é pauleira. Mas era um modo mais interpretativo, passar alguma mensagem nas entrelinhas, isso eu fiz muito na época da censura, e o público entendia isso. Você pode ler exatamente o que está escrito, mas consegue interpretar só com a inflexão de voz, as pausas. Isso a gente fez muito. JORNAL DA ABI – VOCÊ ERA REBELDE?

Eliakim Araujo – Eu gostava da rebeldia. Uma das grandes rebeldias que fiz na Globo foi que aos sábados eu apresentava o Jornal Nacional no lugar do Cid, eu e eventualmente o Léo Batista, e era uma época em que a Globo estava baixando a porrada no Brizola, e eu sou brizolista... e a Globo inteira sabia disso. Então, no sábado, eu li: “O editorial de O Globo, amanhã”. E li o editorial que era porrada no Brizola; porrada aberta, e ficava puto de ter que ler aquilo. Mas uma vez chegou um desses editoriais: “O jornal O Globo publica o seguinte editorial...” Então, levantei o papel e, ao invés de ler no teleprompter, li com o papel levantado na mão para mostrar que aquilo ali não era eu, era o que estáva escrito no editorial de O Globo. Era uma maneira que eu achava que podia funcionar. Quando saí do estúdio, Alberico Sousa Cruz, que estava de plantão, me disse: “Mas como é que você faz isso?” “Fiz isso porque não concordo com o que está escrito”. Mas tiveram que me engolir, porque se me demitem por um negócio desse eu ia botar a boca no mundo, ia ser ruim para eles! Os conflitos na Globo eram quase que permanentes.

A primeira carteira de trabalho de Eliakim Araujo, assinada em 8 de agosto de 1961.

Tivemos conflitos quando da morte do Tancredo, por exemplo, que eles queriam que eu desse a notícia da morte do Tancredo, e tinha que estar lá o dia todo de plantão. O Tancredo morreu em 1984, e nessa época eu estava me separando e me casando com Leila. Havia um conflito grande com minha ex-mulher e com os filhos, que eram garotos, adolescentes. E aconteceu de eu ter que ficar de plantão. “Você não precisa fazer nada. Você fica à disposição. Quando ele morrer, você vai ler a notícia da morte do Tancredo”. Um dia os meninos me chamaram. “Pai, quero ir para o sítio”, nós tínhamos um sítio na Serra. “Então vai com o fulano”. “Não, nós queremos ir com você, só confiamos em você para nos levar”. Peguei o telefone, liguei para a Alice Maria e disse “Eu preciso ir para Friburgo, em três horas estarei de volta”. Ela disse “Você não vai”. “Eu vou, Alice. São meus filhos”. E ela: “Em primeiro lugar está a sua obrigação com a empresa”. “Não, em primeiro lugar estão os meus filhos”. E eu fui levar. Quando voltei, estava suspenso. “Agora você volta para o seu horário. Vai ler o falecimento do Tancredo quem estiver no horário”. Ele morreu no domingo à noite... quem leu foi o Sérgio, que estava no Fantástico. Foram vários os conflitos que aconteceram, mas eu gosto disso; isso sempre me alimentou. Nunca me incomodou. Eu acho que é importante estar sempre na luta, nunca se acomodar! JORNAL DA ABI – HAVIA RÁDIO JB?

CONFLITOS NA

Eliakim Araujo – Não. Foi uma casa maravilhosa. Foi a melhor casa que eu trabalhei na vida. Não me lembro de conflito, nunca. Com os colegas eu discutia política, mas com a direção, jamais. Era espetacular. Peguei a JB ainda no prédio velho, caindo aos pedaços, só tinha um banheiro para o andar inteiro, mas era uma coisa louca, era um sonho trabalhar na Rádio. O pessoal do jornal diz isso. Os remanescentes do jornal se encontram uma vez por ano, e sempre me convidam. O Lemos é quem coordena. Mas não dá para ir, estou longe. Era um sonho trabalhar na época naquela empresa, em todos os sentidos. O relacionamento com a direção; jamais fizeram nenhum tipo de sacanagem como a Globo fazia, jogar um contra o outro... mas nas empresas fazem isso de modo geral. O JB era aquela coisa correta, honesta. Isso eu digo e assino embaixo. E os colegas, os chefes, tudo! Ajuda financeira, gente ferrada, precisando de dinheiro... Eu me lembro que era Chefe dos locutores e um rapaz estava em péssima situação financeira, e fui ao Dr. Osvaldo, que era o diretor financeiro, fiz uma carta, e ele: “Está aqui o dinheiro, ajuda ele”. “Mas como é que ele vai pagar?” “Paga em trabalho”. Ou seja, ele nunca pagou. Eles tinham essa coisa de caráter, uma coisa meio social até. A história do JB é muito rica. Aquele restaurante velho lá na Rio Branco, entre o PTB e a


RICARDO LEONI/AGÊNCIA O GLOBO

Eliakim, logo que assumiu a bancada do Jornal da Globo.

UDN, tem histórias espetaculares. Tinha o restaurante popular, que era o do pessoal do PTB, macacão, a turma da rotativa, e tinha o pessoal da toalha, que eram os chefões e tal. E a gente se divertia muito. Era uma grande empresa, tenho muitas saudades. Mas se acabou tão lamentavelmente. A Globo matou o JB. JORNAL DA ABI – MAS HOUVE PROBLEMAS ADMINISTRATIVOS. ELES ERRARAM MUITO.

Eliakim Araujo – Erraram porque não fizeram televisão, foi o primeiro grande erro. Mas houve também o tempo em que o Jornal do Brasil mandava no mercado. Eu me lembro que o grande faturamento do JB eram os classificados, e O Globo nem chegava perto. Numa certa época O Globo começou a fustigar, começou a convidar os corretores, levava-os para uma churrascaria na Tijuca, fechava aquilo; eram festas enormes. Enquanto o JB cobrava 50 por anúncio, eles cobravam 50 e davam 3 de bonificação. Foram matando o JB e não se percebeu isso. Aí veio a mudança para o prédio novo. Foi a grande catástrofe. Aí entra o erro de administração. Foi uma pena, era uma senhora empresa. Eu lamentei o dia em que saí. Fui no Dr. Brito, e nunca tinha ido até ele, só encontrava no elevador. “Mas por quê?”, ele perguntou. “Estou indo para a Globo”. “Você nem precisa me dizer quanto é; eu não posso cobrir”. Eu ia ganhar quase quatro vezes mais na Globo. Mas era uma coisa de amor. As pessoas trabalhavam com amor no JB, tanto na rádio como no jornal. No jornal então, foi o melhor time numa certa época. JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ OS JOVENS JORNALISTAS HOJE QUE ESTÃO EM GRANDES EMPRESAS?

Eliakim Araujo – Mudou a mentalidade. Na época, havia não só talento, mas uma coisa mais romântica. Hoje a coisa é mais imediatista. As pessoas querem sobreviver, segurar o emprego. Vestir a camisa, amor ao time, isso não existe mais. Parece romântico isso, mas é verdade. A gente gostava de vestir a camisa, de competir com O Globo, de dar uma notícia na frente, havia isso. Era uma coisa romântica, mas ao mesmo

Eliakim Araujo – Eu entrei, e a ditadura começou em 64.

tinha entrado na Faculdade. Lá havia um slogan: “Aqui Polícia não entra”. A gente botava a Polícia para fora. Mas naquele dia a coisa foi feia, e o Exército fechou. E descobriram que havia essas coisas escondidas. Tomaram conta do Centro Acadêmico e aí começou um inquérito para saber quem é que comprou a gasolina, quem é que fazia os coquetéis. Era esse o inquérito, mas não cheguei a ter problemas, porque eu já estava afastado do cargo, estava no quarto ano. Por isso é que a minha convivência na faculdade junto com a Rádio foi praticamente imperceptível. Uma coisa não se conectava com a outra.

JORNAL DA ABI – COMO FOI CONVIVER COM A DITADURA COMO JORNALISTA NA PRINCIPAL RÁDIO DO PAÍS?

JORNAL DA ABI – MAS DEPOIS DE 1968 VOCÊ E SEUS COLEGAS DA RÁDIO NÃO TIVERAM PROBLEMAS COM A REPRESSÃO?

Eliakim Araujo – Na rádio eu estava dando os passos iniciais, e quando veio o golpe eu me afastei da faculdade completamente. Ia lá só fazer as provas. A repressão não foi tão violenta naquele período. A repressão começou mesmo em 1968. Aquele foi um período de cassações, punições e prisões políticas. Mas alguns colegas nossos, o Brandão Monteiro, por exemplo, foi bastante massacrado. Eu respondi a um inquérito policial militar, mas na faculdade, não ao nível de um IPM.

Eliakim Araujo – A Rádio foi sempre muito resistente. Eu estava feliz em trabalhar lá por isso também, porque a gente resistia. Tenho guardado o jornal do dia 13 de dezembro de 1968, quando foi decretado o AI5. Essa fase foi sensacional. Eu me lembro que nós estávamos lá, o Alberto Cury, que era o chefe dos locutores da rádio, foi convocado para ir à Agência Nacional, pois ele ia ler um comunicado muito importante, às 9 horas da noite. Era o AI-5. E eu estava lá, não só porque estava no meu horário, como porque eu ia ler a edição final do Jornal do Brasil Informa, de meia-noite e meia. Quando saiu o AI-5, foi lido por Alberto Cury, com aquele vozeiraço, o Exército ocupou as Redações. Foram quatro militares para o JB, dois para a Rádio; foram em todos os jornais do Rio. Lembro que lá para a Rádio JB foi um cidadão chamado Major Fico. Nunca esqueci esse nome. Depois ficamos todos amigos, os censores e os censurados. No Brasil tudo acaba em festa. Porque, com aquela convivência diária, o cara acaba vendo que são todos brasileiros, são todos irmãos. Então, ocuparam a Rádio e quando chegou a hora de ler o jornal da meianoite e meia, que eram laudas pequenas, de rádio, eu recebi o jornal – o Fico estava lá, de farda verde oliva – o Dr. Nascimento Brito desce, e ele, que nunca tinha entrado na Rádio no tempo em que estive lá, entra no

tempo dependia muito do talento. O sonho de qualquer profissional era trabalhar no JB. Hoje inverteu, e o sonho de qualquer pessoa é trabalhar na Globo. A Globo cooptou as principais cabeças pensantes e levou para lá. JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ ENTROU GLOBO?

NA

Eliakim Araujo – Em 1983, pouco depois do escândalo da Proconsult. JORNAL DA ABI – VOCÊ PASSOU TODO O RÁDIO JORNAL DO BRASIL...

PERÍODO DA DITADURA MILITAR NA

JORNAL DA ABI – COMO FOI O INQUÉRITO?

Eliakim Araujo – Era mais administrativo. Na Faculdade de Direito, o chefe da comissão era um coronel, mas quem mandava era um professor chamado Teófilo de Azeredo Santos. Ele era o presidente da comissão. Chamava a gente e ficava questionando o que é que nós tínhamos guardado. Porque no dia 1° de abril nós tínhamos na faculdade um arsenal de coquetel molotov, nada de mais, bobagem. (risos) JORNAL DA ABI – VOCÊS IAM RESISTIR?

Eliakim Araujo – É, nós fizemos uma resistência, mas não deu. Tínhamos coquetel molotov e mais algumas coisas, mas não era vasto, eram algumas coisas. E quando houve o golpe no dia 1° de abril o Exército entrou, os tanques entraram e fecharam a Faculdade. O Exército nunca

estúdio com o Major, e eu já estava folheando as notícias, passando uma vista de olhos. Ele me pede o texto do jornal. Eu passei. Os dois em pé e eu sentado, na bancada do microfone. E o Dr. Brito, com toda aquela elegância, passa o texto para o Major Fico e diz: “Por favor, seja rápido, porque o jornal tem que entrar no ar à meia-noite e meia”. Passava vinte minutos da meianoite! O Major tremia feito vara verde. Foi no primeiro dia. Então ele pegou aquele calhamaço. Eram 15 minutos de pau puro, era um jornalaço, e a mão do Major tremia! Ele não leu coisa nenhuma. Ele nem sabia por que estava ali. Não sabia qual era a função de um censor. Aí, todo tímido, passou para o Brito o calhamaço de textos e eu li o jornal na frente do Dr. Nascimento Brito e do Major do Exército. Eu também nervoso, é claro, com o dono da empresa ali na minha frente junto com um cara de farda que até aquele momento eu pensava que era um pusilânime... mas era um ser humano como outro qualquer. São passagens muito interessantes que a gente teve na Rádio JB. Isso nós estamos falando de 1968. Daí começou um período de repressão grande, eu já não estava no movimento estudantil, me dedicava à Rádio, e começaram aquelas grandes passeatas dos cem mil, veio a morte do Edson Luís em abril de 1968, e nós, da janela da Rádio, que ficava no quinto andar da (avenida) Rio Branco, no prédio velho, víamos os conflitos! Eram todos ali na frente, você participava do conflito, subia e lá de cima você via o pau rolando. Uma vez, um fotógrafo do jornal ficou ali tirando fotos e eu disse para ele: “Rapaz, outro dia eu peguei uma pedra e joguei lá de cima e acertei um pm”. E o fotógrafo disse: “Não faça isso, vai deixar mal a gente”. Realmente, a gente às vezes comete alguns excessos, alguns arroubos da juventude. JORNAL DA ABI – VOCÊ NUNCA TEVE UM GRANDE PROBLEMA COM A REPRESSÃO E A CENSURA?

Eliakim Araujo – Censura sim, a Rádio foi para o gancho, foi pendurada três dias uma vez, mas isso tudo foi coisa genérica. Exatamente na época da passeata do Edson Luís de Lima Souto, o pau quebrando, e o repórter foi à rua gravou o pessoal da multidão gritando “Assassinos! Assassinos!”, subiu isso, foi para a Rádio, e o editor que fazia a edição da matéria botou o repórter explicando o confronto, e deu um sobe som final no “Assassinos”. E isso aí foi o bastante, a Rádio JB foi suspensa três dias. JORNAL DA ABI – NEM SÓ DE TEXTO VIVE A REPORTAGEM.

Eliakim Araujo – Na edição você pode fazer o que quiser. JORNAL DA ABI – QUANDO COMEÇOU O PROGRAMA NOTURNO?

Eliakim Araujo – Começou no prédio velho e seguiu no prédio novo. A gente se mudou em 1973 da

Rio Branco para aquele prédio bonito da Avenida Brasil. Mas começou no prédio velho. Começou muito em função de um rapaz chamado Simon Cury, que era muito criativo, muito inteligente. Nós éramos muito amigos. E ele tinha idéias mirabolantes. E dizia: “Vamos fazer um programa hoje só com nome de mulheres”. Daí ele ia para a biblioteca e pesquisava músicas com nome de mulheres. Ele vivia de música e fazia um programa de uma hora contando a historinha de cada mulher daquelas. Eu, neste caso, era um locutor. Fazia junto, mas ele era o homem das idéias, e ele se dedicava. A grande cabeça era ele. Se o Simon fazia uma entrevista, se eu fizesse as perguntas ia ficar estranho com toda a minha formalidade. Ele dizia assim: “Fulano, você gosta mais de Nova York ou de Paris?” Daí dava uma história enorme. Se eu fizer isso, não tem sentido. É o contexto. E o Simon era um mestre nisso. O Noturno durou até 1980, quando passei a ser coordenador da Rádio, então quem continuou foi o Luís Carlos Saroldi, que morreu recentemente. JORNAL DA ABI – VOCÊ GOSTA MAIS DE NOVA YORK OU DE MIAMI?

Eliakim Araujo – (Risos) O Simon era assim: “Gosta mais de arroz ou de feijão?” O entrevistado adorava, ele deixava o cara à vontade. Eu sei que os entrevistados saíam de lá felizes da vida. Noturno foi um sucesso. Eu emprestei a marca da minha voz, mas todo o processo de criação era do Simon Cury. JORNAL DA ABI – QUAL ERA O SEU HORÁRIO DE TRABALHO?

Eliakim Araujo – Na época do Noturno, eu chegava às seis e meia da tarde e fazia o noticiário. Eram quatro os grandes noticiários da Rádio JB: sete e meia, meio-dia e meia, seis e meia e meia-noite e meia. Nessa altura eu já era chefe na Rádio, Chefe dos locutores. E ficava para o da meia-noite e meia. Nesse intervalo, fazia o Noturno. Isso durou alguns anos, até 1980, quando a Rádio inventou essa história do all news. Isso foi uma idéia do Carlos Lemos, que vinha embalado pelo sucesso da Rádio Cidade, outra aposta dele que estourou: a Rádio Cidade explodiu. Isso foi em 1977. Então em 1980 ele disse: “Quero fazer a mesma coisa com a rádio AM. Não quero mais música, só notícia”. JORNAL DA ABI – A RÁDIO CIDADE ERA MAIS DESCONTRAÍDA, TINHA MUITO HUMOR...

Eliakim Araujo – Era do mesmo grupo. Ele queria que fizesse a mesma descontração. Claro, não igual, mas que levasse para a rádio AM, que era uma rádio formalíssima, um tipo de descontração com a notícia. Que na Cidade era música, e na JB era a notícia. É o que a CBN faz hoje, e faz muito bem. JORNAL DA ABI – A BAND NEWS ESTÁ FAZENDO A MESMA COISA.

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MUJICA/FOLHAPRES

Eliakim Araujo e Leila Cordeiro nos bastidores do SBT Notícias, em novembro de 1995.

Eliakim Araujo – Hoje em São Paulo existem várias. Mas estamos falando de 1980. Os ouvintes estranharam. A gente fez uma coisa muito simples, uma pizza – chamava de pizza – blocos de 15 minutos de notícia. Então se colocava 13 minutos de notícia e 2 de comercial. Na segunda faixa de 15 minutos, você repetia, ou eventualmente colocava alguma coisa nova e tirava outra, e ia girando, renovando as notícias. Isso se faz também em televisão; a CNN fez isso. Mas quando nós implantamos isso na Rádio, o ouvinte tradicional ligava e dizia “Mas o que é isso? Vocês estão repetindo a notícia?” Eles achavam que a Rádio não podia repetir notícia. Era um escândalo, uma vergonha para a Rádio JB, que era a mais ouvida em Ipanema e Leblon. Era uma rádio de elite, realmente. Não sei se deu certo, porque três anos depois eu estava na Globo. JORNAL DA ABI – NA ÉPOCA, NÃO ENTENDIA POR QUE NENHUMA EMISSORA TE CONTRATAVA PARA SER APRESENTADOR DE JORNAL DE TELEVISÃO...

Eliakim Araujo – Aí veio a Alice Maria e me levou. Mas tem um detalhe: quando o Chapelin foi para a Globo, em 1972, agradou logo de cara; era bonitão, 32 anos. Mas precisavam de uma outra pessoa na época. E a Alice Maria pediu ao Sérgio uma indicação. Ele disse: “Tem o Eliakim”. Eu fui lá, fiz o teste e fui aprovado. Era para eu ter entrado na Globo em 1972! Tanto que o Boni viu o teste e me disse: “Arranja outro nome, porque ‘Eliakim’ não é nome de televisão”! (risos) Mas veja o que era o amor pela Rádio... optei por permanecer na Rádio JB, até porque o salário da Globo não era tão compensador como era o meu como Chefe dos locutores. A Rádio estava muito bem, me deram um aumento bom, que equilibrava, e eu continuei lá. Talvez por isso não me chamaram mais; só voltaram a pensar no meu nome em 1983, logo no início, em março, abril. Alice Maria me chamou para almoçar e eu era folgado e disse: “Alice, até entendo que você está me chamando porque a tv precisa de credibilidade, depois do escândalo da Proconsult, quando o Brizola acabou com o Armando (Nogueira)”. E a Alice ficava vermelha feito um camarão. Hoje ela ainda está lá, meio tímida. Mas isso já foi uma espetada, não é? “Vocês estão precisando de credibilidade e foi a Rádio JB que brilhou”, eu disse. Foi a Rádio que sustentou o Brizola. Quando a Proconsult preparou o golpe, foi a ela que denunciou. Foi o Procópio Mineiro, que era o editor de Jornalismo, e o Pery Cotta. Os dois é que peitaram. A Globo dava o resultado do interior, onde Brizola perdia, e deixou de lado os resultados da capital, onde Brizola disparava. O que a JB fez? Um esquema simples. Eram 25 Zonas eleitorais na cidade, se não me engano. Contratou 25 estagiários e cada vez que saía um boletim novo, uma urna

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nova, o cara pegava uma ficha de telefone e passava o resultado para a rádio. Tudo era contabilizando. Tudo manual. No final do dia, o Brizola estava disparado. Esse foi o esquema. Era a primeira vez que se computava voto via computador, daqueles antigos. E o computador se programa como você quer. Esse foi o golpe da Proconsult, programou de um jeito que o Moreira saía na frente, até que num certo momento eles iam dar o golpe. Como seria esse golpe a gente não sabe, só sei que Moreira seria o vitorioso. Isso foi no final de 1982. Então, quando Alice Maria me chama no início de 1983, estava querendo trazer um pouco da credibilidade da Rádio JB para a Globo. Teve aquele pega na televisão, do Brizola com o Armando Nogueira, que era o Diretor de Jornalismo. Brizola entrou e disse: “A Globo está mentindo”. “Deputado, o senhor não pode dizer isso, o senhor não pode duvidar da nossa apuração”. E o Brizola: “É verdade, porque a Rádio JB mostrou isso, isso e isso”. Aquilo foi uma vibração! JORNAL DA ABI – E O BRIZOLA ESTAVA EM ÚLTIMO LUGAR NAS PESQUISAS, NO INÍCIO DA CAMPANHA, E FOI UM VENDAVAL.

Eliakim Araujo – Eram quatro candidatos. E o que o Brizola carregou de voto de legenda. O PDT fez uma festa espetacular. Deputado estadual ele levou de montão. Uma vez, estava conversando com o Brizola – e ele era um grande papo – e eu disse: “Governador, como é que deixam entrar tanta gente sem expressão no Partido?” Era Juruna, Agnaldo Timóteo... Ele disse: “Eu vou lhe contar uma história. Você vai dirigindo um caminhão. Aí, na estrada, pedem uma carona. Sobe aí na boléia. Mais adiante tem outro. Aí a sua boléia está cheia. Mas eles não vão ficar. Mais adiante, você vai selecionar quem fica e quem sai”. Não sei se algum dia ele fez isso. Mas ele era uma figura desse tipo.

“Quando a Proconsult preparou o golpe, foi a rádio que denunciou. O Procópio Mineiro e o Pery Cotta foram os dois é que peitaram.”

JORNAL DA ABI – QUE LIÇÃO SE TIRA DESSA

JORNAL

ATUAÇÃO DO PROCÓPIO MINEIRO E DO PERY

EMPRESA DE COMUNICAÇÃO CONSEGUE

COTTA À FRENTE DA EQUIPE DA RÁDIO JB DURANTE AS ELEIÇÕES DE 1982?

DRIBLAR A DITADURA?

Eliakim Araujo – A lição que fica do episódio da Proconsult é o exemplo de compromisso com a verdade assumido pelos jornalistas Procópio Mineiro da Silva e Pery Cotta, Diretor de Jornalismo e Editor de Política da Rádio JB. Os dois tiveram peito de enfrentar o poderio da Globo e da Proconsult, mesmo sabendo que internamente suas cabeças estavam em risco! Sobretudo o Procópio, recentemente falecido! Ele merece entrar para o hall da fama daqueles jornalistas que não se rendem e colocam a busca da verdade em primeiro lugar. Sua contribuição para a democracia foi inestimável, naquele momento ainda inseguro da vida nacional. JORNAL DA ABI – VOCÊ NÃO ACHA QUE, POR SER LÍDER DE MERCADO, A GLOBO NÃO SE TORNA UM ALVO FÁCIL? TUDO É CULPA DA GLOBO...

Eliakim Araujo – Completamente. Primeiro porque a Globo tem história, tem antecedentes. Mas fiquei sabendo, por exemplo, que a Globo dá a seus funcionários um seguro-saúde de ótima qualidade. Na Record os funcionários têm direito a um seguro-saúde. Aí o que ela fez? Montou o seu próprio seguro-saúde. Então, os funcionários pagam para a própria Record. O dinheiro sai por aqui e volta pra cá. E oferece um péssimo serviço. Os funcionários estão reclamando. Mas sem dúvida que o líder vai ser sempre visado. Se você é um líder que tem uma história bonita, é diferente. Agora, a Globo tem uma história pesada, política. Mas com os funcionários eles são bem legais! Tem aquela coisa que falei, de jogar um contra o outro. JORNAL DA ABI – MAS AÍ SÃO ALGUMAS PESSOAS QUE ESTÃO LÁ DENTRO...

Eliakim Araujo – Mesmo porque é televisão, que é um negócio que mexe com a cabeça das pessoas. Não só o pessoal de vídeo, mas os da retaguarda também.

DA

ABI – COMO

UMA GRANDE

Eliakim Araujo – No período crítico, era difícil driblar. Você driblava com alguns artifícios, pequenas artimanhas que a gente fazia muito na Rádio JB. Todos tinham essa consciência, a equipe toda, e a gente fazia tudo para driblar. E a ditadura era tão burra que a gente sabia o que acontecia. Chegava uma nota na Redação, tínhamos um livro preto... não sei onde está esse livro... alguém tinha esse livro guardado. Era um livro de folhas soltas. Ligavam, alguém atendia: “Ordens do Primeiro Exército: é proibido divulgar a morte de fulano de tal”. Então, com isso, já sabíamos que alguém tinha morrido nos porões da ditadura. E os caras davam os nomes! “Proibido divulgar a morte de fulano, morto em tiroteio com as forças de segurança esta manhã”. Os caras faziam isso. Essa era a chamada censura direta. Depois que acabou esse período, veio a chamada autocensura: “Vocês podem anunciar o que quiser, mas com cuidado”. Aí a coisa foi melhorando; estamos falando do período de Geisel. Foi afrouxando um pouco. JORNAL DA ABI – MESMO ASSIM ACONTECERAM OS ATENTADOS, OS ATAQUES TERRORISTAS, OS INCÊNDIOS ÀS BANCAS DE JORNAIS.

Eliakim Araujo – Teve a bomba do Riocentro. Dia do Trabalho. OAB. Mas aí era a própria resistência da direita, do Exército, tentando manter o status quo; não tinha interesse em mudar o quadro, que estava muito bom, confortável para eles. E o Geisel já estava falando em abrir. Depois entrou o maluco do Figueiredo, enfim. JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE O ARMANDO NOGUEIRA TINHA CONDIÇÕES DE FAZER ALGUMA COISA A MAIS E NÃO FEZ?

Eliakim Araujo – Essa coisa é muito controvertida. Os que defendem o Armando acham que ele fez o que era possível dentro daquele quadro. Ou seja, ele foi apenas um instrumento. Então ele deveria renunciar e denunciar isso? Ou deveria

manter o emprego? É aquela história, você tem uma posição política, mas precisa sobreviver. Essa é a grande polêmica. Um cara de extrema esquerda ter que trabalhar na Folha, que ajudou a ditadura? Quanta gente de esquerda estava na Folha. Quantos comunistas trabalharam em O Globo. O Dr. Roberto tem aquela célebre frase: “Eu adoro trabalhar com comunistas, que são excelentes profissionais”. A ideologia ia até um ponto, mas você tem que levar a comida para os seus filhos em casa. Essa é a grande contradição do jornalismo. Com a sua vontade de lutar, batalhar pelo seu ponto de vista, mas ao mesmo tempo você sabe que vai entrar em choque com o dono da empresa, porque o jornalismo corporativo é aquela coisa, você pode ir até aqui, mas daqui em diante está mexendo no interesse do patrão. Tem o interesse corporativo e o interesse político, que muitas vezes se entrelaçam. JORNAL DA ABI – A GLOBO SOFREU CENSURAS EM NOVELAS, TINHA GENTE DE ESQUERDA LÁ QUE FAZIA ÓTIMOS TEXTOS, DIAS GOMES, GIANFRANCESCO GUARNIERI...

Eliakim Araujo – Exato. Tinha um monte de gente. Mas a novela é interessante, porque foi um caminho que se achou para driblar a censura. Como o jornalismo estava visado, os autores de novela conseguiram encaixar muita coisa. Nos programas de humor também, e a censura deixava passar. Não deixava passar no noticiário, que era uma coisa mais forte, na música também não. JORNAL DA ABI – É AQUELE NEGÓCIO DO EQUILÍBRIO.

Eliakim Araujo – Exatamente, achar o esquema. JORNAL DA ABI – VOCÊ COMEÇOU A APRESENTAR O JORNAL DA GLOBO SOZINHO?

Eliakim Araujo – A Globo vinha de uma experiência com Renato Machado, Beliza Ribeiro e Luciana Vilas-Boas. Eles tinham esse jornal que era interessante, era uma coisa nova. Mas houve alguma coisa que deu errado. Não sei se foram problemas pessoais, não sei exatamente


o motivo, mas envolvia romances... essas coisas. Só sei que o programa degringolou e chegou um dia em que eles gravaram e foram embora. Deixaram gravado naquele dia com antecedência. No dia seguinte, o técnico trocou e botou a gravação do jornal do dia anterior. Aí o negócio explodiu e eles resolveram encerrar o jornal. Botaram o Humberto Filho para segurar uns 15 dias, um mês mais ou menos, enquanto contratavam alguém. Eu entrei junto com uma mocinha chamada Liliana Rodrigues. Depois entrou no lugar dela a Leilane Neubarth, que está lá até hoje, na Globo News. A Globo tem isso, de fidelidade. Mantém a pessoa. Acho isso legal na Globo. Só saí da Globo porque eu quis. A gente podia estar lá até hoje. Nós pedimos para sair, porque não estávamos felizes lá, por causa daquele ano eleitoral, 1989, do Brizola com o Collor.

não diria muitos amigos. Quando você sai, as pessoas não querem mais se aproximar, sobretudo porque a gente saiu em 1989, houve os atritos de que falei, mas a gente sentia que houve uma certa maldade; eu e a Leila (Cordeiro) sentimos isso. Quando nós começamos a ficar juntos, Armando e Alice foram contra. “Isso não é bom”, diziam. Porque na época eram determinados: dois no Jornal da Globo, dois no Jornal Nacional, dois no Hoje e um no Fantástico. Havia sete profissionais, só. Para ser um desses sete, tinha que ir chegando devagar. Era difícil. Então começamos a reunir os locutores lá em casa; os sete, para discutir por que a gente não tinha um retorno da direção. Nós trabalhamos mecanicamente todos os dias, anos e anos, e ninguém dizia: “Olha, você está ótimo”, “Você precisa melhorar nisso”. Esse foi o mote que levei para essa reunião com a direção.

JORNAL DA ABI – NÃO FOI O LULA?

Eliakim Araujo – O Brizola foi candidato em 1989. Podia ter ido para a final com o Collor, mas perdeu em São Paulo, por um décimo. Essa história eu sei toda. O Brizola ganhou em várias capitais. Era o Collor, Lula, Brizolla, Covas, não sei se o Maluf estava, era um grupo grande. O Brizola tinha tudo para disputar com o Collor a final. O Brizola teve 0,5% no colégio eleitoral de São Paulo. Se tivesse tido 1% – pode ver as estatísticas – ele ganhava do Lula e ia para a final com o Collor, e aí a história seria outra. Eu fiz o debate, seria outra história. O Collor acabou com o Lula no debate da Globo; Lula foi péssimo. Eu falei isso para o Lula. JORNAL DA ABI – ENTÃO VOCÊ TEVE, JÁ NA GLOBO, A EXPERIÊNCIA DE DIVIDIR A BANCADA COM UMA JORNALISTA?

Eliakim Araujo – Digo os nomes deles: do Hoje, Leda Nagle e Marcos Hummel. Do Jornal Nacional, Celso Freitas e o Cid. Do Jornal da Globo, eu e Leila. E do Fantástico, o Sérgio Chapelin. Fomos lá para casa, tomamos muito uísque, eu morava numa cobertura ali na Fonte da Saudade. E começamos a conversar, e fui ouvindo as coisas de cada um. Alguns reclamavam que não tinham camarim para botar um espelho, e a minha reivindicação era não ter mais que ler os editoriais da Globo, que quando botasse o editorial que descesse alguém da administração para ler, por causa daquele incidente de que falei. Ninguém acreditava que aquilo fosse em frente. Todo mundo foi para suas casas. Eu sentei e, numa máquina Olivetti, bati um tratado de três ou quatro páginas, com o resumo daquela reunião. Passei para todos lerem; todos concordaram e assinaram. JORNAL DA ABI – ASSINARAM OS SETE?

Eliakim Araujo – Os sete assinaram. Um dia de semana, quando acabou o Jornal Nacional, subimos todos para uma reunião que já estava previamente marcada com a Direção de jornalismo. Armando não apareceu. Fomos recebidos por Alice Maria e pelo Alberico. Eles ouviram, surpresos. Acabamos de ler aquilo; Alice não falou nada, Alberico falou “Tudo bem, está entregue”. “Não vamos discutir?” “Não, deixe aí o papel, nós vamos ler”. “Mas nós queríamos dialogar sobre isso”. “Deixe aí, que está entregue”.

JORNAL DA ABI – COMO ERA SUA RELAÇÃO COM O CID MOREIRA?

JORNAL DA ABI – QUAIS FORAM AS REIVINDICAÇÕES?

Eliakim Araujo – Era muito boa. O Cid era uma figura interessante. Estava acima do bem e do mal. Era amicíssimo de Armando, jogava tênis com ele. O Cid é uma figura muito engraçada.

Eliakim Araujo – Eram várias coisas. Uns queriam aumento de salário, mais conforto, na época não tinha camarim, nem maquiadora; cada um passava seu pó no rosto. Pois bem, esse papel ficou lá com eles e nós descemos frustrados, mas depois começou a retaliação. Me tiraram de junto da Leila do Jornal da Globo. Eles souberam que foi feito lá

JORNAL DA ABI – VOCÊ DEIXOU GLOBO?

MUITOS

AMIGOS NA

Eliakim Araujo – Deixei, mas eu

em casa, souberam que fui eu que escrevi e botaram a Leila para o jornal Hoje, e eu fiquei no Jornal da Globo. Armando chamou nós dois e disse “Eu não quero dois talentos como vocês superpostos. Vou separar vocês. Nós vamos treinar pessoas novas e vocês vão passar a experiência que têm”. E separou a gente, que já estava casado há uns quatro, cinco anos. Botou Fátima Bernardes para trabalhar comigo, e a Márcia Peltier para trabalhar com a Leila no Hoje. Afastou Marcos Hummel; Leda foi colocada no Bom Dia Rio às seis da manhã, o Celso perdeu o Jornal Nacional, foi para o Fantástico com o Sérgio. Isso durou exatamente um mês. Nessa altura, fizemos saber à Rede Manchete que estávamos insatisfeitos. Daí a Manchete levou a gente. Fomos fazer o principal jornal na Manchete. JORNAL

DA

ABI – A MANCHETE

ESTAVA

COMEÇANDO?

Eliakim Araujo – Não. A Manchete estava no pico. Ela começou em 1983. Estava dando a grande virada com Pantanal e A História de Ana Raio & Zé Trovão. O jornal dava dois dígitos de audiência, porque pegava uma carona no Pantanal, que entrava em seguida, chamava audiência de expectativa. Esse foi o motivo da nossa saída, a retaliação interna na Globo. Todos os sete foram retaliados. Eu soube depois que o Armando chamou o Cid e disse “Como é que você assina um negócio desses?” “Eu assinei porque todo mundo assinou”. “Você vai tirar o seu nome daqui”. “Não tem problema”, e riscou o nome dele. Isso eu soube, eu nunca vi esse papel riscado. Nós outros fomos para a casa de Leda Nagle e comemoramos ali o desfecho daquilo. Nós fomos para a Manchete, a Leda foi no nosso vácuo e saiu junto para apresentar o Jornal da Tarde.

to. O Dr. Bloch movimentava os bancos, cada vez era um banco que pagava, foram se atolando em dívidas, até que venderam para um aventureiro chamado Amilton Lucas, que era um parceiro do Collor. Ele chamou a gente para conversar, “Eu quero que vocês continuem” e tal, mas nessa altura fizemos saber ao Sílvio Santos que a gente não estava feliz, e o Sílvio ligou para a gente num dia à meia-noite. “Vocês estão querendo sair da Manchete? Mas o SBT é aqui em São Paulo... vocês são cariocas...” “Não, tudo bem, a gente está a fim”. “Então passa lá na segunda-feira. Compra a passagem que eu te reembolso na segunda-feira”. O Sílvio é assim. Compramos a passagem numa sexta-feira, pegamos a reunião na segunda. Primeira coisa quando começa a reunião: “Fulano!”. Aí vem um cara com um pacote de dinheiro. Era o dinheiro da passagem, e dá em notas, em cédulas. O Sílvio é assim, cumpriu a palavra. Então, em 1993, estávamos desembarcando em São Paulo. JORNAL DA ABI – VOCÊ PAULO?

CONHECIA

SÃO

Eliakim Araujo – Não. Mas São Paulo era uma cidade hostil, uma cidade difícil. A mudança foi dura. É verdade que a gente foi morar em Alphaville, que era um lugar de sonhos. O Sílvio pagou pra gente o aluguel de uma casa lá. Era gostoso. Alphaville é um oásis. E a gente trabalhava na Vila Guilherme. Eram enchentes fantásticas na Marginal, foi muito duro. Depois o SBT mudou para a Anhanguera e melhorou. Mas foi pouco tempo. No SBT ficamos de janeiro de 1993 até 1997. JORNAL DA ABI – COMO ERA TRABALHAR NUMA EMPRESA EM QUE O TELEJORNALISMO É TÃO INSTÁVEL?

Eliakim Araujo – Na época não era não, esteve muito bem. O Boris Casoy estava dando bem, o Aqui

Agora era um sucesso de mídia, dava audiências altas. Por causa do Aqui Agora a Globo mudou um pouco sua linha editorial, passou a ser mais policialesca. E nós tínhamos o Jornal do SBT, que entrava depois do Jô, que era muito bom, muito bem redigido, muito criativo, tinha um bloco de dez minutos que entrava antes do Jô e um de 20 minutos depois do Jô. Era uma equipe muito boa, Alberto Vilas era o editor. Foi uma boa casa para trabalhar. O Sílvio jamais se meteu, jamais houve censura, nós tínhamos liberdade total para trabalhar, e era um jornal muito de comportamento. Para o fim de noite não havia coisa melhor, linguagem leve. Mas, de repente, o Sílvio começou a enlouquecer. Porque quando o jornal principal não dá dois dígitos ele acha que é um desastre. O Boris começou a despencar... JORNAL DA ABI – POR QUÊ?

Eliakim Araujo – O Boris é uma figura meio controvertida, é um cara de linha conhecida, criou aqueles chavões; alguns nem foram criados por ele, mas ele copiou, como o “Temos que passar o Brasil a limpo”. Essa frase não é dele, é do Brizola, falada num debate. Ele copiou e a imprensa achou que era dele, e passou a ser dele. Só dizia o que interessava, mas o público custa, às vezes, a sacar. Ele só criticava o que interessava, jamais criticou certas coisas. Batia no PT sem dó nem piedade e não tinha o mesmo tipo de tratamento com os demais partidos. Acho que foi uma figura que cansou, não diria que foi uma coisa específica. Ele fez muito sucesso na época, era considerado um justiceiro, mas era tudo um jogo. Aqueles comentários que fazia era tudo escrito; nada era improvisado. Os editores faziam os textos e ele fazia os comentários. Isso agradou muito na época. Chegamos no SBT, ele já estava lá, foi muito gentil conosco, mas havia sempre uma rivalidaJOSÉ LUIZ DA CONCEIÇÃO/AGÊNCIA O GLOBO

Eliakim Araujo – No Jornal Nacional era só homem. Eu dividia a bancada, aos sábados, com o (Fernando) Vanucci e com o Léo (Batista). E eventualmente fazia nos dias de semana com o Cid e o Sérgio. Só dividi a bancada com mulheres bem depois. A Valéria foi a primeira que sentou na bancada. Hoje há ótimas profissionais, principalmente essa nova geração da Globo News. A Globo hoje não precisa mais buscar ninguém de fora, ela tem o seu laboratório. Hoje ela forma os rapazes e moças. Naquela época, ela teve de buscar o Sérgio fora, teve que me buscar fora, todos vieram de fora. Começou com o Cid, que é o pai de todos. O Cid entrou em 1969.

JORNAL DA ABI – VOCÊ REUNIU OS SETE?

“Esse papel ficou lá com eles e nós descemos frustrados, mas depois começou a retaliação. Me tiraram de junto da Leila do Jornal da Globo.”

JORNAL DA ABI – E QUANTO TEMPO VOCÊ MANCHETE?

FICOU NA

Eliakim Araujo – Fiquei três anos. A Manchete teve uma fase muito boa, mas sempre lutou com grandes dificuldades financeiras. O pagamento era sempre um sofrimen-

Eliakim Araujo e Leila Cordeiro na época em que assumiram a apresentação do Jornal do SBT.

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de porque ele dividia, nunca se misturou com as outras Redações. Ele fez o mesmo também na Record: chega, monta a equipe dele e divide com uma parede. Isso ele fez no SBT, quando brigou com o Marcos Wilson, foi para a Record e fez a mesma coisa. Os repórteres são dele. Muitas vezes, num evento só, havia dois repórteres do SBT, um da Redação e outro do Boris. JORNAL DA ABI – ENTÃO ELE NÃO CONFIA NAS OUTRAS EQUIPES?

Eliakim Araujo – Não. Uma vez, o Sílvio pediu a ele: “Eu quero que o casal do Jornal do SBT faça o sábado para você” e ele “De jeito nenhum. Eles não têm a mesma formação, minha equipe tem um tipo de formação, o lado de lá é outra formação”. Ele era uma figura assim. Agora, por que caiu? Eu acho que ele cansou, e as pessoas perceberam que ele não era tudo aquilo. A história dele foi aos poucos sendo levantada, e agora recentemente a gente viu a revista O Cruzeiro, de 1967 ou 1968, que aflorou aí, com o pessoal do Comando de Caça aos Comunistas, que tem a foto de todos, e está lá a foto dele. Tem várias figuras conhecidas lá. Aí o Sílvio foi acabando com tudo, ele nunca gostou de notícia, Sílvio gosta de shows. Nesse entretempo surgiu a chance de vir para cá. E aqui ficamos, três anos na CBS. JORNAL DA ABI – COMO FOI ESSA HISTÓRIA? POR QUE O SBT MANTEVE UM JORNALISMO MISTURANDO O JORNAL DO SBT COM O CBS TELENOTÍCIAS?

JORNAL DA ABI – QUANTAS HORAS VOCÊS FICAVAM NO AR?

