VOTO ELETRÔNICO COLOCA A ABI NO SÉCULO 21 Os sócios da ABI em todo o Brasil terão oportunidade, pela primeira vez, de escolher livre e democraticamente os novos dirigentes da Casa. PÁGINA 3
ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA
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VIDAS RODOLFO KONDER • LUCIANO DO VALLE • GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ • HENRY MAKSOUD
EDITORIAL
PINOCCHIOS DOMINGOS MEIRELLES
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os antigos tratados de Demonologia, Satanás, Efialta ou Asmodeu, também conhecido como “o pai da mentira”, só conseguia mover-se no território das trevas. Com suas mentiras pescava sempre carpas de verdade. Voltava para o inferno com cardumes de incautos. Suas melhores vítimas eram as almas ingênuas que não percebiam sua extraordinária habilidade em semear o ódio e a cizânia entre os bons. The devil is in detail, “o diabo está nos detalhes”, alertavam os mais velhos que conheciam como poucos as misérias da condição humana. Como explicar a presença compungida de pessoas de bem em procissões de ar vaporoso como a elas se referiu certa vez Baudelaire ao escrever As Flores do Mal? Apesar do ar empesteado de enxofre, eram incapazes de perceber que estavam sob a influência do Canhoto que agia sempre à sorrelfa. Mas tanto a mentira como a má-fé tem rabo, chifres e pernas curtas como o Cramulhano. Joseph Goebells, propaganderminister de Adolf Hitler, acre- eles produzidos, que tanto envergonha a todos nós, ditava piamente nas mentiras e caretas que en- está reunido nos autos do processo 010747204.2013.8.19.0001, da Justiça do Estado do Rio saiava no banheiro. O discurso dos mentirosos contumazes tem a de Janeiro. Ali estão as provas do crime. Nos profundidade da superfície de um espelho. Como quatro volumes do processo estão catalogadas não dispõem de uma bússola moral, a agulha mag- as manobras insidiosas e os expedientes espúnética está sempre apontada numa única dire- rios, incompatíveis com o exercício da profissão, que foram utilizados para impedir ção: a compulsiva conquista do poder. Habituados a conviver com a No terreno em que os que a chapa Vladimir Herzog parPinocchios plantam ticipasse das eleições da ABI, em abril fraude e a falsificação da verdade, suas mentiras jamais do ano passado. são constantemente obrigados a renasce grama. Seus Ao anular o pleito, a Justiça apecorrer a velhos truques de prestiinsultos não podem nas cumpriu o que dela se esperava. digitação na tentativa de legitimar também ser mais A robustez das provas era tão signisuas mentiras. tratados com palavras ficativa que os autos eram capazes Obcecados por esse projeto, não aveludadas, como de falar por si. perceberam que se transformaram recomendam os Apesar de terem recorrido e serem em cópia grosseira do famoso persomanuais de etiqueta. derrotados em todas as instâncias do nagem infantil criado em 1883 pelo escritor italiano Carlos Collodi. Esculpido em um judiciário a que apelaram, os Pinocchios que transtronco de árvore pelo entalhador Geppetto, Pinoc- formaram a Casa dos Jornalistas num parque de chio não passava de um boneco de madeira que so- diversões voltaram-se agora contra a própria justiça de forma insultuosa. Acusam o Presidente Tarnhava em ser um menino de verdade. As mentiras que Pinocchio inventava, todos os císio Holanda de ter assumido a presidência da ABI dias, faziam o nariz e as orelhas crescerem como na base do tapetão, quando era o vice do Presidenas de um burro. Os bonecos de carne e osso ceva- te recém-falecido e seu legítimo sucessor. Escondos nos desvãos da ABI jamais exibiram a inocên- dem que quatro dias depois da morte de Maurício cia e a pureza do personagem que ganhou vida nas Azêdo transmudaram, num passe de mágica, uma páginas do Giornale per Bambini, prestigiada pu- Reunião Ordinária do Conselho Deliberativo da blicação para crianças, onde Pinocchio nasceu e ABI em sessão Extraordinária e cassaram o mandato de Tarcísio Holanda. Na mesma sessão, ao cresceu no final do século 19. arrepio do Estatuto e do Código Civil, elegeram história dos Pinocchios que passaram os Fichel Davit Chargel Presidente da ABI até 2016. melhores anos de suas vidas acampados na A Justiça pode ser cega, mas não é constituída de ABI não pode ser encontrada em livros in- pessoas idiotizadas como aqueles que votaram de fantis por se tratar de leitura proibida para meno- forma açodada em um candidato que jamais res. O conjunto de episódios desconcertantes por poderia ser eleito.
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Naquela sessão tresloucada, que entrará para a história da ABI como uma das páginas mais deploráveis da Casa, o Conselho parecia possuído por Asmodeu. Não se apiedaram da morte do Presidente que fora traído pelo coração quatro dias atrás. Não lhe prestaram qualquer homenagem póstuma. Não se ouviu nenhuma palavra de pesar diante do passamento do profissional talentoso e orador brilhante, mas de gênio difícil, que escolhera a dedo cada um dos conselheiros presentes naquela sessão. Ninguém estava preocupado com a dor e o luto. Não se pediu sequer um minuto de silêncio em memória do seu falecimento. Em nenhum momento pronunciou-se seu nome. Era como se o Presidente morto há quatro dias jamais tivesse existido. As cenas que se viram a seguir foram degradantes. As máscaras se desafivelaram e as ambições pessoais afloraram, sem disfarces, exibindo-se de corpo inteiro. A face mais deplorável do ser humano foi exposta naquela tarde, sem nenhum pudor, na sala de reuniões do Conselho. Seus integrantes mais pareciam bandos de hienas enlouquecidas que se moviam, em grupos, lutando entre si, em torno de uma carniça. Agiam como a mesma voracidade e selvageria dos predadores que se acreditava existirem apenas nas savanas africanas.
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o serem atingidos pela espada de Dâmocles voltaram-se, com a mesma fúria, contra o poder Judiciário e a Diretoria da ABI, reempossada diante das fraudes que cometeram. Apesar de apanhados em flagrante delito e punidos pelo rigor da lei não se deram por vencidos. Passaram a usar a mentira como estilingue contra os diretores da Casa. Esses Pinocchios de carne e osso são facilmente identificados.Não perceberam ainda que o nariz e as orelhas cresceram tanto que o excesso de peso
INOVAÇÃO
A GRANDE VIRADA os obriga a caminharem curvados. O nariz parece uma vara de pescar. Chega a ser melancólico observá-los, mesmo de longe, orelhas imensas arrastando-se pelo chão, tropeçando no próprio nariz que não pára de crescer. Na luta encarniçada que promovem contra a Direção da ABI, na tentativa de voltarem a descarnar a entidade por eles desossada de forma selvagem, violam os mais sagrados princípios que norteiam o exercício da profissão. Borram as fronteiras que separam a ética da infâmia sem nenhum constrangimento. Não existem mecanismos capazes de disciplinar os excessos que cometem, distorcendo fatos, produzindo mentiras que nem o personagem de Carlos Collodi teria coragem de assumir.
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s eleições da ABI não podem continuar sendo transformadas em cenas diárias de pugilatos verbais, dignas de um ringue de MMA. Mesmo nessa modalidade de luta marcial existem regras que devem ser obedecidas. Os lutadores que extrapolam determinados limites são punidos e desclassificados pelos excessos cometidos. Não se pode violar impunemente os mais nobres princípios da profissão como o acesso à verdade e o direito à informação e, ao mesmo tempo, se apresentar como vítimas dos crimes que cometeram. Um dos aspectos fundamentais em qualquer processo verdadeiramente democrático é a abertura de espaços para a livre discussão e circulação das idéias. Esse não é o campo da eleição dos Pinocchios que freqüentavam a ABI. Não é possível que jornalistas obscuros, refugiados em trajetórias anônimas, aproveitem-se da escuridão que circunscreve suas vidas para apedrejar a reputação de profissionais com currículos impecáveis como Tarcísio Holanda. A Casa dos Jornalistas não pode mais abrigar personagens de desenho animado que enlameiam o Código de Ética da Profissão. No terreno em que os Pinocchios plantam suas mentiras jamais nasce grama. Mentiras morrem sempre muito cedo porque não vivem o suficiente para envelhecer. Essa é a maldição dos Pinocchios de papel machê que sugaram as últimas energias de uma instituição que se encontrava em estado comatoso. Como predadores contumazes, eles continuam rondando a ABI, famintos, com os caninos afiados à mostra, em busca de alimento farto, como no passado. Eles não sabem, entretanto, que estão com os dias contados. A história e o destino lhes reservou vida curta, como a própria mentira, que tem uma perna menor que a outra, o mesmo aleijão que tanto incomodava o velho Goebbels. A quem esses seguidores do propaganderminister de Hitler pensam que estão enganando?
Associados de todo país poderão votar na próxima eleição da Casa dos Jornalistas. DOMINGOS MEIRELLES
A Diretoria da ABI aprovou um novo modelo de votação on-line para as eleições gerais deste ano. Adotado por várias associações do País, o sistema permitirá que todos os associados que vivem e trabalham em outros Estados possam também se manifestar sobre a escolha dos dirigentes da Casa. Será a primeira eleição nacional da história da ABI. Todo o corpo social se manifestará de forma livre, ampla e democrática sem a necessidade de se deslocar até a Os sócios da ABI poderão votar com toda segurança e comodidade pela sede da entidade, no Rio de Janeiinternet, acessando o site da entidade, como exemplifica este layout. ro. Foi escolhido como parâmetro o modelo eleitoral utilizado pela Associação dos um tempo que não existe mais. A ABI não poFuncionários do Banco do Brasil, considerado dia continuar refratária às inovações tecnológium dos mais seguros diante das garantias que cas sob pena de ser reduzida a escombros diante oferece, como transparência e auditagem ime- das demandas de uma época em permanente diata dos resultados contabilizados no proces- processo de transformação. Não adianta acoeso de votação. lhar-se para escapar da agenda de compromissos A proposta apresentada pelo Presidente Tar- impostos pela modernidade e pelas grandes císio Holanda foi acolhida pela Diretoria diante mudanças que se avizinham. do seu significado simbólico: estancar o procesA entidade criada por Gustavo de Lacerda, em so de perda da credibilidade e do prestígio da 1908, não pode ter medo do novo. Ela só voltará entidade que se encontrava, há vários anos, dis- a crescer e a resgatar o prestígio perdido a partir tanciada do corpo social e divorcidada da reali- do momento em que assumir e se transformar dade em que vivemos. No momento em que a em uma entidade verdadeiramente nacional. Esse instituição experimenta intenso processo de de- objetivo só poderá ser alcançado quando voltar mocratização interna, com o arejamento de todos a espelhar as legítimas aspirações da categoria que os espaços da Casa, entendeu-se que não se podia representa. O primeiro passo para atrair as levas continuar bloqueando a participação de expres- de associados que desertaram em massa, nos úlsivo contingente do corpo social na escolha dos timos anos, é permitir que possam ser ascultados rumos da ABI por exercerem o ofício em outras livremente sobre os rumos que desejam para a unidades da federação. A Diretoria qualificou instituição. Uma entidade que defende as libercomo indigna a exclusão desses associados que dades e o direito de expressão não pode continusempre foram tratados pelas antigas adminis- ar amordaçando seus próprios associados. O motrações como “jornalistas de segunda classe”. delo de votação aprovado pela Diretoria rompe Eles jamais tiveram o direito de votar ou se ma- velhos liames e se transforma em autêntica carta nifestar sobre os destinos da instituição. de alforria para centenas de profissionais que jaApós longo e tenebroso ocaso, a ABI começa mais foram ouvidos ou convocados a se manifesfinalmente a alargar seus horizontes e a se co- tar sobre os rumos da Casa. nectar com o mundo modermo. Não era mais A ABI não pode contrariar um dos princípios sapossível manter uma postura contemplativa grados da biologia que se aplica tanto aos seres vivos diante dos desafios do futuro que colocavam como às instituições. Quem não cresce e se deem risco sua própria sobrevivência, além de ig- senvolve enfrenta um destino trágico e irreversínorar os problemas que também ameaçam os vel: atrofia e morre. A entidade revigorou-se com destinos da profissão. Seu passado e sua histó- a nova gestão e deixou de respirar com a ajuda de ria não podiam continuar reféns de um univer- aparelhos. A Casa de Herbert Moses voltou a se so em decomposição. A Casa dos Jornalistas dei- erguer, como no passado, quando sua sombra alonxou o quintal onde refugiou-se nas dobras de gada confundia-se com a dos seus dirigentes.
