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Emoção e lágrimas em ato da 61ª Caravana da Anistia, no Rio

Edmar Morel, um repórter sem medo

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381 A GOSTO 2012

ÓRGÃO OFICIAL DA A SSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

JOSÉ DUAYER

MARTIN CARONE DOS SANTOS

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CARREIRA

Nelson Rodrigues e seu começo editando quadrinhos PÁGINA 44

ARTE SEQÜENCIAL

A arte genial de Liniers em exposição no Brasil PÁGINA 42

CINEMA PÁGINA 5

Georges Méliès, o cineasta que levou o homem à Lua PÁGINA 36

VIDAS JÚLIO BRAZIL • IRAMAYA BENJAMIN • JOE KUBERT • HARRY HARRISON


EDITORIAL

DESTAQUES ILUSTRAÇÃO DE JOE KUBERT PARA A MINISSÉRIE INÉDITA

JOE KUBERT PRESENTS 46

UM INVENTÁRIO DO HORROR MAURÍCIO AZÊDO SÃO ESTARRECEDORAS AS REVELAÇÕES feitas em depoimento aos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto pelo ex-Delegado do Dops Cláudio Guerra, que expõe com riqueza de pormenores os crimes cometidos nos porões da ditadura sob a chefia dele e de outros criminosos que serviram à ditadura militar 1964-1985, como o Delegado Sérgio Fleury, um dos monstros que infestaram o sistema de repressão desse período ominoso da vida nacional. AGORA TRAVESTIDO DE PRÓCER religioso, como se sua alegada fé pudesse absolvêlo dos crimes que cometeu, Cláudio Guerra enunciou nomes e situações que conduziram à prática de dezenas de assassinatos, grande parte deles consumada com requintes de inimaginável perversidade. Um dos cenários desses crimes foi a sinistra “Casa da Morte” montada em Petrópolis, na região serrana fluminense, e que foi reproduzida, para os mesmos hediondos fins, em outras cidades do País. Ali ocorreram brutalidades sem precedentes na nossa História e que só encontram símile na barbárie espalhada pelos nazistas pela Europa e pela antiga União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial e pelos Estados Unidos com suas bombas de napalm no território do Vietnã na guerra dos anos 1960 a 1970 contra o povo vietnamita.

APÓS A DIVULGAÇÃO DAS CONFISSÕES de Cláudio Guerra, a Comissão Nacional da Verdade tomou a iniciativa de ouvi-lo sobre o depoimento que prestara, para confirmação das graves revelações que fizeram. Tal como no depoimento a Medeiros e Marcelo Netto, Cláudio Guerra absteve-se de citar nomes dos profissionais da repressão que participaram dos crimes por ele expostos, deixando a critério destes a revelação da parte que lhes coube nesse inventário do horror. O assassino Guerra, carrasco de dezenas de presos políticos, invocava suposto drama de consciência: embora matador por atacado, afeta poupar-se do papel de delator. SEJA PELO QUE TENHA REVELADO à Comissão Nacional da Verdade, confirmando ou alargando o depoimento transformado em livro, Guerra abriu a porteira de um itinerário que a CNV tem a obrigação de percorrer, mediante o levantamento de quantos serviram à empreitada criminosa, sobre os quais haverá registros em escalas de serviço, em atos de designação de lotação e em tudo mais que compõe a burocracia oficial, mesmo para fins ilícitos, como aqueles em que se esmerou a repressão da ditadura. Não será por falta de pistas que se deixará de identificar esses assassinos e expô-los à exprobração pública que há muito merecem.

03 E SPECIAL - Memórias de uma guerra que ainda sangra ○

09 R EFLEXÕES - Os demônios estão de volta, por Rodolfo Konder ○

10 C OMEMORAÇÃO - Os 80 anos da ACI, a voz da comunicação em Santa Catarina ○

11 DISPUTA - A guerra de audiência dos Jogos Olímpicos ○

12 CENTENÁRIO - Edmar Morel, um gigante do jornalismo ○

18 LEGISLAÇÃO - O Senado aprova a Pec do Diploma ○

19 S UGESTÃO - Caó propõe nome de Abdias para a Via Light ○

20 IMPRENSA - O resgate histórico do Estadão ○

29 CINEMA - Fernando Meirelles, um cineasta internacional made in Brazil ○

O OLHAR DE A LPINO

Publicado no portal Yahoo! Notícias, em 3 de agosto.

30 D EPOIMENTO - Natalia Viana, olhar independente ○

35 CULTURA DE MASSA - A guerra global das mídias ○

36 C INEMA - A ressurreição de Méliès, que levou o homem à Lua ○

39 COMEMORAÇÕES - O Brasil festeja três mestres da mpb ○

42 ARTE SEQÜENCIAL - Liniers, o idioma das coisas que passam ○

44 C ARREIRA - Os quadrinhos de Nelson Rodrigues ○

SEÇÕES 080 A CONTECEU NA ABI Estudantes de Jornalismo visitam a Casa ○

26 L IBERDADE DE I MPRENSA No Pará, Prefeito candidato ameaça jornalistas de O Globo ○

27 D IREITOS H UMANOS Emoção e lágrimas na Caravana da Anistia ○

V IDAS 46 A paixão segundo Joe Kubert ○

47 Iramaya Benjamin, Júlio Brazil, Harry Harrison ○

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ESPECIAL MUNIR AHMED

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les tratam do mesmo tema: os crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil. Ambos ganharam amplo espaço na mídia quase que de forma simultânea. Em 16 de maio era instalada, em solenidade oficial na capital federal, a Comissão Nacional da Verdade-CNV. Poucos dias depois, mais precisamente no dia 21 do mesmo mês, o livro Memórias de Uma Guerra Suja teve realizado seu lançamento no Rio de Janeiro – evento que se repetiu logo em seguida em São Paulo (em 26 de maio) e em Brasília (no dia 30 subseqüente). A comissão ainda dá seus primeiros passos nas investigações. A obra editada pela Topbooks, por sua vez, é resultado final de muita pesquisa e entrevistas de fôlego, comandadas pelos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Neto. Logo de cara, Memórias de Uma Guerra Suja causou surpresa e revirou estômagos mais sensíveis, pelo teor explosivo das revelações feitas por seu personagem central. O livro, na verdade, é um vasto e detalhado depoimento do ex-delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) Cláudio Guerra, colhido pelos dois jornalistas autores da obra. Em 15 anos, o militar capixaba teria participado de uma centena de mortes como matador e estrategista do Serviço Nacional de Informações-SNI. Arrependido de tais atos, após ter experimentado o que descreve como um ‘encontro com Deus’, Guerra resolveu dar seu testemunho.

MEMÓRIAS DE UMA GUERRA QUE AINDA SANGRA Depoimento de torturador que matou dezenas de presos políticos desvenda um filão de crimes cometidos durante a ditadura militar e que deverão ser investigados pela Comissão Nacional da Verdade. POR PAULO CHICO

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“As pessoas nem precisam acreditar em mim, mas devem, sim, investigar. Há muitas famílias que ainda aguardam respostas. E muitos dos militares que foram meus companheiros de ações estão aí, vivos. Será que eles vão querer se apresentar? Acho que deviam fazê-lo. Eles não devem ter medo da verdade, podem con4

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ARQUIVO AE

APÓS AS DURAS CONFISSÕES, AS NATURAIS REAÇÕES

O grupo terrorista de Cláudio Guerra tentou impedir a abertura política iniciada no Governo Geisel com uma série de atentados a bomba, como os casos do Riocentro (ao lado) e da ABI. Guerra comandou o atentado ao prédio de O Estado de S.Paulo. ACERVO ABI

Assim, o livro traz informações sobre os bastidores das Operações Condor e Bandeirantes e outros episódios marcantes, como o caso Riocentro, o assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten e a morte do Delegado Sérgio Paranhos Fleury, também do Dops. A obra mostra como Cláudio Guerra e seu grupo tentaram dificultar ao máximo a abertura política proposta pelo então Presidente Ernesto Geisel (1974-1979) com uma série de atentados a bomba, falsamente creditados ao Partido Comunista. Ele comandou, por exemplo, uma explosão no prédio de O Estado de S.Paulo e arquitetou um ataque ao Jornal do Brasil, desarticulado por ordem do General Golbery do Couto e Silva. Os autores do livro participaram do programa Observatório da Imprensa, com grande repercussão. No dia 5 de junho a atração da TV Brasil, comandada por Alberto Dines, exibiu trechos de entrevista exclusiva feita pelo jornalista com Cláudio Guerra – a primeira concedida pelo militar após o lançamento da obra. Em meio à narrativa do ex-delegado do Dops, cuja precisão de detalhes revelouse tão impressionante quanto a aparente frieza do relato, Marcelo Neto e Rogério Medeiros chamaram a atenção para um fato: diante do teor das revelações feitas por Guerra e de sua disposição de colaborar para o esclarecimento de muitos dos crimes cometidos pelos militares na época, mostrava-se urgente a necessidade de que o personagem central de Memórias de Uma Guerra Suja fosse convidado a colaborar com a recém-instalada Comissão Nacional da Verdade. Os autores contaram que o ex-Delegado já sofrera duas ameaças. A primeira havia ocorrido em novembro do ano passado, quando um ex-companheiro mandou um tenebroso recado a Guerra: àquela altura, afirmava, ele ‘já estaria fedendo’. “A Comissão da Verdade, ou mesmo a Polícia Federal, que precisa dar garantias de segurança ao Cláudio, devem correr mais. Pois ele é um senhor de 71 anos de idade e tem problemas de saúde. O Guerra pode acrescentar muito mais coisas. Tenho certeza disso. A cada conversa com ele apreendemos um detalhe novo. E eu e o Rogério Medeiros não conseguimos mais dar conta disso. O Estado brasileiro é que deve se ocupar dessas informações que podem ajudar a esclarecer muitos crimes”, disse Marcelo Neto no programa de Dines. Rogério complementou: “O Cláudio Guerra estava numa casa de idosos mas, após algumas ameaças, saiu de lá e foi para outro local, à espera da convocação para depoimento na Comissão da Verdade”.

ANIBAL PHILOT/AGÊNCIA O GLOBO

ESPECIAL MEMÓRIAS DE UMA GUERRA QUE AINDA SANGRA

tar a história que aconteceu. Houve anistia para os dois lados, os crimes já têm mais de 20 anos – estão, portanto, prescritos pela lei. Por causa desse livro, das revelações que fiz ali, perdi minha companheira de 18 anos. Tive perdas pessoais e a condenação moral. Mas eu não sou dedoduro, não vou apontar as ações dos outros. Falo apenas na primeira pessoa. Aqueles que quiserem, que contem suas próprias histórias”, afirmou Cláudio Guerra a Alberto Dines. Antes do debate no estúdio, em editorial, o apresentador do Observatório da Imprensa comentou que o livro não pode ficar esquecido porque é “um tremendo safanão” naqueles que acham que a Comissão da Verdade é inútil. “Deste livro sai um Brasil irreconhecível, que só se reconhecerá quando for devidamente apurado o que está contado com tantos detalhes nestas páginas. É possível que a prioridade da Comissão da

Verdade seja desvendar o que aconteceu com os desaparecidos. Mas os corpos incinerados por Cláudio Guerra em uma usina de açúcar em Campos dos Goytacazes, no Estado do Rio, jamais serão resgatados. Cabe a nós, e a todos os buscadores da verdade, o resgate de suas histórias”, avaliou Dines. Para ele, mesmo que parte dos dados possa ter sido inventada, esta é uma pauta que precisa ser verificada. “Eu sentia sim que estava cometendo crimes. Mas naquela época entendia aquilo como cumprimento do dever. Aprendi desde criança a ver o comunismo como inimigo. Não apenas os militares cometeram crimes, mas também muitos civis. Na verdade, muitos empresários se beneficiaram da revolução de 1964. Alguns deles davam prêmios para quem executasse líderes de movimentos populares”, tentou justificar-se Cláudio Guerra, numa clara sinalização de que ainda tem muito a revelar.

O Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção do Estado do Rio de Janeiro, Wadih Damous, considera que é necessário investigar com profundidade as informações contidas em Memórias de Uma Guerra Suja: “Esses relatos podem vir a dar alguma pista sobre o que mais queremos, que é o paradeiro dos desaparecidos, uma ferida ainda não cicatrizada na História da democracia brasileira. E também não se deve aceitar de pronto tudo o que está sendo relatado. Temos a Polícia Federal, o Ministério Público Federal. Esses órgãos devem, a partir de relatos como esse, iniciar uma investigação”. Rose Nogueira, Presidente do Tortura Nunca Mais de São Paulo, classifica Cláudio Guerra como assassino e réu confesso. “Ele cometeu crimes permanentes, de seqüestro e de desaparecimento de corpos. Ele cometeu crime de tortura, de execução sumária. Esses crimes são de lesa-humanidade, são imprescritíveis. Esse livro muda toda a História. Há muitos fatos ali que são congruentes, que batem com aquilo que a gente sabia”, sublinhou Rose. Ela ponderou que o relato de Guerra situa a esquerda como uma quadrilha que se aproveitava do dinheiro dos empresários, visão afinada com a política de Estado dos anos de chumbo. Rose, no entanto, defende que o direito à resistência é um dos Direitos Humanos: “Quando se fala em luta armada, eu penso que quem a fez contra o povo brasileiro foi a ditadura militar. O que nós fizemos foi uma luta de resistência”. A visão radical de Rose Nogueira não é compartilhada por Marcelo Neto. “Ele ingressou na Igreja Assembléia de Deus, na qual hoje é pastor. Guerra tem a consciência de que vai viver uma vida muito complicada a partir do que contou no livro, que vai ter um resto de vida cheio de polêmicas, acusações. Mas ele está tranqüilo, consciente de que o seu papel é ajudar a esclarecer o que se passou. Ele quer colaborar com a Comissão Nacional da Verdade, quer mesmo se colocar à disposição para ficar em paz consigo mesmo.”

ENFIM, O DEPOIMENTO À COMISSÃO DA VERDADE Por sugestão dos autores de Memórias de Uma Guerra Suja e também por fundamentada pressão da mídia, Cláudio Guerra foi convidado a depor na Comissão Nacional da Verdade. No dia 25 de junho o ex-delegado do Dops reafirmou os crimes que cometeu durante a ditadura militar. De acordo com o coordenador da comissão, Ministro Gilson Dipp, Guerra sugeriu que o grupo ouvisse algumas pessoas citadas por ele no livro. As denúncias de incineração de cadáveres feitas por Guerra – fato que teria ocorrido na usina de açúcar Cambahyba, em Campos, no Norte Fluminense – estão sendo investigadas pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal. Perguntado sobre a possibilidade de as investigações prejudicarem os trabalhos da Comissão, Dipp disse que é necessário esclarecer que o grupo de trabalho comandado por ele não é jurisdicional ou perse-


JOSÉ DUAYER

cutório, nem atua visando a fornecer dados para o Ministério Público. Os depoimentos que vêm sendo colhidos pela Comissão da Verdade seguem em caráter sigiloso. Os membros acreditam que essa tática pode facilitar a obtenção de novos dados e convencer pessoas importantes a contribuírem com os trabalhos do órgão. Se os jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto concordaram sobre a necessidade de uma participação ampla de Guerra na Comissão da Verdade, eles divergem sobre as reais intenções do militar ao revelar sua história secreta ao País. “Eu e Rogério temos posições diferentes. O Rogério é muito cético com relação ao Guerra, talvez tenha dúvida da fé dele. Eu sou absolutamente materialista, nunca acreditei em Deus, não acredito em nada de religião. E, no entanto, nesses meses todos, anos de conversa, passei a achar que o Cláudio acredita em Deus. Eu acho que ele realmente está a fim de ajudar”, disse Marcelo, durante debate no ato de lançamento do livro no Rio de Janeiro, ocorrido na Livraria Travessa do Shopping Leblon. “Ele é um assassino. Quando me procuraram para entregar essa história é claro que eu iria tratá-lo como um assassino, porque realmente ele é. A questão religiosa serve para ele, mas não é o caminho. Ele se vale da Bíblia para mudar a própria vida”, retrucou Rogério. “Eu tenho feito esforço, e vou apanhar muito por causa disso, no sentido de mostrar que é muito melhor tirar dele informações do que partir para cima, tentar destruí-lo e desqualificá-lo”, ponderou Neto. Os jornalistas aproveitaram para reforçar, mais uma vez, duas linhas distintas da atuação de Cláudio Guerra quando a serviço da ditadura militar. A primeira atividade, e talvez a mais chocante, era a de execução sumária de pessoas da extrema esquerda, oposicionistas ao regime vigente. Algo que o militar já estava acostumado a fazer em terras capixabas. Depois, com a prolongação do regime de exceção, militares descontentes com o incipiente processo de abertura política, grupo do qual faziam parte Cláudio e seus companheiros mais próximos, estabeleceram uma rotina de atentados, sempre associados a atos supostamente de origem comunista, numa tentativa de mobilizar a população em favor da permanência dos militares no poder. O fato irrefutável é que Guerra tem mesmo muito a dizer. Ele afirma ter conhecimento da existência de cemitérios clandestinos em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e em São Paulo. Em Minas, cita a Lagoa da Pampulha e o subsolo da Delegacia de Roubos e Furtos de Belo Horizonte como pontos de descarte de presos políticos executados. Em São Paulo, contou no livro, ajudou a descartar corpos no sítio de um ex-policial paulista. Haveria, ainda, outro cemitério clandestino em Petrópolis, na Região Serrana do Rio. Os autores de Memórias de Uma Guerra Suja adiantaram que uma nova edição do livro está em preparo, já que algumas denúncias devem ser confirmadas e atualizadas. Há também rico material fotográfico de pesquisa a ser publicado.

ROGÉRIO MEDEIROS

“Repórter que se preza corre atrás dos fatos” Para aprofundar um pouco mais a reflexão sobre a importância de Memórias de Uma Guerra Suja, bem como entender melhor o papel de Cláudio Guerra, personagem central da obra, o Jornal da ABI entrou em contato com um dos autores do livro. Rogério Medeiros é fundador do jornal eletrônico Século Diário e trabalhou em veículos como Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, A Tribuna e A Gazeta. Escreveu diversos livros, entre eles Um Novo Espírito Santo – Onde a Corrupção Veste Toga, em colaboração com o jornalista Sten ka Calado, falecido recentemente. As obras Espírito Santo, Maldição Ecológica e Tradições Populares do Espírito Santo são outras de suas publicações. Também fotógrafo, criou e dirigiu a Vix, uma das primeiras agências de fotografia do País. Sindicalista, fundou e dirigiu o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Espírito Santo e representou a entidade na Federação Nacional dos Jornalistas. Na participação no Observatório da Imprensa, Rogério contou que há 30 anos havia publicado uma reportagem no Jornal do Brasil que acabou com a áura de combatente do crime organizado que

Guerra mantinha no Espírito Santo. Em 2009, um advogado do ex-Delegado procurou o jornalista, levando-o ao hospital onde Guerra estava internado. Logo recebeu o convite para escrever o livro. Os autores consideraram que o depoimento soaria como verdadeiro se fosse feito na primeira pessoa e precisaram convencer Guerra a aceitar esse formato. Eles chegaram a alertar o militar de que, com a publicação das revelações, ele poderia morrer ou voltar para a cadeia, onde cumpria pena pela acusação de ter matado um bicheiro. Alerta feito, condições estabelecidas, Cláudio topou falar. Assim, Memórias de Uma Guerra Suja chegou às livrarias e entrou para a História como uma das mais impactantes obras que retratam as atrocidades cometidas durante o regime militar. Jornal da ABI – De todo o relato feito por Cláudio Guerra, qual foi o momento mais marcante? Não parece existir nele certa frieza ao relembrar passagens, por vezes, chocantes e dramáticas? Rogério Medeiros – Olha, a frieza do Cláudio pode ser uma percepção de quem entra agora nos crimes que ele cometeu para

o regime militar. Você há de considerar que ele não era um matador novo, e sim tinha 40 anos de experiência, quando andou matando a serviço das elites militares no Norte do Espírito Santo e Leste de Minas Gerais. E depois passou a atuar para as elites políticas capixabas. Matar, para ele, era uma coisa relativamente normal, penso eu. Da conversa com o Cláudio o momento mais marcante foi quando o convenci de falar dos crimes de que ele participou. E que isso fosse dito na primeira pessoa. Demorou, houve momentos até de pânico, pois houve desconfiança em áreas militares de que ele desse com a língua nos dentes. Jornal da ABI – Não parece ter sido tímido o espaço dedicado à divulgação do lançamento do livro de vocês na grande imprensa? A que credita esse fato? Rogério Medeiros – Eu não estou aqui para tratar de discutir a timidez da imprensa da elite brasileira. Mas nunca se esqueça de que Cláudio relata no livro um falso atentado à casa do Roberto Marinho e a utilização de carros devidamente identificados da Folha de S.Paulo por agentes da repressão. Dá para você entender, meu caro repórter?

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ESPECIAL MEMÓRIAS DE UMA GUERRA QUE AINDA SANGRA

Jornal da ABI – Seria de se esperar que, após as revelações feitas no livro, a imprensa partisse atrás de outras histórias, de agentes do regime militar que, segundo o próprio Guerra, talvez estivessem dispostos a falar... Por que isso não ocorreu? Falta vigor investigativo à grande imprensa, hoje, no Brasil? Rogério Medeiros – Vamos deixar a grande imprensa pra lá, porque anteriormente já elucidei a sua timidez em tratar do livro. Jornal da ABI – Então, na verdade, boa parte dos veículos tem algum ‘rabo preso’ com o regime militar – prestaram apoio de alguma forma... Para muitos jornais não ‘interessa’ levantar histórias desse período? Rogério Medeiros – Sim, mas qual era a imprensa que estava contra o golpe militar? Ela estava do lado dos militares. Só desceu da companhia dos militares quando o regime mostrou a sua podridão interna. Esses detalhes vão ser conhecidos... Neste sentido, o depoimento de Cláudio Guerra na Comissão da Verdade, em 25 de junho, poderá ter ajudado muito. Jornal da ABI – Falta agilidade à Comissão da Verdade? Rogério Medeiros – Não, você pode ver que ela foi até ágil. Ela já convocou e ou-

viu o Cláudio Guerra. Aí você tem que diferenciar uma coisa: ele só falou aquilo tudo para não faltar credibilidade ao trabalho: “Fiz atentados, eu matei, queimei...”. Nisso coube ao meu companheiro Marcelo Neto pesquisar as circunstâncias em que se deram os fatos contados por ele. Na verdade, o livro é do Cláudio Guerra. Se o livro é na primeira pessoa, é dele. Nessa longa convivência com o Cláudio, de três anos atrás, quando ainda não existia a Comissão de Verdade, o Marcelo entrou nos últimos sete meses e fez um belo trabalho. O Guerra me contou muita coisa que vivenciou, mas da qual não era protagonista. Porque ele teve ascensão muito grande na comunidade de informação. Ele entra como executor, depois passa a braço direito do principal mentor ideológico do Doi/Codi, o Coronel Freddie Perdigão, e acaba como estrategista no escritório do SNI no Rio de Janeiro. Então, ele sabe muito. Eu ouvi dele que há mais seis ‘Cláudios Guerra’ dentro da comunidade de informação que podem até não ter matado tanto quanto ele, mas mataram a ponto de se tornarem criminosos. Isso vai ficar por conta da Comissão da Verdade. Aliás, ele foi para lá convencido a contar tudo. Ele está tomado de uma religiosidade enorme que assumiu com a condição de evangélico, membro da Igreja Assembléia de Deus,

onde já foi diácono e se transformou em pastor. Aí já pensou onde vai dar isso... Jornal da ABI – Você, Marcelo Neto e Cláudio Guerra sofreram novas ameaças após a repercussão do lançamento do livro? Temem por sua segurança? Tomam cuidados efetivos? Rogério Medeiros – Esse é um assunto que para mim passa batido. Estou muito velho para que possa me achar um herói. Me considero um repórter que andou atrás dos fatos e chegou a dados edificantes capazes de mudar a História do País. Me sinto um privilegiado, assim como qualquer repórter se sentiria em uma situação dessas. Embora tenha passado pelo Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e tenha publicado importantes matérias. Vejo nos debates de que participo em São Paulo, no Rio de Janeiro, que os jovens vão e se perguntam “como um repórter lá da roça encontrou a matéria-prima dessa grandeza?”. A resposta é simples: aos 76 anos continuou na rua, fazendo matéria. Repórter que se preza corre atrás dos fatos. Jornal da ABI – Qual foi a tiragem desta primeira edição deMemóriasdeumaGuerra Suja? Procede a informação de que é difícil encontrar o livro no mercado? Rogério Medeiros – Isso não é de meu conhecimento, mas o editor José Mário

Pereira já fez várias edições. Basta ver que o livro está entre os mais vendidos nas atuais listas. Jornal da ABI – Por fim, uma pergunta absolutamente pessoal: qual sua avaliação sobre a trajetória de Cláudio Guerra, bem como sua decisão de revelar suas ações em favor do regime militar? Até que ponto seus relatos são plenamente confiáveis? Rogério Medeiros – São totalmente confiáveis. Nós passamos três anos checando, rechecando as coisas dele. Esse livro tem algo extremamente interessante, razão pela qual estou nele. É que, quando no JB, levantei 35 crimes de Cláudio Guerra no Espírito Santo em matérias minhas. Justo quando ele era a figura máxima do combate à criminalidade – o que resultou na sua queda e na sua demissão do serviço público. E o que valeu o inquérito onde foi apontado como o chefe do crime organizado. Isso está no livro. Depois de 30 anos, ele no hospital, me chamou e disse que quase tudo que eu escrevi era verdade, mas quis entregar sua vida para que eu a contasse. Tudo começou daí. Agora vale o registro de que, desde o início, disse ao Guerra que, questão religiosa à parte, eu iria tratá-lo como um criminoso. E o livro o trata exatamente assim. FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

GILSON DIPP

“Já estamos cumprindo o nosso papel de fomentar a discussão” Logo ao tentar entrar em contato com o Ministro Gilson Dipp para tratar dos passos iniciais da Comissão Nacional da Verdade, este repórter encontrou algumas dificuldades. A mais evidente delas foi justamente acompanhar as notícias sobre o ritmo dos trabalhos do grupo que havia sido constituído em maio. O problema foi solucionado em 26 de julho, com o lançamento do site oficial da Comissão, ainda provisório, que pode ser acessado no endereço www.cnv.gov.br. Nele podem ser consultados os perfis dos seus membros, a agenda de atividades e o histórico dos debates já realizados, além de um bem-vindo canal Fale Conosco – aberto para o recebimento de perguntas, sugestões e colaborações. Estreitar os laços da Comissão com a população é fator decisivo para que os trabalhos a serem desenvolvidos ganhem eficácia e tenham relevância. Tratar de violações aos direitos humanos é pauta de interesse geral. O gaúcho Gilson Langaro Dipp é o primeiro presidente da CNV – outros membros se revezarão nesta função. Nascido em Passo Fundo em 1944, Dipp é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRS. Ministro do Superior Tribu6

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nal de Justiça, ele é cauteloso ao falar dos objetivos da Comissão que preside. Não segue a linha de revisitar fantasmas. Mexer em feridas. Ao contrário, adota a postura dos que defendem uma espécie de ‘pacificação’ da memória nacional. Gilson Dipp respondeu às perguntas enviadas pelo Jornal da ABI com a mesma discrição com que tem pautado suas ações à frente da Comissão. A partir de suas ponderações é possível concluir que, apesar do calor do tema, a temperatura dos trabalhos segue amena. Não há indícios de febres, nem se vislumbram fortes emoções. Parte disso deve-se ao fato de que foi decidido que a Comissão deverá fazer algumas audiências sigilosas. A medida, segundo o Ministro, tem como objetivo preservar os depoentes e não colocar em risco as investigações. “Não podemos desperdiçar uma oportunidade de se atingir a verdade pela simples postura de divulgar imediatamente aquilo à sociedade. Vamos tomar depoimentos sigilosos, mas eles vão dar vários indícios de onde podemos procurar informações mais detalhadas”, garantiu. Jornal da ABI – Que balanço o Senhor faz destes três meses iniciais da Comis-

são Nacional da Verdade, da qual é o primeiro Presidente? Quais as principais ações desenvolvidas e quantos depoimentos já foram ouvidos? Qual, até agora, o mais marcante? Gilson Dipp – Os primeiros momentos de qualquer instituição nova são naturalmente de organização interna e aqui não é diferente. Mas na avaliação que faço penso que houve avanços significativos de ordenação dos temas a abordar e a proposição de linhas e subgrupos de trabalho, como distribuir tarefas e encargos – por exemplo: audiências; coleta de documentos; exame de material já existente; revisão bibliográfica... Depoimentos de personalidades envolvidas não são em si a parte mais decisiva do objeto da Comissão, que, pela lei, deverá encarregar-se do esclarecimento das graves violações de direitos humanos. E, nesse sentido, não há um relato mais importante do que outro, já que é o resultado que qualifica as iniciativas. Jornal da ABI – A partir desses depoimentos, como se desdobram os trabalhos da Comissão? No que essas informações levantadas podem resultar? Gilson Dipp – Os depoimentos, como o desenvolvimento de todas as demais

tarefas, produzem material de informação destinado a subsidiar as proposições que a Comissão vai suscitar, e que podem ser de visitas a locais, coleta de papéis, pesquisa em arquivos públicos ou particulares e naturalmente outras inquirições, novas ou complementares. Jornal da ABI – Como descreveria o depoimento do ex-delegado do Dops Cláudio Guerra, cujas histórias deram origem ao livro Memórias de Uma Guerra Suja? Ele indicou novos nomes que possam colaborar com depoimentos à Comissão? Gilson Dipp – O Senhor Cláudio Guerra dissertou sobre aspectos de seu livro de maneira mais informal que um texto escrito. Mas as eventuais considerações que não tivessem cabido no livro não constituíram desde logo novidade. De sua


LEMBRANÇAS

entrevista alguns pontos foram destacados para oportuna verificação juntamente com outros aspectos. O que será feito assim que os subgrupos tenham completado suas estratégias e planos de trabalho. Jornal da ABI – Jornais têm dedicado reportagens de capa a pautas investigativas, com o apontamento de torturadores do regime militar, como que num desdobramento editorial da série de ‘esculachos’ realizados pelo País. Em que medida a imprensa ajuda – ou pode ajudar – a pautar a Comissão da Verdade? Imprensa e Comissão poderiam – ou deveriam – caminhar de mãos dadas? Gilson Dipp – O interesse que a imprensa tem revelado pelos trabalhos da Comissão, assim como por achados em arquivos públicos e até por manifestações públicas, como os chamados “esculachos”, mostra que a própria criação da Comissão resulta muito do interesse que diferentes setores da sociedade têm pelo tema. Quando as pessoas debatem os atos e opiniões da Comissão já estamos cumprindo o nosso papel de fomentar a discussão. As instituições, porém, têm cada qual seu caminho e não há nenhum inconveniente que sigam seus objetivos próprios. Jornal da ABI – Chegaram a ser veiculadas críticas à postura de alguns membros da Comissão, em especial em relação à defesa da não revisão da Lei de Anistia. Rever esse posicionamento, isto é, vislumbrar a possibilidade de punição real a autores de crimes como a tortura, não é um ponto vital para que os trabalhos da CNV tenham rumo definido, e cheguem a um bom termo final? Gilson Dipp – A Conselheira Rosa Cardoso em entrevista recente ao jornal Valor Econômico expôs com precisão sua opinião, que a meu ver coincide com a proposição mais adequada. A Comissão não tem finalidade persecutória nem busca a penalização de condutas, mas sim o exame e esclarecimento das graves violações de direitos humanos ocorridas no período das Constituições de 1946 a 1988. De outra parte, o Brasil assumiu compromissos internacionais em face de diversas convenções e tratados pelos quais têm responsabilidades das quais deverá dar satisfações no concerto das nações. Jornal da ABI – Quais são os canais abertos para quem deseja colaborar com a Comissão? O andamento dos trabalhos, em alguma época e de alguma forma, talvez online, estará aberto à consulta pública? Há algum projeto neste sentido? Gilson Dipp – O site da CNV oferece os dados, endereços e local onde qualquer interessado poderá dirigir-se para emprestar sua colaboração, solicitar informações ou simplesmente familiarizar-se com os seus trabalhos. Ao final do prazo será editado um relatório que abrangerá todos os aspectos da atuação da CNV, embora periodicamente seja distribuído material informativo, podendo, eventualmente, ser disponibilizado à consulta aqueles informes cuja confirmação da opinião pública possa ser interessante ou constituam conhecimento útil para o público em geral ou especializado.

O fim trágico de Arthur Ferreira Em 1927, o jornalista era Diretor de A Hora, polêmico jornal de uma Bahia conturbada. P OR B ERNARDINO C APELL F ERREIRA

Seu filho, sócio da ABI, que tinha três anos na época, evoca os dias dramáticos daqueles tempos em Salvador. Em bom momento a nossa ABI fez transcrever em seu site matéria publicada em 5 de abril passado sob o título A liberdade de Imprensa no Brasil e no mundo, pela Associação Riograndense de Imprensa-ARI. O fato incisivo da citação liga-se a inúmeros casos relativos à violência contra jornalistas no Brasil e no mundo e levaram-me a reviver um fato atroz que se deu, em época passada, em Salvador, Bahia, relativo ao assassinato do nosso pai, jornalista Arthur Ferreira, proprietário do Jornal A Hora, no ano de 1927, crime esse perpetrado covardemente pelo dirigente de uma empresa estatal do Estado. Esta matéria resulta, pois, das lembranças, jamais desvanecidas, emolduradas que ficaram em todos os seus cruciantes aspectos, mormente quando nos vem à mente o imolar de jornalistas pela sanha assassina de inconformados criminosos. Sob todas as nuances que revestem esses crimes, foi meu pai abatido em razão do afã que o levava a jamais esquivar-se de lutas que julgava pertencerem ao seu jornalismo. Essas lutas, ao que soube e do que tenho lido a respeito do nosso malogrado pai, foram fomentadas nos meandros das cortes palacianas, quando as classes políticopartidárias se digladiavam entre si, cultivando discórdias, mas que em momentos oportunos se bandeavam, na procura de outros interesses, como aliás até hoje o fazem. Seabrista (partidário de José Joaquim Seabra), Governador da Bahia, Arthur Ferreira já em 1918 sofreria o empastelamento do seu jornal, A Hora. Perseguido em Salvador por forças políticas contrárias,com possibilidade de ser aprisionado,foi defendido pelo Senador Rui Barbosa, o qual usou de veemente discurso como orador de grande prestígio que era, a fim de defendê-lo, conforme transcrição efetuada no jornal A Hora em 31 de maio de 1918. A expressão “mídia” não me lembro de ter sido usada para exprimir, como

hoje, fatos relativos à imprensa, atividade essa, todavia, merecedora das observações dos jornais da Bahia, palco que foi do que poderíamos chamar de estratégias políticas de grande parte de senadores e deputados cujos partidos conflitavam na busca de eleitores. Segundo a mídia da época, a Bahia foi palco de estratégias políticas de todos aqueles que ambicionavam por todos os meios, morais ou não, assumir o seu Governo. Os períodos mais acirrados foram entre os anos de 1896 e 1920, nos quais a imprensa baiana oscilava no pró ou contra os nomes que surgiam como candidatos ao Governo do Estado. Daí, fatos de grande repercussão envolveram, como não poderia deixar de ser, o jornal A Hora e o seu dirigente e proprietário Arthur Ferreira. Dois fatos teriam como pano de fundo a figura do meu pai. O primeiro foi o imprevisto que o fez matar o intendente municipal, Tenente Propício Carneiro da Fontoura, que havia prometido chicoteá-lo na face quando o encontrasse: Ele tentaria fazê-lo, quando o jornalista, em companhia de colegas e amigos, tomava seus drinques em um dos cafés da Cidade Baixa, em Salvador. Ao notar a presença do Tenente Propício, Arthur Ferreira alertou-o a não prosseguir no seu intento e alvejou-o com sua arma quando o tresloucado oficial brandia o chicote à procura do seu rosto. Meu pai, graças a inúmeras testemunhas do incidente, não chegou a ser pronunciado pela Justiça. Todavia o fato, segundo relato da nossa venerada mãe, acabrunhou-o bastante, embora sua ação tivesse sido compreendida por todos os presentes, como em defesa de sua honra, pois que um homem de brio não poderia permitir que fosse chicoteado. O segundo incidente se deu no dia 8 de setembro de 1927. Eu tinha apenas três anos e meus dois irmãos, oito e doze. Nossa mãe continuava com preocupação constante, face à vida atribulada do meu pai, às voltas com os seus trabalhos jornalísticos, e foi então que a nova tragédia aconteceu. Na data citada, quis o destino traçar um novo embate trágico. No mesmo local onde fora obrigado a matar um

semelhante, o restaurante Gastronome, o malogrado jornalista seria vítima de um desafeto, dirigente da Navegação Baiana na época, Aristóteles Góes, que o matou a tiro, covardemente, pelas costas, sem dar-lhe tempo para defender-se. O algoz foi preso em flagrante, não nos cabendo discorrer sobre as razões que motivaram o estúpido crime, aparentemente em razão de possíveis matérias publicadas em A Hora sobre a administração da empresa onde trabalhava o covarde assassino. Torna-se ainda hoje cada vez mais crucial a liberdade de imprensa no Brasil e no mundo. Na verdade, a própria evolução social, trazendo-nos divergências abrangentes e em cadeia, matérias que envolvam interesses comerciais ou industriais; as questões religiosas; a política de bastidores, as críticas mordazes contra desmandos, tudo isso nos leva a temer reações que tenham como objetivo principal silenciar os órgãos da imprensa, seus repórteres e jornalistas, que atuam dia a dia na busca de esclarecimentos e fazem críticas mordazes que nem sempre são aceitas, mormente aquelas que denunciam corrupção. Deixemos, todavia, que o tempo, este nosso grande amigo, nos socorra ou, melhor, demonstre cada vez mais o valor da liberdade da Imprensa, com todas as possíveis falhas de suas direções, dos seus jornalistas e possíveis trêfegos que não deixam de existir, a fim de que saibamos sempre erigir a imprensa como um órgão cuja tarefa principal é a de informar e fiscalizar a verdade das denúncias, para o bem e a segurança da sociedade. Para fechar, devo lembrar que ao nosso lado temos como garantia de um padrão jamais questionado a nossa Associação Brasileira de Imprensa, a qual, desde a sua fundação, tem demonstrado para que veio no que tange à defesa dos princípios que regem a nossa Carta Magna, apresentando periodicamente exemplar trabalho na veiculação de matérias que envolvem aspectos políticos, técnicos ou econômicos do País. Bernardino Capell Ferreira, sócio da ABI, é economista, jornalista e sócio titular do Instituto Geográfico e Histórico Militar do Brasil, da Academia Ferroviária de Letras e da Academia do Lions Clube do Rio de Janeiro.

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ACONTECEU NA ABI

Estudantes de Jornalismo visitam a Casa Alunos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ficaram impressionados com o seu histórico de lutas pela liberdade.

Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com

deseja seguir a carreira de repórter, também chamou a atenção para o acervo da Associação. “Achei muito interessante conhecer a Biblioteca da ABI e saber que temos este espaço para realizar pesquisas sobre a História da Imprensa no Brasil, para trabalhos acadêmicos e até mesmo para estudos mais complexos, como a monografia de conclusão de curso. É uma fonte importante acessível a estudantes e profissionais da área”, disse ele. De acordo com Cristiane, os alunos serão estimulados a escrever uma matéria sobre o encontro na ABI, para publicação no blog do curso de Jornalismo, disponibilizado no site do A Professora Cristiane Venâncio e seus alunos de Jornalismo Impresso II, da UFRRJ, no Edifício Herbert Moses. Instituto de Ciências Humanas e Sociais-ICHS. As ações extraclasse fazem parte “O curso de Jornalismo da UFRRJ “Gostei muito de obter da rotina acadêmica dos alunos de teve início em 2010, e já é o terceiro informações sobre a contribuição Jornalismo da UFRRJ, que já mais procurado dentro do universo da ABI para o jornalismo e a percorreram as Redações dos jornais de 51 carreiras oferecidas pela Rural. História política do Brasil. O acervo O Globo, Extra e O Dia e da Rádio Por enquanto, temos apenas três fotográfico da entidade é um dos Tupi. Na semana seguinte o grupo turmas (1º, 3º e 5º períodos). A Rural destaques desta visita”, disse a reuniu-se para conhecer o Centro de é a única universidade pública na aluna Bruna Rodrigues, que se Cultura e Memória do Jornalismo, Baixada Fluminense, região formada impressionou com a galeria de fotos instituição de pesquisa do Sindicato por 12 Municípios no Estado do Rio sobre a Casa montada no nono dos Jornalistas Profissionais do de Janeiro”, informou a Professora andar do Edifício Herbert Moses. Municípío do Rio de Janeiro. Cristiane. (Cláudia Souza) O estudante Kleber Costa, que CLÁUDIA SOUZA

Um grupo de cinco alunos do terceiro período do curso de Jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFRRJ visitou pela primeira vez o Edifício Herbert Moses, sede da ABI, no dia 3 de agosto. Acompanhados pela Professora Cristiane Venâncio, que leciona a cadeira Jornalismo Impresso II, eles conheceram a história da entidade e de jornalistas que ajudaram a construir a trajetória centenária. “Em virtude da greve dos professores das universidades federais surgiu a idéia de ocuparmos a nossa agenda com diversas atividades, inicialmente dentro da própria UFRRJ, mas depois chegamos à conclusão de que seria melhor sairmos do espaço acadêmico”, explicou Cristiane. Antes da visita, os estudantes tinham pouca informação a respeito do histórico de lutas da ABI pelas liberdades. “Eles adquiriram os primeiros conhecimentos sobre a entidade durante as minhas aulas, porque sempre que possível procuro agregar o contexto histórico ao conteúdo dado em sala de aula. Esta experiência extremamente enriquecedora, de caráter acadêmico e pedagógico, certamente abrirá os horizontes dos alunos sob dois aspectos principais: a prática profissional jornalística e o papel político e social do jornalista no mundo”, sublinha Cristiane.