Eliakim Araujo – O canal era 24 horas. O sistema era rotativo, nós ficávamos em torno de oito horas por dia. É o sistema americano. Você chegava às duas e saía às nove, dez horas da noite. Você vai atualizando as notícias, como aquela história que fizemos na Rádio JB. Só que aqui já era com computadores, nós estamos na era da tecnologia. Aquilo era misturado randomicamente pelo computador, um negócio sensacional. O computador avaliava o que era velho, o que era novo – não sei como funcionava essa tecnologia – e ia criando seqüências de meia hora de notícias. No fim de um certo tempo, começamos a pensar em criar programas, se não íamos ficar só em notícias. E logo depois entrou no ar a GloboNews em Miami. Essa foi uma das causas porque acabou também; nessa altura a Globo fez uma parceria com a NBC que tinha comprado o que restou, o espólio. JORNAL DA ABI – ESSA IDÉIA DA CBS DE FAZER UM CANAL EM PORTUGUÊS NÃO ERA MUITO EXAGERADA? TINHA PÚBLICO?

Eliakim Araujo – Na época tinha, hoje é ridículo você pensar nisso, porque desde que a Globo chegou aqui, acabou. Quando chegamos, ao lado da CBS, das 24 horas de notícias, em duas meia horas entrava noticiário em português aqui. Era um sucesso, às duas e meia da tarde e às seis e meia da noite. A gente fazia para o canal espanhol, o CBS Telenotícias em espanhol. Estava indo bem o negócio. Mas no Brasil não vendia. Houve erros de administração também, e o canal não rendeu. Mas havia público. Anos atrás havia outra realidade em Miami . Eram exibidos vários programinhas brasileiros, de meia hora aqui, meia hora ali. Quando chegou a Globo, acabou com tudo isso. Como a presença da Globo é muito forte, ela matou toda a produção local. O anunciante não quer veicular num canal de visibilidade pequena e pagar quase o mesmo preço que paga para ter um anúncio na Globo. JORNAL DA ABI – POR ISSO É QUE TEM TANTA PROPAGANDA RUIM VEICULADA NA GLOBO, EM

MIAMI?

Eliakim Araujo – Exatamente. A produção do comercial não pode ser alta senão vai ficar mais caro do que o que o anunciante paga para veicular seu anúncio na Globo! Nós estamos trabalhando com isso aqui. Eu e a Leila temos uma produtora e fazemos a mídia na Globo. A gente cria o comercial, produz, e fica ótimo. JORNAL DA ABI – VOCÊS NÃO SE ASSUSTARAM COM ESSA MUDANÇA DO BRASIL PARA OS ESTADOS UNIDOS?

Eliakim Araujo – Nos assustamos. Mudar de país... isso tudo foi meio no susto! “Vamos? Vamos!”. FRANCISCO UCHA

Eliakim Araujo – Nós tínhamos um contrato com o Sílvio que durava mais um ou dois anos. Quando a gente veio para cá, ele disse: “Eu não vou terminar o contrato de vocês, vou emprestar vocês para a CBS”. Então ele ficou ligado à CBS por nossa causa. Começamos a operar aqui em outubro; em dezembro ele estava aqui e ficou apaixonado pela CBS, ficou encantado!

po mexicano, que rapidamente esvaziou e vendeu o que restou para a NBC. E o canal acabou, tanto em espanhol quanto em português. Mas o nosso, em português, era muito interessante. Enquanto o espanhol tinha uma estrutura de 150 pessoas, nós tínhamos 50 e fazíamos um produto tão bom, ou melhor, do que o falado em espanhol. Era isso o que pessoal da direção dizia. Era uma equipe muito boa. Alguns estavam aqui, outros vieram do Brasil, chefiados pelo Marcos Wilson.

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JORNAL DA ABI – MAS VALIA A PENA VOLTAR, COM A FAMÍLIA AQUI E A VIOLÊNCIA NO BRASIL AUMENTANDO ASSUSTADORAMENTE?

Eliakim Araujo – Isto aqui é um paraíso. Todo dia a gente anda 40 minutos aqui na rua, vamos a pé ao supermercado. A gente ganha menos do que ganhava quando estava no Brasil. Mas temos uma qualidade de vida excepcional. Para ter esta qualidade de vida no Brasil, uma casa como esta, tem que ter milhões. Em Ipanema você não compra mais nada bom com 500 mil reais. E profissionalmente hoje a fila já andou. Leila tem um potencial espetacular. É a melhor repórter ao vivo que já vi na vida. Você abre o microfone dela ao vivo em qualquer evento e ela faz miséria. Mas não estamos arrependidos, acumulamos uma experiência que eu considero muito boa, porque a gente amadureceu. Se a gente fosse hoje para o Brasil, seria uma supernovidade, pela maneira como iríamos trabalhar. A gente conhece muitos brasileiros aqui porque trabalhamos muito com eles. E não há ninguém, em sã consciência, que pense em voltar. E quando alguém tem que voltar, você sente o clima de derrota. Volta por algum motivo, eu não falo do pessoal que volta deportado. Esse é o pessoal mais humilde, que volta porque não tem documento. Todo dia volta gente. JORNAL DA ABI – VOCÊ É CIDADÃO AMERICANO?

Eliakim Araujo – Há muito tempo. Você é obrigado a ser. Você mora aqui, declara imposto de renda. O Green Card saiu rápido. Como a gente tinha o aval da CBS, que é uma empresa americana, o Green Card saiu fácil. Depois de cinco anos, você fica pendurado no Green Card, você é meio cidadão. Aí acaba fazendo a cidadania para gozar de alguns direitos, como aposentadoria e outras coisas. De fato, se voltar, é um grande choque. De lá para cá foi um susto. Agora, daqui para lá vai ser um choque. Mudou muito, mudou tudo.

JORNAL DA ABI – ELE NÃO CONHECIA?

Eliakim Araujo – Não. Ele veio e disse: “Vocês fazem 24 horas de notícia com esta equipe apenas? Meu Deus! Eu pago uma fortuna de jornalismo lá!”. E ele viu como o americano trabalha. Ele queria comprar a CBS! Chegou a fazer uma proposta para comprar aquela estrutura ali, mas eles não venderam. E nós ficamos emprestados à CBS. Mas ele não pagava. E eu disse: “Sílvio, cadê o nosso salário?” A gente ganhava bem no SBT. A moeda estava pau a pau com o dólar, e a CBS disse: “Nós pagamos a metade, o Sílvio paga a outra metade”. O Sílvio nunca pagou. E por causa disso ele conseguiu fazer essa mistura de jornalismo, que era uma coisa terrível: entrava com um pedaço gravado pelo Hermano Henning e misturava com o nosso aqui, era uma coisa muito louca. Claro que o canal não faturou no Brasil, que era um canal em português para vender no Brasil. Então a CBS vendeu o canal para um gru-

Metemos tudo no caminhão e não olhamos para trás. No dia 30 de setembro de 1997 a gente estava desembarcando aqui, com malas, bagagens e dois filhos pequenos. O Lucas, com 5 anos, e a Ana, com 13. Foi uma mudança radical e não estamos arrependidos. É verdade que ao final do projeto CBS a gente deveria ter voltado para o Brasil. A gente teria espaço na televisão brasileira. Hoje não tem mais.

JORNAL DA ABI – PENSANDO ASSIM, NÃO FOI A MELHOR COISA QUE ACONTECEU PARA A SUA FAMÍLIA?

Coqueiros, estrelas, flores, casas coloridas: temas usuais de alguns dos quadros que Leila Cordeiro pinta nas horas vagas, revelando-se uma inspirada artista plástica.

Eliakim Araujo – Pode ter sido. Talvez financeiramente não, lá a gente ganhava muito mais. Mas a gente está bem. E quando se tem família a gente dá muito valor a isso. A minha filha, Ana Beatriz, é muito dedicada, com 27 anos já tem um baita currículo. Cursou Jornalismo

na Florida International University, em Miami. Saiu uma ótima profissional e imediatamente estava empregada em jornalismo, que é uma coisa difícil aqui. Trabalhou nos principais jornais como estagiária, primeiro, e depois empregou-se em um jornal da Virgínia, o Roanoke Times. Um ano depois foi contratada pelo Star News, de Wilmington, Carolina do Norte, que é da rede do The New York Times. Inquieta e sempre procurando novos caminhos, ela foi aprovada em concurso para o programa de bolsas Erasmus Mundus, patrocinado pela União Européia. O primeiro ano ela cursou na Dinamarca e o segundo na Polônia, onde está agora. Nas férias de verão, fez um estágio de seis semanas na Organização Mundial de Saúde, em Genebra. Ela sonha com a carreira diplomática, nos Estados Unidos ou no Brasil. Tomara, né? Já o Lucas, o caçula, chegou com cinco anos e foi alfabetizado em inglês, mas fala o português corretamente, sem sotaque. Está no segundo ano da University of Central Florida-UCF, cursando Computer Engineering e Computer Science. Além dos dois, tenho outros dois do primeiro casamento. O Alexandre é publicitário e mora em São Paulo e o Frederico, que mora na Flórida, onde trabalha como músico, é baterista. (Nesse momento chega Leila Cordeiro, esfuziante, que é convidada a participar do papo.) JORNAL DA ABI – DÁ PARA COMPARAR OS TELEJORNAIS BRASILEIROS COM OS AMERICANOS?

Eliakim Araujo – É uma diferença... Para começar, aqui você tem apresentadores com mais de 60 anos: a Diane Sawyer, que é a principal hoje. Leila Cordeiro – A Diane Sawyer é a minha “ídala”, é a melhor apresentadora do mundo, não tem igual a ela. Os americanos não escondem as coisas. Quando teve o terremoto no Japão, eles compararam às imagens de Nagazaki e Hiroshima, botaram a tela dividida. E a Diane tem o tom certo! Não é uma boa apresentadora porque sabe ler, não, é porque ela sabe interpretar a notícia, dando uma opinião só com o olhar, só com uma palavra. Então, ela pegou aquela coisa, ficou consternada, acompanhou tudo, fez matérias maravilhosas! A mulher chega lá, está descabelada, não está preocupada se está com maquiagem, se está com óculos, nada. É um show o que ela faz, todo dia dá um show de jornalismo. Apesar de a televisão brasileira ser boa, mas em conteúdo... No Brasil estão usando agora o Skype. Aqui, desde que o Skype entrou no ar, eles botam os repórteres para aparecer. Não tem aquela coisa engessada, do cara ter que aparecer todo arrumadinho. A Globo agora começou a soltar as amarras. Você tem que ler naturalmente, tem que olhar para a pessoa e conversar ou conversar com o telespectador. Na Globo as coisa funcio-


nam porque aquelas pessoas foram criadas ali, naquela mentalidade. É uma coisa corporativa. É uma máquina, e as pessoas são as peças daquela máquina, mas que só funcionam ali. Se saírem dali, não funcionam. Eliakim Araujo – Você sabe? Aqui as emissoras de notícias assumem abertamente suas posições políticas, não é como no Brasil, onde fingem ser isentas, mas no fundo sabemos que defendem com unhas e dentes seus interesses. Nos Estados Unidos você tem a direitista Fox News, criação do tal Rupert Murdoch, que está agora enrolado até o pescoço com o escândalo do semanário inglês. Murdoch é um velhote malandro que decidiu criar um canal para atender ao grande público que forma a classe média americana. Seus âncoras do Prime Time e seus comentaristas assumem que são oposição a Obama, detestam imigrantes e não aceitam qualquer restrição ao porte de armas. São direitistas raivosos, mas competentes, especialmente Bill O’Reilly e Sean Hannity. Na outra extremidade, você tem a MSNBC, de orientação liberal e abertamente simpática aos democratas. Não dá pra dizer que seja de esquerda, mas tem idéias muito mais modernas que os concorrentes da Fox. No centro, podemos dizer que está a CNN, que é a pioneira no segmento de jornalismo nos canais a cabo e se gaba de ser a maior rede de notícias do mundo. Tenta passar uma linha política isenta e até certo ponto consegue. Sua preocupação maior é com a notícia e não se notam comentários tendenciosos de seus analistas. JORNAL DA ABI – MAS A CNN NÃO ESTAVA EM CRISE, SOBRETUDO POR CAUSA DA FOX?

Eliakim Araujo – Ela perdeu audiência. Por incrível que pareça, a audiência líder é da Fox. Nos outros canais abertos, você vê um jornalismo bastante imparcial. Eu não sinto aquela coisa pré-concebida. É claro que eles têm a visão americana do conflito na Líbia, mas eles também dizem que o Governo americano apoiou Kadafi a vida toda. A CBS, que é uma emissora tradicional também, não tem canal a cabo, é bastante imparcial. Isso eu acho legal. No Brasil, você vê nitidamente aquelas coisas de cartas marcadas. O brasileiro pode ter calor humano, pode ter tudo, mas o apresentador é formal, frio, 3 por 4. Aqui o cara levanta, aparece a gravata solta, é tudo natural. Se tiver que beber água, bebe. JORNAL DA ABI – A QUE SE DEVE ISSO?

Eliakim Araujo – Não tem nada a ver com essa coisa de calor humano, não. O brasileiro pode ter calor humano, pode ser mais latino, tudo isso pode ser, mas ali na telinha é outra história. Leila tem uma expressão, que é a seguinte, os caras são meio atores, todo mundo aqui é meio ator, o povão fala na rua interpretando: “I’m so sorry!” Eles são assim. E isso é na televisão também. A Diane Sawyer é uma atriz.

JORNAL DA ABI – VOCÊS JÁ FAZIAM ISSO BRASIL?

NO

Leila Cordeiro – Fazíamos muito. Mas as pessoas pensavam que a gente fazia porque era marido e mulher. Não é nada disso! É porque ele sabia fazer e eu sabia fazer. JORNAL DA ABI – MAS NAQUELA ÉPOCA SER

jornais do mundo, a gente faz uma coisa bem legal. JORNAL DA ABI – COMO É ESSE TRABALHO?

Eliakim Araujo – A nossa empresa é contratada para fornecer uma newsletter diária, de segunda a sexta, para distribuir para quatro, cinco mil pessoas, clientes e funcionários.

MARIDO E MULHER NÃO ATRAPALHOU?

Leila Cordeiro – Na época, sim, porque não existia isso. Agora, toda hora tem marido e mulher. Naquela época não tinha. Podia ter um ticotico-no-fubá que ninguém soubesse, mas que moravam juntos éramos nós dois só. E nós fazíamos aquele jornal sob muita pressão. Porque tinha neguinho doido para derrubar a gente. Saímos de lá por isso; estava demais. Então, quando pedimos demissão da Globo, já tinhamos acertado com a Manchete. Aí fomos ao Boni e pedimos a liberação do nosso contrato, que ele não queria dar. Ele sugeriu que a gente ficasse seis meses de férias viajando. Falamos: “De jeito nenhum, a gente não é marajá. Marajá de jornalismo não existe”. Depois, quando voltássemos, já teríamos perdido o lugar e já teria perdido a Manchete também. Fizemos o distrato e saímos no carro do velho Bloch, que estava lá esperando a gente na porta da Globo. E fomos para a Manchete assinar o contrato. Mas aí eles começaram a criar problemas, porque começaram a desconfiar. Eu não entendi essa, porque eles foram tão ingênuos. O Alberico falou: “Então jura prá gente que vocês não vão para a concorrência”. A gente falou “juro!”. Mas não foi o Alberico que liberou, foi o Boni. Ele se convenceu quando falei que não havia mais clima para ficar ali, que a gente queria ir embora, fazer outras coisas. Não tinha sentido a emissora prender a gente. JORNAL DA ABI – E A SUA VISÃO DE QUANDO RECEBEU A PROPOSTA DA CBS?

Leila Cordeiro – Eu fui a primeira a empacotar tudo e vir embora para cá! Porque a gente já conhecia Miami e eu estava pensando nos filhos. Queria que eles viessem e tivessem a chance de estudar aqui, de morar em outro país. E quando surgiu essa oportunidade, falei “Temos que ir!”. Até por nós mesmos. O SBT não tinha ninguém no exterior, nem a Band, só a Globo tinha. JORNAL DA ABI – E COMO VOCÊS RECEBERAM A CHEGADA DA INTERNET?

Leila Cordeiro – O computador veio para melhorar muito a vida da gente, mas por outro lado veio para acabar com muita coisa tradicional. Você vê esses tablets? Ninguém mais quer saber de ler livro de papel agora! É tudo nos tablets. As escolas daqui já estão colocando os tablets. Tudo em e-books! Eliakim Araujo – Olha aqui! (mostrando o notebook) Nossa empresa distribui uma newsletter, que é um resumo das notícias do dia com nova roupagem, com o texto nosso, mas como a gente pesquisa vários

JORNAL DA ABI – VOCÊS DISPARAM DAQUI PARA ESSES CINCO MIL ENDEREÇOS?

Eliakim Araujo – A gente dispara daqui. Evidente que a gente não vai para a rua pesquisar a notícia. As notícias estão aí. Você precisa pegar a notícia, ter critério de escolher de acordo com a vontade do cliente. As pessoas adoram. A gente bota vídeos, é um negócio muito bonito. JORNAL DA ABI – A INTERNET DÁ TANTAS COISAS DE GRAÇA, QUE VOCÊ PODE FAZER CENTENAS DE PROJETOS SEM GASTAR UM TOSTÃO .

Eliakim Araujo – É uma revolução. Você grava na sua câmera, aperta e põe lá na hora. Temos vídeos modernos, bons, no YouTube. O que a gente queria era fazer uma coisa daqui de Miami para o Brasil, um programa de qualidade mostrando como o brasileiro vive aqui. Não é nenhuma novidade, mas mostrar com o nosso jeito de fazer. A gente tem condições de produzir um programa de meia hora, semanal, com qualidade e um custo baixíssimo. O nosso estúdio é aqui em casa, com equipamento de primeira. JORNAL

DA

ABI – PORQUE

VOCÊS NÃO

APROVEITAM AS FERRAMENTAS DO YOUTUBE PARA APRESENTAR PROJETOS?

Leila Cordeiro – A gente até pensa nisso, mas para fazer isso é um trabalho... Como já fomos de televisão, se não fizermos uma coisa decente as pessoas já vão dizer: “Hum, que decadência”. JORNAL DA ABI – FOI MAIS OU MENOS O QUE ACONTECEU COM DIVERSOS PROJETOS CONSTRANGEDORES APRESENTADOS NA TV UOL...

Leila Cordeiro – É... Quer dizer, estão fazendo uma bobagem aí. Para não fazer um trabalho decente é melhor não fazer. Com os vídeos, a gente tem uma produção boa e grande. Fizemos o Conexão América. Mas são vídeos editados, de oito minutos, dez minutos, que a gente fez com reportagem, roteiro, faz tudo bonitinho. Tem muita coisa que a gente fez agora. Pesquisa Conexão América, Eliakim Araujo e Leila Cordeiro no YouTube; lá tem vários vídeos. JORNAL DA ABI – HÁ VÁRIOS CANAIS PAGOS NO BRASIL, E MUITOS DELES, SÓ DE NOTÍCIAS. VOCÊS JÁ FORAM SONDADOS PARA FAZER ALGUM PROGRAMA DAQUI DE

MIAMI, COMO O CONEXÃO AMÉRICA, POR EXEMPLO?

Leila Cordeiro – A gente já tentou fazer coisas daqui. O Eliakim chegou a fazer para a Record um programa parecido com o 60 Minutes em português, mas a gente não queria só isso, a gente queria muito mais. Porque temos condições de fazer re-

“Ninguém mais quer saber de ler livro de papel. Agora é tudo nos tablets.”

renovou. Teve um período, logo que a televisão surgiu, que o rádio foi para baixo. Pode ser que aconteça isso também, que os jornais descubram uma forma de fazer alguma coisa interessante. Esse negócio de computador, depois que a gente acostuma... Olha, é melhor ficar sem televisão do que sem computador! JORNAL DA ABI – O JORNALISMO DIÁRIO IMPRESSO NÃO TERIA DE MUDAR A FORMA

portagem. O Conexão América que tínhamos aqui era excelente, muito bem produzido. A gente conseguiu exibir o programa, só que numa emissora local, que ninguém via. JORNAL DA ABI – VOCÊS MOSTRARAM ESSE BRASIL?

TRABALHO PARA ALGUÉM NO

Leila Cordeiro – Conversamos com várias pessoas, mas o problema é que eles acham que, para fazer qualquer coisa aqui, têm que manter uma estrutura deles, porque não querem perder o controle. Eles não conseguem entender que não precisavam ter nenhuma estrutura aqui! Nós já temos! Era só a gente fazer, mandar para eles botarem no ar. Não tem mistério. Nós fomos falar com o (Johnny) Saad, da Band; ele recebeu a gente, sentamos à mesa dele, com aquela vista maravilhosa. Mas eles não conseguem ter essa visão, isso é uma coisa impressionante. Eles preferem Nova York. Miami é um lugar que não interessa. Têm um certo preconceito; pensam que aqui é um lugar de sacoleiros, de cubanos, uma coisa cafona, brega. E não é nada disso. É uma visão equivocada, distorcida. Há muito investimento de brasileiros aqui. A gente tem 64 programas feitos. Sendo que, num deles, nós fomos a Nova York fazer uma cobertura onde estiveram presentes vários Governadores brasileiros, além do Bill Clinton e do velho Bush. Ninguém do Brasil cobriu isso, e a gente cobriu tudo em Nova York. JORNAL DA ABI – QUANDO ACONTECEU ISSO?

Leila Cordeiro – Em 2007. Na verdade, eles têm medo porque não é um mercado que conheçam, nenhuma emissora conhece Miami. E acham que é caríssimo, que tudo é um escândalo de caro. Só que não sabem que a gente consegue fazer isso baratíssimo. JORNAL DA ABI – VOCÊS ACHAM

QUE O

JORNALISMO DE PAPEL VAI ACABAR?

Eliakim Araujo – Dizem que tem até data marcada. Mas eu acho que vai acabar, e você não precisa ir muito longe. No Rio, a Tribuna da Imprensa e o grande Jornal do Brasil, que acabou há um ano, já viraram ‘online’. As pessoas agora lêem pela internet. Eu leio o The New York Times online. O The New York Times está numa crise brava. Leila Cordeiro – Guardadas as devidas proporções, acho que vai ser mais ou menos o que aconteceu entre o rádio e a tv. Quando a televisão surgiu, a rádio foi ficando para trás. Mas a rádio não morreu, se

DE SE APRESENTAR? TER OPINIÃO?

Eliakim Araujo – Não sei. Eu leio tudo no computador. Acabaram aquelas enciclopédias fantásticas. Antigamente havia aqueles vendedores da Barsa. O cara vinha com aquele calhamaço e lhe convencia a comprar. Mas o papel, aqueles livros, além de serem pesados, no caso das enciclopédias, se desatualizam com muita facilidade. E na internet você corrige na hora. Então, acho que o papel como suporte está condenado. É uma questão de tempo. Mas evidentemente, tem gente tradicional que não acostuma, gosta de pegar no jornal, sentir o papel. Mas o pessoal mais jovem, não. JORNAL DA ABI – COMO FOI A CRIAÇÃO DO SITE DIRETO NA REDAÇÃO, QUE ACABOU DE COMPLETAR DEZ ANOS, E PORQUE VOCÊ E A LEILA DECIDIRAM CRIAR ESSE ESPAÇO NA INTERNET?

Eliakim Araujo – O Direto da Redação surgiu num período de entressafra. O projeto CBS Brasil fora desativado e estávamos em busca de alguma coisa que pudesse nos manter na mídia, mesmo morando fora do Brasil. Como a internet estava estourando naquele momento, com o aparecimento de vários sites de jornalismo de opinião, como o No Mínimo, decidimos entrar na onda. Convidei alguns amigos que trabalharam conosco no projeto CBS Brasil e tocamos em frente. O curioso é que a primeira newsletter foi distribuída no dia 3 de agosto de 2001, quando eu estava em São Paulo me restabelecendo de uma cirurgia de hérnia. E a postagem foi toda operada a partir de um desktop de um amigo em Atibaia, o que veio reforçar a importância da internet, como instrumento de conexão entre o editor e os colunistas sediados em várias partes do mundo. De lá pra cá, o website cresceu. Houve mudanças no time de colunistas, mas a bandeira da liberdade de opinião tem sido mantida através dos tempos. Atualmente são doze colunistas e eles não recebem um tostão; escrevem pelo prazer de não serem pautados ou censurados. Por isso podemos nos dar ao luxo de não aceitar patrocinadores. Também não recebemos verbas de partidos políticos, como alguém já insinuou. A despesa de manutenção é quase zero, e quando é preciso investir em nova paginação encontramos sempre amigos que topam trabalhar para o DR em troca de uma referência no site ou um pequeno banner. O diretodaredacao. com recebe cerca de 30 mil visitantes por mês, o que dá uma boa média de mil visitas ao dia.

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JORNAL DA ABI – O QUE SURGIU PRIMEIRO

Um dos mais destacados quadrinistas do Brasil é antropólogo, enfrentou a burocracia da Funai e os perigos da profissão e agora decidiu mudar de ares: “O que importa não é a realidade, mas o que a gente faz com ela.”

FRANCISCO UCHA

A NDRÉ

TORAL O importante é a viagem POR FRANCISCO UCHA E CESAR SILVA

Quando se lê uma história em quadrinhos criada por André Toral, logo se tem certeza de que aquelas páginas têm algo que a diferenciam de boa parte da produção do gênero. Não se trata apenas do seu traço marcante e dos criativos enquadramentos. Seus quadrinhos têm consistência histórica, roteiros minuciosamente elaborados e os diálogos dos personagens geralmente reproduzem o tempo e o local onde estão inseridos. Adeus Chamigo Brasileiro, verdadeira obra-prima que conta histórias sobre a Guerra do Paraguai, é fruto de uma profunda pesquisa acadêmica e foi sua tese de doutorado. “O quadrinho é uma linguagem tão boa quanto a literatura para se falar de ciência. O quadrinho não ilustra o texto, tem autonomia como linguagem”, disse Toral. Filho de dois destacados intelectuais – a historiadora e crítica de arte Aracy A. Amaral e o prestigiado artista plástico chileno Mário Toral –, desde criança o quadrinista conviveu num ambiente rodeado pela arte, mas chegou a ter complexo por não fazer uma “arte séria”, e sim quadrinhos. Puro engano. Sua obra é consistente e faz parte do que de melhor se produziu em hq no Brasil. André Toral é antropólogo e atuou por trinta anos como indigenista a serviço de diversos órgãos públicos. Seu autor preferido é Hergé, criador de um personagem ícone das bandas desenhadas 18

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européias: Tintin. “Hergé me ensinou que hq é trabalho duro, nada vem fácil, tudo tem que ser construído”, disse. Mas ele confessa que tem uma relação “agoniada” com os quadrinhos: “Desenho muito devagar no lápis. Faço, não gosto; faço, não gosto; faço, gosto, acordo, não gosto, apago, faço de novo. Isso é defeito de quem nunca ganhou dinheiro com quadrinhos, como é o meu caso”, admite. Seu envolvimento com essa arte começou na cultuada revista Animal. O álbum de estréia foi O Negócio do Sertão: Como Descolar uma Grana no Século XVII, premiado com o HQ Mix de Melhor Roteirista. Agora chega às livrarias um novo álbum que reúne algumas das pequenas histórias publicadas na revista Brasileiros: Curtas e Escabrosas mostra que as narrativas não precisam ter muitas páginas para serem uma grande história. A maioria tem apenas duas. Pouco, mas o suficiente para Toral nos surpreender a cada quadrinho. Nesta entrevista ao Jornal da ABI, André Toral nos conta também seu processo de criação e os perigos que enfrentou como antropólogo: “Eu não tinha a menor idéia do poder das pessoas com a qual a gente se batia, das ameaças concretas que estavam rolando”. Não é à toa que a leitura é tão densa e prazerosa. “Faço uma história e ela vale pelo que se desenvolve. A travessia é o que conta, não é a chegada. A viagem é o importante”. Boa viagem.

NA SUA VIDA PROFISSIONAL: A ANTROPOLOGIA OU AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS?

André Toral – Eu sempre fiz quadrinhos, sempre gostei de quadrinhos. Comecei quando tinha 17 anos, saí do colegial, entrei para a faculdade mas nunca havia publicado uma história em quadrinhos, e não publiquei até ter cerca de 30 anos. Comecei tarde. Eu sempre desenhava, sempre me informava, consumia muito quadrinho. Fiz Ciências Sociais, e depois na pós-graduação você opta por um dos ramos das Ciências Sociais: Antropologia, Sociologia ou Política. Fiz mestrado em Antropologia. É aí que se forma antropólogo... no mestrado. Trabalhei como antropólogo até os 40 anos praticamente. Dava consultoria para diversas instituições: Funai, Procuradoria da República, Justiça Federal, Governo Federal, organizações religiosas, organizações laicas, e a partir dos 40 anos fiz doutorado em História da Arte. Tenho minha vida bem dividida em dois períodos. Aos 30 anos, quando tive um problema na área da antropologia aplicada – trabalhava em projetos práticos, como demarcação de área, projetos de educação, projetos de criação de alternativas para subsistência de povos indígenas e tal –, tive de ficar um tempo em São Paulo, e meio como provocação, mandei umas histórias para a revista Animal, que estava procurando desenhistas. Foi uma namorada minha que me incentivou: “Manda!” Eu falei: “Imagina. Ninguém vai gostar destes trabalhos”. “Manda de qualquer jeito, você não perde nada. Ninguém olha os seus trabalhos, fica tudo na gaveta...” Eu mandei, e a minha surpresa foi que a Animal não só gostou como resolveu publicar aquela loucura toda. E isso foi péssimo... No primeiro número em que saíram meus trabalhos, o André Forastieri caiu de pau na Folha de S. Paulo, falando que era horrível. Eu fiquei arrasado. JORNAL DA ABI – QUAL FOI ESSE TRABALHO?

André Toral – Era uma série de trabalhos chamado Pesadelos Paraguaios. A Animal publicou no final dos anos 1980. JORNAL DA ABI – POR QUE ELE ACHOU TÃO RUIM?

André Toral – Porque era feito com lápis de cor, era um trabalho que ficava na linha entre arte e hq. E era estranho. Era um trabalho esquisito. Deram um grande destaque e era completamente diferente da forma de quadrinhos. JORNAL DA ABI – VOCÊ CONCORDA COM A OPINIÃO DO FORASTIERI HOJE?

André Toral – Não. Depois o Forastieri reviu a opinião dele, ele gostou quando se acostumou um pouco com a linguagem. Coisa que nunca vi um jornalista fazer. Fez uma autocrítica ao vivo e publicou: “Eu tinha uma opinião do André Toral, mas agora mudei minha opinião”.


Abaixo, uma página da tese em quadrinhos Adeus Chamigo Brasileiro. Ao lado, o monstro brasileiro devorador de paraguaios na Animal.

Achei ótimo isso, porque o meu trabalho também ficou bastante diferente. Mas, enfim, essa série Pesadelos Paraguaios são os pesadelos que um soldado paraguaio tem antes de morrer. E o que é que ele sonha? Então eu fiz os brasileiros como monstros, como os paraguaios nos imaginavam, como assassinos. E ficou uma coisa estranhíssima. A Animal publicou três episódios. Como não dependia de quadrinhos para sobreviver, levava muitíssimo tempo para fazer uma página. Era uma coisa completamente anticomercial. Mas era o que eu achava que era arte, quadrinhos. Gosto muito de um artista que chama Mattotti [Lorenzo Mattotti], desenhista italiano que publicou na L’Echo des Savanes... JORNAL DA ABI – VOCÊ NÃO PENSAVA EM SE TORNAR UM QUADRINISTA PROFISSIONAL?

André Toral – Era ridículo o que se pagava por página... e ainda paga. Cerca de 40 dólares. É uma coisa ridícula. Fiz as contas e descobri que a minha diarista ganhava mais do que eu fazendo quadrinhos. O que eu ganhava numa página a minha diarista ganhava num dia. Mas como não conseguia fazer uma página num dia, então ela ganhava mais do que eu, é claro. JORNAL DA ABI – A MAIORIA DOS PROFISSIONAIS DE QUADRINHOS TEM QUE FAZER MUITAS PÁGINAS POR DIA PARA PODER SE SUSTENTAR...

André Toral – Ou ter um segundo emprego. Eu continuava trabalhando como antropólogo. Mas a medida em que as encomendas foram aumentando, comecei a fazer uma coisa mais rápida; deixei o lápis de cor de lado e fiz uma história com nanquim, uma coisa fácil de entender, normal, em branco e preto. Fiz a série O Carrasco da Mooca e fiquei muito orgulhoso de mim mesmo porque tinha feito uma coisa que parecia história em quadrinhos. JORNAL DA ABI – PESADELOS PARAGUAIOS SAIU MUITO ANTES DESSA SÉRIE?

André Toral – Bem próximo. Foi uma espécie de desafio que coloquei para mim mesmo: “Puxa, suas histórias são muito estranhas. Ninguém vai entender o que quer dizer. Lápis de cor? Faz uma coisa mais normal”. Então fiz uma história de três páginas, normalíssima, em branco e preto com nanquim. JORNAL DA ABI – VOCÊ DISSE QUE TEVE UM PROBLEMA COM O SEU TRABALHO DE ANTROPÓLOGO.

QUE TIPO DE PROBLEMA?

André Toral – É, vivia metido em problemas de indigenismo, advogado que me processava, fazendeiro que me ameaçava, Funai que não

dava autorização, era uma coisa muito instável. Fazer quadrinho era uma coisa sossegada, que eu podia fazer aqui em São Paulo. Comecei a fazer histórias de violência urbana. Percebi que precisava assumir que gostava disso; não podia ficar levando as histórias em quadrinhos como uma amante e ficar apresentando a antropologia como a mulher oficial. Não que eu não gostasse de antropologia. Gosto muito, mas a antropologia aplicada traz muito problema. Uma coisa que me deixou muito animado foi quando uma editora chamada Dealer me propôs: “Quer fazer uma história em quadrinhos? Faz uma grafic novel que compramos”. E me fez uma proposta concreta. Na época era uma modorra: a Animal comprando pouca coisa, a Chiclete com Banana menos, muita gente sem opção! Aí chega essa editora comprando coisa de todo mundo. Comprou geral, comprou minha, do Mutarelli...

“O quadrinho tem autonomia como linguagem. Adeus Chamigo Brasileiro é isso: uma tese que prova outra tese.”

JORNAL DA ABI – E O QUE VOCÊ ACHA DESSA TENDÊNCIA ATUAL DE OS EDITORES TEREM MAIS INTERESSE EM PUBLICAR ADAPTAÇÕES DE ROMANCES EM QUADRINHOS?

André Toral – Infelizmente, agora o que eles reconhecem que rende em termos de quadrinhos são os quadrinhos históricos, paradidáticos. Então o quadrinho continua sendo julgado como um gênero literário de segunda categoria. Quando o quadrinho é usado para representar, ilustrar ou transcrever, por exemplo, Iracema, de José de Alencar, Quincas Borba, de Machado de Assis, a vida de Debret, é como se eles ganhassem o estofo dado pela literatura. Essa febre de paradidáticos, no fundo, é uma tentativa de dar dignidade de literatura ao quadrinho. O que quero dizer é que não acredito nisso. Acho que se você quer ler Quincas Borba, por favor, compre o livro de Machado de Assis. Se você quer ler Brás Cubas, a mesma coisa. Porque sou professor e sei que quando você faz quadrinho você é tão artista quanto Machado de Assis.

JORNAL DA ABI – E PAGOU?

André Toral – Pagou na hora, em cash. Todo mundo publicou tudo o que tinha e, num curto espaço de tempo. A Dealer publicava, mas algo deu errado e não deu dinheiro. Depois parou de comprar. Mas essa editora publicou muita gente nessa época. Depois disso, resolvi fazer parte da minha tese de doutorado em linguagem de quadrinhos! Então minha tese tem duas partes: uma é a tese normal; a outra parte eu uso o conhecimento da minha tese normal para explicar os fatos através da linguagem dos quadrinhos. No meu doutorado estava estudando como se pode falar de uma guerra através das imagens que se produzem numa guerra. Como se fala da Guerra do Paraguai a partir de suas representações visuais. E quem falava da Guerra do Paraguai? Os artistas que viviam na época, os fotógrafos, os gravuristas, os aquarelistas, todos eles têm uma imagem. Os paraguaios retratam os brasileiros como monstros, os brasileiros retratam os paraguaios como um bando de índios, os argentinos retratam os brasileiros como macacos e os paraguaios como índios. Então é como se você fosse analisar o noticiário político dos nossos dias por meio da charge do Angeli. Você acompanha aquilo que o Angeli fala e dá para saber mais ou menos o que acontece. Fiz isso com a caricatura do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, com as pinturas produzidas nesses países, com as gravuras produzidas, e com todas as imagens. Aí eu tenho um panorama da guerra como uma representação visual. Queria saber que tipo de imagem se produz nessa época! Como essas imagens abordam a guerra? E, através disso, chegar a uma ideologia, um conjunto de idéias expressas por essas pessoas. JORNAL DA ABI – ONDE O MATERIAL ICONOGRÁFICO DA GUERRA DO PARAGUAI ESTAVA DISPONÍVEL NA ÉPOCA?

ser usado como veículo para se afirmar ciência. Essa era a minha outra tese: O quadrinho é uma linguagem tão boa quanto a literatura para se falar de ciência. A imagem não é simplesmente ilustração, o quadrinho não ilustra o texto, o quadrinho tem autonomia como linguagem. Adeus Chamigo Brasileiro é isso: uma tese que prova outra tese. Tem uma história, mas através da história eu quero provar uma idéia.

JORNAL DA ABI – NÃO É APENAS UMA ADAPTAÇÃO...

André Toral – Esse período, de 1850 até 1870, é o período que chamo de explosão de imagens, porque apareceram diversas técnicas. A litografia entrava na imprensa ilustrada, aparece a fotografia comercial, aparecem os pôsteres. Antes, a imagem era um privilégio dos ricos, agora todo mundo pode ter sua imagem, a fotografia torna a imagem popular. Os jornais ilustrados, a caricatura, a charge e os quadrinhos aparecem nesse final de século 19. Diversos desenhistas estrangeiros vêm para cá, como o Fleuiss, Angelo Agostini, e eles começam a ilustrar como se ilustra lá fora. Eles copiam Daumier, a Punch, as publicações da Inglaterra e da França, que trazem essa novidade. JORNAL DA ABI – A MAIORIA DA ICONOGRAFIA QUE VOCÊ PESQUISOU FOI A PUBLICADA NA IMPRENSA?

André Toral – Na imprensa. Porque a minha viagem começava pelos jornais da época. A grande mercadoria que esses jornais traziam eram as imagens, a imprensa parece um boletim vivo, jornais de oito páginas basicamente só de ilustração, com os trabalhos do Agostini. Quando a Guerra do Paraguai começa, todos eles apóiam. Quando começa a dar errado, eles publicam: “vamos sair dessa guerra, afinal, quem levou a gente para a guerra? Que vergonha! Essa guerra só interessa para os finan-

cistas, aos vendedores de armas, aos ingleses, ao imperador... Vamos sair, não temos nada a ver com isso!” E quando o Brasil ganha a guerra finalmente, aí começam: “Fizemos bem em permanecer na guerra”. Como a gente vem anotando o comportamento ao longo do tempo, a imprensa é extremamente oportunista. Ela flui como se fosse a maré. A maré da opinião pública. Na verdade, a imprensa não pode brigar com o seu comprador. JORNAL DA ABI – E COMO FICOU SUA TESE DE DOUTORADO EM LINGUAGEM DE QUADRINHOS ?

André Toral – Para pôr tudo isso para funcionar, bolei uma história em quadrinhos que se chama Adeus Chamigo Brasileiro. Nela, aparecem o fotógrafo, o pintor, o gravurista. As duas partes da minha tese foram publicadas. A parte escrita se chama Imagens em Desordem- A iconografia da Guerra do Paraguai, e foi publicada pela Humanitas... é um livro normal. A história em quadrinhos virou um álbum publicado pela Companhia das Letras. Foi uma novidade, estourou, Adeus Chamigo Brasileiro fez muito sucesso, na verdade pela tese subjacente à tese. A tese qual era? As imagens constituem uma guerra em particular, uma outra guerra, ideológica. E a outra tese era a de que o quadrinho pode

André Toral – Não. Você está criando outra coisa que não tem nada a ver. Uma coisa é um livro, outra é o filme que se faz do livro que você vê no cinema. E outra coisa é o quadrinho. Mas o que está acima dessa idéia? Que a hq, na verdade, só é digna de ser levada à prateleira quando ela ilustra a literatura! E é isso com que eu não concordo. O artista de quadrinho tem que ter liberdade criativa, tem que falar sobre a Guerra de Canudos, e não ilustrar Os Sertões. Agora, existe também um oportunismo, que eu acho importante salientar, nos paradidáticos, na seleção do Mec. Nenhum problema... os meus livros foram todos comprados pelo Mec e servem para a educação das crianças. Acho ótimo isso. Mas o que acho esquisito é uma adaptação, por exemplo, de Iracema, onde você não faz a crítica do indigenismo romântico, você compra a noção de José de Alencar de como era o índio. Esse índio do Alencar era o índio romântico, que existia idealizado no final do século 19. Não tem nada a ver com o índio real. Quando você ilustra a obra do Alencar, tem que colocar lá: “Leitor, este não é o índio real; é o índio visto a partir da estética romântica, onde ele tem valores da cavalaria, como se fosse um cavaleiro medieval aprisionado na pele de um índio”. Sem essa advertência, a pessoa pode ler isso sem ter

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a visão de que é um índio segundo a visão do indigenismo romântico do século 19. No romantismo, como a gente sabe, não havia nenhum compromisso com o que realmente aconteceu. O romantismo é uma coisa, a verdade histórica é outra. JORNAL DA ABI – MAS A QUESTÃO DO OPORTUNISMO QUE VOCÊ FALOU É IMPORTANTE. NA REALIDADE, O EDITOR SÓ ESTÁ INTERESSADO EM PUBLICAR ADAPTAÇÕES DE GRANDES ROMANCES EM QUADRINHOS PELA PERSPECTIVA DE VENDA PARA O MEC.

É DIFERENTE DA ÉPOCA EM QUE ADOLFO AIZEN, DA EBAL, FAZIA ADAPTAÇÕES DE ROMANCES, NA DÉCADA DE 1950. PORQUE O QUADRINHO NAQUELA ÉPOCA ERA PERSEGUIDO, VISTO COMO UM FORMADOR DE DELINQÜENTES. O AIZEN QUERIA MUDAR ISSO, E ESSA FOI UMA DAS MANEIRAS QUE ELE ENCONTROU PARA LEVAR OS QUADRINHOS AOS EDUCADORES E INTELECTUAIS: PUBLICANDO ROMANCES EM QUADRINHOS E OUTROS PRODUTOS EDUCATIVOS. ISSO ERA UMA NOVIDADE NAQUELA ÉPOCA.

André Toral – A História do Brasil em Quadrinhos, por exemplo. JORNAL DA ABI – SIM. ERAM DOIS LIVROS. DOIS VOLUMES LINDÍSSIMOS ILUSTRADOS PELO IVAN WASTH RODRIGUES.