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INOVAÇÃO
UM SALTO PARA O FUTURO Voto via internet e ligação 0800 modernizam e tornam mais democrática a próxima eleição da Casa.
A implantação do Voto Eletrônico online, através da internet, e do serviço telefônico 0800 na próxima eleição da ABI, tem a mesma significação do clássico de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisséia no Espaço, que aborda a questão da evolução do conhecimento e a pequenez humana diante do desconhecido. Consagrado pela crítica e pelo público, o filme lançado em 1968 antecipava experiências inimagináveis que só ocorreriam anos depois como a descida do homem na lua. O simbolismo do bumerangue lançado no ar, no início do filme, mostrava que, a cada movimento, ele deixava um passado de sombras para trás, sempre em busca do futuro, na conquista do progresso e de seus avanços tecnológicos. Ao lançar também seu bumerangue, através de um moderno e revolucionário processo de votação, a ABI procura resgatar o tempo perdido quando exercia importante papel de vanguarda na vida política e social do País, sempre na linha de frente das grandes questões nacionais. Com o “Voto Eletrônico” e o “0800” ela permanecerá fiel aos princípios que a fizeram respeitada e lhe deram, um dia, papel de destaque entre as entidades representativas da sociedade civil. Ao adotar esse moderno processo de votação ela estará também construindo e pavimentando um caminho em direção ao novo. O Presidente da ABI, Tarcísio Holanda, que arejou a entidade, nos últimos meses, não esconde seu entusiasmo diante dessa escolha conectada com o mundo moderno: “Fiquei muito orgulhoso e gratificado em ver aprovada, pela Diretoria, a proposta que sempre defendi, como a de se utilizar esse recurso digital nas próximas eleições da Casa. Ele tornará a votação mais democrática e justa. Esse é o verdadeiro papel da ABI, ao permitir a participação de todo o corpo social da Casa nas próximas eleições. Ao eliminar os entraves que impediam o corpo social de se manifestar livremente, através do voto, estaremos dando um salto significativo em direção ao futuro. Não é justo que somente aos eleitores do Rio de Janeiro seja permitido votar e decidir sobre os rumos da ABI. E aqueles que residem em São Paulo, Brasília, Curitiba, Salvador ? São todos obrigados a manterem suas mensalidades rigorosamente em dia, sob pena de serem desligados da entidade, mas não po4
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dem participar da escolha dos dirigente da Casa. Honram seus compromissos associativos com a ABI mas estão impedidos de votar. É justo e democrático que perdure esse tipo de discriminação geográfica que dá apenas a um grupo de sócios decidir os destinos da Casa, de acordo com seus interesses, em detrimento dos interesses maiores da instituição? O Brasil não é apenas o Rio de Janeiro, ele se estende do Acre ao Rio Grande do Sul”. Tarcísio sustenta que ninguém “em sã consciência pode ser contrário a essa medida que corrige antiga e inominável injustiça com os sócios que residem em outros Estados. Aqueles que vierem a combater essa idéia estão comprometidos com o passado ou com interesses meramente pessoais. São os mesmos que se manifestam, através da internet, contra o intenso processo de modernização que está mudando a imagem da ABI. Amparada em uma série de iniciativas, entre elas a inserção da entidade no campo tecnológico da comunicação e do mundo digital, a Casa voltou a fixar sua imagem num mundo marcado por intensas transformações de natureza, econômica, política e social.” Na sua visão, com a experiência de mais de meio século como repórter político, Tarcísio afirma que a Casa dos Jornalistas não podia ficar indiferente a esse irreversível processo de mudança. “Os que se posicionarem contra o novo modelo de votação mostrarão o quanto estão atrasados no tempo. E mais: o quanto a ABI também perderá ao continuar atrelada àqueles que pregam idéias retrógradas e ultrapassadas, os mesmo que foram responsáveis pela perda da expressão que a entidade teve um dia no passado”. Solução segura A eleição on-line, via internet, ou através da ligação 0800, adotada em todo o mundo moderno, é uma solução segura, sem qualquer possibilidade de fraude. Ela permitirá que o corpo social da ABI vote com seu CPF e a sua matrícula, de acordo com o banco de dados existente no cadastro da entidade. O associado receberá uma carta da ABI com um Código Uno Individualizado (uma espécie de inscrição eleitoral como a do TRE) que o habilitará a acessar o banco de dados da instituição para poder votar. Caso opte pela solução on-line, através da internet, o eleitor deverá acessar o site da ABI e clicar o botão de cor ver-
FRANCISCO UCHA
P OR A RCÍRIO G OUVÊA
Tarcísio Holanda: “Gratificado em ver aprovada a proposta de se utilizar o voto eletrônico nas eleições da ABI, eliminando entraves que impediam o corpo social de se manifestar livremente, através do voto.”
melha, localizado no lado direito da tela, onde estará escrito: “Vote Aqui”. Ele vai orientar o associado como votar. Ao clicar o botão vermelho, será aberta uma outra janela onde haverá três campos a serem preenchidos. Neles, o eleitor deverá escrever o CPF, o número da matrícula e o seu Código Uno. Ao preencher esses três campos, uma nova tela se abrirá com os nomes das chapas que concorrem à eleição. Após escolher a chapa da sua preferência, o associado deverá clicar o botão “Votar”. Pronto: sua participação no processo eleitoral estará concluída. O sistema gravará o IP do computador, ou seja, o registro do equipamento utilizado e ele não poderá mais ser usado para votar. Mesmo que o associado tente participar novamente da votação, através de outro computador, o sistema do banco de dados bloqueará seu Código Uno, que somente poderá ser utilizado uma única vez durante todo o processo eleitoral. O equipamento que vai monitorar a eleição on-line tem 128 bits e é considerado o melhor e o mais seguro do mercado. O mesmo método de votação eletrônica é adotado pela Associação dos Funcionários do Banco do Brasil e outras entidades nacionais do mesmo porte. Muitos bancos, entre eles o Itaú, um dos maiores do País, também utiliza o mesmo sistema para consultas nacionais on-line de caráter confidencial. Ao implantar esse novo sistema de votação, a ABI esta-
rá dando seu primeiro grande passo em direção à modernidade, além de iniciar a consolidação da imagem de uma instituição verdadeiramente nacional. Pelo telefone Caso o associado não queira votar pela internet, poderá fazê-lo pelo serviço de ligação telefônica “0800” conhecido como “URA” (Unidade de Resposta Audível). Essa opção será também vinculada ao site da ABI como no processo on-line. Ao ligar para o serviço 0800, o associado será inicialmente recepcionado por uma gravação eletrônica. Em seguida, digitará em seu telefone fixo ou celular, o CPF, o número da matrícula e seu Código Uno. O próximo passo será teclar o número 1 para votar. Em seguida digitará o número correspondente à chapa da sua preferência. Concluída a votação, teclará zero para encerrar a ligação. Uma gravação eletrônica agradecerá sua participação. A terceira opção é a votação na sede da própria entidade ou nos locais indicados pela Diretoria, como estabelece o Estatuto da Casa. O método será também através de uma ligação 0800, ou on-line, por meio de um computador colocado à disposição dos eleitores. A quarta opção será por meio da tradicional cédula de papel com o nome dos candidatos que concorrem à eleição. Caso o eleitor já tenha votado via internet ou por meio da ligação 0800, o sistema revelará que já participou da eleição e não poderá votar novamente. O aplicativo do voto eletrônico oferece muita segurança sendo ao mesmo tempo uma ferramenta fácil, rápida e transparente. Como o sistema é todo interligado, como qualquer processo digital, assim que for concluída a votação, a empresa responsável pelo monitoramento da eleição saberá o resultado imediatamente e poderá logo divulgá-lo, ou aguardar a apuração dos votos em cédulas de papel, realizados tanto na sede da entidade como em outros locais indicados para votação. Como se trata de um processo de contabilização instantânea, a Comissão Eleitoral poderá solicitar que o resultado da contagem seja suspenso, durante meia hora, até que sejam dirimidas as dúvidas, porventura, existentes. Os votos apurados manualmente serão então somados à votação on-line ou via ligação 0800, obtendo-se o resultado final da manifestação eleitoral dos associados da ABI em todo o País.
COMEMORAÇÃO
400 números de História Ao completar marca histórica, Jornal da ABI reafirma seu compromisso em defesa da liberdade, recebe mensagens de felicitações e aponta em direção ao futuro.
M ARIO M OREIRA
Desde sua fundação, em 1908, a Associação Brasileira de Imprensa defende valores e princípios fundamentais como a democracia, a liberdade de expressão e pensamento, e os legítimos interesses nacionais. No últimos 60 anos, a Casa dos Jornalistas contou sempre com um órgão oficial de comunicação que transcende o papel de funcionar apenas como elo de ligação entre a instituição e seu corpo social. O Jornal da ABI chega este mês à sua edição número 400 para orgulho de todos nós. Uma publicação que sofreu profundas modificações, desde o lançamento da sua primeira edição, em 1952, mas que jamais se afastou dos ideais que nortearam a sua criação. O Jornal da ABI manteve-se em permanente processo de transformação e modernização, incorporando sempre às suas edições as novas técnicas de editoração. As mudanças que ocorreram, do ponto de vista gráfico e editorial, nas últimas décadas, não o afastaram, entretanto, dos princípios que pautaram sua existência desde a sua primeira edição. As modificações limitaram-se apenas a alterar seu formato sem jamais lhe retirar a essência. A preocupação em manter-se fiel aos seus compromissos, acabaria por transformá-lo na mais rica fonte de consulta sobre a história da imprensa contemporânea, onde desempenhou diferentes papéis. Lançado inicialmente como Boletim da Associação Brasileira de Imprensa, o jornal teve sua primeira edição publicada no dia 31 de maio de 1952, um dia após o vigésimo-primeiro aniversário da gestão Herbert Moses na ABI. Com apenas oito páginas, o boletim afirmava em editori-
al de capa que seu objetivo seria “antes de tudo espelho das atividades de nossa casa, hoje tão variadas, mas todas intimamente ligadas aos anseios e aspirações de nossa classe” e que sua função era “zelar menos por si do que pelo conjunto de esforços que representa a ABI, a sua regra de apartidarismo e tolerância”. Dentro desse espírito, o primeiro número trazia reportagens diretamente vinculadas ao interesse dos jornalistas – por exemplo, sobre o movimento financeiro da ABI, a mais recente assembléia geral da entidade, o relatório da Diretoria so-
bre o ano anterior e assuntos específicos da categoria. Na segunda edição, de 30 de junho, o boletim destacava em manchete “O Pichamento da ABI”, “prova do furioso ‘amor’ dos comunistas à liberdade”. Na página 3, uma foto mostrava a parede principal da entrada da ABI, no centro do Rio, pichada com as inscrições “FORA ACHESON – GO HOME!”, reação à entrevista coletiva que o então secretário de Estado norte-americano, Dean Acheson, daria na sede da associação. A pichação serviu de mote, naquela e nas edições seguintes, para diversas reportagens e artigos defendendo a liberdade de imprensa, sempre acompanhados de matérias com informações gerais para a categoria jornalística. Pouco a pouco, o Boletim foi ganhando uma conotação mais marcadamente política. A edição de agosto de 1954 trazia na capa uma reportagem sobre o atentado da Rua Tonelero contra o jornalista Carlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa. A do mês seguinte, após o suicídio do Presidente Getúlio Vargas, destacava também na capa uma foto de Getúlio, “Presidente de Honra” da ABI, e ampla matéria em sua homenagem.
Desde sua primeira edição, há exatos 62 anos, o Boletim da Associação Brasileira de Imprensa esteve ao lado dos interesses dos jornalistas.
A partir de meados daquela década, diversos escritores, poetas e intelectuais de prestígio passaram a colaborar com o Boletim da ABI, como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Antônio Olinto, Rubem Braga e Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto). Em março de 1958, já com 12 páginas, o Boletim destacou os 50 anos de fundação da ABI.
O segundo número do Boletim (esquerda) e duas edições notáveis: o assassinato do jornalista Nestor Moreira e o suicídio de Getúlio Vargas.