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira

Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

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Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • AGOSTO DE 2012 O 381 JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


REFLEXÕES

Os demônios estão de volta A intolerância, o preconceito, o ódio, a ignorância são os maiores inimigos. Estão em toda parte, inclusive dentro de nós. POR RODOLFO KONDER

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O fascismo chega às paisagens desoladas, e das colunas de fumaça emergem outros ditadores – Pinochet, Gomulka, Ceausesco. Vemos exércitos que já foram disciplinados e assustadores, mas, na pós-modernidade, lavam suas fardas puídas e descascam batatas nos fundos de quartéis decadentes.

te o conflito, diante da bestialidade revelada nos campos de extermínio – Dachau, Treblinka, Birkenau, Auschwitz, Sobibor e tantos outros – descobrimos que os homens precisavam se proteger dos próprios homens. Em 1948, redigimos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada na Onu. Qual foi o resultado? Tivemos a Guerra Fria e incontáveis conflitos localizados. Ao longo do século 20, o período mais sangrento da História, as guerras mataram 191 milhões de seres humanos. “Sabemos agora do que o homem é capaz”, concluiu o pensador franco-suiço George Steiner, debruçado sobre os registros daqueles tempos atormentados. Entramos no século 21, mas o quadro permanece inalterado. Não houve avanços. Ao contrário, a situação parece cada dia mais ameaçadora. Às ditaduras e às guerras, somamos agora o terrorismo, a droga, a criminalidade crescente. O que fazer? Nas tempestades de areia do nosso destino, nas cavernas mais profundas da nossa aventura, escondem-se terroristas e delatores, torturadores e carcereiros, cassandras e fanáticos, patriotas e usurpadores, predadores e corruptos, seqüestradores e sociopatas. As ditaduras e as guerras são o seu espaço vital, os momentos da sua plena realização. Mas os principais inimigos – cabe lembrar – ainda são a intolerância, o preconceito, o ódio, a ignorância. Estão em toda parte, inclusive dentro de nós. Os principais inimigos, portanto, somos nós mesmos. ELIANE SOARES

e alguma imprevisível esquina do tempo, surgem personagens e exércitos trazidos das sombras para nos aterrorizar. Sua ferocidade vem de longe, das planícies africanas, dos planaltos e das cavernas. Envolve tribos antigas e impérios atuais. Reúne o General Custer e o Presidente Bush, Médici e Stroessner, Papa Doc e Leonid Brejnev, Bin Laden e Nabucodonosor, ditadores e fariseus. Os inimigos da inteligência têm hoje garras de tungstênio, olhos que enxergam na escuridão e se estendem além do horizonte, um faro capaz de localizar os esconderijos mais recônditos, e ouvidos que podem distinguir as árvores pelo farfalhar de suas folhas. Eles avançam e destróem. They search and destroy. É a guerra. Pelas frestas dos confrontos, ressurge Nabucodonosor, tirano implacável que invadiu Jerusalém, deportou multidões, sitiou a cidade de Tiro durante treze anos e ergueu muralhas quase intransponíveis entre os Rios Tigre e Eufrates, numa região conhecida como Mesopotâmia, alguns séculos antes de Cristo. Embora os exércitos, os impérios, e os ditadores também se desmanchem no ar, como tudo que e sólido, ficaram os prejuízos, as perdas, as ausências. As pessoas já não são nem serão as mesmas, porque as guerras e as ditaduras nos recolocam diante do estilhaçado espelho da História, em que redescobrimos sempre a fera à espreita ou o lagarto esfomeado. As mesmas explosões que rasgam o silêncio, a carne e a cronologia, junto aos barrentos e poluídos rios da Mesopotâmia, no Sudão ou na Etiópia, trazem da Itália dos anos 1940 um enfurecido “Duce”.

Os espanhóis da Falange, discípulos de Francisco Franco – que comandou um golpe contra o governo constitucional, a partir de 1936, até a tomada do poder, em 1939 –, continuam vivos e ativos. Sonham com a volta da repressão franquista, com a selvageria da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945. Então, ainda estarrecidos diante dos massacres ocorridos duran-

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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COMEMORAÇÃO

Os 80 anos da ACI, a voz da comunicação em Santa Catarina Fundada sob a liderança de um dos mais polêmicos intelectuais do Estado, o jornalista e Professor Altino Flores, a Associação Catarinense de Imprensa festeja o 80º aniversário de sua criação. P OR M OACIR P EREIRA A fundação da Associação Catarinense de Imprensa deu-se em Florianópolis pelo esforço e liderança do jornalista e Professor Altino Flores, um profissional ético, independente, culto e rigoroso na política, que marcou destacada presença na comunicação do Estado durante mais de cinco décadas. Notabilizou-se, também, por se constituir num dos jornalistas mais polêmicos de seu tempo. Não abria mão de suas convicções políticas, ideológicas e éticas e, por isso, pagou elevado preço ao longo da carreira. De formação liberal e depois um dos expoentes da extinta União Democrática Nacional (UDN), ocupou cargos destacados no magistério, até ser convidado para exercer a Secretaria da Casa Civil em vários Governos. O calendário oficial do Estado indicou durante todo o século passado como sendo em 1934 a data de criação da Associação Catarinense de Imprensa. Constava de documentos do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e da Academia Catarinense de Letras, além de várias obras de renomados historiadores. Por isso, o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina decidiu realizar em 2009 sessão comemorativa dos 75 anos de fundação da ACI. Convidado para falar na ocasião, decidi realizar pesquisas nos jornais da época na Biblioteca Pública de Florianópolis. Lendo os jornais de maior circulação, constatei a publicação de um edital de convocação dos profissionais para “re-fundação” da Associação. Portanto, a entidade já existia. Faltava identificar a data de fundação, pesquisa que exigiria muito tempo, pois não havia a menor referência sobre data anterior a 1934. A primeira luz surgiu com uma cópia do Diário Oficial do Estado, contendo a Lei Estadual nº 173, de 1937, que declarava de utilidade pública a Associação Catarinense de Imprensa. O ato era assinado por Nereu Ramos e mencionava 1932 como o ano de fundação da entidade. O extrato da Reforma de Estatutos consta de documento oficial da Imprensa Oficial do Estado e indica o registro na Biblioteca Pública sob número 21.078, de 31-10-83. Revela: “A Associação Catharinense de Imprensa, sociedade civil, fundada a 31 de julho de 1932, em Florianópolis, onde tem sua sede, compõese dos que trabalham na imprensa do Estado de Santa Catarina, de cuja classe se torna órgão de amparo, seleção e disciplina.” O ato histórico aconteceu na sede da Liga Operária Catarinense, na Rua Tiradentes, esquina com Rua Nunes Machado. A nova data Transcrevo do livro Altino Flores – Fundador da ACI o trecho que documenta a descoberta da nova data e traz novos dados sobre os jornalistas e intelectuais que colaboraram com a criação da entidade. Entre os que tiveram ati-

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va participação destacam-se Othon Gama d’Eça, José Diniz, Martinho Calado Júnior, Sebastião Vieira, Osvaldo Melo, João Baptista Pereira, Laércio Caldeira de Andrada, Tito Carvalho, Gustavo Neves, Flávio Bortoluzi de Souza. A narrativa é a seguinte: “Estabelecida a convicção de que a criação da ACI não se dera em 1934, o principal desafio se concentrou em descobrir quando se dera realmente a fundação. Uma meta que exigiria semanas, talvez meses de investigação, obrigando o penoso manuseio de coleções dos jornais de Desterro durante pelo menos três décadas: de 1910 aos anos 1930. Isto nas precárias instalações da Biblioteca Pública do Estado, uma sauna no verão e um freezer no inverno, com as edições antigas dos jornais com páginas destruídas e folhas em altíssimo grau de fragilidade.” Consultas feitas entre historiadores resultaram infrutíferas. Nas bibliotecas e nos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e na Academia Catarinense de Letras não há um único documento que trate da ACI em período anterior a 1934. Pesquisa efetuada na Biblioteca Central da UFSC revelou-se igualmente improdutiva. O documento revelador facilitou as novas consultas nas edições encadernadas da Biblioteca Pública. Edições de vários jornais de Florianópolis e de várias cidades do interior comemoram a fundação da ACI. Ali, a registrar dois fatos novos. O primeiro, pelo destaque dado ao evento histórico, quase sempre no alto da capa dos diários. Segundo, o relato das dificuldades encontradas para criação da entidade. O Estado narra em sua edição de 26 de julho de 1932 que não fora possível fundar a entidade. Mas, por motivos não esclarecidos, deixa de oferecer as razões. Muito provavelmente pela ausência de quórum ou número insuficiente para concretizar o projeto, fato aliás, ocorrido também na Associação Brasileira de Imprensa, em abril de 1908. Ou, ainda, porque o líder do movimento, Altino Flores, já era conhecido como o jornalista mais polêmico do Estado. Num período conturbado da vida nacional, a fundação de uma entidade de jornalistas representava mudança e risco de confrontações. Altino Flores, também a exemplo do que ocorrera com Gustavo de Lacerda, era um homem dos debates elevados, da polêmica, do apoio a movimentos sociais e, de certa forma, com um traço de simpatia pelo anarquismo. A nota está na capa daquela edição, sob o título Associação Catarinense de Imprensa, aliás, usado repetidas vezes por quase todos os jornais daquela época: “Foi recebida com simpatia a iniciativa tomada, há poucos dias, pelo Estado, para a fundação da Associação Catarinense de Imprensa. Infelizmente, porém, circunstâncias absolutamente alheias à vontade dos jornalistas, ora presentes em Florianópolis, os impediram de se reunirem na data fixada para a realização daquele projeto. Sendo, como é, absoluta a necessidade de se arregimentarem, em coeso bloco, os profissionais da imprensa catarinense, pois há vários problemas atinentes à classe que estão a exigir uma ação conjunta para se obter resultados palpáveis, na hora que atravessamos, O Estado convida a todos os que laboram no jornal da nossa terra diretores, redatores, repórteres e

gerentes, a se reunirem, domingo próximo, às 10 horas, em ponto, no salão da Liga Operária Catarinense, à rua Tiradentes.” Era realmente frustrante o relato, eis que, nas edições anteriores, o jornal tratara do assunto em suas colunas. Na edição do dia 28 de setembro de 1932, a capa traz bem no alto o título “Associação Catarinense de Imprensa”, o que já indica a determinação de sua direção em torno da nova entidade. O tom do escrito é revelador: “A necessidade da união dos profissionais da imprensa é incontrastável. Já o reconheceram os jornalistas de todos os países, mesmo no Brasil, havendo, porém, alguns Estados, onde, por desídia, essa união ainda está por se realizar. Santa Catarina não deve ser o último deles a congregar, em bloco harmônico, para a defesa dos interesses da classe, aqueles que laboram, entre nós, na profissão jornalística, diretores, redatores, repórteres e gerentes dos diários e periódicos locais, estejam, ou não, no presente momento, em atividade. Foi norteado por essa idéia que O Estado tomou a iniciativa de promover a fundação da Associação Catarinense de Imprensa, o que se fará no próximo domingo, às 10 horas, no salão da Liga Operária, à rua Tiradentes. Para o aludido ato de fundação, rogamos o comparecimento de todos quantos se encontrarem nas condições acima aludidas.” Dois dias depois, a 30 de julho, O Estado retoma o tema para reiterar convite a todos os profissionais em torno da nova causa. O destaque dado pelo matutino era sinal eloqüente do empenho de seu diretor, o jornalista Altino Flores, em torno do projeto. Título, outra vez “Associação Catarinense de Imprensa”. E, acentuando, em forma de apelo: “Amanhã, às 10 horas, reunir-se-ão, na Liga Operária, os jornalistas residentes nesta capital quer estejam em atividade profissional, quer não, para o fim de ser fundada a Associação Catarinense de Imprensa. O Estado, que tomou essa iniciativa, renova o convite, que já fez de suas colunas, aos diretores, redatores e gerentes dos jornais desta capital e aos do interior do Estado, que, porventura, se achem em Florianópolis, bem como a todos os jornalistas mesmo atualmente afastados do exercício da profissão, para se associarem, com sua presença, à reunião de amanhã.” No dia 31 de julho, o jornal República traz, igualmente, convite para a criação da ACI. Título: “Associação Catarinense de Imprensa”. Texto: “A convite dos nossos confrades do Estado reunirse-ão hoje, às 10 horas, na sede da Liga Operária Beneficente, os jornalistas residentes nessa capital, para tratarem da fundação da Associação Catarinense de Imprensa.” A data oficial de criação da ACI é publicada nas edições anteriores de O Estado e de outros jornais da Capital. Pelo interior, espalhase a informação, quase sempre com destaque. O Estado publicou o seguinte relato sobre a fundação da ACI no dia 10 de agosto de 1932: “Estiveram, ontem, às 10 horas reunidos, na sala das sessões da Liga Operária Beneficente, gentilmente cedida pela sua digna diretoria, as pessoas que aderiram até agora à iniciativa da

fundação da Associação Catarinense de Imprensa. Estavam, pois, presentes, os nossos confrades srs. Oswaldo Mello, Ney Luz, João Baptista Pereira, Benjamim Lucas de Oliveira, Dagoberto Nogueira, Biagio D’Alascio, L. Romanowski, Genésio Paz, Professor Altino Flores, Cássio da Luz Abreu e Gustavo Neves. Os srs. Laércio Caldeira de Andrada, Othon D’Eça e Tito de Carvalho se fizeram representar pelo sr. Professor Altino Flores, que o declarou. O Senhor Professor Altino Flores, em ligeiras palavras, expôs os propósitos da reunião, convocada pelo Estado, e apresentou algumas sugestões desde logo aceitas pelos presentes, atinentes à orientação que deveria nortear a vida da Associação que se estava fundando. Dentre essas sugestões, três foram unanimemente votadas para figurarem em ata como princípios assentes que virão a constar dos Estatutos a serem elaborados: 1) que poderão fazer parte da Associação os diretores, redatores e gerentes dos jornais publicados em língua estrangeira, no Estado de Santa Catarina; 2) que a Associação Catarinense de Imprensa não terá, por enquanto, caráter beneficente; 3) que nenhum membro da Associação Catarinense de Imprensa poderá, sem se incompatibilizar com a própria permanência no quadro social, aceitar da incumbência de censor de qualquer jornal, no caso de estabelecer-se a censura à imprensa. Foi, em seguida, aclamada a seguinte diretoria provisória: presidente, Professor Altino Flores; secretário, Oswaldo Mello; tesoureiro, Benjamim Lucas de Oliveira. Essa diretoria nomeou os seguintes consócios para elaborarem os Estatutos: Prof. Laércio Caldeira de Andrada, Ney Luz e Genésio Paz. Essa comissão fará, também, título provisório, a sindicância. Para o cargo de tesoureiro, e, depois, para membro da comissão de redação dos Estatutos fora também aclamado o nome do sr. João Baptista Pereira, tendo esse confrade declinado de um ou de outro cargo, pedindo disso escusas aos presentes e alegando achar-se sobrecarregado de ocupações presentemente. Ficou ainda assentado que se enviassem circulares a todos os jornais do interior do Estado, convidando seus diretores, redatores e gerentes a se filiaram nominalmente à Associação. Também ficou fixada a mensalidade de 3$000 para os associados.” A Associação, o Sindicato, a Casa Ao longo destes 80 anos, a semente plantada por Altino Flores e seus companheiros frutificou. Durante o Estado Novo a entidade sofreu perseguições e viveu períodos de inatividade. A partir da redemocratização, em 1946, retornou com o nome de Associação dos Profissionais de Imprensa, tornando-se mais vigorosa na década de 1950. Esta Associação foi fundamental para criação do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Santa Catarina. Em 1968, o jornalista Alirio Bossle, constatou em Porto Alegre que a Associação Riograndense de Imprensa era uma entidade agregadora e forte, que reunia jornalistas, radialistas e empresários de comunicação. Trouxe a idéia para Santa Catarina, criando a Casa do Jornalista. Na gestão de Osmar Teixeira, a entidade retornou à denominação original, com a mudança do nome, passando a se denominar Associação Catarinense de Imprensa. A ACI tem hoje na presidência o jornalista Ademir Arnon. Moacir Pereira, jornalista e escritor, é membro da Academia Catarinense de Letras e comentarista do Grupo RBS. Foi Presidente da ACI.


DIVULGACAO/COB

DISPUTA

A guerra de audiência dos Jogos Olímpicos Mesmo com a exclusividade da cobertura obtida em contrato com o Comitê Olímpico, a TV Record não alcançou a amplitude desejável, até por culpa das diferenças de fusos entre o Brasil e a Inglaterra. P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES

Sobre a luta da TV Record para bater a audiência das concorrentes, as opiniões de especialistas do mercado de mídia, jornalistas e publicitários se dividem em relação às transmissões oficiais dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, exibidas com exclusividade pela emissora. Em nota transmitida à imprensa, o canal do bispo evangélico Edir Macedo, comemora e diz que durante as 165 horas de exibição do evento passou 36 liderando a audiência, atingiu 87% dos domicílios na Grande São Paulo e 86% no Painel Nacional de Televisão (PNT). Segundo a emissora, mais de 40 milhões de telespectadores acompanharam a Olimpíada de Londres pela Record no PNT. Em São Paulo e no Rio de Janeiro a média geral da transmissão foi de 7 pontos, enquanto a terceira colocada ficou com 5 (cada ponto equivale a 60 mil domicílios na Grande São Paulo). Para conquistar pela primeira vez o status de emissora oficial de uma Olimpíada como a de Londres 2012, a Record fechou um contrato com os patrocinadores do Comitê Olímpico Internacional (COI), em 2007 e pagou US$ 60 milhões pelos direitos de transmissão dos Jogos — valor quatro vezes maior que os US$ 15 milhões pagos pela TV Globo para transmitir a Olimpíada de Pequim, em 2008. Pelos direitos de transmissão dos Jogos de Atenas, na Grécia, em 2004, a emissora do Jardim Botânico pagou US$ 5 milhões. Em sua primeira empreitada olímpica, a Record levou para Londres um contingente de 350 profissionais, que produziu mais de 40 horas de matérias jornalísticas sobre as Olimpíadas. Um saldo positivo, na avaliação da emissora, que divulgou ter tido um crescimento de 35% de audiência geral do canal nas classes AB, desde o início do evento, em 27 de julho, até à cerimônia final, em 12 de agosto. Citando dados do Ibope, coletados entre os dias 25 de julho e 5 de agosto, no período das 10h às 19h, horário de maior pique das transmissões, a colunista Cristina Padiglione, que escreve sobre televisão no Estadão, divulgou que a Record teve um crescimento de 67% na Grande São Paulo nas classes AB. Com a transmissão da partida final do futebol masculino entre Brasil e México, em 11 de agosto, a emissora paulista bateu recorde de audiência em Brasília, com 26 pontos de média. Em São Paulo, foram 17 pontos, e no Rio foi atingida a média de 18 pontos de audiência.

Vice-liderança

Mesmo com tantos números favoráveis, a Record não conseguiu abalar a liderança de audiência da TV Globo. Em sua coluna no caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, a colunista Keila Jimenez informou que a média de audiência da Record na transmissão dos Jogos, de 27 de julho (dia da abertura) até o dia 7 de agosto, foi de 6,3 pontos. Jimenez observa que apesar do crescimento na sua audiência por causa da Olimpíada, a Record não chegou perto da Globo, que seria a sua principal concorrente. Para justificar a sua informação, a colunista cita que a média alcançada pelo canal da família Marinho nos 12 dias iniciais de transmissões dos Jogos de Pequim (2008) foi de 14,3 pontos. Ou seja, mais que o dobro da média atingida pela Record na competição em Londres este ano. Na Olimpíada de Pequim, a Globo atingiu a média geral de 10,4 pontos na rede. Um dado importante lembrado por Jimenez foi que, por causa do fuso horário, muitas modalidades eram transmitidas no Brasil de madrugada. Além disso, a emissora dividiu as transmissões com a Rede Bandeirantes. Já o colunista da Veja, Lauro Jardim, noticiou que a audiência da Record na última semana das Olimpíadas foi uma “espécie de síntese” da média alcançada com as transmissões de todo o evento. Apesar de conquistar a liderança durante a exibição do jogo da Seleção Brasileira com 17 pontos contra 6 da Globo, dados do Ibope mostram que a tv do bispo Macedo perdeu a disputa para a concorrente no sábado, quando a Globo foi líder de audiência entre as 7h e meia-noite. A vice-liderança da Record continuou no domingo, 12 de agosto, quando a Globo alcançou 15 pontos com a apresentação do Programa do Faustão e a transmissão dos jogos do Campeonato Brasileiro. Durante a exibição da cerimônia de encerramento, a Record ficou empatata com o SBT com 7 pontos. Planejamento alternativo

Sem a exclusividade na transmissão dessa última Olimpíada, a Globo adotou algumas medidas práticas para não de deixar de atender à sua clientela com a cobertura jornalística do evento. Comprou da OBS (Olympic Broadcast Services) o acesso às imagens dos Jogos Olímpicos vendido a não detentores dos direitos de transmissão que aceitam as regras do COI para a utilização jornalística em suas coberturas. A OBS produziu boletins atualizados de 30 minutos sobre as Olimpíadas a cada

Arthur Zanetti conquistou o primeiro lugar nas argolas da ginástica artística masculina.

meia hora, transmitidos via satélite a todos os assinantes do serviço. O acordo permitiu à Globo utilizar seis minutos de imagens por dia, em no máximo três programas jornalísticos regulares, com a possibilidade de cada um deles utilizar até dois minutos, sem direito de ultrapassar 30 segundos sequer, por evento ou prova. As restrições impostas pelo COI forçaram a Globo a apresentar uma cobertura jornalística mais limitada do que a que os telespectadores se acostumaram a assistir quando a emissora detinha os direitos de transmissão. O que se viu foi um noticiário concentrado nos principais fatos dos Jogos, nos telejornais da tv aberta e nos programas produzidos de Londres pela equipe do canal a cabo SporTV. Quando questionada sobre o impacto na sua programação da transmissão dos Jogos Olímpicos pela Record, por meio da Central Globo de Comunicação (CGCom) a emissora informou ao Jornal da ABI que não houve impacto significativo, e sustenta que “manteve a liderança entre os canais de tv aberta durante todos os dias da Olimpíada”. A Globo não divulgou os números relacionados a faturamento publicitário durante os Jogos Olímpicos. Até o fechamento desta edição, a informação transmitida pela CGCom é de que “o fechamento dos números relacionados a faturamento só será conhecido pelo mercado mais adiante e será, como de costume, divulgado no projeto Inter-Meios”. Mercado publicitário

Os Jogos Olímpicos de Londres 2012 chegaram ao fim. E agora chegou a hora de Globo e, principalmente, a Record fazerem as contas e apurar se lucraram ou tiveram prejuízos com o evento. Segundo a Assessoria de Imprensa da Record, a emissora vendeu cotas de patrocínio no valor de R$ 279 milhões para nove patrocinadores: Caixa Econômica, Cervejaria Petrópolis, Coca-Cola, MacDonald’s, Nestlé, Petrobras, P&G, TIM e Visa. Nos bastidores do setor publicitário circula uma informação, veiculada na edição de 13 de agosto, do caderno Negócios do Estadão, de que os dados sobre audiência em poder de publicitários e diretores de marketing de grandes agências e de patrocinadores dos Jogos “não foram dos mais animadores”. Isto porque apesar de em boa parte das transmissões da Olimpíada a Record ocupar a vice-liderança, em algumas ocasiões

pulou para o terceiro lugar e chegou a ficar atrás do SBT, quando transmitia a ginástica feminina e o canal de Sílvio Santos apresentava reprise da série Chaves. Sobre esse quadro, um especialista em mercado publicitário disse ao Estadão que o setor não tinha dúvidas de que a Record não ultrapassaria a audiência da Globo, mas não dava para imaginar “que em alguns momentos ela fosse ter queda no índice”. Na mesma reportagem Rafael Plastina, diretor da Nielsen Sports, observou que a queda de audiência acaba afetando a exposição das marcas. Entretanto, parece que para alguns executivos de agências envolvidos no pacote de patrocínio da Record a instabilidade da audiência da emissora, demonstrada durante as transmissões dos Jogos, não chegou a ser um grande problema: “Compramos quantidade, e não qualidade”, disse um publicitário ao Estadão, acrescentando que todos sabiam que não estavam comprando audiência, mas freqüência na programação, uma vez que suas marcas estariam sendo inseridas mais vezes que na Globo. Próximos eventos esportivos

Dentro das emissoras de televisão brasileiras a ordem agora é pensar desde já no futuro e se preparar para a maratona de grandes eventos esportivos que irão acontecer no Brasil nos próximos quatro anos, como a Copa das Confederações 2013, a Copa do Mundo 2014 e a Olimpíada 2016. A Globo informou que usará toda a sua estrutura na cobertura dos próximos eventos a que tem direito de transmissão, como a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e a Olimpíada. A emissora já trabalha com uma equipe que reúne profissionais de diversas áreas da empresa, dedicada ao planejamento dessas coberturas especiais, que não se limitarão às competições esportivas. “Queremos que os telespectadores brasileiros se lembrem da importância de sermos anfitriões dos maiores eventos esportivos mundiais e que sigam essa experiência conosco de forma bem abrangente”, informou a Central Globo de Comunicação. Já a Record garante que o esporte olímpico continua nos seus planos. Em 2014, o canal vai transmitir a Olimpíada de Inverno em Sochi, na Rússia. Em 2015, vai cobrir com exclusividade os Jogos Panamericanos de Toronto, no Canadá. Além disso, a Record também vai ser a emissora oficial da Olimpíada do Rio, em 2016.

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CENTENÁRIO

Edmar Morel UM GIGANTE DO JORNALISMO Cassado em 1964 por ter levantado a história da Revolta da Chibata de 1910, ele foi um dos maiores repórteres do País e o primeiro jornalista a denunciar que o golpe de 1964 começou em Washington P OR C LÁUDIA S OUZA

Desenho de Ramon LLampayas em O Mistério da Expedição Fawcett, adaptação para os quadrinhos do livro de Edmar Morel, editada pela Ebal.

ntre as mais honrosas efemérides de 2012 inscrevese o centenário de nascimento do jornalista e escritor Edmar Morel, um dos maiores nomes da História da imprensa brasileira. A trajetória de mais de cinco décadas dedicadas ao jornalismo e à defesa das liberdades é pontuada por sua intensa atividade e dedicação à ABI, da qual é historiador ilustre. Na entrevista a seguir, Marco Morel, jornalista, historiador e professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro–Uerj, neto do jornalista, que manteve intensa convivência com o avô, expõe os aspectos mais relevantes da vida e da obra do brilhante repórter, sinônimo de integridade e lisura profissional, ética, interesse público e dignidade pessoal.

E

Jornal da ABI – A partir da reconhecida trajetória de Edmar Morel, o que seria importante resgatar nas comemorações pelo centenário de seu nascimento?

Marco Morel – No meio jornalístico, em geral, meu avô é pouco conhecido. As novas gerações de jornalistas, digo jovens na faixa de 30 anos, conhecem muito pouco ou quase nada sobre ele. Percebo isso com muita freqüência não apenas no meio acadêmico, mas também como jornalista, pois sou formado em Comunicação Social. Pode ser até mesmo em função de uma característica da categoria dos jornalistas, que não cultiva uma História própria, uma memória própria. Tudo é muito descartável. Es12

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pecificamente sobre meu avô, algumas pessoas ouviram falar uma vez, outras sabem que ele escreveu tal livro, mas a maioria desconhece a atuação dele como repórter. A ABI é quase uma exceção nesse sentido, pelo vínculo mais direto dele com a Casa e com os jornalistas da Associação. A geração dele foi derrotada com o golpe de 1964 e ficou relegada ao segundo plano. Jornal da ABI – Quais nomes dessa geração você citaria?

Marco Morel – Osvaldo Costa, o próprio pessoal da ABI – Fernando Segismundo, Gumercindo Cabral, João Antonio Mesplé – e as pessoas que trabalharam em jornal, como Lourival Coutinho. Eles fizeram parte de um grupo mais identificável de jornalistas militantes do nacionalismo de esquerda, do qual meu avô foi um dos mais conhecidos. Entretanto, hoje quase ninguém ouve falar deles. Meu avô se tornou um pouco mais conhecido em função dos livros que publicou, mas a atuação dele como repórter, sua principal atividade, é pouco conhecida. Jornal da ABI – Edmar Morel escreveu 16 livros, entre os quais A Revolta da Chibata. Que outros títulos você destacaria pela relevância histórica e jornalística?

Marco Morel – O livro de maior destaque foi A Revolta da Chibata, obra que tem mais permanência e da qual as pessoas se lembram. Mas há outros títulos importantes, anteriores inclusive, como o Dragão do Mar - O Jangadeiro da Abolição, com

prefácio de Gago Coutinho e apresentação de Rubem Braga, o primeiro em que meu avô narra a história de um herói da ralé, um herói da plebe, como ele costumava chamar. A obra descreve a luta dos jangadeiros do Ceará pela Abolição no final do século 19. O Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes da Lei Áurea. Foi um movimento social, uma luta de classe levada à frente pelos jangadeiros, em sua maioria escravos libertos ou descendentes de escravos. Lançado em 1949, o livro, muito marcante, é o primeiro, e praticamente o único, a apresentar a biografia do “Dragão do Mar ”, apelido de Francisco José do Nascimento, líder dos jangadeiros cearenses, citado nos versos da música Mestre Sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc, que diz: “Há muito tempo nas águas da Guanabara/ o Dragão do Mar reapareceu/ na figura de um bravo feiticeiro/ a quem a História não esqueceu”. A letra faz referência ao “Dragão do Mar ” e também ao lendário João Cândido, outro herói biografado por meu avô. Destacaria também o livro O Golpe Começou em Washington, com apresentação de Joel Silveira, o primeiro a ser publicado contendo críticas ao golpe militar. A obra foi lançada em 1965. Meu avô aponta várias evidências de que havia uma articulação da presença dos Estados Unidos na execução do golpe, fato que hoje em dia todo mundo sabe, como a existência da Operação Brother Sam, divulgada apenas em 1974, dez anos depois. É um livro pionei-

ro, no qual ele já afirmava que o Cabo Anselmo era um agente infiltrado, entre outras coisas que só foram descobertas depois. O livro ficou mal visto no meio acadêmico, ao qual eu pertenço, porque as pessoas, em geral, não lêem livros e se baseiam apenas pelo título. Neste caso, contestam o conteúdo da obra alegando que o golpe não começou em Washington. Já ouvi várias críticas de pessoas que jamais leram este livro. Jornal da ABI – Edmar Morel começou a se dedicar aos livros inspirado em sua origem nordestina?

Marco Morel – Sim. O Dragão do Mar é fruto da infância dele em Fortaleza, onde convivia com jangadeiros e pescadores que contavam essas histórias e conheceram o Dragão do Mar. Os últimos abolicionistas, já idosos na época, também conversavam muito com meu avô, que sempre foi curioso e, como queria ser repórter, gostava de puxar assunto com as pessoas na rua. Anos mais tarde, quando ele decidiu escrever e pesquisar foram essas histórias que o motivaram e têm, sim, muito a ver com a origem dele. Estive recentemente no Ceará e descobri que ninguém o conhece. Um negócio impressionante. Participei de um seminário e muita gente veio me dizer que não sabia nada sobre Edmar Morel. Profissionais das áreas de História e de Comunicação Social ouviram falar vagamente. Não existe memória. A ditadura durante todos estes anos não foi em vão.


Jornal da ABI – O desejo de ser um repórter surgiu ainda no Ceará?

FOTOS: ACERVO MARCO MOREL

Jornal da ABI – Em que período Edmar Morel enfrentou maior dificuldade para conseguir emprego?

Marco Morel – Sim. Meu avô foi uma pessoa de origem muito modesta. Ele saiu do Ceará aos 20 anos e veio para o Rio de Janeiro com o firme propósito de ser repórter. Antes disso, conseguiu emprego em um jornal no Ceará, nas funções de auxiliar de tipografia e contínuo, tudo para ficar perto da atividade. A vontade de ser jornalista era uma coisa dele, da curiosidade que o movia. Ele costumava contar que ficava fascinado com a leitura de jornais e revistas na barbearia de meu bisavô. Tinha também uma personalidade muito irrequieta que se identificava com o trabalho da imprensa. Jornal da ABI – Que iniciativas Edmar Morel tomou para se tornar um jornalista?

Marco Morel – Ele fez uma vaquinha para comprar a passagem de terceira classe em um navio e desembarcou no Rio sem conhecer ninguém. Ao saber da disposição de meu avô de seguir para o Rio de Janeiro, Filinto Barroso, um intelectual cearense, escreveu uma carta de recomendação e comprou um queijo para que meu avô entregasse ao filho dele, Gustavo Barroso, que estava no Rio de Janeiro e era uma personalidade pública como advogado, jornalista, escritor, professor e político, um dos líderes da Ação Integralista Brasileira–AIB. Meu avô passou muita fome durante a viagem, acabou comendo o queijo inteiro e ficou com vergonha de entregar apenas a carta de recomendação. Ao desembarcar à noite no Rio de Janeiro, acabou dormindo no banco da praça. Quando acordou pela manhã, saiu vagando pelas ruas e reconheceu a figura de Maurício Lacerda, um político importante na época, pai do jornalista Carlos Lacerda. Dois anos antes disso, em 1930, Maurício Lacerda fizera um comício pela Aliança Liberal em Fortaleza. Na ocasião, meu avô, que era muito espevitado, preparou uma saudação a ele em nome dos jovens da cidade. “Bom dia, Sr. Maurício Lacerda. Sou aquele jovem do Ceará que o saudou durante o seu comício”, disse meu avô ao reconhecê-lo. Maurício de Lacerda convidou-o para almoçar na casa dele e prometeu ajudá-lo a conseguir um emprego. Depois do almoço, levou meu avô ao Jornal do Brasil e o apresentou ao Chefe de Redação, que era ninguém mais ninguém menos que o jornalista Barbosa Lima Sobrinho. Isso aconteceu em 1932. Meu avô começou a trabalhar no jornal e mandou buscar toda a família. Ele era o irmão mais velho de seis filhos. Como meu bisavô tinha morrido, vieram a mãe, uma tia e os cinco irmãos. A família estava enfrentando muita dificuldade no Ceará. Jornal da ABI – Edmar Morel foi casado durante 53 anos com Aurora, teve um filho, Mário Morel, cinco netos e oito bisnetos. Como foi a sua convivência com ele?

Marco Morel – Quando meus pais se separaram, eu tinha cinco anos de idade e fui morar com meus avós paternos Edmar Morel e Aurora. Só saí da casa deles para casar, aos 28 anos de idade. Meu avô faleceu no ano seguinte. Assim sendo, dos cinco aos 28 anos, nossa convivência foi muito próxima. Meus pais são vivos até hoje.

Nos anos 1960, houve uma tentativa de adaptar para o cinema o livro A Revolta da Chibata, de Morel

Jornal da ABI – Você escolheu a profissão de jornalista influenciado pelo exemplo de seu avô?

Marco Morel – Inicialmente, sim, mas depois percebi que o jornalismo tinha se transformado, além disso eu não tinha o perfil do meu avô, sempre fui mais reservado. Acabei mudando para a área de História. Jornal da ABI –Seu pai, Mário Morel, também é jornalista, um dos pioneiros da tv no Brasil.

Marco Morel – Ele trabalhou ao lado de Walter Clark, de Fernando Barbosa Lima, na TV Rio. Pertenceu a essa geração. Jornal da ABI – Outros membros de sua família optaram pela Comunicação Social ?

Marco Morel – Minha irmã Mônica é formada em Relações Públicas e duas sobrinhas do meu avô também são jornalistas. Jornal da ABI – Além da formação jornalística, Edmar Morel aprofundou o viés de pesquisador. Isto pode ser observado nos livros e matérias que escreveu.

Marco Morel – Ele começou fazendo reportagem, depois fez livro-reportagem e, em seguida, jornalismo histórico. Fazia não só um livro sobre determinada reportagem, mas também se dedicava à pesquisa histórica a partir do jornalismo. Ao mesmo tempo em que ele fazia a pesquisa histórica, escrevia de uma maneira jornalística com um texto mais agradável, mais claro, fácil de se entender. Ele foi um dos pioneiros, não no livro-reportagem, mas no jornalismo histórico. Atualmente podemos citar, dentre outros, Fernando de Morais nesta linha de trabalho. Jornal da ABI – Que título você citaria entre os livros-reportagens de maior repercussão?

Marco Morel – E Fawcet Não Voltou, com prefácio do Marechal Rondon, reúne uma série de reportagens que ele fez na Amazônia para os Diários Associados. Moscou Ida e Volta, com apresentação de Joel Silveira, também foi um livro-reportagem importante, sobre a viagem de meu avô aos países da Cortina de Ferro, período em que escreveu diversas matérias. A Revolta da Chi-

bata é um livro histórico, pois ele precisou pesquisar dados, entrevistar pessoas. Jornal da ABI – A publicação de A Revolta da Chibata trouxe problemas para Edmar Morel em 1964?

Marco Morel – Sim. O fato de ele ter escrito A Revolta da Chibata gerou muito ressentimento entre os oficiais da Marinha. Meu avô foi muito perseguido e teve os direitos políticos cassados em 1964. Cada vez que ele tentava arranjar emprego em um jornal, os almirantes pressionavam para ele ser demitido. O historiador Hélio Silva costumava contar essa história, porque meu avô não falava sobre essas coisas em família. Além disso, as reportagens dele apresentavam um cunho investigativo e social muito forte, o que de alguma maneira também incomodava.

Jornal da ABI – Como foi a passagem de Edmar Morel pelo Departamento de Imprensa e Propaganda–Dip?

Marco Morel – Ele foi nomeado redator do Dip quando exercia a mesma função nos Diários Associados. As reportagens que ele fazia para os Diários Associados eram aproveitadas e republicadas pelo Dip. Ele permaneceu assim algum tempo até escrever a reportagem intitulada A Beliscada. A pauta chamou a atenção de meu avô em Recife, onde existia a base aérea norte-americana. Ele observou que muita gente ficava esperando passar o caminhão de lixo da base aérea norteamericana para catar as sobras de alimentos. Crianças, mulheres e velhos disputavam os restos de comida dos militares. Quando a matéria foi publicada, meu avô começou a ser perseguido e recebeu um comunicado informando a sua transferência para o Dip do Amapá, uma coisa assim (risos). Como ele era uma figura, correu para o banheiro, pegou um pedaço de papel higiênico e escreveu: “Peço demissão!” e entregou para a chefia. Ainda assim existem pesquisadores que dizem que Edmar Morel trabalhou no Dip porque era aliado do Governo. Meu avô participou apenas do Governo João Goulart na função de assessor de imprensa dos Ministérios da Saúde e da Viação e Obras Públicas.

Marco Morel – Em 1952, ele já tinha saído dos Diários Associados e viajou para a União Soviética. Na volta ao Brasil, ficou quase um ano desempregado. Era a época do marcarthismo. Assim como aconteceu nos Estados Unidos, aqui também havia esta coisa de lista-negra nas Redações, perseguição a comunistas, etc. Foi até curioso porque meu avô viajou para a União Soviética credenciado por vários jornais do Rio de Janeiro e de outros Estados para fazer reportagens. Os veículos de comunicação se cotizaram para pagar a passagem de avião, hospedagem e outras despesas e receber as matérias. Porém, os mesmos que custearam a viagem se recusaram a publicar os textos. Para completar a situação, um padre resolveu escrever uma carta para um desses jornais dizendo que na União Soviética se fazia sopa com carne de criancinhas (risos). Houve até um episódio que tem relação com a ABI. Quando meu avô voltou da União Soviética, fez escala em Roma, porque não existia vôo direto. Quando ele chegou em Roma, telefonou para Herbert Moses, então Presidente da ABI, e explicou que estava retornando e que poderia estar correndo o risco de ser preso. O vôo chegou ao Rio por volta das 4 horas da manhã. Herbert Moses foi pessoalmente aguardá-lo no aeroporto. Moses era um homem muito conceituado, um empresário rico com boas relações. Ele passou direto pela Alfândega, cumprimentou meu avô e perguntou se ele estava trazendo algum material subversivo. Meu avó respondeu que não, mas deixa estar que ele já tinha enviado todo o material para o Brasil pelo correio de Roma com o envelope endereçado à minha avó(risos). Moses, então, deu o braço a ele e passaram direto sem problemas.

Jornal da ABI – Edmar Morel chegou a ser preso em alguma situação?