André Toral – Tinha o desenho de um índio amarrado na boca do canhão, lembra? Aquilo me gelava o coração. JORNAL DA ABI – É. ADOLFO AIZEN NÃO PUBLICAVA POR INTERESSE EM AUMENTAR AS VENDAS

ATÉ PORQUE OS QUADRINHOS

VENDIAM MUITÍSSIMO BEM –, MAS PARA LUTAR CONTRA O PRECONCEITO ARRAIGADO NA SOCIEDADE E MOSTRAR QUE AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ERAM EDUCATIVAS TAMBÉM.

ALÉM DE SER UMA FORMA DE ARTE.

André Toral – Esses livros da Ebal me fizeram interessar muito por história! Aprendi a gostar de História, especialmente a invasão francesa no Rio de Janeiro, porque fiquei empolgado pelas imagens. As imagens seduzem. Essa idéia de utilizar quadrinhos para educação é ótima. Não estou criticando os outros como oportunistas, só estou falando que a gente tem que ter cuidado. É como eu falei, se você quer ler Machado, leia no original. JORNAL DA ABI – NAS ADAPTAÇÕES DO AIZEN ELE SEMPRE PUBLICAVA UMA NOTA DIZENDO ISSO, QUE AQUELE QUADRINHO ERA UMA ADAPTAÇÃO, UM APERITIVO. SE GOSTOU, LEIA O LIVRO. NÃO É RUIM O EDITOR PENSAR EM GANHAR DINHEIRO, ESSA É A FUNÇÃO DELE. O QUE NÃO PODE É SÓ FAZER AQUILO.

André Toral – Ou vender gato por lebre: Isto aqui é José de Alencar para crianças!

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“Quadrinho dá dinheiro, o resto é conversa mole de editor. Todo editor, quando entrego os originais, diz duas coisas. Primeiro: ‘Estamos mal’. Segundo: ‘O momento das Casas Publicadoras é péssimo’.” JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE O EDITOR BRASILEIRO ESTÁ ACOMODADO?

André Toral – Não acho não. Nem tudo que se publica em quadrinhos no Brasil hoje é voltado para o Mec, ou tem a perspectiva de ser aproveitado como material paradidático. Se você faz uma visita numa livraria e olha a estante de quadrinhos, vai ver que o universo editorial que publica quadrinhos no Brasil é uma coisa muito complexa. Tem muita gente publicando assuntos diversos, temas diferentes, autores diferenciados. Então, você só não publica quadrinhos no Brasil se realmente não quiser. Tem quadrinho alternativo, tem o que tangencia com artes plásticas, o mainstream comercial, o quadrinho histórico, o pessoal, tem quadrinho para adolescente, tem aquele que conta histórias de negros, de índios, de populações minoritárias, tem quadrinhos que cuidam do meio ambiente, tem de tudo hoje em dia. Isso é uma coisa muito boa. Eu não me angustio sobre quem vai publicar minha próxima hq, porque alguém sempre tem interesse. JORNAL DA ABI – MAS UM DOS GRANDES ARGUMENTOS QUE SE FALA É QUE QUADRINHO NÃO DÁ DINHEIRO.

COMO EXPLICAR

drinhos, história, drama. É literatura para adulto mesmo. É legal ver isso. Tem um monte de gente da nossa idade sentado no chão da livraria olhando quadrinhos. É muito legal. E não é esse preço absurdo praticado no Brasil. Considero o preço dos meus álbuns muito elevado. Por R$ 40,00, que é o preço do meu álbum Curtas & Escabrosas, que tem um pouco mais de 70 páginas, você compra um de capa dura com 100 páginas, colorido, quadricromia, lindo, com uma gracinha na capa ainda. JORNAL DA ABI – O QUADRINHO LÁ É POPULAR. VOCÊ ACHA QUE ALGUM DIA O QUADRINHO VAI VOLTAR A SER POPULAR NO

BRASIL?

André Toral – Ele nunca foi. Mas acho que vai, olhando as livrarias estou muito otimista com os quadrinhos no Brasil. Não tem por que não estar. JORNAL DA ABI – E NAS BANCAS?

André Toral – Nas bancas têm menos coisas. Mas vai numa livraria, presta atenção e conta. Tem todos os gêneros, aventura, romance, etc; a quantidade de editoras e a procedência das editoras, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul.

TANTA EDITORA?

André Toral – Conversa fiada. Eu não acredito nisso. Todo editor fala que quadrinho não dá dinheiro para pagar mal ao autor. Tenho pena do artista que precisa viver disso, precisa publicar quadrinhos. Quadrinho dá dinheiro, o resto é conversa mole de editor. Todo editor, quando entrego os originais para ele, diz duas coisas. Primeiro: “Estamos mal”. E segundo: “O momento da imprensa e das Casas Publicadoras é péssimo”. Mas eles continuam lá, publicando, ano após ano. Não acredito. O quadrinho vai muito bem, obrigado, e as editoras estão lançando livros ‘adoidado’! JORNAL DA ABI – MAS EM OUTROS PAÍSES A COISA É UM POUCO DIFERENTE. A PRODUÇÃO É MUITO MAIOR!

André Toral – Pelo que vejo, viajando... as publicações de quadrinho... nossa! Você vai para a França e é um tapa na cara. A quantidade de títulos que se publica num mês na França, a variedade, a qualidade, é uma coisa para ficar espantado. Entrei numa livraria e falei para o cara: “Eu quero ver os últimos lançamentos”. Quase que eu morro! Comprei uns dez livros, os últimos, só para ter noção do que se fazia. E a qualidade? São romances mesmo, tudo em qua-

JORNAL DA ABI – E O SEU ÁLBUM ANTERIOR, BRASILEIROS? TEM TUDO A VER COM HISTÓRIA E A QUESTÃO INDÍGENA...

André Toral – Não sou antropólogo impunemente. Quando reparei, abri minha gaveta e “Puxa! Escrevi um monte de histórias sobre índios!” Claro, um autor que também é antropólogo, é normal. Então, peguei todas essas histórias e, quando vi, estava o livro pronto. Levei para o Rogério de Campos, da Conrad, e editamos o álbum Brasileiros. Quando já estava impresso e ia lançar esse álbum, reparei que tinha uma revista com o mesmo nome! Pensei: “Vou ser processado! Os caras vão tirar a minha camisa!”. Entrei em contato com eles e disse: “Desculpa, não sabia que o nome da sua revista era Brasileiros”. Aí o

Hélio de Almeida falou: “Achei ótimo você me ligar. Quero que você trabalhe na revista!” Foi a melhor coisa, porque liguei pensando que ia ser processado e saí com um emprego. Publiquei durante um ano e meio duas páginas na revista Brasileiros e, depois de um tempo, decidi parar porque elas davam um trabalho desgraçado, você não pode fazer mais nada. Mas fazer essas histórias foi um grande aprendizado. Eu precisava fazer mais rápido e precisava fazer assuntos divertidos, leves. JORNAL DA ABI – O QUE HÉLIO DE ALMEIDA PEDIU PARA VOCÊ FAZER?

André Toral – Ele me deu liberdade para fazer histórias que falem da condição brasileira a partir de um ponto de vista inesperado. A vendedora de doces, o soldado ignorante, o escravo, o sertanista da Funai, gente que não é aquela que a gente espera para uma grande história, são como que os coadjuvantes da história que retratam a identidade nacional dos brasileiros. Essa é a identidade real. A realidade dos brasileiros não é o Dom Pedro I proclamando a independência, nada disso. Nem o General Osório tomando as trincheiras paraguaias. A história é escrita por gente como eu e você. É como dizem os escritores de vanguarda: “Nossa vida vale uma vida”. Nossa vida é interessante. E gosto muito de um personagem que apareceu que foi o Paulão, que é o motoboy malucão. E reparei que eu fazia muito rápido essas histórias, fazia em dois, três dias. JORNAL DA ABI – É MEIO PULP FICTION, PORQUE O CARA MORRE LOGO NA PRIMEIRA HISTÓRIA.

André Toral – Isso. Depois ele volta. Ele morre na primeira, mas depois eu conto as aventuras dele. Acho isso legal porque pela primeira vez a minha mesa ficava lisa, não tinha livros em cima. Porque uma coisa é fazer uma história que se passa no século 19, precisa saber como era a roupa do século 19, como era a condição da mulher no século 19... contar uma

história hoje, está tudo na sua cabeça, você conhece a realidade, você mostra o que você vê: motoboy, placa de trânsito, farol, o guarda. Então percebi que posso falar da contemporaneidade. Eu sou sujeito, sou testemunha, não um investigador. JORNAL DA ABI – DESSE MATERIAL DA REVISTA BRASILEIROS SURGIU O SEU NOVO ÁLBUM CURTAS & ESCABROSAS?

André Toral – Foi. As histórias curtas que falam de Brasil foram reunidas no Curtas & Escabrosas. Mas ainda tem mais. Tem as histórias curtas que falam de guerra. Essas, não publiquei num álbum ainda; deixei para publicar mais para frente. JORNAL DA ABI – VOCÊ FALOU QUE TEM MUITA DIFICULDADE EM DESENHAR UMA PÁGINA POR DIA E QUE FAZER DUAS PÁGINAS POR MÊS É TRABALHOSO.

POR QUE DÁ TANTO VOCÊ DESENHA

TRABALHO PARA VOCÊ?

VÁRIAS VEZES A MESMA COISA ATÉ CHEGAR NO RESULTADO FINAL OU O SEU TRABALHO É MUITO LENTO?

André Toral – Tudo o que você falou é verdade. Desenho muito devagar, tenho muita preguiça para desenhar. E como nunca ganhei dinheiro com quadrinhos, faço até ficar do jeito que acho que está legal. Se só tenho uma manhã para entregar uma página, desenho numa manhã. Já houve casos, por exemplo, quando estava fazendo as histórias da Guerra do Paraguai, e que não tinha tempo, eu fiz rápido. E ficava tão bom quanto as outras. Mas se tenho tempo para fazer, por exemplo, uma página sobre candangos, vou pegar uma bibliografia sobre candangos, procurar desenhos de candangos, vou tirar fotografias de candangos, vou procurar saber tudo sobre candangos. Só depois de ler uma pilha de livros sobre o assunto começo a desenhar. Quando não tenho prazo definido, não consigo fazer de outra forma. Queria fazer como o Laerte. Você fala: “Desenha um candango”, e ele desenha sem olhar nada! Histórias sobre índios desde a colonização portuguesa fazem parte do álbum Os Brasileiros.


Uma página inédita da história que Toral está produzindo sobre os holandeses no Brasil.

JORNAL

DA

ABI – SE NÃO LEMBRA, ELE

INVENTA .

André Toral – E fica bom, fica autêntico. Eu fico fazendo detalhes que ninguém repara. Me envolvo no negócio e viajo. Essa é a minha perdição! Eu me perco, sou muito devagar para isso. JORNAL DA ABI – VOCÊ ACABA GOSTANDO MAIS DE PESQUISAR DO QUE DE PRODUZIR A HISTÓRIA?

André Toral – É isso. Gosto de história! Sou filho único e lia muito Tintin. Conhecer e Enciclopédia Abril atravessei de capa a capa. Sou uma pessoa que gosta de ficar sozinha, que gosta de ler. É um mistério como fiquei trinta anos trabalhando com índios! Agora, a partir dos 40, 50 anos, disse: vou voltar para São Paulo, botar a mala no chão, dar aula e cuidar da minha família. Acabou essa história de viajar todo mês. Em 2003, no meu último trabalho nessa área, cuidava dos investimentos de uma organização não-governamental na área ambiental e na área indígena. Uma vez por mês eu viajava para o Estado do Tocantins. E era um inferno esse vai-e-vem, passava dez dias, volta, quando está se acostumando tem que sair de novo. Aí chegou a hora de parar. E quando parei e comecei a dar aula, os quadrinhos vieram com tudo. Aí, como Van Gogh, comecei a pensar na morte. Bom, agora tenho mais um certo tempo de vida: e o que eu quero fazer? Bom, tenho tempo para fazer quadrinhos. Que histórias quero fazer? A história dos holandeses no Nordeste do Brasil, por exemplo. É essa a história que estou fazendo agora. Uma história de 60 páginas; tem umas 25 prontas. Ela se passa na África, em Amsterdã e no Brasil. Estou apaixonado pelo assunto. Tenho pilhas e pilhas de livros, e desses livros alguma coisa sobra para os quadrinhos. Mas fico lendo o dia inteiro, curtindo, viajando nas histórias. Então é isso que pesa: sou muito dispersivo, sou preguiçoso. Quero fazer também uma história em quadrinhos sobre São Paulo, sobre 1932, que está na ponta da minha língua. Dá uma história maravilhosa, só penso nela. E quero publicar as histórias de guerra.

ao desenho, lápis e papel. O Carlos Saldanha, diretor da animação Rio, falou uma coisa boa: “Tudo começa numa idéia que você põe no papel com o lápis”. Esse é o começo de tudo, do desenho, da criação, e para mim começa aí. E eu desenho muito devagar no lápis. Faço, não gosto; faço, não gosto; faço, gosto, acordo, não gosto, apago, faço de novo. Isso é defeito de quem nunca ganhou dinheiro com quadrinhos, como é o meu caso. Como eu não tenho nenhum compromisso e minha vida profissional corre em paralelo... JORNAL DA ABI – A QUESTÃO DA MULHER E DA AMANTE...

André Toral – Por mais que dignifique a amante, a amante não dá dinheiro. JORNAL DA ABI – DÁ PRAZER.

André Toral – É, dá prazer. Mas quando você termina essa maldita página, olha para ela e fala assim: Está bonita! Ficou bom! Confesso pra vocês: eu acordo no meio da noite e vou olhar. Acendo a luz do ateliê, olho bem, apago a luz e vou dormir feliz como uma criança.

JORNAL DA ABI – QUE JÁ ESTÃO PRONTAS.

André Toral – É. Mas eu teria de fazer uma inédita para a abertura. Isso é o que gostaria de fazer, mas está na fila. Se conseguir fazer isso, já está bom. Agora quero acabar os holandeses, no máximo até o final do ano, e depois quero fazer a de São Paulo. Depois, se eu puder dormir e ficar fazendo qualquer coisa... JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTÁ SE ACHANDO VELHO?

André Toral – Não é que eu me ache velho, mas tenho com os quadrinhos uma relação agoniada. Quero fazer, quero ter a história pronta, mas quando vou fazer eu travo. A primeira dificuldade: ultrapassar a montanha de livros. Passando essa coisa boa, chego

JORNAL DA ABI – VOCÊ É CASADO?

André Toral – Sou casado e tenho duas filhas. JORNAL DA ABI – E ELAS?

André Toral – Gostam muito. JORNAL DA ABI – SUA CASA É GRANDE? CABE A SUA BIBLIOTECA SEM INCOMODAR?

André Toral – Não. Parte da minha biblioteca foi exportada para Atibaia. Tenho uma biblioteca de consulta, que fica em São Paulo, mas a biblioteca legal mesmo, com os romances, teve que ir para Atibaia. JORNAL DA ABI – NÃO HÁ HUMIDADE? O FRIO DE ATIBAIA NÃO ESTRAGA OS LIVROS?

André Toral – Não, lá é ótimo, seco.

São Paulo, se você reparar, junta uma camada preta de pó, é muito úmido. Em Atibaia parece que está na tumba do Tutankamon, ficam conservados perfeitamente. Então fico gerindo em casa. Leio um romance e, no final de semana, vai para Atibaia. Os quadrinhos ficam em São Paulo, que é coisa que leio muito. Leio o que as pessoas não gostam. Leio, por exemplo, Attilio Micheluzzi, que é um artista italiano. JORNAL DA ABI – VOCÊ LÊ NO ITALIANO ORIGINAL?

André Toral – Procuro sempre ler na língua original. JORNAL DA ABI – E O QUE VOCÊ LIA QUANDO CRIANÇA? VOCÊ FALOU EM TINTIN, DO HERGÉ...

André Toral – O mais importante era Tintin, que me ensinou muitas coisas. O Georges Remi, o Hergé, me ensinou que hq é trabalho duro, nada vem fácil, tudo tem que ser construído. O roteiro tem que ser muito cuidado, o desenho com muito cuidado, e, no fundo, o quadrinho tem que ter uma preocupação moral. O quadrinho tem que passar valores legais para as pessoas. O Hergé denunciava o imperialismo japonês, denunciava o imperialismo americano, a exploração do homem pelo homem, racismo, preconceito, tudo isso ele já mostrava em seus livros. Então, enquanto você lê O Loto Azul, que é uma história incrível, ao mesmo tempo se aprende sobre a política japonesa na China na década de 30, sobre como os japoneses exploravam o ópio, as sociedades secretas chinesas que lutavam contra os japoneses. Tudo isso Hergé aprendeu com um amigo dele, o Chang, e tudo isso ele passou para seus leitores. Então, quando cheguei no ginasial, tirava 10 em História. Porque eu entendia da História do Extremo Oriente na

década de 1930, da História da América Central, porque lia Tintin. Quadrinho tem que ter um compromisso também com uma arte que inova, uma busca de linguagem. Não se pode contentar com uma linguagem pré-estabelecida. Essa coisa de ousar é o que faz da pintura algo moderno, que supera o antigo pelo seu progresso técnico. O quadrinho também tem que experimentar. E como eu já era um cara que gostava de ler, acho que o Hergé me empurrou para a História. Outro que sempre li e sempre gostei é o Carl Barks. Dos meus 16 anos em frente, eu pegava a revista Tio Patinhas e destacava a primeira história que geralmente era desenhada pelo Carl Barks. Juntava várias e mandava encadernar. Em casa tenho 16 volumes encadernados com as histórias do Carl Barks, tudo naquele formatinho pequeno. Uns maiores, outros menores, tudo encadernado. Carl Barks e Tintin são hqs que, para mim, estão na zona de conforto. Leio 80 vezes a mesma história e não me canso. Gostava muito de Tarzan também. Tinha toda a Coleção Lança de Prata, da Ebal. Não sei quem era o desenhista... Tinha As Jóias de Opar, todas aquelas mulheres celestiais, que eram a ruína de um garoto de 14, 16 anos. No Carl Barks gosto da fluência narrativa, a história é lida como se fosse um desenho animado. Nunca consegui fazer isso com as minhas hqs; quero, mas não consigo. O Carl Barks me ensinou que a história tem que fluir. Gosto muito também de tudo que o Goscinny faz. Umpa-Pá é divertidíssimo, As Investigações do Coronel Cliffton, Asterix. Sempre gostei muito do que era publicado em língua francesa. Então, se você me perguntar que linha de hq gosto mais, eu diria a linha clara francesa, sem dúvida alguma. JORNAL DA ABI – APESAR DISSO, O SEU DESENHO NÃO TEM NADA A VER COM ESSE ESTILO DE QUADRINHO.

André Toral – Não tem nada a ver. Gosto muito de Bernet, também. JORNAL DA ABI – TEM MAIS A VER.

André Toral – Mas ainda assim não consigo me ver fazendo uma coisa assim, meio áspera, meio rasgada, como Bernet... Gosto muito dos argentinos também. Do roteiro do Oesterheld, dos Breccia, pai e filho, e uma coisa de que sempre gostei, sempre me fez pensar na missão dos quadrinhos, é o Edgar Pierre Jacobs, que foi desenhista auxiliar do Hergé. Ele fez O Enigma de Atlântida. Para mim, o Jacobs está quase na altura do Hergé. Roteiros elaborados; é o homem que bateu o recorde de texto numa página de quadrinhos. Ninguém escreveu tanto numa página de quadrinhos quanto o Jacobs. E O Enigma de Atlântida é uma das histórias mais impressionantes da história das hqs. JORNAL DA ABI – QUAL O CHARGISTA QUE VOCÊ MAIS CURTE?

André Toral – O melhor chargista, o que eu me divirto – mas vejo na internet –, é o Angeli. Para mim, é o melhor chargista hoje no Brasil. Acho ele fantástico. No gênero tiras, o Laerte é o campeão internacional. O Laerte é um talento brutal! JORNAL DA ABI – APESAR DE SUAS HISTÓRIAS SEREM DRAMÁTICAS, SÃO BEM HUMORADAS.

André Toral – Porque no fundo a realidade não deve ser levada a sério. A vida não é para ser levada a sério. Então, mostro as coisas como um teatro. É tudo um teatro. E para deixar bem claro que é um teatro, eu tiro o fundo e aparecem só as pessoas falando. Já reparou isso? Encontrei com o Flávio Colin uma vez, mandei minhas histórias e pedi conselhos. Quando você encontra alguém que sabe mais do que você, peça conselhos. E eu pedi conselhos para o Colin. “Colin, fala como posso melhorar”. E ele falou: “Pára com essa coisa de colocar só os personagens sozinhos sobrando no balão. Tem que ter fundo”. JORNAL DA ABI – QUEM FAZ MUITO ISSO É O HUGO PRATT.

André Toral – Isso. Eu adoro o Hugo Pratt. E Colin disse: “Isso não pode, André, porque quebra o encanto narrativo. É como se você visse no fundo de um filme a costura do telão, ou a marca do cenário. Aí você diz: “é fantasia!” Mas você sabe que é fantasia, sabe que isso é um teatro. Então o meu humor é um pouco disso, não levar as coisas tão a sério. Isto aqui é tão precário quanto a nossa vida. JORNAL DA ABI – VOCÊ LEU TINTIN, OS PATOS DO BARKS, ASTERIX, MAS VOCÊ NÃO FAZ QUADRINHOS COM HUMOR EXPLÍCITO. POR QUE ESSA OPÇÃO? NUNCA TENTOU FAZER HUMOR PURO E SIMPLES?

André Toral – Queria fazer uma experiência, mas não tenho graça nenhuma. A tradição do quadrinho brasileiro é de imprensa, uma tradição de tiras publicadas em jornal. De onde saíram os grandes nomes do quadrinho brasileiro? Da imprensa: Laerte, Angeli, Maurício de Sousa, todos eles publicavam tiras. O formato que consagra o quadrinho no Brasil é a tira, assim como era nos Estados Unidos. Na Europa não. A Europa tem uma tradição do “a suivre”, do a seguir, continua, e a unidade é a página, publicada em jornais dominicais, não a tira. A tradição narrativa da tira de humor dá sempre uma estrutura para o quadrinho brasileiro de que a graça está no final. Assim como a tira tem três quadrinhos e no final tem uma piada, a hq de um desenhista brasileiro tem uma página e a piada no final. Isso quem me falou foi o Fábio Zimbres, que foi editor da Animal: “É muito limitante você escrever um roteiro que tem que ter uma piada no final”. Concordo com ele. Então a minha estrutura narrativa não pressupõe a piada no final, no pé da página. A história vale por si. Fiz uma história que acaba numa piada e não gostei;

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Toral em 1978 na pista da aldeia karajá de Santa Isabel do Morro (TO) em sua primeira viagem a campo. O mesmo avião o levaria à aldeia Canoanã dos Javaé. Em 2001, de boné, durante demarcação da Terra Indígena Cacique Fontoura (MT).

se chama O Grande Curador. Experimentei fazer e não achei o resultado tão bom. Faço uma história, e ela vale pelo que se desenvolve. A travessia é o que conta, não é a chegada. A viagem é o importante”. Se o final é decepcionante, não é problema meu. Às vezes até me pergunto: o que é que eu quis dizer com isso? Por que acaba assim? Por exemplo, aquela história que se chama O Brasileiro, que abre o álbum Os Brasileiros, que o cara acaba de quatro, andando como um cachorro, um animal, essa é a punição dele. Por que isso? Por que é que imaginei isso? Não sei. JORNAL DA ABI – VOCÊ FUNAI, NÃO É?

TRABALHOU NA

André Toral – Ocupei um cargo de confiança na Funai e trabalhei como consultor. Para a Funai eu trabalhei durante o ano de 1985, registrado em carteira e tudo. Basicamente, o trabalho de antropólogo tem a coisa do deslocamento. Antropólogo é uma identidade que se reforça em trânsito. Ele tem que sair da sua cidade. Precisa se mexer. Precisa sair do conforto do seu escritório. Além disso, a natureza do trabalho que eu fazia, antropologia aplicada, fazia com que nós tivéssemos que trabalhar com projetos auto-sustentáveis, formação de associação de moradores, associações comunitárias, então isso requer um esforço, você tem que lidar com burocracia, papéis, prestação de contas, justificação da aplicação de verbas, relatórios, e isso é uma coisa muito chata que tem que fazer, seja na Funai, seja numa ong. JORNAL DA ABI – ESSA BUROCRACIA TERMINA TOMANDO MAIS TEMPO QUE O TRABALHO EM SI?

André Toral – Não, mas trabalho legal é estar com a comunidade, o que eu gostava era isso. A burocracia é o cipoal que você tem que atravessar. É como se você tivesse que atravessar um cipoal institucional para poder chegar finalmente na comunidade e junto aos seus amigos. Você precisa de autorização, ver quem vai pagar a passagem, prestação de contas para a Fapesp; é aquela montanha de coisa, mas uma hora, você chega. E aí é muito bom, porque os índios são completamente diferentes da gente, têm uma cabeça completamente diferente. São pessoas maravilhosas. Aprendi muito com eles, tenho grandes amigos, não me esqueço deles. Mas tem também a política de disputa de terras. É uma disputa política. Esse trabalho não tem nada a ver com publicar um artigo no jornal. Ali é uma coisa de expressão física, de ligarem para sua casa, de tentarem te intimidar... isso acontece mesmo, faz parte do jogo político. E uma hora eu cansei disso. Cansei dos telefonemas às três da manhã, de ter que pegar ônibus na rodoviária correndo, cansei de pegar avião teco-teco caindo... chega.

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André Toral – Não. Graças a Deus, não. Mas lembro que fazia muitas coisas, quando era mais novo, que hoje não faria. E fiz exatamente porque era completamente ignorante dos perigos que me rondavam e do contexto no qual eu estava metido. Hoje, o meu comentário ao ver o que fiz é: “Nossa! Se eu soubesse onde estava metido... não teria feito isso!” Mas acho que a ignorância sempre foi uma grande aliada da minha coragem, sem que eu soubesse. Eu não tinha a menor idéia do poder das pessoas com a qual a gente se batia, das ameaças concretas que estavam rolando lá! JORNAL DA ABI – VOCÊ PODE DAR ALGUNS EXEMPLOS?

André Toral – Não, não posso. São coisas que estão em processos de demarcação. Mas a vida dos grupos indígenas do interior está sujeita a uma violência diária que a gente da cidade nem consegue imaginar. Se a gente acha que vai transformar isso apoiando lista de abaixo-assinado, tuitando, mandando mensagens de apoio, está muito enganado! Essa violência come solta no interior do Brasil, tem gente da Igreja que está morrendo, indigenistas que são afetados, índios que regularmente morrem, sai muito mal noticiado no pouco espaço que a imprensa dedica à questão indígena. A violência no interior do Brasil é uma coisa que a gente aqui da cidade não tem nem idéia do que está acontecendo. Agora quero ter espaço para fazer coisas que eu gosto. Então, passei a fazer antropologia um pouco mais a distância. Gostaria de estar fazendo o velho estilo de antropologia, mas chega uma hora que não dá mais para a gente se mexer, e eu gostaria de me movimentar com um pouco mais de liberdade. JORNAL DA ABI – APESAR DISSO, EM OUTRAS ENTREVISTAS

JORNAL DA ABI – VOCÊ SOFREU ALGUM SUSTO

VOCÊ DISSE QUE OS ÍNDIOS

COM TECO-TECO?

BRASILEIROS NÃO SÃO VÍTIMAS,

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MAS PROTAGONISTAS DE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA, E QUE HOJE ELES ESTÃO ATÉ AUMENTANDO EM NÚMERO. VOCÊ ACHA QUE ESSA SITUAÇÃO HISTÓRICA DOS INDÍGENAS BRASILEIROS É DIFERENTE DA HISTÓRIA DE EXTERMÍNIO QUE ACONTECEU COM OS POVOS NATIVOS DA ARGENTINA, DO MÉXICO E DOS ESTADOS UNIDOS, POR EXEMPLO?

André Toral – Cada um tem uma História própria. Eu acredito no futuro dos índios, acho que eles têm um futuro diferenciado como índios, nunca vão se integrar completamente à realidade nacional; serão uma população seleta com uma cultura e uma língua diferenciadas. Acho que eles são sujeitos de sua História sim, que não sofrem a História, mas são protagonistas de sua História; eles tomam atitudes e, conforme o grupo indígena, o recurso da violência é legítimo, praticado em um e outro grau. Há povos absolutamente pacíficos, que não têm uma tradição de atividades guerreiras, como por exemplo, os guaranis. E há grupos acostumados ao embate, acostumados ao choque, que são os caiapós, os xavantes; a violência faz parte do ethos tribal. Faz parte de sua cultura o enfrentamento com o adversário. Os índios não são todos iguais. Eles tomam atitudes diferenciadas diante do contato. Alguns reagem. Tem índio que gosta de conversa mole e tem índio que não suporta conversa mole. Como os xavantes e os caiapós, se percebem que estão sendo enganados, eles lutam. JORNAL DA ABI – E OS CARAJÁS, COM QUEM VOCÊ DESENVOLVEU UM TRABALHO ?

André Toral – Os carajás têm uma atitude diferenciada. Eles lutam, mas lutam no plano celeste, não no plano terreno. Eles têm uma outra soluEm 2010, Andre Toral colaborou com a equipe de Xingu - O Filme, de Cao Hamburger, fazendo ilustrações sobre pintura corporal.

“A vida dos grupos indígenas do interior está sujeita a uma violência diária que a gente da cidade nem consegue imaginar. Se a gente acha que vai transformar isso apoiando lista de abaixo-assinado, tuitando, mandando mensagens de apoio, está muito enganado!” ção de sobrevivência. São guerreiros no plano cosmológico. São espirituais. Fiz uma história em que eu falo disso, chamada O Caso do Xis. Basicamente é o seguinte: nós dois vivemos no mesmo local físico. Mas como nós vemos essa realidade é o que nos distingue. Você vê uma coisa, eu vejo outra coisa. Se tivesse um guerreiro aqui, ele veria uma coisa completamente diferente. A partir de algumas referências físicas, ele imagina uma realidade que não tem nada a ver com o que você vê. É por isso que eu gostava tanto dos índios. Eles conseguem ver coisas que nós não vemos. Isso, para mim, é o que existe de interessante na antropologia, é a alteridade absoluta, você se coloca numa situação em que a noção de mundo, de realidade, é outra. Assim como, para eles, essa vida de shoppings e realidade urbana é uma grande viagem que nós fazemos. São duas pessoas que olham o mesmo mundo, mas a partir de pontos de vista completamente diferentes. JORNAL DA ABI – VOCÊ CONHECE O DANIEL MUNDURUKU? ELE FALA EXATAMENTE ISSO.

André Toral – Conheço, é um grande amigo meu. E escreve muito bem, produz muito boa literatura para crianças. Então é isso, o índio para mim tem uma coisa lúdica que exercita a sua imaginação. Imagina o mundo como ele imagina. E eu tenho que me basear na visão de mundo dele a partir da oralidade, com o que ele conta. Então isso pressupõe o contato humano. Pressupõe o apren-

dizado de língua. A antropologia não é só o trabalho chato de demarcação de terras, implantação de projetos, coisas mais burocráticas. JORNAL DA ABI – UM DOS PROBLEMAS DOS AUTORES EM LIDAR COM OS ÍNDIOS É A FALTA DE ESPECIFICAÇÃO.

GERALMENTE

SÃO

ÍNDIOS GENÉRICOS, MAS ISSO NÃO EXISTE.

PASSA A IMPRESSÃO DE QUE O ÍNDIO É IGUAL EM TODO LUGAR. POR ISSO, MUITOS AUTORES ACREDITAM QUE LIDAR COM ÍNDIOS É LIDAR COM UM ESTEREÓTIPO, E EVITAM O TEMA. VOCÊ ABORDA O ASSUNTO COM SERIEDADE.

ALGUÉM JÁ

RECLAMOU DE SUA

ABORDAGEM?

André Toral – Não, acho que não. Mas uma época eu decidi que gostaria de não fazer mais histórias de índio. Mas aí, um mês depois, eu tive uma idéia ótima para uma outra história de índio. Eu gosto dessas histórias; ainda vou fazer uma grande, de fundo um pouco autobiográfico. Mas, de qualquer forma, a gente nunca pode tratar um índio de “índio”. Falar “Ô, índio!” para o índio é extremamente ofensivo. Um dia, um carajá numa aldeia me chamou de “Ô, tori!” Tori é como os carajás chamam os brasileiros. E eu senti que ele estava sendo agressivo. “Você aí, branco!” Ele está te agredindo. Então, você nunca deve falar “vocês índios”. Você deve dizer carajá, bororo, mecanopibe, guajajara, guajá, tucano, macu, ianomami. Nunca falar “você, índio”. Essa coisa que se chama “índio” não existe. A distância de um carajá para um guarani é a distância de um português para um


Toral não pára de desenhar: em seu tempo livre faz ilustrações com aquarela.

russo. A língua é diferente, a cultura é diferente, a mitologia é diferente, tudo é diferente. São nações. O conceito é de nação. Isso é importante. Mas não quero ser conhecido como um autor-cabeça. Quero que minhas histórias sejam como as de Carl Barks, tenham fluência narrativa. A minha luta hoje é pela legibilidade. Pouco texto, que a história seja fácil de entender, e que não faça da história o seu assunto principal, mas faça da vida de pessoas normais o assunto principal. É a história como um cenário. JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE ESTÁ CONSEGUINDO FAZER ISSO COM A DOS HOLANDESES?

André Toral – Acho que estou conseguindo. Todas as partes que compõem essa história têm que ser de uma tirada só. Eu faço uma cena que se passa na África, tem que ser uma seqüência de ações. Começa, desenvolve e acaba. Não tem “parou, dormiu, no dia seguinte”. É tudo assim, seqüenciado. A parte da África está assim, a parte de Amsterdã está ficando assim, é um dia no ateliê de um artista do barroco holandês e as encrencas que acontecem com esse artista. No Brasil também vai ser assim, vão ser diversos episódios, cada episódio uma cena completa. JORNAL DA ABI – VOCÊ JÁ DISSE QUE SUAS HISTÓRIAS, APESAR DE INSERIDAS NUM CONTEXTO HISTÓRICO BEM PESQUISADO, FORAM INVENTADAS, NÃO SÃO REAIS. JÁ ACONTECEU DE ALGUÉM ACHAR QUE ERA REAL?

André Toral – Não, acho que não. O que as pessoas ignoram é que o trabalho do historiador e o trabalho do romancista são coisas muito parecidas. O romancista trabalha com algumas informações, mas basicamente ele cria uma obra que tem um efeito reacional na psicologia do espectador. O historiador também tem soluções literárias para fazer com que seus textos apareçam mais ou menos atrativos. O historiador adota mecanismos típicos de romancista. Ou seja, também produz literatura. Se eu e você pudéssemos assistir à batalha de Austerlitz, nós teríamos duas visões completamente diferentes sobre a mesma batalha. Ou seja, não existe uma verdade. Existem ângulos pelos quais se busca a verdade. O que eu estou dizendo é que nós sempre somos prisioneiros da nossa subjetividade, da nossa maneira pessoal de ver um fato, de registrar esse fato. O que nos torna diferentes, eu digo nós, romancistas, autores de quadrinhos, o que nos torna diferentes da pre-

ocupação de um historiador é que o historiador tem o compromisso de resgatar aquilo que realmente aconteceu. Esse compromisso com a verdade histórica não pode ser mexido. Agora, quando você cria um fato para falar da realidade, mesmo que esse fato não seja verdade, aí a história é um enredo ficcional para que você possa falar da verdade. Mas não é a verdade. JORNAL DA ABI – VOCÊ FEZ ILUSTRAÇÃO PROFISSIONALMENTE ?

André Toral – Eu já trabalhei como capista, mas nunca na área de ilustração para livro infanto-juvenil, infantil ou quadrinho.

complexo de não fazer uma arte “séria”, de fazer quadrinhos. Minha mãe dava aulas em Huston, dava cursos na França... JORNAL DA ABI – QUEM SÃO SEUS PAIS?

André Toral – Minha mãe é Aracy Amaral [historiadora e crítica de arte, autora da biografia Tarsila: Sua Obra e Seu Tempo]. Meu pai se chama Mario Toral, é um pintor chileno muito conhecido. Eu tenho nacionalidade chilena também. JORNAL DA ABI – ENTÃO ESSA HISTÓRIA DE ARTE JÁ VEM MESMO DE FAMÍLIA?

André Toral – Trabalhava para diversas editoras. A Editora Brasiliense era o meu cliente principal, mas isso a partir dos 25 anos.

André Toral – É. E um certo preconceito contra quadrinhos que eu mesmo tinha por causa disso. Tinha uma autocrítica muito forte; sabia que o que eu fazia não era considerado arte. Quadrinho nunca foi considerado arte.

JORNAL DA ABI – COMO É O SEU ENVOLVIMENTO COM A LITOGRAFIA?

JORNAL DA ABI – VOCÊ ACOMPANHA O QUADRINHO CHILENO?

André Toral – Gostaria muito de fazer mais. Para mim é um descanso quando eu faço. A litografia é muito amiga, porque é uma técnica que você desenha sobre uma pedra porosa que tem uma textura igual ao papel. Então, qualquer desenhista fica muito à vontade na litografia. Mas não faço só isso. Quase todo final de semana, quando vou para Atibaia, eu desenho muito, desenho ostensivamente. Quando estou na praia, quando estou viajando, quando estou de bobeira, estou sempre desenhando. E o que eu faço com os meus desenhos? Encaderno, tenho desenhos enormes expostos, enquadrados, em casa de amigos e parentes.

André Toral – Muito de leve. O Chile não é um país como o Brasil, que tem um mercado editorial tão rico. O Chile é um país muito menor. Toda a população chilena não dá a população de São Paulo. É uma economia menor, um mercado editorial menor, é muito limitado. A gente vive num país grande, que é uma potência, e a gente inclusive se esquece disso. Quando vamos a lugares como o Chile, o Uruguai, o Paraguai, sentimos a mão grande brasileira, sentimos o peso brasileiro; nós somos mais ricos que os nossos vizinhos. Eu gostaria muito de publicar no Chile. Uma coisa que eu penso muito é fazer uma história sobre a História do Chile e, com essa desculpa, conseguir publicar lá. Eles nem sabem quem eu sou. Se falam “Toral”, eles só pensam em Mário Toral. Também sempre quis publicar Adeus Chamigo Brasileiro no Paraguai, mas nunca consegui.

JORNAL DA ABI – EM QUAL EDITORA?

JORNAL DA ABI – QUE TIPO DE DESENHOS VOCÊ FAZ?

André Toral – Faço aquarelas, faço pastel-seco, paisagens, bichos. Alguma coisa está no meu site. A litografia parece um lápis. Eu deixei de usar nanquim. Quando faço hq, o traço é o lápis. Antes eu fazia o lápis e depois passava o nanquim. Agora só faço o lápis e depois faço uma cópia xerox do desenho a lápis num acetato. A seguir, coloco a folha de acetato com o desenho em preto numa mesa de luz, coloco um papel de aquarela em cima e pinto. Tem que ser um papel sem textura, sem rugosidade e que agüente bastante água. Gosto muito de aquarela, porque tem essa coisa meio improvisada que casa bem com o meu traço. E toda a minha família é de artistas plásticos. Meu pai é pintor, meu tio é pintor, minha mãe dava aulas de História da Arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Usp. Então eu tinha muito

JORNAL DA ABI – E SOBRE OS AVIÕEZINHOS?

André Toral – Ah, isso é a coisa mais importante do mundo.

“Se você faz da arte um interesse, não é arte verdadeira. A arte é o espírito livre que vaga.” com desinteresse. Se você faz da arte um interesse, não é arte verdadeira. A arte é o espírito livre que vaga. Então é um pouco disso que faço. Uma prova da minha honestidade como artista é a minha total incapacidade de ganhar dinheiro com meu trabalho como artista. Então, no fundo, se arte não deve ser feita por interesse, então sou um grande artista. O que faço não consigo vender de forma alguma. Nem as aquarelas, nem as litografias, nada. Não ganho nada, nem os aviõezinhos de montar. Tenho uma relação meio medieval com as coisas; gosto de fazer, mas para o que elas servem, que atividade elas complementam, não sei; é apenas contemplação. Fiz, está pronto, fico ali olhando. JORNAL

ABI – COM A INTERNET, AS NOVAS MÍDIAS, VOCÊ SENTE QUE AS PESDA

JORNAL DA ABI – É MESMO?

SOAS ESTÃO PERDENDO A CAPACIDADE DE

André Toral – Eu adoro montar aviõezinhos de plástico. Eu sou um plastimodelista. A minha casa está cheia de aviõezinhos.

CONTEMPLAR ?

JORNAL DA ABI – VOCÊ COMPRA MINIATURAS MAIS ANTIGAS OU AS IMPORTADAS?

André Toral – Importadas, pela internet. Só trabalho com aviação japonesa da Segunda Guerra Mundial. Adoro esse período. Compro todos os aviõezinhos que consigo e faço. Tenho uma pilha de caixas para fazer, eu vou para França, para os Estados Unidos, compro um monte de spray, tintas... Monto, pinto com aerógrafo e depois fico ali olhando, para que serve esse negócio que me custou 40 horas? JORNAL DA ABI – É A MONTAGEM QUE INTERESSA, NÃO O PRODUTO FINAL.

André Toral – Você sabe o que se dizia da arte, que tem que ser feita

André Toral – No que diz respeito aos quadrinhos, eu gosto muito do livro como objeto, é uma coisa bonita, gostosa de tocar, que transmite prazer nas formas, principalmente esses álbuns de capa dura, com acabamento fosco. Gosto dessa coisa artesanal do livro, do quadrinho, do papel, de cheirar, e esse jeito desencanado de ser preguiçoso diante da vida, de viajar mesmo. Aí a outra acepção da palavra contemplar, olhar o mundo, olhar a feira, olhar mulheres, olhar que tipo de vida leva aquela moça que é uma funcionária que está limpando, gosto de observar essas coisas e imaginar o que está por trás dessa realidade aparente. Outro cara que gosta muito de contemplar é o Lourenço Mutarelli. Observa tanto que acaba pirando, no ralo, na mulher, e ele acaba criando uma realidade pa-

ralela. E você gosta dele por causa disso, porque a gente vive no mesmo mundo que ele, a gente vê as mesmas coisas, mas olha o que esse cara faz com a realidade. Aquela história, O Natimorto, que o cara acha que estão mandando mensagens para ele através das imagens dos maços de cigarro... O que importa não é a realidade, mas o que a gente faz com ela. Aí contemplar, viajar, ser preguiçoso. Essa coisa que a antropologia dá para a gente de graça, que é a sensação do estranhamento. Quando viajo para outros países eu fico tão excitado que não consigo dormir. Lembro uma vez que cheguei nos Estados Unidos, estava todo mundo cansado, mas eu precisava andar. Andava e via a calçada americana, o hidrante americano, um carro americano, um cão americano, uma velha americana! E uma placa de trânsito escrita em inglês, e você estranha tudo, tudo é novo! Quando eu voltei para o hotel, passaram-se seis horas, mas parecia que eu estava ali há uma semana. Aprendi tanto nesse passeio. Acho que a gente não pode bobear. Quando a gente retorna ao Brasil, começa a estranhar o Brasil. É como se as pessoas estivessem todas diferentes, estranhas. Sempre digo: faça perguntas, tenha curiosidade! JORNAL DA ABI – NUMA VIAGEM É INTERESSANTE VER NÃO OS PONTOS TURÍSTICOS, MAS AS COISAS COMUNS, NÃO?