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COMEMORAÇÃO 400 NÚMEROS DE HISTÓRIA
Voz contra a ditadura A centésima edição foi lançada em agosto de 1960. Mas, no início de 1962, o Boletim sofreu uma longa interrupção que duraria até agosto de 1974, quando voltou a ser editado. Apesar da violenta censura imposta aos meios de comunicação pela ditadura militar, a publicação começava outra vez a mudar de cara e de conteúdo. A diagramação passa a ficar mais arejada, a linha editorial também se modifica, desaparecem as atas e os balanços financeiros. O Boletim abre espaço para novos temas. Começam a ganhar destaque reportagens sobre atividades jornalísticas e culturais, além de abordar questões mais ligadas à profissão como a defesa do diploma e do ensino de Comunicação nas faculdades. A publicação também passa a exibir um novo perfil. Manifesta-se com extremada coragem contra o arbítrio, a intolerância e a opressão. Transforma-se na mais importante trincheira em defesa das liberdades. A edição bimestral de setembro/outubro de 1975 destacava as duas cartas enviadas pelo então Presidente da ABI, Prudente de Morais, neto, ao Ministro da Justiça, Armando Falcão, pedindo o fim da censura à imprensa. Trazia também a reportagem “O que pensam os jornalistas”, cuja linha-fina era: “Pesquisa nas Redações (Rio) revela suas aspirações: melhores salários, jornada mais humana, liberdade de imprensa”. Aspirações que, ao menos em parte, continuam atualíssimas... O número seguinte, de novembro/ dezembro, trazia foto e chamada de capa para o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto por agentes da repressão na sede do DoiCodi, em São Paulo. Cada vez mais, o veículo oficial da ABI vocalizava os protestos contra a ditadura militar e os anseios da sociedade brasileira por liberdade, não só a de imprensa. Com a abertura política e a agonia da ditadura, a publicação dá eco e apoio aos grandes movimentos populares de contestação ao regime, surgidos na primeira metade dos anos 1980, como a campanha das Diretas e pela convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Em julho de 1988, uma mudança importante: o Boletim passa a se chamar Jornal da ABI, nome mais de acordo com o espírito da publicação, que há tempos deixara de ser um mero veículo corporativo. Pelo impeachment Em 1992, o Jornal da ABI se engaja com todo o ímpeto na campanha pelo “impeachment” do Presidente Fernando Collor de Mello. Signatário do pedido de destituição de Collor com o então Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcelo Lavenère, o Presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho, escreve 6
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A História recente do Brasil nas páginas do jornal: a destruição da Tribuna da Imprensa, o assassinato de Herzog e o impeachment de Collor. Abaixo, homenagem a Barbosa Lima Sobrinho.
editorial da edição 231 (setembro/outubro de 1992) festejando a aprovação final do processo de “impeachment” pelo Congresso. Após a queda de Collor, o jornal enfatiza a luta contra o receituário neoliberal em geral e as privatizações em particular, bem como a defesa das empresas públicas, pela liberdade de imprensa e, mais tarde, contra o instituto da reeleição para Presidente da República, aprovada durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. A edição de janeiro e fevereiro do ano 2000 trazia a última grande entrevista de Barbosa Lima Sobrinho, com o título “Ainda tenho esperança”. A de julho e agosto destacava a repercussão do falecimento do grande jornalista, aos 103 anos. Outra morte que mereceu destaque no Jornal da ABI foi a do repórter Tim Lopes, da Rede Globo, executado por traficantes durante a realização de uma reportagem. “Tim não morreu. Viva o repórter!” era a manchete da edição 291, de julho/agosto de 2002. O jornal trazia extenso material sobre o caso, com a reprodução de artigos publicados na imprensa por nomes de peso como Alberto Dines, Zuenir Ventura, Carlos Heitor Cony, Eugênio Bucci e Affonso Romano de Sant’Anna. Outra edição histórica foi a número 296 (julho/agosto/setembro de 2004), que noticiava o NÃO da ABI à criação do Conselho Federal de Jornalismo, iniciativa do governo Lula para “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício da atividade jornalística. Nova fase O Jornal da ABI voltou a ganhar impulso com a reforma gráfica e editorial promovida a partir da edição 299, em abril de 2005. Com ela, a publicação ganhou uma roupagem mais bonita e dinâmica, aproximando-a dos leitores. Também passou a contar com uma equipe praticamente permanente de jornalistas colaboradores.
O número inaugural dessa nova fase denunciava na capa o descaso da direção da Fundação Biblioteca Nacional com diversas obras literárias que faziam parte do acervo da instituição. Trazia, também, a chamada para uma reportagem sobre o dia-a-dia dos profissionais que batalhavam na editoria de Cidades dos principais jornais brasileiros. Além de um visual mais atraente e de uma melhor seleção das pautas, o Jornal da ABI passou a investir em grandes edições especiais temáticas, destacando tanto assuntos de interesse geral, como a crise econômica internacional de 2008 e os protestos de junho de 2013 no Brasil, quanto áreas específicas da comunicação, como fotojornalismo, televisão, quadrinhos e caricaturas. Temas relacionados às novas mídias, como jornalismo na internet, tv digital e a democratização dos meios de comunicação, também passaram a integrar permanentemente o cardápio oferecido aos leitores. Nem por isso o faltaram matérias sobre formas de comunicação mais tradicionais, como teatro, cinema e literatura. O jornal começou ainda a investir em grandes entrevistas com profissionais consagrados do jornalismo, sempre sob a vinheta “Depoimento”. Murilo Mello Filho, José Hamilton Ribeiro e Mário de
Moraes foram os primeiros de uma longa lista que incluiu ícones da imprensa brasileira como Marcos de Castro, Wilson Figueiredo, Armando Nogueira, Sérgio Cabral, Mino Carta, Alberto Dines, Ana Arruda Callado, Ziraldo e tantos outros nomes igualmente importantes. Mas os entrevistados não se limitam ao universo dos jornalistas. A edição 391, de junho e julho do ano passado, por exemplo, trazia como furo jornalístico a primeira entrevista exclusiva do moçambicano Mia Couto a um veículo brasileiro após a indicação do autor de Terra Sonâmbula para o Prêmio Camões, principal premiação para escritores de língua portuguesa.
O Jornal da ABI vem se renovando desde sua última reforma gráfica, de abril de 2005, com edições temáticas, além de manter sua corajosa linha editorial de denúncias.
“Se houvesse apenas um motivo para a marca da Associação Brasileira de Imprensa honrar e manter viva sua história, este é o Jornal da ABI” “Que bom que existe, que bom que chega a este número quatrocentão; que referência importante que é este jornal dos jornalistas. Importante, e muito, não só pela defesa das liberdades e dos interesses que trazem justiça à categoria. Mas, sobretudo, pela batalha permanente e intransigente que trava em favor da Ética – da Ética profissional e da Ética da comunicação em geral; batalha decisiva na elevação e no fortalecimento dos valores morais da sociedade brasileira. Vida longa ao Jornal da ABI!” S ARTURNINO B RAGA “O Jornal da ABI é o único jornal independente da imprensa brasileira. Assim é que deve ser um jornal feito por jornalistas.” Z IRALDO “Com crise, sem crise, se houvesse apenas um motivo para a marca da Associação Brasileira de Imprensa honrar e manter viva sua história, este é o Jornal da ABI. Leitura obrigatória,
trincheira sempre resistente, um jornal além da sobrevivência, luz permanente do bom jornalismo. Ninguém que o leia deixa de perceber que é feito com a garra de quem vê nele a missão de manter acesa a luta pela memória da imprensa e pelo presente e futuro da liberdade de expressão. No momento em que discutimos o papel dos jornais em papel, este, o da ABI, faço questão de ler pegando com as mãos – gentileza que devo, agradecido, ao representante de nossa associação na Paulicéia, o amigo há tempos distante, mas sempre tão próximo, Rodolfo Konder. Vida longa ao Jornal da ABI. Que venham mais 4 mil edições!” J UCA K FOURI FRANCISCO UCHA
Cenário diferente “O jornal dos dias de hoje reflete uma fase bem diferente do período de violência e opressão em que fui seu editor ”, explica o jornalista Domingos Meirelles, atual Diretor Econômico-Financeiro da ABI. Editor do Boletim da ABI entre 1975 e 1977, Meirelles lembra que o País, naquela época, vivia um dos momentos de maior repressão política contra a imprensa. A censura impedia a publicação de qualquer notícia que pudesse ser interpretada como manifestação de hostilidade contra o governo militar. “Naquele momento, o Boletim da ABI tornou-se um veículo de resistência. Ao lado de O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, eram as duas únicas publicações do País que não passavam pelo crivo dos censores. Tínhamos, naquela época, uma equipe brilhante, com devotada capacidade de doação, apesar dos riscos que enfrentávamos. O Boletim transformou-se numa extraordinária trincheira em defesa da liberdade de imprensa e das liberdades individuais. Nós publicávamos matérias que os jornais estavam impedidos de veicular. Recebíamos textos censurados,
enviados pelas grandes Redações, para que fossem divulgados pelo Boletim “. Para Meirelles, aquele período de trevas foi também um duro aprendizado. Ele permitiu que sobre as cinzas do antigo Boletim se erguesse o novo Jornal da ABI, editado com o mesmo vigor pelo então Presidente Maurício Azêdo. “Atualmente, mantemos a mesma postura combativa, só que em outro cenário, onde enfrentamos novas formas de intolerância política. Ou seja, continuamos denunciando as pressões sofridas pelos veículos de comunicação e as violências cometidas contra os profissionais de imprensa em todo o País. O jornal atual é mais arejado, exuberante, espelha a grandeza e o respeito que a ABI conquistou ao longo de sua existência. Hoje existem outras formas dissimuladas de intimidação da imprensa. Cada vez mais são criadas manobras e falsos conceitos com o objetivo de reduzir o espaço e o papel dos jornalistas dentro das Redações. Naquela época, essa truculência vestia farda e tinha cheiro de pólvora”, lembra Meirelles. Para ele, o fato de o Jornal da ABI manter os mesmos compromissos fundamentais da época do Boletim mostra que o tempo não teve nenhuma influência sobre a sua trajetória. “As grandes transformações que ocorreram nos veículos de comunicação e os desafios que a imprensa enfrenta, nos dias de hoje, aumentaram a importância e o significado do papel exercido pelo Jornal da ABI como atalaia das liberdades”, completa Meirelles, que voltou a ser um dos seus atuais editores, 37 anos depois de exercer a mesma função no glorioso e combativo Boletim da ABI.