Marco Morel – Na época do golpe de 1964, quando foi publicado O Golpe Começou em Washington, ele soube nas Redações que existia uma lista-negra dos jornalistas que seriam presos, na qual o nome dele estava incluído. Ele resolveu, então, conversar com a escritora Rachel de Queiroz, que era conterrânea e amiga dele no Ceará. Se conheceram na adolescência. A Rachel, além de ter apoiado o golpe, era parente do Castelo Branco. Meu avô explicou para a Rachel que sabia que seria preso e pediu apenas para ficar preso no Rio de Janeiro, não queria ficar confinado. Na conversa com Castelo Branco, Rachel contou que Edmar Morel era cearense, filho de fulano, sobrinho de beltrana, primo de sicrana, essas histórias. “Sendo assim, diga a ele que nós não vamos aborrecê-lo”, respondeu Castelo Branco. Bem antes deste episódio, mais precisamente em 1935, meu avô estava se dirigindo para o jornal A Manhã, onde trabalhava, e encontrou um conterrâneo do Ceará que tinha entrado para a Polícia. O amigo avisou que estava tendo uma confusão danada na rua porque o jornal A Manhã tinha sido fechado e todos os jornalistas que chegavam para trabalhar estavam sendo presos. Meu

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avô disfarçou, se despediu do amigo policial e deu meia volta (risos). Jornal da ABI – O perfil de jornalista combativo esteve presente desde o início da carreira de Edmar Morel?

Marco Morel – Posso afirmar que ele desenvolveu isto depois. Começou fazendo reportagem na editoria de Polícia, uma tradição no início da carreira no jornalismo. Quando trabalhou em O Globo fez reportagem para as editorias Geral e Cidade. Nos Diários Associados começou a ter espaço para o que ele chamava de reportagem popular, jornalismo popular, com matérias de grande repercussão que sensibilizavam a população, mas nada explicitamente político que pudesse ser censurado ou vetado. Jornal da ABI – Qual foi a primeira matéria importante com estas características?

Marco Morel – A primeira reportagem de impacto foi sobre a égua Farpa, realizada em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, quando havia racionamento de leite, de alimentos, em geral. Cada família tinha direito a uma quantidade muito pequena de leite por semana. Quem tinha criança pequena em casa ou alguém doente enfrentava muita dificuldade para comprar o produto. As pessoas formavam filas enormes desde o início da madrugada para trocar um cupom por um litro de leite. Conversando na rua, meu avô descobriu que no Jockey Clube os cavalos estavam sendo alimentados com leite e que os animais pertenciam ao haras de Lineu de Paula Machado! Meu avô apareceu no Jockey às 4 horas da manhã, horário da alimentação dos cavalos. Conversou com o treinador e disse que queria fazer uma matéria sobre os cavalos. O tratador o recebeu muito bem e mostrou tudo. Quando meu avô perguntou se os cavalos não iam comer, o tratador apareceu com uma tina grande transbordando de leite. Meu avô perguntou quantos litros de leite os cavalos ingeriam, se era todo dia, etc. Antes de entrar no Jockey, ele tinha visto uma enorme fila do leite na padaria. Para reforçar a denúncia, pediu autorização ao tratador para fazer fotos do cavalo na rua. O animal foi fotografado caminhando na frente da fila com a barriga inchada de leite. Rendeu matéria de primeira página. A repercussão foi impressionante. Em vários locais da cidade padarias e leiterias foram saqueadas e padeiros e leiteiros foram espancados. Sérgio Cabral, pai, costuma contar que quando foi pedir emprego no Jornal do Brasil a chefia sugeriu que ele apresentasse uma boa matéria. Lembrando deste episódio da égua Farpa, Sérgio Cabral decidiu fazer algo parecido. Como na época estava faltando carne, ele foi ao Zoológico e fotografou os animais comendo o alimento. A matéria foi bem recebida no JB e Sérgio Cabral conseguiu o emprego. Quando ele encontrou com meu avô, contou que estava na profissão graças a ele (risos). Jornal da ABI – Quais outras matérias deste gênero tiveram boa repercussão?

Marco Morel – A reportagem sobre o leite contaminado é um exemplo. Na época em que foi feita a matéria, o leite era comercializado em caminhões-pipa e estava sendo 14

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Edmar Morel em sua sala no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Na parede, quadro com sua matéria sobre a expedição Fawcett. Acima, com a filha que brinca sobre o tapete de uma onça empalhada trazida da Amazônia. Ao lado, Morel concede uma entrevista radiofônica nos anos 1950. Abaixo, capa da adaptação para os quadrinhos de seu livro ...E Fawcett Não Voltou.

misturado com água. Os responsáveis eram multados, mas as denúncias não cessavam. Meu avô, na condição de repórter, freqüentava todo tipo de ambiente, desde as altas rodas ao submundo. Nessas andanças, ele descobriu que os leiteiros estavam colocando urina no leite porque era difícil de detectar nos exames de PH, o que não acontecia com a água, facilmente detectada. Ele conseguiu gravar isso de madrugada no meio dos leiteiros. Ficou conhecido como o escândalo do leite contaminado e, após a denúncia, o produto passou a ser vendido em sacos plásticos. Por causa dessa reportagem meu avô foi alvo de vários processos na justiça por calúnia e outras coisas, mas ganhou todos. Jornal da ABI – Edmar Morel foi alvo de processos judiciais em função de outras reportagens?

Marco Morel – Tem uma história até engraçada que aconteceu durante a Segun-

da Guerra Mundial. Nesta época, para driblar a censura meu avô procurava fazer matérias de impacto, de denúncia, mas que não fosse algo que pudesse ser censurado pelo Governo. Apareceu um príncipe italiano, Gabriel Inellas, dizendo-se portador de uma ordem honorífica e oferecendo título de Grã Cruz para pessoas famosas. Mas isso era vendido. Ele fazia uma cerimônia e condecorava senadores, deputados e generais, que recebiam faixa e medalha, se ajoelhavam diante de uma espada e pagavam pela coisa toda. Meu avô descobriu com alguém da Polícia que ele conhecia de matéria que o italiano era fichado com vários processos por emissão de cheque sem fundos, identidade falsa, entre outros delitos. O sujeito era um escroque. Como estava para acontecer uma segunda cerimônia de condecoração, meu avô ficou quieto e foi para a solenidade. Estavam lá generais e almirantes que ficavam de joelhos na frente do italiano, que vinha com

uma espada, coisa e tal. As cerimônias eram amplamente noticiadas nas colunas sociais de jornais e revistas. Meu avô registrou tudo, escreveu a matéria Generais e Almirantes se ajoelham diante de escroque e publicou a ficha do cara. Foi um escândalo. Só com essa matéria ele recebeu uns 15 processos por calúnia e injúria. Mas em todos foi absolvido. O criminalista Evaristo de Moraes Filho se ofereceu para fazer a defesa dele de graça. Houve aí também um episódio folclórico: Em um desses julgamentos, o tal príncipe italiano levou um jornalista como testemunha de acusação. Eles afirmaram em juízo que meu avô tinha pedido dinheiro a eles e como não recebera, decidiu fazer a tal reportagem. Como meu avô conhecia o juiz de vista, resolveu falar com ele no intervalo da audiência. “Excelência, eu vou dar uma porrada nesse cara que está inventando


essas histórias!” “Lá fora, aqui dentro não”, respondeu o magistrado. Quando terminou a audiência, meu avô deu uma surra nos dois. Ele era baixinho, 1,53 m de altura, mas como tinha sido lutador de boxe, jogou os dois no chão.

mou da reportagem. Wainer afastou meu avô por alguns meses, mas depois ele retornou com a coluna Cidade Aberta, com essas denúncias do cotidiano. Jornal da ABI – Edmar Morel contou com a parceria de bons fotógrafos para seus trabalhos.

Jornal da ABI – Ele se interessou por este esporte ainda no Ceará?

Marco Morel – Exatamente. Chegou a ser campeão peso-mosca. Isso tem a ver com a personalidade dele, sempre combativo, guerreiro, lutador. Dizem que o tal jornalista, o Garófalo, era um cara grandão. Ele e o escroque entraram com outro processo, desta vez por agressão. Na hora do julgamento, meu avô disse: “Bati e bato de novo! Vão ficar rendidos na minha lona e sempre que passarem na minha frente voltarão a apanhar!” O juiz o absolveu alegando defesa da honra. Após a audiência, meu avô convidou os pais para comemorar em um restaurante, mas os dois caras estavam lá também. Ele bateu neles de novo (risos). Isso demonstra um pouco como era a personalidade do meu avô, muito alegre, brincalhão, bem-humorado, extrovertido e engraçado. Perto dele você estava sempre rindo com suas histórias. Jornal da ABI – A reportagem de Edmar Morel sobre a expedição Fawcet teve destaque no Brasil e no noticiário internacional.

Marco Morel – Sim. E depois virou livro sobre a história de um expedicionário inglês que nos anos 1920 veio para a floresta amazônica e desapareceu. Membro da Real Sociedade de Ciência, ele chegou ao Brasil acompanhado do filho e de outro inglês. Eles entraram pela região do Xingu e sumiram. O caso ganhou repercussão internacional porque o cientista era muito conhecido. Vários repórteres de outros países estiveram na selva em busca de seu paradeiro, inclusive um norteamericano, que desapareceu também. O episódio se tornou uma lenda, um mistério. Fawcet conversara com Marechal Rondon antes de fazer a viagem e este o aconselhou a não ir. Em 1943, no apogeu dos Diários Associados, Assis Chateaubriand resolveu desvendar o mistério e pediu para meu avô fazer a matéria. Quando meu avô disse que não queria ir porque não tinha recursos, Chateaubriand enfiou a mão nos bolsos e entregou para ele um dinheirinho de nada todo amassado (risos). Para organizar a expedição, meu avô recebeu a verba necessária e pediu apoio ao Marechal Rondon, que dirigia o Serviço de Proteção aos Índios–SPI, órgão oficial do Governo. Meu avô formou a equipe com o fotógrafo e o cinegrafista do próprio SPI, que já estavam habituados com o ambiente e conheciam a selva. Eles tiveram acesso a lancha, aeronave e automóvel para chegar ao Xingu. Na mesma ocasião, por coincidência, estava sendo esperada a visita de Getúlio Vargas ao Xingu para a assinatura do decreto de criação do Parque da Reserva Nacional do Xingu. Meu avô foi o primeiro jornalista brasileiro a fazer matéria no Xingu, pois até então as pessoas chegavam lá e morriam ou sumiam. Ele conseguiu refazer o roteiro de Fawcet, conversou com as pessoas que encontraram o cientista e ficou na mesma cidade onde ele se hospe-

Marco Morel – Jáder Neves o acompanhava sempre. Fez com ele os xadrezes superlotados, entre outras matérias. Com Jean Manzon ele não chegou a trabalhar. Vinculado ao David Nasser, Jean Manzon fazia outro tipo de reportagem. Minha avó me contou que Jean Manzon passou uma tarde inteira na casa de meu avô tentando convencê-lo a fazerem dupla, mas meu avô não quis de jeito nenhum. Luís Pinto também trabalhou com meu avô e comigo quando passei pela Redação de O Globo. Meu avô sempre formou uma parceria importante com os fotógrafos.

Edmar Morel na noite de autógrafos de seu livro A Revolta da Chibata. Ao seu lado, João Cândido, o Almirante Negro.

dou. Meu avô descobriu que havia um índio branco, louro de olhos azuis em uma missão religiosa perto do Xingu, que seria parente do Fawcet. Ele era um índio Kalapalo, do Alto Xingu, muito discriminado na aldeia por ser branco e que, portanto, fora criado pelos missionários. Meu avô ficou sabendo que os índios Kalapalo não tinham contato com a civilização, mas que estavam se dirigindo a um determinado ponto do Xingu para receber Getúlio Vargas. Getúlio não foi ao encontro, mas meu avô foi recepcionado com honrarias, como se fosse o Presidente, e teve a sorte de registrar todas as tribos do Xingu reunidas. Nenhum repórter jamais havia presenciado aquela imagem. Isso tudo foi fotografado e virou um filme, que, infelizmente, desapareceu. Meu avô procurou as imagens, eu também procurei, sem sucesso. Chegou a ser exibido nos cinemas. Havia uma cópia no acervo do Museu do Índio, mas foi destruída no incêndio nos anos 1960. Meu avô montou um estúdio radiofônico na selva e gravou as entrevistas com os índios. O cacique, líder dos Kalopalo, contou que o inglês era muito agressivo, que tinha batido em um índio e que por isso eles o mataram. O corpo nunca foi encontrado. Depois disso, os irmãos Vilas-Bôas estiveram no Xingu e pensaram ter localizado a ossada do cientista, mas foi alarme falso. A matéria teve enorme repercussão, afinal meu avô conseguiu desvendar o mistério. Envolvido com a história, meu avô trouxe o índio branco para o Rio e fez tudo para ajudá-lo, inclusive encaminhouo para a escola. O índio não se adaptou à cidade grande, ficou muito deprimido, se tornou alcoólatra e foi morto em uma briga de bar. Meu avô se arrependeu muito de tê-lo trazido para a cidade, mas a intenção era a melhor possível, afinal ele não tinha onde ficar no Xingu. A Editora Brasil-América publicou a história no formato quadrinhos. Jornal da ABI – Como foi a transição do aplaudido trabalho na reportagem popular para o jornalismo político?

Marco Morel – Desde jovem meu avô sempre assumiu sua posição política de esquerda. O primeiro jornal onde ele tra-

balhou, O Ceará, era de esquerda. Aqui no Rio ele fez parte da geração de 1935. Trabalhou no jornal A Manhã, que era o órgão da Aliança Nacional Libertadora–ANL. O chefe de Redação era Pedro Mota Lima, que exerceu grande influência na vida de meu avô. Ele nunca se filiou ao PCB, mas foi o porta-voz informal do partido, que estava na ilegalidade. Meu avô pregava muito a liberdade individual, assumia posições independentes, algumas distintas da orientação do Partido, e achava que a estrutura partidária iria cerceá-lo. Contudo, sempre esteve muito próximo ao PCB. Eu soube pelo Maurício Azêdo que meu avô, inclusive, contribuía mensalmente para o partido. Quando João Goulart foi Ministro do Trabalho no Governo Vargas, meu avô passou a se filiar à corrente janguista, que era a mais à esquerda do partido. Na verdade, ele nunca teve uma filiação partidária. A atuação dele era como repórter, como jornalista. Queria falar a verdade e ser livre. Se visse uma coisa errada, denunciava. Gostava de se identificar como um repórter de posição político-social bastante clara e jamais escondida. Jornal da ABI – Quais reportagens desta fase fizeram sucesso?

Marco Morel – Ele trabalhou no jornal Última Hora, foi um dos fundadores do periódico de Samuel Wainer. Fez duas matérias de muita repercussão. A primeira sobre o caso Nestor Moreira, jornalista que foi morto após ser espancado em uma delegacia. Meu avô deu o furo de reportagem quando Nestor Moreira estava entre a vida e a morte no hospital e ninguém sabia o que tinha acontecido. Imagine a cena: meu avô se vestiu de médico, colocou avental, touca, entrou no hospital Miguel Couto e foi caminhando até o leito de Nestor Moreira, que, acordado e lúcido, revelou que tinha sido espancado pelo policial conhecido como “Coice de Mula”. A partir daí a matéria explodiu. Uma semana depois, meu avô fez matéria sobre a superlotação nos xadrezes com o título: Campo de Concentração no Rio de Janeiro. A tiragem do jornal, que na época era de 70 mil exemplares, chegou a 300 mil com essa matéria. Getúlio Vargas chamou Samuel Wainer para conversar e recla-

Jornal da ABI – Como foi a relação de Edmar Morel com a ABI?

Marco Morel – Ele se associou em 1946, cheguei a ver a ficha dele. A filiação aconteceu no final da ditadura Vargas, a convite de Herbert Moses. Nesta época os comunistas começaram a se aproximar mais da Associação. Meu avô tinha na ABI seu principal campo de atuação política e também como a sua segunda casa, a trincheira onde se fazia a defesa da liberdade de imprensa e de melhores condições para a categoria. Meu avô visitava a Associação diariamente e sempre atuou na função de Conselheiro, nunca em cargos da diretoria. Ele freqüentava o bar Vermelhinho, em frente à ABI, com a turma formada por Eneida, Alvarus, Rubem Braga, entre outros grandes nomes da imprensa. Ele integrou a comissão da ABI que visitou Hélio Fernandes na prisão e fez pressão para libertá-lo. Hélio foi o único jornalista preso no Governo JK. Quando aconteceu o golpe de 1964, meu avô ajudou a criar a Comissão de Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa da ABI, cujo objetivo era atuar em defesa dos jornalistas perseguidos, nos casos de censura prévia e nas prisões. A ABI era também um espaço de sociabilidade, especialmente quando havia eleição. Todo mundo ia prá lá, jornalistas, intelectuais de esquerda e políticos cassados. Até os cassados podiam votar na ABI. Este espaço de liberdade e resistência foi vivenciado por meu avô de uma maneira muito intensa. Ele fez parte do Conselho Administrativo da Casa de 1946 até morrer. Foi também historiador da ABI, juntamente com Fernando Segismundo, os primeiros a escrever sobre a trajetória da Associação. Meu avô recebeu o Prêmio Gustavo de Lacerda, da ABI, pelo livro A Trincheira da Liberdade – História da ABI, com prefácio de Helio Silva, apresentação de José Nilo Tavares e introdução de Gerardo Melo Mourão. Foi escrito em 1968, um ano muito difícil. Todos os jornais e editoras recusaram publicar. Logo depois veio o AI5. Enquanto não publicava, meu avô foi aprofundando o livro que, inicialmente era a biografia de Gustavo de Lacerda, mas foi ampliado para História da ABI. A obra só foi publicada em 1985, quando acabou a ditadura. Eu comecei a participar dos

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estava saindo o golpe, ele correu para a Redação, que ficava na Avenida Franklin Roosevelt, e saiu queimando e rasgando tudo para não deixar rastro. Passou o dia inteiro lá sozinho. Na manhã seguinte, invadiram a Redação, saquearam as coisas, mas não encontraram nada. É por isso que os pesquisadores não conseguem encontrar material do Semanário (risos). Jornal da ABI – Como você avaliaria o cenário atual do jornalismo e a trajetória de Edmar Morel?

A foto revela a admiração de Marco Morel pelo avô desde criança: “Tinha também uma personalidade muito irrequieta que se identificava com o trabalho da imprensa.“

encontros na ABI ainda muito pequeno, levado por meu avô. Só comecei a entender o significado de tudo na adolescência. Lembro que aos 16 anos estive em uma eleição na ABI e me aproximei de Carlos Drummond de Andrade para conversar. “Estou sempre na ABI porque aqui eu posso votar”, disse Drummond. Freqüentei a ABI até os vinte e tantos anos. Maurício Azêdo me conhece desta época. Depois que o meu avô morreu, estive na ABI em um dia de eleição, novamente. Barbosa Lima Sobrinho, aos 99 anos, estava na sala rodeado por muita gente. “Hoje é dia de eleição”, disse ele. “Não adianta vocês ficarem aqui parados. É preciso sair para conversar com o eleitor”, alertou o jornalista. Quando ficamos sozinhos na sala, ele permaneceu em silêncio por uns cinco minutos e disse: “Sinto muitas saudades do seu avô”. “Eu também sinto” respondi. E permanecemos em silêncio. Jornal da ABI – O livro de memórias de Edmar Morel também demorou para ser publicado?

Marco Morel – História de um Repórter só foi publicado dez anos após a morte de meu avô. Foi pela Editora Record, na gestão da Luciana Vilas Boas. O pai de Luciana, Augusto Vilas Boas, foi membro da ABI e pertenceu à mesma geração de meu avô. Uma parte deste livro foi dedicada à ABI. Toda a família participou da organização da obra. Eu e minha irmã, Mônica Morel, ajudamos com o material do livro e minha avó na transcrição das fitas. Meu pai, Mário Morel, também ajudou. Minha avó Aurora era quem datilografava quase todos os textos do meu avô. Ela tinha formação naquele curso de datilografia exigido na época. Meu avô não gostava de datilografar, não tinha paciência. Na Redação, ele catava milho. Jornal da ABI – As reportagens de Edmar Morel renderam boas manchetes e também muitos prêmios como João do Rio (Prefeitura do Rio de Janeiro, 1954), Gustavo de Lacerda (ABI, 1968), Vladimir

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Herzog de Direitos Humanos (Sindicato dos Jornalistas de SP, 1979) e Osvaldo Orico(ABL, 1984). Ele produziu um grande acervo a partir da documentação proveniente do trabalho na imprensa e como escritor. Em que circunstâncias o acervo dele foi doado?

Marco Morel – A doação foi feita para a Biblioteca Nacional depois que ele morreu. O vasto material estava guardado na casa da minha avó, que na época ainda era viva. Não tinha sentido ficar ali porque havia muita coisa. Ele guardava as reportagens que escreveu, a correspondência, fotografias e o material de pesquisa para os livros. Conheci um funcionário da Biblioteca Nacional, onde eu ia sempre pesquisar, e eles me perguntaram se eu gostaria de doar o arquivo de meu avô. Achei melhor que toda a documentação ficasse em boas condições de armazenamento e aberta ao público para preservar a memória dele. Jamais pensei em vender nada, pois não faria o menor sentido. Seria contraditório com a trajetória de Edmar Morel. Jornal da ABI – Edmar Morel foi homenageado com nome de rua no Rio de Janeiro.

Marco Morel – O projeto é de autoria do Maurício Azêdo, quando era vereador. Eles trabalharam juntos no jornal O Semanário, porta-voz das Ligas Camponesas, de Francisco Julião. Meu avô dizia que viveu neste jornal o ponto alto de sua carreira. No Semanário ele pôde dar expressão ao seu ponto de vista político como jornalista de esquerda, de perfil democrático, defendendo as reformas de base, fazendo reportagens de denúncia sobre a seca. Era uma Redação formada por pessoas de esquerda que foi fechada após o golpe de 1964. O jornal pertencia ao Osvaldo Costa e no final meu avô era quem estava mais à frente da Redação. Entre os colaboradores, Barbosa Lima Sobrinho e Josué de Castro. Fichel Davit também trabalhou lá. Esta experiência marcou muito meu avô, pois foi o último jornal onde ele trabalhou. No dia 31 de março de 1964, quando percebeu que

Marco Morel – O jornalismo das Redações perdeu muito em relação à época do meu avô, mas ficou mais poderoso, mais influente. Os jornalistas que têm uma visão crítica podem atuar em outros espaços que não o das grandes Redações, sinônimos de empresa e de grandes aparelhos políticos. A imprensa sempre teve uma posição política desde os primórdios de sua existência, mas agora se afigura a um instrumento de Estado ou de grupos econômicos. O jornalista está virando um funcionário burocrata. A única saída é criar uma saída e ocupar os espaços alternativos, seja pela internet ou pelos movimentos sociais. É preciso reinventar o jornalismo porque este que se consolidou nas grandes Redações, nas grandes revistas, é cada vez pior profissional, política e culturalmente. Jornal da ABI – Edmar Morel teria optado pelo jornalismo dentro desta conjuntura?

Marco Morel – Possivelmente, não. É por isso que as novas gerações não reconhecem a figura de meu avô e de outros nomes importantes da imprensa. A perda do senso crítico é um fato. Não sabem nem que um dia existiu um jornalismo assim. Se ele estivesse vivo hoje estaria fazendo o que fez nos últimos anos de vida. Ele trabalhou até morrer, mas não teve casa própria, nada de material, embora vivesse com conforto e dignidade. Ele atuou fora das Redações nas funções de assessor de imprensa e de relações públicas, como na Santa Casa da Misericórdia. Ele não estaria trabalhando em grandes jornais, onde não há mais espaço para ele e sua geração. Nos últimos anos da vida ele já não tinha mais espaço em jornal nenhum. Foi uma ruptura muito grande, sobretudo após o golpe de 1964. Depois da ditadura ele colaborou algum tempo na Tribuna da Imprensa, pois o Hélio Fernandes publicava os textos dele. A partir de 1964, foram criadas gerações de jornalistas que não tiveram contato com a geração anterior, criando este vazio. Ao mesmo tempo, a ditadura foi cerceando o perfil de jornalista mais crítico, mais investigativo. Não apenas a ditadura, mas também a evolução das empresas sob a influência do grande capital. Jornal da ABI – Como está a programação do centenário?

Marco Morel – A Secretaria de Cultura do Ceará informou que pretende relançar o livro Dragão do Mar - O Jangadeiro da Abolição. A Biblioteca Nacional mostrou interesse em montar uma exposição. Saiu uma nota na coluna do Ancelmo Gois e será publicada esta matéria no Jornal da ABI, o que já está sendo ótimo!

O Supremo Tribunal Federal-STF iniciou no dia 2 de agosto o julgamento de 38 acusados, entre deputados e exdeputados, ex-ministros, empresários e banqueiros, suspeitos de envolvimento no maior escândalo de corrupção na política brasileira, conhecido como o caso Mensalão. Nessa data emblemática, o jornalista, historiador e pesquisador Marco Morel, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-Uerj, lançou na Livraria Argumento (Rua Dias Ferreira, 417, Leblon), o livro Corrupção – Mostra a sua Cara (Casa da Palavra), no qual ele apresenta estudo sobre a corrupção no Brasil desde o início da colonização até os dias atuais, incluindo episódios notórios, personagens que acumularam práticas ilícitas e uma galeria de cidadãos de reconhecida trajetória no combate à corrupção. Fotos, charges e cartuns ilustram a obra e acentuam o viés crítico da pesquisa. No texto de apresentação, Maurício Azêdo, Presidente da ABI, destaca a relevância histórica do livro e a urgência do debate em torno do tema: “Marco Morel faz aqui um mergulho no Brasil Contemporâneo, relatando os acontecimentos que marcaram as últimas décadas da vida nacional no campo político e social, em que não foram poucas nem isoladas as manifestações de desapreço à coisa pública e à ética no exercício das funções que deveriam ser honradas e dignificadas e não o foram. Sem falso moralismo, Morel disseca com visível rigor crítico estes tempos em que a improbidade caminha à solta, sem que a cidadania encontre consolo de perspectivas de extinção desses hábitos e de punição de seus agentes mafiosos.” O convite para escrever sobre a corrupção no Brasil representou um importante desafio, explica Marco Morel: “O livro foi uma proposta da Editora Casa da Palavra, aceitei o desafio, mesmo não sendo, até então, minha área de estudos. Pesquisa e redação duraram cerca de um ano. Não realizei nenhuma entrevista. Na verdade é um trabalho de historiador, com estilo jornalístico, entre crônica e noticiário histórico, fora dos padrões acadêmicos. Há muito besteirol histórico publicado por aí fazendo sucesso, como os trabalhos de Laurentino Gomes e Eduardo Bueno. Mudei a linguagem, mas não abri mão dos conhecimentos que adquiri. Baseei-me em documentos dos séculos XVI a XVIII, publicados em livros, bem como em jornais do século XIX, sobretudo os ilustrados. Para o século XX, recorri à minha memória e complementei com novas pesquisas em jornais e livros. Alguns poucos casos em que


HISTÓRIA

A corrupção, desde Tomé de Souza, numa pesquisa de Marco Morel Rouba-se e frauda-se desde a época do primeiro governador-geral, ainda no tempo do Brasil Colônia. “Fugi da lógica dos ‘grandes escândalos’ e das revelações bombásticas, que já não constituem novidade, somos com freqüência bombardeados com esse tipo de notícia. O conteúdo do livro se restringiu a meu próprio universo de pesquisa, dentro dos critérios que falei. Citei casos de corrupção corrosiva, isto é, com dimensão social, como desvio de verbas para remediar a grande seca de 1877 e das secas de 2011, já no Governo Dilma. Citei a famosa reportagem sobre a égua Farpa, de meu avô Edmar, quando havia racionamento de leite para toda a população, menos para os cavalos do Jockey Clube Brasileiro. Lembrei da matéria feita por meu pai Mário sobre a corrupção na Polícia, um dos principais escândalos do Governo JK, quando pela primeira vez se comprovou tal prática através da imprensa. Sem esquecer a marcante confusão entre público e o privado, incluindo situações bem atuais, como a maneira de se conduzir no trânsito ou o plágio nos trabalhos escolares e universitários.” não tive elementos para fazer denúncias redigi como ficção. Tive total liberdade de escrever o que quis, a relação com a Editora foi ótima. A publicação tem muitas imagens interessantes, pesquisadas pela historiadora Renata Santos”.

dade imutável ao longo do tempo, das supostas origens até hoje. O que era ilícito num período, não é em outro. Não adianta jogar a culpa toda no passado. A corrupção é reinventada em cada época.”

A corrupção se reinventa

Os episódios de corrupção envolvendo malversação do dinheiro público e o famoso jeitinho brasileiro nortearam os critérios de seleção dos casos observados no livro: “Se eu fosse fazer uma história da corrupção no Brasil... eu não conseguiria realizar! Seria, infelizmente, uma enciclopédia com dezenas de volumes inacabados... Fiz alguns recortes. Considerei dois tipos de corrupção: mau uso do dinheiro público e pequenos comportamentos do dia-a-dia, arraigados em nossas vidas. A partir daí tirei alguns padrões: figurinhas carimbadas como Ademar de Barros e Paulo Maluf mas, também, o envolvimento de Carlos Lacerda com o jogo do bicho, apesar da postura moralista que ele sempre assumiu. Há vários indícios de que o bicheiro Raul Barulho financiou a campanha de Lacerda ao Governo da Guanabara”. Para citar exemplos representativos da corrupção no Brasil, o autor buscou referências em sua prática de pesquisa e nas reportagens de seu avô, Edmar Morel, um dos jornalistas mais combativos da História da imprensa brasileira, e de seu pai, o também jornalista Mário Morel.

Ademar, Maluf, Lacerda

Em destaque na capa do livro, uma frase de Luís Fernando Veríssimo (“Esse estranho País de corruptos sem corruptores”) resume um ponto essencial da corrupção, mas não toda a sua complexidade, analisa Marco Morel: “A ocultação ou proteção dos agentes corruptores indica algo. A meu ver, não basta acabar com a corrupção (sonhar não custa!) para termos uma sociedade mais justa. A corrupção é causadora, mas também causada pela injustiça, desigualdade e violência. É importante combater ambas, a desonestidade e a desigualdade social”. O contexto histórico e sociocultural brasileiro foi determinante para o acúmulo de casos de corrupção ao longo da História do País, frisa o autor. “A corrupção é um problema da espécie humana, não dos brasileiros apenas. Em cada sociedade ela assume formas, dimensões e características próprias. Em alguns países há mais mecanismos de controle, em outros a corrupção tem pouca visibilidade. Não entendo tal fenômeno como característica genética e hereditária, mas, sim, historicamente constituído. A corrupção no Brasil tornou-se uma tradição cultural, política e econômica relacionada às formas de exploração e controle do período colonial. Depois foi parte integrante da formação do Estado nacional, de seu modo de funcionar. Mas não há uma linha de continui-

Há exemplos de probidade

O compromisso com os valores democráticos e de incentivo à cidadania pode viabilizar o combate à corrupção no Brasil a partir de esforços isolados e iniciativas de grande mobilização social, sublinha Marco Morel: “Vivemos numa sociedade de consumo onde tudo pode se tornar descartável, inclusive os afetos, as memórias e as informações. Não adianta jogar toda a culpa apenas nos ‘políticos’ lá de cima. Cada um de nós é político em sua área de atuação pessoal. Não tenho uma fórmula ou solução para problema tão vasto, e acho pouco provável que alguém tenha. Em linhas gerais, vejo que as transformações só podem vir da sociedade, não de governos ou Parlamentos. A partir de tomada de consciência coletiva e mobilização efetiva, podem surgir esperanças. Há também uma tradição anticorrupção

no Brasil que precisa ser levada em conta, assinalo isso no livro, que termina com uma lista de pessoas, notórias ou anônimas, que tiveram oportunidade para se apropriarem do dinheiro alheio e não o fizeram. A lista é encabeçada pelo nosso saudoso Barbosa Lima Sobrinho. E tive o orgulho de o Prefácio do livro ter sido escrito pelo jornalista Maurício Azêdo, Presidente da ABI, que leva adiante esta linhagem democrática e ética.” O papel dos jornalistas

Morel assinala ainda o papel decisivo da imprensa no combate à corrupção através do exercício pleno da liberdade de expressão: “Nós jornalistas temos esta responsabilidade. Hoje em dia a liberdade de imprensa se confunde, em certos espaços, com o laissez-faire de grandes empresas de enormes negócios, articuladas a grupos políticos conservadores. Estão preocupadas com o monopólio da informação e em vender visão de mundo única e fechada. Ainda assim, a liberdade de expressão, repito, é crucial. Como diziam os anarquistas na Guerra Civil espanhola, ‘el bien más preciado es la libertad’. Os jornalistas, como seres humanos, não estão imunes às contradições.” “Conto no livro o caso da primeira caricatura impressa no Brasil, em 1837: retrata o brilhante jornalista e escritor Justiniano José da Rocha recebendo dinheiro para escrever a favor do Governo – o que na época, parece, causava escândalo. Justiniano acabou admitindo que era pago por ministros para redigir jornais; algumas vezes recebeu o pagamento em escravos africanos. Trazendo para os tempos atuais, existe o risco do cinismo e do pessimismo crônicos, embora às vezes compreensíveis, mas isto decorre da sociedade de consumo e da defesa dos padrões capitalistas que buscam desmobilizar as pessoas e roubar-lhes a esperança. As medidas governamentais e parlamentares neste sentido, hoje, são restritas e insuficientes. Mas concordo com o poema de Bertolt Brecht, ‘nada é impossível de mudar ’. Como historiador, avalio que os livros não fazem revoluções, mas podem, quem sabe, ajudar na mobilização de consciências. Um livro é sempre uma contribuição limitada, mas faz parte de um momento, de um contexto em que cresce a insatisfação com a corrupção no Brasil. Pode ser um bom começo.” (Cláudia Souza)

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LEGISLAÇÃO

O Senado aprova a Pec do Diploma Com uma votação consagradora, o Senado aprovou em segundo turno o Projeto de Emenda Constitucional nº 33/09, que restabelece a exigência de diploma de formação em Jornalismo para o exercício da atividade profissional. A nova batalha pela aprovação da Pec será na Câmara dos Deputados.

O Plenário do Senado aprovou por excepcional votação no dia 7 de agosto a Proposta de Emenda à Constituição nº 33/2009, conhecida como Pec dos Jornalistas ou Pec do Diploma. A proposta, que recebeu 60 votos favoráveis e quatro contrários no segundo turno de votação, torna obrigatório o diploma de curso superior de Comunicação Social, na habilitação Jornalismo, para o exercício da profissão. A matéria seguiu para exame da Câmara dos Deputados e poderá ser promulgada após a votação nessa Casa Legislativa se não houver modificações no texto originário do Senado. Apresentada pelo Senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), a Pec dos Jornalistas acrescenta novo artigo à Constituição, o 220-A, estabelecendo que o exercício da profissão de jornalista é “privativo do portador de diploma de curso superior de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, expedido por curso reconhecido pelo Ministério da Educação”. Pelo texto, é mantida a tradicional figura do colaborador, sem vínculo empregatício, e são validados os registros obtidos por profissionais sem diploma, no período anterior à mudança na Constituição prevista por essa Emenda. O Supremo Tribunal Federal, em junho de 2009, revogou a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista. Na ocasião, por oito votos a um, os ministros acolheram uma ação do Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo-Sertesp e do Ministério Público Federal-MPF, que pediam a extinção da obrigatoriedade do diploma. O recurso contestava uma decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª RegiãoTRF-3, que determinou a obrigatoriedade do diploma. Para o MPF, o Decreto-Lei nº 972/69, que estabelecia as regras para exercício da profissão, seria incompatível com a Constituição Federal de 1988. Relator do processo, o então Presidente do Supremo, Ministro Gilmar Mendes, concordou com o argumento de que a exigência do diploma não está autorizada pela Constituição. Ele sustentou então que o fato de um jornalista ser graduado não assegura qualidade aos profissionais da área. A manifestação de Mendes foi recebida com indignação pela comunidade jornalística, em razão da grosseira comparação que, pretendendo fazer graça, ele fez entre o trabalho de um jornalista e o de um cozinheiro. Entre 1º julho de 2010 e 29 de junho de 2011, foram concedidos 11.877 registros, sendo 7.113 entregues mediante a apresentação do diploma e 4.764 com base na decisão do STF. 18

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GERALDO MAGELA-AGÊNCIA SENADO

P OR C LÁUDIA S OUZA

Os quatro do contra

O Senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDBSP) foi o primeiro e único a se manisfestar no plenário contra a Pec dos Jornalistas. Ele lembrou que o STF julgou inconstitucional a exigência do diploma e disse que esta decisão mostra que a atividade do jornalismo é estreitamente vinculada à liberdade de expressão e deve ser limitada apenas em casos excepcionais. Nunes Ferreira disse que o interesse na exigência do diploma vem dos donos de faculdades que oferecem o curso de Jornalismo e criticou o corporativismo, que, na opinião dele, estaria por trás da defesa do diploma: “Em nome da liberdade de expressão e da atividade jornalística, que comporta várias formações profissionais, sou contra essa medida”. Além de Aloysio Nunes Ferreira, votaram contra Ciro Miranda (PSDB-GO), Jáder Barbalho (PMDB-PA) e Kátia Abreu (PSD-TO). Garantia de qualidade

As Senadoras Ana Amélia (PP-RS) e Lúcia Vânia (PSDB-GO) defenderam a proposta e se disseram honradas por serem formadas em Jornalismo. Para a Senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), a apro-

Senador Antônio Carlos Valadares: A profissão de jornalista não pode ficar à margem da lei.

vação da Pec significa a garantia de maior qualidade para o jornalismo brasileiro. O Senador Paulo Davim (PV-RN) destacou o papel da imprensa na consolidação da democracia, enquanto Magno Malta (PR-ES) afirmou que o diploma significa a premiação do esforço do estudo. Wellington Dias (PT-PI) ressaltou que a proposta

não veta a possibilidade de outros profissionais se manifestarem pela imprensa e que valorizar a liberdade de expressão começa com a valorização da profissão. Para o autor da proposta, Senador Antônio Carlos Valadares, uma profissão não pode ficar à margem da lei: “A falta do diploma só é boa para os grandes conglomerados de comunicação, que poderiam pagar salários menores para profissionais sem formação. Dificilmente um jornalista me pede a aprovação dessa proposta, pois sei das pressões que eles sofrem”, disse o autor. Valadares contou que foi motivado a apresentar a proposta pela própria Constituição, que prevê a regulamentação das profissões pelo Legislativo. Ele salientou que se o diploma fosse retirado a profissão dos jornalistas poderia sofrer uma discriminação. “A profissão de jornalista exige um estudo científico que é produzido na universidade. Não é justo que um jornalista seja substituído em sua empresa por alguém que não tenha sua formação”, declarou. O Senador Rodrigo Rollemberg (PSBDF) sublinhou a importância da formação para o desenvolvimento profissional: “O exercício da profissão de jornalista deve ser resguardado àqueles que tiveram uma formação técnica, humanística e

Corrigindo uma decisão obscurantista Após a votação no Senado, a Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj e 31 Sindicatos de Jornalistas do País divulgaram declaração em que apontam a aprovação da Pec 33 como “passo fundamental para a correção de uma decisão obscurantista do Supremo Tribunal Federal”. A declaração: “A Fenaj e seus 31 sindicatos filiados vêm a público agradecer aos 60 senadores brasileiros que, no início da noite de hoje, aprovaram em segundo turno a Pec 33/09, que restabelece a exigência do diploma de curso superior em Jornalismo como condição para o exercício profissional. O Senado, absolutamente sintonizado com a opinião pública e com a categoria dos jornalistas, deu um passo fundamental para a correção de uma decisão obscurantista do Supremo Tribunal Federal, que eliminou a exigência do diploma para acesso à profissão. Os jornalistas e a sociedade brasileira agradecem este ato em defesa do Jornalismo. A Fenaj agradece especialmente ao Senador Antônio Carlos Valadares, autor da Pec 33, ao Senador Inácio Arruda, que fez a relatoria da matéria, e à Senadora Lídice da Mata, que cobrou daqueles que buscavam protelar a apreciação da proposta o compromisso público, assumido há meses, de votá-la. Eles foram incansáveis na defesa da Pec, demonstrando uma compreensão singular da importância do Jorna-

lismo nas sociedades democráticas e do papel do profissional jornalista. Igualmente, agradecemos ao Presidente da sessão desta terça-feira, Senador Casildo Maldaner, e aos líderes partidários que colocaram a votação da Pec 33 entre as prioridades da Casa. Também agradecemos a todos os senadores que apoiaram a proposta e que se empenharam pela sua aprovação. A exigência da formação superior em Jornalismo é uma conquista histórica dos jornalistas e da sociedade. Depois de 1969, quando foi instituída, esta exigência contribuiu decisivamente para modificar a qualidade do Jornalismo brasileiro, representando uma das garantias ao direito à informação independente e plural, condição indispensável para a verdadeira democracia. O diploma de jornalista foi derrubado da nossa legislação profissional por decisão do STF em 17 de junho de 2009, que permitiu que qualquer cidadão, sem qualquer formação, possa exercer esta profissão de grande responsabilidade social. A decisão da maior Corte de Justiça representou um retrocesso não somente para a categoria dos jornalistas, mas para toda a sociedade brasileira, que perde com a desqualificação do Jornalismo. O Congresso Nacional respondeu de pronto a este processo de judicialização da vida nacional, de caráter nitidamente conservador. No

mesmo ano de 2009, foram apresentadas duas Pec’s restabelecendo a exigência do diploma para o exercício profissional. Hoje, após a aprovação da Pec 33 no Senado, a categoria e a sociedade voltam suas atenções para a Câmara dos Deputados, que terá de apreciar a Pec 33 em conjunto com a Pec 386, de autoria do Deputado Paulo Pimenta e relatoria do Deputado Maurício Rands. Ambas têm o mesmo propósito: resgatar a dignidade dos jornalistas brasileiros e contribuir para a garantia do jornalismo de qualidade. O momento é de comemoração da grande vitória, mas a mobilização dos jornalistas brasileiros, organizada pela Fenaj e pelos Sindicatos de Jornalistas de todo o País, apoiada por entidades do campo do Jornalismo, como o Fórum Nacional de Professores de JornalismoFNPJ e a Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo-SBPJor, e respaldada pela energia contagiante de estudantes de Jornalismo que engajaram-se em manifestações desde a fatídica decisão do STF em 2009 até a vigília no Senado nesta sexta-feira, vai continuar para que a Pec seja aprovada em tempo recorde na Câmara dos Deputados. A vitória é nossa e a fazem os que lutam! (a)Diretoria da FENAJ e Sindicatos de Jornalistas do Brasil. Brasília, 7 de agosto de 2012.”