André Toral – Como se faz uma escada, como se fazem os degraus, como se faz o corrimão, como se faz a bucha que enfia o prego na parede. Eu lembro uma vez, também nos Estados Unidos, quando fui dar uma consultoria lá, e vi operários construindo uma parede no museu Smithsonian. Eu chapei! Eles fazem aquele dry wall, que é um aglomerado, dentro tem uma coisa de isopor e depois tem outro aglomerado que imita o acabamento da alvenaria, mas não tem nada a ver com alvenaria. Eu parei para olhar um operário construindo a parede, enquanto o outro grupo de turistas foi ver as outras coisas. E o índio quando vem para São Paulo, um carajá, um xavante, eles fazem o mesmo, ficam viajando. E quando você vai para a aldeia deles, fica olhando, viajando! Então, é isso que eu gosto. No fundo, eu gosto de viajar. Viajar em todos os sentidos. Foi bom ter conversado com vocês aqui hoje, porque eu cheguei à conclusão de que eu gosto de viajar. Não sei se é positivo ou negativo...

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JORNAL DA ABI – O SENHOR SEMPRE ESCREVE QUE É APAIXONADO POR JORNALISMO E ISSO VEM DESDE A SUA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA. COMO SURGIU ESSA PAIXÃO?

Whitaker – Na verdade, eu fazia um jornal aos dez anos de idade porque o meu pai [o publicitário José Roberto Whitaker Penteado] tinha feito isso quando era garoto, e minha avó tinha colecionado o jornalzinho que ele fazia manuscrito. Não sei quantos anos ele tinha, era garoto também, mas era mais produtivo do que eu. Minha avó encheu uma caixa de sapatos com os jornaizinhos. Ele nasceu em 1919; então, se tivesse uns 10 ou 11 anos, estamos falando de 1929, 1930. Era uma época de muita agitação no Brasil. Até por isso o jornal dele era muito politizado, ainda que do jeito de uma criança, é claro. O nome era O Libertador. E ver o jornalzinho do meu pai acabou fazendo que eu também fizesse algumas edições com 10 ou 11 anos de idade, talvez até um pouco antes. Não podia dar a esse jornalzinho um nome parecido com o do meu pai, então acho que foi um dos casos de maior ousadia jornalística precoce porque o título era O Mundo [risos]... JORNAL

ABI – PROVAVELMENTE O GLOBO...

DA

CAUSA DE

POR

Whitaker – Sim. Criança absorve muito. O Globo era vespertino, e no Rio de Janeiro havia dois matutinos: o Correio da Manhã e o Diário de Notícias. Não lembro se o JB saía de manhã ou à tarde. Eu sei que meu pai recebia o Correio e o Diário de Manhã, e O Globo era um jornal que não era entregue nas casas; era preciso comprar na banca. O fato é que quando estava no primeiro ou no segundo ginasial, eu e mais uns colegas – me lembro do Fernando Mora, do Silvio Guimarães – fazíamos um jornalzinho dentro da escola para gozar os professores, uma atividade até comum das pessoas que têm a carreira no Jornalismo. Eu me lembro que o Fernando Mora escrevia o jornalzinho dele, o Torpedo, no terceiro ginasial, e eu fazia o Contra-Torpedo. Nós fazíamos dois jornais. Um belo dia, tivemos a idéia de juntar os dois num só, e resolvemos chamá-lo de Sempre Viva. Bom, o que tem o nome “Sempre Viva” a ver com tudo isso? É que esse era o apelido da professora de Espanhol, que era muito chata, e como a garotada é cruel, a gente cantava uma musiquinha com este nome para zombar dela. E o jornalzinho passou a se chamar Sempre Viva. O que acho interessante é que, se há uma pessoa que devia ter sido jornalista, essa pessoa era eu, porque é uma atividade tão antiga na minha vida que acho que não entrei para o jornalismo porque não era uma profissão promissora naquele momento. Meu pai era ligado à publicidade e me encorajou muito a entrar nessa área, que também é interessante para quem gosta de escrever, que tem elementos criativos.

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Jornalista de coração O Presidente da Escola Superior de Propaganda e Marketing-ESPM explica por que decidiu criar um curso superior de Jornalismo, apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal, e questiona a perenidade do livro, embora confesse ser um apaixonado pelo papel impresso. POR FRANCISCO UCHA E CELSO SABADIN

Filho de renomado radialista e publicitário, José Roberto Whitaker Penteado Filho herdou do pai não apenas o nome. Herdou o gosto pela comunicação de massa. Ainda criança, ele criou um jornalzinho que batizou, sem falsa modéstia, de O Mundo. Adolescente, quis entrevistar o Presidente da República. Viveu nos Estados Unidos e Europa, onde ganhou sólida experiência numa profissão que engatinhava no Brasil. A vida e a carreira o levaram para o marketing e publicidade, mas o Jornalismo nunca saiu de suas veias. Participou do histórico lançamento da revista Veja, foi colunista em O Globo, onde aprendeu a importância do deadline. Foi um dos responsáveis por campanhas de sucesso que introduziram vários produtos no Brasil, como o desodorante Avanço e o iogurte Danone. É poeta, autor de vários livros; escreveu uma tese sobre o imaginário infantil criado por Monteiro Lobato; é apaixonado pelo papel impresso e pela história da comunicação humana; há 30 anos afirmou que o livro iria acabar. “Por que o livro há de sobreviver se o importante é o que está dentro dele?”, questionou certa vez para seu amigo Artur da Távola. Hoje, o Presidente da Escola Superior de Propaganda e Marketing vê com entusiasmo as mídias que surgem e aguarda os novos rumos do jornalismo e da comunicação com indisfarçável curiosidade. Não por acaso, a escola que ele preside abriu recentemente seu curso de Jornalismo apostando no futuro.

Eu me achava gente e fazia parte do grupo da Associação Metropolitana dos Estudantes. Eram anos politizados. Éramos umas seis ou sete pessoas, incluindo o Cláudio Leopoldo Salm, que veio a se envolver politicamente, entrou para o Partidão, foi professor da UFRJ e hoje é um dos conselheiros do [José] Serra. Há muitos anos não era publicado um jornal de estudantes em Petrópolis. E a cidade tem uma característica muito interessante: quem lançou o primeiro jornal de estudantes ali foi Alcindo Guanabara, nos anos 1920 ou 1930. Fizemos então uma reunião de pauta para o primeiro número e tivemos a idéia, com a ingenuidade das crianças, de que seria bombástico entrevistar ninguém menos que o próprio Presidente da República! Ninguém era mais importante que ele! Em 1955, um ano após o suicídio de Getúlio, Petrópolis ainda era a capital diplomática do Brasil, e o Rio era a verdadeira. No verão, o pessoal subia para o Palácio do Rio Negro, onde ficava o Presidente. A entrevista acabou não saindo, mas o Presidente nos mandou uma carta que foi publicada na capa da primeira edição do jornal Estudante de Petrópolis. Entrevistamos também o Prefeito da cidade, Flávio Castrioto. Meu pai conseguiu, pelos contatos dele na agência de propaganda, uma gráfica que gentilmente imprimiu o jornal para nós. Então, em abril de 1955, ainda nem tinha 14 anos, e lançamos o nosso jornal com essa glória dúbia, de termos “entrevistado” um dos Presidentes de menor expressão da História do Brasil, que foi o Café Filho. Em 1958, quando terminei meu curso científico, estava preparado para seguir uma carreira qualquer. O jornal dos estudantes, que havia sobrevivido a seis números, já não existia mais, e eu não tinha oportunidade de continuar os estudos na área de Jornalismo, porque, tenho a impressão, nem havia escola de Jornalismo naquela época. Esta influência de eu ter trabalhado com marketing e propaganda foi do meu pai, que também foi um jornalista frustrado. Jornalismo nunca pagou muito bem no Brasil. Nunca foi uma área de boa remuneração para os profissionais. Geralmente, é de boa remuneração para os donos dos jornais. JORNAL DA ABI – É NESSA ÉPOCA QUE VOCÊ BRASIL?

SAI DO

Whitaker – É. Em 1959 fui para os Estados Unidos e conheci Herculano Mesquita de Siqueira, que era o chefe do bureau de O Cruzeiro, a primeira publicação brasileira a ter escritório nos Estados Unidos. Herculano tinha sido publicitário, colega do meu pai na Thompson, agência de propaganda, e estava realizando um velho sonho de ser jornalista de novo. Ele foi para lá, onde buscava anúncios para O Cruzeiro, mas ao mesmo tempo fazia reportagens. Se não me engano, ele foi o

único jornalista que conseguiu entrevistar Caryl Chessman, um condenado à morte que escreveu dois livros na prisão – 2455, Cela da Morte, que se tornou um best-seller mundial, e O Menino Era Um Bandido. Houve um movimento muito grande para perdoar Caryl Chessman, inclusive no Brasil, e o Herculano foi o único jornalista do mundo a conseguir entrevistá-lo. Claro que ele se orgulhava muito desta entrevista que fez para O Cruzeiro. Ah, e o Caryl não foi perdoado, foi executado. Fiquei uns três meses na casa do Herculano. A princípio fui para estudar. Na época meu pai tinha saído da agência para montar sua própria empresa e tinha falido; a família não tinha grana para me sustentar. Então, juntei a graninha que meu pai tinha me dado e acabei ficando por minha conta, arrumei um emprego de boy numa agência de viagens. Depois arranjei um emprego num escritório de traduções, e estava me mantendo por ali. Meu pai se refez aqui no Brasil e voltou para a área onde tinha trabalhado, só que em relações públicas, não mais em agência. Ele tinha um cliente importante, a Nestlé, e me conseguiu um estágio no setor de vendas lá nos Estados Unidos, em 1959, depois em pesquisa de mercado e marketing. Eu não tinha nenhum curso, nada, e fui trabalhar em marketing e propaganda na Nestlé. De lá, consegui um outro trabalho, de novo através de papai: um estágio na J. Walter Thompson, uma grande agência de propaganda. Isso foi o que realmente me deu a base para o que seria minha profissão nos 20 ou 30 anos seguintes JORNAL DA ABI – QUANDO VOCÊ ENTROU NA FACULDADE?

Whitaker – Lá nos Estados Unidos a única coisa que estudei foi Inglês, na New York University. Arranjei uma namorada alemã, Gisele, que me provocou para ir conhecer a Europa, porque ela não gostava dos Estados Unidos. Fomos os dois; compramos uma passagem numa cabine no melhor navio que tinha na época, o Leonardo Da Vinci, que pegou fogo uns anos depois. Era uma das primeiras viagens daquele navio, e nós fomos para Genebra, onde tinha me candidatado a um emprego num banco. Fiquei na Europa mais quatro anos. Ou seja, tive uma boa experiência internacional antes de estudar. Quando voltei para o Brasil, em 1966, vim para São Paulo porque o mercado de trabalho para publicidade e marketing era muito maior aqui, e descubro que tenho que fazer uma faculdade. Fui fazer Economia na Faculdade São Luís, na Avenida Paulista, à noite, e durante o dia arrumei um emprego numa empresa de marketing. Na verdade, devia ter estudado Administração, mas isso foi um pouco a tônica de minha vida. Como a vida me ensinava certas coisas, eu deixava para aprender na escola o que


ELIÁRIA ANDRADE/AGÊNCIA O GLOBO

ainda não tinha aprendido na vida. Já tinha aprendido Administração num banco na Suíça, tinha trabalhado em 1960 na IBM, onde mexia com cartões perfurados numa época em que mal se falava em computador. Tinha trabalhado na Thompson e na Nestlé... quer dizer, tinha conhecido Administração em primeira mão, mas Economia eu não sabia.

A Veja quase se chamou Panorama. Ou Pirlimpimpim.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CHEGOU A EXERCER A PROFISSÃO DE ECONOMISTA?

Whitaker – Não. Para você ter uma idéia, trabalhei nas Refinações de Milho Brasil, como Gerente de Produto de Maizena. Lancei a maionese Hellman´s no mercado também como gerente de produto. Aí comecei a ter sucesso na área de marketing, fui contratado por uma empresa chamada Atlantis Brasil, que tinha um produto chamado Cera Poliflor, e que hoje é da Reckitt Benckiser, um grande conglomerado inglês de produtos de limpeza. Lá, comecei a me destacar porque, além de estudar à noite e trabalhar durante o dia, ainda dava aulas de Marketing. Não havia ninguém para dar aulas nessa época. Então, pela minha experiência, eu sabia mais do que os outros. Fui dar aulas na Associação de Dirigentes de Vendas do Brasil-ADVB. Isso me tornou conhecido: meus alunos eram muito mais velhos. Em 1967, 1968, eu tinha 27, 28 anos, e lecionava para pessoas com mais de 30. E acabei publicando o meu primeiro livro, em 1971, chamado Previsão de Vendas, que também foi o primeiro livro sobre o assunto no Brasil JORNAL DA ABI – EM 1968 VOCÊ PARTICIPOU DO NASCIMENTO DA REVISTA VEJA. COMO FOI ESSA EXPERIÊNCIA?

JOSÉ ROBERTO

WHITAKER

PENTEADO

Whitaker – Acabei recebendo um convite do Roberto Civita para ser gerente de um produto chamado Veja, que a Abril ia lançar. Um convite que fez muito bem para o ego. Minha experiência em Veja foi igual à da revista: um fracasso redondo! Não esqueça que Veja só começou a ser sucesso dez anos depois, dez anos engolindo sapo, gastando dinheiro, Senhor Victor, Roberto e todo mundo! Os fascículos a sustentavam. Veja perdeu muito dinheiro! Mas o Roberto acreditava piamente na revista estilo news magazine, coisa que brasileiro não queria saber. Naquela época, news magazine era a revista Visão, que era uma coisa pequena, para um segmento de executivos. Então, o modelo Veja no começo não pegou, mas pela persistência e pelo talento da Editora eles conseguiram. Mas não eu. Fui para lá, administrei o lançamento, o que fiz muito bem, pois já tinha feito lançamentos de outros produtos. O lançamento de Veja foi histórico, muito bem feito, só que a revista não se agüentava, não tinha público. Só para vocês terem uma idéia, o primeiro número de Veja vendeu, digamos, um milhão de exemplares! Nunca se tinha vendido tanto! Ti-

rou um milhão e vendeu mais ou menos por aí. O segundo número vendeu 600 mil; o terceiro, 80 mil, e aí foi escada abaixo. Posso estar enganado com os números exatos, mas foi por aí. O erro é que as campanhas de propaganda que a Abril fazia com a Standard e outras agências eram para os fascículos, e fascículo é sempre igual. Na equação de vendas dos fascículos, quanto mais você vender o número 1, mais você vai vender os demais números, até o último. É igual a novela, que precisa de uma boa audiência logo no início para se manter depois. Mas a teoria do fascículo não funciona para revista, que é exatamente o contrário: o público tem de ser conquistado, e depois vai subindo. JORNAL DA ABI – O QUE O PÚBLICO REJEITOU NA VEJA? O EXCESSO DE TEXTO? ESTAVA ACOSTUMADO COM REVISTAS MAIS VISUAIS, COMO MANCHETE E O CRUZEIRO?

Whitaker – Revistas semanais no Brasil, naquela época, em 1968, eram Manchete e O Cruzeiro. Não havia nem alfabetização nem cultura suficientes para segurar uma revista como Veja. JORNAL DA ABI – MAS A REALIDADE FOI UM SUCESSO DOIS ANOS ANTES. ERA MENSAL, E SE SUSTENTOU BEM COM SEUS TEMAS POLÊMICOS.

Whitaker – Ela foi derrubada pela ditadura. Dizem que Veja também foi perseguida pelo AI-5. Ela foi lançada em 1968 e logo depois saiu o Ato Institucional. Quer dizer, acho que foram duas coisas: primeiro, não havia um mercado preparado para uma revista semanal de notícias e análise, e depois veio a questão da censura, que acabou também com a Realidade. JORNAL DA ABI – LI NUM ARTIGO SEU QUE PANORAMA ERA O NOME PREFERIDO PARA PROJETO DA VEJA. VOCÊ ACHAVA MESMO PANORAMA MELHOR DO QUE VEJA? OU MELHOR, VEJA E LEIA, QUE FOI O NOME DA REVISTA NO INÍCIO...

Whitaker – Ninguém gostava de Veja. O pessoal achava que chamar uma revista de textos de Veja era enganar o leitor. Ela não era uma Manchete ou O Cruzeiro. Tanto assim que ela foi lançada como Veja e Leia, só que ‘e Leia’ era bem pequenininho. O nome pegou. Roberto Civita, Mino Carta, Luis Carta preferiam Panorama porque achavam que descrevia melhor o que era a revista, mas esse título era de uma editora paranaense que não queria vender,

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ARQUIVO PESSOAL

ou queria vender muito caro. Então... depois de muito blábláblá, o velho Victor, disse: “Escuta, a revista vai sair daqui a dois meses e ainda não tem nome. Veja e Leia é um nome nosso” – porque já estava registrado para o lançamento de uma série de fascículos – “e a gente pode lançá-la na semana que vem com esse nome! Eu tenho 51% das ações, então, está resolvido: é esse o nome!” Ah, e ele ainda disse o seguinte: “Se o produto é bom pode chamar de qualquer coisa, pode chamar Pirlimpimpim que ele vai vender! Se não fosse verdade, um carro chamado Volkswagen não ia vender no Brasil!” Essa é uma história clássica.

O Jomar deu risada, com muito espírito esportivo. Com a coluna Panorama Publicitário, aprendi uma coisa importantíssima para o jornalista, para o estudante, enfim, para alguém que se prepara para uma profissão: é muito importante ter deadline, ter prazo. Você tem que escrever com prazo. Tem que entregar quartafeira ao meio-dia toda semana. Quando você põe isso na sua vida, você se torna um escritor, um jornalista. Hoje tenho oito ou nove livros publicados, e três ainda no forno, e considero o deadline fundamental. JORNAL DA ABI – JORNALISTA SEM DEADLINE NÃO É JORNALISTA?

JORNAL DA ABI – VOCÊ FICOU QUANTO TEMPO NA VEJA?

JORNAL DA ABI – VOCÊ TAMBÉM FOI COLUNISTA DE PUBLICIDADE. COMO COMEÇOU A ESCREVER NA IMPRENSA?

Whitaker – Quando saí da Almap,

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em pleno sucesso profissional em publicidade, já estava escrevendo meus textos. Fui “descoberto” pelo Fernando Reis, editor da revista Propaganda, quando me encomendou um artigo. Escrevi, ele gostou e achou que eu tinha jeito para o negócio, que escrevia bem. Então, ele me redescobriu como jornalista e passei a colaborar nas revistas da Editora Referência, do meu amigo Armando Ferrentini, no início dos anos 1970. Enquanto isso, o Júlio Cosi monta a sua própria agência, a Cosi, Jarbas & Sergino, tendo a L’Oréal como um dos clientes. Como era uma empresa muito importante, o Júlio precisava desesperadamente de alguém que falasse francês. E ele sabia que eu falava francês e tinha morado quatro anos na Suíça. Nós tínhamos trabalhado juntos na conta da Danone, onde eu era Supervisor da conta. De fato não foi nenhum talento publicitário meu que me levou a ser Supervisor, mas sim o fato de falar a língua do cliente, que era muito importante. Aí, fui trabalhar com o Júlio durante um ano e meio mais ou menos. Na época a agência teve sucesso, mas ele levou um golpe de um cliente que não pagou, tiveram problemas e ele acabou vendendo a empresa para os americanos. O negócio da L`Oréal me levou para o Rio. Eles me tiraram da agência, até porque eu queria também voltar para o Rio. Tinha crescido em Petrópolis, tinha toda aquela minha experiência carioca. JORNAL DA ABI – E SOBRE A SUA EXPERIÊNCIA NO JORNAL O GLOBO?

Whitaker – Foi muito interessante! De vez em quando alguém me convidava para escrever em outros veículos. Como, por exemplo, o amigo querido Zuenir Ventura, que era editor do Caderno Internacional do Jornal do Brasil, e alguns outros jornalistas que sabiam que eu era jornalista de coração e que escrevia bem. O Zuenir me fez um enorme favor, uma verdadeira intervenção profissional que foi muito bacana na minha vida: ele me encorajou a escrever para um caderno do JB de que não lembro o nome agora. Todo

artigo que eu mandava para ele saía uma vez por semana, acho que no sábado. Quem também começou a publicar minhas contribuições foi o Augusto Nunes do Estadão. Aí, comecei a sentir o gostinho de sair no JB e no Estadão. Eu já não escrevia só sobre propaganda, mesmo nas revistas do Armando Ferrentini. Quando ele chegou para mim e disse “Olha, a revista Marketing está mal, preciso dar uma mexida nela, e queria que você escrevesse”, eu não era nenhuma celebridade, mas na área de marketing já tinha um certo nome. Me lembro de ter feito duas exigências ao Armando. Primeiro, quero a última página da revista; segundo, quero escrever sobre qualquer assunto que der na telha. Ele topou. E aí aconteceu o seguinte: o Jomar Pereira da Silva tinha a coluna Panorama Publicitário publicada se-

manalmente no Globo, um espaço nobre que os jornalistas de lá odiavam porque era uma imposição do Departamento Comercial. Tanto que o pessoal da Redação do Globo nem fazia copidesque. Eles consideravam aquilo um anúncio, uma página suja. Então o Jomar recebeu um convite da agência Castelo Branco Borges & AssociadosCBB&A, aceitou, e teve de se incompatibilizar com O Globo, pois ele não podia escrever sobre publicidade trabalhando numa agência. O Jomar, então, muito gentilmente me indicou. Comecei a fazer o trabalho e logo na primeira coluna cometo uma gafe terrível! Escrevo “quero agradecer muito ao meu querido amigo e companheiro Jomar Pereira Martins”... e o nome dele é Jomar Pereira da Silva! Tem que tomar muito cuidado para ser jornalista.

ROGÉRIO REIS-AGÊNCIA O GLOBO

Whitaker – Seis meses, que foi o tempo de desenvolver uma sólida e longa amizade com Roberto Civita, até hoje um amigo muito querido e um dos incentivadores da escola de Jornalismo aqui na ESPM. Mas a vida é curiosa: nos encontramos, nos tornamos muito amigos, mas ele foi obrigado a me deixar ir embora da Veja. Fui despedido pelo Domingo Alzugaray, que era funcionário dele. Evidentemente a coisa não estava funcionando, não que eu tivesse culpa... mais culpa tinha o Mino Carta, que editava a revista. E uma revista que começou com 800 mil exemplares, ou coisa parecida, e que de repente chega a 40 mil e não tem anúncio. Aí não adianta. Não vou te contar o resto da história porque não estava mais lá, mas a Veja teve realmente problemas sérios. Devo ao Roberto uma lição grande que aprendi. Ele me disse: “Olha, gosto muito de você, participei de sua contratação, precisava de um excelente Gerente de Produto, só que nossa empresa não está preparada ainda para esse tipo de marketing. Podia guardar você aqui porque tem muita coisa para fazer na Abril, mas você vai ficar marcado aqui dentro pelo fracasso, e não estaria sendo seu amigo se eu arranjasse um outro lugar”. Ele estava falando com um cara de 28 anos. Claro que fiquei chateado, mas saí de lá e arranjei emprego rapidamente na Alcântara Machado Periscinoto [Almap], que tinha um publicitário famoso e competente, que é o Júlio Cosi Júnior. Fui trabalhar com Júlio e fizemos lançamentos de grande impacto como o desodorante Avanço, da Gillette, que foi uma revolução; o caminhão leve da Mercedes-Benz, que se chamava Mercedinho, um caminhão para circular nas cidades, e o maior sucesso de todos, o iogurte Danone, com o filme do garotinho francês que marcou época num país que nem sabia o que era iogurte. Eu era o contato da conta, e não o criador. Nunca fui da área de criação, mas sim de atendimento e planejamento.

José Roberto Whitaker Penteado Filho examina, com o pai, uma campanha de propaganda da Ford, na J.W.Thompson de Detroit, em 1953.

Whitaker em 1978, na direção da ESPM do Rio de Janeiro.

Whitaker – A maioria dos jornalistas tem deadline todo dia. Se a pessoa escreve muito bem mas não tem prazo, então ela é muito mais escritor do que jornalista. Mas acho que o escrever com prazo é muito importante. Você tem que sentar, escrever e não tem desculpa. JORNAL DA ABI – COMO A ESPM ENTRA NA SUA VIDA?

Whitaker – A ESPM entra na minha vida em 1969. Meu amigo Ivan Pinto, que era um funcionário importante de uma agência chamada Lintas e que dava aulas de Elementos de Propaganda na então Escola Superior de Propaganda de São Paulo, me liga e diz: “Olha, não posso mais dar aulas porque tenho que atender meus clientes, estou atrapalhado! Sei que você está dando umas aulas na ADVB e o pessoal gosta de você. Então vem dar aula aqui na Escola de Propaganda.” E eu fui. Na época, a Escola era formada apenas por duas salinhas inexpressivas na Rua 7 de Abril. Em 1971, deficitária, ela quase fechou. Foi quando o Otto Scherb chegou para o grupo que dirigia a escola e disse: “Se vocês me derem carta branca e um pequeno salário para sobreviver, eu assumo”. Foi a grande sorte da escola! Otto era um profissional de publicidade de formação universitária na Europa, coisa que ninguém tinha na nossa época. Ele tinha trabalhado na Almap, na Volkswagen, e era professor da Usp. Tinha sido publicitário, feito carreira empresarial e chegou a ser Presidente da Ponds, uma grande empresa americana de cosméticos. Quando ele assumiu a Escola, o primeiro telefonema que recebeu foi o meu: “Otto, quero te oferecer ajuda. Não posso largar o que estou fazendo porque você não tem dinheiro para me pagar, mas gostaria de te ajudar mais do que sendo professor”. Ele me convidou então para ser diretor de cursos de 1971 até 1973. Quando fui para o Rio com o convite da L’Oréal, tive que me afastar da ESPM. Trabalhei durante três anos na L’Oréal até que um belo dia a Revolução dos Cravos, em Portugal, fez que eu perdesse meu emprego no Brasil. Eles tinham que colocar o Presidente da L´Oréal portuguesa aqui, e arranjaram pra ele o cargo de Diretor de Marketing no Brasil. Foi então


FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Whitaker ao lado de dois amigos: cumprimentando Márcio Moreira durante a Mostra de Propaganda Brasileira em Nova York, em 1981, e com Jaguar, em 1997.

Whitaker – Existe em Lobato um cerne ideológico, que eram as coisas que ele achava e colocava na boca dos personagens. Por exemplo: ele era extremamente machista, mas ideologicamente era um feminista de vanguarda. Então, Emília, Narizinho a Dona Benta são pessoas extremamente esclarecidas nessa área do feminismo. Ele era anticlerical, especialmente anticatólico, tanto assim que os seus livros foram queimados nas escolas católicas daquele tempo. E depois você tem a parte que eu chamaria de iconográfica, que são os personagens. Tem o Burro falante, o Quindim, o Visconde de Sabugosa, a Emília, que do ponto de vista da fantasia é uma maravilha. O Lobato teve esta descoberta do Saci Pererê, a Cuca, ele descobre um imaginário, digamos de imagens mesmo, que é muito brasileiro. O Sítio do Pica-Pau Amarelo é o nosso paraíso idealizado. Essas duas coisas só convivem na obra dele. Quando você pega esses personagens e os adapta para as histórias em quadrinhos, ou para o cinema, você desvirtua o conteúdo. Então, você pode ter magníficos filmes ou histórias em quadrinhos muito divertidas sobre os personagens do Lobato, mas você desfez algo que só podia existir literariamente. Aí é o caso em que o livro é insubstituível.

que tomei uma decisão importante na minha vida. Era o ano de 1978, tinha 37 anos e prometi nunca mais trabalhar em multinacional, nem como executivo. Vou fazer outra coisa, vou dar aula, vou ser consultor, qualquer coisa, mas não quero mais essa carreira. Em 1979, Otto Scherb me chama: “A Escola do Rio está para fechar, se você quiser, te garanto um tanto, para você cuidar dela”. Em fevereiro de 1979 voltei então para a ESPM e cá estou até hoje. JORNAL DA ABI – VOCÊ É POETA?

Whitaker – Sou poeta. Meu segundo livro de poesia está prontinho. O primeiro saiu em 1986. Na verdade, não sei se minha primeira vocação foi poeta ou jornalista, porque meu primeiro poema é de 1951. Eu tinha 10 anos de idade. Tenho isso rabiscado em algum lugar, e era alguma coisa assim: “Meu destino é cantar/por isso, meu amor/só em te ouvir falar/idealizo uma canção/de amor ao luar.”

JORNAL DA ABI – E AQUELA POLÊMICA QUE LOBATO LEVANTA ATACANDO O CAIPIRA NA FIGURA DO JECA TATU? Whitaker ao lado de Marcos Madeira, Maria Beltrão e Ricardo Cravo Albin, durante sua posse no Pen Clube em 1999

JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA, CRIANÇAS DE DEZ ANOS SABIAM ESCREVER MUITO MELHOR!

Whitaker – Não havia a tecnologia de hoje, né? A única coisa que tinha na minha casa era um rádio, porque meu pai foi escritor de radionovelas nos áureos tempos da Rádio Nacional. Ele trouxe para o Brasil a novela Em Busca da Felicidade, que era de um autor mexicano. Na agência de propaganda, meu pai adaptava a novela para o Brasil, e ele mesmo chegou a escrever duas novelas: O Caminho do Céu e Rosinha, Flor dos Campos. Ele teve também um programa chamado O Vingador, ambientado no Brasil, com o José Scatena, que morreu recentemente, pioneiro do rádio. Eu cresci com uma imagem do meu pai radialista, numa época que isso era muito raro. Com cinco, seis anos eu ouvia meu pai falar no rádio. JORNAL DA ABI – ALÉM DE PUBLICITÁRIO, SEU PAI ERA TAMBÉM RADIALISTA?

Whitaker – A Publicidade veio depois. Meu pai era radialista, apresentava na Rádio Cultura de São Paulo, em 1940, com Manoel da Nóbrega, um programa de grande sucesso que se chamava A Hora da Peneira, o primeiro programa de calouros do rádio brasileiro. Em 1941, ele foi chamado pelo Cícero Leuenroth, dono da Standard Propaganda, que lhe

José Roberto Whitaker apresenta o Marketing Best em 2000, no Rio de Janeiro.

fez um convite irrecusável para ganhar um salário cinco vezes maior do que ele ganhava como speaker de rádio. Então ele se muda com a mulher e o filho de duas semanas de idade para o Rio e vai trabalhar na Standard Propaganda. E apesar de ter nascido na Maternidade São Paulo, na Rua Frei Caneca, fui registrado em Santa Teresa, como tendo nascido na Rua Santa Cristina, nº 54. Uma absoluta falsidade, que faz que eu tenha, até hoje em todos os meus documentos a minha naturalidade de carioca [risos]. Mais uma curiosidade: meu pai era muito amigo de um primo dele chamado Auricélio Pen-

teado, que também era um homem de rádio e fundou o Ibope em 1942. Quando meu pai foi ao cartório para registrar o filho “carioca”, ele precisava de uma testemunha. E a testemunha foi o Auricélio, justamente o fundador do Ibope. [risos] JORNAL DA ABI - ENTÃO VOCÊ JÁ NASCEU AUDITADO...

Whitaker – Auditado e cheio de falsidade ideológica [risos]. Falso testemunho do Auricélio, mas está lá na minha certidão de nascimento.

Whitaker – Poderia falar muitas horas sobre isso! Quando estava terminando um mestrado em Ciência Política, certo dia conversava com o Professor José Murilo de Carvalho, que é um historiador e meu amigo hoje, e disse: “Zé, quando penso na minha formação política, acho que a maior influência que tive foi Monteiro Lobato”. E ele: “Mas como?”. “A literatura do Monteiro Lobato é muito politizada! Eu me lembro das coisas que a Emília dizia, a Dona Benta criticava, falava do Terceiro Reich, a Emília sobre a verdade e a mentira, as pilantragens dos políticos.” E ele me disse: “Acho que você tem um filão aí. Por que você não faz sua tese sobre isso?”. Comecei a estudar. Era leitor de Lobato desde criança, reli tudo e fiz a minha tese já no doutorado, na UFRJ, em Comunicação e Cultura, que se chamou Os Filhos de Lobato, sobre o imaginário infantil na ideologia do adulto. Confesso até que tive um certo sucesso de demonstrar de forma mais ou menos convincente que Lobato influenciou várias gerações. Aliás, Os Filhos de Lobato está sendo relançado agora pela Editora Globo. JORNAL DA ABI – VOCÊ

ESCREVEU NUM

ARTIGO QUE O ESTILO E A APRESENTAÇÃO DA OBRA DE MONTEIRO LOBATO NÃO SOBREVIVERAM BEM À EVOLUÇÃO DA COMU-

JORNAL DA ABI – VOCÊ TAMBÉM SE ESPECIALIZOU EM MONTEIRO LOBATO.

NICAÇÃO, TANTO IMPRESSA QUANTO ELETRÔNICA ...

Whitaker – Lobato era membro da velha oligarquia paulista, era um homem de uma família conservadora e neto do Visconde de Tremembé. Depois que se forma em Direito, vai ser promotor numa cidadezinha chamada Areias. Mas, com a morte do avô, herda a sua fazenda e resolve ser fazendeiro. Lobato era meio doidão! Ele pensava grande e já queria ter uma fazenda tipo “Texas”, sabe? E aí descobre o seguinte: não existia mão-de-obra! No Vale do Paraíba, naquele momento, não havia gente qualificada para esse trabalho. As pessoas eram muito pobres. Então, Lobato escreve um artigo para o Estadão com o título de Velha praga, no qual descreve esse caipira, e Jeca Tatu é um dos nomes que ele dá ao caipira. Mas isso tem que ser contextualizado: era um cara que estava com sua vida de fazendeiro frustrada porque não conseguia desenvolver sua fazenda. As pessoas que apareciam eram doentes e não qualificadas. Foi quase um desabafo. Mais tarde, Lobato se redime ao afirmar que o brasileiro não é assim, o brasileiro está assim, e aí vem a campanha dele pelo saneamento; ele participa muito da campanha pela saúde do brasileiro. O Lobato é polêmico porque as pessoas não têm tempo de inseri-lo em seu contexto. JORNAL DA ABI – FOI O QUE ACONTECEU COM A TENTATIVA DE CENSURA AO LIVRO AS CAÇADAS DE PEDRINHO RECENTEMENTE...

Whitaker – Bom... mas isso daí é uma coisa recente chamada de “patrulhamento ideológico”. Tem uma

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DIVULGAÇÃO

nova geração de “ideólogos” que vêem chifre em cabeça de cavalo. O segredo da inteligência está na própria palavra: “In-ter-ligar”. Você descobre a verdade relacionando as coisas. Tudo que se pega fora de contexto fica parecendo absurdo. O Monteiro Lobato era racista? Você tem que avaliar a época em que ele nasceu. Ele nasceu em 1882! Meu deus! Isso foi há mais de um século! É o caminho de uma sociedade... Pelo raciocínio desses caras que queriam censurar o Lobato, você teria que censurar Dante Alighieri, Shakespeare... Dom Quixote! JORNAL DA ABI – MARKETING NO BRASIL AINDA NÃO É FÁCIL?

Whitaker [sorrindo] – Há dois aspectos que prejudicaram muito o marketing no Brasil: Primeiro foi a colonização portuguesa, o longo período escravista. Durante séculos, só quem podia vender no Brasil eram os portugueses, eram os donos das lojas, os comerciantes. Vendia-se o que tinha disponível, e olhe lá. Não tinha esse negócio de uma boa apresentação. Até na época em que eu era garoto, loja de comércio era um horror... aqueles armarinhos, aquelas padarias, botequins... Isso era cultural. Vem da época da colonização. Por outro lado, o segundo ponto foi a religião católica, com toda aquela noção de pecado, da luxúria, culpa, avareza... Isso foi completamente diferente da colonização inglesa nos Estados Unidos. Lá você tem que ter sucesso na vida para ser respeitado. Sucesso não significava pecado. Então, culturalmente o marketing não se inseria na nossa cultura. Quando voltei para o Brasil e me tornei professor de marketing comecei a me perguntar por que é que o marketing era uma coisa tão bem-sucedida nos Estados Unidos; não era tão bem-sucedida na Europa e, no Brasil era uma tragédia, dificílimo se fazer marketing aqui, as pessoas não entendiam. Foi quando eu escrevi o tal livro a que você se refere na pergunta: Marketing no Brasil Não é Fácil. JORNAL DA ABI – MAS O MARKETING NO BRASIL, HOJE EM DIA, AINDA NÃO É BOM...

Whitaker – Aí tem uma série de razões... JORNAL DA ABI – POR EXEMPLO, NÓS TEMOS UM PRODUTO MARAVILHOSO E QUE TEM UM MARKETING MEDÍOCRE: O FUTEBOL...

Whitaker – Já escrevi sobre isso. O marketing depende de quem o pratica. Numa multinacional como a Unilever ou a Nestlé, eles são tão bem organizados que vão fazer tudo certinho, vão fazer a comunicação certa. Mas quando você tenta aplicar isso a uma situação caótica que é a estrutura do futebol brasileiro, as coisas começam a funcionar mal. Para início de conversa, o time de futebol não é uma empresa. Tenho um artigo escrito relatando que o maior fracasso de marketing no Brasil foi a incompetência dos brasileiros de ganharem fortunas com o futebol.

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JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ VÊ A CRISE DA IMPRENSA COM A CHEGADA DAS NOVAS MÍDIAS?

Whitaker – A primeira coisa que eu recomendo – até porque também sou diretor de uma Escola de Jornalismo – é prestar atenção no que está acontecendo nos Estados Unidos. É tentar entender por que é que o New York Times, o Chicago Tribune, a revista Newsweek estão todos anêmicos, anoréxicos, são ridículos... não têm quase mais anúncios. E aqui no Brasil a Veja é um negócio deste tamanho; o Estadão é gordo, no domingo ele é muito gordo; O Globo também, eles têm muitos anúncios. Antigamente o New York Times era muito maior que o Estadão. O que acontece? Muito provavelmente é a entrada de novos leitores no mercado. JORNAL DA ABI – ISSO, DE CERTA FORMA, PODE SER EXPLICADO ATRAVÉS DO ARTIGO

O FUTURO DO LIVRO?...

Whitaker – O Futuro do Livro é um capítulo de um livro que escrevi e que nasceu de uma conversa com Artur da Távola, na casa da minha então namorada, futura segunda mulher, Elza. Defendi junto ao Artur da Távola a tese de que o livro não iria sobreviver. Isso há 30 anos. Ele ficou muito puto comigo. Essa idéia de que o livro não ia sobreviver começou a me incomodar. “Por que o livro há de sobreviver se o importante é o que está dentro dele, o conteúdo? Por que achar que algo, que hoje a gente chama de suporte, é eterno?” Não há razão nenhuma, porque amanhã a gente pode ter essa transmissão de informações de outras maneiras, como até já existe, o Ipad, por exemplo. Eu ia mais longe: a escrita é algo que pode desaparecer, porque ela nada mais é do que uma convenção. O homem começou a falar há, sei lá, um milhão de anos? Começou a escrever há 5 mil anos, e começou a imprimir há 500 anos. Então, mudar de suporte é fácil. E a escrita? A Humanidade viveu tanto tempo sem a escrita. Será que a ela é eterna? E o que substitui a escrita? Sei lá. A telepatia? Não sei, mas um dia veio aqui na ESPM o Derek De Kof, discípulo do

Marshall McLuhan, que até hoje dirige o departamento que era do McLuhan na Universidade de Toronto. Ele disse ser perfeitamente possível, porque os estudos feitos na Universidade sobre Comunicação param na palavra, e a gente tem alguma certeza de que os seres humanos vão continuar precisando das palavras até para organizar o raciocínio, mas nada indica que a escrita é algo indispensável. Achei superbacana, mas continuo não sabendo o que vem depois da escrita. JORNAL DA ABI – FALAM QUE O LIVRO VAI ACABAR, MAS É O SUPORTE PAPEL QUE PODE ACABAR...

Whitaker – Tendo vivido a minha vida toda em Comunicação, acho que o que não acaba é a própria comunicação. [Aponta para uma pequena estátua na parede de sua sala] Eu tenho esta estatuazinha, que é uma reprodução de uma imagem que está num museu na França, nas imediações de Paris. Chama-se a Vênus de Brassempouy porque ela foi encontrada há 25 mil anos, num local da França que se chama... Brassempouy. São 25 mil anos que se conta a historinha de um cara que diante da namorada esculpiu isso num dente de um mamute. É uma

Não interessa se as notícias serão divulgadas no iPad, na tv, na internet ou pelo tambor. Esse mercado vai crescer!

graça, é bonita, tem detalhes fantásticos! Acho que isso é uma demonstração, se não de perenidade, da duração do ser humano como o ser que se comunica, como alguém que transmite suas idéias, suas emoções para outro ser que decodifica isso e interpreta. Este processo é eterno enquanto durar a Humanidade. Tudo que for veículo, tudo que se interpuser entre essas duas pessoas, pode evoluir, pode se modificar, desaparece um, nasce outro. Nesse sentido quase filosófico é que digo que o livro não é absolutamente necessário. É um suporte ótimo. O papel pode não ser mais necessário. Até hoje eu adoro papel! Recebo documentos de 10, 15 páginas no computador e mando imprimir porque meu veículo é o papel. Não estou fazendo proselitismo; estou tentando ser objetivo, digamos, científico em relação a essa discussão que anda por aí. Isso é parecido com a anedota que ouvi quando era garoto de um moço que estava fazendo uma palestra onde ele dizia que “dentro de aproximadamente dez milhões de anos a Terra deixará de existir”. Levanta-se assustada uma velhinha de uns 80 anos e pergunta: “O que o senhor falou?” O palestrante repete: “Minha senhora, em dez milhões de anos não existirá mais a Terra”. E ela fala: “Que alívio! Entendi um milhão de anos”. [risos] É mais ou menos a mesma coisa. JORNAL DA ABI – NA HORA EM QUE MUDAR O SUPORTE VAI ACABAR O “AROMA ERÓTICO DOS PAPÉIS EM QUE SÃO IMPRESSOS JORNAIS E LIVROS”, COMO VOCÊ DESCREVEU CERTA VEZ SUA PAIXÃO PELO PAPEL. É ÓTIMA ESSA SUA DEFINIÇÃO...

Whitaker – Eu escrevi isso? Pô, eu sou bom, hein? [risos] JORNAL DA ABI – FINALIZANDO, COMO A ESPM DECIDE CRIAR UM CURSO SUPERIOR DE JORNALISMO DEPOIS QUE O SUPREMO DIZ QUE JORNALISTA NÃO PRECISA DE DIPLOMA PARA EXERCER A PROFISSÃO?