“Leio o Jornal da ABI com a absoluta convicção de que estou lendo o meu jornal, o nosso jornal. Não conheço qualquer outra possibilidade de sentir com mais clareza a certeza de que não há ninguém entre mim e o leitor.” S ÉRGIO C ABRAL
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COMEMORAÇÃO 400 NÚMEROS DE HISTÓRIA
“Correto politicamente, sem fugir de uma postura crítica e de afirmação clara de princípios democráticos”
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“O Jornal da ABI tem enorme importância, não só como veículo corporativo, mas como jornal mesmo. É um veículo que sempre caminhou nas mãos de gente competente, feito por profissionais, mas por amor à causa. Quando colaborei com o jornal, trabalhei sempre com muito carinho. E o jornal continua em ponto alto. Recebo invariavelmente todos os meses e leio tudo, de cabo a rabo. A linha editorial é toda muito boa, nem dá para destacar um ponto específico.” M ARCOS DE C ASTRO “Uma das minhas alegrias é pertencer à ABI e ser seu sócio remido. Seguramente, um dos mais antigos da Casa de Herbert Moses, que conheci pessoalmente. Vejo no Jornal da ABI um veículo pujante, corajoso. As suas matérias despertam interesse e são lidas por mim, sistematicamen-
“O Jornal da ABI é uma das melhores publicações do gênero no País. Bem escrito, atualizado e instigante” te, com muito prazer. Inclusive porque nas suas páginas podemos recolher depoimentos riquíssimos da história da nossa imprensa, com ênfase nos ‘heróis’ que se destacam na defesa da liberdade conquistada a tanto custo. O jornal deve ser preservado e, se possível, enriquecido com novas colaborações. Sou inteiramente favorável à sua existência e felicito seus editores e repórteres pelo que têm realizado até aqui. A minha curiosidade é estimar como será a edição de nº500". A RNALDO N ISKIER “O Jornal da ABI é uma das melhores publicações do gênero no País. Bem escrito, atualizado e instigante. Eu sei o quanto há de paixão naqueles que fazem este jornal acontecer. Parabéns aos meus colegas por servirem de estímulo para todos nós.” S IDNEY R EZENDE “A grande graça do Jornal da ABI é ser feito por jornalistas falando de jornalis-
tas para jornalistas, uma raça que está mais habituada a falar dos outros.” CLOVIS ROSSI “Esta edição comemorativa de nº400 é a continuação da importância da sua linha editorial, na qual se insere, sobretudo, a liberdade de imprensa e de onde decorre a defesa de todas as outras liberdades. Por isso mesmo, valho-me da memória ao relembrar o sempre saudoso Barbosa Lima Sobrinho – Presidente da Casa – quando a convite da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Pernambuco, asseverou – com toda a sua grandeza – que a liberdade de imprensa denuncia todas as prisões ilegais, evidencia todas as torturas, combate o fanatismo, preserva a liberdade religiosa. E mais – dizia ele – é uma sentinela incansável na proteção dos Direitos Individuais e está sempre a serviço da própria comunidade, no instante em que condena os excessos e corrige os abusos. É nessa linha que se mantém o Jornal da ABI, o que me leva a colocar em relevo – o que tenho feito ao longo da minha vida profissional – que uma imprensa controlada pelo Estado ou pelas elites dominantes pode permitir a eclosão de não apenas uma, mas duas ou mais ditaduras numa mesma região.” B ERNARDO C ABRAL FRANCISCO UCHA
“A Associação Brasileira de Imprensa – ABI tem uma trajetória de atos patrióticos, desde Herbert Moses, até os dias atuais com Tarcísio Holanda. Da campanha do ‘petróleo é nosso’ ao ‘pré-sal’, a ABI e o Brasil estão irmanados e sua lumi-
JOSÉ DUAYER
“Gosto de receber e ler o Jornal da ABI porque ele traz sempre reportagens que não leríamos em outros jornais, na chamada grande mídia, que está cada dia mais pequena mídia. Corajoso, bem feito, com paginação caprichada, nosso jornal trata de assuntos e de pessoas que não interessam apenas aos jornalistas, mas a qualquer cidadão consciente. Correto politicamente, sem fugir de uma postura crítica e de afirmação clara de princípios democráticos. É uma leitura informativa sem nunca resvalar para a chatice. E sua qualidade não cai. Cada número confirma este perfil. Agradeço aos editores e à direção da ABI a persistência em sua publicação.” A NA A RRUDA C ALLADO
nosa caminhada nos dá a certeza de que ela contribuiu de forma objetiva para respirarmos, hoje, o ar da liberdade. Cumprimento, na figura de Domingos Meirelles e Francisco Ucha, os jornalistas que durante todos esses anos fizeram do Jornal da ABI um modelo de jornalismo no Brasil e que, com brilhantismo, chegaram à edição de nº 400. Meu respeitoso abraço a todos!” SAULO GOMES
FOLHAPRESS
ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE
E a imprensa também comemorou... Em seus primeiros momentos, há 50 anos, a ditadura teve nas elites dos principais grupos de comunicação um de seus maiores aliados. POR CELSO SABADIN
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uando se fala nas relações entre Imprensa e ditadura, um dos primeiros conceitos que nos vêm à cabeça é o de resistência. Lembramos dos heróicos tablóides constantemente censurados e apreendidos por divulgarem informações contrárias aos interesses dos militares. Reverenciamos O Pasquim, Opinião, Movimento e tantos outros que eram comprados e lidos praticamente às escondidas. Recordamos até das receitas de doces e trechos de Camões que eram publicados acintosamente em O Estado de S.Paulo e no Jornal da Tarde, sinalizando um protesto mudo de que, naquele espaço, deveria haver matéria que censores autoritariamente vetaram. Nos vêm à cabeça imagens de Redações invadidas, com jornalistas presos e gráficas empasteladas. Tudo isso foi verdade. Mas, não num primeiro momento. A derrubada de João Goulart, “um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou” [Tribuna da Imprensa, em 02/04/1964] foi festejada por uma imprensa que comemorou este “movimento pela paz e pela democracia” [O Estado de Minas, em 02/04/1964], e abriu seus braços e suas páginas aos “bravos militares” [O Globo, em 02/04/1964], feliz por eles terem afastado o “caudilho aliado dos comunistas” [Jornal do Brasil, em 01/04/1964] “pelo bem do Brasil” [O Povo, de Fortaleza, em 03/04/1964] e “em nome da legalidade” [O Globo, em 04/04/1964].
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE E A IMPRENSA TAMBÉM COMEMOROU... ÚLTIMA HORA/ACERVO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Tropas do 1º Exército em frente ao Ministério da Guerra.
Tropas do 1º Exército em frente ao Ministério da Guerra.
Mais que comemorado, o golpe foi explicitamente exigido pela grande imprensa. No editorial intitulado simplesmente Basta!, publicado na capa de O Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 31 de março, a demanda era agressivamente clara: “Até que ponto o Presidente da República abusará da paciência da Nação? Até que ponto pretende tomar para si, por meio de decretos-leis, a função de Poder Legislativo? Até que ponto contribuirá para preservar o clima de intranquilidade e insegurança que se verifica presentemente na classe produtora? Até quando deseja levar ao desespero por meio da inflação e aumento do custo de vida, a classe média e a classe trabalhadora? Até que ponto quer desagregar as forças armadas por meio da indisciplina, que se torna cada vez mais descontrolada?”. Salvo raras exceções, este foi o tom da grande imprensa brasileira naquele momento. Ufanista, apavorado pelas medidas supostamente socializantes sinalizadas por Goulart. Comemorativo e aliviado pelo fato do Brasil ter, finalmente, “corrigido” a sua rota que o alinhava a Cuba. Se um desavisado marciano (naquela época ainda não se falava “extraterrestre”) folheasse os jornais da primeira semana de abril de 1964, certamente pensaria ele ter chegado ao nosso país em pleno reinado de Momo, ou durante as comemorações de mais uma Copa do Mundo. De acordo com o jornal carioca O Dia, de 2 de abril daquele ano, “a população de Copacabana saiu às ruas, em verdadeiro carnaval, saudando as tropas do Exército. Chuvas de papéis picados caíam das janelas dos edifícios enquanto o povo dava vazão, nas ruas, ao seu contentamento”. Isto porque “desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade (...) A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas”, nas palavras do editorial do Jornal do Brasil de 1º de abril de 1964. Que festa, que alívio! Afinal, “fugiu Goulart e a democracia está sendo restaurada (...) atendendo aos anseios nacionais de paz, tranqüilidade e progresso, as 10
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Talvez até mais que um Carnaval, o episódio também se assemelhava à Semana Santa, pois havia até Judas a ser malhado, como deixa claro o editorial de A Tribuna da Imprensa daquele mesmo 2 de abril: “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr. João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu”. Da mesma forma, o Jornal do Brasil do dia 1º levanta seu dedo inquisidor: “Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada”. O Globo: Ressurge a Democracia!
Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-a do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal”, festejava o editorial de O Globo, no mesmo dia 2. Dois dias depois, o jornal volta à carga: “Ressurge a Democracia! Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente das vinculações políticas simpáticas ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é de essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes a seus chefes, demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições (...). A legalidade não poderia ter a garantia da subversão, a âncora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada”.
Basta! Fora! De acordo com o estudo “A Ditadura Militar e a Grande Imprensa’, desenvolvido pelo professor Eduardo Zayat Chammas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Usp, “os dias 31 de março e 1º de abril marcam o auge das críticas do Correio da Manhã ao governo João Goulart. Nos dois editoriais de capa que se tornaram célebres, Basta! e Fora!, o jornal acaba por defender a deposição imediata do Presidente”. Chammas defende em sua obra que os argumentos do jornal são “fundamentalmente institucionais: o Presidente teria desrespeitado o Congresso ao tentar governar por decretos-leis, usurpando as funções do Poder Legislativo; estaria levando adiante uma política continuísta, no que seria uma tentativa de permanecer no poder, sem respeitar a Constituição de 1946 e as eleições de 1965; e teria, por fim, destruído a disciplina das Forças Armadas. O Correio da Manhã coloca-se a falar em nome da opinião pública e em defesa das instituições”. Chammas ressalta em seu estudo que o jornal fala em “intranqüilidade, insegurança, desordem, anarquia, crise política, social, militar e financeira, e usa a seu fa-
vor o discurso da legalidade (...). O principal argumento contra Goulart é de que ele gostaria de permanecer no poder a qualquer preço, instaurando para tanto o caos no País, mas o próprio editorial parece ter dificuldades em apontar o não cumprimento da Constituição, que seria a mais sólida das justificativas para a saída do Presidente. O efeito da permanência de Jango no cargo presidencial seria o início de uma ditadura, mas há uma passagem reveladora no próprio editorial: o jornal admite ser contra a perspectiva da ditadura. Neste mesmo editorial do Correio da Manhã, no dia 1º de abril, reaparece também o jornal que fala em nome do povo, porta-voz da opinião pública: ‘o povo depois de uma larga experiência reage e reagirá com todas as suas forças no sentido de preservar a Constituição e as liberdades democráticas’ ou ‘a Nação, a democracia e a liberdade estão em perigo. O povo saberá defendê-las. Nós continuaremos a defendê-las’”, conclui. “Foi uma oposição sistemática”, diz Maria Helena Capelato, professora de História da USP, em entrevista concedida à repórter Mônica Teixeira, na TV Univesp. “Como Samuel Wainer, que era braço direito do Getúlio, fundou o jornal Última Hora, nós temos neste momento uma batalha acirrada da imprensa, com a Última Hora defendendo o governo Jango, e todos os outros contrários. A grande imprensa toda sempre se colocou contra o governo João Goulart”, afirma. Contudo, nosso amigo marciano, pensando que os jornais cariocas, representantes de uma população festeira por natureza, pudessem estar fazendo um Carnaval (ou um Sábado de Aleluia) à toa, resolveu folhear os matutinos de outras cidades. E nada viu de diferente. “Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o Governador do estado e chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade. Toda área
localizada em frente à sede do governo mineiro foi totalmente tomada por enorme multidão, que ali acorreu para festejar o êxito da campanha deflagrada em Minas (...), formando uma das maiores massas humanas já vistas na cidade”, alardeava O Estado de Minas. Vitória também era a palavra de ordem de O Povo, de Fortaleza, naquele 3 de abril. Uma vitória da ‘causa democrática’, diz o jornal, que “abre ao País a perspectiva de trabalhar em paz e de vencer as graves dificuldades atuais. Não se pode, evidentemente, aceitar que essa perspectiva seja toldada, que os ânimos sejam postos a fogo. Assim o querem as Forças Armadas, assim o quer o povo brasileiro e assim deverá ser, pelo bem do Brasil”, reforça o editorial. Goulart não passou incólume nem no seu Rio Grande do Sul natal, onde houve uma “vibrante manifestação sem precedentes na história de Santa Maria para homenagear as Forças Armadas”, conforme publicou o jornal local A Razão.
certeza que não havia ninguém que fosse contra o golpe. Como sempre acontece neste tipo de situação, a imprensa em geral (e, neste caso, o Estadão em particular) toma para si o baluarte de falar em nome de todos. Não da maioria, mas da totalidade. O jornal julga ter uma procuração assinada por absolutamente todos os cidadãos brasileiros, e comete manchetes como “Democratas dominam toda a Nação”, “Une-se todo o povo de São Paulo na grande tarefa de reconstrução” ou “Irrestrito apoio à causa libertadora – Pronunciamse todos os setores da vida privada”. É imprescindível usar, nas manchetes, palavras que representem uma suposta “totalidade” de brasileiros a favor do golpe. Oposição subversiva? Só se for no exterior, como sugere a matéria intitulada “Comentários da imprensa dos países comunistas revelam a decepção dos conspiradores”. Sim, ”conspirador” é um outro termo usado para designar quem for contra o “movimento libertador”. Simplesmente suprime-se do imaginário coletivo a idéia que possa existir um oponente, já que “toda” a população apóia a “revolução”. Em sua tese de doutorado denominada O Bravo Matutino, a professora Maria Helena Capelato dedicou-se a estudar a fundo o tradicional diário da família Mesquita. Na já citada entrevista à TV Univesp, ela afirma com toda a segurança que “O jornal O Estado de S.Paulo é de uma coerência impressionante. Se você ler o jornal, hoje, você se remete à lembrança do que eles escreviam na época que eu estudei. Na época da ditadura Vargas, as posições do jornal O Estado de S.Paulo, e de outros também, eram muito semelhantes ao que se repetiu na época do golpe de 1964, porque eles sempre tiveram uma atitude conservadora. A ideologia do jornal é conservadora, liberal-democrática, mas de uma democracia das elites. Eles se diziam representantes das elites bem pensantes do País, e que tinham, então, por missão, formar o povo brasileiro, inculto e despreparado para a política”.