SUGESTÃO

ética adequada para trabalhar com este bem precioso que é a informação.” Os senadores do Rio de Janeiro Lindberg Farias (PT) e Francisco Dornelles (PP) foram favoráveis à proposta. Eduardo Lopes (PRB), que substituiu Marcelo Crivella (PRB) em março deste ano na bancada fluminense, manteve o posicionamento de seu antecessor e também votou em defesa do diploma de Jornalismo. Desde o início da semana, lideranças sindicais da categoria estavam em Brasília, em contato com lideranças do Senado. Comitivas dos Sindicatos dos Jornalistas de Alagoas, do Amazonas, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, e da Fenaj, além de uma delegação de estudantes, participaram da mobilização e promoveram contatos com lideranças do Senado. Durante o encaminhamento da matéria a tensão aumentou quando cresceram as manobras para tentar adiar a votação da Emenda. Prevaleceu, no entanto, a pressão da comitiva dos jornalistas e as intervenções dos Senadores Antônio Carlos Valadares, autor da Pec, Inácio Arruda (PCdoB-CE), relator da matéria, e da Senadora Lídice da Mata (PSB/BA). Os três parlamentares cobraram o compromisso público assumido pelas lideranças partidárias já no final do ano passado, quando a Emenda foi aprovada em primeiro turno, e no início do primeiro semestre de 2012, de votar a matéria. Por volta das 20h30min, a Pec dos Jornalistas foi colocada em discussão e votação. A primeira fala, única contrária a manifestar-se no microfone, foi do Senador Aloysio Nunes (PSDB/SP). Sucederam-se diversas outras favoráveis à proposta. Quando o painel do Senado registrou, às 21h7min, o resultado da votação, jornalistas e estudantes comemoraram. Instantes depois o resultado da votação espalhava-se pela internet. “O Senado mostrou sintonia e sensibilidade com o desejo da sociedade e dos jornalistas pela qualificação e valorização do jornalismo. Temos certeza de que, com mais luta e mobilização, a Câmara dos Deputados fará o mesmo”, declarou o Presidente da Fenaj, Celso Schröder. A comitiva dos jornalistas permaneceu em Brasília no dia seguinte, reforçada por dirigentes de outros Sindicatos de Jornalistas e de uma delegação de dirigentes sindicais e estudantis de São Paulo. A mobilização se concentrara em contatos com lideranças da Câmara dos Deputados, visando à definição de uma estratégia para acelerar a tramitação da Emenda em conjunto com a Pec 386/09, de autoria do Deputado Paulo Pimenta (PT/RS). “Demos um importante passo. Ficou claro que a sociedade e os parlamentares estão contra a decisão maniqueísta do Supremo Tribunal Federal(STF) que considerou a exigência do diploma uma ameaça à liberdade de expressão. Vamos restaurar a exigência do diploma e seguir defendendo uma prática jornalística responsável, que só é possível com a formação”, disse a Presidente do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, Suzana Blass.

Será esta uma homenagem marcante ao povo negro, diz o ex-parlamentar. Em mensagens dirigidas ao governador Sérgio Cabral e ao Prefeito Eduardo Paes, o ex-Deputado Carlos Alberto Caó propôs que seja dado o nome do exSenador Abdias Nascimento à Via Light, ligação entre a cidade de Nova Iguaçu e o parque de Madureira, a segunda maior área de lazer do Município do Rio. "Parte significativa dos negros fluminenses mora tanto na cidade vizinha quanto no subúrbio de Madureira", diz a mensagem de Caó, que foi membro da Assembléia Nacional Constituinte de 1988-89 e é sócio da ABI. Suas palavras: "Digníssimo Senhor Sérgio Cabral, Em primeiro lugar, minhas cordiais e fraternas saudações, extensivas a seu pai, antigo companheiro na luta pela restauração da democracia no País; em segundo lugar quero externar meus agradecimentos pelas palavras elogiosas à minha pessoa por ocasião da assinatura, há cerca de um ano, no Palácio Guanabara, da lei que disponibiliza 20% das vagas de concursos do Estado para negros e índios. Isso nos dá a certeza de que a luta de todos nós, brasileiros e não brasileiros e negros e não negros, mas acima de tudo de qualquer pessoa de bom senso, tem embasamento na Justiça, que lentamente vem sendo feita à luta empreendida pelo mais remoto ancestral dos negros brasileiros. Por último, mas por isso não menos importante, quero lhe parabenizar pela iniciativa de alinhamento e harmonização com os âmbitos municipal e federal. Isto representa o resgate da plena cidadania e justiça da população fluminense, negada até o Governo de Luiz Inácio da Silva, o nosso Lula, pelos seus antecessores, em retaliação à posição oposicionista de nosso povo. Em nosso Estado, somente o Governador Leonel Brizola, fundador do meu partido, PDT, aproximou-se do que o senhor trouxe e está fazendo para o Rio de Janeiro, somente não o conseguindo em sua plenitude pelos seus ideais socialistas, progressistas e inclusivos, sendo, por isso, tolhido por aqueles que ocupavam, àquela época, o cargo mais alto dos Executivos Municipal e Federal. Não é à toa que o nosso Estado é hoje o recordista na captação de verbas pelo Governo Federal. E isso se dá por dois motivos: a sua iniciativa, na harmonização dos poderes e o discernimento do Presidente Lula e de sua sucessora, a Presidenta Dilma Rousseff, do quanto nosso Estado foi discriminado ao longo dos anos, não somente no período da ditadura, mas também alguns anos após o seu término. Não apenas repasses federais nos foram negados, como receitas do nosso Estado, oriundas da riqueza, foram solapadas em sessões secretas e desleais, como

ACERVO ABDIAS NASCIMENTO/BIA PARREIRAS

Pressão e manobras

Caó propõe nome de Abdias para a Via Light

Segundo Caó, “a Via Light, que ligará Nova Iguaçu ao Parque de Madureira, somente será perfeita se for denominada com o nome do Senador Abdias Nascimento”.

qualquer pessoa razoavelmente bem informada sabe. Por isso, o momento que nosso Estado passa, sob seu Governo, mas nada mais é do que a justiça sendo feita pelos anos de retaliação e descaso impingidos à nossa população. A harmonia entre os três âmbitos – municipal, estadual e federal – capitaneada por V. Ex.ª, sem demagogia, tem sido a redenção de nosso Estado e sua população. Governador Sérgio Cabral, como o senhor muito bem sabe, a Cidade do Rio de Janeiro tem como característica de sua topologia a alternância de áreas nobres e carentes em qualquer direção que se vá. Uma das peculiaridades da nossa cidade, incluindo-se os Municípios vizinhos que formam a área do Grande Rio, sempre foi a convivência, na maioria das vezes civilizada, de grande parte de seus habitantes em lugares comuns, independente de sua classe social; assim ocorre nas praias, nos estádios ou em qualquer lugar público, onde são realizados eventos de grande porte. Este é o perfil do carioca, propalado nos quatro cantos do planeta. Em decorrência da realização de megaeventos – Copa das Confederações, Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e ParaOlímpicos –, obras de grande porte vêm sendo realizadas em todo o Brasil e no Rio de Janeiro, onde especificamente serão realizadas as Olimpíadas 2016. Excelentíssimo Governador Sérgio Cabral, acreditamos existirem obras de porte correlato à importância de Abdi-

as Nascimento. Não postulamos, por exemplo, seu nome na Transcarioca, que ligará o Aeroporto Internacional Tom Jobim à Barra da Tijuca, ou qualquer obra similar. Mas há uma, que, especificamente, traduz fielmente a existência deste grande brasileiro, paulista por nascimento e carioca por adoção: a Via Light, que ligará a cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, a Madureira, especificamente ao Parque de Madureira, aquela que será a segunda maior área de lazer do Município. Excelentíssimo Governador Sérgio Cabral, parte significativa dos negros fluminenses mora tanto na cidade vizinha quanto no subúrbio de Madureira. A presença do povo negro é marcante tanto na área econômica, com o cultivo de café pelos escravos, ainda hoje notada nas ruínas de várias fazendas em Nova Iguaçu, quanto na área cultural no subúrbio de Madureira, denominada a Capital do Samba. Excelentíssimo Governador Sérgio Cabral, louvamos e endossamos todas as iniciativas – UPP, UPAs, vias expressas e outras obras. Por isso acreditamos que esta obra, a Via Light, que ligará Nova Iguaçu ao Parque de Madureira, somente será perfeita se for denominada com o nome de Senador Abdias do Nascimento, sendo esta homenagem a mais fiel tradução da existência de nosso grande líder. (a) Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos" JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

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IMPRENSA

O resgate histórico do Estadão Ao colocar na internet todas as suas edições desde 1875, o mais antigo diário paulista disponibiliza para o público um acervo único que reúne mais de 2 milhões de páginas e textos que fizeram a História. ACERVO O ESTADO DE S.PAULO

P OR M ARCOS S TEFANO

“Vestido de couro curtido, das alparcas solidas ao desgracioso chapéo de abas largas e affeiçoado aos arriscados lances da vida pastoril, o jagunço traiçoeiro e ousado rompe-os, atravessa-os, entretanto, em todos os sentidos, facilmente, zombando dos espinhos que não lhe rasgam siquer a vestimenta rústica, vingando celere como um acrobata as mais altas arvores, destramando, dextro, o amaranhado dos cipoaes. Não ha persegui-lo no seio de uma natureza que o créou á sua imagem – barbaro, impetuoso, abrupto.” Costuma-se dizer que na guerra não existem vencedores. Muito menos beleza. Mas o relato do início das batalhas em Canudos, feito pelo correspondente Euclides da Cunha e publicado na primeira página de O Estado de S. Paulo de 17 de julho de 1897, mostra o contrário. Pelo menos, nas páginas da imprensa e da literatura. A partir daquelas reportagens épicas no sertão baiano surgiria um dos grandes clássicos das letras em todo o mundo: Os Sertões. Agora, páginas como essa, que marcaram época e fizeram a História, estão novamente ao alcance do público, com a digitalização e disponibilização de todo acervo do Estadão na internet. São 137 anos de jornais na rede, com mais de 2 milhões e 643 mil páginas, o suficiente para ocupar 2 mil dvds ou 60 potentes servidores. Jornais que vão desde os tempos em que a publicação foi criada por um grupo de republicanos e abolicionistas, em 1875, e se chamava ainda A Província de S. Paulo, até às edições mais atuais, incorporadas ao acervo diariamente. Estão lá uma série de registros: textos anunciando a abolição da escravidão no Brasil; a mudança da Monarquia para a República; matérias sobre as duas grandes guerras mundiais; revoluções como a do Tenentismo, em 1924, e a Constitucionalista, de 1932; artigos como um de Monteiro Lobato, em 1917, criticando Anita Malfatti e jogando lenha na fogueira em que se transformaria a Semana de Arte Moderna de 1922; e, claro, as famosas páginas censuradas, nas quais há a opção de ler o texto original, com os riscos do censor, ou a versão que foi às bancas, com trechos de Os Lusíadas. Relatos que hoje se encontram nos livros de História, mas sem a análise fria da posteridade. Escritos no calor da hora, marcados pelas minúcias dos acontecimentos de cada dia e registrados sob a ótica viva, ainda que tantas vezes imperfeita, do jornalismo. Um conteúdo que é riquíssimo, seja para pesquisadores, seja para meros curi20

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acontecimentos relevantes relembrados. Uma estratégia que facilita e muito a navegação pelo conteúdo; afinal, por melhor que esteja a qualidade da digitalização, ler textos centenários, do tempo em que ainda não se usava o lide e os autores abusavam de empolados narizesde-cera, com uma diagramação que trazia 12 colunas, corpos diferentes e impressão feita a chumbo com tipos móveis, não é das tarefas mais fáceis e agradáveis. Assim, biografias montadas com base no material do jornal, páginas selecionadas e indicadas pelo editor, seleção dos principais acontecimentos em determinado dia ou sugestões de notícias por década promovem interação e ajudam os leitores. Com apenas poucos dias no ar, o acervo recebeu mais de 138 mil visitas a 675 mil páginas. Cada pessoa gastou em média 15 minutos em suas pesquisas, o dobro da média de tempo que se costuma usar em sites na internet. Entre as mais procuradas estavam as matérias censuradas durante a ditadura militar. Tanto que elas ganharam uma página própria. No momento de realizar as pesquisas, também foi incluída a opção de fazer a busca somente nesse tipo de conteúdo. “Trata-se da maior memória viva em termos de cobertura da imprensa no Brasil. Não somente em quantidade, mas também em termos de relevância, já que o jornal foi o maior e mais importante do País durante um bom tempo. Tentamos oferecer tudo isso ao leitor da maneira mais descomplicada e interativa possível. No acervo é possível conhecer os principais fatos, acompanhar a evolução do texto jornalístico e dos anúncios, de empresas ou de classificados”, afirma Roberto Gazzi, Editor-Chefe do Estadão. Mais que imagens

Soldado brasileiro lê O Estado de S.Paulo nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial.

osos. Apesar de O Estado de S.Paulo não ser o mais antigo jornal em circulação no Brasil, seu acervo é singular. Publicações como O Diário de Pernambuco, fundado 50 anos antes, e o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, criado em 1827, por exemplo, são mais antigas, mas não têm um material tão vasto e relevante. O jornal paulista também não é o primeiro a disponibilizar suas edições na rede. O The New York Times, dos Estados Unidos, foi um dos primeiros a oferecer seu imenso acervo na internet. Porém, não tão aberto quanto o da publicação brasileira e com uma tecnologia que oferece navegação bem mais

limitada. Ao acessar o acervo do Estado, ver as edições por data é apenas uma das alternativas do internauta. Ele também pode pesquisar palavras, obter gráficos com a incidência dos termos por década e por ano, buscar determinadas personalidades ou se debruçar sobre tópicos, que vão das Olimpíadas às notícias sobre os conflitos entre Israel e Palestina ao longo dos anos. Melhor: a página está em constante atualização, não é estática. Não apenas por conta das novas edições que diariamente são adicionadas, mas por assuntos importantes que ficam em destaque ou

A preocupação da família Mesquita em preservar a História de sua instituição não é nova. A partir dos anos 1980, o jornal firmou convênios com instituições como a Universidade de São Paulo-Usp para manter seu acervo completo e bem conservado. A preocupação era manter mais de uma coleção da publicação, fosse na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, fosse na Biblioteca do Congresso Americano, em Washington, para evitar tragédias como os incêndios da Record, da Tupi e da Globo, que consumiram boa parte da memória da televisão brasileira. Nada, no entanto, como o projeto que se realiza agora. Roberto Gazzi classifica a digitalização e disponibilização de todas as edições do jornal como um “sonho”. Primeiro, por causa da dificuldade de ser realizada. Segundo, pelo preço. A direção não confirma, mas um projeto desse porte custa milhões de reais. Sua realização só se tornou possível por conta do apoio recebido de patrocinadores como o Bradesco e a Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Eles ajudaram a financiar o trabalho, inclusive, da Tractus, uma consultoria externa especializada, contratada por licitação e que foi encarregada de realizar a digitalização do material sob a coordenação da equipe do Estadão. O trabalho começou em 2010, quando o Grupo Estado finalmente reuniu as condições necessárias para que tudo fosse


realizado, e durou intensos 14 meses. Em suas diferentes fases, o projeto envolveu cerca de 60 profissionais de diversas áreas, entre jornalistas, historiadores, arquivistas, bibliotecários, designers, publicitários, educadores, técnicos de informática, programadores e engenheiros. Da digitalização à construção de um ambiente adequado para todo esse conteúdo. O desafio era garantir a qualidade de leitura das páginas no novo formato. Com um alto padrão de qualidade estabelecido, sempre que a cópia digital extraída do microfilme ou da edição impressa não atendesse aos vários critérios técnicos, era preciso buscar outra fonte. “Acredito que o nível de qualidade seja único no mundo. Como precisávamos garantir a qualidade para leitura, recorremos a diversos acervos. Além do nosso, o da Biblioteca Nacional, o do Arquivo Público do Estado de São Paulo, o da Biblioteca Mário de Andrade e outros. Se não estivesse bem microfilmado, usávamos os originais impressos mesmo”, explica o jornalista Edmundo Leite, Coordenador do Acervo. A etapa seguinte exigiu a adaptação da grafia, indexação e formação de um banco de dados. Não bastava que o leitor encontrasse simples imagens na internet. A elevada qualidade de fotografia exigia também uma tecnologia que permitisse o reconhecimento de palavras. A dificuldade foi solucionada com tecnologia moderna e a adoção do OCR (Optical Character Recognition), um tipo de software que faz o reconhecimento ótico de caracteres. Ele identifica as letras nas páginas e permite a busca por palavras ou termos. Mesmo assim, várias ferramentas precisaram ser incorporadas para melhorar a performance do buscador. O Instituto de Estudos Brasileiros-IEB, da Usp, forneceu dicionários de grafias antigas por eles digitalizados. São eles que permitem equacionar as várias reformas ortográficas formais e outras tantas transformações informais da língua portuguesa, fazendo que a pessoa encontre as muitas ocorrências da palavra “pharmacia” mesmo quando digita “farmácia” no campo de pesquisa. Ainda assim, é preciso paciência. Não é raro o buscador confundir palavras parecidas. Além de atualizar termos, outra preocupação foi a de contextualizar informações, facilitando a compreensão do leitor das notícias, por mais antigas que fossem. Para dar conta das tantas mudanças de moedas e períodos de estratosférica inflação atravessados pelo Brasil, por exemplo, os desenvolvedores do site criaram um conversor de valores, que permite calcular quanto custariam hoje produtos, serviços e bens imobiliários quantificados em classificados e reportagens do passado. Na busca por um índice mais confiável, foi escolhido como indexador o preço do exemplar do próprio jornal, exceto em fins de semana. O cálculo é simples. Divide-se o preço do produto ou serviço pelo preço do jornal na data da publicação. Dessa conta, descobre-se o número de exemplares que seria possível comprar com tal valor. Multiplicando-se esse número pelo valor atual do jornal, encontra-se o preço atualizado.

Para descobrir quanto custou o ingresso de arquibancada para o show de Frank Sinatra no Maracanã, em 1980, basta pegar o preço do ingresso, de 100 cruzeiros, e dividir pelo preço do exemplar do jornal em banca, no caso, de dez cruzeiros. Com o ingresso era possível comprar dez exemplares do jornal na época. Hoje, dez jornais, a três reais cada exemplar, custariam 30 reais, que seria o preço atualizado do ingresso. Fazer o caminho inverso – e descobrir o poder de compra do salário em alguma data do passado – também é possível. Com isso é possível comparar o preço de uma casa de hoje com outra que foi anunciada no jornal há um século. Ou descobrir que o salário-mínimo de maio de 1940, então valendo 220 mil réis, hoje equivaleria a 550 exemplares do jornal ou 1.650 reais. Fotos, áudios e receitas de bolo

Seguindo uma tendência mundial, o acesso à maior parte desse material é cobrado. Algo que só não aconteceu entre maio e junho. Durante os 30 primeiros dias em que ficou no ar, o site, que faz parte do portal Estadão.com.br, foi liberado para todos os usuários da rede. Desde o fim de junho, quem se cadastra tem direito a ver gratuitamente 20 páginas ampliadas. Acesso irrestrito só mesmo para assinantes da versão impressa ou digital. Ainda assim, a

direção do jornal garante que o objetivo maior da empreitada é disseminar conhecimento. E está empenhada em firmar parcerias para tanto. “O acervo é um presente para o Brasil. Ele preserva um patrimônio e facilita o acesso às informações que antes ficavam restritas a repórteres e estudiosos que procuram nossos arquivos. Já temos acordos com a Biblioteca Nacional, as universidades estaduais paulistas, com a Biblioteca Mário de Andrade e com todas as unidades do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo. Estamos ampliando com outras bibliotecas estaduais e municipais. Quem for a essas instituições também terá o acesso às páginas ampliadas liberado”, promete Roberto Gazzi. Finda a primeira etapa de digitalização, devem ter início agora as próximas. Será a vez de outros produtos ganharem a rede. Alguns são publicações, como o Suplemento em Rotogravura, uma revista fotográfica impressa em papel especial e que circulou de 1928 a 1944; o vespertino Estadinho, publicado nos períodos das guerras mundiais e que serviu de inspiração para a criação da Folha da Noite, atual Folha de S. Paulo; as saudosas edições de Esporte, que saíram todas as segundas-feiras durante vários anos; almanaques e materiais especiais. Outros, arquivos de áudio da rádio e gravadora Eldorado – atual Estadão/ESPN,

com registros importantes de artistas que fizeram História na música brasileira e as primeiras gravações de artistas como Daniela Mercury; e as fotos. Atualmente há cerca de 200 mil fotografias já digitalizadas, mas a proposta do Grupo Estado é fazer isso com todo o seu gigantesco acervo fotográfico. Apesar da importância, nenhum desses é tão aguardado como o Jornal da Tarde, especialmente em sua primeira fase, que vai de 1966 aos primeiros anos da década de 1970. Era o tempo da grande reportagem na imprensa brasileira e, junto com a revista Realidade, o JT foi um de seus principais espaços. Inovador na linguagem gráfica, nos assuntos e nas manchetes – o então vespertino era visto como um misto entre o jornal diário e a revista semanal. Até em textos policiais os repórteres eram encorajados a usar um estilo mais literário, transformando reportagens em romances da vida real, tal qual fazia o New Journalism nos Estados Unidos. Mais do que saudosismo, para muita gente ter acesso novamente a esses textos é como retornar ao melhor que o jornalismo brasileiro já produziu: as páginas da História do Brasil. Mesmo debaixo de pesada censura. Afinal, tão marcantes quanto as poesias de Luís de Camões no Estadão, eram as célebres e inesquecíveis receitas de bolo do JT.

“O acervo foi pensado como um novo canal de informação” POR CLÁUDIA S OUZA

De todos os profissionais que participaram durante 14 meses da digitalização e construção do site que abriga o Acervo do Estadão na internet, ninguém se envolveu mais com o projeto do que o jornalista Edmundo Leite. Com 16 anos de casa, ele é o Coordenador do Acervo e principal responsável por transformar mais de um século de informação impressa em um minucioso arquivo digital, com textos e imagens que ajudam a reconstruir a História recente do Brasil. Jornal da ABI – Qual foi o maior desafio nesse tempo de trabalho? Edmundo Leite – Garantir a qualidade de leitura das páginas no formato digital. Para isso, foi preciso selecionar as melhores amostras de microfilmes, a matriz do processo de digitalização, disponíveis em diferentes acervos, no nosso, na Biblioteca Nacional e no Arquivo Público do Estado de São Paulo, entre outros. Um padrão de qualidade foi estabelecido para que a cópia digital extraída do microfilme atendesse a vários critérios técnicos. Quando esse padrão não era atingido, partíamos para uma nova microfilmagem, de modo que tivéssemos um arquivo digital de qualidade. Jornal da ABI – O Acervo não se limita a encontrar edições antigas. Como fazer a ponte com o presente? Edmundo Leite – Primeiro, com uma atualização constante, que incorpora automa-

ticamente cada nova edição publicada. Mas também pelo uso que fazemos desse acervo. Não se trata realmente apenas de encontrar edições antigas. O Acervo foi pensado como um novo canal de informações. Diariamente, fazemos conexões de notícias do passado com os fatos atuais noticiados pelo jornal. No dia do lançamento do Acervo, por exemplo, quando seria natural colocar a primeira página publicada pelo jornal, em 4 de janeiro de 1875, em destaque, optamos por destacar uma página de 1974 sobre a inauguração do Metrô em São Paulo, pois naquele dia acontecia uma greve dos metroviários que parou a cidade. A primeira frase da reportagem de 38 anos atrás não poderia ser mais apropriada: “O Metrô hoje está proibido para a população”. Não se trata apenas de saudosismo. Muita coisa do passado ajuda a compreender os acontecimentos de hoje. Não vai demorar a surgir uma informação nova das centenárias páginas do jornal. Jornal da ABI – Como está sendo o retorno do público neste primeiro momento? Edmundo Leite – Fantástico. Estamos recebendo várias manifestações emocionadas de leitores que encontram coisas que jamais conseguiriam se não fosse a digitalização. Desde menções aos pais, avós e bisavós a notícias sobre suas vidas, os lugares em que viveram, o tema da pesquisa para o trabalho acadêmico. Algumas mensagens são tocantes. As pessoas agradecem por poderem

reviver algo ou lerem de novo um texto que adoraram, mas ficou só na memória. Jornal da ABI – Entre as notícias ao longo desses 137 anos, quais chamaram mais a atenção da equipe? Edmundo Leite – O entusiasmo tem sido tão grande que há horas em que precisamos nos conter, tamanha a vontade de compartilhar tudo o que há de bacana ali dentro. Uma hora alguém lê um texto do Carlos Drummond de Andrade no Suplemento Literário, dali a pouco alguém mostra uma notícia sobre o Pelé ou outro jogador de futebol ainda no início da carreira. Encontramos os primeiros registros de vitória de Ayrton Senna nas categorias menores do kart, em 1974; há as páginas censuradas, que sempre causam espanto. É tanta coisa que seria preciso uma homepage maior que a do Estadão.com.br para dar conta de tudo isso. Mas o que mais chama atenção e emociona até hoje é o belíssimo texto da notícia sobre a abolição da escravidão no Brasil publicado na edição de 15 de maio de 1888. É de arrepiar: “Já não há mais escravos no Brazil. A lei n. 3353 de 13 de maio de 1888 assim o declara no meio de festas que se estendem por todo o paiz, para honra e gloria desta nação da America. Desde hontem está em vigor o excepcional Decreto da soberania nacional que a princeza regente, em nome do imperador, sanccionou e seus ministros o fizeram publicar. Ahi está uma victoria esplendida da opinião, a affirmação do quanto póde um povo quando sabe fazer valer a sua vontade…”

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Primeira página do primeiro número de A Provincia de São Paulo (acima à esquerda) e da edição de 15 de maio com a notícia da Lei Áurea. Acima, a edição de 16 de novembro noticia a proclamação da República. Nela, D. Pedro II é chamado de tirano. Já com o nome de O Estado de S.Paulo, a crônica de dois conflitos: Canudos (acima) e a Primeira Guerra Mundial.

Páginas da História BRAZIL, UM PAIZ AGITADO S EGUNDA - FEIRA , 4 DE JANEIRO DE 1875

“Mais uma folha diaria vem offerecer á provincia de S. Paulo campo livre aos debates tão necessarios para solução de problemas importantes que interessam a seu desinvolvimento moral e material. Creada pelo concurso de capitaes fornecidos por agricultores, commerciantes, homens de letras e capitalistas, está ella no caso de satisfazer ás mais legitimas aspirações da rica e briosa provincia, cujo nome toma para seu titulo; e isto justifica seu apparecimento. Esse motivo faz com que o novo jornal se apresente em condições de poder influir directamente no progresso do paiz e na educação do povo, e habilital-o a ser, como um escriptor distincto já definio, ‘o cuidadoso expositor de todos os productos da intelligencia humana, a escola em que entram todos aquelles que sabem soletrar’.”

que se estendem por todo o paiz, para honra e gloria desta nação da América. Desde hontem está em vigor o excepcional Decreto da soberania nacional que a princeza regente, em nome do imperador, sanccionou e seus ministros o fizeram publicar. Ahi está uma victoria esplendida da opinião, a affirmação do quanto póde um povo quando sabe fazer valer a sua vontade. (...) Está completo o trabalho de destruir e arruir de todo a vergonhosa instituição, mas é preciso agora não nos esquecermos do trabalho de reconstruir. A Patria sem escravos não é ainda a Patria livre. Agora começa o trabalho de libertar os brancos assentando a constituição politica sobre bases mais largas e seguras para felicidade do povo e gloria nacional.”

Î Foi com uma apresentação pomposa que ocupou mais da metade da primeira página que o Estadão, ainda com o nome de A Provincia de São Paulo, chegou às mãos dos leitores no começo de 1875. O primeiro número ainda trazia o popular folhetim, instruções públicas e várias seções, como a científica, a econômica, a judiciária, letras e artes, um noticiário com notas breves e outro com os acontecimentos nacionais, além dos anúncios publicitários. Mesmo digitalizada, ler toda a edição é uma tarefa complicada, já que a qualidade da impressão original não é das melhores e vários pontos trazem marcas pretas. Apesar disso, é possível perceber o tom de protesto contra a monarquia e contra a escravidão que marcariam os primeiros anos da publicação.

Î A notícia da assinatura da Lei Áurea veio com júbilo e expressões como “entusiasmo” e “fim das trevas”, que há muito não são comuns no jornalismo, mas eram marcantes até então. Adjetivos à parte, a vitória foi muito comemorada pela publicação, que já anunciava a nova batalha que se avizinhava: pelo regime republicano e por uma Pátria realmente livre. Detalhe: uma comemoração feita com um dia de atraso, já que o jornal não circulou em 14 de maio.

PÁTRIA LIVRE

DA CORTE PARA A REPÚBLICA

T ERÇA- FEIRA, 15 DE MAIO DE 1888

S ÁBADO , 16 DE NOVEMBRO DE 1889

“Já não há mais escravos no Brazil. A lei n. 3353 de 13 de maio de 1888 assim o declara no meio de festas

“Recebemos hontem o seguinte telegramma: ‘Foi proclamada a Republica no Brazil. Consta que o

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governo provisorio será organisado com o general Deodoro e Quintino Bocayuva. Affirmam outros que o governo será constituido pelo general Deodoro, Quintino Bocayuva e Benjamim Constant. Foi convocada uma reunião popular para acclamação do governo. O ministerio foi obrigado a assignar a sua demissão. O barão de Ladario foi ferido e acha-se em perigo de vida’. Logo que recebemos este telegramma, fizemos distribuir o seguinte boletim: ‘Cidadãos: Noticias da Corte annunciam a proclamação da Republica – a fórma de governo que exprime o sentimento nacional! Unamo-nos para garantir a ordem, porque o novo regimen nasce da livre manifestação popular!’.” Î “Viva a República!”. Foi com essa saudação ocupando toda a primeira página da edição, ainda com o título de A Provincia de São Paulo, que o jornal anunciou o fim da monarquia no Brasil e o começo do novo regime. Com textos repletos de exclamações, a publicação dizia que a notícia não provocara entusiasmo, mas delírio indescritível. Além de dar detalhes sobre o funcionamento do novo governo, que seria encabeçado pelo General Deodoro da Fonseca e por Benjamim Constant, comentava a situação da família imperial, isolada em Petrópolis, mostrava como repercutiram as novas em São Paulo e entre as lideranças paulistas, e louvava o movimento militar e o Exército, que acabavam de completar sua ação benéfica começada em 1831: “mostrando o caminho do

exilio á um tyramno”. O título Estado só seria incorporado ao nome do jornal em janeiro de 1890.

A GUERRA NO SERTÃO S EGUNDA - FEIRA , 25 DE OUTUBRO DE 1897

“A artilheria fez estragos incalculaveis nas pequenas casas, replectas todas. Penetrando pelos tectos e pelas paredes as granadas explodiam nos quartos minusculos despedaçando homens, mulheres e crianças sobre os quaes descia, as vezes, o pesado tecto de argilla, como a lagem de um tumulo, completando o estrago. Parece, porém, que os mal feridos mesmo sofreiavam os brados da agonia e os proprios timidos evitavam a fuga, tal o silencio, tal a quietude soberana e extranha, que pairavam sobre as ruínas fumegantes, quando, ás 6 e 48 minutos, cessou o bombardeio.” Î Para cobrir a luta das tropas federais contra o beato Antônio Conselheiro e cerca de 25 mil sertanejos no arraial de Canudos, no vale do rio Vaza-Barris, o Estadão enviou Euclides da Cunha como seu correspondente. Após a derrota da terceira expedição, enviada pelo Governo baiano, ele havia publicado no jornal um texto intitulado A nossa Vendéia, em que comparava o conflito a um episódio da Revolução Francesa e demonstrava seu apoio à República, já que os “jagunços rebeldes” eram considerados monarquistas e fanáticos religiosos. No entanto, ao visitar pessoalmente o campo de batalha e testemunhar os abusos e o extermínio promovido pelos exércitos, ele passou a ver o conflito com outros olhos. Lançado em 1902, o livro Os Sertões se tornou um clássico da literatura brasileira e mundial. Também revelou ao País a realidade da região, enalteceu a força do sertanejo e denunciou o massacre dos vencidos.

O BRASIL NO GRANDE CONFLITO S ÁBADO , 27 DE OUTUBRO DE 1917

“A commissão de Diplomacia e

Tratados reuniu-se hoje, na Camara, para tomar conhecimento da mensagem do sr. presidente da Republica, a proposito do torpedeamento do vapor brasileiro “Macau” por um submarino allemão. O sr. Alberto Sarmento leu o seu parecer sobre a referida mensagem, concluindo por apresentar um projecto reconhecendo e proclamando o estado de guerra que nos foi imposto pela Allemanha. (...) Ás 15 horas e meia o sr. Sabino Barroso, presidente da Camara, annunciou ter sido approvado com 149 votos contra 1, do sr. Joaquim Pires, deputado federal pelo Piauhy, o projecto da commissão de Diplomacia e Tratados, declarando o estado de guerra entre o Brasil e a Allemanha. Todos os deputados, de pé, prorromperam em prolongada salva de palmas e delirantes acclamações.” Î Foi com o tom de “Urgente”, que o Estadão anunciou a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial, conflito que pela primeira vez aconteceu em terra, nas trincheiras e fortificações, no mar e no ar, deixando um saldo estimado de 19 milhões de mortos. O jornal teve importante papel na cobertura da guerra, desde que noticiou o evento que serviu como seu estopim: o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austrohúngaro, e sua esposa Sofia, Duquesa de Hohnberger, no dia 28 de junho de 1914. Posteriormente, o jornal lançou uma edição vespertina, o Estadinho, dirigida por Júlio Mesquita, que durante os quatro anos seguintes escreveria textos


À direita, uma página censurada do jornal em 1974. Abaixo, a mesma página depois de publicada: no lugar dos trechos censurados, versos de Os Lusíadas.

A notícia sobre a abertura da Semana de Arte Moderna foi publicada na página 2 da edição de 16 de novembro. Dez anos depois, a Revolução Constitucionalista recebeu grande apoio do jornal.

Laudo Natel, o Reitor da Usp, secretários de Estado e vários discursos.

PÁGINAS À PARTE DA HISTÓRIA jornalísticos e de opinião, todas as segundas-feiras, sobre os principais acontecimentos no front e fora dele.

QUARTA- FEIRA , 21 DE AGOSTO DE 1974

ARTE DE VANGUARDA QUINTA -FEIRA , 16 DE FEVEREIRO DE 1922

“Realizou-se hontem no Theatro Municipal o segundo festival da ‘Semana de Arte Moderna’. Uma boa concorrencia, para a qual certamente contribuiu em grande parte a inclusão no programma o nome da nossa illustre pianista Guiomar Novaes. Iniciou-se o sarau com a conferencia do sr. Menotti del Picchia. Pouco a pouco a atmosphera do theatro foi-se transformando com a collaboração das galerias a ponto de lembrar em certos momentos a famosa noite de estrea de Tortola Valencia. Talvez isso tambem estivesse nas intenções dos promotores da reunião, embora não figurasse no programma. Espontânea manifestação da galeria ou claque de novo genero, o certo é que as phrases e attitudes menos respeitosas attingiram algumas vezes artistas respeitaveis pelo seu talento e seu passado, que collaboravam no festival. Mas para ‘os verdadeiros modernistas’, o passado das nações ou dos individuos não conta... Não se lhes póde negar, nisso ao menos, uma certa lógica.” Î Na década de 1910, o mundo das artes já fervilhava. Influenciados pelas vanguardas artísticas européias e por movimentos como Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo, os modernistas brasileiros combatiam a mera imitação da realidade e dividiam opiniões ao propor uma arte mais subjetiva e abstrata. Foi assim com uma exposição do lituano Lasar Segall, em 1913, e com outra de Anita Malfatti, em 1917. A ponto de Monteiro Lobato publicar, na edição vespertina do Estadão de 20 de dezembro de 1917, o artigo “A propósito da exposição Malfatti”, desancando a pintora. Um ataque que acabou reunindo um grupo de jovens artistas num movimento de apoio a ela. Cinco

anos mais tarde, esse movimento desembocaria na Semana de Arte Moderna. Concebida por Di Cavalcanti e Menotti del Picchia, o evento aconteceu em fevereiro de 1922 e levou ao Teatro Municipal de São Paulo nomes como Graça Aranha, Mário de Andrade e Heitor Vila-Lobos, que promovem uma programação com instalações de arquitetura, esculturas e exposições de telas, palestras, recitais, conferências e apresentações musicais.

A IMPRENSA NO FRONT S EGUNDA- FEIRA , 15 DE AGOSTO DE 1932

“Na região de Pinheiros, proximo de Queluz, por volta das 16 horas, as tropas constitucionalistas desencadearam um ataque contra os adversarios. A luta prosseguiu durante a tarde e a noite. A ala esquerda, sob o comando do capitão Pietsher, tomou uma trincheira, numa brilhante carga de baioneta. As tropas dictatoriaes recuaram desmoralisadas e as nossas continuaram a avançar. Mais ou menos nas mesmas horas as tropas constitucionalistas que operam na região do Tunnel empenharam-se num assalto violento contra as tropas dictatoriaes, aprisionando-lhes 60 soldados e 2 officiaes e causandolhes perdas elevadas. Esses dois combates encheram de enthusiasmo as nossas tropas. Os soldados que, em caminhões, seguiram para a frente, cantavam hymnos a São Paulo. Medicos, engenheiros, professores, cirurgiões-dentistas têm offerecido aneis de formatura à ‘Campanha do Ouro da Victoria’.” Î Conta-se que, no ano de 1932, quando as mulheres viam homens desocupados perambulando pelas ruas de São Paulo, diziam-lhes:

“Vistam saias”. A indireta era clara: se não tinham sido contagiados pela causa, só podiam ser maricas. Nunca antes se vira tanta mobilização por um esforço de guerra como houve na Revolução Constitucionalista, deflagrada pelos paulistas em 9 de julho daquele ano. Na insurreição armada contra o governo de Getúlio Vargas, até alianças de ouro e jóias eram dadas para financiar a luta. Em troca, as pessoas recebiam anéis de latão com a inscrição: “Doei ouro para o bem de São Paulo”. A imprensa também entrou na guerra. Júlio de Mesquita Filho, diretor do Estado, era um dos líderes civis do movimento. Também chamavam a atenção as manchetes ufanistas dos jornais que falavam em valentia, vitórias, triunfos inevitáveis e morte da ditadura getulista. Como costuma acontecer nesses casos, a causa se sobrepôs à realidade dos fatos. Exatos 85 dias depois de deflagrado o movimento, isolados, os paulistas assinaram o armistício e puseram fim às hostilidades. Porém, no ano seguinte, conseguiram o que tanto queriam: uma nova Constituinte e a nomeação de Armando de Sales Oliveira como interventor no Estado.

AVÔ DO TABLET E DA INTERNET TERÇA - FEIRA, 25 DE JULHO DE 1972

“À primeira vista, ele não lembra um computador como os que existem em funcionamento atualmente no Brasil. É pequeno e composto apenas de uma máquina central, com um painel cheio de pontos luminosos e botões, e dois terminais

que imprimem linhas – como em um gráfico – ou letras em uma máquina de escrever. Mas, já em operação em uma sala da Escola Politécnica da USP, ele significa muito mais do que pode indicar seu tamanho: é o primeiro computador eletrônico inteiramente concebido, projetado, construído e posto em operação no Brasil. (...) A história começou quando, em 1969, a Escola Politécnica resolveu montar um curso especializado em formar engenheiros eletrônicos para trabalhar com computadores. Mas, para montar o curso, segundo o professor Hélio Vieira, até os professores tinham que aprender. Para isso, a escola adquiriu alguns computadores no exterior. ‘Nós abrimos esses computadores – explica Vieira – e começamos a estudá-los. Chegamos até a mexer em seu sistema. Envenenamos os aparelhos.’ Depois, a partir dos trabalhos dos professores e de alunos monitores que participaram do projeto, foi concebido o primeiro computador inteiramente nacional.” Î A máquina pioneira da tecnologia nacional de processamento de dados acaba de completar 40 anos. Com oito bites, foi criada pela Escola Polítécnica da Usp, com o objetivo de fomentar a indústria nacional de computadores. O computador tinha capacidade 32 vezes menor do que a maioria das máquinas pessoais de hoje, que contam com 256 bits. Apelidado de “Patinho Feio”, foi lançado com pompa em um evento que contou com a presença do Governador de São Paulo na época,

“Em seguida, o parlamentar se referiu à punição imposta à rádio que o entrevistou dizendo: ‘Hoje, tomo conhecimento de dois fatos extremamente graves e não menos despropositados: uma portaria do Ministro das Comunicações aplicando uma suspensão de 15 dias à Rádio Cultura de Feira de Santana, pelo crime de ter-me entrevistado; e as ameaças de subter-me a novo processo ou ao tacão massacrante do AI-5. Por último, referindo-se à preservação das instituições do País, o parlamentar disse que “não basta que vivamos sob a violência do AI-5. Eles precisam, mesmo quando estimulam especulações sobre distensão, que todas as instituições nacionais estão submetidas ao arbítrio sem limites. Por isso, repito, não temo por mim. Temo pelas instituições do País. É preciso que todos lutem contra o arbítrio, praticando a resistência democrática, conforme o exemplo dado, ainda agora, pela Ordem dos Advogados do Brasil, rejeitando a tentativa do governo em subordinála ao Ministério do Trabalho’.” Î Diferente dos demais textos desta reportagem, o trecho acima nunca foi publicado. Ele foi censurado, assim como muitas outras páginas entre os anos de 1972 e 1975. Os problemas do jornal com os militares começaram logo após a decretação do Ato Institucional nº 5, o sinistro AI-5,em 13 de dezembro de 1968. Na ocasião, o Estadão recusou-se a mudar seu editorial Instituições em Frangalhos e teve toda a sua edição apreendida. No total, mais de mil páginas foram mutiladas pelos censores durante o regime militar. Como aconteceu com o texto acima, em que o Deputado oposicionista Francisco Pinto (MDBBA) comenta uma entrevista dada a uma rádio baiana em que criticou o ditador Augusto Pinochet, do Chile, e fala sobre sua certa cassação, o jornal paulista publicou no lugar mais versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões.