Whitaker – Há dois anos o Roberto Civita, nosso conselheiro, me disse que tinha um sonho: “Eu gostaria de investir no melhor curso possível de Jornalismo que pudermos ter no Brasil”. Então, é óbvio, nós somos

José Roberto Whitaker e Elza Pádua recebem Roberto Civita e sua mulher, Maria Antonia, na ESPM do Rio de Janeiro.

uma escola de marketing, de comunicação... e eu disse: “Roberto, vamos fazer lá na ESPM!”. E ele: “Ah... mas vocês não têm tradição...”. Eu argumentei que começamos como uma escola de Propaganda, viramos uma escola de Marketing, entramos em Design, Relações Internacionais... hoje nós somos negócios, arte e, se você pensar bem, somos uma escola de Comunicação e Gestão, que são duas coisas que se entrosam muito bem. Por que não ter o Jornalismo em pós-graduação, que foi a primeira idéia? Eu disse: “Podemos perfeitamente acolher o seu curso, o seu investimento, vamos fazer uma parceria”. Aí começamos a conversar. Foi em 2009. Fui com o Roberto aos Estados Unidos; visitamos quatro grandes universidades americanas. Ele foi muito bem recebido porque era ex-aluno da Columbia. E vimos que realmente havia a possibilidade de a gente desenvolver esse curso. Nesse entretempo veio a história do diploma no STF... (pausa) Então, começamos a avaliar internamente. A questão do diploma é uma história antiga. Já escrevi várias vezes sobre isso, e não tinha nada a ver com jornalismo. Era o pessoal da publicidade que vinha encher o saco da gente para que a ESPM participasse de um movimento para regulamentar a profissão de publicidade, e nós éramos ideologicamente contra, mesmo sendo uma escola, porque o que possibilita a carreira de um profissional de publicidade, de marketing, é a sua competência. É como um administrador de um negócio: você não vai contratar um administrador porque ele tem diploma; vai contratar porque ele é competente. Quando o diploma para jornalista caiu e várias escolas começaram a desistir, então eu disse: “Tem uma posição no mercado para nós!” Temos que ter um curso que forme profissionais na área de Jornalismo que sejam tão competentes que as empresas vão querer contratá-los. E, além disso, tem uma outra coisa que tem a ver com tudo isso que falamos há pouco... A chegada ao mercado de gente nova com mais instrução, o crescimento que existe no Brasil e em alguns outros países, fazem com que essas pessoas sejam novas consumidoras de informação, de conhecimento, de entretenimento... de comunicação. Mas é tudo de graça na internet? Não sei... Não pode ser tudo de graça. A competência tem um preço. Se você quer ter uma informação, um conhecimento apresentado de forma profissional, você não tem escolha: tem que ter profissionais fazendo isso. Se isso vai ser apresentado no iPad, ou na televisão, internet, tambor, pô... não interessa... esse mercado vai crescer! Foi esse o nosso raciocínio. Nós não estamos apostando no jornalismo tradicional... não temos nada contra! Os professores dos nossos alunos são jornalistas tradicionais. Estão aí e têm o que ensinar. Mas, o que vem pela frente, a gente ainda não sabe.


FRANCISCO UCHA

R OBERTO

MENDES Um homem de visão Ligado à Igreja progressista de Dom Hélder Câmara, ele foi perseguido pela ditadura e, à frente da Globo Vídeo, ajudou a estabelecer o padrão para o homevideo no Brasil. Foi um incentivador do cinema nacional nesse mercado, apostou em clássicos russos e europeus, trouxe o noticiário 60 Minutes muito antes das tvs por assinatura e lançou um jornal mensal que chegou a tirar 200 mil exemplares. POR PAULO CHICO E FRANCISCO UCHA Impossível pensar no mercado de vídeo no Brasil, que invadiu os lares na década de 1980, sem lembrar do nome de Roberto Mendes. À frente da poderosa Globo Vídeo, fundada há exatos 30 anos, inicialmente apenas para gerar cópias para as repetidoras da emissora País afora, ele ajudou a formar e a profissionalizar o mercado. Tornou acessível ao público cinéfilo lançamentos e clássicos do mundo todo. E, acima de tudo, foi um fiel incentivador e divulgador da produção nacional. Nesta entrevista, concedida em seu apartamento no Leme, Zona Sul do Rio, Roberto Mendes recorda o caminho de desbravador aberto por ele e seus companheiros de jornada. Lembra como era difícil, dentro dos próprios veículos das organizações em que trabalhava – leia-se TV Globo e jornal O Globo – conseguir o mínimo espaço para

a divulgação das ações da Globo Vídeo. E conta como uma disputa interna, travada com uma Som Livre enciumada pelo sucesso repentino da empresa-irmã por ele dirigida, foi decisiva para que a Globo Vídeo fosse extinta. Militância de esquerda, atuação em programas sociais, perseguição política, prisão durante a ditadura militar e exílio são algumas das passagens reveladas nesta entrevista, que traz ainda os relatos de histórias saborosas com o jornalista Roberto Marinho e seus filhos. Tal como fez no histórico Jornal da Globo Vídeo, que chegou a circular com tiragem de 200 mil exemplares, Roberto Mendes imprime, dessa vez nas páginas do Jornal da ABI, alguns capítulos importantes do mercado audiovisual brasileiro. Uma história que, se um dia virar filme, terá em nosso entrevistado um de seus personagens principais.

JORNAL DA ABI – VAMOS COMEÇAR PELO PONTO MAIS POLÊMICO. EXISTE, EM TERMOS HISTÓRICOS, A VERSÃO DE QUE A GLOBO VÍDEO, APESAR DO SUCESSO QUE FEZ NO MERCADO, ACABOU VÍTIMA DE UM BOICOTE INTERNO NAS PRÓPRIAS ORGANIZAÇÕES GLOBO. ESSA AFIRMAÇÃO PROCEDE?

o espaço reservado. Mas para programar os anúncios tinha-se que conversar com as pessoas, que criavam outros problemas.

Roberto Mendes – A gente teve as nossas brigas na Globo Vídeo. Não eram num escalão do terceiro pra baixo. Pelo contrário, a gente tinha muita simpatia interna, e em termos de mercado também. A nossa briga na Globo Vídeo era com uma empresa-irmã, esse é que era o problema. As irmãs brigam, essa é a verdade. Até hoje! Pra gente conseguir, por exemplo, um espaço de anúncio na TV Globo era uma luta fora do comum. Tínhamos que brigar com todo mundo!

Roberto Mendes – Sim, o horário. Priorizavam a Som Livre, ao invés da Globo Vídeo.

JORNAL DA ABI – ERA MAIS DIFÍCIL DO QUE SE VOCÊ FOSSE UM CLIENTE EXTERNO?

Roberto Mendes – Muito mais difícil! Eu via passar, para conversar com a direção, punhado de gente que ia lá pedir espaço de graça para ongs, os favores e coisa tal... E que conseguiam rapidamente. Eu não conseguia! Era uma dificuldade pra conseguir. Até que, depois de algum tempo, a gente conseguiu estabelecer uma regra: cada empresa coligada tinha um espaço. Mas a cessão dos espaços dava outra briga. Tinha

JORNAL DA ABI – AÍ A DIFICULDADE ERA O QUÊ, ACHAR HORÁRIO POR EXEMPLO?

JORNAL DA ABI – NÃO ERA, TALVEZ, UM PROBLEMA DE CIÚMES?

Roberto Mendes – Claro, ciúmes. Só ciúmes. A Globo Vídeo, de 1983 a 1985, quando ela realmente deu um boom, começou a assustar, pois o acréscimo do faturamento dela era fantástico. Nada anormal: era um mercado novo, era o que estava crescendo, a música estava estabilizada, assim como todas as outras mídias, estava tudo estabilizado. Na Globotec, estava tudo ok. E a Globo Vídeo crescendo. Então, todo mundo se assustava com aquele fenômeno. JORNAL

DA

ABI – ERA

O VIDEOCASSETE

CHEGANDO...

Roberto Mendes – Claro, era o mercado chegando. Quer dizer, esse fato de ser uma empresa nova, com o total descrédito, porque na verdade a Globo Vídeo foi criada pra atender às afiliadas do Nordeste que não podiam receber programação online. Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

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O Arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, escreveu esta carta em defesa de Roberto, que estava sendo julgado, para sensibilizar os auditores da Marinha, onde corria o processo: “um simples gesto de solidariedade”.

O selo de qualidade usado nas fitas VHS da empresa.

Porque, pasmem, naquele tempo não tinha satélite, não tinha nada. A informação ia de avião, entendeu? Então, a Globo Vídeo foi montada para isso, era quase uma dependência da TV Globo, para gravar os programas da emissora e enviá-los para as afiliadas. E isso correu o Brasil inteiro. JORNAL DA ABI – E VOCÊ JÁ ESTAVA NA GLOBO VÍDEO NESSA ÉPOCA?

Roberto Mendes – Já, eu cheguei na Globo Vídeo com 15 dias de criação. Ela foi criada em 1981, exatamente em junho daquele ano. Eu cheguei em julho, para ser Gerente de Comercialização. Porque com o desenho de fazer cópias para as afiliadas, de repente, apareceu alguém que disse o seguinte: “Puxa, pode-se fazer outras coisas. Pode-se usar a programação da Globo para outras coisas”. As coisas que apareceram rapidamente foram, primeiro: programação para navios, não só os navios da Fronape (Frota Nacional de Petroleiros) que eram importantes como clientes, como os da Vale do Rio Doce e da Marinha Mercante em geral, todo mundo precisava de lazer a bordo. O lazer que existia nas empresas mais ricas era de filme de 16 milímetros. Assim como o satélite tornou o cassete absolutamente obsoleto, o cassete fez o mesmo com o filme antigo. Então, esse mercado foi se ampliando brutalmente. Até uma coisa que eu acho incrível que a gente fez naquele tempo, que existia a intenção da Vale do Rio Doce ainda lá na mineração. A Vale queria pôr diversão no grande sítio de mineração de Carajás, no Maranhão, para aquele mundo de gente que morava lá, uma quantidade enorme de operários. Então, eu bolei uma coisa que chamava “antena assíncrona”, quer dizer, eles iam ter uma tv no ar. Que as pessoas tinham aparelhos de televisão em casa, no refeitório e tal mas, em casa, tudo era emitido por uma antena assíncrona: passava a programação da Globo com uma semana de delay (atraso). Aí apareceu um grande problema que era o do noticiário. Porque não adianta passar noticiário uma semana depois, né? Aí eu fui para a TV Liberal, em Belém, e consegui um acordo. Tinha um aviãozinho da Vale que ia todos os dias pra lá. Resultado: a gente fez um acordo com a TV Liberal, pôs lá um funcionário da Globo Vídeo com um gravador que gravava o Jornal Nacional da noite e o enviava às 10 horas da manhã pra lá, num aviãozinho que chegava ao meio-dia. Meio-dia, na hora do almoço, no refeitório, passava o Jornal Nacional da noite anterior. O JN era o mais importante, é claro, mas passávamos todos os jornalísticos da casa. JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTÁ FALANDO DOS ANOS...?

Roberto Mendes – Por volta de 1984. Não existia satélite! Se a gente imaginasse que ia chegar um satélite, esse negócio seria um absurdo! Mas o satélite chegou depois de 1989.

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tou uma estrutura ótima. A fama da Igreja naquele tempo era que tinha o corpo à direita e a cabeça à esquerda. Isso virou nos anos 1970, para ter uma cabeça à direita, quando o corpo era de esquerda. Os padres todos que foram formados naquela época eram muito avançados, progressistas. Mas a direção passou para a direita. Essa experiência em alfabetização de adultos na ditadura era um risco permanente. Você tinha que tomar uma posição de vanguarda, pois alfabetizar era vanguarda. A ditadura não queria isso. Depois do Meb (Movimento de Educação de Base), já no início dos anos 1970, a ditadura criou o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), com uma enorme mobilização, para fazer esse negócio que a Igreja fazia – que era mais conscientização e alfabetização, do que somente alfabetização.

JORNAL DA ABI – ISSO TUDO ERA FEITO EM FITA DE VÍDEO VHS?

Roberto Mendes – Tudo em VHS. O programa com o Banco do Brasil começou com U-Matic, e com a Fronape também. E para as Embaixadas do Brasil no exterior, também com UMatic. Mas depois passou tudo para VHS. E já naquele tempo eu brigava. Assim que cheguei na Globo Vídeo, eu já era contra a idéia que os militares tiveram, de instituir um sistema de cor de transmissão de tv exclusivo para o Brasil, que era o Pal-M. “Não, isso aqui é para emissão. Nós vamos fazer em NTSC!”, disse. Porque não havia como ajeitar o Pal-M. Ele era muito desajustado. Você tinha o master, gravava aquilo, e um saía com cor e o outro não. Era muito complicado! Então, tudo tinha que ser NTSC, porque era um padrão mais regular e dava para enviar para o exterior da forma correta. JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA JÁ EXISTIA

JORNAL DA ABI – A IGREJA FORMAVA VALORES, E O OUTRO ERA MAIS TECNICISTA...

ALGUMA EMPRESA DE VÍDEO?

Roberto Mendes – Não, muito pouca coisa, nada de homevideo. JORNAL DA ABI – OU SEJA, FOI VOCÊ QUEM NTSC CONTRA O PAL-M? E ACABOU VIRANDO O PADRÃO DO MERCADO DE VÍDEO.

COMEÇOU A BRIGA PELO

Roberto Mendes – É o padrão do homevideo brasileiro. Eu fui o culpado. (risos) Porque era absurdo! Você não imagina, no início já do homevídeo, quando apareceu esse problema com as empresas que puseram

tinha contato uma vez por mês. Na verdade, era muito mais para apresentação de contas, e tal, e para conversar sobre coisas menores. E ele sempre deu conselhos ótimos. Quando a gente precisava de apoio, ele sempre deu. Às vezes, eu ficava achando esquisito, porque todo mundo pensava que um empresário desse tipo, capitalista enorme... (pen-

rias pessoas no mercado, e ninguém queria. Então o Doutor Marcelo falou: ‘Vamos fazer a prata da casa’. O Doutor Marcelo organizou uma votação lá, e todo mundo votou em mim. O meu candidato era o José Renato. Eu votei nele! E eu muito preocupado, porque na verdade tinha um passado de luta contra a ditadura...

“A experiência em alfabetização de adultos na ditadura era um risco permanente. Você tinha que tomar uma posição de vanguarda, pois alfabetizar era vanguarda.” coisas no mercado. Às vezes pirata. E, às vezes, nem tão pirata assim, mas eles tinham um enorme problema com o Pal-M. Eu disse assim: “Eu não vou ter esse problema. Eu vou usar NTSC e pronto”. A Anatel foi à Globo com advogado, mas a Anatel só regula a transmissão! A Rede Globo não pode transmitir em NTSC, claro, mas a Globo Vídeo pode gravar! Porque não é transmissão, é gravação. Gravamos e o consumidor leva pra casa... JORNAL DA ABI – ISSO É UM DIFERENCIAL.

Roberto Mendes – Você não pode imaginar! Ninguém hoje dá esse valor, porque o VHS nem existe mais. Eu estava no meio daquilo tudo. Foi uma briga! Isso a gente discutiu. Eu, o Renato Azevedo. E conseguimos a aprovação da Globo... O Doutor João Roberto entendeu a questão e falou: “podem ir em frente!”. E assim foi feito. JORNAL DA ABI – O CONTATO FOI COM O JOÃO ROBERTO?

Roberto Mendes – Com os dois, o Roberto Irineu também. Com o Doutor Roberto Marinho a gente

sativo). Olha, dos oito anos que eu trabalhei na Globo Vídeo, nunca o Doutor Roberto pegou um tostão do lucro. Sempre aceitou a nossa proposta de reinvestir tudo, entendeu? E estava dando lucro. Crescendo, crescendo, crescendo... E, a cada vez, ele dizia ‘Reinvista, reinvista, reinvista’. Nunca tive que, no final do ano – e eu era procurador do Doutor Roberto – pagar a ele o que era devido ao empresário. Ele mandava reinvestir. JORNAL DA ABI – E COMO VOCÊ ASSUMIU ESSA MISSÃO?

Roberto Mendes – Como disse, eu cheguei à Globo Vídeo em 1981, como Gerente Comercial, para fazer esse upgrade a partir daquela fatiazinha de mercado que era gravar para as afiliadas. Já em 1982, passei para Diretor Comercial, até que o cargo de Superintendente ficou vago. E aí, coordenado pelo Doutor Marcelo Garcia, que vinha a ser pediatra dos ‘meninos’, como ele chamava os filhos do Doutor Roberto, porque ele era amigo do Doutor Roberto, começou a procurar alguém para a vaga. Procurou vá-

JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTAVA LIGADO À IGREJA, A TRABALHOS SOCIAIS...

Roberto Mendes – Eu era ligado à Igreja progressista: Dom Hélder Câmara, Dom José Távora, Dom José Maria Pires, que eram figuras excepcionais na Igreja. JORNAL DA ABI – CONHECIA ALGUM DOS PADRES QUE FORAM TORTURADOS E MORTOS, AMIGOS DE DOM

HELDER?

Roberto Mendes – Vários. E outros amigos, que eram de Ação Católica, que foram torturados e morreram nessa luta. Pois bem, eu tinha esse passado. Eu trabalhava com alfabetização de adultos via rádio. Fazia programas de rádio de alfabetização de adultos. JORNAL DA ABI – EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA NOS PRIMÓRDIOS?

Roberto Mendes – Isso, no início dos anos 1960. A idéia de Dom Hélder era buscar recursos católicos, na Alemanha, Caritas, essas entidades todas, para financiar emissoras de rádio para as dioceses, e as dioceses se equiparem para fazer alfabetização de adultos. Com isso, ele mon-

Roberto Mendes – E o Mobral era, como toda coisa estatal, uma cartilha única. E era mais na superestrutura, um enorme campo de corrupção e dinheiro. O Mobral tinha um orçamento entre 30 e 50 vezes maior que o do Meb, sem dúvida. Aí tinha aquilo que todo mundo sabe: os afilhados, os amigos, e tudo mais... JORNAL DA ABI – E O BARULHO TODO QUE FOI FEITO EM CIMA, COMO UM PROGRAMA REDENTOR.

Roberto Mendes – E que ia salvar todo mundo. Pois bem, com esse meu passado, e depois as perseguições e tudo, estive preso, tive processos, fui exilado. JORNAL DA ABI – MAS NO CAMPO POLÍTICO VOCÊ TEVE ALGUMA ATUAÇÃO, VOCÊ ERA FILIADO A ALGUM PARTIDO?

Roberto Mendes – De origem, eu era filiado a um partido quase católico, que era a Ação Popular. E logo depois, já em 1969, quando a Ação Popular se dividiu e foi ser o PCdoB e o PCBR, saí completamente, porque eu não era da luta armada. Não achava que a luta armada era um caminho, inclusive porque, numa conversa com o Ferreira Gullar, que foi ótimo, ele dizia: “Não tem um negócio que a gente possa escrever, não? Porque dar tiro, eu não sei. Se eu for dar tiro, eu vou perder. Se eu puder só continuar escrevendo, não seria melhor?”. Pois bem, eu fui nessa linha. Eu quero fazer uma oposição contra a ditadura, mas uma oposição nos sindicatos, nas escolas... JORNAL DA ABI – UMA OPOSIÇÃO INTELECTUAL?

Roberto Mendes – Eu não vou me armar para sair numa guerra que eu vou perder! Eu não concordava. Aí, eu participei de um movimento que era o MPL, o Movimento Popular de Libertação, que não era nada de guerrilha e nada de luta armada. Era, na verdade, uma atividade paralela às ações de educação que a gente fazia na Igreja.


ACERVO FRANCISCO UCHA

JORNAL DA ABI – E DE QUAL DELAS DECORREU A MAIORIA DOS PROBLEMAS?

Roberto Mendes – Da outra, é claro. Eu fui preso como MPL. Mas fui demitido do Meb. A ditadura mandou me demitir, e a anistia veio porque fui demitido do Movimento de Educação de Base, que era dos bispos. Porque do outro eu não podia ser demitido, eu podia ser perseguido. Eu fui perseguido, preso.

Roberto Mendes em sua sala na Globo Vídeo, quando assumiu a superintendência da empresa.

eu passava na fronteira. E não teve outra, ele me deu o endereço de um capitão. Com três, quatro dias, eu estava com a carteirinha paraguaia que tenho até hoje, de residente no Paraguai. Esse conhecimento do João Goulart foi ótimo. JORNAL DA ABI – JANGO FALOU ALGUMA COISA DA EXPERIÊNCIA DELE LÁ?

Roberto Mendes – Uma história que ele me contou, que acho fantástica, e não vi isso ainda escrito, é sobre uma viagem em que ele estava na Aerolíneas Argentinas. Ele

JORNAL DA ABI – VOCÊ CHEGOU A SE ESCONDER, FUGIR, ESSAS COISAS?

Roberto Mendes – Claro. Eu fui preso em casa, pelo Doi-codi. JORNAL DA ABI – EM QUE ÉPOCA?

Roberto Mendes – Em 1974. Eu fui demitido do Meb em 1970 e comecei a ser perseguido. Naquele tempo, todas as entidades, ministérios, Sudene, Sudam, etc, tinham o chamado Grupo de Segurança. Cheguei e pedi um trabalho na Sudene, montei uma empresa para fazer coisas da Sudene, trabalhava três meses e cancelavam nossos contratos. Com a Sudam a mesma coisa. Trabalhei na Fundação Getúlio Vargas, com um contrato de um ano, fui demitido em quatro meses. Era evidente que eles tinham o meu nome.

eu apanhei por causa dessa diferença, essa troca de letras? Isso está no relatório da Abin: que eu era acusado de dar treinamento de manobras. Não era manobra, era Maromba! Era o Centro de Treinamento de Maromba! JORNAL DA ABI – E QUE FANTÁSTICO ERA O GRAU DE APURAÇÃO MILITAR, NÃO É? UM PRIMOR DE INVESTIGAÇÃO...

Roberto Mendes – Era terrível....

pessoa do grupo, e aí foi desencadeando tudo, entendeu? A gente providenciou a saída das lideranças que não convinham ser presas de jeito nenhum, porque elas tinham muito mais conhecimento da organização do que eu, que era, naquele contexto, um pé-de- chinelo. Eu ia para a porta de fábrica, ensinava a dar aula pelo rádio, fazia grupos... Era um simples ‘operador’ do negócio.

JORNAL DA ABI – VOCÊ NÃO SABIA DISSO?

JORNAL DA ABI – O QUE ACONTECEU A PAR-

JORNAL

Roberto Mendes – Eu não sabia. Não imaginava!

TIR DA SUA DEMISSÃO DO MEB, EM 1970?

TEMPO DE PRISÃO?

Roberto Mendes – Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. E ficava entrando e saindo dos locais de trabalho, sempre sendo mandado embora. Imaginava tudo, mas não que os militares estivessem no meu encalço. Eu tinha imaginado que eles estavam me cerceando, isso sim. A partir do terceiro, eu disse: “Não! Tem alguém aqui atrás de mim”. Mas não imaginava que ia dar em prisão, porque, puxa, os amigos que tinham ido para a luta armada, esses estavam sendo presos, perseguidos, porque eram da Guerrilha do Araguaia. Eu era contra a luta armada. Mas evidente que eu era a favor deles, da causa deles. Eles estavam num tipo de luta contra a ditadura com que eu não concordava, mas pegar em armas era melhor do que concordar com o regime. Isso era claro... Sou a favor da educação, do trabalho de conscientizarão, de formar grupos conscientes que lutam pelos seus direitos e tudo mais...

Roberto Mendes – No Doi-Codi foi alguma coisa perto de um mês. Depois, eu fui para o Batalhão de Petrópolis, onde correu o nosso processo. No Doi-Codi tinha gente presa comigo. Depois de alguns dias eu criei alguns hábitos. O carcereiro vinha trazer o café da manhã, e eu: “Por favor, você me consegue um cigarro?”. Eu ainda fumava naquele tempo. “Não tem cigarro aqui!”, respondia. Minha mulher levava um maço de cigarros e um sabonete para mim todo dia, lá no Ministério, pois ela não sabia onde é que eu estava. Nunca me entregaram esses cigarros... Mas, depois de alguns dias, o sujeito me trouxe um cigarro. O cigarro era Filigrana. Era um maço vermelho, que pouca gente fumava. Um cara do nosso grupo fumava, era o único cliente daquela marca, acho eu! Eu pensei: “Puxa, esse cara está aqui!”. Mas como estava em cela individual, não tinha idéia. O pior é que depois, vendo, era ele mesmo. E ele já tinha mais tempo lá, por isso tinha direito ao cigarro. Quer dizer, ‘direito’ entre aspas, porque ali ninguém tinha direito algum.

JORNAL DA ABI – E VOCÊ SE ACHAVA UM INCOMPETENTE?

Roberto Mendes – Total incompetência, né? (risos). Eu dizia: “Não é possível, onde eu vou, estou fazendo um trabalho, e tudo acaba!”. As pessoas gostavam do que eu fazia, mas de repente cancelavam tudo. JORNAL DA ABI – VOCÊ DEVIA PENSAR: “SOU UM INCOMPETENTE OU UM BAITA AZARADO”.

Roberto Mendes – É, exatamente! E não era nem um, nem outro. Teve um caso gozadíssimo, na prisão, no Doi-Codi, aqui no Rio, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. JORNAL DA ABI – VOCÊ TEM LEMBRANÇAS DE ALGO ENGRAÇADO LÁ DENTRO?

Roberto Mendes – Engraçado quando visto trinta anos depois, porque eu sofri dois dias seguidos com questões de luta armada. Eu tinha dito desde o início na prisão que eu não era da luta armada. E aí eles vieram com esse negócio... Pois bem, trinta anos depois, agora no julgamento da minha anistia, quando veio o relatório da Abin, tinha o seguinte: “O Sr. Roberto dava treinamento de manobras em Manaus”. O que era isso? Explico eu: Um centro de treinamento da diocese de Manaus chamava Maromba! E era lá que eu dava treinamento para educação de base! Em Maromba! Um código Morse de um sargento de lá, pedindo informações sobre quem era Roberto Mendes, falava que eu dava treinamento no centro de Maromba. E o cara falou assim: “O que é isso? Tá digitado errado! Não é Maromba, é manobra!”. (risos). Você imagina o quanto

JORNAL DA ABI – E AÍ VOCÊ FOI PRESO EM 1974? POR QUE ELES TE “COZINHARAM” ESSES QUATRO ANOS?

Roberto Mendes – Não tenho idéia do motivo de ter demorado tanto. Em 1974 houve uma grande ação contra o Partidão. Aquela prisão de todo mundo do Partidão... Tanto que as pessoas ligadas ao partido, quando eu voltei do exílio, perguntavam: “Você era do Partidão?”. Pois bem, não, eu não era do Partidão... E mesmo assim dancei. JORNAL DA ABI – HOUVE ALGUMA ALEGAÇÃO OFICIAL PARA A SUA PRISÃO?

Roberto Mendes – Não. Houve uma prisão em São Paulo, de uma

DA

ABI – ENFRENTOU

QUANTO

JORNAL DA ABI – EM PETRÓPOLIS FICOU QUANTO TEMPO?

Roberto Mendes – Algum tempo. Mas lá não era igual ao Doi-Codi, não tinha tortura, nada. Era uma prisão. E depois que eu fui solto, tinha que ir lá toda semana. Eu continuava preso. Eu estava aqui, mas tinha que ir para Petrópolis responder e tal, entendeu? Aí teve a primeira audiência e o meu advogado disse: “Olha, providencia de sair do Brasil que isso não vai ficar bom para você, pode ter uma volta ao Doi-Codi”.

Aquilo era o que eu menos queria na vida. Aí eu saí, em 1976. Fui para Genebra e Paris, onde havia ramificações de amigos de MPR. Voltei em 1980. JORNAL DA ABI – COMO FORAM ESSE ANOS NO EXTERIOR?

Roberto Mendes – Trabalhei, pois nosso grupo lá era organizadíssimo. Tinha uma empresa que gerava dinheiro para pôr aqui nos trabalhos de sindicatos, escolas, o que ainda era possível fazer. JORNAL DA ABI – TRABALHOU COM QUÊ?

Roberto Mendes – Como empresário, vendendo coisas, vinha para a América Latina. A empresa tinha objetivo de exportação, exportava serviços e bens. JORNAL DA ABI – VOCÊ FALAVA FRANCÊS?

Roberto Mendes – Falava francês, inglês, espanhol... O espanhol eu falei logo na primeira vez que eu fui ao Paraguai. O Marcos Lins, que era uma grande figura, falecido recentemente, aos 64 anos, me deu um livro para ler... Foi o primeiro que eu li em espanhol, que era um livro do Mario Vargas Llosa, ótimo: Pantaleão e as Visitadoras. O livro é fantástico! No Paraguai, comecei a aprender espanhol e tive a grata surpresa de conhecer um amigo do grupo, que era uruguaio, Jorge Otero Menezes, muito amigo do Brizola, do Jango. Um dia a gente estava no Paraguai, meio que clandestino, e ele falou assim: “Rapaz, o seu Presidente está aí”. Eu falei: “Que Presidente?”. Ele falou: “João Goulart. Quer conhecer?”. “Quero”. Aí ele me levou e me apresentou para o João Goulart, no Hotel Nacional de Assunção. E o Jango me falou: “Que documentação você tem?”. Eu falei: “A minha documentação”. “Rapaz, você está pronto para ser preso”. Isso foi antes da minha prisão. Eu já estava demitido, mas antes de 1974. Aí ele falou assim: “Por que você não consegue uma documentação paraguaia? Eu te apresento alguém aqui do sistema que pode te arranjar uma documentação”. “Puxa, eu quero demais, Senhor Presidente, eu preciso”. Porque

A carteira paraguaia que Roberto Mendes conseguiu graças à intervenção de Jango.

escolhia um vôo que saía de Buenos Aires e ia direto para a Espanha, sem passar pelo Brasil. Afinal, ele estava exilado. E esse vôo fez um desvio e teve que pousar em Recife. Quando o comandante do avião avisou que ia descer em Recife, o Jango apavorou-se. Foi lá e disse: “O senhor sabe que não posso descer em Recife! Vou ser preso!”. Aí o piloto respondeu: “Não, ninguém vai tocar no senhor. Eu já estou comunicando que o senhor está aqui e que este avião é território argentino”. E aí ele ficou dentro do avião que desceu em Recife. Esse dado é interessantíssimo. Você já imaginou se a ditadura prende o João Goulart no aeroporto de Recife? JORNAL DA ABI – IMAGINAMOS QUE A DECISÃO DE SAIR DO BRASIL TENHA SIDO QUASE UM INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA. BEM MAIS ANGUSTIANTE DEVE SER A DECISÃO DA HORA DE VOLTAR...

Roberto Mendes – A volta é muito maluca, porque o sonho do exilado é completamente diferente de quem foi para a Austrália e quer ficar na Austrália. É voltar. Sempre! Você quer voltar. As coisas se atrapalham na cabeça porque, de repente, você vê que as mãos da ditadura vão muito longe. Por exemplo, em 1979 fiquei sem passaporte. Meu passaporte venceu e não podia usá-lo com facilidade. Aí a gente conheceu um cônsul brasileiro, que me disse o seguinte: “Roberto, você sabe que a anistia no Brasil está para ser assinada. Então, seu nome está lá na lista e eu não posso tirar. Vou ser punido se te der um passaporte, você não pode ter passaporte. Mas fique atento porque, tendo a anistia, eu entendo que aquela lista cai, e você poderá ter o documento”. A anistia foi assinada no dia 22 de agosto de 1979, no meu aniversário. No dia 29 eu estava lá! E não deu outra: ganhei o

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Roberto Mendes lançou pela Globo Vídeo os principais filmes do cineasta russo Sergei Eisenstein, como Outubro.

passaporte. Foi genial. Mesmo com a anistia, eu não era obrigado a voltar rapidamente, tinha documento para mais cinco anos, em condição de trânsito para qualquer lugar. Então, essa decisão de voltar era muito difícil de contornar com a família, porque a Teresa queria voltar.

Roberto Mendes – Pagava direitos à CBS, não era nada pirata não! Vamos dizer que o valor era mais ou menos simbólico, porque era baseado no número de cópias que a gente ia tirar aqui, que era alguma coisa como duas mil, três mil cópias. JORNAL DA ABI – TUDO ISSO?

JORNAL DA ABI – NESTE MOMENTO VOCÊ ESTAVA COM SUA ESPOSA TERESA E...

Roberto Mendes – E três filhos! Joana não opinava porque estava com um ano e meio, nasceu em 1978. Mas os dois mais velhos, ambos queriam voltar. A minha ansiedade de querer voltar para o Brasil passou para todo mundo. E depois, voltar para o Brasil, significava voltar para o Rio de Janeiro. E o primeiro emprego que arrumei chegando aqui foi em São Paulo, no Banco Econômico. Eu vinha segunda-feira e voltava sexta. Quando voltei, no início de 1980, foi interessante. O José Renato Monteiro me apresentou ao Jorge Campos, que era Superintendente da Globotec na época. O José Renato falou assim: “Tem um negócio na Globotec, você podia ir para lá, faz um currículo”. Eu fiz o currículo e levei para o Jorge. E o Jorge foi demitido com o meu currículo na mesa. Falei assim: “Não tem chance. Agora tenho que esperar mais seis meses para a coisa assentar”. Aí arrumei esse trabalho no Banco Econômico, em São Paulo. Quando ia ser criada a Globo Vídeo, em 1981, o José Renato me disse: “Vai ser criada uma outra empresa, a Globo Vídeo; seu currículo de novo”. Aí eu levei o currículo. Já foi o Isacil Ferreira que recebeu o meu currículo. O Isacil era um publicitário que tinha feito fama porque achou uma frase para a publicidade da Esso — “Só a Esso dá ao seu carro o máximo”. Ele fazia o desenho animado que vinha dos Estados Unidos e dava o movimento da boca. O José Renato já era funcionário da Globotec. Foi seminarista dominicano nos anos 1950. E eu secular, em Juiz de Fora. Eu fui fazer faculdade, tive que vir para o Rio em 1964. Eu era vicepresidente do DCE. Fui direto ao Meb e estava abrigado ali fazendo educação de base. O José Renato veio depois e, quando chegou ao Rio, eu o admiti no Meb. Ele foi funcionário do Meb comigo, até 1970. Aí, a roda da vida gira, e ele me levou para a Globo Vídeo. Zelito Viana já estava lá. Essa nossa experiência na Globo Vídeo tem quatro figuras fundamentais... JORNAL DA ABI – QUEM ERAM ELAS?

Roberto Mendes – Doutor Marcelo, que nos dava proteção, Zelito, José Renato e eu. Me elegeram Superintendente, o Zelito era Diretor de Homevideo, e o José Renato, Diretor de Produção. Uma outra curiosidade é um programa que existe até hoje, o Globo Ciência, que era da Globo Vídeo. Foi feito ali! Eu e o José Renato fomos os criadores do Globo Ciência. A proposta era fazer um programa de ciência na “Globo-

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na”. Isso foi depois de muita conversa com o Doutor Marcelo e o Doutor Roberto Marinho. JORNAL DA ABI – FEZ O CAMINHO INVERSO, NÃO VEIO DA PROGRAMAÇÃO PARA A GLOBO VÍDEO?

Roberto Mendes – Isso. Nasceu na Globo Vídeo e foi parar na grade da emissora. Aí o Boni deu o horário para a gente, que era às sete horas de sábado. E continua mais ou menos no mesmo horário, acho eu... Aí baixou meia hora porque ia entrar um programa da Xuxa... Mas, de qualquer forma, foi um programa exitoso daquela época. Foi muito bom. E está no ar até hoje! JORNAL DA ABI – NESSA ÉPOCA, VOCÊS FAZIAM UM PROJETO QUE ERA O 60 MINUTES ?

Roberto Mendes – Mas aí já era com o homevideo. A gente já tinha as duplicadoras. JORNAL DA ABI – E COMO FOI ESSE INÍCIO, DA GLOBOTEC PARA A GLOBOVIDEO?

Roberto Mendes – A Globotec separou-se e passou a ser só a produção de comerciais, e a Globo Vídeo ficou naquele nicho de fazer as cópias para as afiliadas. Tinha lá umas dezoito, vinte ‘escravas’ (aparelhos de videocassete para duplicação), que Sônia Braga em Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto.

faziam essas duplicações, e não precisava mais do que isso, porque era o número de duplicações para as afiliadas naquele tempo. Quando a gente começou a fazer programação da Globo para o Banco do Brasil, para a Petrobras, para as embaixadas e tudo mais, a gente foi aumentando o número de duplicadoras. “A gente vai ter que aumentar aqui, vamos para o Rocha” (bairro na Zona Norte do Rio de Janeiro). Esse bairro era uma coisa maluca... Ninguém imaginava sair de perto da TV Globo. A gente estava ali na Rua Zara, que era uma belezinha, e tal. E decidimos: “Vamos pro Rocha e vamos virar uma indústria”. O primeiro projeto eram duzentas pessoas copiando VHS. Então, tinha um andar no Rocha, um andar inteiro, com 200 máquinas e toda a parafernália que isso dá: três turnos de funcionários, 24 horas funcionando. Quando era Superintendente, eu tinha uma frase que era a seguinte: “A Globo é líder de mercado onde ela está. Então a Globo Vídeo tem que ser. É natural que a Globo Vídeo seja liderança de mercado”. Então, a gente fazia tudo muito bonitinho. Logo no início, em 1983, 1984, foram criados prêmios para incentivar o mercado. Então, tinha O Melhor Filme, O Filme Mais

Vendido. E, de repente, os americanos descobriram que a Globo Vídeo ia ganhar tudo. O mais vendido era o Carnaval, por exemplo. A gente já fazia o Carnaval da Globo compactado! Aí falaram: “Mas programa é uma coisa, tem que ser filme”. Não tivemos dúvidas. Lançamos Isto é Pelé e ganhamos disparado, vendeu dez mil cópias, o que naquela época era um fenômeno. A gente fez uma placa para dar ao Pelé quando completou dez mil cópias. E essa coisa foi crescendo. “Vamos entrar no homevideo”, pensamos. A Globo Vídeo começou em 1981, o homevideo veio em 1983, 1984. Aí, foi o Paulo José que trouxe a idéia: “Tem o 60 Minutes nos EUA, que faz um sucesso danado, por que a gente não traz isso?”. Isso era feito na base de assinaturas. O 60 Minutes vinha gravado numa fita, vinha de avião, pegávamos no aeroporto, entrava em copiagem e dois dias depois estávamos entregando para os empresários que o assinavam. O 60 Minutes não era exibido aqui... A gente tinha notícia de que existia porque as pessoas que estavam lá fora viam e diziam que era um programa interessante para ter aqui no Brasil. JORNAL DA ABI – E PAGAVA DIREITOS POR ISSO? Maurício do Valle em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha.

Roberto Mendes – Era. Chegou a isso, mas começou com 400. Mas quando você falava para os americanos que ia tirar duas mil cópias, para eles era nada. Não sabiam nem como quantificar isso. Visto de hoje, era quase simbólico. Para a gente não era simbólico não, era importante. Eram quatro programas por mês, um por semana. Mas era um marketing muito interessante, criado pelo Paulo José, que hoje está no Jornal do Vídeo. JORNAL DA ABI – NESSE MOMENTO, DO 60 MINUTES, VOCÊS NÃO LANÇAVAM AINDA?

Roberto Mendes – Já lançávamos, mas ainda eram poucas cópias, como os primeiros filmes brasileiros lançados em vídeo. JORNAL DA ABI – POR QUE A OPÇÃO PELO CINEMA BRASILEIRO?

Roberto Mendes – O filme brasileiro estava mais à mão, estava mais perto, mais próximo. O Zelito era produtor, era Diretor de Homevideo, eu também conhecia os produtores... Então, a gente teve esse acesso fácil. O 60 Minutes era uma coisa que rodava em um dia da semana. Chegava na segunda-feira de manhã, rodava e na terça já estava sendo entregue, rapidamente. O restante fazia homevideo, naquela tiragenzinha que era pequena. A idéia era sair para uma empresa “blockbuster” qualquer. JORNAL DA ABI – A GLOBO VÍDEO NO INÍCIO ERA MUITO CRITICADA PELO MERCADO PORQUE SE FALAVA QUE SÓ LANÇAVA FILME BRASILEIRO.

COMO ENFRENTAR ESSE TIPO

DE CRÍTICA, QUE RESULTADO ISSO TEVE E POR QUE CONTINUAR?

Roberto Mendes – Continuou, mas a gente diversificou muito. Mas era uma obrigação ideológica.


ALDO DE LUCA

Premiado com o Oscar de Melhor Ator para William Hurt, O Beijo da Mulher Aranha foi um dos primeiros grandes lançamentos da Globo Vídeo.

Era uma obrigação nossa. Ou, pelo menos, de três pessoas: Zelito, José Renato e eu... Quatro, com o Doutor Marcelo, que não tinha desacordo com isso. “Temos que lançar o melhor do cinema brasileiro”. E no segmento do cinema brasileiro daquela época, a Globo Vídeo e a Globo, portanto, foram muito elogiadas. A Globo Vídeo lançou 300 filmes brasileiros. Isso significava remasterizar, tirar cópias novas, telecinar e chegar à duplicação. Não é chegar ali, pegar o filme e simplesmente copiar. Resgatamos grandes clássicos como Limite, de Mário Peixoto; Os Fuzis, do Ruy Guerra; Garrincha – Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade; Noite Vazia, do Walter Hugo Khouri; O Caso dos Irmãos Naves; Tico-Tico no Fubá; fomos os primeiros a lançar Mazzaropi; lançamos Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, O Beijo da Mulher-Aranha, de Hector Babenco, que ganhou um Oscar, o de Melhor Ator para William Hurt; O Cangaceiro, premiado no Festival de Cannes. Também lançávamos produções novas do cinema nacional, como Xica da Silva, A Cor do Seu Destino, Vera, A Dança dos Bonecos e grandes diretores mundiais como Eisenstein e seus O Encouraçado Potemkin, Alexandre Nevsky, Outubro e A Greve; Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski; Pocilga, de Pasolini; Primavera Para Hitler, de Mel Brooks; Meu Tio, de Jacques Tati; Dersu Uzala, de Kurosawa; Ânsia de Amar, de Mike Nichols; A Primeira Noite de um Homem, com Dustin Hoffman e Anne Bancroft; Giordano Bruno, com Gian Maria Volonté; shows como Let’s Spend the Night Together, dos Rolling Stones e Queen Live in Rio, e as óperas e balés clássicos. JORNAL DA ABI – COM O SEU PERCURSO POLÍTICO, COMO ERA ESTAR DENTRO DA

GLOBO

NAQUELE MOMENTO?