lo de sua matéria de capa: “Todo o poder ao glorioso Exército do Brasil”. E, no texto, contabiliza que este é o pedido de todos os “70 milhões de brasileiros”. Ainda segundo o editorial de Chatô, ”a crise que vivemos e cujo desfecho não é possível prever, mostrou-lhe [referindose ao Governador mineiro Magalhães Pinto], como mostrou a todos os homens que não toleram a desfiguração de nosso País, que chegara a hora de proferir um basta que soasse forte para ser ouvido por todos os cidadãos livres da terra brasileira. O laço do comunismo internacional está armado, e para ele nos impelem indivíduos que atraiçoam seguindo plano traçado fora de nossas fronteiras. Impunha-se uma corajosa defesa das instituições que livremente escolhemos. Urgia mostrar, por atitude inequívoca, que somos realmente democratas, que não queremos governo de um só partido ou de nenhum partido, que sabemos, por experiência, o que se pode esperar de figuras carismáticas e de ‘iluminados’ de figuras providenciais, em suma”. Prossegue Chatô: “O Governador Magalhães Pinto tomou posição, uma posição clara, desassombrada, própria de um homem de caráter. Não admite o chefe do executivo mineiro que o Brasil siga as pegadas de Cuba, uma Cuba em ponto grande e que por isso mais trágica seria, se fosse bem sucedida a trama que se desenrola”. Enquanto isso, no mesmo jornal, no mesmo dia, matéria de teor científico informa, ironicamente com fontes de laboratórios soviéticos, que novos estudos revelaram que a intensa radioatividade da
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Indescritível entusiasmo Pelo que se lia, o País era uma festa só. Até no “túmulo do samba”, apelido que Vinicius de Moraes, meio carinhosa, meio maldosamente, atribuiu à capital paulista. Mesmo porque, como destaca Maria Helena Capelato, “os jornais do Rio e de São Paulo tiveram atitudes muito similares”. É curioso notar como o tradicionalíssimo O Estado de S.Paulo ignorou completamente o assunto na capa de sua edição de 1º de abril, onde só aparecem matérias internacionais. A “crise”, segundo o termo utilizado pelo jornal, só seria abordada a partir da página 3, e ainda assim sem contornos definidos. Na Folha de S.Paulo, ao contrário, a grande manchete de capa era “II Exército domina o Vale do Paraíba”, e logo abaixo, em corpo menor, a informação tranquilizadora dava conta que “calma é completa no Estado de São Paulo”. Nos dias subseqüentes, porém, o Estadão escancara uma postura onde abandona completamente qualquer possibilidade de jornalismo imparcial, e passa não mais a noticiar os fatos, mas sim a comemorá-los em gigantes manchetes. Entre elas, “São Paulo e Minas levantam-se pela Lei”, “Indescritível entusiasmo mobilizou a população paulistana”, “Júbilo no Rio e na Capital de Minas com a vitória do movimento pela legalidade” ou “Vitorioso o movimento democrático”. Percebe-se a postura mais do que clara do jornal em sempre posicionar a tal “revolução”, como se dizia na época, como um movimento ao lado da lei, da legalidade e da democracia, conseqüentemente classificando seus oponentes como foras-da-lei. “Subversivo” será a palavra constantemente utilizada por quem por acaso tivesse o atrevimento de ser a favor de João Goulart. Ironicamente, contudo, quem lesse O Estado de S. Paulo naqueles dias, e nele acreditasse, terminaria sua leitura com a total
Última Hora apoiava Jango e foi empastelada.
Capelato explica a coerência do Estadão lembrando que o jornal “sempre foi contra Vargas, e fez uma oposição muito forte a este governo, chamado de populista. E, na seqüência, depois da queda e da volta de Vargas (inclusive o jornal foi expropriado na época da ditadura, quando a normalidade democrática voltou), eles sempre foram um dos baluartes da oposição ao Getúlio. Esta oposição a um regime dito populista continua no período do governo Jango Goulart, que é considerado o principal herdeiro de Vargas. A idéia é de que estes governantes ditos populistas conseguem o apoio das massas desrespeitando a chamada Grande Política”. Fazendo coro e eco a O Estado de S. Paulo, na capital paulista, o Diário de S. Paulo também se regozijava com a queda de Goulart. E nem poderia ser diferente, pois o jornal fazia parte dos poderosos Diários Associados, comandados com mão de ferro por Assis Chateubriand. Era o próprio Chatô quem, quase diariamente, disparava seus ferinos editoriais anti-Jango. Na manhã de 31 de março, ou seja, antes mesmo da deflagração total do golpe, os leitores do Diário de S. Paulo já puderam ler, em texto assinado por Chateubriand, a seguinte profecia: “Pode afirmar-se que o Presidente Goulart já perdeu o jogo, que não tinha. Desde setembro de 1960 que jogava sem cartas, que lhe garantissem a banca. À maneira de Vargas, em 1945 e 1954, e Jânio Quadros em 1961, ele blefava. Fingia, como os falsos banqueiros anteriores, que a banca era sua”. No dia seguinte, já com os tanques nas ruas, Chateaubriand dispara no títu-
Tanques diante do Congresso Nacional na manhã do dia 1º de abril.
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE E A IMPRENSA TAMBÉM COMEMOROU...
Lua poderia impossibilitar a tão sonhada viagem de um ser humano até lá... Campanha anticomunista Russos à parte, a posição de direita assumida por Chateubriand extravasa neste momento os próprios limites do jornalismo e ganha contornos publicitários: o empresário desenvolve e manda publicar, em todos os veículos dos Diários Associados, uma campanha anticomunismo que “denuncia”, entre outros, que nesse regime, quem decide quantas pessoas morarão na mesma casa que você é o governo (Leia a íntegra do texto na página 13). Ainda em São Paulo, o jornal Última Hora, de apelo popular, opta abertamente por uma posição apenas informativa, limitando-se a descrever os fatos, e raramente entrando por algum viés opinativo. Quando o faz, prefere uma posição confortável, sem posicionamento político, e escrevendo, de certa forma, aquele tipo de “verdade” fácil que opta por nunca sair da zona de conforto. Davi Barreto, por exemplo, na edição de 1º de abril, discorre longamente sobre a necessidade de se “evitar a todo custo um derramamento de sangue para que uma luta fratricida não venha a envolver a Nação”. Apenas parte da capa e duas páginas internas falam sobre a mudança do poder no Brasil. Uma pequena nota informa também que desde as 23 horas do dia anterior, 31 de março, as emissoras de rádio e tv do estado de São Paulo passaram a operar sob censura do governo estadual, segundo determinação do general Aldésio Barbosa de Lemos. O jornal também publica, lado a lado, tanto um manifesto assinado pelo Governador Miguel Arraes, como outro assinado pelo General Kruel, um dos pilares do golpe. Na edição de 8 de abril, a coluna Opinião do UH, sem assinatura, intitula-se “Os Atributos da Paz”. E, totalmente em cima do muro, limita-se a dizer que o mais importante neste momento é que o País siga pelos caminhos da Paz, independendo de quais sejam os desdobramentos políticos dos fatos. O texto prefere digredir sobre assuntos relacionados a Deus e à Páscoa, e finaliza com a frase “Que a paz esteja convosco”. Ao lado, 12
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uma matéria parece minimizar a questão da escolha do próximo mandatário na Nação, manchetando: “Eleição do novo Presidente é apenas problema político”. Lista negra dos apátridas Pouco mais de uma semana após o golpe, uma edição especial, digamos, “comemorativa” da revista O Cruzeiro chegava às bancas. Um pouco menor que o formato tradicional, e com tiragem de 425 mil exemplares, a edição grafava a palavra “EXTRA” em destaque, ao lado de seu logotipo. A capa mostrava um sorridente Governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, um dos grandes articuladores do golpe, “logo após a vitória que comandou contra a comunização do País”, segundo se lê na legenda estampada nas páginas internas da revista. Na foto, ele recebia um beijo carinhoso de sua nora. Uma tarja diagonal destacava: “Edição Histórica da Revolução”. Naquele momento a grande imprensa jamais usava a palavra “golpe” para definir o acontecimento. O amplo editorial de duas páginas, intitulado “Saber ganhar”, assinado por David Nasser, trazia uma foto do próprio editorialista ostentando um verdadeiro arsenal de pistolas e munição, com uma legenda explicando que o jornalista “continuou na Guanabara, em sua trincheira não apenas de palavras”. O texto tece longos elogios aos nomes mais famosos que fizeram a “revolução”, de Adhemar de Barros a Carlos Lacerda, do general Amaury Kruel ao Magalhães Pinto da capa. “Sabíamos todos que estávamos na lista negra dos apátridas, que se eles consumassem os seus planos, seríamos mortos. Sobre os democratas brasileiros não pairava a mais leve esperança, se vencidos. Uma razzia de sangue vermelha como eles atravessaria o Brasil de ponta a ponta, liquidando os últimos soldados da democracia, os últimos paisanos da liberdade”, vocifera Nasser em seu editorial. Com muitas fotos e pouco texto, como mandava o padrão editorial das revistas brasileiras da época, este O Cruzeiro Extra trazia informes e relatos de vários pontos do País, através de suas sucursais, todos unânimes ao registrar um suposto imenso e
massivo apoio da população às mudanças políticas do Brasil. “O paulista sabia o que queria quando apoiou, integralmente, a campanha de volta à Democracia, lançada pelo Governador Adhemar de Barros. Por isso, na hora em que a notícia da vitória foi dada, o povo de São Paulo rebentou no mais puro entusiasmo democrático”, comemora um dos textos da revista. Na foto que o ilustra, vê-se a fachada do então prédio do jornal O Estado de S.Paulo, na Rua Major Quedinho, envolto por uma chuva de papel picado, com pessoas comemorando nas janelas... da Redação. Há também espaço para vários depoimentos de políticos importantes, desde que favoráveis: “É com o pensamento voltado para Deus, grato à sua proteção ao Brasil e ao seu povo, que saúdo a nossa gente pela restauração da paz com legalidade, com disciplina e com a hierarquia restauradas nas Forças Armadas. No auge da crise, quando era próxima a possibilidade de derramamento do generoso sangue brasileiro, o apelo à paz, com legalidade, disciplina e hierarquia, tinha de ser ouvido. E foi ouvido. A paz está restaurada” (...) O perigo comunista não estava, como se viu, no comportamento do povo e dos trabalhadores, ordeiros e democratas. O perigo comunista estava na infiltração de comandos administrativos”. Assina o então Senador Juscelino Kubitcheck. A revista aproveita o clima de euforia e anuncia, na quarta capa desta edição especial, uma série de reportagens intitulada “História das Revoluções Brasileiras”, a ser iniciada no próximo número. Significativamente, o número de páginas deste tão festivo O Cruzeiro foi... 64. Retornando ao seu formato original, a edição de 25 de abril de O Cruzeiro continuaria firme e forte em sua campanha pró “revolução”. Na capa, figurava agora um carrancudo Castelo Branco (com apenas um “l” em “Castelo”) ao lado da filha Antonieta. O olhar duro e mal-encarado do novo dirigente da nação parecia preconizar os tempos que estavam por vir. A legenda das páginas internas informava que o “General Humberto Castello Branco” (desta vez com duas letras “l” em Castello) era o “cérebro da revolução de-
mocrática e seu principal estrategista, que recebe agora a missão de consolidar a vitória, devendo permanecer na presidência da república até janeiro de 1966”. A matéria de capa, com texto de Ubiratan de Lemos, alardeia que Castelo Branco foi “escolhido pelos comandos civil e militar e governadores que participaram da revolução”. E o classifica como “um intelectual com experiência de guerra”. A edição também exibe uma grande reportagem mostrando João Goulart e sua família já no exílio no Uruguai, e as prisões do Governador Miguel Arraes, e do ex-chefe da casa militar de Goulart, Assis Brasil. Curiosamente, nenhuma das dezenas de propagandas da edição faz sequer alusão, comentário, brincadeira ou referência à troca do comando no País. Na edição de 2 de maio, a capa é dedicada ao “General Costa e Silva, o Executor da Revolução”. Na foto, o futuro sucessor de Castelo Branco posa diante de um quadro de Duque da Caxias, em óbvia intenção da revista em tentar relacionar o suposto passado de glórias (ainda que questionáveis) do Exército Brasileiro com um igualmente suposto heroísmo atual. O editorial de David Nasser afirma, em letras garrafais, que Goulart “Caiu de Burro”. A revista abre quatro páginas para uma entrevista exclusiva que o Presidente deposto concedeu ao repórter Tabajara Tajes, e na seqüência abre mais duas páginas à resposta oficial do próprio Costa e Silva, que se assina em nome do que ele chama de “Comando Supremo da Revolução”. Mesmo com Castello Branco ainda no comando. Difícil dizer se conscientemente ou não, a Volkswagem publica um anúncio de página inteira onde mostra dois motores idênticos, um ao lado do outro, com o título “O da esquerda custa 50% menos”. Em O Cruzeiro de 16 de maio, as chamadas de capa destacam “CGT - Império da Corrupção” e “Brizola Queria Banho de Sangue”. Ambas contrastam com a foto de um garotinho sorridente mordendo uma espada de brinquedo (vermelha). Só dentro da revista que é revelado que o tal garotinho da capa é João Pinga Fogo, neto do presidente Castello Branco.