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LIBERDADE DE IMPRENSA

No Pará, Prefeito candidato ameaça jornalistas de O Globo Com insinuações sobre o risco enfrentado por quem fala mal a seu respeito, ele pediu aos repórteres que tomassem cuidado. P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES

A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, órgão vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, abriu sindicância para apurar denúncias sobre a ameaça feita a uma equipe do jornal O Globo no Pará, no dia 23 de julho, pelo Prefeito do Município de Redenção, Wagner Fontes (PTB-PA), candidato à reeleição. Os repórteres ameaçados foram Carolina Benevides e Marcelo Piu, que foram a Redenção apurar denúncias de fraude envolvendo a Prefeitura local. Os jornalistas saíram da cidade escoltados por dois policiais federais, depois de serem ameaçados pelo Prefeito durante uma entrevista. “Estou falando para que você embase suas perguntas, até para que você possa refletir sobre o que eu vou te dizer. Se (alguém) falar mal a fim de me difamar, pode ser que amanhã ou depois esteja morto”, disse Wagner Fontes. Para reforçar a sua intimidação, o Prefeito contou a história de um blogueiro da região conhecido como Júnior, que foi procurado por ele e teria sumido no dia seguinte do encontro. Wagner Fontes contou o que disse ao blogueiro: “Se você continuar fazendo o que está fazendo comigo, a injustiça que está fazendo comigo, vai custar caro para você. Porque pode ter certeza absoluta de que Deus vai colocar a mão sobre você e cobrar o que você está fazendo comigo”. Wagner Fontes disse ainda que não sabe se o blogueiro repensou ou se foi pre-

so. “Ele sumiu”, afirmou Fontes, que disse ter “visão ampla da liberdade de imprensa” e continuou falando do blogueiro: “Ele foi preso. Não foi por minha causa. Houve uma coincidência, a Polícia estava concluindo um processo de investigação. Foi preso como traficante”, contou. Carona sob suspeita Conforme noticiou a Agência Globo, os repórteres registraram a ameaça na Polícia Federal em Redenção, a qual lhes deu proteção até à manhã seguinte, destacando dois agentes federais para acompanhá-los até a saída do perímetro urbano do Município, na divisa com o Estado de Tocantins. Assim que os policiais federais retornaram à cidade, dois policiais militares pararam o carro da equipe e pediram carona. O Delegado da Polícia Federal Luiz Felipe da Silva foi avisado e fez a equipe do jornal retornar à cidade. Disse o Delegado que estranhou o episódio, pois em Redenção não é comum que PMs abordem carros pedindo carona. O fato foi registrado como adendo à certidão de ocorrência. No documento, consta que “o Prefeito coagiu e ameaçou a equipe, tendo deixado transparecer que um acidente poderia acontecer ou ainda que algo ilícito poderia ser encontrado com a equipe”. De acordo com os registros, um funcionário da Prefeitura teria dito ao fotógrafo Marcelo Piu que sabia qual era o carro da reportagem, além de perguntar em que hotel a equipe estava hospedada.

IBGE discrimina repórter Assessoria de Imprensa da autarquia impede jornalista de participar de entrevista coletiva com a Presidente. Após a apresentação dos números do IPCA e do Sinapi pelo IBGE no dia 8 de agosto, os jornalistas gravaram entrevista com a responsável pela divulgação das pesquisas. Um dos profissionais perguntou em que medida a greve dos trabalhadores do IBGE interferiu nas duas pesquisas e se os dados foram coletados por servidores temporários. Nesse momento a Assessoria de Imprensa do IBGE interrompeu a entrevista, alegando que a greve e outros assuntos deveriam ser tratados diretamente com a Presidente, Wasmália 26

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Bivar, na entrevista que ela concederia logo depois, na sala da Presidência. Os jornalistas de diversos órgãos de imprensa que se encontravam no auditório do terceiro andar da sede do IBGE deslocaram-se até a ante-sala da Presidência. O jornalista Henrique Acker, assessor de imprensa da Associação dos Servidores do IBGE-Sindicato Nacional foi até o local da entrevista, mas foi impedido de participar. O argumento apresentado pela Assessoria da Presidência foi que os jornalistas

Em entrevista, o advogado e primeiro-secretário jurídico do PTB, Luiz Gustavo Pereira da Cunha, disse que o partido “repudia qualquer censura à imprensa”: “Esse episódio é lastimável, pedimos desculpas antecipadas”, disse o advogado, afirmando que caso O Globo peça esclarecimentos à Executiva Nacional, esse pedido será levado ao Conselho de Ética do partido. A Polícia Militar do Estado do Pará disse “não identificar ameaça à vida ou integridade física da jornalista ou das pessoas que estavam com ela”. O órgão policial pediu que a queixa seja feita por escrito. Entidades repudiam Em nota divulgada no dia 26 de julho, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo-Abraji também se manifestou sobre o caso. Segundo a Diretora-Executiva da entidade, Veridiana Sedeh, a Abraji “repudia a ameaça sofrida” pela equipe de O Globo. A Abraji manifestou preocupação com a violência contra jornalistas no interior do Brasil, onde muitos profissionais têm sido assassinados. “A violência contra jornalistas no interior do Brasil é preocupante e configura um grave atentado à liberdade de expressão”, disse nota da entidade, que cobrou a apuração do caso com rigor. O Comitê de Liberdade de Expressão da Associação Nacional de JornaisANJ afirmou que considera esse episó-

que participariam da entrevista haviam feito solicitação anteriormente, por escrito. O jornalista do Sindicato pediu que a solicitação lhe fosse apresentada, o que não aconteceu. Depois foi-lhe dito que se tratava de uma entrevista exclusiva, o que não confere com a prática profissional, visto que entrevista exclusiva é realizada por um só profissional de um único órgão de imprensa. Impedido de exercer sua profissão, o assessor da AssIBGE-SN permaneceu na ante-sala da Presidência. Ao final da entrevista coletiva com a Presidente do IBGE, Henri Acker indagou aos colegas da imprensa se tinham feito alguma solicitação por escrito para participar daquela entrevista. Não houve resposta de nenhum dos jornalistas presentes e a assessora de im-

dio “um claro atentado ao direito de informar e de ser informado”. Como proteger A Ouvidoria da Secretaria Nacional de Direitos Humanos pretende solicitar aos órgãos policiais e ao Ministério Público registros sobre as ameaças. O órgão só deve se pronunciar após analisar o caso. A criação de um comitê para acompanhar as investigações de crimes cometidos contra jornalistas foi proposta recentemente à Ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário, por representantes de sindicatos e associações de jornalistas, entre as quais a ABI. Na ocasião, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, disse que a reunião “abriu o caminho para definição de medidas que menos exponham a risco a atividade profissional de jornalista.” O Presidente da Confederação Nacional de Municípios, Paulo Ziulkoski, em entrevista ao Extra Online, condenou as ameaças à equipe de O Globo, e frisou o respeito que é devido ao trabalho da imprensa: “A gente sabe que a situação (violência) é muito complicada na região. O Município é filiado à CNM, mas somos uma entidade de Municípios, não representamos os prefeitos. Sem entrar no mérito do caso, a imprensa tem que ser respeitada. Se vivemos numa democracia, a liberdade é um direito fundamental. Nós defendemos o direito de informação, o acesso à informação plena, de modo geral, sem constrangimento ou omissão”, disse Ziulkoski.

prensa do IBGE passou então a argumentar que não trabalha com solicitações por escrito, em flagrante contradição com o argumento apresentado pela sua colega da assessoria da Presidência. Ao final, ficou flagrante que a Assessoria de Imprensa do IBGE, um órgão público, cerceou a liberdade de exercício da profissão de um jornalista. Cabe lembrar que independentemente de trabalhar para o órgão de classe de uma categoria em greve, Acker apenas exerce sua profissão. Informada do cerceamento imposto a Acker, a ABI dirigiu mensagem de protesto à Presidente do IBGE, lamentando que o órgão restabeleça agora, sob o Estado Democrátioco de Direito, as práticas da época da ditadura militar.


DIREITOS HUMANOS

Emoção e lágrimas na Caravana da Anistia Evocação dos sacrifícios e tragédias de combatentes da ditadura causa comoção na Puc-Rio no julgamento de processos de anistia. FOTOS CLÁUDIA SOUZA

P OR C LÁUDIA S OUZA

Em clima de grande emoção e de lágrimas, centenas de pessoas lotaram o principal auditório da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no dia 17 de agosto, para o julgamento de sete processos de anistia política incluídos na 61ª Caravana da Anistia do Ministério da Justiça, coroamento da Conferência Internacional Memória: América Latina em Perspectiva e Comparada, realizada pela Comissão de Anistia com a colaboração da Puc. O evento teve início com o discurso do Padre Francisco Ivern, Vice-Reitor da Puc-Rio: “Estamos recuperando a memória de épocas e de situações quando a verdade, a justiça e os direitos humanos estavam sendo violados. Hoje também estamos recuperando a memória daqueles que combateram esta situação e arriscaram suas vidas pela democracia. Vamos lembrar também as pessoas ligadas à Puc-Rio que lutaram contra a ditadura dentro e fora desta Universidade, que representou uma ilha de liberdade e um refúgio frente às perseguições. Não vamos fomentar o ódio, mas trazer à luz as injustiças e refletir para que esses fatos não se repitam”. Também discursaram Margarida de Souza Neves, Coordenadora do Projeto Memória Puc; Francisco Guimarães, Diretor do Departamento de Direito da Puc; Adriano Pilatti, professor do Departamento de Direito e Bruno Lourenço, Presidente do Diretório Central dos Estudantes da Puc. Em seguida, foram homenageados os antigos funcionários da Puc Joana Brandão de Aguiar, do Departamento de Engenharia Civil, lotada no Laboratório de Estruturas, e o ascensorista Moisés de Mesquita, que já morreram, pelo apoio à luta dos estudantes da Universidade contra a ditadura. As famílias de ambos receberam placas comemorativas, e Margarida de Souza Neves fez a leitura de um texto elaborado pelo Núcleo de Memória da PUC: “Dona Joana comandou uma tropa de funcionários, entre os quais o Sr. Moisés, insuspeitos aos olhos dos garis do Dops, na busca dos que chamava de ‘os meus meninos’, as lideranças do movimento estudantil. Hábil, soube conduzir, por caminhos que só os funcionários antigos conheciam, aquele bando de jovens assustados, pelo meio da mata que existia onde hoje é um tre-

Estado foi responsabilizado pela prisão, tortura e morte de Raul. Homenagem a Prestes, Zuzu Angel e Boal Em seguida, teve início a 61ª Caravana da Anistia da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, sob a coordenação do Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia. Nesta edição, a Caravana homenageou Luiz Carlos Prestes, comandante da Coluna Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro (PCB) por mais de 50 anos; a estilista Zuzu Angel, mãe do militante Stuart Angel, do MR-8, torturado e morto pela repressão (Zuzu Angel também foi morta em um misterioso acidente de carro); e o teatrólogo Augusto Boal, fundador do Teatro do Oprimido. Acompanharam a solenidade Luiz Carlos Prestes Filho e Carlos Augusto Marighella, filho do revolucionário baiano, entre dezenas de militantes históricos.

cho da auto-estrada Lagoa-Barra, até à Avenida Visconde de Pirajá, de onde se escafederam no primeiro lotação Gávea–Leme que passou. Da calçada do ponto de ônibus, uma Dona Joana sorridente e majestosa acenava para os estudantes que ajudara a escapar.” Um dos maiores pensadores brasileiros, o filósofo, escritor e militante político Leandro Konder, que lecionou na Puc, foi ovacionado pela platéia em celebração à sua trajetória de luta pelas liberdades. Raul Amaro Ferreira, ex-aluno da Puc, também recebeu homenagens durante o evento. Formado em Engenharia Mecânica em 1967, Raul foi preso pelo Dops-RJ, na noite do dia 31 de julho de 1971, no bairro de Laranjeiras, quando dirigia seu carro em companhia de outro engenheiro, Saidin Denne. Em 2 de agosto, Raul foi encaminhado ao Doi-Codi/ RJ depois de ter sua residência invadida e ocupada pela repressão. Foi torturado a ponto de ser preciso que o levassem, às pressas, para o Hospital Central do Exército, onde morreu em 12 de agosto. Em 1979, a família iniciou processo contra a União e ganhou em primeira instância. Em 7 de novembro de 1994, o

Conduzido numa cadeira de rodas ao auditório principal da Puc, o filósofo Leandro Konder, que foi professor da Universidade, foi longamente ovacionado ao chegar para o ato da 61ª Caravana da Anistia. Também emocionante foi o depoimento do Professor José Grabois (acima), que foi aprovado em dois concursos públicos para o magistério e jamais foi nomeado, por discriminação ideológica e também por ostentar o sobrenome de um dos grandes adversários do regime militar, o ex-Deputado Maurício Grabois,executado na Guerrilha do Araguaia.

Justiça para sete vítimas da ditadura Em clima de grande comoção, foram analisados os processos de Yuri e Alex Xavier Pereira, José Grabois, Lincoln Bicalho Roque, Maria Cristina da Costa Lyra, Mariela Venâncio Porfírio e Fernando Augusto de Santa Cruz. Os irmãos Yuri e Alex Xavier Pereira, militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Ação Libertadora Nacional (ALN), foram para Cuba em 1968 e retornaram na clandestinidade. Após a morte do líder e fundador da ALN, Carlos Marighella, Yuri passou a ser membro efetivo do Comando Nacional da ALN e foi assassinado em junho de 1972 após uma emboscada. Alex foi morto em janeiro de 1972 e enterrado com outro nome. José Grabois, professor da Secretaria de Educação do antigo Estado da Guanabara, foi demitido após sua detenção em 1954, quando anunciava a realização de um comício. Lincoln Bicalho Roque, militante do PCB, foi aposentado compulsoriamente em 1968 por suas atividades políticas. Foi preso diversas vezes antes de passar à clandestinidade, em 1972. Em 13 de março de 1973, o corpo de Lincoln foi encontrado com 15 tiros. A Polícia afirmou, à época, que ele reagira às forças de segurança. Maria Cristina da Costa Lyra, militante do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, presa e torturada em 1970, e a

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DIREITOS HUMANOS militante da Ação Popular Mariela Venâncio Porfírio, presa em dezembro de 1972, condenada a seis anos de detenção também pediram reparação moral e econômica à Comissão de Anistia. Fernando Augusto de Santa Cruz, membro da Ação Popular Marxista-Leninista, é um desaparecido. Em decorrência da prisão de vários companheiros da organização, Fernando se mudou para São Paulo, em 1973. Durante o Carnaval de 1974, Fernando esteve no Rio de Janeiro para visitar o irmão. Ao sair da casa, avisou que encontraria um companheiro, mas voltaria em duas horas. Nunca mais foi visto. José Grabois contou que foi duramente perseguido por motivos políticos: “Minha ficha no Dops não ajudava muito e o nome da família Grabois era bastante conhecido entre os militares. Perdi os meus cargos de professor e lutei muito para sobreviver. Fui anistiado em 1979, mas recebi de volta apenas um dos meus dois cargos. Certa vez, fui pegar um documento em um órgão do Governo do Estado e o funcionário disse que era bem feito eu ter sido perseguido. Tenho um amigo que trabalhava em banco e um dia viu na mesa ao lado o seu torturador e nada pôde fazer. Nós vivenciamos situações muito dramáticas. A data de hoje representa justiça, esperança, gratidão e reflexão sobre o que enfrentamos naquela época e que, infelizmente, a nossa juventude desconhece.” Tatiana Roque, filha de Lincoln Bicalho Roque, ressaltou o empenho da família em busca de justiça: “Meu pai era professor universitário da UFRJ, mas isso nunca foi reconhecido porque ele foi aposentado pelo AI-5 em 1969, e depois foi assassinado em 1973, nas dependências do Doi-Codi. Temos documentos do Dops com as fotos dele morto e torturado. Somente agora teremos a oportunidade de reconhecer a sua profissão e os direitos que temos em relação a isto. A família nunca teve esse reconhecimento. Entramos com o processo há alguns anos e desde então a luta é grande. Temos também outro processo responsabilizando a União pelo assassinato de meu pai. Já foi julgado, tivemos uma sentença, mas ainda não foi executada. Hoje é um dia muito importante para a família, a memória e a história dele.” A saga dos irmãos Yuri e Alex Xavier Yara Xavier, irmã de Yuri e Alex Xavier, fez um discurso emocionado sobre a trajetória dos irmãos e sublinhou o papel de sua mãe, Zilda Xavier Pereira, presente ao evento, na conquista da democracia brasileira. Yara foi muito aplaudida ao fazer a entrega da bandeira da Anistia. O jornalista e escritor Altamir Tojal expressou alegria em partilhar com a família de Yuri e Alex Xavier o momento de justiça: “Fui colega de Yuri na Escola Técnica Nacional e companheiro de militância estudantil. Ele era muito empolgado pelos ideais da revolução e aprendeu com sua família os mais nobres 28

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valores da democracia. Tenho muito orgulho de estar aqui neste dia em que está sendo feita a justiça em nome de um mundo melhor para a humanidade.” Darci Toshiko Miaky, antiga militante da Ação Libertadora Nacional(ALN), presa em janeiro de 1972, também falou sobre Yuri e Alex Xavier: “Tive o privilégio de conhecer os dois irmãos quando treinávamos guerrilheiros em Cuba. Eles tinham dedicação total à causa e compartilhamos belos momentos de luta. Zilda, gostaria de agradecer a você, que sempre nos apoiou. Em nome de todos os companheiros, de Yuri, de Alex e de Yara, muito obrigada por tudo.” Carlos Maia, professor da Uerj, falou sobre a convivência com os irmãos Xavier e a lição de vida extraída dessa relação: “Conheci Yuri em 1964. Uma das paixões da vida dele era a imprensa. Ele fez um jornal sobre a nossa luta, que chegou a vender sete mil exemplares. Quando a ALN já estava sendo estraçalhada, ele cuidou da retirada dos companheiros de Cuba para outros países, mas retornou ao Brasil, mesmo sabendo que seria morto. A memória desta luta precisa ser resgatada. Vamos transformar o quartel da PE no centro de memória da História brasileira.” Ilma Noronha, que integrou a ALN, saudou o papel da família Xavier para o avanço da sociedade brasileira: “Tive uma filha na ditadura e um filho na democracia, ao qual dei o nome de Yuri, que transformou um sonho na conquista plena da democracia. Tenho orgulho daqueles que tombaram ao longo da caminhada, e posso dizer que faria tudo novamente se preciso fosse e que valeu a pena lutar.” Após os depoimentos, Paulo Abrão pediu desculpas aos perseguidos políticos: “Em nome desta Comissão, do Estado nacional e do povo, peço desculpas pelas perseguições e pela ausência de seus entes queridos, lembrando a responsabilidade do País”.

As Caravanas Criada em 2001, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça analisa processos de requerimento de anistia política de cidadãos perseguidos durante os períodos autoritários entre 1946 a 1988. As Caravanas são sessões itinerantes da Comissão de Anistia para o julgamento de processos de cidadãos e familiares atingidos pelos atos de exceção no período de 1946 a 1988. Em 2012, a Comissão já realizou sete Caravanas nas cidades de Camaçari (BA), São Paulo (SP), Teresina (PI), Porto Alegre (RS), Bauru (SP), Florianópolis (SC) e Fortaleza (CE). O objetivo das sessões de julgamento itinerantes é levar o tema a diferentes regiões do País e promover o resgate histórico e o debate na sociedade. A 1ª Caravana da Anistia foi realizada na sede da ABI em 4 de abril de 2008.

Justiça de São Paulo confirma a condenação do torturador Ustra Sentença da primeira instância de outubro de 2008 havia responsabilizado o antigo comandante do Doi-Codi de São Paulo pelas sevícias impostas a três presos políticos. O Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou recurso protocolado pelos advogados do coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e manteve decisão que aponta o ex-militar como responsável por torturas ocorridas durante a ditadura. A decisão, divulgada no dia 14 de agosto, é da 1ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP. Ela confirma o teor de uma sentença anterior, que foi considerada inédita: em outubro de 2008, o Juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível central, julgou procedente o pedido dos autores de uma ação declaratória que buscava que a Justiça apontasse Ustra como responsável por crimes de tortura. Na ocasião, o Juiz Santini reconheceu que César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida, autores da ação, foram mesmo torturados. Na ação, os autores buscavam mostrar que havia “relação jurídica de responsabilidade civil, nascida de prática de ato ilícito, gerador de danos morais”. Logo após a decisão de outubro, o advogado de Ustra, Paulo Alves Esteves, entrou com recurso, com o objetivo de reformular a sentença. A decisão contrária ao pedido foi tomada por desembargadores do TJ-SP. Ainda em 2006, quando um dos processos começou a ser julgado, Amélia já afirmava que a família não buscava indenização do Estado ou prisão. “É uma ação de efeito político, que vai trazer reconhecimento de que um coronel do Exército, na época major, era torturador”, explicou Amélia na ocasião. Alegações No próprio dia 14, o advogado Paulo Esteves disse ao portal G1 que vai pedir um esclarecimento a respeito da decisão, que afrontaria a legislação especial que rege a Comissão da Verdade, criada para investigar e apontar casos de violências cometidas por agentes do Estado no período do regime militar. Segundo ele, como se trata de uma legislação especial, é a Comissão da Verdade que teria a incumbência de apontar se Ustra foi responsável ou não pelos atos de tortura, mesmo com sentença anterior. Independentemente disso, ele afirmou que irá recorrer da decisão.

Na visão da Justiça de São Paulo, a ação declaratória foi aceita porque ela não é limitada pela Lei da Anistia. A ação foi analisada em um juizado cível, que trata da responsabilidade sobre atos e direitos sobre bens. Na interpretação da Justiça, a Lei da Anistia impede apenas que ela seja julgada em um juizado criminal, que apura responsabilidade sobre crimes. Tortura, não Ustra foi o chefe do Doi-Codi, órgão de repressão política durante o regime militar, de 29 de setembro de 1970 a 23 de janeiro de 1974. Em 1972, Maria Teles, seu marido , Cesar Teles, e a irmã Crimeia foram presos e torturados no Doi-Codi. Os filhos do casal, Janaína de Almeida Teles e Edson Luis de Almeida Teles, também ficaram em poder dos militares. De acordo com a sentença de 2008, ao ser apontado como o responsável pelas torturas, o “réu arcará com custas, despesas processuais e honorários dos advogados dos autores, fixados estes em R$ 10 mil.” O juiz apontou em sua sentença que “a investigação, a acusação, o julgamento e a punição, mesmo quando o investigado ou acusado se entusiasme com idéias aparentemente conflitantes com os princípios subjacentes à promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, devem sempre seguir a lei”: “O agente do Estado não deve torturar, pois qualquer autorização nesse sentido só pode ser clandestina ou meramente ilegal”. Ao recorrer da decisão, o advogado Paulo Alves Esteves alegou, entre outras razões, a prescrição dos crimes, a falta de sustentação legal para a acusação, incompetência por parte da Justiça estadual para julgar a ação e que o seu cliente sofreu cerceamento de defesa. O relator da apelação, Desembargador Rui Cascaldi, argumentou que o Estado tem a obrigação de garantir a segurança e integridade física dos autores da ação e elogiou ainda a sentença de primeira instância, considerando que as ações meramente declaratórias não prescrevem jamais. Também participaram do julgamento do recurso os Desembargadores Carlos Augusto De Santi Ribeiro, revisor, e Hamilton Elliot Akel.


CINEMA

Fernando Meirelles, um cineasta internacional made in Brazil O aclamado diretor de Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira fala sobre mais um filme que dirigiu no exterior. P OR C ELSO S ABADIN

Jornal da ABI – Você é tido como um diretor de cinema brasileiro, mas com carreira internacional. Num mercado cada vez mais globalizado, ainda é possível fazer este tipo de diferenciação?

Fernando Meirelles – Bom, na verdade eu tenho feito filmes internacionais por uma questão de praticidade. No Brasil os tempos são muito longos, tudo é muito demorado, tudo é muito burocrático. Só o tempo de captação de verbas é enorme e o risco é muito grande. Às vezes você faz tudo isso e não consegue lançar o filme nem no seu próprio país. No exterior tudo é mais rápido e prático. Jornal da ABI – Você deu uma entrevista recentemente dizendo-se muito decepcionado com o mercado brasileiro de cinema, muito decepcionado com a bilheteria de Xingu [filme dirigido por Cao Hamburguer e produzido por Meirelles].

Fernando Meirelles – É, eu falei isso num momento em que o filme estava com aproximadamente 300 mil espectadores. No momento [agosto de 2012] ele está com 400

Um grande diretor de atores

INGO PERTRAMER

Quem viu jamais se esquece do irreverente repórter Ernesto Varela, personagem criado por Marcelo Tas. Mas talvez nem todos se lembrem de que o fictício jornalista sempre se referia ao seu também fictício cameraman, um certo “Valdeci”. Valdeci nunca aparecia na tela; apenas balançava sua câmera, positiva ou negativamente, concordando ou não com o repórter. Pois bem. O companheiro de Ernesto Varela nunca mais largou a câmera e hoje é um dos cineastas brasileiros mais respeitados no exterior: Valdeci é, na verdade, Fernando Meirelles, aclamado diretor de Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira, entre outros filmes, e que agora lança mais uma produção internacional: 360. Assim como Carmen Miranda, Tom Jobim e outros talentos brasileiros que fazem e fizeram sucesso no exterior, Meirelles também sofre certo patrulhamento por parte de setores mais nacionalistas que argumentam que o cineasta estaria “americanizado”. Porém, em tempos globais, o que seria um cinema verdadeiramente nacional? No recente Festival de Cinema de Gramado, o Jornal da ABI esteve com Fernando Meirelles:

mil... bom, 400 mil não é tão desastroso assim para o mercado brasileiro, não é? Não era o que a gente esperava, mas também não foi um desastre. De qualquer maneira já estamos remontando o filme para ser transformado numa minissérie em quatro episódios a ser exibida pela TV Globo. Agora Xingu vai ter finalmente o público que merece.

Jornal da ABI – O fato de Xingu não ter alcançado o resultado esperado fez com que você abandonasse seu projeto de filmar Grande Sertão: Veredas. Mas sua idéia não é mais fazer filmes no Brasil?

Fernando Meirelles – Eu desisti do Grande Sertão também porque seria um projeto muito grande, muito trabalhoso, e parece que atualmente o brasileiro não está querendo ver jagunço no cinema, não. Mas fazer filmes no exterior não é uma coisa assim tão pensada, tão planejada. Imagine que um jornalista esteja escrevendo uma matéria para uma revista brasileira. Aí vem um cara e oferece 12 vezes mais para ele fazer um artigo para ser publicado já na semana que vem no New York Times. Claro que o cara faz! Aí ele faz uma vez, vem outra pessoa e te pede outra matéria e assim por diante... Foi o que aconteceu comigo. Eu fui ficando no mercado internacional, mas pretendo voltar logo. Faço agora mais um filme inglês e depois volto a filmar no Brasil. Jornal da ABI – Qual será este filme inglês?

360 passeia com talento e sensibilidade por pequenos e pungentes dramas do cotidiano que permeiam as vidas de pessoas tangenciadas pelas astutas armadilhas do acaso. Se é que o acaso existe. Há um executivo chantageado por ter marcado um encontro com uma prostituta; uma brasileira traída pelo namorado em Londres; um dentista muçulmano que se apaixona por sua assistente russa; um estressado motorista particular que não suporta mais ser mal-tratado pelo seu patrão mafioso; um pai à procura da filha desaparecida... e muito mais. E, não, o filme nada tem a ver com o estilo de “histórias paralelas” popularizado por Robert Altman. É outra pegada. Ainda que desenvolvidas em vários cantos do mundo (Viena, Paris, Londres, Bratislava, Denver e Phoenix), as tramas de 360 são universalmente locais. Falam de culpa, de sexo, de traições, paixões, arrependimentos e buscas. Falam de pequenos detalhes que mudam, em segundos, as opções de uma vida. Um bilhete escrito na hora certa ou um telefonema atendido na hora errada podem alterar a trajetória do mundo. Pelo menos do mundo particular de cada um. 360 une, no mínimo, três grandes talentos cinematográficos: primeiro, o brilhante roteiro de Peter Morgan, o mesmo de Além da Vida, levemente inspirado na peça La Ronde, de Arthur Schnitlzer, não creditado. Segundo, a vibrante e sempre criativa montagem de Daniel Rezende, que transforma os cortes em algo sempre maior que uma simples transição de cena. E, terceiro, claro, a habilidade de Meirelles em juntar tudo isso e contar, com extremas eficiência e emoção, todas estas histórias e sub-histórias, dando a cada personagem o peso correto, a cada subtrama o tão necessário equilíbrio dramatúrgico. Em 360, Meirelles se mostra um cineasta ainda mais maduro do que foi em Ensaio Sobre a Cegueira e comprova o que nem mais precisava ser comprovado: que também é um grande diretor de atores. Na apresentação do filme no palco de Gramado, ele disse se tratar de um filme “pequeno e intimista”. Concordo com o intimista, mas discordo do pequeno: 360 é um grande filme sobre a complexidade dos grandes relacionamentos humanos. (CS)

Fernando Meirelles – Será Nemesis, uma produção de US$ 30 milhões que tem como tema central o ódio entre Bob Kennedy e Aristoteles Onassis. Eu recebi este roteiro da produtora Pathé, gostei da idéia, mas não gostei da formatação do roteiro. Disse então à Pathé que eu toparia dirigir o filme se eu pudesse retrabalhar todo o roteiro. Eles aceitaram, eu chamei o Bráulio Mantovani [roteirista também de Cidade de Deus] e nós fizemos um novo roteiro. Isso me deixou muito feliz, mais até do que fazer ou não fazer um filme no Brasil, porque desde Cidade de Deus eu não tinha a oportunidade de desenvolver um roteiro desde o comecinho. E o trabalho ficou sensacional. Jornal da ABI – E o próximo filme brasileiro?

Fernando Meirelles – Não posso falar nada, ainda... [sorri].

Jornal da ABI – Como é possível ser brasileiro dentro de uma grande produção internacional?

Fernando Meirelles – Não sei se é uma coisa brasileira ou se é uma coisa pessoal minha, mas nos filmes que faço há mais intuição que planejamento. Gosto de improvisar, de usar o melhor do que acontece dentro de cada situação. Talvez isso seja um jogo de cintura mais brasileiro.

Jornal da ABI – Como foi fazer 360?

Fernando Meirelles – Como o filme reúne nove situações diferentes, foi como fazer nove filminhos diferentes. E isso me deu a melhor experiência de filmar que já tive. Foi muito prazeroso poder brincar de vários gêneros, e eu gostei muito do resultado. Eu sempre sonhei em fazer alguma coisa assim, mas não faria de novo este tipo de filme “coral” [filme que reúne vários tipos de situações e personagens, sem protagonistas principais] porque cada história tem muito mais assunto para desenvolver, e não há tempo para isso. É angustiante abandonar os personagens e não ter mais tempo para mostrar mais as histórias. Como o filme é independente, toda a escolha de elenco foi totalmente minha. Não tive nenhum tipo de pressão e isso foi muito bom.

Jornal da ABI – Como foi dirigir Anthony Hopkins?

Fernando Meirelles – Bom, eu cheguei pra ele e comecei a explicar o personagem: “Você vai interpretar um britânico de classe média...” Ele me interrompeu e disse que não, que ele iria interpretar ele mesmo. Percebi que era melhor deixar a coisa correr mais solta e tudo acabou dando muito certo. A Maria Flor [atriz brasileira que também está no filme] disse que o Anthony Hopkins é muito “fofo”. E é isso mesmo: ele é “fofo”.

Jornal da ABI – Colocar dois personagens brasileiros no roteiro foi idéia sua?

Fernando Meirelles – Não, foi do roteirista, Peter Morgan. Inclusive eu considero que o filme é tanto meu quanto dele. Ele participou muito, ia ao set de filmagens, conversamos muito, trocamos muitas idéias.

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DEPOIMENTO

Jornal da ABI – Como foi o começo da Pública - Agência de Jornalismo Investigativo?

Natalia Viana – Começamos em março do ano passado, mas fui viajar e, na realidade, começamos a trabalhar mesmo em junho. Até dezembro, estávamos trabalhando com apoio voluntário. A Ford Foundation até deu um apoio, mas foi simbólico. Isso significa que eu, Marina e Tati precisávamos fazer outros trabalhos para sobreviver. Estávamos pagando o escritório e investindo ao mesmo tempo. No fim de 2011, a Ford topou dar financiamento por um ano e assim tivemos que nos dedicar a uma coisa mais burocrática, de organização da Pública, não produzimos tanto. No início de 2012 começamos a funcionar de forma mais organizada e fizemos um site novo. A Pública está no Facebook desde junho de 2011; nesse ano, pouco mais de 150 pessoas curtiam a nossa página. Agora já são mais de 6 mil pessoas curtindo a nossa página no Facebook. Estamos trabalhando com mais estrutura; temos programação, metas. Sou coordenadora de estratégia (risos). Bonito, né? Temos que estar atentos para a real vocação da Pública. Por exemplo, várias ongs queriam nos contratar para produzir matérias sobre algum assunto. Mas não achamos que devemos ser um serviço de fazer reportagens sob encomenda, temos que manter nossa visão. Está acontecendo no Brasil, assim como no mundo inteiro, essa explosão do jornalismo independente. Ainda há pouca estrutura, pouco incentivo e pouca discussão. Por outro lado, há muito jornalista que está deixando a Redação para se virar sozinho. Jornal da ABI – Você fala em ‘jornalismo independente’. Não seria mais correto falar em ‘jornalista independente’?

Natalia – Sim, pode ser. Chamo de ‘jornalismo independente’ aquilo que o jornalista independente faz. Aquele que não está atrelado a um grande veículo comercial. O que está acontecendo não é uma mudança de paradigma no jornalismo, é o bom e velho jornalismo de sempre. O que está mudando é um modelo comercial, assim como em outros campos. O que está acontecendo com o jornalismo é o que aconteceu na música. Antes, pra você ser conhecido, tinha que passar pela indústria, havia o monopólio da gravadora. Não podemos negar que há o monopólio da informação no Brasil. Essa é a única coisa que critico fortemente: a concentração dos meios de comunicação. Não acho errado veículo comercial ou com posições políticas. Cada veículo faz o tipo de jornalismo correspondente ao seu modelo de negócio. Por exemplo, o noticiário 24 horas dos grandes portais e agências de notícia. Que tipo de jornalismo é esse? É a notícia sem profundidade. E é assim mesmo. Faz parte do modelo deles. Eles não vão parar para analisar os fatos, se aprofundar na notícia. Esse tipo de jornalista é mais um tradutor do que um repórter. É importante você saber o que está acontecendo agora no Iêmen. Legal. Mas isso você não vai ver na 30

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O

começo da carreira de Natalia Viana não foi muito estimulante. Presa entre quatro paredes numa sala fria de um grande portal da internet, ela tinha que escrever sobre a agitada agenda cultural de São Paulo a partir de releases. Não agüentou. Depois de um mês, pediu demissão. A partir daí, sua vida profissional teve três momentos cruciais que fizeram toda a diferença. Primeiro, quando topou trabalhar na Caros Amigos com um salário que constituía um décimo do que o do seu emprego anterior. Lá, passou a ter contato com profissionais como Carlos Azevedo, Marina Amaral e, principalmente, Sergio de Souza. “Você tem jeito pra coisa!”, disse o veterano jornalista para a jovem que buscava seu caminho na profissão. Foram quatro anos na Caros Amigos, onde ela finalmente aprendeu a fazer jornalismo de verdade. “Lá eu descobri que podia escrever absolutamente do jeito que eu queria, ter um tempo de apuração. O Serjão nunca reprimiu minha curiosidade. Não acho que isso é melhor ou pior jornalismo, mas é o tipo de jornalismo que eu faço, que eu sou”, afirma. Em seguida, quando tirou férias para fazer um curso na Bolívia, em 2004, descobriu um novo mundo profissional, o dos jornalistas independentes. “Comecei a entender que poderia fazer o que eu acreditava que deveria ser feito”. E aparentemente era simples. Bastava uma boa idéia de pauta na cabeça e um grava-

dor, um laptop e uma câmera na mão. Começou a fazer grandes reportagens com baixo custo e vendêlas para veículos ao redor do mundo. A semente da Pública estava lançada. Finalmente, quando viajou para Londres e passou a trabalhar com Centros de Jornalismo Investigativo, novas oportunidades surgiram, como a de trabalhar em dois documentários e, de volta ao Brasil, ser chamada para uma misteriosa reunião com Julian Assange, do site WikiLeaks. Hoje, pouco mais de um ano depois de ter formalmente iniciado os trabalhos da Pública – juntamente com Marina Amaral –, Natalia Viana continua obstinada pela boa reportagem. Com o apoio da Ford Foundation, a Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo busca ampliar o número de republicadores de suas matérias. Produzidas por repórteres apaixonados pela apuração e que revelam em seus textos um Brasil repleto de injustiças sociais, as reportagens passaram a incomodar alguns setores pouco acostumados à liberdade de imprensa. “Muitas vezes há ameaças ou ações que são apenas para intimidar o jornalista. Quando sofremos algum tipo de intimidação, comunicamos a diversas pessoas e deixamos claro que não aceitamos isso. Não se pode intimidar jornalistas em pleno século 21 no Brasil. É inaceitável!”, disse, nesta entrevista ao Jornal da ABI, a jornalista que adora falar de seu trabalho com um sorriso nos olhos.

Natalia Viana A jornalista conta como surgiu a Pública e fala das dificuldades e do prazer de se fazer jornalismo fora da imprensa tradicional. P OR F RANCISCO U CHA FOTOS MARTIN C ARONE DOS SANTOS

Pública. Nós não fazemos ‘notícia’ e é superdifícil não fazer. Nós fazemos reportagem. Há muita gente que fala que todo jornalismo é investigativo. Eu não concordo. Não sei fazer notícia... e não quero. Um pouco da idéia da Pública nasce daí também. Nós fazemos reportagens bacanas e bem feitas com fotos lindas e mandamos de graça para os veículos. O jornal precisa preencher espaço e acaba dando visibilidade para reportagens bem feitas. Queremos o máximo de republicadores possível. Pode-se publicar livremente desde que dê a fonte. No site está bem explicadinho, numa seção que é o “roube nossas histórias”. Qualquer um pode, mas só tem que obedecer a certas

questões. Não pode ser reduzida drasticamente e editada, por exemplo. Jornal da ABI – Como surgiu a idéia da Pública?

Natalia – É uma idéia antiga. Marina e eu já conversávamos muito com outros jornalistas que o repórter estava podendo cada vez mais ser independente e que, obviamente, a união faz a força. Não tínhamos um modelo ainda. Quando fui fazer mestrado em Londres, em 2006 e fiquei até 2008, comecei a conhecer o mundo dos Centros de Jornalismo Investigativo e a trabalhar neles. Era um modelo que não existia no Brasil. Muitos deles pergunta-

vam se eu não queria abrir uma filial aqui, mas era tudo muito vago. Era difícil ver como isso poderia se materializar aqui. Não temos tradição de um jornal que saia do modelo comercial, um modelo que seja financiado só pelas assinaturas. Um modelo que estamos tentando começar aqui, e esse é um dos nossos desafios, é o de ongs ou fundações que financiem jornalismo. Nos Estados Unidos já existe há muito tempo. A gente não sabia direito como esse modelo ia caminhar no Brasil. O modelo comercial leva a uma piora na qualidade do jornalismo, a cada vez menos investimento na apuração e a pessoas que ficam apenas reescrevendo relea-


há aula de assessoria de imprensa! Ah, por favor! Faz um curso técnico para isso. Jornalismo se aprende na prática. Não precisa de quatro anos se for um bom curso! Jornal da ABI – Como você começou no jornalismo?