Roberto Mendes – Eu achava que enquanto fosse funcionário, gerente, não tinha problema, ninguém me conhecia. Aí, quando passei a ser Superintendente, o advogado disse: “A

Isto é Pelé foi o primeiro filme a vender mais de 10 mil cópias e a festa que comemorou o feito contou com a presença do Rei do Futebol, que recebeu uma placa em sua homenagem entregue por Roberto Mendes.

gente tem que saber o seu nome todo porque vamos fazer uma procuração do Doutor Roberto”. Eu fui procurador do Roberto Marinho! E eu quase perdi o fôlego! “Eu não vou contar nada. Se eles não perguntarem, eu não conto nada sobre o meu passado político”. Mal sabia eu que eles já sabiam tudo. Depois, quando vi o meu habeas data, tinha lá uma carta da Globo pedindo informações sobre mim. Já naquele tempo em que eu estava entrando na empresa, eles sabiam! O pior desse ponto de vista, para mim, era que eu não sabia que eles sabiam de tudo. Pois, se eu soubesse, contaria minha história... E corriam pelos corredores essas coisas no meio da esquerda, pois não era só eu de esquerda que estava na Globo. Essas brincadeiras todas que fazem até hoje; coisa que eu nunca ouvi da boca do Doutor Roberto, ou de gente lá de dentro, mas que corriam. Como a máxima que Doutor Roberto teria dito: “Dos meus comunistas, cuido eu. Não vou deixar a ditadura mexer neles”. JORNAL DA ABI – ISSO É VERDADE, OU VOCÊ ACHA QUE É LENDA?

Roberto Mendes – Sabendo do meu passado, nunca senti nenhuma restrição. Mas não se conversava esse assunto, não era nem para se discutir isso. Houve algumas coisas que aconteceram naquele período que são engraçadíssimas. Uma delas é o seguinte: estávamos

no Rocha (na fábrica de duplicação da Globo Vídeo). Duzentos e tantos funcionários em turnos... E resolvi que, antes da cada turno, eu tinha que dar um lanche para eles. Talvez parecesse meio liberal demais para uma empresa como a Globo, mas eu achava justo. Eu acho que as pessoas têm que trabalhar alimentadas. Fiz os cálculos lá com o Pimenta, somando quanto é que gastava. Era um pão com manteiga e café com leite. Gastava perto do zero. Aí fiz. Resultado: com dois, três meses, me chamam – aí foi o Roberto Irineu. “Vimos aqui que você dá um lanche para os seus funcionários, mas as outras empresas não dão. Não têm nada disso”. Eu falo: “Mas Roberto Irineu, é tão pouco e as pessoas precisam comer. Os salários não são altos e é bom que as pessoas sejam alimentadas, porque trabalhar alimentado faz bem para a empresa”. Ele disse: “Vamos tratar de diminuir isso, vamos parar com isso”. E eu: “Roberto Irineu, vamos fazer o seguinte: eu faço só mais dois meses, e aí eu vou diminuir, prometo”. Mas, esse mesmo pão me aju-

dou incrivelmente numa grande greve de transportes que aconteceu um mês depois! Foi fantástico esse dado! Na Globo Vídeo, houve falta zero! Não teve falta. Sem transporte, as pessoas chegavam. E, na TV Globo, o índice de faltas chegou a 30%. Na Globo toda, 40%. Eu não tive dúvida, pedi uma reunião com o Roberto Irineu e fui lá com os meus dados todos. “Olha o que o lanche faz. Olha o vínculo estabelecido pela empresa que confia no seu funcionário e quer que ele trabalhe bem. Veja como ele devolve isso. Não tive falta!”. Ele respondeu: “Então, está bom, pode ser”. Aquilo, então, virou o “Lanche do Roberto Mendes”. Todo mundo dizia. Os funcionários chamavam de “Lanche do Roberto” porque fui eu que autorizei, e eu ia lá acompanhar. Também tinha o seguinte: para receber o lanche você tinha que chegar 15 minutos antes, fazer o lanche e entrar no seu turno. Garantia que o cara cumpria o horário integral. Aquilo era uma farra, porque de cada vez entravam 50 pessoas! Já pensou, todo mundo ali. Eu ia lá! Eu não sou político partidário, mas sou político. Eu adorava saber das pessoas que trabalhavam lá. Tinha uma figura chamada Ma-

calé, que era o insatisfeito permanente. Era uma figura popular no meio dos funcionários, eu falei para ele assim: “Como é que está a coisa, está bem? Está dando o pão?”. E ele: “Eu acho que devia cortar a manteiga e pôr geléia”. “Macalé, geléia não vai dar, não vai passar no orçamento”. “Não? Então, pelo menos um queijinho”. (risos). Todas as vezes que eu descia para ver o pessoal no lanche, eu já evitava o Macalé... (risos) JORNAL DA ABI – COMO ALTO FUNCIONÁRIO DA GLOBO, VOCÊ PASSOU A SER CRITICADO POR SEUS ANTIGOS COLEGAS DE LUTA?

Roberto Mendes – Sem dúvida. Os amigos da esquerda diziam: “O Roberto depois que foi para a Globo, mudou”. E eu nunca mudei nada. E as pessoas não davam o crédito, inclusive, do trabalho que a gente estava fazendo lá dentro. Quando você me pergunta, por exemplo, dos filmes brasileiros, eu tinha consciência do que estava fazendo. Tinha pouca venda, mas dava prestígio. JORNAL DA ABI – QUAL FOI O AUGE DA GLOBO VÍDEO, E ELA CHEGOU A RESPONDER POR QUANTO NESSA ÁREA DE HOMEVIDEO?

Roberto Mendes – O auge foi em 1988, quando a gente estava faturando um milhão de dólares por mês, empatando com a Som Livre. A briga da Som Livre foi essa. A Globo Vídeo foi chegando, chegando, e eles não subiam mais. E tiveram que nos espremer. Vamos tirar essa empresa daqui! JORNAL DA ABI – QUAIS AQUISIÇÕES GLOBO VÍDEO FEZ NAQUELA ÉPOCA?

A

Roberto Mendes – O cinema russo compramos direto, depois da confuDa obra de Nélson Rodrigues, Tarcísio Meira em O Beijo No Asfalto, de Bruno Barreto

Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri em Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman.

Carlos Alberto Riccelli em Sonho Sem Fim, de Lauro Escorel.

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JORNAL DA ABI – IMAGINEI QUE A NEGOCIAÇÃO HAVIA COMEÇADO NO BRASIL.

Roberto Mendes – Já tinha conversado, mas eu não tinha autorização para comprar filmes russos ainda... Eu tinha autorização para ir ao Festival de Moscou. (risos). Se eu tivesse a Warner na mão, não compraria filmes russos, entendeu? Não iam deixar comprar o russo. A gente tinha acertado ir para o Festival de Moscou, mas não tinha idéia de comprar muita coisa por lá. JORNAL DA ABI – ISSO EM QUE ANO?

Roberto Mendes – Em 1986. A Era Gorbachev. Eu era co-produtor de um filme do Zelito. Além de comprar filme, a gente estava levando um filme em competição. Era Avaeté, que foi produzido, na verdade, em 1982, eu não era nem Superintendente da Globo Vídeo. Mas ficou demorando e acabou entrando somente no festival de 1986, em Moscou. Ganhou um prêmio, Prata. E em graninha, tinha “dindim”. JORNAL DA ABI – ENTÃO, O LANÇAMENTO DOS FILMES DO EISENSTEIN NÃO ERA SÓ IDEOLÓGICO?

Roberto Mendes – Eu queria. Eu não sabia se a gente ia chegar a essa autorização. Mas eu fui para Moscou querendo comprar. O fato de não ter a Warner facilitou muito. JORNAL DA ABI – NAQUELE MOMENTO DO MERCADO, LANÇAR FILMES DO EISENSTEIN NÃO ERA UMA LOUCURA?

Roberto Mendes – Era uma loucura se você pensar só no Eisenstein. Mas, por exemplo, houve uma coisa que fez um sucesso danado. As óperas russas foram um sucesso. Vendia “sell-thru”. Fazia fila de gente no lançamento das óperas para pessoa física comprar na Globo Vídeo, ali em Botafogo (no escritório da Globo

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Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

ALDO DE LUCA

são de Los Angeles. A gente foi negociar o licenciamento com a Warner, e não conseguiu. Quando a gente chegou perto de uma negociação, a Warner pediu uma coisa que o João Roberto não quis ceder – e eu acho que ele tinha razão –, que era vincular no contrato de licenciamento para Globo Vídeo um anúncio de lançamento na TV Globo. Quer dizer, anunciar na TV Globo um lançamento da Warner no licenciamento... O João não quis, e acho que ele tinha razão. Primeiro porque ele estava mexendo com duas empresas dele, de tamanhos muito diferentes. E, por um licenciamento da Globo Vídeo, ele não queria vincular um compromisso de anúncio para a Warner. Embora eu, na verdade, estivesse torcendo para um “sim”. Quando a Warner criou isso, e conversando por telefone com o João Roberto, ele disse: “De jeito nenhum. Isso não pode entrar no contrato”. E a Warner disse não! Eu disse: “João Roberto, eles não vão querer. A gente está indo daqui direto para o Festival de Moscou e vou comprar filmes russos, posso?”. “Pode”. Então, fomos para Moscou, eu e o Zelito.

ACERVO FRANCISCO UCHA

Macsuara Kadiweu e Zelito Viana na festa de lançamento de Avaeté - Semente da Vingança. Ao lado, Walter Hugo Khouri na frente do poster de seu filme, As Amorosas.

Vídeo situado na Praia de Botafogo). Era impressionante. As óperas russas fizeram sucesso e os clássicos russos deram a imprensa, deram boa imprensa. Deram prestígio. Vinha muito coisa ruim, mas vinham os clássicos, como Quando Voam As Cegonhas, ganhador da Palma de Ouro em Cannes. É o normal. A curiosidade desses prêmios, que eu queria contar, é que foram criados no mercado diversos deles. Quando a Warner finalmente chegou ao Brasil, a Globo Vídeo já estava estabelecida, e resolveram dar um prêmio de Melhor Copiagem. Como a Warner não tinha ainda lançado grandes filmes, resolveram dar esse prêmio para a Warner. Eu não falei nada, fiquei quieto. Mas quem fazia a gravação dos filmes da Warner era a Globo Vídeo. A Warner gravava no laboratório da Globo Vídeo. Então, quando você dava um prêmio de Melhor Copiagem para a Warner, na realidade o prêmio era da Globo Vídeo. JORNAL DA ABI – FOI UMA MANOBRA PARA DAR UM PRÊMIO PARA A WARNER...

Roberto Mendes – Porque não tinha jeito, a fita mais vendida era da Globo Vídeo. “Ah, Carnaval não pode, é só longa metragem...” Mas Isto é Pelé vendeu mais do que todo mundo. E, cá pra nós, houve muita coisa boa que a gente lançou, de filme americano independente, vários filmes muito bons. Muita coisa boa que a gente conseguiu dos independentes americanos, da Embassy, da Orion, os médios, que tinham um bom catálogo. JORNAL DA ABI – E A BRIGA CASEIRA COM A SOM LIVRE?

Roberto Mendes – Isso não teve muita discussão... Eu não fui, na verdade, ouvido. Eu estava com o João Roberto toda semana. Esse último período de um ano foi muito chato. É o que eu digo: ninguém merece brigar seis horas para conseguir trabalhar duas. Mas a gente conseguiu manter a coisa. Até que o João Roberto me chamou e disse que ia juntar as duas empresas. Ia ficar como Som Livre, se eu não

queria continuar lá. “De jeito nenhum”, respondi. Então, fui demitido. Sumariamente se demitiu a diretoria inteira da Globo Vídeo. Isso já em 1989.

do. O trabalho que a Globo Vídeo fez com 300 filmes brasileiros — está longe de ser a totalidade dos filmes — ficou para a História. São 300 filmes masterizados, copiados. É um trabalho.

JORNAL DA ABI – O PROCESSO DE EXECUÇÃO FOI RÁPIDO.

JORNAL DA ABI – ELES SE PAGAVAM?

Roberto Mendes – Foi. Muito rápido. Acabaram completamente com a Globo Vídeo. Eu disse para o João Roberto, era um caminho completamente inverso de tudo. As empresas americanas já haviam separado o vídeo das produtoras, dos estúdios, e nós vamos voltar para a

Roberto Mendes – Sem dúvida se pagavam. Qualquer filme em VHS que vendesse 500 cópias se pagava. Nem todo filme brasileiro vendeu 500, mas vários venderam bem mais que isso. O Isto é Pelé, logo no início, vendeu mais de dez mil. E nossa equipe de venda não era mal remu-

“Houve vários produtos que não conseguimos lançar. O mais famoso foi o Rock in Rio, que já estava pronto para a pré-venda e empacou nos direitos.” música? Vai juntar o vídeo com a música? São coisas completamente diferentes, são mercados diferentes, é outra coisa! Eu argumentei isso na época. Mas, hoje, entendo perfeitamente a decisão do João Roberto, que era entregar esse peão que está aqui incomodando e manter o tablado funcionando. Não era a Globo Vídeo que estava sendo liquidada, éramos nós! Pois a Globo Vídeo ia ser continuada com a Som Livre. Então, “mantém o tablado legal, bonito, todo mundo equilibrado, e tira esse pessoalzinho da Globo Vídeo que fica fazendo filme brasileiro, filme russo, tira esses comunas daí!”. JORNAL DA ABI – E O PESSOAL DO CINEMA BRASILEIRO, IDENTIFICOU ISSO?

Roberto Mendes – Sem dúvida. Eles valorizaram muito a atuação da Globo Vídeo, não tenho nenhuma dúvida. Eu ouvi elogio de Cacá Diegues, do Barretão, de todo mun-

nerada, não. Tudo o que eles ganhavam era comissão. E todos gostavam muito. Vendiam bem.

gravadoras, e a Som Livre estava lá, não avançamos. Foi uma reunião surreal, porque eu fiz questão de solicitá-la e disse que ia passar trechos do produto que eu já tinha pronto. Passei. Duas gravadoras disseram: “A gente queria mais tempo do nosso astro”. Tudo bem, isso é negociável. Veja que eles ficaram interessados! Mas, depois, não liberaram os direitos. JORNAL DA ABI – QUEM NÃO LIBEROU?

Roberto Mendes – As gravadoras. Como são vários astros, várias bandas, olha a confusão que ia dar isso. Na música, os direitos são por volta de 8 a 12%. E no vídeo, vai a 25%. Então, eu tinha folga para negociar. Mas não agarrou aí, agarrou numa coisa que eles não queriam misturar vídeo com a gravadora. E lá fora, sobretudo, a gravadora estava sendo escanteada, o vídeo acabou subindo e as gravadoras foram ficando para trás. Separaram-se de todas. Só aqui no Brasil foi feito o inverso. Mas a gente tinha folga para pagar direitos. Era um problema deles, ideológico, de não querer misturar uma coisa que era direito deles, gravadoras, e que ia sair em vídeo. JORNAL DA ABI – QUANDO SURGIU A GLOBO VÍDEO, TODOS ACHAVAM QUE SERIAM LANÇADOS COMPACTOS DE PROGRAMAS DE SUCESSO.

JORNAL DA ABI – DE ALGUNS ANOS PARA CÁ, HOUVE UMA RETOMADA DA COMERCIALIZAÇÃO DE ALGUNS DOS PRODUTOS DA

GLOBO, PRINCIPALMENTE SÉRIES ANTIGAS.

Roberto Mendes – Isso dentro do selo que ficou dentro da Som Livre, que não é mais nem Globo Vídeo, é Globo Marcas. JORNAL DA ABI – MAS NA SUA ÉPOCA ERA DIFÍCIL LANÇAR PRODUTOS DA TV GLOBO...

Roberto Mendes – É que era preciso regularizar os direitos. Esse era o maior problema. Porque o direito dos atores, dos autores das novelas, isso era complicadíssimo. Houve vários produtos que a gente não conseguiu lançar. Um, o mais famoso, era o Rock in Rio, que já estava pronto para a pré-venda e empacou nos direitos. Numa reunião com as

UM CASO ESPECIAL

NÃO TEM

TANTO PROBLEMA COM DIREITOS...

Roberto Mendes – O que vai ser gravado agora não tem. Mas se a gente pegasse mais atrás, de dois, três anos, já era problema. A gente lançou uma minissérie da Globo logo no início... JORNAL DA ABI – MAS FOI POUCO PELO GLOBO TINHA.

PODER DE FOGO QUE A

Roberto Mendes – Essa experiência da Globo Vídeo com os programas da Globo era uma compactação. Porque a gente mandava as coisas para o Banco do Brasil, para a Petrobrás, tudo compactado. Um jogo inteiro de futebol tinha 45 minutos – só iam os melhores momentos. Porque, na verdade, num jogo de futebol, só tem 45 minutos de jogo mesmo. De deixar a bola rolando. É


FRANCISCO UCHA

Durante um intervalo nas gravações da novela Sinhá Moça, nos estúdios da Herbert Richers, e no dia de seu aniversário, Lucélia Santos recebeu, para uma entrevista, a equipe do Jornal da Globo Vídeo que lhe deu flores em sua homenagem.

Nos primeiros anos, as capas dos filmes da Globo Vídeo tinham como padrão a cor preta. Acima, a lendária “ficha de chapeira” utilizada nos primórdios das videolocadoras.

só aquilo mesmo. Isso também acontecia com minisséries, com novelas. Novelas de 160 capítulos ficavam com trinta. E era perfeito de ver, o pessoal adorava. Hoje é simples. Nos Estados Unidos você pega por satélite a programação da Globo Internacional. Naquele tempo, não. Um programa da Globo em Paris, no Banco do Brasil, fazia um sucesso que você não pode imaginar. Como em Nova York, como em qualquer lugar, para brasileiros, que tinham um sentimento de que existia uma boa programação no Brasil e eles não podiam ver, só viam quando chegavam aqui. JORNAL DA ABI – NÃO SÓ PELO FATO DE A PROGRAMAÇÃO DA GLOBO SER DE QUALIDADE, MAS PELA IDENTIFICAÇÃO, DE ENCONTRAR-SE COM O BRASIL VIA UM PROGRAMA DE TELEVISÃO.

Roberto Mendes – Isso era o argumento maior com que eu brigava na Globo, que era sobre o filme brasileiro. O cinema brasileiro é o brasileiro se olhando no espelho. Quando você vê um brasileiro, morando no exterior, é diferente. Ele passa a gostar do filme brasileiro. JORNAL DA ABI – POR ISSO UM CANAL COMO CANAL BRASIL FAZ TANTO SUCESSO.

O

Roberto Mendes – Pois é, está dando lucro. Alto lucro. Tive umaconversa com o Roberto Marinho que foi gozadíssima. Que eu acho o primor do capitalista que ele era. Eu estava vindo de Milão, de um festival importante para escolher filmes, e existia ainda a TV Roma na Itália. Aí fui lá ao Roberto Irineu para falar para ele o que tinha comprado, fazer um relatório do festival. Terminou a reunião, eu saí, e ele mandou me chamar ainda antes de eu sair, e falou: “Meu pai está aqui e gostaria de almoçar com você”. Então, fui almoçar com o Doutor Roberto. Logo no início Roberto Marinho pegou na minha mão e falou assim: “Meu filho, eu quero ajudar a sua empresa, o que posso fazer pela sua empresa?”. A ‘minha’ empresa era a empresa dele, é claro. Aí eu comecei um discurso ideológico, que a gente gostaria de mais apoio da TV Globo na publicidade da Globo Vídeo, que gostaria de uma publicidade maior contra a pirataria, que a gente precisava brigar para

diminuir os impostos, naquele tempo ainda tinha IPI e ICM sobre a fita de vídeo... A resposta dele foi uma surpresa para mim, porque a minha colocação deve ter sido uma surpresa para ele. Ele disse: “Não, meu filho, eu quero ajudar só a sua empresa, não o mercado todo”. Eu achei isso o fino do empresário, que pensa nele próprio, sabe? (risos). JORNAL DA ABI – A PIRATARIA JÁ INCOMODAVA NA ÉPOCA?

Roberto Mendes – Incomodava. A pirataria era em cima dos produtos que não tinham chegado ainda. A Warner, a Paramont e a Universal não tinham chegado inteiras. Então, pirateavam-se os filmes americanos, e isso atrapalhava demais a Globo Vídeo, porque estávamos trabalhando com produto legalizado, pagando os impostos todos, e a pirataria vinha com os filmes de Hollywood. Por exemplo, o Suplicy, o irmão do Senador, inventou no Brasil um negócio que era o videoclube, que não era uma loja para alugar vídeo. Cada sócio do videoclube entregava duas fitas originais, compradas nos Estados Unidos ou onde fosse, e tinha direito a tirar duas fitas por semana, dos outros. Era uma troca. Com isso ele montou uma rede enorme. O Videoclube do Brasil era grande na época. Muito em São Paulo, mas também já tinha no Rio... Era uma potência. Num festival do Rio, em 1985, houve uma feira de vídeo montada no Hotel Nacional. A Globo Vídeo tinha um belo estande, e o Videoclube do Brasil também. Portanto, ele vivia da pirataria, porque, na verdade, isso era pirata. Não pagava direitos a ninguém. Recebia os vídeos e aquilo rodava para todo mundo. Naquele tempo as locadoras não eram muito grandes. E o Videoclube tinha dificuldades da fiscalização, porque o acervo era particular, uma troca entre amigos. E ele ganhou muito dinheiro. Quando estava bem grande, em 1985, eu estava montando um negócio que era para a Globo Vídeo ter uma rede de locadoras. Tinha até nome, que depois a

Globo até usou. Chamava-se Vídeo Show, que hoje é um programa. Isso estava em processo, e era moderníssimo. Mas tinha uma oposição muito grande, tanto do Roberto Irineu quanto do João Roberto, que, quando eu fui apresentar o projeto, disseram que a Globo não tinha empresas que lidam direto com o consumidor. Mas era uma alavanca fantástica para os produtos que a gente tinha. Com isso a gente ia ter a possibilidade de ter mais publicidade na Globo, além de estabelecer uma enorme rede. Contratamos um técnico de informática – naquele tempo a informática estava engatinhando, mas já tinha leitura ótica. Todo o processo da Vídeo Show era moderníssimo. Todas as fitas iam ter um código de barras, o aluguel era visto na leitura ótica, e tinha um negócio que não existia na época, que era o sujeito pagar por mês no cartão de crédito – e entenda que a gente está falando de um período inflacionário. Mas o sujeito pagava com cartão o direito de ver dez filmes por mês. Era bem moderno mesmo. E já ia dar o start, mas a Globo disse que não podia fazer varejo, e eu sou obediente. Mas, nesse festival, eu encontro com o Suplicy e digo a ele: “O Videoclube do Brasil está indo bem, é um bom negócio. A gente vai entrar nisso, vai se chamar Vídeo Show e vai ter 50 lojas no Brasil de saída”. E todas as lojas dele eram 50. Ele ficou mudo e branco. Ele não conseguiu trocar uma palavra, parou o assunto. Travou. Eu

fico imaginando o que é um empresário que deve ter feito o sacrifício dele chegar onde chegou e aí vem a gigante da Globo querendo competir com ele. Por sorte dele, o projeto não saiu. JORNAL DA ABI – VOCÊ ACHA QUE COM ESSE TIPO DE ORGANIZAÇÃO GIGANTESCA E, TALVEZ, BUROCRÁTICA E LENTA NAS DECISÕES, A GLOBO NÃO DEIXAVA DE GANHAR MAIS DINHEIRO?

Roberto Mendes – Sem dúvida. Com o tambor que a Globo tem, que é a “Globona”, ela é imbatível em qualquer setor. Eu fico imaginando por qual razão a Época não é ainda líder de mercado. Não consigo entender. Se a Globo pisar no acelerador, é evidente que a Época vira líder do mercado de revistas semanais. Eu fico achando que, talvez, eles não queiram, não convenha. A hegemonia já é tão grande, que se a Globo autorizasse fazer a Vídeo Show não tenho dúvida de que aquilo ia ser um sucesso imediato. JORNAL DA ABI – E A PARTIR DA SUA SAÍDA DA GLOBO?

Roberto Mendes – Quando acabou a Globo Vídeo, a saída do Superintendente Roberto Mendes saiu na Veja. A primeira grande notícia saiu na revista. Aí eu fui criar a minha empresa, a Sagres. Como saiu a diretoria inteira, no início a gente fez uma empresa, que não chegou a ser empresa, mas era uma sociedade, Zelito, eu e o José Renato. Mas, logo em seguida, o irmão do Zelito, o Elano, o chamou para fazer uma empresa de produção mesmo, e ele saiu. Em seguida, o José Renato foi chamado para a Fundação Roberto Marinho, para cuidar dos projetos que ele já fazia na Globo Vídeo, que era o Vídeo Escola, o Globo Ciência, entre outros. Então, ficamos eu e Ormy (Giordani Brandão), que era a minha secretária e minha sócia, uma grande figura, que me acompanhava desde o Meb. Em 1965, Ormy assinou a minha primeira carteira profissional. Depois, quando a gente estava na MPL, que tinha um braço empresarial para

sustentar a coisa... Não sei se convém abrir essas coisas... JORNAL DA ABI – VOCÊ É QUE SABE.

Roberto Mendes – Não me incomodo. Acho que a ditadura não volta, não é? A MPL tinha uma empresa, chamada Intrade, onde eu fui trabalhar. No exterior, eu trabalhei nessa empresa, que fazia importação e exportação, com o objetivo de alimentar o movimento sindical. A Ormy também saiu do Meb e foi trabalhar lá, e foi minha secretária na Intrade, aqui no Brasil. Quando eu estive exilado, ela ficou como minha procuradora aqui. Quando eu fui para a Globo Vídeo, em seguida eu chamei a Ormy. Uma grande figura, organizadérrima. Casar com a Ormy devia ser uma tragédia... Ô mulher organizada, a danada!... Pena que já nos deixou. JORNAL DA ABI – COMO FOI O PROJETO GLOBO VÍDEO?

DO JORNAL DA

Roberto Mendes – O jornal vinha de uma necessidade de fazer conhecidos os lançamentos da Globo Vídeo, exatamente pela ausência que a tv representava para a gente, que queria muito mais anúncios e não conseguia. Então, partimos para outro meio. A opção chegou para mim pelo Zelito, já tudo acertado, eu só decidi no orçamento. JORNAL DA ABI – EM O GLOBO VOCÊS TAMBÉM NÃO TINHAM ESPAÇO?

Roberto Mendes – Nenhum espaço. Era pior do que na tv. O Doutor Roberto, quando pedia à Globo Vídeo para fazer alguma coisa para ele, do ponto de vista de imagem, ele dizia assim: “Lembre-se que tem que ser preços históricos”. Preço histórico eu sempre imaginei que fosse lá em baixo. (risos) E a gente fazia, e fazia várias coisas para ele. Mas, o Jornal da Globo Vídeo chegou a rodar duzentos mil exemplares. Era uma ótima tiragem, mesmo para hoje. Era uma necessidade de a gente estar presente no mercado, de falarmos com o cliente da locadora. Inovamos nisso. Não tinha outro jornal do gênero. E os jornais do segmento não eram importantes na época. Na verdade, o público-alvo do jornal não eram as locadoras. O Jornal da Globo Vídeo se destinava à ponta. Ao consumidor da locadora, que ia alugar um filme e ganhava o nosso jornal. Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

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Durante uma feira de negócios do mercado de homevideo, no estande da Sagres, Ormy Brandão (com a mão no queijo) sorri enquanto observa Roberto Mendes (parcialmente encoberto à direita) conversando com um cliente. Segurando um copo, ao centro, o jornalista Paulo Gustavo Pereira.

JORNAL DA ABI – DUROU QUANTO?

JORNAL DA ABI – FALE UM POUCO MAIS DA SAGRES...

Roberto Mendes – A Sagres manteve a linha de lançar filmes brasileiros e clássicos estrangeiros. Foi uma independente heterodoxa, porque ela não seguia a linha de ninguém. Seguia o compromisso de lançar filmes brasileiros. Foi uma empresa ótima. Depois entrou num certo declínio, e foi quando entrou em cooperação com a RioFilme. Comecei a lançar os filmes com a RioFilme. Foi um grande sucesso também. Teve muita coisa de sucesso ali. Até que comecei a perceber que distribuir para locadora não ia mais dar certo, eu estava caminhando num negócio que demorou um pouco mais do que imaginei. Aí peguei o filão de distribuir para televisão, que achei mais confortável. Acabou. A Sagres chegou a ter trinta e tantos funcionários. Para uma empresa pequena era uma coisa enorme. Fora os vendedores, que não eram funcionários, eram comissionados no Brasil inteiro. Era um negócio bem complexo manter a Sagres do jeito que estava, porque o mercado estava se juntando para fazer tudo em Manaus, e a gente não fazia. JORNAL DA ABI – A IMPRENSA DEU ALGUM APOIO TANTO À GLOBO VÍDEO QUANTO À SAGRES?

Roberto Mendes – A gente tinha algum apoio de vez em quando. Normalmente a imprensa apoiava os lançamentos da gente. JORNAL DA ABI – ERA DIFÍCIL?

Roberto Mendes – Não, não era. Quando a gente lançou a coleção dos clássicos eróticos, por exemplo, foi uma beleza. A Sagres lançou no Brasil O Império dos Sentidos, Hiroshima Mon Amour... A gente fez belos lançamentos. Seguiu um caminho muito bom, em cima do cinema brasileiro. Quando começou o acordo com a RioFilme, as outras distribuidoras começaram a perceber que o cinema brasileiro podia render. Então não queria entrar numa competição aberta com um pessoal que estava seguindo um caminho que eu já tinha trilhado. JORNAL DA ABI – E O CINEMA ITALIANO?

Roberto Mendes – Lancei muitos filmes italianos. Na Globo Vídeo e também na Sagres, inclusive western spaguetti, que depois virou cult. Ainda na Globo Vídeo comprei muitas produções de uma empresa

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chamada Surffilm, do Máximo Viglia. Em Cannes, estive com Franco Nero; encontrava muita gente lá. Tinha comprado muitos filmes com o Franco Nero. Eu ia todo ano a esses festivais comprar filmes: Cannes, Mifed, a Los Angeles, no American Film Market.

ACERVO FRANCISCO UCHA

Roberto Mendes – Um pouquinho mais de um ano.

JORNAL DA ABI – E AS FEIRAS NO BRASIL?

Roberto Mendes – Ah, grandes feiras. No Rio Grande do Sul, por exemplo, foi onde a gente lançou O Império dos Sentidos. Vendeu muito bem! Sempre gostei muito dessas feiras. A Sagres ia bem nelas. A Sagres parou de lançar vídeo em 2003, 2004, quando vislumbrei que não havia como manter um segmento de filmes brasileiros sem filmes maiores para apoiar. Então saí do mercado, parei de lançar e passei só a vender para televisão, que é o que faço até hoje. Vendo muito para o Canal Brasil, TV Câmara, TV Senado. E agora estou vendendo um produto incrível, um produto chileno, A Independência Inconclusa, que é um documentário sobre a independência da América Latina, que não foi concluída. Tem entrevistas incríveis. E, de vez em quando, eu produzo um ou outro filme. Produzi um no ano retrasado, Sambando nas Brasas, um docudrama dos anos 1950, muito interessante. JORNAL DA ABI – VOCÊ FEZ OUTRAS PRODUÇÕES?

Roberto Mendes – Fiz Avaeté, A Maldição do Sanpaku com Patrícia Pillar... Mas nesse Sambando... eu fui ator por 16 segundos. (risos) E agora estou produzindo outro filme. Chama-se Entre Anjos e Demônios, dirigido pelo Eliseu Ewald. É um filme-cabeça, sem nenhuma pretensão comercial, mais para discutir as coisas do cinema. É a história de um diretor que está ficando cego e que sai do oftalmologista, entra no elevador e, na descida, revê a vida dele, os filmes que já fez, os filmes que está fazendo. É um filme muito interessante. A imprensa vai gostar, eu acho. O Eliseu fez algumas coisas interessantes. Ele fez um documentário sobre o Nélson Gonçalves que é uma beleza. JORNAL DA ABI – E TEM APOIO?

Roberto Mendes – Não. O filme grande que eu gostaria de fazer e não consegui captar é Quem Ama Não Mata, que é a história da Ângela Diniz e o Doca Street, e que acabei não tendo apoio suficiente e abandonei completamente. Tinha roteiro pronto, elenco, tudo. Débora Secco ia fazer a Ângela. Isso antes da Surfistinha...

O que eles falam do Roberto Pioneirismo, ousadia e criatividade. Essas três palavras parecem sintetizar o perfil do profissional Roberto Mendes, na visão de amigos e colegas de jornada. Nos relatos a seguir, feitos exclusivamente para o Jornal da ABI, personalidades dos setores da cultura destacam a contribuição dada pelo ex-Diretor da Globo Vídeo para o mercado nacional de entretenimento em casa, bem como para a divulgação maciça do então desacreditado cinema nacional.

LUIZ CARLOS BARRETO CINEASTA

“O que há de mais marcante no profissional Roberto Mendes é seu perfil competente, criativo e empreendedor. Ele teve, de verdade, importância fundamental na estruturação do mercado de vídeo no Brasil, sobretudo nos anos 1980. Roberto foi pioneiro na distribuição e comercialização do homevideo, provando que o filme brasileiro tinha, sim, força no mercado. Na Globo Vídeo, em especial, montou uma excelente e moderna estrutura com métodos dinâmicos de atuação, desde o processo de produção das cópias, passando pelo marketing e chegando à distribuição”.

PAULO JOSÉ FERREIRA

importante distribuidora do País. Apaixonado por cinema, Roberto foi o responsável pelo lançamento de grandes clássicos do cinema mundial, e certamente o primeiro dirigente a investir de verdade na distribuição de produções nacionais. Muito provavelmente seja um dos grandes responsáveis por ter aberto esse caminho para o produtor nacional, que hoje tem no vídeo uma das grandes fontes de financiamento de suas produções. Buscou tornar a Globo Vídeo, também, uma grande distribuidora das produções dos estúdios de Hollywood. Infelizmente, não conseguiu o necessário apoio financeiro da Rede Globo para viabilizar a estratégia que, anos depois, o próprio mercado viria a provar correta. Até hoje, não raramente, identifico em meu comportamento profissional traços da escola Roberto Mendes: a tolerância, o agir com estratégia e, ainda que com limitações, a capacidade de desnudar a alma alheia. A seus colaboradores, sempre deu e cobrava um desempenho com autonomia. Seu lado castrador, me parece, se restringia a outro rebanho, o de sua fazenda, cujos órgãos reprodutores ele mutilava com grande desenvoltura. Aprendi muito com ele. E sinto falta de seu convívio.”

DIRETOR DO JORNAL DO VÍDEO

“A importância de Roberto para o mercado de vídeo foi, de fato, grande. A personalidade envolvente, a simplicidade e a criatividade, aliadas à força da marca que representava, logo o destacaram entre os principais dirigentes do mercado. Participou ativamente da União Brasileira de Video-UBV, através da qual colaborou muito não só no combate à pirataria, como na criação de práticas comerciais que contribuíram para o deslanche inicial do mercado. Com ele, a Globo Vídeo tomou uma nova dimensão. De uma pequena estrutura inicialmente restrita à distribuição em vídeo de produções da TV Globo para brasileiros que residiam no exterior, determinou o crescimento para a então mais

CELSO SABADIN PUBLICITÁRIO, JORNALISTA E CRÍTICO DE CINEMA

“O traço mais marcante de Roberto Mendes como empresário de audiovisual é o seu amadorismo. E não me entendam mal. ‘Amadorismo’ é a qualidade daquele que ama, e Roberto Mendes é um apaixonado pelo que faz. Fala de cada filme como se fosse um filho, seus olhos brilham ao falar de cinema. Completamente diferente do que vemos hoje na maioria do mercado: frios executivos profissionais, sem nenhuma paixão (nem conhecimento) pelo cinema, que chamam filme de ‘produto’, nunca vão ao cinema, a acham que Truffaut é algum tipo de chocolate. Roberto Mendes, pelo contrário, põe o coração em tudo o que faz, e isso

faz toda a diferença. Na época da Globo Filmes, teve a ousadia de colocar nas prateleiras das videolocadoras fitas russas, brasileiras, clássicas, “miúras” (como diz o mercado, sobre filmes difíceis) e acabou com isso criando um novo nicho para o consumidor brasileiro de ‘home entertainment’. Ele jamais se curvou às facilidades simplistas de um mercado que só queria comédias e filmes de ação. Pelo contrário, provou que existe, sim, espaço para uma cultura mais elaborada dentro do consumo brasileiro. E por isso mesmo se transformou num dos mais importantes pioneiros da nossa indústria de entretenimento e cultura. Aproveito para mandar um recado para o Roberto. Seguinte: o Vasco já ganhou a Copa do Brasil. Deixa o Brasileirão pra nós, corintianos...”

ZELITO VIANA CINEASTA

“O traço mais marcante da personalidade de Roberto Mendes é sua simpatia, aliada a uma capacidade de estar bem em qualquer ambiente. Isto o faz um grande ‘vendedor’ no sentido amplo do termo. Seu papel na Globo Vídeo foi decisivo, pois era o nosso chefe. Eu era o Diretor de Home Video e todas as loucuras por mim propostas eram não só apoiadas, como melhoradas pela atuação do Roberto. Como mensagem para ele deixo apenas meu carinho, em nome de uma amizade que já se estende por mais de 30 anos.”

OCEANO VIEIRA DE MELO DIRETOR DA VERSÁTIL HOME VÍDEO E FUNDADOR DO JORNAL DO VÍDEO

“Ele foi o primeiro executivo a trazer para o mercado de vídeo legal os filmes dos grandes diretores do cinema europeu, assim como lançou as primeiras obras-primas do nosso cinema, diversificando o padrão da oferta de produtos existentes no mercado. Devemos muito ao Roberto Mendes, que nos ensinou, com sua sabedoria, a amar o verdadeiro cinema, o cinema de arte e de autor.”


FRANCISCO UCHA

LAN

Uma paixão carioca Um dos maiores caricaturistas do Brasil, Lanfranco Aldo Ricardo comprova nesta entrevista que, além do desenho, domina as palavras. Revela-se por inteiro: Alegre, apaixonado pelo Rio, flamenguista por promessa, expõe-se em todas as suas cores, formas e idéias. POR PAULO CHICO E FRANCISCO UCHA Dizer que o bom humor é traço marcante de Lan beira a obviedade. Apesar de ter passado pelas charges políticas, foi mesmo no campo das caricaturas, em especial as que misturavam o gingado das formas das mulatas cariocas à topografia sinuosa da cidade, que este italiano se notabilizou no Brasil, Uruguai e Argentina. E por onde mais teve a oportunidade de passar. Além, muito além das pranchetas de desenho, o elevado estado de espírito de Lan reflete-se no seu bom papo e na sua memória quase prodigiosa. Na capacidade de rir das coisas e de si mesmo. De fazer rir. E de indignar-se. Foi com ótima disposição que Lan recebeu a equipe do Jornal da ABI numa fria manhã de sábado, em sua casa. Na verdade, um sítio em Pedro do Rio, na região serrana do Rio. Por mais de três horas, falou de tudo. Aliás, nos avisou logo de cara, antes de apertarmos o play do gravador. “Olha, vocês podem perguntar sobre tudo. Podemos falar de qualquer coisa, até de sacanagem. Eu adoro uma sacanagem.” A entrevista, apesar dos muitos momentos de brincadeiras e piadas, transcorreu mais séria do que se poderia imaginar. Lan é homem de opiniões fortes, posições firmes. De uma transparência absoluta. De um vocabulário, por vezes, por demais in-

cisivo. Optamos, aqui, por conservar no texto todos os palavrões por ele pronunciados. E, curioso. Nem por isso, deixa de ser um gentleman. Conflitos familiares, o início da carreira de desenhista, o papel fundamental das mulheres em sua vida, azarações e conquistas. Ditadura militar, perseguições e exílio. Preconceitos. Política nacional e internacional As passagens pelos diversos veículos de imprensa e os percalços na carreira. O relacionamento com os colegas de profissão. A torcida fiel pelo Flamengo e pela Portela. Doenças, limitações da idade e, claro, a paixão pelo Rio. Tudo isso está nesta entrevista. Uma conversa agradável e profunda. Reveladora. Quase uma terapia. Ficou mesmo a impressão de que, além de ser apaixonado pela função de dar formas e cores ao papel em branco, Lan também gosta de falar. De dar peso e sentido às palavras. E, acredite, sabe fazê-lo. Para nós – e, creio, para você, leitor – as histórias que ouvimos e reproduzimos a seguir nos arrancaram risos, provocaram surpresas, cativaram admiração. Lan também parece ter gostado. Ao final, estava estampado em seu rosto que sim. Sem rodeios ou meias-palavras, o senhor dos desenhos revela-se assim:

JORNAL DA ABI – VAMOS FALAR UM POUCO DA SUA INFÂNCIA NA ITÁLIA. NÃO HÁ MUITAS LEMBRANÇAS, CERTAMENTE, POIS VOCÊ VEIO PARA O BRASIL COM APENAS QUATRO ANOS. MAS, O QUE HÁ DE DADOS SOBRE ESSE PERÍODO?

Lan – Tanto meu avô paterno, quanto meu avô materno, eram industriais – como ocorria com toda família burguesa italiana. O primeiro fundou duas fábricas, em Montevarchi, que até hoje são conhecidas como lugares onde são fabricados feltros para chapéus de primeira qualidade. Meu pai era músico, toda família burguesa italiana, também tinha pelo menos um artista ou padre. Primogênito, ele foi mandado para Florença, onde ficou como um oboísta de primeiríssima qualidade, desde muito jovem. Quando Arturo Toscanini recorreu à Europa, onde foi buscar solistas, pessoal de metais e violinistas para formar a orquestra do Metropolitan de Nova York, indicaram meu pai, Aristides. Mas, ele não teve como se apresentar, pois tinha apenas um ano de casado. O sogro dele disse, ‘Vá trabalhar na fábrica de seu pai, para casar com minha filha!’. Além disso, na Itália é muito forte o matriarcado. Quem manda em casa é a mulher, não há dúvidas. A minha avó paterna era

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JORNAL DA ABI – ENTÃO A ZEZÉ FOI FUNDAMENTAL NA SUA FORMAÇÃO?

Lan – E como! E tem uma história curiosa. Quando fui contratado pelo Samuel Wainer para trabalhar na Última Hora paulista, conheci, por acaso, a filha dela. Sem que eu soubesse disso. Até que um dia, ela me trouxe um retrato para eu ver. E, veja só, éramos eu e meu irmão, fantasiados de pierrô, num Carnaval em São Paulo. Pensei, puxa, só quem pode ter essa fotografia é a Zezé. E claro que era ela! Fui à casa dela. Na parede estava colada uma ilustração do time do Corinthians, pois o marido dela era corintiano doente, e o desenho era meu! Atrás tinha uma dedicatória, onde estava escrito lembrança dos queridos meninos, Franco, como ela me chamava, e Zezinho, meu irmão, Giuseppe. Depois ela me contou que eu dava muita dor de cabeça quando criança, pois fugia de casa sempre, no bairro de Pinheiros. Ia para o morro brincar com os molequinhos. (risos) JORNAL DA ABI – PARTIU MESMO DA ZEZÉ A ADMIRAÇÃO PELAS MULATAS?