Adhemar e Lacerda usam a televisão. Rubens Paiva corre para o rádio ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
Na noite anterior ao golpe, o Governador de São Paulo, Adhemar de Barros, entrou nos lares paulistas através das pouquíssimas emissoras de televisão que os antigos seletores de canais ofereciam aos telespectadores, naquele 1964. A programação noturna foi interrompida para que o governador tranqüilizasse a população, anunciando que não haveria golpe nenhum. “Esta noite mais uma vez compareço à televisão para lhes dizer que chegamos ao limiar dos acontecimentos. Entramos numa fase extremamente perigosa, pois está ameaçada a nossa terra, o regime federativo, as liberdades humanas, que dia a dia estão sendo reduzidas. Mesmo a minha palavra, esta noite, está sendo limitada”. (...) Nós envidaremos todos os esforços no sentido de garantir a família, o trabalho, a ordem e a tranqüilidade (...) Não vou fazer revolução, não vou dar golpe algum. Apenas estamos cansados de golpes (...) Há uma oficina de boatos em cada capital do estado, para gerar a confusão”. Na manhã seguinte, como se sabe, todos perceberam que o Governador estava, como sempre, sendo honesto: não houve golpe algum. Apenas uma “revolução”. Naquele mesmo 1º de abril, por mais irônica que a data possa parecer, Carlos Lacerda, colega carioca de Adhemar, também fez uso de sua prerrogativa de invadir os lares de seus eleitores, via televisão. Naquela noite, Lacerda interrompeu um dos seriados norte-americanos de maior sucesso na época, Aventuras Submarinas, estrelado por Lloyd Bridges, e quase chorando, com voz trêmula, anunciou: “Deus é bom. Deus teve pena do povo”. E sem entrar em muitos detalhes, mesmo porque a situação ainda não permitia, discorreu breves minutos sobre a nova ordem da Nação. Eufórico e emocionado, Lacerda perdia mais o fôlego que o Capitão Mike Nelson em suas aventuras debaixo d’água. Naquela era pré-satélites de comunicações, transmissões em rede pelo País ainda eram um sonho distante. Principalmente via televisão. Já pelo rádio, mesmo com todas as dificuldades, ainda era possível algum tipo de imediatismo na comunicação graças ao poderio desenvolvido pela Rádio Nacional. Ainda em 1º de abril, as transmissões da Rádio Nacional, em conjunto com outras emissoras, acabaram formando uma cadeia em defesa da legalidade do mandato de Goulart. Tratava-se de um dos raros focos de resistência ao golpe, num momento em que a grande imprensa escrita já havia pedido a cabeça do Presidente e orquestrado a festa pelas ruas. A resistência era comandada pela “Rádio Nacional do Rio de Janeiro”, conforme anunciava solene a voz forte do locutor, “de plantão pelo Brasil comandando uma grande rede de emissoras integradas na Guanabara pela rádio Ministério da Educação e Cultura; em São Paulo pela Rádio Nacional de São Paulo, e em Brasí-
Com sua conhecida verve, Lacerda discursou na tv: “Deus é bom. Deus teve pena do povo”
lia pela Rádio Nacional do Distrito Federal, além de muitas outras emissoras do interior, às quais, inclusive, pediríamos a gentileza de nos telegrafar, enviando seus prefixos, para que pudéssemos mencioná-los aqui”. Alternando palavras de ordem e mensagens que tinham como objetivo tranquilizar a população, a rádio abria também seus microfones a personalidades e políticos contrários ao golpe. Entre eles, o Deputado Rubens Paiva, representan-
te do Estado de São Paulo no Congresso Nacional, que naquela madrugada conclamou trabalhadores e estudantes para uma greve geral. Uma greve que jamais aconteceu. (A íntegra do depoimento de Rubens Paiva na Rádio Nacional pode ser conferida na página 14). De qualquer maneira, fosse na forma escrita, radiofônica ou televisiva, a grande imprensa usava o exemplo de Cuba apenas para atemorizar a elite brasileira, posto que uma revolução comunista no
Brasil, naquela época, estava “absolutamente fora de questão”, segundo as palavras de Maria Helena Capelato. Sinalizar que Goulart poderia ser capaz de tornar o Brasil comunista, apavorava a classe média que, assim, tendia a tomar uma atitude de apoio a um golpe militar. “Os jornais da época constróem um discurso no sentido de justificar os seus interesses de derrubar um governo que estava tendo um apoio popular muito forte. Popular no sentido de ser contra a elite”, diz a professora e historiadora. “Goulart acenava com reformas de base; o limite eram as reformas de base”, prossegue. “E o João Goulart nunca foi comunista, era um proprietário de terras muito bem sucedido, mas ele acenava com reformas de base que tinham como objetivo fazer o País avançar e ter uma maior participação política, pois era um País muito fechado, do ponto de vista político, de participação ínfima, e esta é uma questão recorrente na história social e política brasileira: a participação sempre fica muito restrita às elites políticas e bem pensantes. E essas elites ditas liberais na verdade são conservadoras. Elas não são progressistas, nem democráticas, pois têm muito receio e se opõem a qualquer forma de alargamento de participação popular na esfera pública, sempre com o discurso que o povo não está preparado para participar, para votar”. Como se percebe com facilidade, a importância de se conhecer o nosso passado é diretamente proporcional à verdade contida na boa e antiga premissa de que “a História é cíclica”.
Texto da campanha dos Diários Associados contra o Comunismo (com a grafia da época) PORQUE O COMUNISMO É CONTRA VOCÊ ... O Comunismo é contra sua liberdade de locomoção: pois você nunca pode sair da cidade que mora, sem o salvo-conduto da polícia política que só o concede depois de meses de investigação dos motivos da viagem. ... o Comunismo é contra sua liberdade de morar: você só pode morar onde lhe determinarem que more; e o Estado (o Partido) é que indica quem deve morar com você nos cômodos da mesma casa ou apartamento, pois há uma “cubagem” de moradia determinada pelo Estado, de acôrdo com a “hierarquia partidária”. ... o Comunismo é contra sua liberdade de opinião: você nada pode dizer contra os erros, os abusos, as violências ou as desonestidades de governantes ou chefes comunistas, inclusive dos capatazes de fábrica ou “donos” dos sindicatos.
... o Comunismo é contra sua liberdade política: pois não existe outro partido a não ser o P. Comunista, cujos chefes limitam, deliberadamente, o número de “sócios”, para não dividir o poder com o povo e, portanto, com você. ... o Comunismo é contra sua liberdade de trabalhar: pois você só pode ter o emprego que o Estado (P. Comunista) “se dignar”a lhe dar. Você não tem direito de escolha. ... o Comunismo é contra sua liberdade de progredir: pois você só pode produzir aquilo que o mandarem fazer. O que você criar por aí pertence ao Estado (o Partido), e pode levá-lo à cadeia ou mesmo ao “paredão”, se vender diretamente. O COMUNISMO BASEIA-SE NUMA DOUTRINA POLÍTICA OBSOLETA E ULTRAPASSADA, FRAGOROSAMENTE DESMENTIDA PELO PROGRESSO TECNOLÓGICO E PELA DEMOCRACIA. Uma campanha dos Diários Associados
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O DISCURSO
Em defesa da legalidade Em discurso transmitido ao vivo pela Rádio Nacional no dia primeiro de abril de 1964, Rubens Paiva conclama que o povo se mobilize “tranqüila e ordeiramente” contra os golpistas.
Jornal da ABI
ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA
legalidade que hora representa o Presidente João Goulart. O nosso Presidente, ao tomar as medidas tão reclamadas por todo o nosso povo, medidas que nos conduzirão, indiscutivelmente, à nossa emancipação política e econômica definitiva, realmente prejudicou os interesses de uma pequena minoria de nossa terra. Pequena minoria, entretanto, que detém um grande poder, todo o poder econômico deste País, todos os órgãos de divulgação, os grandes jornais e as estações de televisão. É indispensável, portanto, que todo o povo brasileiro, os trabalhadores e os estudantes de São Paulo em especial, estejam atentos às palavras de ordem que emanarem aqui da Rádio Nacional e de todas as outras rádios que estejam integradas nesta cadeia da legalidade. Julgamos indispensável que todo o povo se mobilize, tranqüila e ordeiramente, em defesa da legalidade, prestigiando a ação reformista do Presidente João Goulart que, neste momento, está com o seu governo empenhado em atender a todas as legítimas reivindicações de nosso povo. É indispensável que se processe, de uma vez por todas, a divisão da riqueza brasileira entre todos os seus habitantes. Não é possível que nós tenhamos marginalizados mais da metade dos habitantes deste País, mais da metade dos habitantes do Brasil sem condições de trabalho, sem saber, de manhã, para que local se dirigirem para ganhar o seu pão e alimentar a sua família. É uma estrutura de reforma. É exatamente com as medidas preconizadas pelo
ARQUIVO ABI
“Rádio Nacional do Rio de Janeiro de plantão pelo Brasil, comandando uma grande rede de emissoras integradas, na Guanabara, pela Rádio do Ministério da Educação e Cultura; em São Paulo, pela Rádio Nacional de São Paulo, e em Brasília pela Rádio Nacional do Distrito Federal, além de muitas outras emissoras do interior, as quais inclusive pediríamos a gentileza de telegrafar enviando os seus prefixos para que pudéssemos mencioná-los aqui. E senhoras e senhores, continuando com esta série de depoimentos ao microfone da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nesta madrugada de primeiro de abril, vamos trazer o Deputado Rubens Paiva, representante do Estado de São Paulo no Congresso Nacional: ‘Meus patrícios, me dirijo especialmente a todos os trabalhadores, a todos os estudantes e a todo o povo de São Paulo, tão infelicitado por este governo fascista e golpista que, neste momento, vem traindo o seu mandato e se pondo ao lado das forças da reação. Desejo conclamar todos os trabalhadores de São Paulo, todos os trabalhadores portuários e metalúrgicos da Baixada Santista, de Santos, da Capital e das cidades industriais de São Paulo em especial. Todos os universitários, que se unam em torno de seus órgãos representativos, obedecendo à palavra de ordem do Comando Geral dos Trabalhadores, do Fórum Sindical de Debates, dos sindicatos, da União Nacional dos Estudantes, das uniões estaduais e dos grêmios estudantis, para que todos, em greve geral, dêem a sua solidariedade integral à
Rubens Paiva: “O povo brasileiro pode ter a felicidade de ver realizada toda a sua revolução dentro do processo da legalidade democrática.”
Governo Federal que teremos condições realmente de integrar todos os brasileiros neste processo. E com isto lucram os trabalhadores que terão melhores condições de emprego, com isso lucram os industriais que terão a quem vender os seus produtos, e com isso lucram os comerciantes e toda a população deste País.