Olhar independente ses. Mas para fazer jornalismo investigativo tem que ter investimento de tempo, tem que apurar direito... Não sou do tipo de jornalista que vão me contratar porque vou vender revista ‘adoidado’; não vou sair perseguindo Adriane Galisteu por aí por causa de um furo. O jornalismo de investigação não é furo. Raramente é furo! Mesmo porque, hoje em dia o que dá furo? Corrupção no Governo, político com dinheiro na cueca, atriz pelada... O jornalismo de investigação é fundamental para a democracia, mas não dá, necessariamente, resultado financeiro. Então, ele precisa ser incentivado de alguma maneira. A Ford e a Society Foundation já

têm essa visão e financiam esses projetos em vários lugares. A Ford Foundation apóia o Observatório da Imprensa e o Intervozes. O que sentimos? Vejo nos congressos da Abraji, todo ano, uma molecada nova que tem muita vontade de aprender. Eles chegam à Redação e não conseguem, não têm espaço para fazer um bom jornalismo. Às vezes há treinamentos para novos jornalistas, mas chegam na Redação e não conseguem... Jornal da ABI – Não conseguem por quê?

Natalia – Eu acho que é por causa da estrutura comercial e devido à forma como as notícias são produzidas. Há uma

regra ali que é a regra do mais rápido, do produzir muito. Eles sofrem. Conheço muita gente assim. Eu me formei na Puc, e dois terços dos que se formaram comigo não estão mais no jornalismo. Jornal da ABI – Mas isso também não é por causa da qualidade dos cursos, que são muito ruins e que não preparam bons profissionais?

Natalia – Sim, há muitos cursos muito ruins mesmo. Os cursos de Jornalismo não ensinam a técnica. Não ensinam nem a criticar, oferecer um olhar crítico. Não ensinam a pensar. Não preparam para o mercado e o mercado é ruim. Hoje em dia

Natalia – Comecei da seguinte maneira: Não passei no Curso Abril e fiquei revoltada. Uma amiga passou e foi trabalhar na Contigo, umas das revistas mais lidas do Brasil. Depois de três meses ela largou e foi ser psicóloga. (risos) Eu, que não tinha passado no Curso Abril, que aliás é muito bom, fiquei muito frustrada. Aí comecei a fazer frila e logo consegui emprego em um grande portal. Foi uma segunda chance: ser editora de um canal cultural dentro do site que se chamava “São Paulo Virtual”. Ficava selecionando o que acontecia de mais legal na cidade. Mas tudo era feito em cima de press release! Tudo! Ficava dentro de um prédio, com aquela luz artificial, fechada, e tinha que escrever sobre o que estava acontecendo na cidade! Eu não via o que estava acontecendo na cidade! Isso me incomodava profundamente! Eu escrevia “vá ver o filme tal”, e eu não tinha tempo de ver! Eu chorava todos os dias! E ganhava bem. Ligava pra minha amiga que estava na Abril, na Contigo, e ela chorava de volta! Depois de um mês eu não agüentei e larguei esse trabalho! Pensava “não é possível... como é que estou escrevendo sobre coisas que eu não vejo! Estou reescrevendo releases o tempo todo”. Nunca achei que isso seria o ‘fazer jornalismo’.

Jornal da ABI – Isso não é o “jornalismo” de internet?

Natalia – O jornalismo de internet é bastante assim. Mas há muita coisa que no impresso é assim. O jornalista está sendo obrigado, nas Redações, a escrever cada vez mais em cada vez menos tempo! Muita gente fala que é culpa do jornalista também. Aquele que pega o release e fica reescrevendo. Acho que também é, mas também é muito massacrante. Uma das repórteres da Pública saiu do emprego num grande portal de internet porque foi chamada para uma reunião com todo mundo e o chefe de Redação falou assim: “Se você está querendo fazer jornalismo investigativo, jornalismo correto, pode esquecer, aqui não é o seu lugar. Aqui queremos títulos clicáveis, não importa se o título é um pouquinho diferente da matéria. Não importa enganar o leitor ”.

Jornal da ABI – Ele usou essas palavras: “jornalismo correto”?

Natalia – Isso, usou. Então, ela saiu de lá. É massacrante, mas o jornalista que ouve isso e fica também não está acostumado a pensar como um. É um local para quem só fica reescrevendo notícia. No online isso é muito forte, mas na tv também, com essa coisa de ‘notícias 24 horas’. Essa falta de checagem, de cuidado com a informação, está extrapolando. Mas tudo é fruto do mercado.

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Jornal da ABI – Essa não seria uma boa hora de o jornalismo impresso diário investir na qualidade das reportagens, coisa que o online normalmente não faz?

Natalia – Nunca fui de jornalismo diário impresso. Não saberia palpitar sobre o que eles devem fazer. Jornal da ABI – Voltando para sua história...

Natalia – Comecei a perceber que existia no mundo uma outra coisa. Então, em 2004 fui fazer um curso promovido pelo site Narco News, na Bolívia, onde conheci vários jornalistas independentes das Américas. Eu já estava na Caros Amigos e tirei umas férias pra fazer o curso. Aí comecei a entender que poderia fazer o que eu acreditava que deveria ser feito de maneira independente! Lá conheci gente de uma rádio americana e eu me tornei correspondente deles no Brasil. Me deram um gravador e me ensinaram a editar em áudio. Então, eu fazia reportagem e podia vender para uma revista, para um veículo online e para a rádio. Com isso, ganhava três vezes e conseguia ficar um mês em cima de uma matéria, que é o que eu gosto e sei fazer. Por que isso acontece? Há quebra da barreira da língua porque as pessoas falam várias línguas; há mais interesse em histórias transnacionais e a tecnologia permite. Viajei muito, eu com um gravador de áudio, um laptop e uma câmera. Baixo custo. Fiz grandes matérias. Jornal da ABI – Você acha que o jornalismo que vocês estão propondo está faltando no Brasil? E mais ainda, as pessoas estão interessadas nele?

Natalia – Sim, porque esse tipo de jornalismo não é de massa. Nem tudo tem que ser de massa. Já conversei com o (Leonardo) Sakamoto e com a Eliane Brum sobre isso, porque existe um mito de que texto para internet tem que ser curto. Não é verdade. Esses dois jornalistas escrevem textos grandes na internet e todo mundo lê! Então, você vai chegar no site da Pública e vai ter certeza de que tudo foi apurado ao máximo possível, que é uma reportagem para a qual se ouviu o máximo possível de fontes e que o assunto foi pensado de uma maneira completa. Quando os haitianos começaram a chegar ao Brasil e você quer saber por que o nosso País está no Haiti, procura na Pública. E aí você vai ler sobre o drama dessas pessoas. Isso você não vai achar em outro lugar e é fundamental. Nos portais vai achar milhões de coisas picadinhas. Nós vamos fazer investigação mesmo! Por ter morado fora, tenho muitas relações com pessoas de outros países. Essa facilidade de passar informações pra fora e ajudar um jornalista que vem para cá... esse tipo de dinâmica também é uma coisa nova. Não é uma estrutura enorme em que é necessário enviar um ofício burocrático para um escritório... Hoje em dia é assim: ligo pro meu amigo que fala inglês, espanhol... Pergunto se está a fim de fazer a pauta. Ele escreve, eu traduzo. É uma outra dinâmica! Mas há espaço pra isso? Há. Não sei qual tamanho pode ser. Mas vejo muito potencial para a Pública, que também acaba virando um laboratório de experiência de jornalismo. É uma tendência e isso vai crescer. Há muita gente boa fazendo e queremos incentivar. Há uma massa de jorna32

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listas frustrados, que são massacrados, que não conseguem fazer o que querem e você tem o potencial de fazer boas reportagens a custo baixo e bem feito. Jornal da ABI – Como surgiu o WikiLeaks na sua vida?

Natalia – Depois que saí daquele trabalho em que eu chorava todo dia, fui falar com o Sergio de Souza e ele me arrumou um estágio na Caros Amigos, para ganhar dez vezes menos. Fiquei lá e aí virei repórter. Aprendi com o Sergio de Souza e Marina Amaral. Fiquei quatro anos e depois fui para Londres fazer o mestrado. Quando voltei para o Brasil entrei nessa de jornalismo independente, escrevi pra vários locais, The Guardian, Sunday Times... Porque fazia uma reportagem bem feita em português para uma revista, um site, escrevia em inglês para fora e também para rádio, tudo na mesma apuração. Em 2010, passei o ano fazendo o livro sobre a história do jornal Movimento, junto com a Marina e o (Carlos) Azevedo, que eu conheci na Caros Amigos. No fim do ano, em novembro, um amigo meu, que é diretor de um centro investigativo em Londres, me indicou para o WikiLeaks. Eles me ligaram. Não contaram nada, uma coisa cheia de mistério e A Pública em plena ebulição: no alto, Natalia ao lado de Luiza Bondemüller; acima, com Marina Amaral e Andrea Dip. falaram para eu ir pra lá. Eu topei. Tinha acabado de terminar o livro. Quando cheguei eles falaFolha fosse nossa parceira, mas não podia meu, que era muito diferente. Por exemram: “Natalia, temos três mil documentos plo, os documentos da Copa. Existem adiantar nada sobre o vazamento e que só das embaixadas brasileiras e nós precisadocumentos que os Estados Unidos fazem ia entregar o material no domingo. Imamos divulgar no Brasil. Por favor pense gina segurar a Folha com base apenas lobby para que o Brasil fortaleça sua segunuma estratégia. Nós queremos veículos rança na Copa do Mundo, falando que numa ligação de uma jornalista que não grandes”. Depois eu pensei que não era fácil pode haver terrorismo. O que a Folha deu? era conhecida? Tinha que ser um jornaencontrar uma pessoa para fazer o que eu lista que pudesse bancar essa situação... e “Para Estados Unidos, pode ter terrorisfiz. Eles precisavam de um jornalista tão mo”. O Globo foi semelhante. No meu foi foi o que o Fernando fez. Ele me escreveu independente que pudesse viajar no dia o seguinte: “De olho nas Olimpíadas, EUA milhões de e-mails e estava supernervoseguinte pra Londres, porque não tinha so. Trabalhamos com a Folha na primeira fazem lobby e aumentam presença no emprego fixo. Eles precisavam de alguém País”. Porque para mim é isso, e na verdasemana. Mas desde o começo o WikiLecom conhecimento de imprensa e polítide eles citam isso: Eles querem que as aks queria trabalhar com dois grandes ca no Brasil e que conhecesse gente na imveículos, porque um acaba monitorando empresas americanas tenham certa seguprensa, mas que fosse independente e que rança na Copa do Mundo e dobraram o o outro... E qual seria o outro? O Estadão entendesse o que era o WikiLeaks. O Winúmero de agentes do FBI e da Cia. É um é em São Paulo. O outro grande jornal é kiLeaks é basicamente o mesmo princípio O Globo, que é no Rio e que também tinha olhar completamente diferente. do jornalismo independente. Foi fundado uma pessoa em que eu podia confiar, a por duas pessoas que têm um propósito: o Jornal da ABI – Como a CartaCapital enTatiana Farah, que é uma excelente jornade publicar documentos secretos, de translista. E tudo o que foi combinado do cometra nessa história? formar isso em algo massivo. Aquilo que ço ao fim foi cumprido. E ficou uma dinâNatalia – Como o site do WikiLeaks era o jornalismo sempre fez. Não há nada de mica interessante, apesar de os dois jorpouco conhecido no Brasil, eu entrei em novo nisso, só adaptaram para a tecnolonais quase sempre darem um ângulo pacontato com a CartaCapital, e falei: “Estou gia de hoje. Foram duas pessoas com uma recido; são pontos diferentes, textos dipublicando essas matérias diariamente. grande idéia. De novo: tecnologia, arranferentes. Eles entraram em uma parceria Vocês querem um blog?” Eles toparam. Esjo produtivo, novas maneiras de trabalhar. muito interessante em que acordavam sas mesmas matérias que eu já estava escrequais documentos dariam no dia seguinte vendo para o site do WikiLeaks começaJornal da ABI – Como você selecionou os e um jornal não furava o outro. Cada um ram a ir para o meu blog na CartaCapital veículos para divulgar esses documentos? trabalhava o texto a seu modo. Essa coie foi recorde... Acho que 11 mil visitas em sa da colaboração é parte da nova cultuNatalia – As pessoas criticam até hoje um dia. Eles me pagaram. Todo meu trabara, não tem jeito. E aí, o que aconteceu? como foi feito, mas acho que foi de uma lho para o WikiLeaks foi voluntário, já não Eu, ao mesmo tempo em que tive que coormaneira superlegal. Por que a Folha? Portinha mais de onde tirar dinheiro. Mas denar tudo isso, revisava todos os docuque é o maior jornal do País, além de ter foram só três meses com eles. mentos, porque não podia ter nome de uma pessoa em que eu confiava, que é o ninguém que fosse sofrer ameaça, e também Fernando Rodrigues. Eu sabia que o que Jornal da ABI – Então, a crítica pela escolha dos dois veículos foi injusta? escrevia reportagens sobre os mesmos doele combinasse comigo iria cumprir. Que cumentos para um site do WikiLeaks em ele era jornalista de peso suficiente. LiNatalia – É. Muita gente criticou “Ah, português. Então saíam nos dois veículos guei pra ele falando que estava trabalhanmas por que O Globo e a Folha?”. Por conta de uma série de fatores. No Brasil há matérias com o viés deles e no site, com o do com o WikiLeaks e que queria que a


uma forte animosidade contra a grande imprensa, principalmente na internet. Isso é histórico. Uma das coisas que eu sempre pergunto é por que o Brasil não tem um grande veículo progressista, de esquerda? Historicamente não aconteceu. Então, realmente nossa impressa é mais que conservadora. Há uma quantidade grande de pessoas que não se vê representada e que tem uma animosidade contra a imprensa. Então, essa crítica é normal. Mas usando critérios técnicos, a escolha foi a melhor. Não dava para dar esses 3,5 mil documentos para um jornalista só. Precisava de uma equipe. Jornal da ABI – Como foi o processo para você tomar conhecimento do conteúdo desses documentos que chegaram à sua mão?

Natalia – Assim que recebi lá na casa, fiquei enlouquecida... fiquei quatro dias lendo direto. Comecei do mais sensível para o menos, de acordo com a classificação deles. Comecei pelo ‘Secret’ até chegar no ‘Confidential’. Não necessariamente é a melhor classificação. Depois você acha mais coisas. Eu fiquei meses com eles e eu lia todo o dia. No fim, sou a única pessoa no Brasil que leu todos os documentos. Fiz uma classificação e os jornais tinham suas equipes que leram do jeito que conseguiram. Mas os jornais seguem o ciclo da notícia. Quando o negócio bombou, a Folha publicou várias coisas na primeira página. O Globo também. Mas depois de dois meses, acabou o interesse pela história do WikiLeaks. Acabou o interesse de furo e em termos de venda. E o jornal tem que vender, não é? Não adianta só ter uma coisa importante. Quando acabou esse tempo, ainda havia muitas histórias. Basicamente de três tipos: que revelavam coisas interessantes dos políticos do PSDB, coisas interessantes sobre empresas e histórias que estavam dispersas por alguns documentos que precisavam de um olhar mais atento. Esses documentos são uma base de dados fantástica! Então, fizemos a semana WikiLeaks na Pública. Foi mais ou menos no lançamento da Agência. Já tínhamos publicado o especial sobre o Araguaia. Chamamos vários jornalistas que nós conhecemos e confiávamos para ficarem três ou quatro dias lendo todos os documentos que não tinham sido lidos. Lemos todos! E aí, só com o material desses documentos, que até tinham sido entregues para a Folha e O Globo e que eles não fizeram nada, ou porque não leram, ou não acharam interessante por questões editoriais mesmo, a gente conseguiu pegar mais 50 reportagens! Foi daí que saiu a história do Serra que tinha pedido ajuda para o Governo americano para treinar a Polícia de São Paulo contra o PCC. Essa história saiu na Pública e muitas outras. Não há nenhum problema nisso, mas é um fato político extremamente importante. O Governo do Estado de São Paulo geralmente não assume que o PCC é um grande problema. O diálogo do Serra com os americanos é muito interessante. Porque o embaixador americano fala “ok, a gente pode ajudar, mas não é melhor você falar com o Governo federal primeiro?”. Porque não se pode fazer parceria passando por cima do Governo federal. Então, tudo

o que é minimamente relevante a gente tem que publicar. Os diálogos do FHC com a embaixada, por exemplo. Não há nada de extremamente relevante, mas é muito importante saber o que seu ex-Presidente foi fazer na Embaixada dos Estados Unidos. Não sei por que os jornais não deram. Vai ver que acharam que não era notícia. Tudo bem, mas vamos deixar isso registrado. Houve essa conversa. Assim como com a Dilma, com o Lula, Celso Amorim, que tem infinitos depoimentos. O Nelson Jobim. E nós demos isso. Uma das coisas que eu acho mais legais é o Andréa Matarazzo falando para o Cônsul de São Paulo que o Alckmin é da Opus Dei. Que babado... e os jornais não deram. Não faço nenhum juízo de valores... mas é um fato digno de nota. Há um caso do Presidente da Vale reclamar com o Embaixador americano que o Governo brasileiro estava fazendo um monte de inge-

rem. Mas não conhecia ninguém na área. Lia jornal, não muito. E a faculdade foi extremamente brochante. Na faculdade a gente devia poder experimentar, mas não é bem assim. Eu saí de lá muito desanimada. Então, comecei a trabalhar com livros infantis na Ática e estava achando tudo lindo. Até que fui fazer o Curso Abril e depois passei a trabalhar como free-lancer. Sempre propunha pautas de comportamento na Capricho, Vejinha. Mas quando comecei a trabalhar na Caros Amigos, o Serjão foi muito legal comigo e disse “Você tem jeito pra coisa!”. Mas eu não achava que eu era alguma coisa. Foi lá que eu descobri isso. Lá eu descobri que podia escrever absolutamente do jeito que eu queria, ter um tempo de apuração. Quando eu chegava e falava “ai, não sei se eu vou conseguir terminar isso a tempo”, Serjão respondia “Leve o tempo que tem que levar, mas faça bem”. Foi assim que aprendi

as pesquisas para esses documentários tem que ser uma pessoa que tenha justamente essa obsessão de buscar, de convencer a fonte a falar, de aprofundar. Trabalhei em cada documentário um pouco mais de dois meses, quase três meses. Jornal da ABI – Como o jornalista independente deve atuar? Seu trabalho é mais solitário?

Natalia – Não sou a favor do jornalista independente como um lobo solitário. Sou a favor da troca de experiências. Por isso resolvemos criar o Conselho Consultivo da Pública, que antes não existia. Queremos cada vez mais que a Pública seja um centro de discussão e um laboratório de formatos, de estudos para onde o jornalismo pode ir. Não estamos fechados a nenhuma idéia, mas acreditamos no jornalismo e no jornalista independente, nos valores básicos do jornalismo, no rigor jornalístico. Aprendemos com Sergio de Souza.

Jornal da ABI – Essa troca de experiências também se reflete na republicação, pela Pública, de material de parceiros internacionais, de jornalistas de outros países, não é mesmo?

rências na empresa, querendo mandar demais na Vale. Jornal da ABI – Essa parceria com WikiLeaks te marcou também no sentido negativo?

Natalia – Acho que não, mas até hoje as pessoas acham que eu sou representante deles. Não sou e nunca fui. Também é interessante que desde o início falava que eu era colaboradora deles, mas esse termo a mídia tradicional não entende. Aconteceram umas cinco vezes de eu dizer que sou colaboradora e o cara escreve que sou representante. Não posso falar em nome do WikiLeaks. Uma revista chegou a publicar “uma espécie de representante”. Colaboração é o novo modelo. Mas... ficou marcado sim. Não acho isso ruim, porque acho sensacional o projeto deles. Jornal da ABI – Quero voltar um pouco. Por que você decidiu seguir a carreira de jornalista?

Natalia – Costumo brincar que fui fazer jornalismo pelos motivos errados, porque sempre gostei muito de escrever e porque sou muito curiosa. Sempre gostei de história no sentido da essência. Uma das coisas de que mais gosto no mundo é entrevistar pessoas. Fico duas horas fazendo uma entrevista, se deixa-

a fazer jornalismo. O Serjão nunca reprimiu minha curiosidade. Não acho que isso é melhor ou pior jornalismo, mas é o tipo de jornalismo que eu faço, que eu sou. É o jornalista obsessivo que vai checar os dados. E é chato... checar os dados é chato. Mas eu adoro! (risos) Jornal da ABI – Você foi produtora assistente de um documentário, o Black Money?

Natalia – Na realidade fui de dois. O Black Money é do Lowell Bergman, que é o jornalista retratado no filme O Informante; era o Al Pacino. O documentário é muito legal; mostra casos de corrupção transnacional. Há uma lei nos Estados Unidos segundo a qual se uma empresa americana praticar corrupção em outro país ela pode ser punida. Eles precisavam de alguém em Londres para pesquisar e ajudei a fazer isso. Também fiz um trabalho semelhante para um documentário sobre guerra biológica chamado Anthrax War, para uma rede canadense. Foi superlegal porque nunca tinha trabalhado em tv.

Jornal da ABI – Como aconteceu isso?

Natalia – Fui indicada por alguns amigos do Centro de Jornalismo Investigativo quando eu estava em Londres, em 2008. É um trabalho bem específico. Para fazer

Natalia – Sim. Temos pessoas que mandam matérias. Tenho amigos na Bolívia. Grandes jornalistas, um correspondente da Times na Bolívia, correspondentes do Le Monde. O jornalista apaixonado quer que sua reportagem saia no máximo de línguas possível. Eles acham ótimo que saia em português! Então traduzimos e publicamos. Viramos uma espécie de curadores desse material, porque selecionamos o que interessa para o público brasileiro, damos uma adaptada, editamos. Mas além de ser um núcleo para discutir jornalismo e reportagem, queremos trazer jornalistas interessados nisso e discutir idéias de como fazer de maneira nova. Sentimos a falta de projetos jornalísticos. O Brasil não tem projetos jornalísticos.

Jornal da ABI – Gostei muito de uma definição que você deu do que é ser jornalista e está na internet. Você se lembra?

Natalia – Tem aquela do gato: ‘jornalista investigativo é como um gato que vê meia gaveta aberta e quer entrar, quer abrir’. (risos) Você está trabalhando e chega uma notícia dizendo: ‘Polícia nega que haja acampados no Anhangabaú’, isso na época do Ocuppy Wall Street. O que você vai fazer? Poxa! Vai no Anhangabaú checar, ora! Eu não conseguiria não ir lá! (risos) O nível de não checagem é absurda!

Jornal da ABI – É boa essa definição, mas o que você falou tem mais impacto. Você disse que o jornalista tem que estar completamente dentro de sua reportagem. Tem que dormir com ela, falar sobre ela com os amigos, refletir, tentar dominá-la, compreendê-la, melhorá-la, prová-la. Jornalista é ver o mundo de uma forma singular, sempre observando e analisando a mídia.

Natalia – Nossa, eu falei isso? Bonito mesmo! É aquele negócio da obsessão, você está com uma pauta e não consegue pensar em outra coisa. Tive uma conversa sobre isso com o Julian (Assange). Quando se faz algo de forma apaixonada é quase como uma causa. Acreditamos que

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dência irreversível. Estamos fazendo questão de que todos os envolvidos na Pública consigam fazer todo o processo, o que fica muito dinâmico e coletivo.

fazemos algo fundamental e que vai melhorar o País. Vai qualificar a democracia, melhorar os debates democráticos. Quando estamos com uma matéria é a coisa mais gostosa do mundo.

Jornal da ABI – Acabou de estrear um hotsite na Pública chamado “Os Caminhos da Corrupção”, sobre os problemas com verbas para Educação na Amazônia. Como foi desenvolvido esse projeto e como chegaram aos números apresentados?

Jornal da ABI – No início de agosto começaram a ser publicadas as primeiras reportagens vencedoras das Microbolsas da Pública. Como foi a montagem desse projeto e a seleção dos profissionais ganhadores? Houve o retorno esperado?

Natalia – O Concurso de Microbolsas da Pública foi muito bem sucedido, na nossa opinião. Qual era a idéia? A Pública pretende não apenas produzir reportagens próprias de profundidade, mas também incentivar jornalistas que querem fazer suas reportagens de maneira independente. É o chamado empreendedorismo no jornalismo. Nós percebemos que seria muito mais rico abrir uma chamada pública para que os próprios jornalistas enviassem propostas de reportagem do que simplesmente pautar as pessoas ou contratar trabalhos como freelancer. E também achamos importante fazer um concurso em que os jornalistas não precisassem estar ligados a um veículo para participar – o que acontece muito nos concursos de jornalismo. Com a internet, a figura do jornalista que consegue fazer jornalismo independente ganha muita força. Quando abrimos o concurso, em fevereiro, recebemos 70 propostas de todo o Brasil, muitas delas excelentes. A Eliane Brum, que é nossa conselheira e ajudou a votar nos selecionados, como todos os nossos conselheiros, resumiu de uma maneira muito legal: ‘Foi bom constatar que há tanta gente interessante por aí’. Selecionamos os quatro vencedores, e ao longo de três meses fizemos um acompanhamento, conversando sempre com os vencedores, trocando idéias e orientando a pauta. É claro que sempre há conflitos, o que é perfeitamente normal em uma relação profissional em que todos os lados são muito apaixonados – o que, eu posso garantir, é o caso tanto da equipe da Pública quanto de todos os vencedores. A reportagem da Natália Garcia, sobre o Cingapura que dá de frente para o Itaquerão, é um belo retrato do Brasil que pretende lucrar algo com a Copa – ela encontrou moradores se preparando para alugar seus apartamentos por R$ 20 mil para os jogos. Já o retrato dos assentamentos do MST em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, feito pelo Jefferson Pinheiro e o André de Oliveira, trouxe uma realidade complexa e muito, muito triste, que detalha o abandono do projeto de reforma agrária, como uma política sistemática, mesmo. Temos outras a caminho, como um retrato muito interessante de um guerrilheiro gaúcho que lutou na guerrilha do Che Guevara na Bolívia, depois da morte dele, um personagem pouco conhecido ainda, feito pelo jornalista também gaúcho Daniel Cassol. E há mais a caminho, porque a rede Brasil Atual, uma rede de comunicação ligada a sindicatos, abraçou a nossa proposta e topou financiar mais algumas das pautas, em conjunto. Não posso revelar as próximas pautas, mas serão publicadas até o final do ano. No ano que vem, abri34

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Marina Amaral e Natalia Viana na escada do casarão que abriga a Pública, em São Paulo.

remos o Segundo Concurso de Microbolsas da Pública. Jornal da ABI – Vocês receberam propostas de jornalistas que só trabalham em Redações tradicionais, com emprego fixo?

Natalia – Sim, recebemos algumas, e claro que nos interessa também. Como a Pública trabalha com uma licença da Creative Commons (creativecommons.org) e o objetivo é que as reportagens sejam o mais republicadas possível, deixamos aberta a possibilidade de os veículos publicarem a reportagem também. Aí, vai dos veículos toparem publicar algo sem ter exclusividade, que é uma lógica um tanto nova no mercado. Mas recebemos respostas bem positivas neste sentido, mais do que o esperado. No ano que vem, vamos incentivar mais! Jornal da ABI – A evolução da conectividade pode ajudar muito no trabalho do jornalismo! Isso deve ajudar muito vocês...

Natalia – O negócio da conectividade ajuda muito. Outro dia estávamos, eu, Andréa Dip e Marina Amaral, cada uma na sua casa, editando e publicando matérias. Jornal da ABI – O Jornal da ABI é um bom exemplo disso: temos colaboradores no Rio, São Paulo, Vitória, São Bernardo, São

Caetano, Natal e outras cidades e todos se encontram e se reúnem na internet. Usamos o Twitter até durante o fechamento, para esclarecer dúvidas com fontes e repórteres...

Natalia – É isso! Nossa colaboradora em Floripa revisa e coloca nas redes sociais. Isso é ótimo. É isso que está acontecendo. Mas também uma das coisas que está acontecendo na comunicação e jornalismo, no Brasil, é que há muita notícia e opinião, e pouca reportagem. Mesmo os blogs que tentam fazer frente têm muita opinião e gritaria com conteúdo pouco consistente. E há outra coisa: eu não sou uma jornalista prioritariamente de internet. Nasci sem internet; a primeira vez que tive e-mail eu tinha 19 anos. Fiz isso pra me comunicar com minha família, quando fui para Londres fazer intercâmbio; no meio da faculdade, fui ser garçonete. Lembro, quando eu estava na Caros Amigos, de alguém que falou sobre a existência “de um tal de Google”. Essa geração de agora já nasce com tudo isso e pensa diferente, tem outra agilidade. Desde o ano passado, eu, Marina Amaral, Tati e todos os que estão com a gente nessa empreitada temos que aprender a fazer tudo, a fazer o site, a mídia social, editar foto, e isso toma tempo. É um conhecimento não só técnico, mas estético também. É uma ten-

Natalia – Esse projeto, que a gente chama de “O futuro da Amazônia”, analisa a educação básica na Região Norte a partir de dados públicos, que foram compilados, cruzados e analisados pelo ótimo jornalista Fabiano Angélico, que é especializado em jornalismo de dados, uma tendência que tem crescido no jornalismo investigativo. Ele foi financiado pela Fundação Carlos Chagas, o que é legal em si, porque é a primeira fundação brasileira que financia um projeto – é muito importante que se crie cultura de financiamento de jornalismo investigativo dentro do Brasil, algo que hoje existe muito pouco. O projeto é muito bacana porque alia o jornalismo de dados – publicamos infográficos mostrando como a educação da Região Norte fica atrás da do resto do Brasil, e depois cruzando os resultados com os relatórios da CGU (ControladoriaGeral da União) que apontam problemas na administração da verba federal destinada à educação em 32 cidades dessa Região, incluindo indícios de fraude e de desvios. Agora, estamos na segunda fase, que é a de aliar as descobertas do nosso cruzamento com o que chamamos de “shoeleather journalism”, que é a velha arte de sujar os sapatos. Nossa repórter, Ana Aranha, vai até algumas cidades onde foram encontrados grandes problemas pela CGU para traçar o retrato humano do que acontece de verdade quando os recursos da educação são desviados ou mal aplicados. Essa aliança do jornalismo de dados com a boa e velha reportagem trouxe um resultado muito rico. Jornal da ABI – O Brasil está entre os cinco países onde mais se assassinam jornalistas no mundo. Com uma estatística dessas, quais são os cuidados que jornalistas independentes devem tomar para trabalhar em regiões onde há clara ameaça à liberdade de imprensa?

Natalia – Todo jornalista independente tem que tomar ainda mais cuidado, porque ele não está ligado a um veículo. É sempre importante ter um ponto de apoio, conhecer o território onde se está pisando, entender os riscos antes mesmo de viajar para algum local. Mas nós percebemos também que muitas vezes há ameaças ou ações que são apenas para intimidar o jornalista. Isso não pode e não deve acontecer, e um grande amigo nosso, o jornalista britânico Andrew Jennings, sempre diz que é muito importante não se intimidar. Muitas vezes, em especial se tratando de jornalistas mulheres, querem botar medo. Jornal da ABI – A Pública já sofreu alguma ameaça?

Natalia – Olha, não gosto muito de falar disso, até porque dá importância a pessoas que querem mesmo é intimidar.


CULTURA DE MASSA

Quando sofremos algum tipo de intimidação, comunicamos a diversas pessoas e deixamos claro que não aceitamos isso. Não se pode intimidar jornalistas em pleno século 21 no Brasil. É inaceitável! Jornal da ABI – Como tem sido a aceitação das matérias da Pública pelos republicadores? Tem aumentado o número de republicadores satisfatoriamente?

Natalia – Sim, o número de republicadores tem aumentado bastante. Iniciamos nossa operação, com uma equipe, financiamento e um site customizado, em janeiro deste ano. Desde então, nossos republicadores saltaram: hoje são mais de 40, entre veículos tradicionais, alternativos ou independentes e blogs. Entre eles estão, por exemplo, a EBC, o Yahoo Brasil, a CartaCapital, o jornal Lance!, e o Huffington Post, o maior site noticioso dos Estados Unidos... Veículos como o Estado de S.Paulo e os portais Uol e Terra têm usado nossas reportagens como referência, como ponto de partida para realizar matérias próprias, o que é excelente. Jornal da ABI – Por que você acha que a chamada grande imprensa ainda não está republicando algumas dessas reportagens?

Natalia – Primeiro, eu não costumo usar este termo “grande imprensa”, porque está carregado de conotações. Eu chamo os veículos comerciais estabelecidos de tradicionais, enquanto a Pública e outras organizações parecidas buscam modelos econômicos diferentes, não comerciais e sem fins lucrativos. Eu vejo que a mídia tradicional está crescentemente usando a Pública como fonte, pelo menos. E é normal que seja um processo longo, porque é um modelo que não existia antes. Nunca se tinha ouvido falar de uma agência apenas de reportagens. Também não havia uma organização que produz apenas reportagens aprofundadas, financiada por fundações. Na nossa imprensa há uma carga política muito grande, e é muito freqüente acusarem tal veículo de estar deste ou daquele lado. É difícil demonstrar que somos independentes, de fato, que não estamos em favor deste ou daquele governo ou partido. Que o nosso negócio é monitorar os poderes, sejam eles governos, empresas, instituições – sempre com um foco em transparência e direitos humanos. Lendo as nossas reportagens é fácil entender isso. Como o jornalismo de interesse público e sem fins lucrativos é uma tendência crescente no Brasil e no mundo, acho que a idéia vem se firmando aos poucos.

Jornal da ABI – Há algum novo projeto em gestação que você possa adiantar?

Natalia – Estamos realizando uma série de reportagens especiais sobre a região amazônica, um projeto bem grande e que deve trazer frutos muito legais até o fim do ano. Aproveito, aliás, este espaço, para convidar os veículos que se interessarem pelo trabalho e por utilizarem nosso conteúdo para nos procurarem: temos muita coisa boa sendo produzida, e temos muito interesse que veículos impressos usem nossas reportagens!

Colaborou Desirèe Luíse

A guerra global das mídias Estudo resultante de entrevistas com 1.250 pessoas de 30 países e 150 cidades em cinco continentes analisa a indústria do entretenimento e suas manifestações, desde a Bollywood indiana às novelas da TV Globo. P OR M ARCOS S TEFANO

Diante da realidade digital, como ainda se produz um best-seller, um hit ou um blockbuster? Por que a pipoca e a CocaCola desempenham um papel decisivo na indústria do cinema? Como Bollywood seduz os africanos e as novelas brasileiras apaixonam os russos? O que a Disney tem em comum com a propaganda chinesa e os meios de comunicação muçulmanos? Perguntas inquietantes e politicamente delicadas como essas sempre tiveram suas respostas. Mas em menores teses acadêmicas e debates universitários, bem à boca miúda. Nada com a abrangência que Frédéric Martel dá em seu novo livro, Mainstream (Civilização Brasileira), que traça um mapa da guerra global das mídias e das culturas em pleno século 21. Melhor: com linguagem mais acessível ao grande público e um verniz acadêmico, que lhe confere respeitabilidade. Na verdade, o mapa das grandes mídias globais foi traçado a partir de um projeto mais amplo, um vasto estudo de campo conduzido durante cinco anos pelo doutor em Sociologia, jornalista, professor e apresentador de rádio Frédéric Martel. Nesse período, ele entrevistou 1.250 pessoas, em 30 países e 150 cidades dos cinco continentes. Inclusive no Brasil. Com isso, analisou a ação dos protagonistas, a lógica dos grupos, acompanhou a circulação de conteúdos e demonstrou que, embora os produtos nem sempre sejam artísticos, as estratégias para sua produção e difusão impressionam. A primeira parte do livro é dedicada ao entertainment estadunidense. Política externa, a trajetória e o novo papel dos grandes estúdios de cinema, o marketing por trás de personagens como o Homem Aranha e Indiana Jones. Também o percurso feito por um modelo econômico, que foi dos românticos drive-in aos modernos multiplex. Mas não fica somente nisso. Ainda analisa a produção musical, o papel das universidades nesse mundo e as tendências do jornalismo cultural, oferecendo ao leitor um vislumbre do novo crítico. A segunda parte trata mais propriamente da guerra da cultura mundial. Não ficam de fora a política chinesa, a estratégia globalizadora de Bollywood, as animações japonesas e a geopolítica – uma palavra onipresente em toda a obra – das telenovelas. Há coisas curiosas, como a estratégia da Al Jazeera para se tornar a principal rede do mundo árabe. E preocupante, no caso, o provável e temido declínio dos conteúdos produ-

zidos no Velho Mundo rumo a uma quase irrelevância mundial. O caminho das Índias

A origem de Mainstream é a Academia, mas muitas vezes a obra parece mais uma investigação sociológica ou uma autêntica reportagem, o que confere dinamismo e sabor ao texto. É dessa maneira que Martel explora as séries de tv e as telenovelas, dois dos produtos de maior sucesso do entretenimento atual, seja nos Estados Unidos, por aqui, na Ásia ou no Oriente Médio. Para explicar a razão desse inusitado fenômeno, ele viaja o mundo. Na Coréia do Sul, onde uma série chamada Boys Over Flowers, uma espécie de Sex and the City masculina e adolescente em 24 episódios, faz tremendo sucesso, entrevista atores, produtores e empresários e mostra como o país aprendeu a vender não um produto, mas histórias e formatos capazes de conquistar lugares tão diferentes quanto China, Cingapura e até os vizinhos do Norte. No Egito ainda dos tempos de Hosni Mubarak, a pauta é outra: as novelas do Ramadã. Para compreender o que está por trás delas, o autor passeia pela Media City, uma gigantesca central de produção com estúdios e cenários construída no deserto, a uma hora de carro do Cairo, perto das pirâmides. Lá, são produzidas todo ano mais de 20 novelas com 30 capítulos e 50 minutos de duração cada. Populares em todo o Oriente Médio, elas fazem sucesso principalmente na época do Ramadã, quando toda a família fica em casa por conta do mês do jejum sagrado. As tramas trazem questões da vida cotidiana, problemas conjugais e sociais, relacionamentos. Sempre com um fundo moral, o do islã. Ainda assim, há espaço para romance. Em países mais abertos e tolerantes, como o próprio Egito, Marrocos, Tunísia, Líbano, Síria ou Palestina, há cenas de mulheres sem véu e beijos entre casais. No Golfo e na Arábia Saudita, elas são cortadas. Mesmo concebido antes da Primavera Árabe, o debate que o livro traz sobre essa Cinecittà do Oriente Médio continua atual. Já antes os mais jovens pressionavam por menos melodrama, mais ação. Menos roupas, mais beijos. Isso tem certo peso. Entretanto, as fontes ouvidas pelo autor já explicavam que, nos últimos anos, as atrizes voltaram a usar o véu. Tanto que as manifestações sorrateiras de islamização já se multiplicavam no audiovisual egípcio, prenunciando um debate contemporâneo que opõe duas vertentes: a globalização e a islamização.

Outro portentoso estúdio visitado por Martel fica a sudoeste do Rio de Janeiro. É a partir do Projac, a Central Globo de Produção, com seus 130 hectares, dez estúdios, cenários montados sobre rodas que transformam sonhos em realidade e 65 mil costumes, produzidos ali mesmo, na oficina de costura, e alinhados ao longo de quilômetros, que ele mostra como esse produto conquistou o mundo. Mesmo sendo bastante diferentes do norte-americano, que traz poucos episódios e com histórias que geralmente se encerram no próprio capítulo, as telenovelas brasileiras são exportadas para 104 diferentes países, da Romênia, no Leste Europeu, ao Magreb, no Norte da África. Entretanto, apesar de a briga ser global e travada com produtos argentinos, norte-americanos e mexicanos, o principal trunfo é caseiro: a aposta no desenvolvimento brasileiro. Para os executivos da Globo, o mercado nacional deve ser ampliado, de seis milhões de consumidores com poder aquisitivo significativo para quase 100 milhões, em breve. É essa geopolítica das mídias e, por tabela, das culturas pelo mundo que move a narrativa de Mainstream. Com ênfase declarada na quantidade e não na qualidade. Portanto, não se prende a análises de tantas atrações de gosto duvidoso, embora alguma crítica sempre exista. Mais interessante, todavia, é a discussão travada a respeito do futuro dessa cultura diante da reprodução digital e da internet. As opiniões se dividem quanto ao que esperar daqui para frente com a morte das mídias físicas, como cds e dvds, dos aparelhos que as reproduzem e das lojas que as comercializam. Isso traria a reboque o fim de rádios e tvs generalistas e a “generalização” do modelo on demand, sem distinção entre fechado e aberto? Aliás, sem distinção entre televisão e internet? Por outro lado, com a passagem do texto para o digital, livrarias e mesmo bancas de jornal serão trocadas pela “nuvem”, a cloud computing? Na obra, as opiniões se dividem. Há quem pense que a internet é uma revolução que trará mudanças nas plataformas, sem afetar profundamente os meios de comunicação e os modos de leitura. Outros são mais radicais. Com transformações fundamentais como a participação nas redes sociais, a hibridação cultural, a contextualização do Google, a agregação de conteúdos, a desintermediação e a cultura do compartilhamento, apostam que tanto copyright quanto os intermediários se tornariam obsoletos. Muito difícil imaginar esse cenário. É quase certo que, seja qual for o resultado, ele deverá reforçar ainda mais o mainstream. Conhecer para onde vai a mídia global, o mapa da guerra digital, mais que oportuno, é essencial.