Lan – Sim. E bonito também foi meu pai, pois ele viu que fiquei fã dos crioulos, dos mulatos, dos negros. Em 1931 fomos morar no Uruguai, pois meu pai foi convidado a integrar a Orquestra Sinfônica de Montevidéu. Em 1933, com oito anos de idade, num colégio italiano, houve

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REPRODUÇÃO WIKIPEDIA

uma ‘fera’. E a minha mãe, Irma Vaselli, era uma ‘ferinha’. (risos) Então, você pode imaginar como era essa relação... Como papai não pode aceitar o convite de ir trabalhar em Nova York, por intervenção do sogro, minha mãe disse a ele: “Na primeira proposta que a gente receber, vamos embora!”. Só para se separar da sogra, com certeza, não é? Para ela não continuar mandando na casa do filho (risos). Aí viemos para São Paulo. E entra em cena uma figura muito especial. Aliás, vou te dizer uma coisa: as mulheres, tanto na parte profissional, quanto na sentimental, tiveram grande influência durante toda a minha vida. Sempre houve um acidente de percurso, no qual elas motivavam as mudanças radicais, as guinadas na minha vida. A primeira delas foi Zezé; uma mulata que foi minha babá... Certa vez um psiquiatra me perguntou a razão da minha fixação pelas figuras negras, pelas mulatas. Pois é, eu tive essa babá! Coloque-se na cabeça de um menino de quatro anos, loirinho, branco, que, pela primeira vez na vida, vê uma pessoa de cor. E essa mulher o trata com um carinho, com um amor maternal inesgotável. Pois papai e mamãe trabalhavam. E nós ficávamos com ela, que me fazia todos os gostos, como preparar deliciosasbalas de coco.

uma semana em que fui o melhor da classe. E o professor Mario Barbieri levava sempre o aluno de destaque para o Estádio Centenário, para ver um jogo. Esse era um prêmio. Ele me levou para assistir ao grande clássico uruguaio, Peñarol e Nacional. Fiquei torcendo pelo Nacional, por causa de Domingos da Guia, que começava sua carreira ali. E o Nacional ganhou por três a zero. Foi aí que conheci as famosas ‘do-

Guillermo Divito, dono da revista Rico Tipo, uma prestigiada publicação de humor, convidou Lan para conversar sobre trabalho e depois não o recebeu. Mais tarde Lan foi contratado pela maior empresa editorial da Argentina e nosso herói devolveu a gentileza ao ocupado editor.

tas coisas... Eu devo muito à Química. O meu professor dessa disciplina era tão nojento, tão feio, que motivou uma das primeiras caricaturas que fiz na vida. Todo estudante tem muitos desafetos, não é? Depois fiz do professor de Matemática, de Filosofia... Dentro de sala mesmo. Tive um trauma e não falo inglês até hoje. Vivíamos uma época de guerra – estou falando de 1942 –, e a Itália estava em conflito com os aliados, ainda associada a Hitler. Já estava num colégio do Estado lá no Uruguai, pois o italiano no qual eu estudava havia sido fechado por razões políticas. Estava na aula de Inglês, e a professora fez todo mundo se levantar em homenagem aos reis da Inglaterra. Eu não o fiz. Ela, então, me mandou ficar depois da aula, e me perguntou por qual motivo eu não me levantara. “Professora, a senhora é inglesa, eu sou italiano. Nós estamos em guerra. Faz algum sentido me levantar para homenagear os seus reis?”.

“Sou incapaz de fazer um desenho posado. Se você reparar, as minhas mulatas se mexem todas! Como eu sou um paquerador inveterado, quando olho uma mulher, logo elaboro as imagens.” mingadas’, jogadas de craque. Teve também neste mesmo ano a luta entre Joe Louis e Max Schmeling pelo campeonato mundial de pesos-pesados. Vinha com meu pai, ouvindo a luta num daqueles rádios que pareciam uma capelinha. O Max era alemão, mas eu torcia pelo Joe. Meu pai disse: “Que estranho, você é branco, e está torcendo por um negro”. Eu respondi: “Estou torcendo pelo negro porque gosto dele”. Ao que meu pai, me olhou e ensinou: “Vou respeitar sua opinião. Seja sempre assim! Nunca seja mentiroso! O fato de você ser branco não te obriga a torcer para o Max Schmeling”. Eu adorei! Foi uma lição de vida para toda a vida. E devo muito a Zezé, pois ela me ensinou logo de cara o quanto o preconceito é estúpido. Tanto que essa raça marcou para sempre o meu trabalho. Sempre que sou citado em palavras-cruzadas é assim: ‘Caricaturista das mulatas, com três letrinhas’... Lan! (risos) JORNAL DA ABI – EM QUE

MOMENTO O

DESENHO SE MANIFESTOU EM SUA VIDA?

Lan – Eu tenho que agradecer a Deus uma coisa. Na verdade, mui-

Resultado: no primeiro boletim, um monte de zeros, uma coleção deles, até em desenho! Meu pai, em casa, ao ver aquilo, me disse: “Olha, você pode até ter nascido burro. Mas tanto assim não é possível!” (risos). Aí, me transferiram para um colégio alemão, onde não se falava em política. O professor de Inglês neste colégio sempre me expulsava de aula, pois me pegava desenhando. Era com ele com quem eu menos me dava. Uma vez fiz a caricatura do diretor do colégio. Ele era tão magro que conseguia cruzar as pernas e, ao mesmo tempo, passar uma por detrás da outra. Eu tentava fazer isso o tempo todo e não conseguia (Lan, num esforço, tenta agora mais uma vez). Certa vez, um desses desenhos foi parar nas mãos dele. Meu professor de Filosofia, que era uma pessoa maravilhosa, pegou o desenho, olhou, olhou, e me disse: “Olha, você vem para a escola para aprender, não é para se divertir enquanto os outros estão prestando atenção na aula. Mas, veja bem, se você fizer um desenho meu um pou-

co maior do que esse, para eu dar de presente para a minha mulher, será uma maravilha!” (risos). E assim eu fiz! Era um cara sensacional! JORNAL DA ABI – TERIA SIDO ESTE PROFESSOR O SEU PRIMEIRO INCENTIVADOR?

Lan – Exatamente! Ele e o meu professor de Desenho, que era húngaro. Este segundo me dizia: “Franco, a partir de agora, você não vai acompanhar as aulas como os outros alunos. Você vai fazer as caricaturas de memória! Desenhar o diretor, os seus colegas, os demais professores... Enfim, pessoas que não estão na sua frente”. E eu perguntei, então, a razão daquilo. “A memória é a síntese! É uma impressão objetiva e subjetiva ao mesmo tempo. É isso que é a caricatura pura. Ela não é retrato”. Foi aí que começou a minha carreira, ainda que de maneira informal... Bom, eu ainda fiz vestibular de Arquitetura, entrei na Faculdade... JORNAL DA ABI – FAZER ARQUITETURA ERA UM DESEJO SEU OU UMA IMPOSIÇÃO DE SEU PAI?

Lan – Do meu pai, claro! Ele desaprovava essa história de desenho. Minha mãe me dava força, e meu irmão, então, nem se fala! Meu pai perdia de dois a um, no placar lá de casa! (risos) Mas era meu grande companheiro! Íamos juntos ao Estádio Centenário, tanto que fui me familiarizando com aquilo, até que comecei a fazer desenhos dos jogadores, com os lances, com os dribles, até que passei a desenhar tudo aquilo de memória. E, assim, eu sempre começava a desenhar pelas páginas esportivas... Foi assim que um amigo meu levou meus desenhos para o El País, de Montevidéu. Mas, antes disso, já havia feito alguma coisa para alguns jornais... Tinha feito um desenho para um diretor de orquestra só para agradar ao meu pai... Mas, não o convenci muito, não... (risos) Eu era capaz de fazer, de memória, todo o time do Nacional, para o qual torcia... JORNAL DA ABI – E COMO FRANCO PASSOU A CHAMAR-SE LAN?

Lan – Franco era o nome que todo mundo odiava, até pelo contexto da

época do ditador espanhol... Já havia feito um desenho, com a assinatura Franco, que faz parte de meu nome. As pessoas olharam o desenho, gostaram dele, mas disseram que, com aquela assinatura, naquele contexto político, o negócio não iria para frente. Aí, outra mulher interfere na minha vida. Era uma morena bonitinha... Saímos para dançar num sábado. E ela me perguntou: ‘Como te llamas?’. Lanfranco Aldo Ricardo. “Me gusto Lan”, devolveu ela. Isso me deu um arrepio, me deu um choque! Era época do bolero, saímos a dançar. Ela tinha a mania de cantar no ouvido, enquanto a gente dançava. E como ela desafinava! E isso é uma coisa que não suporto: desafinar! A gente dançava cheek to cheek... Se bem que a gente não podia chegar muito perto da mulher, pois ficava sempre de pau duro! (risos) Eu não agüentei tanta desafinação, e coloquei fim ao namoro... Essa história virou uma lenda entre os meus amigos, até que, quando fiz um segundo desenho para o El País do Uruguai, um amigo que conhecia essa história me fez uma gozação, e assinou o trabalho com o nome Lan, não sem antes pronunciá-lo imitando a voz melosa da antiga namorada bem no meu ouvido: “Laaannn”. (risos) Esse nome logo pegou. Eu, no início, ficava puto, pois todo mundo me lembrava da história da desafinada... Depois, me acostumei. Mais que isso: descobri uma coisa. Isso foi uma sorte. Sou tão preguiçoso, tão preguiçoso, que até para assinar ou dar um autógrafo, era bem rápido, maravilhoso, curtinho: ‘Lan’. JORNAL DA ABI – NESSES PRIMEIROS DESENHOS VOCÊ TINHA ALGUMA REFERÊNCIA?

Lan – Não, não tinha referência, ídolo, nada disso. Era absolutamente autodidata, intuitivo, com movimento na cabeça e, sobretudo, com uma memória visual impressionante. Eu reparava em tudo. Por exemplo: você está aqui na minha frente, sentado, com a perna cruzada, com a mão assim, no queixo. Essa sua posição já ficava registrada na minha memória. Poderia tranqüilamente desenhar você. E, acima de tudo, minha característica é movimento. O meu forte é o desenho dinâmico. Sou incapaz de fazer um desenho posado. Se você reparar, as minhas mulatas se mexem todas! Como eu sou um paquerador inveterado, quando olho uma mulher, logo elaboro as imagens. JORNAL DA ABI – AS MULHERES SEMPRE INSPIRARAM SEUS DESENHOS E GUIARAM SEU DESTINO, NÃO É?

Lan – No início dessa história, eu achava tudo ótimo. ‘Pô estão me pagando para eu me divertir’, pensava. Era mesmo prazeroso. Adorava desenhar, e ainda, com isso, ganhava dinheiro. Depois aconteceu outro episódio em minha vida, envolvenCaricatura de Juan Manuel Fangio publicada na imprensa argentina.


do outra mulher. Depois fui saber que ela, na verdade, era amante do Diretor do El País, jornal onde, a essa altura, eu já trabalhava havia uns dois anos. Ela quis ser madrinha da minha primeira exposição em Punta del Este. O marido dela era presidente do Country Club de Punta del Este. E ela me convidou para ficar uns 15 dias lá na casa dela, exatamente para fazer a exposição. Poxa, para convencer o meu pai, precisou minha mãe intervir em meu favor. Meu pai disse: “Bom, você vai, tudo bem. Mas eu não acredito muito nessas coisas. Gente grã-fina é tudo de conversa fiada”. E ele ainda me deu uma grana para eu viajar. Fui, ficou combinado de encontrá-la de noite, já no Country, para depois seguirmos para a casa dela para começarmos a organizar a tal exposição. Aí, o que aconteceu?... Fiquei esperando do lado de fora, com meus quadrinhos e minha mala, de noite, sem viva alma na rua. O tempo passou, demorou uns 15, 20 minutos e nada. Quase uns 30 minutos, e eu, ali esperando. De repente sai ela, sendo arrastada pelo marido, pelo braço. Ele deu-lhe um chute na bunda, e a jogou dentro do caro. O que eu poderia dizer? “Boa noite, senhora?”. Fui a única testemunha daquela cena... Logo pensei: acabou, mixou a minha exposição. Não tinha nem como procurá-la no dia seguinte. Eles foram embora, até que perguntei ao porteiro do Country, meu conhecido, o que havia acontecido. E ele disse que o marido havia flagrado a mulher trepando com o diretor do meu jornal... Aí foi que pensei: “fudeu”! (risos) E essa é a importância deste fato. Pela primeira vez, na minha vida – e já tinha uns 23 anos, pagava a faculdade de Arquitetura – tinha que tomar uma decisão sozinho! No dia anterior, um jornal de Montevidéu havia anunciado em matéria de meia página: “Lan parte para o sucesso!” Imagine só se podia voltar para casa sem ter feito a tal exposição... Não! Eu tinha que fazer o programado! JORNAL DA ABI – E AÍ? COMO VOCÊ SE LIVROU DESSA ENRASCADA?

Lan – Fui para um hotel, um dos melhores da cidade. Chamei um táxi e fui pra lá. Dormi. No dia seguinte fui procurar o gerente e perguntar se havia alguma sala ali, na qual eu pudesse fazer a exposição. Ele me disse que sala, mesmo, não havia. Mas me sugeriu utilizar o espaço do cassino. Agora, pense se alguém, dentro de um cassino, quer saber de ver quadros... As pessoas estão preocupadas é com as fichinhas, com o jogo... O evento chegou a ser anunciado em caminhonetes, na rua, daquelas que anunciam os eventos do dia. “Nesta tarde, no Grande Hotel Cassino Nogarón, os desenhos do grande caricaturista internacional, Lan!” Puxa! Pra que aquilo? Ninguém me conhecia, porra! (risos). Cada vez que o carro de som passava eu morria de vergonha.

Bom, montei a exposição, e muita gente veio me dar os parabéns. Conheci um velho caricaturista argentino, gente muito boa, que gostou dos meus desenhos e dizia que eu tinha que ir a Buenos Aires. Chega dia 18 de fevereiro, meu aniversário, e eu já tinha jogado na roleta e perdido quase tudo. Naquela altura, tinha apenas 45 pesos no bolso – valor que já não dava para pagar a semana do hotel. Pensei: “Morro mas não perco a pose!”. Botei um blazer bege, combinando com a calça de alpaca inglesa, um lencinho de fresco, e saí para festejar de alguma forma o meu aniversário. Fui para a boate La Fragata, que era a melhor. Me aboletei no bar, já às onze e meia da noite. E pedi uma gin tônica, que é uma bebida que, adicionando gelo, dura uma barbaridade... Quando chega a meia-noite, apagam-se as luzer da boate e pum! Acendem um holofote bem na minha cara! Pensei: “Será que é a Polícia? Ou o meu pai me procurando?” (risos). Aí, ouço a música: “happy birthday to you, happy birthday Lan Franco...”. “Poxa, o único Lan Franco em toda a América do Sul sou eu”, pensei. Até que vejo o baixista da banda da boate, um uruguaio que fora criado comigo. O pai dele tocava na mesma orquestra do meu pai. Ele sabia o meu aniversário, como eu sabia o dele. Aí foi uma alegria geral, todo mundo me deu os parabéns! As pessoas me chamavam para as mesas. Numa delas conheci o Enrique Santos, autor de Cambalache, para mim o melhor letrista de tango argentino, assim como acho o Noel Rosa insuperável nas letras de nosso samba. Bom, aí foi um porre fenomenal, de uísque bancado pelos outros – já havia abandonado o gin. Seis horas da manhã, já estava vazia a boate, veio um cara, crooner da Santa Paula, orquestra argentina que estava se apresentando no Hotel Miguez. “Gostei muito das suas caricaturas! Quanto você cobra para fazer a minha?”. Eu, de porre, respondi que

não sabia... Nunca havia pensado naquela situação, nem cotado o meu trabalho. Contei a ele que havia gasto todo o dinheiro dado pelo meu pai, e que precisava pagar o hotel. Fiz as contas, somando o hotel, uma farrinha aqui, um uisquinho ali, uma boate... Cobrei 45 pesos, que, somados ao que me sobrava, já davam 90 pesos! E, assim, fiquei em Punta. Só fui voltar a Montevidéu na primeira semana de abril! Ou seja, fiquei 45 dias naquele esquema. E meu pai me esculhambando ao telefone: “Época de exames no colégio e você aí, em Punta del Leste!”. (risos) JORNAL DA ABI – PUNTA DEL ESTE FOI, ENTÃO, UM LUGAR DECISIVO EM SUA VIDA. MARCOU SUA MATURIDADE...

Lan – Ainda lá conheci Divito, dono da revista Rico Tipo, na época a melhor publicação de humor da América Latina, sem dúvida. E ele me disse: “Se você for a Buenos Aires, vá lá na Redação para conversarmos”. Chego em Montevidéu para convencer meu pai a me deixar ir para Buenos Aires... Minha mãe e meu irmão, novamente, o convenceram a bancar a minha viagem para a capital argentina, onde eu tinha uma tia e um tio. Ele me deixou ir, num teste de seis meses para me tornar auto-suficiente. Se não, dizia ele, eu teria que retornar para me formar em Arquitetura. Topei o desafio! Peguei meus desenhos, todos enroladinhos, num esquema pouco profissional ainda, na época. A secretária do Divito pediu que eu deixasse os desenhos com ela, pois ele não poderia me atender naquele momento, pois estava em reunião... Aquela velha história... No dia seguinte, ela me devolve os desenhos, e diz que, naquela ocasião, não havia espaço para mim na revista. “E agora?” - pensei. Aquilo foi um balde de água fria! E meu pai me

mandando uma merreca de dinheiro... E o tempo correndo... Depois de três meses, minha mãe me manda uma carta. Ela dizia que o namorado de uma aluna dela, que estava se formando em Medicina na Argentina, queria me conhecer. Ok, fui encontrá-lo. Gente muito boa. Era médico residente de um hospital. Me convidava para sair com ele numa ambulância, eu travestido de enfermeiro, para entrar nos estádios da Argentina e assistir aos jogos de graça! (risos) Assim, comecei a me familiarizar com todos os jogadores da época. Comecei a desenhá-los. O tempo foi correndo. Quatro, cinco meses, e eu morrendo de medo de ter que retornar a Montevidéu. Até que um dia fui à casa desse rapaz, que estava com uma garrafa de cidra. “Hoje vamos beber essa coisa toda! Metade para cada um!”. Perguntei: “Tudo bem, mas qual é o acontecimento?”. “Peguei os seus desenhos, levei para o Enzo, um tremendo jornalista de esporte, que está fundando uma publicação segmentada, a revista Goles, e quer colocar os seus desenhos na capa!”. Poxa! Fantástico, não é? Bebemos. Quando chego na casa da minha tia, ela me diz: “Um senhor, chamado Emilio Rubio, quer falar com você e recomendou muito que, antes de você seguir para o encontro com o diretor da revista Goles deve procurá-lo”. Assim eu fiz. Logo de manhã fui lá. Ele me fez a proposta. “Uma coisa é você trabalhar diariamente num jornal como o Noticias Gráficas, de Buenos Aires. Outra é uma vez por semana, numa revista. Além disso, vou te oferecer um salário de primeira categoria, para você vir aqui todos os dias”. Eu não tinha escolha! O tempo estava passando, eu vivendo na casa dos tios, com um dinheirinho de nada que meu pai estava me mandando... Me ofereceram um salário de 780 pesos argentinos! Topei! Claro que o Enzo ficou puto da vida comigo! Nunca mais quis saber de mim... E, para acabar de me convencer, Emilio Rubio me disse que Evita Perón era dona, praticamente, de toda a imprensa portenha. “E ela quer que eu seja diretor-geral da Editora Haynes, a maior de Buenos Aires. Lan, você vai trabalhar no Mundo Deportivo, Mundo Radial, Caras y Caretas, Mundo Argentino, El Mundo...”. E assim aconteceu. Trabalhei como um cavalo. Mas em cada uma dessas revistas ganhava um salário de primeira categoria. Nunca ganhei tanto dinheiro! JORNAL DA ABI – FAZENDO AS CONTAS, VOCÊ CHEGOU A GANHAR CERCA DE 4 MIL PESOS POR MÊS? É ISSO?

Lan – Evita pagava muito, mas muito bem, porque era tudo a favor do Perón, do peronismo. Ela era uma figura que tinha uma influência muito grande. Depois vou mostrar no catálogo o primeiro desenho de mulher que eu fiz a pedido de Eva Perón.

JORNAL DA ABI – VOCÊ CONHECEU A EVA PESSOALMENTE?

Lan – Eu a conheci na Redação do jornal. Era baixinha, não era um mulherão. Bonitinha, entendeu? JORNAL DA ABI – ELA PEDIU QUE VOCÊ FIZESSE UM DESENHO DELA PRÓPRIA?

Lan – Dela, não. De uma amiga dela do teatro. Porque ela era muita ligada ao pessoal do teatro. A bronca dela com a Libertad Lamarque foi que, naquela época, ela ainda não era a primeira-dama. Sonhava em ser atriz. Houve um filme no qual ela sonhava em ser a estrela, mas botaram a Libertad Lamarque. A partir daí, quando ela ficou sendo a primeira-dama, começou uma perseguição em cima da Libertad, que teve que ir embora para o México. JORNAL DA ABI – ENTÃO, EVITA FOI OUTRA MULHER DE IMPORTÂNCIA, POIS FOI A PEDIDO DELA QUE PELA PRIMEIRA VEZ VOCÊ FEZ UM DESENHO FEMININO?

Lan – Pois é. Feminino porque ela gostava exatamente da estilização que eu fazia nos desenhos. JORNAL DA ABI – E ESSE DESENHO JÁ VEIO MAIS OU MENOS COM ESSAS FORMAS, NESSES MOVIMENTOS, NESSE ESTILO DE TRAÇOS?

NÃO ERA UMA MULATA, CERTAMENTE...

Lan – Não era. Era um tipo de mulher diferente. Mas, de certa forma, o meu estilo já estava ali. JORNAL DA ABI – GOSTARIA DE VOLTAR AO WAINER, QUE VOCÊ JÁ CITOU. O CONVITE FEITO POR ELE FOI OUTRA GUINADA IMPORTANTE EM SUA VIDA, NÃO?

EPISÓDIO DO SAMUEL

Lan – Foi outra guinada, sem dúvida, e também provocada por uma mulher. Porque eu me apaixonei por uma companheira de trabalho da Editora Haynes. Uma mulher casada. Tinha uma gamação enorme por ela. O marido começou a ficar ciumento, então eu me afastei. Não foi um namoro de uma intensidade, mas não quero chamar de sacanagem. Era realmente uma relação muito íntima, muito bonita, mas eu não tinha a mínima vontade de casar. Aliás, nunca tinha vontade de casar. A única mulher a que eu propus casamento foi aquela com quem estou casado há 51 anos, que é a Olívia. Mas as namoradas anteriores, nem pensar... Eu tinha horror ao casamento, entendeu? JORNAL DA ABI – NUNCA TINHA CHEGADO A ESSE ESTÁGIO?

Lan – O Miele uma vez disse algo interessante. Ele tem uma resposta que eu adotei, porque ele disse: “Eu sou contra o casamento, e a favor da Anita”, que é a mulher dele. E eu digo sempre que “Sou contra o casamento, e a favor da Olívia”, que é uma grande mulher, maravilhosa. Não se fazem mais mulheres como antigamente. JORNAL DA ABI – AÍ COMEÇOU ESSE RELACIONAMENTO...

Lan – Resolvi, para dar um tempo, fazer uma viagem de três meses. Eu tinha grana. Queria ir ao Rio de

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As caricaturas de jogadores de futebol do Lan eram publicadas, muitas vezes, em página inteira, como esta do Baltazar, na Última Hora Esportiva.

Janeiro. Pensei: primeiro passo para dar um abraço nos meus pais em Montevidéu, depois Rio de Janeiro, Nova York, New Orleans, por causa do jazz... Eu era jazzmaníaco! Sigo por Los Angeles, México, Quito, Lima, Santiago do Chile e, depois disso tudo, volto a Buenos Aires. Mas, aconteceu o seguinte: quando cheguei ao Rio de Janeiro, já fiquei tarado. Tarado.

eram todos da Última Hora. Só tinha craque. O Caribé colaborava de vez em quando... JORNAL DA ABI – VOCÊ IA PARA A REDAÇÃO TODO DIA? DAVA EXPEDIENTE LÁ?

Lan – Sempre na Redação. Tem uma coisa. Eu tenho uma facilidade para me ausentar quando desenho. Você pode falar comigo que eu nem escuto. Me isolo completamente.

JORNAL DA ABI – E NÃO CONHECIA O RIO DE JANEIRO. VOCÊ SAIU DA ARGENTINA DIRETO PARA O RIO, NÃO PASSOU POR SÃO PAULO?

Lan – Não conhecia! Vim direto para o Rio. Fiquei alucinado pela cidade. As mulheres! Fui ao Maracanã para ver onde o Uruguai tinha ganhado a Copa e fiquei impressionado com o jogo da Seleção Paulista contra a Seleção Carioca. Ganhou a Seleção Paulista, com gol do Baltazar, o Cabecinha de Ouro. Aquilo ficou na minha cabeça. No dia seguinte, segunda-feira, fui cumprimentar a turma, amigos meus de Buenos Aires que tinham trabalhado comigo na Editora Haynes e também no Noticias Gráficas, como o Parpagnoli. Fui dar um abraço neles e eles disseram que a irmã do Nélson Rodrigues queria fazer uma reportagem comigo. Eu fiz a reportagem e falaram com o Samuel Wainer. Casualmente, em 1952, vim saber depois que tinha levado o prêmio de melhor caricaturista do ano. Então, o Samuel me chamou e perguntou se eu queria ficar no Brasil, mas eu tinha que ir para São Paulo. Respondi que não, que se fosse para ficar no Brasil teria que ser no Rio de Janeiro. Ele disse: “Te prometo uma coisa. Você vai ficar seis meses em São Paulo, e depois te chamo para o Rio”. Isso foi em outubro de 1952. “Em 1953, logo no começo do ano, te trago para o Rio porque vou lançar o semanário Flan”, prometeu ele. Maravilha. Beleza. Aceitei. Foi assim que fui para São Paulo. E acabei reencontrando a Zezé... Mas essa história já foi. O Rio de Janeiro para mim foi um deslumbre. Realmente foi maravilhoso trabalhar na Última Hora. Eu sempre digo, quando me refiro a Samuel Wainer, que nós jornalistas não podemos esquecer que quando ele teve a oportunidade de dirigir um jornal, graças a Getúlio Vargas, tornou-se o homem que deu dignidade a nossa profissão, porque antes recebíamos salário de miséria. O jornalista, ou fazia jornalismo vocacionalmente porque era advogado, ou gostava de escrever ou algo assim. Samuel nos deu dignidade. Por isso que a imprensa foi contra ele, liderada pelo Carlos Lacerda. JORNAL DA ABI – SERIA UM EXAGERO AFIRMAR QUE O RIO DE JANEIRO REDEFINIU O SEU DESENHO? VOCÊ PASSOU A DESENHAR DIFERENTE DEPOIS QUE VEIO PARA A CIDADE?

Lan – Houve uma influência muito grande, principalmente em função das mulheres. Na parte dos jogadores de futebol não, porque já

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Jornal da ABI 370 Setembro de 2011

JORNAL DA ABI – COMO O MAESTRO VILALOBOS, QUE DIZIA TER O ‘OUVIDO DE FORA E O OUVIDO DE DENTRO’...

“Nós jornalistas não podemos esquecer que quando Samuel Wainer teve a oportunidade de dirigir um jornal, graças a Getúlio Vargas, tornou-se o homem que deu dignidade à nossa profissão, porque antes recebíamos salário de miséria.” fazia jogadores argentinos. Foi a mesma forma que fiz aqui com o Baltazar, que foi publicado em página inteira de Última Hora. JORNAL DA ABI – VAMOS FALAR UM POUCO MAIS DESSE JORNAL. NA IMPRENSA ANTIGA, OS EDITORES ABRIAM ESPAÇO PARA OS DESENHOS, VALORIZAVAM O TRABALHO DO ARTISTA...

Lan – Não posso me queixar, porque me abriam toda a página. Na Última Hora paulista eu fazia uma página de turfe, com Wilson Nascimento. Fazíamos uma dupla. Ele me dava as dicas. “Pode ganhar esse, pode ganhar outro”. Encontrava a forma com o desenho e praticamente já entrava com duas ou três barbadas. Era tão engraçado, não entendia porra nenhuma, nunca tinha ido à Cidade Jardim e só o Nascimento é que me fornecia os dados. Aí eu ia para a Boate Oásis todas as noites. O porteiro era um crioulo. Cada vez que eu chegava, ele dizia: “Seu Lan, qual é a dica? Qual é a corrida?”. Eu não sabia de nada, sem-

pre deixava na dúvida, dizia pode ser, veja na Última Hora. Eu ia cortar o cabelo e me perguntavam: “Seu Lan, qual é a boa? Qual é a barbada?”. Acabei sendo um técnico sem ter ido a um páreo, sem entender porra nenhuma sobre cavalo de corrida. (risos). Eu gostava de desenhar cavalo de corrida. Disso eu sempre gostei. JORNAL DA ABI – O CAVALO É UM ANIMAL LINDO...

Lan – Mulher e cavalo sempre foram o que eu mais gostei. JORNAL DA ABI – COMO FOI TRABALHAR SEIS MESES EM SÃO PAULO? A TURMA DA

ÚLTIMA HORA ERA UM TIME DE CRAQUES!

Lan – Só craques. Craques em São Paulo e craques no Rio de Janeiro. A revista Flan, por exemplo, tinha os irmãos Rodrigues – Nélson e Augustinho –, tinha Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Nássara no desenho; como Chefe de Fotografia, Roberto Maia, que era um cracaço. Aliás os bons fotógrafos

Lan – Exatamente, o barulho nunca me incomodou. As pessoas vinham falar comigo e eu não deixava de desenhar. O Corvo surgiu de uma forma casual. Aliás, como tudo na minha vida, sempre é um acontecimento. Não dá pra dizer, por exemplo, que algum dia eu fui ao encontro do trabalho. Minha sorte é que o trabalho veio ao meu encontro – ou amigos me indicavam. Era muito tímido para pegar um desenho meu, botar debaixo do braço e levar para mostrar a alguém. Por isso o choque que eu tive em Buenos Aires, quando me disseram para voltar no dia seguinte... Aquilo foi uma agonia enorme. Ainda na Argentina, eu não saía do jornal, não saía da Redação, porque tinha que trabalhar, trabalhar e trabalhar. Então, um dia, eu estava sozinho na Redação do Mundo Deportivo, não tinha ninguém lá, e apareceu o Che Guevara, que ainda não era o Che. Era Ernesto Guevara de la Serna. Era um médico, assim se anunciou, perguntou se eu podia recebê-lo, pois desejava fazer um rally pela América do Sul, de moto com um amigo meu. Eu publiquei isso e tiramos uma fotografia juntos que, infelizmente, está na coleção que eu não tenho. Eu levava todas as fotografias que tirava para minha mãe. Ela levou tudo para a Itália. E lá tudo se perdeu. Ela morreu e nunca mais soube desse acervo. É uma pena, porque era um documento que eu podia mostrar. JORNAL DA ABI – QUE TAL O ENCONTRO COM CHE? ELE O INFLUENCIOU POLITICAMENTE?

Lan – Ali ele era um cara que apenas queria fazer um rally. O texto foi o que eu mandei. Naquela época eu torcia por Fidel Castro, porque odiava aquele Fulgencio Baptista, que foi um dos ditadores mais sangrentos, um filho da puta, associado à máfia. Ele recebia grana da máfia, recebia grana de tudo o quanto é gente. Eu torcia por Fidel. E gostava do Che, que foi um grande herói lá em Cuba. Santa Clara, por exemplo, foi vital para a vitória da Revolução Fidelista. Eu fui fundador da Prensa Latina, no Rio de Janeiro, que era a agência de Fidel, era naquela época da Revolução. E comecei a trabalhar para o jornal Revolución, de Havana. Mandava charges, claro, esculhambando os americanos pacas. Todas as minhas charges eram esculhambando o Tio Sam. Me lembro que encontrei o Che Guevara em

um congresso no Copacabana Palace, em 1961. O assessor do Che me trouxe um charuto e me disse que ele queria pedir um original de um desenho meu que estava no seu gabinete, no Ministério do Interior. Eu achei ótimo! Um original meu na sala do Che! Fantástico! Por causa disso tive uma relação muito íntima com a, digamos, “revolução” que acabou com o golpe militar em 1964. Tive que ir embora a convite do cônsul italiano, uma semana depois do golpe, ocorrido em 31 de março de 1964. Bom... os militares anteciparam para não dar a gozação do 1º de abril! No dia 7 ou 8, o cônsul me chamou e disse: “Lan, o Dops já esteve aqui querendo saber os seus antecedentes políticos, porque a sua barra está meio suja com esse negócio de você trabalhar para a Prensa Latina. Aproveita, faz uma viagem para a Itália, para a Europa, descansa, dá um tempo, porque não se sabe qual vai ser a duração disso”. E lá fui eu para a Itália. JORNAL DA ABI – VOCÊ ESTAVA NA ÚLTIMA HORA NESSA ÉPOCA?

Lan – Não, já estava no Jornal do Brasil. Entrei em 1963 no JB e em 1964 tive que me mandar. Mas eles conservaram meu lugar, em 1967, quando eu voltei. JORNAL DA ABI – MAS NESSA ÉPOCA VOCÊ FAZIA QUE TIPO DE CHARGE NO JORNAL DO

BRASIL?

Lan – Já tinha um lado político. Na verdade, quem me inventou como chargista político foi o Samuel Wainer, quando eu fiz o Corvo. JORNAL DA ABI – ATÉ ENTÃO VOCÊ NÃO TRANSITAVA NESSA ÁREA?

Lan – Não, não pisava nessa área. Era esporte, jóquei, mulher, fazia o rodapé na Última Hora, que eram charges sobre a vida carioca. Trabalhava pra burro naquela época. Na Manchete Esportiva, eu fazia um time por semana. JORNAL DA ABI – COMO FOI A ADAPTAÇÃO AO DESENHO POLÍTICO? E QUAIS PROBLEMAS VOCÊ CHEGOU A TER COM ISSO?

Lan – Tudo é uma questão intuitiva. Por isso que te digo que na minha vida tudo foi intuição. Fui um autodidata. Fui aprendendo o uso do material na medida em que fazia. Tive um pincel, que acabou ficando na Itália. Com ele desenhei na Última Hora, no Jornal do Brasil e na Itália. Foi quando preparei uma exposição e me obrigaram a fazer a troca por um novo! Foi curiosa essa exposição. Participaram 300 desenhistas de toda a Itália e de alguns países europeus. E eu ganhei o prêmio. Numa fotografia estou com desenho meu desse tamanho! (faz o gesto com as mãos) Uma foto como essa eu bem que poderia mostrar, pois na legenda diz “Il representante brasiliano”. Me apresentaram na Itália como representante brasileiro! E ninguém no Brasil sabe que eu, italiano, ganhei um prêmio na Itália representando o Brasil, pô!


Duas charges polêmicas de Lan: abaixo, uma reprodução da arte da famosa caricatura do Corvo Lacerda exatamente como foi desenhada. Ao lado, o gorila da ditadura.

o quê? Há tantos erros... A Olívia, minha mulher, por exemplo, detesta o que sai na internet, quando se consulta a minha vida no computador. Não sei quem fez, mas botaram lá que eu sou casado com uma passista da Portela...

JORNAL DA ABI – NO SEU PRÓPRIO PAÍS, IDENTIFICADO COMO BRASILEIRO.

Lan – Exatamente. Inclusive, na Itália, quantas vezes me perguntam: “Você é argentino?”. Não. “Você é uruguaio?”. Não. “Você é brasileiro?”. Não. E lá me chamavam “Il sudamericano”. Nem de italiano me chamavam. Entrei então como representante brasileiro e fiquei com uma felicidade enorme porque ganhei esse prêmio!

Lan – A história do Corvo é outra casualidade. Devo a uma mulata. (risos). Foi quando morreu o Nestor Moreira. No dia do enterro, o Samuel compareceu. E o Lacerda foi todo vestido de preto, de luto. Eu estava indo embora da Redação porque tinha um encontro com uma mulata na Praça Cruz Vermelha, às oito e quinze. Eram oito horas e eu estava saindo do jornal. Veio um contínuo do Samuel e disse que ele queria falar comigo. Puta-que-o-pariu!!! Fui lá e o Samuel me disse: “Olha, o Lacerda estava todo vestido

no Hotel Alfa, na Rua Montenegro, onde eu ia sempre. JORNAL DA ABI – ELA FICOU TE ESPERANDO?

Lan – Não! Ela chegou até um pouquinho atrasada, oito e vinte e cinco. Foi a minha sorte, porque cheguei às oito e dezoito! São coisas que não se esquece. Aí, no dia seguinte, eu ia cedo ao jornal... e, puta-queo-pariu, já com dor de consciência! Pensava: “o Samuel pediu para caprichar e fiz aquela merda de desenho!” Quando entro na Redação, tinha o Samuel, o Baby Bocaiúva, o Presidente do PTB, Danton Coelho, e Elói Dutra. Os quatro. Eu quase me escondi... (risos) Samuel disse: “Vem cá!”. “Lá vem esporro”, pensei eu... “Vai me dar uma bronca filha-da-puta”. E ele disse: “Deixa eu lhe apresentar. Baby você já conhece, Elói Dutra, e o nosso Presidente do partido, Danton Coelho”. O Danton Coelho, então, me abraça. Um abraço com palmadas nas costas, e me diz: “Lan, o que você fez é um trabalho de uma profundidade psicológica incrível. Você mostrou a alma torva desse filho-da-puta do Lacerda!” (risos). Dessas palavras nunca vou me esquecer. E a pressa com que eu fiz aquilo? Aprendi que quanto mais espontâneo é o desenho, melhor ele é. Isso eu só aprendi com o tempo. O que sai da sua primeira inspiração é o que vale. Não adianta você fazer um tremendo desenho, maravilhoso, cheio de troço, e o máximo que te dizem é que está bom e bonito. E saiba você: até ameaça de morte eu tive do Clube da Lanterna, formado por partidários do Lacerda, por causa dessa charge... JORNAL DA ABI – AMEAÇA DE MORTE?

de preto, faz um papa-defunto aí”. Papa-defunto.... Foi isso que ele me pediu. Pensei: de preto? Que merda, um papa-defunto! Bom, quem come carniça é urubu. Eu vou botar um urubu... mas eu lembrava da cara do Lacerda, que não lembrava a cara do urubu. Porra, vou perder tempo! E a mulata? Tá lá me esperando! Um drama para mim... Que outra coisa é preta? Um corvo!!! Quando você vê um desenho todo preto, você faz um rabisco, com nanquim. Desenha em cinco minutos. Eu fiz, inclusive, uma coisa truculenta, bem pesada... Fui embora, correndo, mandei o desenho em quatro colunas, como o Samuel havia me pedido. Ele ia encontrar a Danuza Leão numa boate e nem esperou. Mandei o material e fui embora. E, lembro bem, passei uma noite maravilhosa

Lan – Foi, por causa dessa charge. Um cara do Clube da Lanterna, um filho-da-puta daqueles, que depois foi até deputado. E o Lacerda me respondeu em um discurso em Bauru. “Esse desenho, o Corvo, é a própria imagem da fidelidade”, disse, elogiando o Corvo. “Mas é um desenho de um espanhol safado!”, esbravejou. (risos). Tem um detalhe, quando ele se candidatou a Governador da Guanabara, o Dines me procurou, porque o Lacerda queria que eu fizesse a imagem positiva dele. Não sei quanta grana joguei fora, mas eu respondi que não. Todo mundo estava me conhecendo como autor do ‘Corvo’. Eu não podia passar a ser o autor do ‘Colibri’ ou do ‘Beija-flor’. Foi a resposta. Aliás, nunca aceitei dinheiro de jeito nenhum de político na minha

vida. Quando Aureliano Chaves estava disputando para se candidatar, eu disse não. Quando o Governador de São Paulo, Orestes Quércia, queria me ajudar, queria me dar presentes, eu disse não. Nunca quis dinheiro para não comprometer o respeito da minha coluna. Sempre falei com os meus colegas que caricatura é metralhadora giratória. Você não pode se comprometer. Em certa ocasião, depois de tantos anos como chargista, me questionei: ‘Porra, Lan, afinal de contas qual é a tua? Qual é a tua posição?’. E descobri a resposta, uma vez falando com o Luiz Carlos Maciel. Estávamos sentados no bar, os dois pensando do mesmo jeito, aí o Luiz Carlos disse: “Lan, nós temos que fundar um partido de anarquismo de centro!”. Eu sempre me considerei um anarquista light, que não é de jogar bombas em ninguém. A não ser nesse merda do Cesare Battisti, um assassino covarde que acabou protegido pela Justiça do Brasil. JORNAL DA ABI – AQUELAS CHARGES DOS GORILAS MILITARES, FORAM PUBLICADA

sim?”. Eu me faço baixinho porque são as limitações da terceira idade. Qualquer mulher vira mulher de dois metros! Chegar lá não dá... JORNAL DA ABI – E ESSE PERSONAGEM SURGIU QUANDO ?

Lan – Em 1996. JORNAL DA ABI – ENTÃO, JÁ É BEM MAIS RECENTE... TEM SÓ 15 ANOS.

Lan – Exatamente, bem mais recente... E pegou. Você repara que nunca botei o nome dele, mas todo mundo chamava de ‘Lanzinho’. Passou a ser ‘Lanzinho’ e eu nem me opus. Afinal de contas, eu fiz a caricatura de tanta gente, nada mais justo que eu faça a minha própria, ridicularizando todas as coisas que eu faço. Quer dizer, é uma autocaricatura realmente. JORNAL DA ABI – NA PESQUISA, DESCOBRIMOS QUE VOCÊ TEM IMPLICÂNCIA, NÃO GOSTA DE SER CHAMADO DE CARTUNISTA, E SIM CARICATURISTA.

Lan – Eu não gosto, mas tenho que aturar, pois foi um neologismo que pegou na imprensa. Vou fazer

ANTES OU DEPOIS DE VOCÊ VIAJAR PARA A

ITÁLIA? ELAS SAÍRAM NO JB?

Lan – Foi um pouco antes, mas não saíram no Jornal do Brasil... Saíram em um jornal alternativo. Era um tablóide alternativo onde o Carlos Castelo Branco colaborava, e o Villas-Bôas Corrêa também. Eu fiz aquela do militar com a sua estrela refletindo no espelho como gorila, com a banana. Ou seja, não fui tão sutil. JORNAL DA ABI – EM QUE MOMENTO VOCÊ ENTROU NO SEU PRÓPRIO DESENHO COMO PERSONAGEM?