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O que se diz que o governo pretende – acabar com o direito de propriedade, estabelecer o confisco de tudo que existe como propriedade privada – é uma grande mentira, uma grande farsa. O que se pretende realmente – trabalhadores e estudantes de São Paulo – é tornar este governo incompatibilizado com a opinião pública sob uma onda de mentiras e uma imagem deformada. O Presidente João Goulart, em suas reformas, visa tão somente dar ao povo brasileiro uma participação na riqueza deste País. Este momento nacional é um momento decisivo, em que o povo brasileiro pode ter a felicidade de ver realizada toda a sua revolução dentro do processo da legalidade democrática, prestigiando o Presidente da República e esta legalidade. É indispensável, entretanto, para isso, que o Presidente e o governo contem com toda a mobilização da opinião pública, todos os trabalhadores, todos os estudantes, os intelectuais e o povo em geral, para que pacífica e ordeiramente digam um ‘não’ e um ‘basta’ a esses golpistas, que pretendem cada vez mais prestigiar a pequena minoria privilegiada. Está lançado inteiramente para todo o País o desafio. De um lado, a maioria do povo brasileiro, desejando as reformas e desejando que a riqueza se distribua, ao lado da legalidade do Presidente João Goulart. Os outros são os golpistas, que devem ser repelidos, desta vez definitivamente, para que o nosso País veja realmente o momento da sua libertação raiar. Muito obrigado.’”
Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.
Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.
JORNAL DA ABI • ABRIL 2014 O J400 ORNAL DADE ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE L ÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O D ECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.
ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE
UMA REPORTAGEM QUASE MORTAL Acompanhe o relato de uma aventura marcada por desencontros de informações e seguidos anúncios de prisões arbitrárias. Uma espécie de prenúncio do caos em que o Brasil estava prestes a mergulhar. ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
P OR P INHEIRO J UNIOR
Na subestimada Juiz de Fora aconteceu que o Governador de Pernambuco, Miguel Arraes, do PSB, teve um comício pró-reformas interrompido por adversários na noite de 30 de março de 1964. Foi arrancado do palanque armado na frente da Câmara dos Vereadores na Praça Coronel Halfeld (depois Parque Halfeld). A muito custo, Arraes escapou da turbamulta que gritava: – Morte à canalha comunista! Fora os vendidos de Moscou! Morra Jango! As informações chegaram à Redação da Última Hora ainda na madrugada do dia 31. Tudo de forma tumultuada. Porque tumulto era a expressão que melhor definia a situação política. E assim, aos arrancos, o ataque a Arraes sairia na edição vespertina. Carecia portanto de uma “suíte em regra”, segundo recomendava o editor Flávio Brito, investido também em pauteiro especial. De volta ao Hotel Glória, no Rio, Arraes fôra “devidamente entrevistado”: – Mas estava alarmado como o diabo! – informara em off, ele próprio, ao plantonista de polícia da madrugada repentinamente, que fizera o papel de repórter político. A partir do “affair Arraes”, todos os repórteres passaram a cuidar, direta ou indiretamente, de política. Tudo o mais desceu a segundo plano. No dia 31 quem estava na chefia de reportagens era o tranqüilo cearense Pery Augusto. Quando me aproximei da mesa que até 25 dias atrás era minha, ele me olhou com a inconfundível cara de São Francisco de Assis. Eu estava vindo de férias. Férias que eu aproveitara não para viajar ou descansar. Mas para fazer um bico na Rádio Mayrink Veiga como redator do Repórter Petrobrás, um noticiário compacto editado por Francisco Baleixe Filho. O programa tentava rivalizar com o Repórter Esso, da Rádio Nacional. O confronto era tão mais evidente porque o Deputado e ex-Governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola, havia arrendado a Mayrink Veiga. “E mandava brasa” todas as tardes, como se fosse “uma Ave Maria política, com aquele carregado sotaque de padre das coxilhas”. O arrendamento da Mayrink Veiga poderia repetir, se preciso fosse, a famosa rede gaúcha da legalidade. Essa integração radiofônica pela segunda vez em defesa de Jango incluiria a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que era a principal emissora oficial. Outras rádios locais também eram do governo. E todas se integrariam à nova rede tal como aquela liderada por ele – Brizola – no Rio Grande do Sul. Foi uma “mobilização históri-
No dia 1º de abril, a sede do jornal Última Hora amanheceu completamente depredada.
ca” que acabou decidindo a posse de Jango na Presidência, estando Jânio já renunciante e Jango ainda se movimentando de volta da missão comercial que Jânio o encarregara na China. Uma missão logo na China comunista! Jango só chegou ao Brasil – entrando pelo Uruguai – depois de passar pela Europa e América do Norte. Uma longa e estratégica rota. Suficiente para dar tempo e garantia à sua investidura presidencial. A Mayrink Veiga fazia uma radical pregação nacionalista. Enquanto o Repórter Esso não escondia a veiculação de notícias da UPI (United Press International), combinando marca e sigla, associadas pela esquerda ao imperialismo americano. Eu voltava daquelas férias agitadas para reassumir uma Chefia de Reportagens ainda mais agitada. Mas Pery Augusto, cansado demais, mal me cumprimentou. A fala rouca sumida na garganta, ele foi curto: – O Samuel quer que você pegue um fotógrafo e vá a Juiz de Fora fazer uma matéria... Uma suíte... – Sobre a tentativa de linchamento do Miguel Arraes? – Isso. Você sabe... – Sei. O setorista militar Batista de Paula estava ouvindo: – Procura o General Olympio Mourão Filho – interferiu – Diz que fui eu. Eu que o mandei procurar. Faz uma entrevista
Nossa atenção voltou-se para a esquerda da estrada. Um grupo de soldados com metralhadora de tripé e fuzis com baionetas caladas aparecia sobre um barranco, tendo por trás sacos de areia. com ele... É o comandante da Quarta Divisão de Infantaria. A sede da ID4 é em Juiz de Fora... Entendeu? Entendi. E como sabia que a comunicação de Juiz de Fora com o Rio podia ser difícil com os obsoletos telefones da CTB (Companhia Telefônica Brasileira) sempre congestionados, lembrei de fazer contato com o Coronel Dagoberto Rodrigues, diretor do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos, atual Empresa Brasileira de Correios). Dagoberto era um militar legalista, amigo de Jango e admirador de Samuel. Perguntei se ele podia me franquear o telégrafo em Juiz de Fora para me comunicar com UH enviando textos prontos que o DCT entregaria na Redação do jornal com a urgência de telegramas: – Estamos à sua disposição – garantiu o diretor do DCT, cuja sede ocupava parte do Paço Imperial na Praça Quinze.
Garantida a comunicação, passando das 14h, em minutos eu e o fotógrafo Adir Mera (irmão do repórter Acyr) estávamos na Rio-Petrópolis. Depois, na sinuosa BR3 (atual BR-040) a caminho de Juiz de Fora. Nosso jipe era o de número 7. Com tanque cheio. Nosso motorista era... Quem mesmo? Não importa mais. Cerca das 16h chegamos à primeira curva antes da ponte sobre o Rio Paraibuna, divisa natural com Minas. Nossa atenção voltou-se para a esquerda da estrada. Um grupo de soldados com metralhadora de tripé e fuzis com baionetas caladas aparecia sobre um barranco, tendo por trás sacos de areia. Um ninho de metralhadora? Uma casamata? Barricada? Contra quem? Por quê? Como não soubéssemos o que viria pela frente, paramos o carro. A cena poderia ilustrar qualquer que fosse a situação que encontrássemos. Mera saltou para fazer uma foto: – Alto lá! – gritou um dos soldados pulando do barranco. Aliás, um terceiro sargento, via-se pela curta divisa na manga do uniforme de campanha. Mera fez uma foto com a Canon-35. Ajoelhado para um melhor ângulo, pediu: – Só mais outra foto, sargento. – Vocês estão presos – disse ele. Olhamos um para o outro sem acreditar. Nem entender. E seguimos o sargento, que nos apontava sua submetralhadora INA, até uma guarita de beira de estrada após a curva: – Vocês ficam aí dentro – ordenou apontando a guarita. Um soldado foi postado na estreita porta. E o sargento foi embora. Logo surgiu outro sargento. Desta vez um primeiro sargento, com o braço pleno de divisas. Então, argumentamos com ele que só queríamos passar até Juiz de Fora onde nos mandaram para entrevistar o General Mourão Filho. A referência ao comandante da ID4 produziu algum efeito. Era nossa missão, argumentamos: – Temos perguntas para fazer ao general e ele pode até estar esperando. O primeiro sargento pareceu sensível. E explicou: – Olha, vocês são repórteres. Os primeiros que passam por aqui. Só quem pode liberar vocês é o Capitão Felix. – E quem é o Capitão Felix? – É o chefe de relações públicas do Regimento Tiradentes. – Regimento...? –... Tiradentes. Décimo Primeiro Regimento de Infantaria de São João Del Rey. Eu também sou do 11º RI. E o Capitão Felix está andando por esses lados. É o nosso oficial de ligação. Quando passar por aqui, vocês falem com ele.
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JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014
ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
Não demorou em vermos se aproximar um oficial que tinha três estrelas brancas no capacete. Mais perto divisamos seu crachá: era o Capitão Felix. Falamos com ele, que se mostrou acessível. Explicamos a razão de estarmos ali. Ele ouviu em silêncio. Depois tirou do bolso um papel comum parecendo uma folha destacada de caderneta. E escreveu nossos nomes. Sob nossos nomes colocou a permissão para seguirmos viagem até Juiz de Fora. A permissão dizia: “Salvo conduto para se apresentar no QG da ID4”. Estava datada e assinada. Quando nos despedimos, o Capitão reforçou: – Apresentem-se no QG. A esta altura, já estávamos achando tudo estranho demais. Ao entrarmos em Juiz de Fora, a prudência e a desconfiança mandavam que deixássemos o jipe em lugar bem resguardado fora do Centro. A pé fomos em direção à Rua Halfeld – o Centrão de Juiz de Fora. De longe já podíamos ouvir rumores. Depois alaridos e por fim gritaria. Mal alcançamos a rua, percebemos que havia brigas e correrias. De vez em quando alguém era agarrado e espancado. Não faltou quem nos informasse: – Estamos dando uma esfrega na canalha comunista que apóia Jango! Diziam isso e faziam pose para fotos. Atravessamos toda a Halfeld. Foi quando nos deparamos com o próprio General Mourão Filho carregado nos ombros em triunfo. Era tal a disputa na multidão para tê-lo acima das cabeças que o general acabou deixando cair o boné bico de pato com as insígnias bordadas. Quem achou o boné no chão mostrou-o a Mera como uma espécie de troféu. Mera fotografou. O general seguiu sem a cobertura do boné, a farda descomposta. Era evidente que ele estava amando aquele momento de glória suprema. Subiu ao palanque – o mesmo ocupado na véspera por Miguel Arraes – e discursou. Do que disse restou apenas uma contundência: – Declaro Juiz de Fora a capital revolucionária do País! Era a primeira vez que ouvíamos referência a uma “revolução” para traduzir o movimento militar. Depois daquela noite, o General Mourão Filho haveria de explicar em sucessivas entrevistas como acabara posto à frente desta revolução. Não se confessou propriamente um “boi de piranha”. Mas uma “vaca fardada”. Significando que era um ingênuo. Um ignorante político-ideológico. Embora com serviços prestados no combate ao comunismo desde o histórico Plano Cohen. Saímos do meio da multidão que não parava de comemorar “o início da revolução” e fomos para a agência do DCT. Identificamo-nos para os funcionários. Falamos do Coronel Dagoberto Rodrigues. O diretor da agência estava instruído. Disse ser amigo do Coronel Dagoberto. Mas se mostrou muito preocupado. Quase roendo as unhas: – Vocês que são repórteres do Rio, o que acham que vai acontecer? Quis tranqüilizar o homem. E aventei: – Logo os pára-quedistas do Regimento Santos Dumont vão estar aqui. – E acabar com essa festa?! – exultou ele.