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CINEMA

A ressurreição de Méliès, que levou o homem à Lua Filho de um fabricante de sapatos, o cineasta francês criou os efeitos especiais na cinematografia e mais de um século depois ganhou nova vida num filme de Martin Scorsese. FOTOS: DIVULGAÇÃO

P OR C ELSO S ABADIN

Há exatamente 110 anos o Homem chegou à Lua. Devidamente trajada de fraques, cartolas e bengalas, uma expedição saiu da Terra dentro de uma cápsula, impulsionada por um canhão, e atingiu diretamente o “olho” no nosso satélite natural. Lá chegando, nossos solenes astronautas entraram em conflito com habitantes lunares, foram levados a julgamento pelas autoridades de lá, aprontaram a maior confusão, mas conseguiram fugir a tempo de “despencar” da Lua, caindo com segurança de volta em Paris, cidade de onde haviam decolado. Tudo isso aconteceu em 1902, e foi filmado pelo francês Georges Méliès. A partir do livro Viagem à Lua, de Júlio Verne, Méliès levou para as telas do cinema esta simplória, inesquecível e clássica aventura de pouco mais de 11 minutos de projeção. E entrou definitivamente para a História. Naquele momento, o cinema ainda nem era considerado arte e sua invenção mal completava sete anos de vida. Antes de Georges Méliès começar a criar suas estrepolias visuais, os filmes não passavam de cartões postais em movimento, de imagens que se mexiam, de “moving pictures”, expressão que originou o até hoje utilizado termo “movies”. Foi através da câmera de Méliès que os filmes evoluíram de uma mera invenção tecnológica para o status de linguagem artística. Nascido em Paris em 8 de dezembro de 1861, Georges Méliès desde cedo foi resistente à idéia de se tornar um industrial do ramo de sapatos, como seu pai. Com forte inclinação para as artes, estudou desenho, escultura, pintura e manipulação de bonecos e marionetes. Após servir o exército, matriculou-se na École de Beaux Arts, apesar da forte resistência da família. Continuou os estudos em Londres e regressou a Paris, onde começou a trabalhar como ilusionista, ao mesmo tempo que desenhava caricaturas para uma publicação de humor, sob o pseudônimo de Geo Smile. Mas as pressões da família eram cada vez maiores, e a aposentadoria de seu pai obrigou Georges – ao lado do irmão Gaston – a assumir a indústria de calçados. Em 1888, porém, uma proposta irrecusável fez Georges vender a Gaston sua parte nos negócios para seguir finalmente seu caminho artístico: a viúva do legendário mágico ilusionista Jean Eugene Robert Houdin estava colocando à venda o famoso Teatro Robert Houdin, e esta chance George não poderia perder. Robert 36

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Exímio desenhista, Méliès pintava as cenas imaginadas por ele antes de começar a filmar, como a famosa chegada à Lua em Le Voyage Dans la Lune.

Houdin (que não deve ser confundido com Harry Houdini, mágico húngaro que fez muito sucesso no show business americano) havia sido um verdadeiro mito em seu tempo, encantando platéias com suas mágicas e truques. Ter acesso ao seu teatro e talvez até aos seus segredos era uma possibilidade que fascinava Georges Méliès, então com 27 anos. Assim, o ex-executivo de uma próspera indústria de calçados comprou da viúva todas as instalações do teatro e durante sete anos obteve alguma fama e algum dinheiro com shows de magia e ilusionismo. Méliès poderia ter passado o resto da vida sobrevivendo da mágica, mas sua curiosidade e sua inquietação artística fizeram que ele estivesse no lugar certo, no dia exato: como não poderia deixar de ser, o irrequieto “herdeiro” de Houdin estava presente no histórico Grand Café de Paris, no não menos histórico 28 de dezembro de 1895, data em que os irmãos Lumière apresentaram ao público e à imprensa a invenção do cinematógrafo.

Ele ficou absolutamente fascinado por aquelas trêmulas imagens em movimento exibidas pelos Lumière. Naquela noite, chegou a conversar com Antoine Lumière e pediu que ele lhe vendesse um exemplar do aparelho; temendo concorrência dentro de Paris, Antoine recusou. Méliès então viajou até Londres, onde comprou um projetor Bioscope da empresa do concorrente Robert W. Paul e uma série de filmetes feitos para serem exibidos em cinetoscópios, uma espécie de precursor menos elaborado do cinematógrafo. Sem perda de tempo, em 4 de abril de 1896, incorporou curtas projeções cinematográficas aos seus shows de magia. Pouco depois, projetou e construiu seu próprio modelo de câmera, comprou uma grande quantidade de filmes virgens e passou a rodar suas próprias produções sob a orgulhosa chancela de Star Film, onde, sem cerimônias, plagiava descaradamente os filmes dos Lumière (incluindo uma chegada de trem a uma estação).

Os efeitos especiais Durante aquele ano, Méliès rodou 78 pequenos filmes (média três minutos cada), e apenas um deles é digno de registro histórico: Escamotage d’une Dame Chez Robert Houdin. A princípio, o filme mostra apenas um breve show de mágica, onde uma mulher desaparece sob um manto, mas historicamente Escamotage... é considerado o primeiro trabalho a utilizar o recurso do stop motion, inventado pelo próprio Méliès. E inventado por acaso. Diz a lenda (quando o assunto é cinema, é difícil diferenciar realidade de ficção) que certo dia, enquanto rodava um filme pelas ruas de Paris, a manivela da filmadora de Méliès emperrou por alguns segundos, retomando seu movimento normal logo em seguida. Na hora da revelação, o mago/cineasta se surpreendeu com o efeito inesperadamente obtido, onde um automóvel comum “se transformou” num carro fúnebre. Com certeza, a manivela parou enquanto o primeiro automóvel era filmado, e vol-


tou a funcionar quando passava o carro fúnebre, criando a ilusão da transformação. O princípio extremamente simples, largamente utilizado em qualquer episódio de antigos seriados como A Feiticeira ou Jeannie é um Gênio, foi um verdadeiro achado naquela época, e várias vezes repetido, agora de forma proposital, nos filmes de Méliès. Pareceu óbvio também que o pequeno problema técnico já deveria ter acontecido dezenas de vezes, nas mãos de outros operadores. Mas aquilo que para os demais foi tomado como defeito, para Méliès se constituiu no primeiro “efeito especial” da história do cinema. Não é difícil perceber que os filmes de Méliès não poderiam permanecer iguais aos dos Lumière durante muito tempo. Os inventores do cinematógrafo eram basicamente empresários e financistas, enquanto Méliès era um artista muito observador, sempre atento a qualquer possibilidade criativa que os filmes lhe pudessem proporcionar. Assim, em 1897, ele produziu mais de 53 filmes curtos, estes já bem diferentes dos 78 iniciais. No mesmo ano, abandonou os espetáculos de magia e transformou seu teatro em estúdio e sala de projeção, passando a se dedicar exclusivamente ao cinema. Construiu, em Montreuil, o primeiro estúdio cinematográfico da Europa, e foi pioneiro na utilização de luz artificial nas filmagens. Enquanto Lumière e seus seguidores trabalhavam com enormes limitações temáticas, filmando trens e bondes, Méliès ousava transpor para a película a clássica história de Cinderela (em 1899) e não hesitava em contratar 500 figurantes para rodar Joanna D’Arc, em 1900. Nos mais diversos aspectos da arte e da linguagem cinematográfica, ele foi um grande inovador, utilizando em suas produções idéias das mais simplórias às mais elaboradas. Em Visite de L’Epave du Maine (1898), por exemplo, tentando criar a ilusão de um ambiente submarino, Méliès pintou um cenário aquático, dirigiu seus atores para que eles se movimentassem de forma mais lenta, como se efetivamente estivessem no fundo do mar e, criativamente, posicionou poucos centímetros à frente da lente da câmera um aquário repleto de peixes, que “passeavam” nadando por todo o quadro filmado, criando assim a sensação desejada. É claro que os peixinhos de aquário, muito mais próximos da lente que os atores, assumiram proporções gigantescas, mas o efeito foi inusitado e bastante satisfatório para a época. Quatro anos mais tarde, Méliès e o cineasta inglês Charles Urban resolveram documentar a coroação do monarca britânico Eduardo VII, mas logo perceberam que a luminosidade da Abadia de West-

Méliès foi redescoberto em sua loja de doces e brinquedos na estação ferroviária de Paris. Embaixo, um estudo do personagem Méphistophélès desenhado pelo cineasta.

minster, onde a cerimônia seria realizada, era insuficiente para as filmagens. Decidiram então misturar realidade e ficção. As cenas externas, mostrando o desfile da carruagem real, foram tomadas normalmente. As internas foram reconstituídas detalhadamente no estúdio da Star Film, com cenários pintados, figurinos cuidadosamente escolhidos e um empregado de Méliès interpretando o Rei. O filme foi lançado como Le Sacre d’ Edouard VII e consta que nem o próprio homenageado percebeu a diferença. Estes pequenos truques, simplesmente geniais para a época, fizeram o sucesso de Méliès. Em 1902, ele se antecipava em 50 anos aos chamados filmes “B” norte-america-

Na exposição inédita, o mago esquecido Sucesso de público, de crítica e grande vencedor do Prêmio Oscar deste ano, A Invenção de Hugo Cabret surpreendeu muita gente: vários espectadores que aplaudiram o filme não sabiam que, pelo menos em parte, a história mostrada por Martin Scorsese era real. Não foram poucos os que se espantaram ao saber que Georges, o personagem interpretado na tela por Ben Kingsley, realmente existiu. Trata-se de George Méliès, mágico, diretor teatral, cenógrafo, ator, técnico e cineasta da era do cinematógrafo mudo, que revolucionou a Sétima Arte e terminou seus dias anonimamente trabalhando na estação ferroviária de Paris. Após encantar gerações de cinéfilos em todo o mundo com suas elaboradas fantasias cinematográficas, Méliès, considerado o inventor dos efeitos especiais, pode agora ter sua obra amplamente apreciada na exposição Georges Méliès – Mágico do Cinema, em cartaz até 16 de setembro no Museu da Imagem e do SomMis da capital paulista. O lançamento do filme, contudo, não foi o impulsionador da iniciativa, que já estava agendada mesmo antes de sua chegada aos cinemas. “Foi uma feliz coincidência”, explica André Sturm, Diretor do MIS. Ocupando dois andares do Museu, a exposição é dividida em seis seções, que remontam a trajetória do artista e suas invenções revolucionárias: Méliès Mágico, Méliès Mágico e Cineasta, O Estúdio Méliès, O Universo Fantástico de Méliès, A Viagem à Lua e Fim. “Não é uma exposição convencional”, explica Sturm. “Ela é inédita no Brasil e soma o acervo da Cinemateca

Francesa com o material herdado pela neta do artista, Madeleine MalthêteMéliès, que foi adquirido em 2004 pelo Centro Nacional de Filme, com o apoio do Fundo Patrimônio do Ministério da Cultura. Já o Mis concebeu duas atrações exclusivas para esta mostra: a reprodução da nave de Viagem à Lua, onde as pessoas poderão assistir ao filme, e a Instalação Méliès”, finaliza. Trata-se de uma instalação especial onde grupos de até oito pessoas podem criar seus próprios filmes de até 30 segundos em meio a quatro cenários móveis inspirados na obra de Méliès: De Volta à Pré-história, Exploração do Espaço, A Chegada do Submarino e Movimento Planetário. Desenvolvida pela artista Letícia Ramos, a instalação permite uma experiência de imersão no mundo mágico do cineasta e ilusionista francês. A partir da escolha de uma narrativa, os visitantes podem manipular recursos cenográficos e efeitos especiais como o aparecimento e desaparecimento de objetos e pessoas e a mudança de tamanho de elementos da narrativa, semelhantes aos truques utilizados por Méliès em seus filmes. Como não poderia deixar de ser, há também projeções de filmes do cineasta. Dos seus mais de 500 curta-metragens (a grande maioria, infelizmente, irremediavelmente desaparecida e perdida no tempo), foram escolhidos onze. Entre eles, o seu mais famoso: Viagem à Lua, que este ano completa 110 anos. Objetos da época, cartazes, desenhos, figurinos, fotografias e documentos originais do artista completam a exposição.

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MOSTRA A RESSURREIÇÃO DE MÉLIÈS, QUE LEVOU O HOMEM À LUA

nos, realizando L’Homme-Mouche, onde um homem comum se transformava em mosca. Fez ainda A Viagem de Gulliver a Lilliput, As Aventuras de Robinson Crusoé (em 25 cenas), Os Mosqueteiros do Rei, Fausto (em 20 cenas), As Mil e uma Noites (30 cenas), A Morte de Júlio César, As Alucinações do Barão de Munchausen, Vinte Mil Léguas Submarinas e um profético Le Tunnel Sous la Manche, ficção que mostrava o rei da Inglaterra e o presidente da França unindo esforços para construir um túnel submarino ligando Dover e Calais. Isso em 1907, praticamente 90 anos antes do Eurotúnel se transformar em realidade. Fazia com tanta perfeição impressionantes cenas de decapitação que o Governo francês resolveu proibi-las, em 1911. No ano seguinte projetou e construiu com madeira, cordas e um intrincado sistema de roldanas um enorme ser alienígena que tinha como função aterrorizar os exploradores humanos no filme A Conquista do Pólo. A grande contribuição de Méliès para a História do cinema foi levar, para os seus mais de 500 filmes, tudo o que ele havia aprendido no teatro e no ilusionismo. Como ninguém, ele filmava personagens, utilizava cenários e figurinos, trabalhava a iluminação artificial e criava seus “efeitos especiais”. A cômica cena do “rosto” da Lua sendo atingido por uma cápsula espacial bem no meio de seu olho é até hoje uma das mais clássicas da História. Pirataria americana O sucesso de Méliès em todo o mundo foi tão marcante que despertou para o cinema o fenômeno da pirataria. Viagem à Lua, Cinderella, Cleópatra e diversas outras produções da Star Film eram ilegalmente copiadas e distribuídas nos Estados Unidos, o que obrigou o cineasta francês a abrir um escritório naquele país, em 1903. Para administrá-lo, ninguém melhor que o irmão Gaston, agora também um ex-executivo da indústria de calçados. Além de cuidar dos interesses do irmão em relação a direitos autorais e distribuição, Gaston também chegou a produzir filmes nos Estados Unidos, incluindo até alguns westerns. Porém, Méliès só filmou até 1913. Extremamente artístico e pouco empresarial, ele não percebeu que em poucos anos a atividade cinematográfica havia rapidamente se transformando em indústria, principalmente graças as ações comerciais de seu conterrâneo Charles Pathé. Ele não contabilizou que, em 1909, já existiam nos Estados Unidos mais de dez mil locais de exibição de filmes e que o mercado mundial, agora dominado pela Pathé Frères, não tinha mais espaço para produtores artesanais. Em 1915 ele voltou a atuar apenas como mágico e ilusionista em Montreuil, e em 1923 abriu falência. O legendário teatro Robert Houdin foi demolido naquele mesmo ano, colocando um ponto final a toda uma era romântica de magos-cineastas. Tentou a vida de diversas formas e caiu no anoni38

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Nesta seqüência de fotos a marca que Georges Méliès deixou para o cinema: grandes efeitos especiais, magia, cenários deslumbrantes, criatividade. Ele não se detinha por nada e buscava sempre a inovação em seus filmes. Não por acaso Méliès é considerado o pai do espetáculo cinematográfico.

mato, até ser encontrado, aos 70 anos de idade, vendendo doces e brinquedos, como aparece no filme A Invenção de Hugo Cabret, na estação ferroviária de Paris. Grupos culturais conseguiram então a revitalização de sua imagem e de sua obra, realizando mostras de filmes e conseguindo junto ao Governo francês um apartamento gratuito para que o grande Georges Méliès pudesse passar o resto de seus anos com alguma dignidade. Ressurreição, por Scorsese Méliès faleceu em 1938, e em sua lápide consta a inscrição: “O pai do espetáculo cinematográfico”. O cineasta Georges Franju realizou, em 1952, um curta-metragem intitulado Le Grand Méliès, com André Méliès, o próprio filho do “mago”, vivendo o papel de seu famoso pai. Sessenta anos após o filme de Franju, eis que Georges Méliès estava novamente esquecido. Mas a comemoração dos 110 anos de Viagem à Lua fez que uma cópia restaurada do filme fosse exibida com pompa e circunstância durante o Festival de Cinema de Cannes. Logo depois, coube a Martin Scorsese ressuscitar novamente o velho mestre não somente para a comunidade cinematográfica como para o grande público em geral: misturando realidade com ficção, seu filme A Invenção de Hugo Cabret apresenta Méliès às novas gerações. Em cores, três dimensões e na pele do ator britânico Ben Kingsley. Nem tudo o que o filme fala de Méliès é verdade, mas não importa. A recriação estética de parte de sua história e de sua obra para ser apresentada a novos públicos já garante a Scorsese um pedacinho do céu do cinema.


COMEMORAÇÕES

RODOLFO ZALLA

O Brasil festeja três mestres da mpb Pixinguinha recebe homenagens por seus 115 anos; Luiz Gonzaga e Herivelto Martins, por seus centenários. P OR A RCÍRIO G OUVÊA N ETO

Este ano, dois monstros-sagrados de nossa música popular estão fazendo 100 anos de nascimento: Luiz Gonzaga e Herivelto Martins. As comemorações por esse duplo acontecimento ocorrem por todo o Brasil e até no exterior. Como acontece todo ano em 23 de abril, Pixinguinha também foi homenageado, pois nessa data comemora-se o Dia do Choro, por ser a data de seu nascimento. Ele, que estaria fazendo 115 anos, foi o maior divulgador dessa genuína manifestação de nossa cultura popular, já que a maioria dos historiadores considera que o samba foi trazido ao Brasil pelos escravos africanos, enquanto o choro nasceu da criativa espontaneidade carioca. Em Brasília, o Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB recebeu a maior mostra já feita no País sobre Pixinguinha. Em 12 salas, a vida e a obra de Alfredo da Rocha Viana Filho foram apresentadas ao visitante e celebradas com um espetáculo gratuito em

que a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro interpretou o concerto Pixinguinha Sinfônico. “O objetivo foi fazer com que o público pudesse entender a importância de Pixinguinha para a música brasileira do século 20 e para a cultura popular. A mostra passou pelos principais momentos da vida dele, o início da carreira, a convivência com uma família muito musical – todos os irmãos tocavam, o pai também era flautista–, seus objetos pessoais e mais de 800 fotos. Com 13 anos ele já tinha carteira de músico profissional e tocava em bares. Carinhoso é sem sombra de dúvida seu maior sucesso e uma das maiores obras-primas da música popular brasileira e, por que não dizer, do mundo. Em todos os levantamentos feitos sobre as músicas brasileiras mais tocadas e gravadas, ela sempre está entre as 10 primeiras”, diz a curadora da mostra, Lu Araújo. No Rio, o Instituto Moreira SalesIMS, há mais de dez anos guardião do acervo do compositor, lançou no dia 2 de

maio o livro Pixinguinha – Inéditas e Redescobertas, com 20 partituras, nove totalmente inéditas e 11 desconhecidas, embora editadas anteriormente. São músicas que refletem períodos históricos e influências diversas na carreira do compositor e são o resultado de um trabalho de prospecção iniciado em 2008 no acervo, sob a responsabilidade da Coordena-

dora de Música do IMS, Bia Paes Leme. Esse trabalho já resultou em 2010 em uma primeira publicação, feita – como a que vai ser lançada agora – em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Trata-se do álbum Pixinguinha na Pauta, reunindo 36 arranjos do mestre do choro para o programa de rádio O Pessoal da Velha Guarda, comandado por Almirante na década de 1940. Bia Paes Leme revela que as partituras descobertas e redescobertas para esta nova publicação constituem composições de alto nível. “Tanto pela confirmação da autoria explícita nas partituras quanto pela análise da composição em si encontramos nove músicas inéditas e mais uma que chegou a ser gravada em 78 rotações. Para completar o álbum, encontramos composições que já haviam sido editadas em papel, mas que nunca foram gravadas. Fizemos um grande trabalho de recuperação dessas músicas de excelente qualidade, desconhecidas até agora do repertório de Pixinguinha”, diz Bia. JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

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COMEMORAÇÕES O BRASIL FESTEJA TRÊS MESTRES DA MPB

Luiz Gonzaga, o cantador da “seca” e da realidade de um povo Luiz Gonzaga nasceu em Exu, Pernambuco, em 13 de dezembro de 1912. Aprendeu a ter gosto pela música ouvindo as apresentações de músicos nordestinos em feiras e em festas religiosas. Quando migrou para o Sul, fez de tudo um pouco, inclusive tocar em bares de beira de cais. Mas foi exatamente aí que ouviu um cabra lhe dizer para começar a tocar aquelas músicas boas do distante Nordeste. Pensando nisso compôs o xamêgo: Vira e Mexe. Sabendo que o rádio era o melhor veículo de divulgação musical daquela época (corria o ano de 1941), resolveu participar do programa de calouros de Ari Barroso, onde solou sua música Vira e Mexe e ganhou o primeiro prêmio. Isso abriu caminho para que pudesse vir a ser contratado pela Rádio Nacional. Participar do “cast” da emissora era a consagração para qualquer artista e certeza absoluta de sucesso. Gonzaga simbolizou o que melhor se tem da música nordestina, apresentou-a ao Brasil e foi seu cicerone por onde passou. Derramou estilos musicais desconhecidos no resto do País, como o baião, o xote, o coco, o xamego, o repente e foi o primeiro músico a assumir a nordestinidade representada pela sanfona e pelo chapéu de couro. Cantou as dores e os amores de um povo que ainda não tinha voz e somente aparecia na mídia com o sofrimento da seca e a indústria de corrupção a ela relacionada, as diabruras de Lampião e seus cangaceiros, a miséria e a criminalidade. Nesse momento, aparece Luiz Gonzaga mostrando ao brasileiro de outros Estados, principalmente os das regiões Sul e Sudeste, que o Norte e o Nordeste eram também poesia, coragem e amor às coisas brasileiras. Gravou, na concepção deste jornalista, um dos maiores hinos aos retirantes desse País, a música Triste Partida, do compositor Patativa do Assaré. Presente no imaginário Sua canção mais famosa é, sem dúvida, Asa Branca. O repentista Oliveira de Panelas certa vez escreveu: “Foi voando nas asas da Asa Branca/Que Gonzaga escreveu sua história”. A canção Asa Branca desperta inúmeras reações. A composição tem 65 anos de existência, mas por causa de sua atualidade até hoje se encontra presente no imaginário do povo brasileiro. Para compor a belíssima toada, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira tiveram por base versos que circulavam na Serra da Borborema, Pernambuco. E em outros, que também rolavam de boca em boca nos confins de Pernambuco e Ceará. A asa-branca, como a rolinha e a juriti, pode ser encontrada nos cerrados, nas caatingas e nas florestas brasileiras. Ela simboliza paz, saudade e exílio. Mas a 40

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evocativa letra da canção fala da seca, das tristes condições da vida do sertanejo. A asa-branca entra como metáfora. A ave bate asas para achar uma vida melhor e o protagonista da canção faz o mesmo. Porém, ele promete a seu amor que um dia vai voltar, quando a chuva cair de novo. Sua esperança é que tudo vai ficar verde novamente, exatamente da mesma cor dos olhos de sua amada. Parte dessa cantiga foi feita numa tarde de agosto de 1945, no Rio de Janeiro, mas ela só seria gravada pelo Rei do Baião no dia 3 de março de 1947, nos estúdios da RCA Victor. Gonzaga ajudou a popularizar a melodia com sua aparição no filme Este Mundo É um Pandeiro. Já são mais de 300 versões: a capela, por duplas, trios, quartetos, bandas, orquestras em ritmos que vão de choro a rock. Caetano Veloso, saudoso das coisas brasileiras, gravou a obra de Gonzaga e Teixeira em Londres, em 1971. No ano seguinte ela foi magistralmente adaptada pelo Quinteto Violado em seu primeiro disco. Raul Seixas a juntou com Blue Moon of Kentucky, de Elvis Presley. A melodia de Asa Branca também conquistou os artistas estrangeiros. E é conhecida a história, não se sabe se verdadeira ou não, que os Beatles chegaram a cogitar sua gravação e teriam esboçado, inclusive, alguns ensaios em estúdio de sua melodia. Mas nenhuma interpretação bate a do velho Gonzagão, que continuou cantando-a até sua morte em 1989. Grande parte do sucesso de Luiz Gonzaga deve-se à parceria com o cearense Humberto Teixeira. A união musical durou cerca de sete anos, mas foi o tempo necessário para produzirem clássicos que permanecem até hoje, entre eles Asa Branca, Assum Preto, Estrada do Canindé, Paraíba, Baião, Lorota Boa, Juazeiro, Qui Nem Jiló, Respeita Januário, No Meu Pé de Serra. Humberto Teixeira compôs ainda sucessos com outros autores, como Kalu, cantado por Dalva de Oliveira, e Maria Fulô, por Carmélia Alves. Seu encontro com Luiz Gonzaga se deu em agosto de 1945. Em conversa animada surgiu a intenção de valorizar o ritmo nordestino, no qual o xote e o baião tinham prioridades. Surgiu o primeiro sucesso da dupla, denominado No Meu Pé de Serra. Outros sucessos de Luiz Gonzaga também foram Xote das Meninas (Luiz Gonzaga/Zé Dantas), Olha pro Céu (Luiz Gonzaga/José Fernandes), Dezessete e Setecentos (Luiz Gonzaga/Miguel Lima) e Xamego (Luiz Gonzaga). Em 1954, Humberto Teixeira candidata-se a deputado federal e elege-se com cerca de 12 mil votos. Teve destaque na Câmara Federal, quando do seu empenho na defesa dos direitos autorais. Conseguiu aprovar a Lei Humberto Teixeira, que permitia maior divulgação da música brasileira no exterior, através de caravanas

musicais financiadas pelo Governo Federal. Humberto Teixeira levou para o exterior Waldir Azevedo, Francisco Carlos, Dalton Vogeler, Leonel do Trombone, o guitarrista Poly, a cantora Marta Kelly, o acordeonista Orlando Silveira, o Conjunto Radamés Gnatalli, o maestro Quincas e seus Copacabanas, Vilma Valéria, Carmélia Alves, Jimmy Lester, Léo Peracchi, Sivuca e muitos outros. Eleito por três anos consecutivos o melhor compositor do Brasil, de Humberto Teixeira se disse: “O Doutor do Baião, quebrando rotinas e cânones, imprimiu novos rumos à seresta nacional. Com o baião, fincou-se um novo marco na evolução da música popular brasileira”. Ele representou o Brasil na Noruega, França e Itália, como delegado especial junto ao XVIII Congresso Internacional de Autores e Compositores. Humberto Teixeira morreu aos 63 anos, no dia 3 de outubro de 1979, de enfarte de miocárdio, em São Conrado, no Rio de Janeiro. Em sua longa carreira o “Lua”, como era carinhosamente chamado Luiz Gonzaga, nunca perdeu o prestígio, apesar de ter se afastado do palco várias vezes. Os modismos e os novos ritmos desviaram a atenção do público, mas o velho Lua nunca teve seu brilho diminuído. Quando morreu, em 1989, tinha uma carreira consolidada e reconhecida. Ganhou o prêmio Shell de

Música Popular em 1987 e tocou em Paris em 1985. Seu som agreste atravessou barreiras e foi reconhecido e apreciado pelo povo e pela mídia. Mesmo tocando sanfona, instrumento pouco ilustre e, de certa forma, menosprezado pelo público e se vestindo como nordestino típico (roupas de bandido de Lampião, como alguns desdenhosamente o descreviam) foi justamente por isso tudo que ele chegou tão longe. Era a representação carismática da alma de um povo do qual descrevia as vicissitudes com detalhada minúcia e conhecimento. Representou a alma do Nordeste e levou essa região a ser conhecida no resto do Brasil, cantando sua história, mostrando que talento é dar ao belo a aparência da simplicidade. Homenagens As homenagens pelos seus 100 anos são muitas. A escola de samba Unidos da Tijuca desfilou no Carnaval deste ano no Sambódromo da Marquês de Sapucaí com o enredo O dia em que toda a realeza desembarcou na Avenida para coroar o Rei Luiz do Sertão, de autoria do carnavalesco Paulo Barros, enaltecendo Luiz Gonzaga e levando o baião e a cultura nordestina à pista. A escola desfilou na segunda noite do Carnaval carioca e contou com 3.600 componentes. A Comissão de Frente tinha a sanfona como símbolo principal, que também virou fantasia. A escola foi a campeã do desfile. Além de homenagear Gonzagão, a Unidos da Tijuca reverenciou também a cultura nordestina. Um carro alegórico trazia esculturas de barro, numa menção ao trabalho do Mestre Vitalino, da cidade de Caruaru, no Agreste de Pernambuco. Em outro carro, gangorras e 154 sanfoneiros deram um show à parte. O desfile mostrou também a Missa do Vaqueiro e as festas juninas no Nordeste. No último carro, a escola de samba carioca apresentou a coroação do Rei do Baião. Um sanfoneiro representou Luiz Gonzaga e um bolo comemorou os cem anos de nascimento desse pernambucano de Exu, município do sertão do estado. Dentre as homenagens pelo seu centenário, uma das mais inesperadas foi a que o Rei do Baião recebeu de Paul McCartney, quando de sua apresentação em abril deste ano no Recife. O Beatle disse em bom português: “Salve a terra de Luiz Gonzaga”, logo após cantar Drive My Car. A referência de Paul ao Rei do Baião é uma das fusões nunca imaginadas do mundo do pop. E demonstra a projeção do Lua no cenário internacional, embora tenha sido também uma jogada de mestre do cantor e compositor inglês para cativar a simpatia dos pernambucanos. As homenagens não param por aí; estendem-se pelo Maranhão, Ceará, Bahia, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro e pelo Brasil afora. Com exposições, seminários, palestras, espetáculos e tudo o mais que possa ter referência e de alguma forma exaltar e mostrar às gerações posteriores a vida e a obra de um dos grandes mestres de nossa cultura popular, especialmente com referência à cultura do Nordeste.


Herivelto Martins: clássicos nascidos das dores do amor Outro de nossos grandes compositores que também está completando 100 de nascimento é Herivelto Martins, que apareceu no cenário da música popular brasileira no início dos anos 1930, na chamada “Década de Ouro”. Ele nasceu no dia 30 de janeiro de 1912, na cidade de Engenheiro Paulo de Frontin, no interior do Rio de Janeiro, e tem sua trajetória dividida em duas partes: antes e depois de Dalva de Oliveira, ou seja, de 1936 até 1950, quando se separaram definitivamente, e de 1950 até o ano de sua morte, ocorrida em 12 de setembro de 1992. Herivelto fez de tudo um pouco na vida. Era filho do agente ferroviário Félix Bueno Martins e da costureira e doceira Carlota. Sempre viveu com dificuldades financeiras, pois seu pai, envolvido com sociedades dramáticas e teatrais na cidade, ia aos poucos perdendo tudo e teve que hipotecar a casa, acabando por perdê-la. As atividades artísticas do pai motivaram o pequeno Herivelto a criar o seu próprio grupo teatral, com seus irmãos Hedelacy, Hedenir e Holdira e algumas meninos da vizinhança, em Barra do Piraí, para onde a família mudou-se. Aos nove anos, compôs a paródia Quero Uma Mulher Bem Nua (Quiero una mujer desnuda) e o samba Nunca Mais, que não foi gravado. Talento precoce Aos 10 anos, aprendeu música na Sociedade Musical União dos Artistas, de Barra do Piraí, onde tocou bombardino, pistom e caixa, até a idade de 19 anos, mas tinha preferência pelo violão e cavaquinho, que já “arranhava”. Entre 1922 e 1931, participou como músico da banda da Sociedade Musical União dos Artistas de Barra do Piraí. Com o dinheiro sempre ausente, Herivelto foi vendedor de doces feitos por sua mãe e caixeiro ambulante. Em 1925, com apenas 13 anos, conheceu os artistas circenses Zeca Lima e Colosso, que passavam pela cidade, e com eles formou um trio e seguiu para Juparanã, onde apresentaram um grandioso espetáculo. Durante um ano, o trio perambulou pelo interior do Rio de Janeiro, até que, procurados pela Polícia (não se sabe por quê), Colosso e Zeca Lima foram presos em Vassouras e o delegado mandou Herivelto para casa. Em 1930, a família mudou-se para o bairro do Brás, em São Paulo, e Herivelto conseguiu emprego como balconista de um botequim. Aos 18 anos, mais uma vez briga com os pais e resolve sair de casa e viajar para o Rio de Janeiro, com apenas 1 conto e 200 mil réis. No Rio, Herivelto foi palhaço de circo, vendedor, ajudante de contabilidade; aos sábados, fazia barbas na barbearia onde o irmão Hedelacy trabalhava. Com o di-

São Cristóvão, bairro do Rio de Janeiro. A vida conjugal de Herivelto e Dalva foi sempre muito tumultuada. Após 10 anos de casamento e dois filhos, Pery Ribeiro (que fez muito sucesso bem mais tarde, principalmente ligado à Bossa Nova) e Ubiratan, separaram-se, protagonizando um escândalo nacional, divulgado pela imprensa. O episódio serviu para fortalecer a carreira de Herivelto, que, diante do sofrimento da separação, fez letras maravilhosas, retratando a crise pela qual passava e que era o retrato fiel de milhares de histórias iguais vividas por casais do Brasil afora. A partir daí houve um verdadeiro duelo musical, ele de um lado, juntamente com David Nasser, jornalista e compositor, e Dalva de outro, sustentada por letras/músicas de Ataulfo Alves, Nélson Cavaquinho, Mário Rossi, J. Piedade e Marino Pinto. A imprensa divulgava as ofensas e acusações de parte a parte e explorava o mais que podia o assunto, que cada vez que rendia uma manchete vendia jornais e revistas aos milhares. O duelo começou com o samba de Herivelto Cabelos Brancos, respondido por Dalva com Tudo acabado, de J. Piedade e Osvaldo Martins. Herivelto respondia com outras canções como Caminhemos, Quarto Vazio, Caminho Certo e Segredo. Dalva rebatia com Calúnia, Errei Sim, Que Será e Mentira de Amor. E o público ganhava. A época era de viver uma boa fossa e as músicas embalavam os suspiros a favor, ora de Herivelto, ora de Dalva. Herivelto resolve reorganizar o Trio de Ouro por duas vezes, com Noemi Cavalcanti e Nilo Chagas, que tinha reaparecido, e depois com Lurdinha Bittencourt e Raul Sampaio, dissolvendoo em 1957. Daí para a frente, prefere afastar-se da vida artística. Na década de

nheiro da gorjeta, garantia o “Feijão à Camões” (prato fundo com feijão-preto e uma colher de arroz no meio), do Bar de “Seu” Machado”. Ali é convidado para gerenciar uma barbearia no Morro de São Carlos, reduto de bambas da época, e passa a conviver com cantores e compositores de um mundo que começava a se abrir e a dinamizar o panorama musical brasileiro: as gravadoras e o rádio. Conhece então o compositor José Luís da Costa – Príncipe Pretinho –, que o AS CRIAÇÕES apresentou a J.B. de CarvaMAIS FAMOSAS lho, do Conjunto Tupi, amiDO GONZAGÃO go de Mr. Evans, diretor da gravadora RCA Victor. E dali Assum Preto para frente a porta da vida Asa Branca artística definitivamente se Baião abre para ele. Vida tumultuada Herivelto integrou a dupla Preto e Branco e, em seguida, o grupo Trio de Ouro, com a participação da cantora Dalva de Oliveira, dona de uma voz poderosa, por quem Herivelto se apaixonou ao conhecê-la em 1935, durante uma apresentação no Cine Pátria, de Pascoal Segreto, no Largo da Cancela, em

Dezessete e Setecentos Entrada do Canindé Juazeiro Lorota Boa No Meu Pé de Serra Paraíba Qui Nem Jiló Respeita Januário Xamego Xote das Meninas

OS SUCESSOS DO FECUNDO HERIVELTO Atiraste Uma Pedra Ave Maria no Morro Cabelos Brancos Caminhemos Caminho Certo Camisola do Dia Hoje Quem Paga sou Eu Laurindo Praça Onze Quarto Vazio Que Rei Sou Eu Segredo Vermelho 27

1970, adquire um sítio na cidade de Bananal, interior de São Paulo. Ele adorava a cidade, que o adotou como cidadão bananalense. Lá fez vários shows com Sargentelli, Grande Otelo, Emilinha Borba. O mais emocionante foi protagonizado por ele com o filho Pery Ribeiro: os dois cantaram juntos, choraram no palco e levaram o público a comoção. Vida amorosa Herivelto teve duas mulheres muito especiais em sua vida: Dalva de Oliveira e Lurdes Nura Torelly, mas foi Maria Aparecida Pereira de Mello, que ele conheceu no início da década de 1930, sua primeira mulher, com quem teve os filhos Hélcio Pereira Martins e Hélio Pereira Martins. A convivência durou, aproximadamente, cinco anos. Separaram-se por Maria não agüentar as bebedeiras e traições de Herivelto. Em 1935, ele conhece Dalva de Oliveira, com a qual passa a cantar em dueto. Começam um namoro e no ano seguinte iniciam uma convivência conjugal, oficializada em 1939 num ritual de umbanda, que gerou os filhos Pery Ribeiro e Ubiratan de Oliveira Martins. A união durou até 1947, quando as constantes brigas e traições da parte dele deram fim ao casamento. Mesmo casado, passava as noites fora de casa, bêbado e com prostitutas. Em 1949, após a separação oficial do casal e o final da primeira formação do Trio de Ouro, as brigas entre os dois chegam ao auge: quando, após uma pequena turnê na Venezuela, Herivelto sai de casa e decide tirar de Dalva a guarda dos filhos, mandando-os para um colégio interno. Ele passa então a declarar aos jornais que Dalva é prostituta e promove orgias dentro de casa, o que a levou a responder às acusações com as canções “de guerra”, já tão comuns de um para o outro. Pouco antes disso, em 1946, Herivelto inicia um namoro com a aeromoça Lurdes Nura Torelly, uma mulher desquitada que tem um filho do primeiro casamento, rica e prima do Barão de Itararé. Em 1952, eles passam a viver juntos; em 1978, Herivelto e Lurdes tiveram três filhos: Fernando José (já falecido), a atriz Yaçanã Martins e Herivelto Filho oficializam a união. Ele criou o filho de Lurdes como seu. O casamento durou 44 anos, até à morte de Lurdes, em 1990. Para ela foi composta a música Pensando em ti, que acirrou ainda mais o duelo musical com Dalva. Algum tempo depois Dalva e Lurdes tornaram-se muito amigas; Lurdes foi o esteio de Dalva até o fim de sua vida. Em sua longa e conturbada carreira de compositor, Herivelto Martins deixou clássicos, além dos já citados como Camisola do Dia, Hoje quem paga sou eu, Lá em Mangueira, Vermelho 27, Atiraste uma Pedra, Ave Maria no Morro, Laurindo, Praça Onze, Que Rei Sou Eu. O povo brasileiro agradece!

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ARTE SEQÜENCIAL

O idioma das coisas que passam Desenhista argentino é celebrado com exposição, palestras e lançamento do quinto volume de sua principal criação: a série Macanudo. P OR V ERÔNICA C OUTO

Imagine um personagem que fosse um artista tal, que, cada vez que tenta falar, só consegue se exprimir por meio de música. E que a música que ele toca são desenhos. Uma equivalência assim de meios poéticos atravessa os diferentes trabalhos de Liniers, desenhista argentino que assina há dez anos as tiras diárias Macanudo. Seus personagens são as pessoas e as coisas que passam pelas cidades. Flutuam, fazem ou não fazem graça, contam uma história ou não contam nada, têm ou não um nome, muitas vezes são ternos, mas também ácidos, patéticos, críticos. Em todos, um forte sentido de utopia, de ritmo e de experimentação. Na opinião de Liniers, o mundo das hqs está finalmente aberto. Não há mais limite para os desenhos. “Podese fazer tudo em hq”, diz. “Procuro experimentar registros diferentes de humor. É um tipo de humor nem sempre terno, às vezes humor-negro, auto-referencial. De modo que o leitor nunca saiba exatamente para onde vai a idéia”, contou. “No humor, na arte, a surpresa é uma qualidade fundamental para algo interessante. E a maneira de manter a surpresa viva é não ter um modelo de humor.” Isso significa, afirma, respeitar inclusive as tiras que ele mesmo não chega a compreender. “Não entendo, mas é linda, pronto.” O argentino Ricardo Liniers Siri publica Macanudo desde 2002 no jornal La Nación, na Argentina, e mais recentemente na Folha de S. Paulo, no Brasil. É músico, pintor, escritor. Começou a carreira produzindo fanzines, até estrear a tira semanal Bonjour em setembro de 1999, no Página/12, jornal de esquerda editado em Buenos Aires. “Era a época dos experimentos, de atrair a atenção com idéias muito extremas, do humor-negro, do grotesco, violento e terno – queria descobrir como se consegue esse equilíbrio.” Para ele, um mestre em equilíbrios sutis é Charles Chaplin, autor do clássico Tempos Modernos, filme que vemos o dese42

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nhista assistir em uma cena do documentário Liniers, o Traço Simples das Coisas (em uma tradução direta), de Franca González, filme exibido durante a exposição Macanudismo: quadrinhos, desenhos e pinturas de Liniers na Caixa Cultural do Rio de Janeiro. “Chaplin te põe em uma encruzilhada. Você ri, chora, não sabe o que faz. Essa sensação me interessa e me intriga. Se posso desenvolver um humor que tenha uma contracorrente de tristeza, gosto muito.” Liniers acredita que as pessoas não compreendem alguns desenhos, porque estão conformadas a um modo determinado de perceber a arte e à expectativa de que as histórias precisam de ponto final, ou as imagens, de interpretações lógicas. “Às vezes, não entendem por que estão buscando algo que não está lá”, diz ele no filme de Franca. “Estamos acostumados a olhar pintura de uma maneira, a escutar música de uma maneira. [Na tirinha], os leitores esperam que haja sempre um chiste. Mas vão se acostumando.”