Lan – Foi incrível. Como sempre, há uma intuição. Quando faço uma coisa é respondendo a uma intuição. Esse baixinho começou magrinho e depois acabou do jeito como está hoje. É Flamengo. É Portela. Tem tudo a ver comigo. Gosta de mulher. Mesmo velhinho... (risos) Aí me perguntaram uma vez: “Lan, você não é alto, mas também não é tão baixinho, por que se desenha as-

REPRODUÇÃO

JORNAL DA ABI – QUERIA QUE VOCÊ TERMINASSE A HISTÓRIA DO CORVO LACERDA.

JORNAL DA ABI – ISSO TAMBÉM APARECEU NA NOSSA PESQUISA...

Lan – E é péssimo! A Olívia fica morta de raiva. Porque ela foi uma das três Irmãs Marinho, que percorreram o mundo inteiro. Que tiveram até como coreógrafo o irmão do Jim Carrey. Trabalharam em programas famosos, shows de sucesso. Chamá-la de passista? Não dá, entendeu? Não é que eu faça pouco das passistas, mas ela não é passista, é bailarina! E foi convidada por Fernando Pamplona para desfilar no Salgueiro com as três irmãs, assim como a Ana Maria Botafogo foi convidada também. Como era Mercedes Batista, que não era passista, era bailarina! Agora, essa referência sai em tudo que é lugar. Eu peço a vocês para esclarecerem isso! Vamos fazer aqui essa correção histórica. Dona Olívia Marinho, mulher do Lan, não foi passista da Portela! E ela, em todo caso, se fosse mesmo passista, seria do Salgueiro! Erraram duas vezes... (risos). Ela era uma tremenda bailarina! Dançava tão bem a Olívia... Quando comecei a namorá-la, naquela época (neste momento, Lan aperta os olhos, como quem se esforça para enxergar um pouco mais longe no arquivo da memória). Esse negócio de namorar. Veja só! Hoje em dia, você começa a namorar e vai para a cama logo! Por isso que os casamentos duram pouquíssimo. Qualquer casal aí, o camarada está de saco cheio da mulher. Eu não tive medo da Olívia, porque conhecia o retrospecto. Séria... Até hoje ela é para dentro, a maior dona-de-casa que existe. Aconteceu que eu comecei a sair com ela. Foi ela quem me fez desistir de ir a Cuba. Aí você vê a importância de

Lan pede ao Jornal da ABI que se faça uma correção histórica: sua mulher, Olívia Marinho não é passista da Portela. “Ela era uma tremenda bailarina!” Na foto, as famosas irmãs Marinho na década de 1960, com Olívia à frente; Mary, atrás, e Norma, à direita.

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uma mulher. Um outro acidente de percurso. E eu com medo de casar, empurrando ao máximo. Uma vez fomos para uma boate... Eu me considerava um tremendo pé-devalsa, um milonguero da Casa de Corrientes. Dançava tango pra cacete. Tirei-a para dançar e comecei a sentir que ela estava me puxando. Estava querendo dirigir o jogo, entendeu? De repente ela me disse muito carinhosamente: “Olha o ritmo”. O quê? Olha o ritmo? Foi uma ofensa pessoal. Até hoje, nunca mais dancei com a Olívia. Danço com as irmãs, com a Norma, com a Jussara, com a Mari. Com ela, não. Ela deve ter achado muito ruim. Se livrou. O marido conduzido na dança? De jeito nenhum...

JORNAL DA ABI – UM ANO ANTES DE VOCÊ VOLTAR?

Lan – Exatamente. Esse é um trauma pelo qual não se passa impunemente, não é? Rompimento com a família. Fiquei afastado da família, da minha mãe, por dois anos. Foi um negócio muito chato. JORNAL DA ABI – E A EXPERIÊNCIA EM PARIS?

Lan – Lá entrei em uma agência de notícias, Inter Press Service, que era uma agência para a América Latina, onde eu escrevia em espanhol, em castelhano... JORNAL DA ABI – VOCÊ ESCREVE TAMBÉM?

JORNAL DA ABI – AS CURVAS DO RIO DE JANEIRO MUITAS VEZES SE CONFUNDIRAM COM AS CURVAS DAS MULHERES NOS SEUS DESENHOS. ISSO FOI UMA PERCEPÇÃO IMEDIATA SUA? O RIO É UMA CIDADE FEMININA?

Lan – Sempre. Quando eu ia à Última Hora e morava no Leme, pegava um ônibus, um lotação... Naquela época era um lotação, para ir até à Estação Central. Era Leme–Central do Brasil. Cada vez que eu passava pela Praia de Botafogo me encantava. Se você observar, na curva onde pega a Rui Barbosa, é uma mulher. O Rio de Janeiro é uma mulher deitada. Assim é como eu vejo a cidade até hoje. É uma mulher deitada! A partir daí comecei a fazer o Pão de Açúcar sempre como uma mulher. Depois, morando no Leblon, olhando o Dois Irmãos. Porra, é machismo isso aí. Deveria ser Duas Irmãs, entendeu? Ou Duas Lésbicas (risos). Entrelacei as duas irmãs em um abraço bonitinho e transformei em mulher também. O que é a topografia carioca? Uma natureza extremamente feminina.

“Eu, na minha vida, só penso em sacanagem! Essa é a melhor coisa para você chegar aos 86 anos, pertinho dos 87, de bom humor. Esse negócio do velho que não se cuida, do velho coitadinho. Não, não. Velho coitado? De jeito nenhum.”

JORNAL DA ABI – HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ ESTÁ MORANDO AQUI EM PEDRO DO RIO, PERTINHO DE PETRÓPOLIS?

Lan – É casualidade, porque eu queria comprar um apartamento na Jandira, esquina da Delfim Moreira. Eram aqueles prédios antigos de três andares. Um apartamento maravilhoso, espaçoso, tinha uma sala em frente ao mar. Três quartos na Jandira. Eu queria comprar esse apartamento, mas venderam o prédio inteiro. Fiquei tão chateado! E a Olívia também. Naquela época já não estava indo à Redação, ia atender na Maria Angélica. Um ano moramos na San Martin, em um apartamento de frente, onde o sol entrava direto. Dica aos leitores! Nunca alugue ou compre um apartamento na San Martin ao lado da calçada mais perto do mar, em direção do lado esquerdo, porque o sol entra direto. Então, era ar-condicionado o dia inteiro. Depois de um ano disse: “Olívia, não dá pé”. Inclusive, eu estava com um problema de úlcera. Foi uma úlcera importada, trouxe da Europa, da Itália. Tem tantos lances de como voltei, porque eu voltei... Vir

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para a serra foi idéia da Olívia: “Lan, por que não procuramos em volta do Rio uma casa, um sítio?”. Começamos a procurar, subir a serra, vimos uma casa no Vale do Cuiabá, que graças a Deus não comprei. Meu anjo da guarda sempre me protegeu... JORNAL DA ABI – PORQUE ELA NÃO EXISTE MAIS...

Lan – Foi destruída pelas chuvas que arrasaram a região serrana. Aí, compramos esta, que a Olívia tornou um paraíso. Fizemos uma reforma na casa, que ela idealizava e eu, como antigo, ex, quase arquiteto, desenhava e fazia os cálculos. E moramos aqui desde 1974. Foi quando fui operado da tal úlcera urgente. Mas foi uma sorte, porque estava tendo hemorragia interna e não sabia. Eu ficava na cama, lendo, lendo, lendo, passaram quatro dias, domingo, caí no sono e não consegui mais me levantar. Olívia levou um susto enorme. Foi sorte. Tínhamos carro, mas não tínhamos motorista. O Agosti-

nho, meu primeiro caseiro, tinha um AeroWillys antigo e levou a Olívia até o centro de Pedro do Rio para telefonar. Era ainda aquele de manivela... Ela ligou para a Redação do Jornal do Brasil. Era domingo, dei uma sorte enorme, porque o Walter Fontoura não ia domingo, mas estava lá. Olívia falou com ele e o Walter mandou imediatamente um carro de reportagem para me pegar. Olívia avisou ao Sérgio Carneiro, que era nosso médico, e me levaram direto para o Hospital de Ipanema, que naquela época era muito bom. Me botaram no CTI, fiquei dois dias levando bujões de sangue. Não sei quantos litros tiveram que botar. Anos depois eu levei um esporro do Sérgio Carneiro. “Lan, seu filho-da-puta, você entrou morto lá. Como você não percebeu que estava perdendo sangue?”. E eu lá sabia que fezes pretas eram sinal de hemorragia? Não estava sabendo disso... A radiografia não tinha apontado nada, buraco nenhum. Depois de quinze dias o médico me disse: “Lan, já que você está aqui, quer esperar mais uma hemorragia ou prefere operar?”. Preferi operar. Descobriram que a úlcera já estava aberta. Se o ácido clorídrico tivesse feito o trabalhinho dele no pâncreas, eu não estaria aqui para contar essa história para vocês. Foi a decisão certa que eu tomei, mais a sorte. JORNALDA ABI – VOCÊ DISSE QUE ESSA ÚLCERA VEIO DA ITÁLIA. A QUE VOCÊ ATRIBUI ISSO?

Lan – Eu chamava minha úlcera de Sophia, em homenagem à So-

phia Loren, porque era bonita... Sacanagem... (risos) Meu querido, eu, na minha vida, só penso em sacanagem! Essa é a melhor coisa para você chegar aos 86 anos, pertinho dos 87, de bom humor. Esse negócio do velho que não se cuida, do velho coitadinho. Não, não. Velho coitado? De jeito nenhum. Dou um conselho a todos: sempre alegria e leve a vida na brincadeira. Há certas coisas que fico indignado, aí eu esquento... Adquiri a úlcera na Itália. A vida de um exilado é difícil, embora tenha me antecipado... Eu me auto-exilei, não esperei pelos militares. Sendo estrangeiro, mesmo sendo casado, mas sem filhos, estava sujeito a ser mandado embora do Brasil. E quando você era mandado embora, era muito mais difícil conseguir voltar. Esse medo que eu tinha de não poder voltar ao Rio de Janeiro fez com que eu me mandasse. Fui embora. A minha família na Itália me ajudou bastante. Mas quando veio a Olívia, embora teoricamente ninguém tivesse preconceitos... Bom, teoricamente, entendeu? Muito gentis, muita cerimônia, mas você sente que está sendo aceito à revelia. E eu, expor a Olívia, a minha Olívia, a qualquer tipo de desagrado que ela pudesse receber, nem pensar! Aí me afastei da minha família. Isso é verdade. Me afastei e aceitei um convite de Samuel Wainer para ir a Paris, para fazermos juntos um jornal que era dedicado ao Brasil e feito lá. JORNAL DA ABI – ISSO FOI EM 1967?

Lan – Em 1966.

Lan – Escrevia, porque agora não enxergo nada. Agora virei analfabeto. Ganhava 300 dólares. Aí encontrei o Guilherme Figueiredo, irmão do João Figueiredo, mas era época ainda do Costa e Silva. Ele me perguntou: “O que você está fazendo aqui em Paris?”. “Tive que me mandar”, expliquei a ele. “Eu vou ver o adido militar aqui”, ele disse. Essa figura era o Coronel Afonso Albuquerque Lima, que por sinal detestava o João Figueiredo. “Eu vou te apresentar ao Coronel”, prometeu o Guilherme. Foi ele que me apresentou ao Adido Militar lá da Embaixada de Paris. Chega o cara, bem milico. “Por que motivo o senhor está aqui em Paris?”. Respondi: “Coronel, eu estou aqui em Paris por uma razão simples, eu trabalho na imprensa, eu faço charges. Charges políticas. Eu nunca joguei pétalas de rosas em ninguém. Eu não tenho nada pessoal com o senhor, nem contra o Presidente Costa e Silva... Não tenho nada. Mas tenho que criticar, tenho que achar ruim as coisas que acho ruim do lado administrativo.” JORNAL DA ABI – NESTE MOMENTO VOCÊ ESTAVA EXERCENDO AQUELA LIÇÃO QUE O SEU PAI TE DEU LÁ ATRÁS?

Lan – Exatamente aquela lição: seja sincero, fale a verdade. Disse tudo isso. O Coronel me disse: “Vou ver o seu caso, volte daqui a quinze dias que vou lhe dar uma resposta”. Quando eu cheguei na porta para sair, virei e disse: “Coronel, há um detalhe que o senhor vai saber, claro, como Adido Militar. O senhor será informado de que eu sou amigo do Samuel Wainer, que sou amigo do Raul Ryff, assessor do Jango Goulart, que sou amigo do Darcy Ribeiro. Ou seja, eu pergunto ao senhor, numa situação assim, se fossem seus amigos, o senhor viraria as costas para eles, fingiria que não mais os conhecia?”. Ele ficou pasmo, olhou para minha cara e acabou dizendo: “Gostei da sua sinceridade, obrigado, vá embora”. Me chamou quinze dias depois. “Pode voltar ao Brasil quando quiser”. Eu queria voltar como cidadão brasileiro. Fui ver no Consulado e tinha uma ministra, que me indagou com espanto: “Você quer deixar de ser italiano para ser carioca?”. Fiquei uma fera. “Me desculpe, a senhora está aqui para divulgar o Brasil para os franceses, não é para fazer a propaganda para mim. Porque eu pre-


firo ir para o Rio de Janeiro”. Veja você! O Samuel foi para a Grécia, e me pediu para ficar no apartamento dele em Paris. Então, no apartamento do Samuel, eu pude convidar os chefes de arte do Paris Match e do Journal de France. Foram lá em casa, viram meus desenhos. Disseram: “Por que você não fica em Paris? Você tem toda chance de entrar no Paris Match. Mas você tem que ficar em Paris”. E eu: “Não posso mandar os desenhos? Do Rio de Janeiro eu não abro mão!”. Se tivesse naquela época computador, e-mail, poderia até ter trabalhado para eles. Mas eles faziam questão de que eu ficasse em Paris. Recusei. Nunca traí o Rio de Janeiro. JORNAL DA ABI – QUAL É O SEU ESQUEMA HOJE DE PRODUÇÃO? VOCÊ MOSTROU O DESENHO DO BATTISTI, QUE SAIU HOJE, EM O GLOBO. COMO É QUE VOCÊ PRODUZ?

Lan – As máculas não estão boas. Eu não enxergo mais. Enxergar para fazer um desenho grande, desse tamanho, eu faço (mostra um quadro do tamanho de um pôster). Mas, num tamanho menor, nem pensar. Então, como eu tenho um arquivo enorme, reprocesso algumas coisas. Pensa quantos desenhos eu tenho! Até o Ziraldo, outro dia, estava me dizendo isso. “Lan, você não tem idéia de quantos milhares de trabalhos você fez em tantos anos”. É verdade! São 68 anos de imprensa. Não sei mesmo. Às vezes, pego um pedaço de desenho, vou no computador... Aliás, eu não! Esse aparelho aí (aponta para o computador, no canto da sala), nem sei como é! Vem minha sobrinha me ajudar. Eu digo “faz assim, assim, assim” e monto desenhos novos a partir de desenhos antigos. Esse é o sistema. Fazer desenhos novos com desenhos velhos.

blicação, desde que exista um contrato de acordo, é do jornal. Certo? Agora, o original é meu. Por exemplo, do que foi publicado no Jornal do Brasil, é tudo meu. JORNAL DA ABI – VOCÊ TEM ESSES ORIGINAIS DO JORNAL DO BRASIL GUARDADOS?

Lan – Alguns. Porque eu tive mais de quatro mil. Eu devo ter uns 500, no máximo. Até o Senado me mandou um cd com todas as charges que eu fiz da época do Sarney. JORNAL DA ABI – O SENADO ENVIOU ISSO PRA VOCÊ?

Lan – Sim, me mandou um cd com todas as charges. E como eu esculhambei o Sarney! Vou dizer uma coisa: há uma diferença entre mim e os chargistas atuais, inclusive os próprios Chico e Paulo Caruso, o Aroeira, o Ique. Eles fazem gozação. É mais gozação sobre o fato em si do que uma crítica. Eu sempre fui mais crítico. Na Última Hora me chamavam de o chargista mais cruel que apareceu no Rio de Janeiro. Sério. Não era agressivo. Mas desenhava mesmo para criticar os fatos. JORNAL DA ABI – QUAL A SUA RELAÇÃO COM ESSA GERAÇÃO DE CARTUNISTAS POSTERIOR À SUA?

Lan – Uma vez eu vi na revista Domingo – eu já tinha saído do JB – uma caricatura sensacional do Tim Maia, do Ique, que é outro dos meus “filhos”. Fui eu que o coloquei no Jornal do Brasil, assim como o fiz com

JORNAL DA ABI – POUCOS DESENHISTAS GUARDAVAM OS ORIGINAIS, DAVAM IMPORTÂNCIA A ELES. NÃO EXISTIA ISSO. VOCÊ SEMPRE OS GUARDOU?

Lan – Eu fiz campanha contra o original pertencer ao jornal. Eles, nas regras do mercado, pertenciam ao jornal. Eu sempre disse não. Quando entrei no Jornal do Brasil, eu logo falei com o Alberto Dines, que foi quem me convidou, que os originais seriam meus. Porque em Buenos Aires fizemos isso. O dono do original é o autor! O direito de pu-

Lan criou este jornalista impertinente que, em suas charges, sempre fazia a pergunta incômoda. Acima, mais algumas charges políticas.

o Chico Caruso. Assim como botei em São Paulo o Otávio. Sou “pai” de todo mundo. Sobre a caricatura do Tim Maia, eu sempre gostei de deixar um bilhetinho para a garotada. “Muito bem, Ique, achei sensacional essa sua caricatura”, escrevi. Aí me chama o rapaz do computador: “Você gostou, Lan? Quer ver como ele fez?”. E ele me levou para o computador, botou a foto do Tim Maia, puxou o beiço, fez a cabeça de pêra que ele tinha. Exatamente a caricatura que eu tinha elogiado. Aí rasguei o bilhete e escrevi outro. “Ique, você é muito melhor sem o computador”. (risos) JORNAL DA ABI – VOCÊ TRABALHOU NOS MAIORES JORNAIS, NOS MAIS IMPORTANTES, TANTO NA

ARGENTINA BRASIL E NO URUGUAI.

QUANTO NO

Lan – No Uruguai, no maior, até hoje. O maior jornal. Na Argentina, na Editorial Haynes, que era a mais forte de Buenos Aires. Jornal Vespertino e Noticias Gráficas, que junto com o La Nación, eram os mais fortes. Aqui no Brasil, no Última Hora, fui de O Globo em 1955, mas eu não me dava com o irmão do Roberto Marinho. Ele também não me suportava, porque eu ia no jornal às onze horas da manhã e a oficina fechava a uma. Então, ele queria mostrar que eu precisava chegar às sete horas da manhã, como chegava o Theo. Mas o Theo tinha que ir às dez horas ao Ministério da Educação, onde trabalhava. Por isso que ia às sete horas. Ele pretendia que eu chegasse às sete horas como o Theo. Eu disse não. Sempre me criava um caso. Eu disse: ‘A minha demissão está às suas ordens’. E ele me matava a pau, porque me botava 25, ou 30 caricaturas, para mostrar que eu tinha que chegar cedo. Fazia as 30, porque eu fazia caricatura na velocidade. Toda a semana eu fazia um time de futebol inteiro, em cores, na Manchete Esportiva. Eu matava a pau naquela época! Então, não atrasava o jornal, porque o grande argumento dele era “o Lan está atrasando o jornal”. E não conseguia fazer. Então, na última vez, eu fui falar com o Dr. Roberto. “Olha, Dr. Roberto, não dá mais. Eu estou

me demitindo porque o seu irmão quer que eu chegue às sete horas da manhã. E às sete horas da manhã eu vou dormir, porque eu tenho direito a passar a minha noite”. O Roberto Marinho era maravilhoso e disse: “Você é um boêmio, né? Faz uma coisa, não vem na Redação, mas me manda sempre a caricatura da primeira página”. Que era a caricatura de um político, estrangeiro, como sempre. Foi muito bacana comigo. Aí o que aconteceu? O Dr. Roberto viajou num fim de ano e começaram a boicotar os meus desenhos. Eu trabalhava com Sérgio Porto e Haroldo Barbosa, que fazia O Pangaré, em O Globo. Eu mandava meu desenho junto com O Pangaré todos os dias, e não saía publicado. O Roberto voltou. E viu que meus desenhos não tinham aparecido. Então, telefonou para o Haroldo Barbosa e falou: “Escuta, eu dei todas as mordomias ao Lan e ele não manda os desenhos?”. E o Haroldo: “Não. O desenho do Lan é enviado todos os dias junto com O Pangaré para O Globo”. Dizem que o Dr. Roberto deu um esporro daqueles na Redação e apareceram todos os desenhos. Ele viaja outra vez, e acontece a mesma coisa. Aí eu digo: “Não, não dá pé!”. Então, fiz uma carta para o Dr. Roberto. “Olha, eu lamento muito, foi um orgulho para mim trabalhar com você, mas eu não tenho condições para conti-

nuar desse jeito”. E deixei o jornal. Eu tinha ainda a metade do décimo-terceiro. Viajei para Montevidéu, fiquei dois meses lá no Uruguai, aproveitei fui a Punta del Este, fui até Buenos Aires. Quando voltei estava duro e sem emprego. O que eu fiz? Como sempre. O pessoal do Diário da Noite me chamou. Tinham assumido a direção uns três gaúchos que depois fizeram o Zero Hora de Porto Alegre. Imediatamente eu fui contratado. Mas tinha o Carnaval. O que posso fazer? Estava chegando antes do Carnaval. Não poderia aproveitar? Estava sem um puto! Passei no jornal O Globo, onde encontrei o Mário Melo, grande amigo da Administração. E me diz o Mário: “Antes de falar em grana, quero dizer que não posso te entregar, sem antes falar que o Roberto não aceitou a sua demissão. Antes de você ir embora, ele quer falar com você”. Eu digo ‘Não. Vamos fazer uma coisa? Enquanto estiver o irmão dele, negativo. Eu não sei trabalhar com alguém que não gosta de mim. O Roberto pode gostar, é o dono, mas deixa para lá’. Fui embora. A segunda parte do meu décimo-terceiro deixei lá. Falei com os gaúchos que precisava de uma grana antecipada. Me anteciparam, fui brincar o Carnaval e saí na minha Portela. A vida é muito linda, sabe? É cheia de coisas assim. O Chateubriand era tão filho-da-puta que chegava no sábado, eu e o Maneco Müller, na fila de espera do vale do fim de semana, o Chatô chegava e perguntava: “Quanto tem no caixa?”. Tanto. “Manda”. E fodamse os empregados! A gente ficava sem grana. Eu me lembro que a primeira caricatura que eu fiz foi no Diário da Noite, era uma página inteira, e eu mesmo paginava em uma forma mais moderna. Um dia, eu fui lá na oficina ver como montava no chão a minha página e os caras já eram uns velhos funcionários dos Associados. Eles comentando uns com os outros: “Esse filhoJornal da ABI 370 Setembro de 2011

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A caricatura de Zico parece sair da página do jornal. Abaixo, o poetinha Vinicius de Moraes.

da-puta, olha o que inventou agora! Tem que recortar todo esse desenho aí. Só pode ser viado!” E eu ouvindo isso. Outra coisa que me aconteceu. Fiz uma capa de disco do Jorge Veiga, ele com uma lata de pintura e uma escada de pintor, porque ele foi pintor antes de tornar-se artista. Foi a Copacabana que me pediu a capa desse disco e eu fiz como eles me pediram. Ficou até uma caricatura legal. Passaram uns anos, estou na Redação do Jornal do Brasil na Avenida Brasil e aparece o Jorge Veiga. Ele bem bravo, diz: “Lan, você é o maior caricaturista do Brasil. E você sabe que o meu apelido é o Caricaturista do Samba. Então, não há nada melhor no mercado. E é um pedido que faço a você, para fazer a capa do meu mais recente lp”. Respondi que faria com o maior prazer, um pedido feito por ele. “Mas vou te pedir um favor... Tem um filho-da-puta, viado, escroto, que me fez com um balde de pintura e uma escada, num outro disco meu. Esse cara não precisava fazer aquele negócio”. E eu, fingindo espanto: “Fizeram isso com você, Jorge? É muita sacanagem”. (risos) JORNAL DA ABI – COMO ERA VIVER NAQUELA REDAÇÃO DO JORNAL DO BRASIL?

Lan – Eu adorava ir à Redação da Avenida Rio de Branco, porque era um clube. Era maravilhoso. Primeiro o prédio, que deveriam ter proibido o Nascimento Brito de derrubálo, para ganhar gabarito de quarenta e quatro andares. O Chagas Freitas abriu mão do gabarito, foi o Nascimento Brito que fez derrubar esse prédio. Filho-da-puta. O velho Jornal do Brasil foi-se. Em troca de onde está o BankBoston. JORNAL DA ABI – VOCÊ TRABALHOU COM O DINES, UM CRAQUE, JÁ EXPERIENTE NAQUELA ÉPOCA. E QUANDO ESSE PESSOAL NOVO CHEGAVA, TIPO CHICO CARUSO?

Lan – O Chico Caruso, eu trouxe de São Paulo, em 1979. JORNAL DA ABI – VOCÊ O CONVENCEU A VIR PARA O RIO?

Lan – Não, ele chorou quando eu convidei. Eu vi uma caricatura do Chico, do Figueiredo, na IstoÉ. Eu estava louco para me livrar das charges políticas já naquela época. Quando eu voltei da Europa, voltei a fazer charges, veio o AI-5... Foi a pior época. No período do AI-5, eu fazia charges diárias. Eu tive que inventar personagens mal-humorados, que representavam a minha úlcera. Era Cagliostro. Tinha dado o nome do personagem de Cagliostro. Durante um ano eu fiz charges, tinha que estar presente na reunião de editores com o Nascimento Brito. Na Redação, eu tinha ataques de úlcera incríveis com o nervosismo. Enfiava o dedo na garganta, vomitava, tirava o ácido. Foi assim que esculhambei completamente o meu estômago. Mas durou um ano, consultei um médico e ele falou: “Lan, você quer continuar fazendo gracinha ou quer morrer?”. Aí eu falei

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com o Dines: ‘Estou numa situação em que charge todo dia não posso fazer’. “Tudo bem, então. Faz uma coisa, escolhe um parceiro para alternar com ele. O espaço é teu, você faz o que você quiser”, respondeu o Dines. Eu escolhi o Henfil, mas ele mandava cinco charges e tínhamos censura dentro da Redação. Eram onze militares que queriam censurar o jornal sempre. O que acontecia? Me procuravam por todo o Rio de Janeiro, para fazer a charge no lugar da do Henfil, que não havia sido aceita. Nenhuma do Henfil passava! Passaram-se seis meses, eu me enchi. Gostava imensamente do Henfil. Ele me disse: “Lan, não dá pé. Vou ficar fazendo o meu Cangaceiro no Caderno B, mas me tira da charge política, porque não dá pé. Acabo fazendo cinco, seis, sete e são todas rejeitadas”. Ele saiu e o Dines me perguntou: “E agora? Como é que é?”. Tive que chamar o Ziraldo. Há outras versões por aí, mas, de verdade, quem deu a chance ao Ziraldo quando ele veio de Minas fui eu. Eu carreguei os desenhos do Ziraldo para a Manchete, para mostrar. JORNAL DA ABI – VOCÊ ABRIU PORTAS PARA MUITOS COLEGAS, MAS SEMPRE FOI UM CARA DISCRETO, NÃO É?

Lan – Eu não gosto de estar em todos os eventos, em todas as coisas. Eu não procuro a mídia. Vocês me procuraram para fazer essa entrevista, mas eu não procuraria vocês. Eu não procuro, não procuro. Eu gosto de ficar no meu canto, tranqüilo. O que sempre digo é que o que deve aparecer não é a minha cara, e sim o meu trabalho. Para o público, é o que interessa saber. Agora, então, que estou com essa cara de velho, escroto... (risos). Não é por aí, não é o meu temperamento. Me falam: “Lan, você precisa aparecer mais”. Me deixa quieto! Agora então tenho uma desculpa maravilhosa, que eu não enxergo. Porque eu vou a algum evento desses e não reconheço a cara de ninguém. Eu não vejo o teu rosto. Daqui, de onde estou sentado, eu não vejo o teu rosto. Chega a ser engraçado, porque eu que vivi de caricatura a vida toda hoje em dia não consigo mais fazer uma caricatura como essa, pois não enxergo. Não vejo as feições. Não posso guardar as feições na memória. A minha vida como caricaturista acabou. Por isso, prefiro usar o pastel. Porque o pastel é uma forma, como diria, quase nesse estilo do tempo da Belle Époque, impressionismo. Curioso, agora que eu não enxergo os caras pegam meus trabalhos nessa linha e dizem: “Ah, bom. Agora você pode entrar no mercado de artes plásticas”. Vai tomar no cu, porra! Em tinha 23 anos na época, já estava trabalhando no Noticias Gráficas e um desenhista velho, figura, disse “Lan, você vai se conformar em ser caricaturista a vida toda?”. Eu disse: ‘Olha, o dia em que eu me considerar realmente um

“O dia em que eu me considerar realmente um caricaturista, será a maior felicidade da minha vida. E hoje em dia eu tenho a sensação do dever cumprido.”

caricaturista será a maior felicidade da minha vida’. E hoje em dia eu tenho a sensação, mesmo não trabalhando mais com caricatura, a sensação do dever cumprido. Que cumpri comigo mesmo. Eu nunca fui ambicioso. Nunca corri atrás de grana. Grana para mim não foi uma meta, foi sempre um meio. Um resultado do trabalho, de poder me dar o prazer de sustentar um sítio como este, que é uma coisa ridícula, dois velhos, eu e minha mulher, sem filhos e com um cachorro para sustentar. Aliás, um Labrador maravilhoso, que já destruiu meia casa. E o curioso é que ele nasceu no dia 11 de setembro do ano

passado. Ainda bem que eu não tenho duas torres, pois ele já as teria derrubado! (risos). Come tudo! Come couro, é uma coisa impressionante. Destruiu o sofá... JORNAL DA ABI – E AQUELES SEUS AMIGOS NÁSSARA, ÁLVARUS?

MAIS ANTIGOS?

Lan – O mais antigo de todos os amigos que eu tive foi o Otelo Caçador da Silveira, autor do Pênalti, durante 30 anos em O Globo. Nos Jogos Pan-Americanos, em Buenos Aires, em 1950, foram jornalistas brasileiros e eu conheci Otelo, que era desenhista do Jornal dos Sports também. Veio com o Geraldo Romualdo, que era também do Jornal

dos Sports. Aí fizemos amizade, comecei a levá-lo aos cabarés. O tempo todo que esteve em Buenos Aires estive com ele. Na noite anterior de ele ir embora, fomos para o café na Calle del Carlista. Sempre parava lá. Aliás, tem um episódio que tenho que contar para vocês. Justamente nesse café, na Calle de Sarmiento y Callao. Começamos a beber pilhas e pilhas de chope. Estava nessa altura (faz um gesto com a mão elevada), o Otelo pega minha mão e diz: “Neste lugar sagrado, você vai prometer uma coisa para mim. Se algum dia você for morar no Brasil, você vai torcer pelo Flamengo”. Eu prometi, a partir desse dia, se for ao Brasil algum dia, já chego Flamengo. Foi assim que eu cheguei Flamengo. Aí o Samuel Wainer me manda para São Paulo e vem o Milton Peruzzi, filho de italiano e me diz: “Qual é o seu time? Vai torcer por quem?”. Digo “Flamengo”. “Mas como Flamengo? Porra, você é italiano. Você tem que torcer pelo Palestra!”. Querido, eu só respeito o que eu prometo. Eu prometi que iria ser Flamengo e sou Flamengo. O segundo a me esculhambar foi o Nélson Rodrigues, daquele jeito trágico: “Tu és um traidor da pátria. Você está repudiando as cores do teu país. Vermelho, branco e verde. As cores do glorioso Fluminense”. Com cara de nojo, me atacava: “E você é um rubro-negro. Você, um rubro-negro”. (risos). O Nélson era do caralho! Tem tantos lances dele na minha vida. JORNAL DA ABI – CONTE UM CASO PARA NÓS...

Lan – Eu ia muito a São Paulo, sempre, na Redação de Última Hora. Ia muito lá. O Nélson escrevia da Redação, no Rio, com máquina de escrever, A Vida Como Ela É. Ele nunca pagou um cafezinho para mim, mas todo dia eu pagava um cafezinho para ele. “Amigo, soube que você vai para São Paulo”, me disse um dia. “Eu vou”, respondi. E ele: “Porque eu vou ter que ir a São Paulo para a estréia de A Falecida”. Era a peça dele, né? Eu disse: “Beleza, já estou com minha passagem, vai lá e pega a tua”. Ele olhou para minha cara e disparou: “Você é um argonauta. Então, você troca a oportunidade de ficar sete horas e meia num ônibus, batendo papo com o seu amigo Nélson? É adepto dessa desmoralização da distância que é o avião, que faz o percurso em 45 minutos?!! Por favor, Lan!”. (risos). Resultado: fomos de ônibus. Foi o melhor papo que tive em minha vida com alguém. Inteligente, sendo um humorista sem saber que era humorista, porque ele não fazia ‘humorismo’. Era um humorista nato. O engraçado foi que, na viagem, entre tantas perguntas, fiz a ele uma bastante delicada. E me lembro da resposta. O Jânio Quadros tinha sido eleito, não me lembro se prefeito ou governador de São Paulo. Perguntei: “Nélson, o que você acha do Jânio?”. “Tenho antipatia dos homens honestos. A simpatia é a arma dos safados. A simpatia é a arma dos


Lan mostra, encantado, o seu Rio de Janeiro feminino, a cidade repleta de curvas. Abaixo, um trabalho recente dá o tom da antiga boemia carioca.

malandros. Por que, como é que eles vão fazer a safadeza que eles fazem se não for através da simpatia?”. Muitos anos depois, ao ver o Lula, eu me lembrei dessa frase, pois acho o Lula o maior ‘malandro’ que apareceu neste País. Vocês podem até gostar dele, não tenho nada contra. Nunca discuti e nunca vou brigar com um amigo por causa de política. Eu agora tese nho duas razões. Como italiano, fazer o que ele fez, defendendo o Battisti. E, como aposentado, porra, ele vetou o reajuste! Recebo a metade do que paguei durante anos, que equivaliam a dez salários. Eu recebo dois mil e pouco. É uma sacanagem. JORNAL DA ABI – E QUAL É A SUA VISÃO SOBRE PRESIDENTE DILMA?

A

Lan – Uma coisa que eu acho errada, a Presidente da República é de todos os brasileiros, não é Presidente do PT! É o que eu diria para a Dona Dilma, que por enquanto está muito presa. Ela já está começando a descolar de tudo isso. Reapareceu. Por que reapareceu? De volta com o negócio do mensalão, dos 43 indiciados. Isso voltou à tona com a Dilma, que parece mais disposta a combater e punir a bandalheira. Enquanto estiveram o Lula, Palocci, ficou tudo encoberto. Ele nunca soube de nada, coitado... (risos). Não estava informado de nada. Agora, acontece uma coisa que, infelizmente, quem recebe o bolsa-família, vai votar em quem? Óbvio. Apesar de que o bolsa-família não é o presidente que dá, é o nosso dinheiro, dos nossos impostos. Por isso é que o Brasil é o país onde se paga mais imposto no mundo. O dinheiro, pelo regime presidencialista, vai todo para o bolso do Presidente, que distribui como ele quer. Haja vista o que devem para os Municípios. Essa Câmara dos Deputados e o Senado atual são uma vergonha. Foi toda troca de cargos, do primeiro, segundo e terceiro escalões. Quarto e quinto escalões. Família, primo, neto, entrou de tudo. É uma vergonha isso! São essas coisas que me afastaram da charge política, inclusive. JORNAL DA ABI – O JOGO POLÍTICO FICOU AINDA MENOR...

Lan – Piorou muito a qualidade. Estou falando de idéias. Você podia discordar de um Heitor Beltrão, podia discordar de um Afonso Arinos, podia discordar de um Roberto Campos. Mas eram figuras de primeiríssima categoria. Tinham o dialeto. Tinham conhecimento e argumentos. JORNAL DA ABI – HOJE QUEM DITA O DEBATE DA DIREITA É O JAIR BOLSONARO...

JORNAL DA ABI – ALÉM DESSE CASO DO BATTISTI, O QUE MAIS TE TIRA DO SÉRIO?

Lan – Tem mais uma coisa: você admite um Presidente dizer publicamente que não leu um livro porque uma só página dá sono nele? Quem disse isso foi o Lula! Que exemplo é esse? É claro que ele passa por cima da Constituição, porque não deve ter lido nenhuma página da Carta Magna. Ele se acha acima do bem e do mal. É de uma soberba impressionante. Mas eu digo que entendo o fenômeno Lula. Eu vi uma entrevista dele com a Regina Casé, maravilhosa, ele ao natural. Ele é de uma comunicação, é um sujeito extremamente agradável. Ele se comunica muito bem, não tem frescura. Ao ponto de que um dia, em uma entrevista, eu disse, sinceramente, que gostaria muito de ter um Lula como companheiro no meu botequim. Porque ele, como figura de botequim, é daquelas figuras que têm casos e contos, você ri. E tomar umas e outras com ele deve ser isso aí. É minha opinião. Por isso que todos os sambistas são a favor do Lula. Zeca Pagodinho adora ele. Monarco adora ele. A Surica gosta dele. Todos eles gostam do Lula. Eles têm mais é que gostar, porque não acompanham esse lado podre da política. Eu, infelizmente, pelo vício de acompanhar política, por causa das charges, acompanho tudo. Sou viciado nisso. Fico ansioso de ver a primeira página, que vou soletrando, só para ver a manchete do jornal. Por exemplo, a de ontem me deu es-

perança na Dilma, porque está mostrando caráter. Ela aturou o negócio e mandou para o Supremo, onde só foi nomeado petista. A maioria do Supremo Tribunal é do PT. Não sei se vocês sabiam. Aí ganhou de seis a três o negócio do Battisti. A Dilma teve que lavar as mãos para não tomar uma atitude pessoal e dizer ‘vai embora’. Porque ela recebeu a carta do Presidente da Itália, caralho! Na Itália, o clima é de indignação. Eu que acompanho a Rai, vejo a revolta de lá. La Stampa, de Turim; Corriere della Sera; Il Messaggero; La Nazione, de Florença. Todos os grandes jornais arrasando com o Brasil. E tem gente propondo no programa de televisão não mandar a Seleção Italiana de futebol para a Copa do Mundo, nem atletas para as Olimpíadas, a serem realizadas no Brasil. O mal que o Lula fez aos brasileiros que estão lá... Brasileiros que estão sendo vaiados. Por serem brasileiros? Os brasileiros não têm culpa nenhuma. Foi uma cagada. E, sobretudo, uma coisa que não se perdoa. O Lula cagou em cima de uma colônia de italianos, de imigrantes, que fizeram muito pela riqueza do Brasil. Embora tenha italiano petista, como o Palocci, que é descendente de italiano. E vem o Senador Suplicy, falando: “Não, estive com o Cesare Battisti, e eu falo de cadeira, porque sou descendente de italianos, eu acredito nele e na sua inocência”. Ele merecia a Marta!

Lan – Dei uma resposta atravessada em uma entrevista coletiva com jornalistas argentinos. Era só mulher. Só repórter mulher. E tinha uma lourinha na minha frente. Sabe aquela portenha bem nojentinha? “Me gustaria preguntarle como es possible un porteño ser carioca?”. “Um carioca ser porteño? Por favor”, respondi, para explicar. “Isso não é uma boa pergunta porque você se esqueceu de um pequeno detalhe, minha filha. Eu sou italiano. E italiano, aonde vai, um mês depois, se for no Sul do Brasil, vai passar a tomar mate todos os dias. O italiano se adapta. Se for ao Japão, só vai comer de palitinho, caceta! Por isso, vou lhe dizer uma coisa, é muito provável a mesma pessoa ser portenho, porque fui portenho na época que morava aqui na Argentina. Como sou carioca, com muito orgulho, agora no Rio de Janeiro”. Pronto! Fudeu-se! Ela não esperava por essa resposta. Foi uma pergunta tão antipática... JORNAL DA ABI – VOCÊ, QUE MOROU LÁ: OS ARGENTINOS TÊM REALMENTE ESSA ANTIPATIA PELO

BRASIL?

Lan – Olha, eu fiz grandes amizades. Os cinco anos que passei em Buenos Aires foram maravilhosos. Morando lá. Agora, quando o portenho sai de Buenos Aires e vai para outro lugar, aí acha que Buenos Aires é a maior cidade do mundo. Eu me lembro que nos primeiros tempos que passeava pela Avenida Atlântica, época de turista, eu diferenciava logo. Sabia qual era o turista uruguaio, qual era o turista portenho. O uruguaio dizia: “Mira como es bueno. Mira qué maravilla! Qué lindo!”. E olha que o Uruguai tem praias maravilhosas! E Buenos Aires tem Las Ramblas, onde hoje em dia melhoraram porque botaram o porto. Os portenhos diziam: “Eso que es Copacabana? Tenemos el Mar del Plata. No se compara”. Desse jeito! (risos) JORNAL DA ABI – O HUMOR É TRAÇO MARCANTE NÃO SÓ DE SEU DESENHO, MAS DA SUA PERSONALIDADE. VOCÊ É FELIZ?

Lan – Estou na quarta idade, porque a terceira já passou, né? Sou feliz, bem humorado, continuo com humor, de bem com a vida, gostando das mulheres. Embora tenha tirado o time de campo... (risos). O que eu vou fazer? Lei da vida. Mas não deixo, virtualmente, de me exercitar... Esse negócio de virtual é um equívoco! Que prende, hoje em dia, principalmente as mulheres. Tenho várias amigas da minha idade que sonham com príncipe ainda, ficam namorando no virtual, na internet... JORNAL DA ABI – NÃO HÁ NADA MAIS VIRTUAL DO QUE A CABEÇA DA GENTE, NÉ?

Lan – Pois é isso! O virtual é a nossa cabeça. É onde nós mandamos. Ninguém entra. Eu posso falar com uma mulher: ‘Olha, eu vou pra cama com você todas as noites, e você não sabe’. O homem pode transar com uma mulher, e ela nem sabe! Porque a nossa cabeça é o único lugar livre, totalmente livre, de que nós dispomos. É a nossa cuca!

Mais sobre o Lan A série Álbum de Retratos, editada pela Memória Visual e Edições Folha Seca, é composta por pequenos e simpáticos livros que contam a história de personagens da cultura brasileira através de suas iconografias. As imagens propiciam belos projetos gráficos e os textos dos livros são econômicos, quase textos-legendas escritos por autores não menos famosos. O livro sobre o Lan, Lanfranco Vaselli, escrito por seu amigo, o ator e boêmio Antônio Pedro, pode ser encontrado nas livrarias e lojas virtuais ao lado dos outros títulos da coleção: Cacá Diegues, por Nelson Sargento; Walter Firmo, por Cora Rónai; Dona Ivone Lara, por Zélia Ducan; Jards Macalé, por João Pimentel e Turíbio Santos, por Hermínio Bello de Carvalho.

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