A exposição aberta no Rio em julho tem curadoria de Bebel Abreu, realização da Mandacaru Design e vai até o dia 9 de setembro, quando será remontada na recém-inaugurada unidade da Caixa Cultural de Recife. Nela estão reunidas 500 tiras de Macanudo, as quatro capas originais das compilações dessa série (Macanudo números 1, 2, 3 e 5), além da capa de Macanudo Universal e um poster Mundo Macanudo. O público poderá conferir também outras obras de Liniers, como vinte tiras da série Bonjour, seis páginas do conto em quadrinhos Abajópolis, dois pôsteres do filme Incomodos, sete pinturas a óleo, quatro curtas de animações (do estúdio Gazz TV), um painel com reproduções do livro Cosas que Pasan Si Estás Vivo, duas artes do livro Conejo de Viaje, três páginas do conto O Inquilino (presente na edição Macanudo nº 5, recém-lançada no Brasil) e 21 ilustrações de O Que Existe Antes que Exista Algo, “um livro para crianças um pouco estranhas”, nas palavras do autor.

Natural como um idioma

Também estão lá quatro cadernos de Liniers, para quem desenhar parece ser tão natural quanto falar. Talvez mais. De cada viagem (ao Peru ou à Antártida, por exemplo) resulta um diário de bordo desenhado, assim como são desenhadas as cartas aos amigos, as informações editoriais nas contracapas dos livros e outros registros de sua rotina pelas cidades. Algumas dessas aparições autobiográficas (na figura do seu alterego, o Coelho) foram transpostas para animações inseridas no filme de Franca, feitas por Pablo Goitissolo. Na palestra de abertura da exposição, o artista explicou à platéia a importância de desenhar constantemente. “Tem que ficar natural, como uma linguagem que se inventa, como quem dirige um carro. A arte precisa ser natural como um idioma.” Por isso, não existe para ele a possibilidade de não desenhar. “Não há bloqueio criativo. Há histórias péssimas, que se morre de vergonha de mandar para o jornal, e se torce para o dia passar rápido.” Lem-

O caderno de viagem a Barcelona e, ao lado, uma ilustração para o documentário Liniers, El Trazo Simple de las Cosas, de Franca González.


AVANIR NIKO

Enriqueta e seu gato Fellini são dois personagens que povoam a série Macanudo. Abaixo, Ilustração do livro Lo Que Hay Antes de Que Haya Algo lançado na Argentina em 2007.

bra que, sem querer, chegou a enviar três vezes a mesma tira à Redação do La Nación. Não a mesma tira. Na verdade, a mesma idéia, três vezes, sem se lembrar das anteriores: uma cena dos Duendes, comentando: “que buena onda...” Para quem estuda arte, ensina o desenhista, a primeira providência para ir adiante é superar o medo de errar. E aprender as regras, para desobedecê-las. “Há que se conhecer a maior quantidade de regras, para saber quais se quer romper.” Em entrevista ao Jornal da ABI, Liniers falou de suas influências de outros artistas, inclusive do cinema, como Woddy Allen e Monty Python. Mas ele destaca, em primeiro lugar, o argentino Quino, que completou 80 anos em 17 de julho. “Na Argentina, aprendemos a ler lendo Mafalda”. Depois, entre muitos, os livros de Tintim, Asterix importados, e o El Eternauta, clássico portenho que conta a história de uma invasão extraterrestre em Buenos Aires, de Héctor Germán Oesterheld, que acabou morto pela repressão, desaparecido em 1977 (Jornal da ABI, nº 375, fevereiro de 2012). Entre os artistas brasileiros ele destacou a impressão que lhe causou a quebra de convenções do trabalho do desenhista Fábio Zimbres. “A liberdade do Fábio era tão extrema. Creio que os Pinguins vieram daí.” Na opinião de Liniers, não há mais diferença entre hq e literatura. “Para mim, não faz diferença. Maus é igual a Tom Sawyer”, diz, numa referência à hq premiada de Art Spiegelman e ao clássico de Mark Twain. E o momento, acredita, é ideal para fortalecer o movimento de valorização dos quadrinhos. A começar por chamá-los de outro modo. “O problema que temos em alguns países é que a denominação já é um diminutivo: historieta, na Argentina, quadrinhos no Brasil. Na França, olha a diferença: bande dessinée. Mostra mais seriedade. Precisamos acabar com esse complexo de inferioridade da hq.” Apesar disso, Liniers avalia que nos últimos 20 ou 30 anos diminuiu o preconceito e há cada vez menos quem pense que

os quadrinhos precisam ser exclusivamente de humor, aventura, super-herói. “Desde a obra Maus e dos trabalhos de Robert Crumb, pode-se fazer o que quiser. Finalmente, está tudo aberto. Nos anos 1950, ninguém ia pensar em fazer um livro de hq sobre Auschwitz; nos anos 1980, Spiegelman ganhou um Pulitzer. É um movimento dos artistas, das editoras e dos leitores.” A naturalidade de transpor tudo para tiras ou desenhos levou o autor de Macanudo a tentar outras possibilidades. Numa inovação jornalística, desenvolveu uma série de entrevistas desenhadas, feitas para o La Nación. “Nunca havia visto isso. Posso fazer, tenho que fazer. Então pedi que pudesse entrevistar pessoas que eu admirasse.” Na lista dos entrevistados, o primeiro foi o músico argentino Andrés Calamaro. “Gravo uma entrevista de uma hora. Então preciso degravar e fazer a história com o cerne, o fundamental do que foi dito.” Música desenhada

Liniers também se apresenta em shows desenhando ao vivo enquanto os músicos tocam no palco. Com o amigo Kevin Johansen e sua banda The Nada, começou ilustrando as canções escondido da platéia, em computador que projetava as imagens. Mas logo passou a trabalhar direto no papel – como é a sua preferência – e, finalmente, no próprio palco. “Eu era patologicamente tímido. No curso secundário, tinha muita dificuldade com as garotas. Ficava pensando, se mal consigo falar, como vou tirar a roupa? Mas, fazendo os desenhos nos shows, já começava a cair a timidez e ascender a megalo-

mania”, brinca. No fim da apresentação, faz gaivotas de papel com os desenhos e as lança para o público. Ele desenhou no final do ano passado com Paulinho Moska e Kevin, no Brasil. Na canção Cheio de Vazio, do músico brasileiro, Liniers confundiu “vazio” com “vacío” – como se chama em espanhol a parte do boi que aqui comemos pelo nome de fraldinha. O resultado levou a platéia às gargalhadas. “Como todos os desenhistas, gosto muito de música. Desenhar é estar sozinho entre quatro paredes, precisa de um som. Senão, eu ia me transformar em um monstro.” Ele também toca piano e violão. Na abertura da exposição, Liniers pintou um mural ao vivo, ao som de Cheba Massolo, que também assina a trilha sonora do documentário de Franca Gonzàlez. “A música de Cheba é a cara do Macanudo.” Para ele, também fez capas de cd, como para Andrés Calamaro e Marcelo Ezequiaga – 13 dessas artes estão na mostra carioca. Música, entrevistas, livros de viagens. Então não há limites para a hq? “Há limites de suporte, talento é outra coisa”, diz. Liniers pinta com acrílico, que seca rapidamente, usa lápis, nanquim e aquarela nos desenhos. “A pintura a óleo requer muita paciência, demora muito. Tenho a maior admiração por quem faz animação e em cima daquela idéia durante três anos. Eu não consigo. Preciso que os projetos saiam rápido.” Para marcar o surgimento da sua Editorial Común, resolveu desenhar à mão as 5 mil capas do sexto número da anto-

logia de Macanudo, ainda não lançada no Brasil – 64 delas na exposição. “Eu me senti como Chaplin em Tempos Modernos. No 600º exemplar, ainda pensava: ‘que gênio de vanguarda eu sou’. No 3.000º, ‘não agüento mais, seu idiota’.” Na palestra de abertura da exposição, Liniers apresentou imagens da edição de especial Macanudos nº 9, que traz o Monstro Imaginário na capa e prólogo do músico uruguaio Jorge Drexler. Contou histórias e respondeu a perguntas, à moda de seus personagens, numa narrativa sempre oscilante entre o existencial e o francamente debochado. Liniers – pseudônimo de Ricardo Siri – nasceu em 1973 em Buenos Aires, filho de um advogado que teve várias atividades, inclusive uma fábrica de pantufas. “Aos 18 anos, fui distribuidor de pantufas em shopping center. Isso não era muito bom para impressionar as garotas. ‘O que você faz? Distribuo pantufas.’ Começou a desenhar no colégio. “Era muito ruim no futebol. Um desses párias, que ficava com só dois ou três amigos, e podia desenhar, enquanto fingia estudar ”, lembra. Concluiu o curso de Publicidade, mas não se preocupou em tirar o diploma. Agora já perdeu a conta de quantos personagens criou. Os Pingüins, os Duendes (que, na tira do dia da aprovação do casamento igualitário, saíram do armário e foram ao Congresso argentino), o Homem Misterioso, a irresistível dupla Enriqueta e Fellini, o Coelho, ovelhas existencialistas, pequenos funcionários, patrões terríveis, casais apaixonados. Define como psicótica a sua relação com eles. “Uma vez estava trabalhando: fiz o desenho a lápis, depois com o nanquim, depois com a aquarela. Quando passei o nanquim, soprei e uma gotícula de cuspe caiu sobre o desenho. E eu pedi perdão! Hum, pensei: acabo de pedir perdão a um desenho.” Na verdade, o controle sobre os personagens não é mesmo absoluto. “Não sei exatamente aonde vão chegar. Os personagens vão-se acomodando, como uma novela que vai se descolando. É linda essa parte. Criar um universo que se pode visitar.” A palavra em espanhol “macanudo” quer dizer excelente, extraordinário, magnífico. Também em português está registrada como poderoso, muito bom, de prestígio. “Basicamente sou um otimista. Adoro o que eu faço para trabalhar. Quando leio o jornal, ponho-me pessimista e negativo. Daí quero dizer à gente que não está tudo tão terrível. As manchetes são terríveis; mas a gente em volta de tudo é maravilhosa. Quero dizer: olha o que temos de interessante.” Na capa de Macanudo nº3, integrante da exposição, o escritor e desenhista argentino Roberto Fontanarrosa define assim o autor: “O estilo de Liniers é ingênuo, mas – cuidado, desprevenido viajante! –, é a ingenuidade ilusória do leão que devora uma gazela.” JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

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CARREIRA

Os quadrinhos de Nelson Rodrigues Antes de lançar sua primeira peça de teatro e se tornar cronista diário de jornal, o dramaturgo foi editor de O Globo Juvenil, de Roberto Marinho. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

A biografia de Nelson Rodrigues tem pelo menos duas passagens pouco conhecidas ou raramente lembradas por seus biógrafos e ensaístas: a de roteirista de histórias em quadrinhos e de editor de revistas desse gênero. E não foi uma experiência curta. Durou seis anos e rendeu bons e esquecidos frutos que bem mereciam uma reedição em livro. Fatos oportunos de serem lembrados no ano de seu centenário. No Rio de Janeiro da segunda metade da década de 1930, quando era o mais obscuro dos rapazes de uma família de muitos irmãos talentosos vindos de Pernambuco – que incluía o jornalista Mário Filho, o produtor de cinema Milton Rodrigues e o ilustrador Roberto Rodrigues, assassinado na Redação do jornal da família, A Crítica, em 1929 –, Nelson foi trabalhar em 1931 na Redação de O Globo como repórter e redator, até ser requisitado pelo escritor e jornalista Antônio Callado para ajudá-lo a editar O Globo Juvenil e Gibi Semanal. Era, então, o ano de 1939, e Nelson já acumulava 27 anos bem vividos, cinco a mais que Callado, mas não decolara ainda em nenhuma das profissões que sonhara, principalmente a de autor de teatro. Sua família havia chegado ao Rio em 1916, quando ele tinha apenas quatro anos de idade, do que se pode concluir que seria, de fato, um legítimo carioca – uma certeza que se tem ao observar sua obra, tão cheia de tipos comuns da então capital federal. Ele próprio registrou em suas Memórias que seu grande laboratório e inspiração fora a infância vivida na Zona Norte da cidade. A mudança de endereço ocorrera à força porque seu pai, o ex-deputado federal e combativo jornalista Mário Rodrigues, sofria perseguição política em seu Estado. Para sustentar a filharada, ele foi trabalhar no jornal Correio da Manhã, de Edmundo Bittencourt, de quem era amigo. Na década seguinte, a vida da família mudaria de rumo, quando o patriarca criou seu próprio jornal, A Manhã. Em 1928, com o ajuda financeira do Vice-Presidente da República Fernando de Melo Viana, Mário fundou o diário A Crítica, que tinha muito da sua personalidade e seguia à risca seu título na área política. Tido como um garoto tímido e retraído, na adolescência Nelson se refugiou nos livros, o que lhe deu uma base sólida literária, explorada principalmente em 44

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suas barulhentas críticas e crônicas diárias. No começo, foi leitor compulsivo de livros românticos do século 19, que tanto serviria de alimento para seus romances dramáticos e passionais, cheios de exageros trágicos e crimes de amor. A estréia como jornalista aconteceu no jornal do pai, como repórter de polícia de A Manhã, quando ele tinha apenas 13 anos de idade, em 1925. Era comum os jornais darem ampla cobertura a tragédias de crimes passionais e pactos de morte entre casais apaixonados, que marcariam a imaginação de Nelson. Os leitores adoravam essas histórias, que ele narrava em tom folhetinesco, nas longas reportagens de seis colunas que escrevia quase diariamente. Em A Crítica, Nelson continuou a escrever na página de polícia, enquanto o irmão Mário Filho cuidava dos esportes e Roberto fazia as ilustrações. Tempos difíceis

Embora o jornal dos Rodrigues fosse um sucesso de vendas, por causa de sua cobertura política apaixonada – e governista – e os relatos sensacionalistas de crimes que Nelson e os outros repórteres escreviam, o jornal existiria por pouco tempo. Mário Rodrigues pagou um preço alto por ficar contra os rebeldes da Revolução de 1930 e, em retaliação, a gráfica e a Redação foram empastelados e o jornal morreu. Vieram tempos difíceis para a família. Com a ajuda de Mário Filho, amigo de Roberto Marinho, Nelson passa a trabalhar no jornal O Globo, sem salário inicialmente – recebia vales semanais que iam para as despesas de casa. Apenas em 1932 seria efetivado como repórter no jornal. Pouco tempo depois, descobriu que estava com tuberculose e foi tratar-se em um sanatório na cidade de Campos do Jordão, custeado por Marinho, que conquistou sua gratidão pelo resto de sua vida. Recuperado, de volta ao Rio, Nelson assumiu a seção cultural de O Globo, fazendo a crítica de ópera. Até que se deparou com os quadrinhos. Embora a função fosse considerada menor – editar dois títulos para crianças e adolescentes – pareceu ter gostado da experiência. Ou, ao menos, mostrou-se bastante produtivo. O então jornalista iria além do trabalho de fechar as edições e teria uma breve carreira como roteirista de quadrinhos, em parceria com o desenhista mineiro Alceu Penna, na adaptação de nada menos que cinco clássicos da literatura, em episódios publicados todas as semanas em O


Globo Juvenil, entre 1939 e 1941. O tablóide de Marinho havia sido lançado dois anos antes, em 12 de junho de 1937, e teve como seu primeiro editor Pinheiro Lemos. No ano, seguinte, a missão seria passada para Callado. Era uma época em que os quadrinhos engatinhavam no Brasil. Sequer havia revistas, somente jornais ilustrados – no Rio, circulavam Suplemento Juvenil e O Correio Universal; em São Paulo, A Gazetinha. O Globo Juvenil circulava às quartas e sábados, com 16 páginas, em média – às vezes, saíam 24, principalmente no fim de semana. As ilustrações da capa do número de estréia trouxeram a assinatura do desenhista Calmon, da equipe de arte de O Globo, e que colaboraria nos primeiros números com várias histórias roteirizadas por Lemos. Callado começara em O Globo havia pouco tempo, como repórter. Às vezes, Marinho o chamava para fazer revisão das histórias em quadrinhos que iam ser publicadas. A mesma tarefa era passada a outros redatores porque não havia exatamente um núcleo definido para fazer as edições em quadrinhos – a Redação ocupava apenas uma sala no primeiro andar do prédio do jornal, na Rua Bittencourt da Silva, ao lado da Galeria Cruzeiro, Centro do Rio. O futuro autor de Quarup acabou assumindo a edição – como uma de suas funções fixas no jornal. Outro que colaborava com os quadrinhos era o repórter Henrique Pongetti, que traduziu As Aventuras do Caveirinha. A Redação do tablóide contava ainda com os desenhistas Calmon e Acquarone, que haviam sido revelados no recém-extinto O Correio Universal. Por mais de um ano, Callado e Nelson deram conta de fazer as duas edições semanais de O Globo Juvenil. Até que em abril de 1939 Marinho lançou sua primeira revista em quadrinhos de fato, Gibi Semanal, mas que circulava três vezes por semana, às quartas, sextas e domingos. Na prática, porém, quem realmente fechava tanto O Globo Juvenil quanto o Gibi Semanal era Nelson, como o próprio Callado contou pouco antes de morrer, em depoimento ao autor desta matéria, para o livro A Guerra dos Gibis (Companhia das Letras, 2004). Nos primeiros anos de O Globo Juvenil, o trabalho de Nelson incluía ainda produzir uma série de seções fixas de humor e outras sem muita graça, com exaltações patrióticas ao Estado Novo, breves perfis de escritores portugueses ou curiosidades do tipo ‘Você sabia que...?’ Também virou tradutor. Seu inglês, no entanto, ainda era uma língua quase desconhecida para ele, que traduzia os balões por conta própria, muitas vezes inventando histórias a partir do que os desenhos lhe sugeriam. Além de editar as histórias, Nelson escreveu vá-

rios roteiros em quadrinhos para o tablóide. Sua experiência começou quando Alceu Penna se tornou seu colaborador. Penna viera de Curvelo, uma pequena cidade do interior de Minas, com objetivo maior: fazer faculdade de artes plásticas. Pelo menos foi a justificativa que deu para os pais, pois seu sonho mesmo era trabalhar como ilustrador de revistas. Enquanto estudava, começou a fazer desenhos para semanários e acabou com uma coluna de moda e comportamento para moças jovens em O Cruzeiro, a partir de 1938, que denominou de As Garotas. Como não era contratado da publicação de Assis Chateaubriand (1892-1968), Penna podia colaborar em outras publicações.

cas para crianças inspiradas em personagens da literatura e dos quadrinhos. Novas séries de sugestões saíram nos quatro números seguintes, numa tentativa de aproximar a publicação do mundo real de seus leitores, uma vez que O Globo Juvenil publicava quase exclusivamente quadrinhos norte- americanos naquele momento.

Em 1938, ele procurou Pinheiro Lemos e lhe ofereceu seus serviços de ilustrador. Seu traço já maduro e o conhecimento que tinha de quadrinhos – apenas como leitor – se mostraram perfeitos para o que ele buscava – histórias em quadrinhos eram um problema porque a maioria dos grandes heróis naquele momento eram exclusivos do concorrente Suplemento Juvenil, de Adolfo Aizen. No primeiro momento, Penna se encarregou com Nelson de cuidar das traduções e dos letreiramentos dos balões. Até que, no convívio quase diário, os dois começaram a articular idéias de fazer suas próprias histórias. Poderiam começar, sugeriu Nelson, com adaptações de obras clássicas da literatura. E foi assim que Penna se tornou colaborador assíduo no suplemento de Marinho por mais de 100 edições, quase ininterruptamente, desde os primeiros números. A estréia de Alceu Penna apenas como capista aconteceu no número 44, publicado em 2 de outubro de 1937. Somente no mês de fevereiro de 1938 a dupla teve trabalhos publicados em todas as cinco edições: 97 (dia 3), 99 (dia 8), 100 (dia 10), 103 (dia 17) e 107 (dia 26). Penna também colaborava nas páginas internas. No número 99, por exemplo, apresentou aos leitores oito idéias de fantasias carnavales-

Maravilhas, de Lewis Carrol; Um Yankee na Corte do Rei Artur, de Mark Twain; e O Fantasma de Canterville, de Oscar Wilde. Os roteiros dos três primeiros foram feitos por um tal de Robin, pseudônimo de Nelson Rodrigues, que só assinou com o próprio nome os (mais de 40) episódios de O Fantasma de Canterville. A certeza sobre o dramaturgo por trás do pseudônimo se deve ao fato de que nessa fase do tablóide somente Nelson e Penna estavam envolvidos diretamente com a edição e com a produção das histórias, uma vez que Callado apenas coordenava o suplemento. Pelos menos 80 pranchas foram feitas pelo desenhista para O Globo Juvenil, entre capas, histórias avulsas e séries. Um Yankee na Corte do Rei Artur, por exemplo, teve 17 episódios. Alice no País das Maravilhas, doze. A personagem, às vezes, saía em cores, nas páginas centrais. Desse modo, Alceu se tornou um dos primeiros desenhistas brasileiros de quadrinhos, num momento em que chegavam ao País os modernos comics americanos. Seu traço quase infantil combinava de modo eficiente com os diálogos curtos e bem humorados de Nelson, que soube perceber a melhor forma de explorar a linguagem dos quadrinhos, com pouco texto, graça e ação. Daí a leveza dos roteiros –

Clássicos da literatura

Penna produziu nada menos que quatro séries pioneiras dos quadrinhos, com adaptações de clássicos da literatura em parceria com Nelson e que ficariam praticamente esquecidas nas sete décadas seguintes: Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare; Alice no País das

nas décadas seguintes, muitos autores não conseguiram adaptar com êxito obras clássicas da literatura, por exagerarem no volume dos textos, que mais pareciam os próprios romances ilustrados e não histórias em quadrinhos. Em 1941, Antônio Callado trocou a direção dos quadrinhos e a Redação de O Globo pelo convite para trabalhar no setor de jornalismo em português da Rádio BBC, de Londres. Para seu lugar, indicou a Marinho que efetivasse Nelson. Apesar de ter estreado como autor de teatro dois anos antes com A Mulher Sem Pecado, ele ainda estava distante do posto de dramaturgo polêmico que o consagraria; para sobreviver, continuava a editar os quadrinhos das publicações de O Globo. Vem dessa época uma curiosidade: durante os intervalos das edições de O Globo Juvenil e dos Gibi Semanal e Gibi Mensal, Nelson começou a escrever uma de suas obrasprimas, a peça Vestido de Noiva, mas acabou por concluí-la em casa, durante as madrugadas, porque várias vezes fora flagrado e repreendido por Callado. A aprovação pela crítica de Vestido de Noiva, que estreou em dezembro de 1943, colocou o Nelson Rodrigues teatrólogo no centro das atenções. Mas ele continuava ganhando mal como editor das revistas em quadrinhos de Marinho. Não sabia, no entanto, que seu trabalho vinha sendo observado pela concorrência. No começo de fevereiro do mesmo ano, Freddy Chateaubriand, sobrinho de Assis Chateaubriand, convidou-o para assumir a direção do recém-criado núcleo de revistas juvenis das Edições O Cruzeiro. Se topasse, receberia um respeitável salário de cinco contos de réis. A quantia representava mais de sete vezes o que ganhava em O Globo – 700 mil réis. Na prática, Nelson nunca exerceria o cargo de diretor nas duas revistas. O comando ficou mesmo com Freddy, que continuou a selecionar e comprar as histórias e a coordenar a tradução, tanto dos quadrinhos de O Guri quanto dos contos da revista policial Detective, então um fenômeno de vendas em bancas. As funções de Nelson se limitavam a dar títulos às histórias, resumi-las no sumário e a criar as chamadas de capa, o que para ele estava de bom tamanho. Nada que lhe tomasse mais que algumas horas por mês. Ao fim de dois anos, Freddy ainda o dispensou de suas obrigações em Detective, quando passou as tarefas para Lúcio Cardoso. Aos poucos, Nelson assumiu o posto de cronista, enquanto escrevia peças de teatro. Se os quadrinhos que fez para as publicações de Roberto Marinho o ajudaram a dominar a linguagem da narrativa visual e influenciaram seu teatro de alguma forma, são pontos interessantes a serem ainda devidamente estudados.

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REPRODUÇÃO

VIDAS

A paixão segundo Joe Kubert Ele produziu a primeira revista de quadrinhos em 3D, há quase 60 anos.

À esquerda, auto-retrato de Joe Kubert. Acima, ilustração para Sgt. Rock: The Prophecy; abaixo, o Ás Inimigo, que criou com Robert Kanigher.

P OR F RANCISCO U CHA

Joe Kubert era um gigante. Talvez não seja tão simples defini-lo em uma palavra. Mais complicado será falar sobre ele sem exagerar nos adjetivos. Kubert é um nome fundamental na História das histórias em quadrinhos. Ele se transformou em uma lenda há muito tempo, não só por ter criado um traço personalíssimo e dinâmico, perfeito para dar vida a personagens selvagens e aventureiros como Tarzan, Sargento Rock, Gavião Negro, Tor, Ás Inimigo e tantos outros. Mas seu talento também norteou o trabalho de grandes artistas, que deram seus primeiros passos na bem sucedida escola criada por ele e sua esposa, Muriel, em 1976. Na verdade, Kubert sempre foi um apaixonado pelo seu trabalho, tanto como desenhista, quanto como editor, escritor e professor, inspirando inúmeros autores por todo mundo. Filho de pais judeus, Yosaif (ou Joseph) Kubert nasceu em 18 de setembro de 1926 numa pequena cidade chamada Yzeran, que ficava na Polônia e hoje faz parte da Ucrânia. Sua família emigra para os Estados Unidos quando tinha pouco mais de dois meses de vida e passa a viver no Brooklin. Durante sua infância, ele descobre sua paixão pela arte de desenhar e, com o apoio dos pais, torna-se um talento precoce. Há controvérsias quanto à época em que começou a trabalhar como desenhista iniciante. Na introdução de sua graphic-novel Yossel, Kubert escreveu que ele recebeu cinco dólares por página quando tinha 12 anos. “Em 1938, isso era muito dinheiro”, afirmou.

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A partir daí, não parou mais. Fã de Hal Foster, Alex Raymond e Milton Caniff, o jovem trabalhou para diversos estúdios e com os mais diferentes personagens e gêneros, desde ficção-científica até faroestes e histórias de guerra. Em meados da década de 1940 ele passa a desenhar mais regularmente para a All-American Comics, editora que se tornaria, no futuro, a DC Comics; em 1945 Kubert começa a ilustrar um dos personagens que marcariam a sua carreira: Gavião-Negro (Hawkman). No início da década de 1950, Kubert inicia sua carreira de executivo ao aceitar o cargo de editor da St. John Publications. Ao lado do colega de escola Norman Maurer e do irmão deste, Leonard, ele desenvolve para a editora, em 1953, a primeira revista de quadrinhos em 3D do mundo, apresentando as aventuras de SuperMouse (Mighty Mouse), adaptação do famoso desenho animado infantil da época. O sucesso foi instantâneo. No mesmo ano ele lança as aventuras de Tor, personagem que vive numa época pré-histórica, e também ganha uma versão em 3D, aproveitando o sucesso dessa tecnologia. Ao contrário do que era comum naquela época, os direitos autorais de Tor continuam nas mãos de Kubert e as aventuras desse herói são publicadas com relativo sucesso em diversas editoras ao longo da carreira do desenhista. Em 1955 ele volta a desenhar para a DC Comics, inicialmente como free-lancer, mas logo estaria trabalhando exclusivamente para a editora. Neste ano ele intensifica uma frutífera parceria com o também lendário escritor e editor Robert Kanigher, que já conhecia desde os tempos da All-American Comics e com o qual desenvolveu diversas histórias de guerra e personagens de sucesso, como o Príncipe Viking, lançado em agosto de 1955. Mas foi em janeiro de 1959 que a dupla apresentou uma de suas mais importantes criações: o Sargento

Rock, publicado pela primeira vez na revista G.I. Combat. Chamado inicialmente de “The Rock”, o soldado que lutava contra os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial ganhou mais definição nas histórias seguintes e caiu no gosto dos leitores, transformando-se numa das séries mais duradouras dos comics americanos. Apesar de criar histórias de guerra, a dupla Kanigher-Kubert jamais glorificou os conflitos e sempre mostrou o lado humano de cada personagem retratado. Seguindo esta linha, a dupla novamente inova em 1965 ao apresentar para o público Ás Inimigo (Enemy Ace), um piloto da aviação que lutou durante a Primeira Guerra Mundial. Ele não era inglês ou americano. Era alemão. E isso fez toda a diferença. Kubert sempre gostou de ilustrar os roteiros de Kanigher, carregados de detalhes históricos e que exigiam muita pesquisa de época. Certa vez ele escreveu que seus roteiros tinham a capacidade de provocar sua imaginação: “Suas palavras tinham o poder de criar excitantes imagens dramáticas e dinâmicas em minha mente!”. Não foi por acaso que Ás Inimigo é considerado uma das melhores histórias de guerra já produzidas para os quadrinhos. A partir de 1967 Kubert passou a ser Diretor de publicações da DC Comics. Cinco anos depois aceitou o desafio de readaptar os livros de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, para os quadrinhos (leia O traço selvagem de Joe Kubert, Jornal da ABI 357, agosto de 2010). E assim ele criou mais uma obra-prima da arte seqüencial e o personagem de Burroughs retoma o status adquirido em seus primórdios, quando era desenhado por Hal Foster e Burne Hogarth. Depois de deixar o cargo de Diretor na DC em 1976, a paixão de Kubert por sua arte e seu interesse em formar uma nova geração de artistas fazem com que ele e sua esposa fundem a The Joe Kubert School of Cartoon and Graphic Art, hoje conhecida internacionalmente como The Kubert School. Vários grandes artistas de sua geração foram professores de sua escola. E ela formou inúmeros novos talen-

tos, como dois dos cinco filhos de Kubert, Adam e Andy, considerados nomes de grande expressão na indústria dos comics americanos. Os anos seguintes seriam de dedicação quase total aos seus alunos, mas sem deixar de desenhar quadrinhos. Na década de 1990 Kubert voltaria a produzir histórias mais autorais. Em 1991 lançou Abraham Stone: Country Mouse City Rat para a Malibu Comics. Em 1994, ele recebeu a visita do célebre editor italiano Sergio Bonelli em sua residência. Este o havia convidado a ilustrar uma história especial do popular cowboy italiano Tex, mas Kubert teve que adiar a realização desse projeto para se dedicar exclusivamente à produção daquela que se tornaria sua nova obra-prima, a premiada graphic novel Fax from Sarajevo. Inédito no Brasil, este livro foi baseado numa série de faxes que seu representante na Europa, Ervin Rustemagiæ, enviou para ele relatando com detalhes a tragédia da guerra na Sérvia durante o massacre de civis em Sarajevo. Esta obra foi, finalmente, publicada em 1996. E a história de Tex foi lançada na Itália cinco anos depois, em 2001, com enorme repercussão. Dois anos depois, Kubert voltaria às suas origens imaginando o que aconteceria se sua família não tivesse emigrado para os Estados Unidos e continuasse vivendo na Polônia. Esse foi o ponto de partida para a novela gráfica Yossel, lançada em 2003. Neste ano ele também retornaria ao personagem que consagrou, com a minissérie Sgt. Rock: Between Hell and a Hard Place, escrita por Brian Azzarello, e três anos depois, com outra aventura estrelada pelo soldado: The Prophecy. Em 2008, um novo retorno. Agora ao seu primeiro personagem na minissérie Tor: A Prehistoric Odyssey, publicada pela DC Comics. São desse período também as histórias autorais Jew Gangster e Dong Xoai, sobre a guerra do Vietnã. Seu último trabalho publicado foi Before Watchmen: Nite Owl para a DC, onde ele arte-finalizou o desenho a lápis executado por seu filho Andy Kubert. Bem do jeito que ele fazia no início de carreira. Em outubro, estava previsto pela DC o lançamento de sua última incursão como quadrinista: a minissérie Joe Kubert Presents, com novas histórias gráficas. Joe Kubert faleceu no dia 12 de agosto em decorrência de um tipo de câncer, um mieloma múltiplo, poucas semanas antes de completar 86 anos.


Iramaya Benjamin, a mãe coragem No começo dos anos 1970, a química Iramaya Queiroz Benjamin peregrinou pelas Redações de jornais do Rio de Janeiro em busca de informações sobre seus filhos César e Cid, participantes dos movimentos armados de combate à ditadura, os quais foram presos por sua atuação política e corriam risco de vida. Funcionária do Ministério da Fazenda e formada posteriormente em Filosofia, Iramaya sabia da participação política dos filhos e tinha idéia do tratamento brutal a que eles eram submetidos na prisão. Em 1970 Cid foi exilado e no ano seguinte foi a vez de César, ainda menor de idade, ser preso na Bahia. Submetido ao regime de incomunicabilidade, César só saiu do isolamento porque Iramaya foi ao Ministério da Guerra, nome da época da Secretaria do Exército, e reclamou aos gritos, como se fizesse um comício, um tratamento digno para o filho. Essa foi a fase mais difícil da vida de Iramaya, que participou ativamente de atos de resistência à ditadura, como a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia, lançado na ABI em 1977 em concorrido ato público presidido pelo General Pery Constant Bevilacqua. Aprovada a anistia, Iramaya integrou as comissões de recepção dos exilados que voltavam do exterior, a fim de evitar que eles sofressem violências no dia de seu retorno ao País. Em 1982, Iramaya disputou uma cadeira de Deputada federal pelo PT mas não se elegeu. “O PT foi um rio que passou na minha vida”, lembrou O Globo ao noticiar o seu passamento em 19 de junho passado. Ela se afastou depois do PT e passou a colaborar com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra–MST. Iramaya morreu no dia em que fez 88 anos. Teve uma parada cardíaca em casa, quando dormia. Ela deixou três filhos – também Léo, além de Cid e César –, oito netos e quatro bisnetos.

Júlio Brazil, a morte precoce A ABI homenageou a memória do jornalista Júlio César Brazil na reunião de julho do seu Conselho Deliberativo, no dia 31. Editor de Política do jornal O São Gonçalo, no qual ingressou em 2007, como repórter, Júlio César Brazil, morreu aos 42 anos, no dia 24, em decorrência de um acidente vascular cerebral. O enterro foi realizado no dia 25, no Cemitério Parque da Colina, em Pendotiba, Niterói. Cerca de 200 pessoas acompanharam o cortejo fúnebre, entre amigos, parentes, colegas de trabalho e políticos de São Gonçalo, Itaboraí e Maricá. Júlio completou 10 anos de casamento com Cláudia Peixoto justamente no dia de sua morte, e tinha dois enteados. “Ele era o amor da minha vida e não sei se vou conseguir viver sem ele, disse a viúva.” O passamento de Júlio César foi noticiado assim pelo jornal O São Gonçalo: “Jornalismo perde Brazil Tão acostumados a todos os tipos de notícia, certamente essa não era a que gostaríamos de publicar. E com a dor da saudade e o coração partido, noticiamos a morte do nosso querido colega Júlio César Brazil, lhe prestando uma homenagem pelos últimos cinco anos de dedicação do seu talento a O São Gonçalo, onde ingressou em 2007 como repórter e nos últimos anos ocupava o cargos de Editor de Política. O vascaíno ‘roxo’ Júlio Brazil, o popular Brazil, nos deixou ontem aos 42 anos, em decorrência de um avc ocorrido

no último dia 14 de julho, cinco dias após seu aniversário. Ele lutou o quanto pôde, com a força de toda a corrente positiva para que se reestabelecesse, o que infelizmente não ocorreu. ‘Júlio César Brazil é um exemplo a ser seguido. Um jornalista dedicado, competente e sempre preocupado em fazer o melhor. É com profundo pesar que recebemos a notícia de seu falecimento. Gostaria de transmitir a seus familiares e aos colegas de Redação de O São Gonçalo o meu profundo pesar’, afirmou o Presidente de O São Gonçalo, Wallace Salgado de Oliveira, que se encontra em viagem a trabalho pela Europa. Esta página 3 que ele costumava editar hoje é dedicada integralmente ao nosso querido amigo, como forma de agradecer por termos tido o privilégio do seu convívio, da sua alegria e até dos momentos de estresse que inevitavelmente fazem parte da vida de todos nós. Pela necessidade da sobrevivência financeira, passamos boa parte das nossas vidas em nosso local de trabalho e, portanto, é inevitável nos apegarmos uns aos outros. No caso do Júlio, foi fácil gostarmos dele. Para quem o conhecia de longa data, sabe como ele sempre foi uma figura popular e carismática desde os tempos da faculdade, cursada no Instituto de Artes e Comunicação Social- IACS da Uff, em São Domingos, em Niterói, no início da década de 1990.

Logo que a notícia de sua morte foi anunciada ontem à tarde, amigos, que trabalharam ou não com Júlio, começaram a postar depoimentos no Facebook, muitos dos quais reproduzimos nesta página e que expressaram boa parte da nossa gratidão e carinho. Perdoem-nos se não publicamos todas, por conta da velocidade do próprio jornalismo para colher as informações. Júlio Brazil trabalhou também em O Fluminense, Jornal do Brasil e Globo.com. Seu enterro será hoje, às 15h, no Parque da Colina, em Pendotiba.” Na sessão do Conselho Deliberativo, José Pereira da Silva, o Pereirinha, Presidente da Comissão de Sindicância da ABI, fez esta saudação póstuma a Júlio Brazil: “Não éramos íntimos, mas admirava o trabalho sério, competente e honesto de Júlio César Brazil no exercício da profissão que abraçou. Como leitor de O São Gonçalo, sempre acompanhei o admirável trabalho dele e de sua equipe. Entristecenos a sua partida, precoce e lamentável. Jovem, aos 42 anos de idade, tinha uma brilhante carreira pela frente e, com certeza, acompanharia com seu talento formidável a evolução editorial do jornal, que hoje é a cara do nosso Município. Em nome da Associação Brasileira de Imprensa, nos solidarizamos com todos os seus companheiros de Redação, com a direção de O São Gonçalo e seu familiares neste momento de dor.”

Harrison, um ás da ficção científica Ele foi também o principal roteirista de Flash Gordon nos anos 1960. P OR C ESAR S ILVA

No dia 15 de agosto, em Brighton, Inglaterra, a ficção-científica perdeu um de seus mais criativos autores: Harry Harrison. Apesar de pouco publicada no Brasil, a obra de Harrison tem um valor significativo dentro de gênero, devido a sua criatividade, ousadia temática e qualidade narrativa. Harrison se reinventava a cada obra, modulando sua ficção conforme a proposta estética, e navegava bem em qualquer estilo, indo da comédia nonsense à space opera e dela ao drama urbano sem a menor dificuldade. Sua obra mais conhecida nunca foi publicada no Brasil. Trata-se da novela distópica Make Room! Make Room! (1966), que foi base para o excelente longa-metragem No Mundo de 2020 (Soylente Green, 1973), dirigido por Richard Fleischer e estrelado por Edward G. Robinson e Charlton Heston no auge de sua fama. Henry Maxwell Harrison nasceu em 12 de março de 1925 na cidade de Stamford, Connecticut, EUA. Graduou-se em 1943 na Forest Hills High School e logo que completou 18 anos alistou-se na Força Aérea. Não se tornou piloto porque usava óculos e acabou servindo no solo como técnico de

equipamentos de mira, durante a Segunda Guerra. Depois da baixa, decidiu estudar arte e matriculou-se no Hunter College em Nova York, onde foi instruído pelo pintor John Blomshield. Também estudou no Cartoonists and Illustrators School, onde foi aluno de Burne Hogarth. Montou um estúdio com o ilustrador Wallace Wood e ali trabalhou com Roy Krenkle e Al Williamson. A colaboração como ilustrador nas revistas Weird Fantasy e Weird Science, da EC Comics, aproximouo da ficção-científica. Por causa de uma forte gripe que o impediu de desenhar, Harrison foi para a máquina de escrever e acabou redigindo o conto Rock Diver, que foi aceito pelo editor Damon Knight e publicado em 1951 na revista Worlds Beyond. Mas mesmo depois de se tornar escritor, Harrison continuou envolvido com os quadrinhos e foi o principal roteirista de Flash Gordon ao longo dos anos 1960, desenhado por Dan Barry. Depois do fracasso de seu primeiro casamento, Harrison casou-se em 1954 com Joan Merkler, com quem teve dois filhos: Todd e Moira. A família morou em diversos lugares do mundo, como México, Itália e Dinamarca, e se fixou na Irlanda em 1975.

Como escritor, Harrison usou os pseudônimos Felix Boyd, Leslie Cárteres e Hank Dempsey. Também atuou como editor de revistas e manteve uma produtiva parceria com o escritor britânico Brian Aldiss, com quem organizou diversas antologias e dividiu a presidência da Birmingham Science Fiction Group. O único título do autor publicado no Brasil foi o romance cômico Bill o Herói Galáctico (Bill, the Galactic Hero, 1965), que satirizou o subgênero da space opera numa época em que os rumos da ficção científica nos Estados Unidos estavam passando por um acirrado debate entre os veteranos da Golden Age e os novos autores, do qual Harrison fazia parte. Harrison também teve alguns contos traduzidos no Brasil em antologias e revistas, principalmente no Magazine de Ficção Científica, da editora Globo, de Porto Alegre, entre 1970 e 1971. Ele recebeu em 2009 o título de Grande Mestre da Science Fiction and Fantasy Writers of America. Seu último livro foi The Stainless Steel Rat Returns, publicado em 2010. Parte da obra de Harry Harrison foi publicada em Portugal, mas praticamente tudo está fora de catálogo. Trata-se, sem dúvida, de um autor que merece ser redescoberto pelas novas gerações de editores e leitores. JORNAL DA ABI 381 • AGOSTO DE 2012

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