nicavam com outras vozes no Rio e São Paulo decidindo o futuro político do País. Foi quando ouvimos nitidamente o nome Amaury. E, ligada a este nome, uma informação também clara: – Ele acaba de aderir. Amaury só podia ser Amaury Kruell, o general comandante do 2º Exército em São Paulo, que se posicionava mais ou menos em cima do muro até aquele momento, quando resolveu se juntar aos colegas conspiradores de Minas. Mais uma hora de expectativa e a porta de comunicação com o gabinete de comando da 4ª RM foi aberta. Entrou um general. De brigada? Era ainda jovem. Mas quem era ele? Dias depois descobrimos que o Marechal (reformado) Odylio Denys – que se intitularia o chefão militar do golpe – estava naquela sala. Ele liderava o grupo integrado pelos generais Mourão Filho, Carlos Luiz Guedes e Andrade Muricy, mais o Coronel João Batista da Costa, chefe do EstadoMaior da 4ª RM. Seguramente, porém, não foi nenhum deles quem nos comunicou o seguinte: – Olha: a oficialidade está revoltada com a presença de vocês da Última Hora no quartel... – Como? Durante a madrugada, manifestantes enfurecidos incitados por Carlos Lacerda, incendiaram – Para a segurança de vocês, saiam daa Kombi e o jipe do jornal e saquearam a garagem, levando até as baterias dos carros. qui agora. Pensamos: se estávamos presos, agora estamos sendo libertados. Ato seguinte: Colocaram uma máquina datilográfica baixo onde certamente funcionava o Coo jovem general chamou um soldado. E para nós numa boa mesa. Escrevemos tudo mando. Fez-nos entrar. Sentar em poltromandou que ele nos escoltasse até a rua. que havíamos visto. E fiz o seguinte lead: nas de couro escuro. Logo voltou acompaSeguimos o soldado, que se juntou a outro – O General Mourão Filho acaba de denhado de um major – duas que esperava do lado de clarar Juiz de Fora a capital revolucionáestrelas simples e uma gefora da sala. No caminho – Vocês são todos ria do País. mada nos ombros, mas ouvimos que ele, o primeicomunistas! Fomos lá fora comer alguma coisa, totambém sem crachá – que ro soldado, resmungava Trabalhando nesse ou cochichava algo com mar café, e quando voltamos o diretor da nos falou quase cuspindo: agência nos mostrou um telegrama em res– Onde vocês arrancompanheiro sobre aljornal, só podem ser oguém posta ao nosso. Não esperávamos por isso, jaram esse papel? que nos pareceu ser comunistas! Vocês o jovem general: embora tivéssemos pedido instruções ao O papel era o salvofim da matéria enviada. O telegrama-resconduto. – O que foi? – tentadeviam é ser levados posta era de Samuel. Dizia: – Está assinado aí – mos saber. para o paredão! – Voltem imediatamente. expliquei – Olha só: a O soldado se fechou Olhei para Mera e para o motorista: assinatura é do Capitão em silêncio. Só nos deiFuzilados! – Vamos primeiro dar uma passada no Felix. xou quando nos viu enQG da 4ª RM. Mostrando o salvo-condu– Mas a data é do dia primeiro – mostrar no jipe, já fora do QG. to do Capitão, quem sabe não arrancamos trou o major – E hoje é dia 31. Eram umas quatro da madrugada. Touma boa matéria sobre essa confusão toda? Ficamos mudos. Ele insistiu para que víscamos o mais rápido que podíamos através Sem discussão, fomos ao local onde deisemos a data. Para nós, porém, ela havia sido da BR-3. Já clareava o dia quando fomos xáramos o jipe. E logo nos vimos diante dos escrita de forma errada. Evidentemente. detidos na altura de Bicas ou Mar de Espaportões fechados da 4ª RM/ID4. Uma sen– Engano do Capitão Felix – disse afinal. nha. Nosso jipe azul com as grandes letras tinela veio correndo ao nosso encontro. O major concluiu: brancas do logotipo de Última Hora era por E gritou: – Esse salvo-conduto é falso. Vocês esdemais escandaloso. E perigoso: – Fora! Fora! Vocês não podem parar aqui! tão presos. Não saiam desta sala! – Vocês trabalham nesse jornal comuAdiantamos um pouco o jipe. Só então Voltou-se para a porta que havia usado nista? – perguntou um tenente também descobrimos que eram barreiras-cavaleao entrar. E sumiu por ela, trancando-a sem crachá. tes. E caminhamos para explicar à sentipor dentro. Dali pra frente ia ser difícil encontrar nela que ainda nos espreitava: Era perto de meia-noite do dia 1º. Da algum militar identificável. Explicamos – Queremos falar com o General Mousala onde estávamos – presos! – podíamos tudo ao tenente o mais calma e convinrão. Temos um salvo-conduto para nos apreouvir o que diziam do outro lado da pacentemente possível. Ele, porém, nos fez sentar aqui no QG. rede em voz alta – às vezes alterada, às vedescer do jipe. Tomou a chave de ignição A sentinela foi falar com outra sentinezes entre risadas. Eram oficiais. Sem dúque estava com o motorista e disse o que la que pegou um telefone de campanha no vida. Quantos eram? Cinco? Talvez seis. já estava virando rotina para nós: chão, por trás dos portões. Apareceu um Possivelmente, aquele era o gabinete de – Vocês estão presos tenente. Sem crachá. Inteirou-se do que se comando do General Mourão Filho. De – Mas tenente... passava. Mandou abrir os portões e falou: madrugada, já passando das duas, estávaLogo surgiu um capitão de farda desbota– Entrem – disse – Mas deixem o carro mos cansados de tentar ouvir e adivinhar da, o rosto cansado. Voltamos a explicar tudo aí fora mesmo. o que acontecia na sala ao lado de nossa de novo. O capitão pegou a chave da mão do Com o nosso salvo-conduto balançan“prisão”. Não nos passava ainda pela catenente. Até com certa brutalidade. E disse: do entre os dedos, seguiu-nos até o prédio beça que aquelas vozes tão perto se comu– Caiam fora! Chispa!
Pulamos no jipe. Ganhamos razoável vessar a ponte. Depois vamos fechar a velocidade, de novo na estrada. Mas hacancela de novo. via muitas tropas por todos os lados. PruOs pneus e tambores foram afastados dentemente fomos avançando. Em Paraida estrada. Por trás deles havia uma velha buna uma barricada improvisada com e quase apodrecida cancela, que foi erguitambores e pneus nos deteve. Resolveda. Saltamos de novo para o jipe. E lá fomos nos aproximar. Soldados vieram em mos com o coração menos apertado. Emnossa direção. Um deles de metralhadora. bora sem o Mera, que se aventurava a caE com eles estava um oficial. Vimos que valo por caminhos desconhecidos. Ele só era um capitão: chegaria ao Rio dois dias depois. – Tomem o jipe deles – ordenou o caEu e o motorista, já em solo fluminenpitão. se sob controle do até então legalista ReNão foi preciso. Nosso motorista magimento Sampaio (1º RI) da Vila Militar, nobrou vagarosamente para fora da estrasó pararíamos de novo na localidade de da sem acostamento. Posicionamo-nos os Serraria. À margem da estrada, avistamos três em atitude submissa. O que pareceu um galpão ocupado por soldados. Pediagradar ao capitão: mos a um suboficial, talvez subtenente, – Vocês são todos comunistas! Trabaque nos levasse ao comandante: lhando nesse jornal, só podem ser comu– Que vocês querem com ele? nistas! – declarou ele – E estão presos. – Entrevistar. – Ah! Não! – murmu– Vou falar com o ramos – De novo, não! Sobre uma elevação Coronel Ferreira. – Que é que vocês – Quem é mesmo o avistamos – “oh! falaram? Coronel Ferreira? grande felicidade!” – – Só queremos voltar – Coronel Raimunpra casa. Tivemos no QG do Ferreira de Souza, dois jipes de Ultima da 4ª RM. E o comandancomandante do 1º RI. Hora. Azulzinhos, te nos deu permissão O suboficial se afaspara voltar para o Rio. tou. Voltou o que nos brilhantes, como Nossa argumentação pareceu muito rápido. se estivessem ali só fez irritar ainda mais – O Coronel Ferreira para nos recepcionar. mandou dizer que vocês o capitão. – Vocês deviam é ser já têm reportagem deE nos salvar. levados para o paredão! mais. Não estão vindo de Fuzilados! – deteve-se por algum tempo Juiz de Fora? Pois é. Podem ir embora. e concluiu – A divisa com o Estado do Foi o que fizemos. Mais tarde saberíRio está fechada. Não passa ninguém! amos que o Coronel Ferreira deteve-se Depois que o furibundo capitão foi com o Regimento Sampaio em Serraria embora, perguntei ao motorista como esdepois de uma conversa telefônica com távamos de gasolina. Com todos os poso Marechal Odylio Denys. Comprometos de combustível interditados, a situateu-se com o Marechal – “por amizade” – ção para nós era ainda mais complicada: a não enfrentar as tropas de Minas. Era a – Temos gasolina para chegar ao Rio? última das adesões decisivas. Pois Denys – Que nada! – informou o motorista – sabia que o Sampaio era algumas vezes Estamos com bem menos de meio tanque. mais poderoso que seu regimento-irmão, Mera se desesperou: o Tiradentes. – Vou me virar e voltar sozinho. Então, já bem perto de Três Rios, o – Como? motorista avisou: Ele saiu para conversar com uns mora– A gasosa vai pifar! dores do local, atraídos à beira da estrada Com o jipe em marcha reduzida para pela movimentação militar. Voltou com economizar combustível ao máximo, a novidade: chegamos onde a estrada se bifurca para – Vou alugar um cavalo. E voltar pro Rio. Três Rios. Sobre uma elevação avistamos Sou bom cavaleiro... Não vou ficar esperan– “oh! grande felicidade!” – dois jipes de do pra levar um tiro. Esse negócio de pareÚltima Hora. Azulzinhos, brilhantes, dão pode ser sério e acabam me matando. como se estivessem ali para nos recepciOu me levando preso pra outro lugar. onar. E nos salvar. Em um dos jipes estaFoi o que Mera fez. Antes, porém, conva Iram Frejat. No outro, Henrique Cavenci-o a deixar os filmes operados comigo. ban. Contamos rapidamente o que nos – Chego no jornal na frente de você, acontecera. Falamos da reportagem que garanto. tínhamos para escrever. Mostramos os Ele não discutiu. Me deu um punhado rolos de filme operados. Caban nos cedeu de rolos de filmes. Eu e o motorista seno carro que estava com ele: o jipe 10 detamos à beira da estrada. Passavam mais vidamente abastecido. Rumamos rápido tropas em caminhões GMC. para o Rio. Chegamos à Redação por volta – Vocês vão ter que tirar esse terno, paide duas da tarde. Fomos a uma máquina sano! – gritou um soldado embarcado. de escrever e começamos a datilografar Só então reparei que estava de paletó... tudo o que tínhamos. Só paramos para coe gravata! Começava a chover fino. Fui me mentar com Moacyr Werneck: proteger por trás de uma barraca de cam– Essa manchete, greve geral, é contra panha. Cerca das oito da manhã, outro tequem? nente dirigiu-se a nós: Aquela era a manchete do dia 1º de – Vamos abrir a cancela – informou abril em UH: “Greve geral!”. Corpo 144 quase amistosamente – Vocês todos acanampliado em oito colunas. tonados aqui têm dez minutos para atraEnquanto escrevíamos a reportagem de
Juiz de Fora, ouvíamos através da porta enfrente da Estação Lauro Muller, vimos treaberta do gabinete de Moacyr Werneck, bandos passarem empunhando porretes e que alguém esbravejava pela televisão: armas que exibiam pelas janelas dos carros. – É Lacerda – reconheci a voz. Os bandos se dirigiam sem dúvida para a Quando terminei de datilografar a resede de UH. E a quebrariam toda. Por denportagem, disse a Moacyr: tro e o que puderam por fora. Telefones, má– Tá pronta. Entrego a quem? quinas de escrever e mesas foram estraçaMoacyr já vestia o paletó: lhados minuciosamente. Só não entraram – Deixa por aí. E cai fora! Samuel vai nas oficinas à direita e à esquerda do Dese asilar na Embaixada do Chile. Telefopartamento do Pessoal. Não entraram por nou pra todo mundo abandonar a Redadesconhecimento da importância desses ção porque Lacerda está arregimentando setores. Ou porque grossas barras de ferro gente pra vir empastelar e incendiar o jorgradeavam suas entradas. nal Quem ficar por aqui pode morrer! UH carioca voltou a circular no dia 3 de – E Jango? E o dispositivo do General abril. A edição paulista só conseguiria volAssis Brasil, chefe da Casa Militar? E o tar às bancas 21 dias depois do golpe. Sua General Moraes Âncora, comandante do Redação esteve virtualmente abandona1ºExército? E o General Jair Dantas Rida, embora sem ter sido invadida e deprebeiro, ministro da Guerra? dada. A proteção oferecida pelo General Desfiei aquela tropa de generais que apoiAmaury Kruell, comandante do 2º Exérciavam Jango para um Moacyr Werneck imto, à sede do Vale do Anhangabaú funciopaciente e até bestificado com minha innou como presença ainda mais ameaçadogênua insistência. ra. Kruell prometera a Samuel Wainer pro– Entregaram os pontos! Todos! teger a integridade da UH paulista e manIa perguntar ainda pelos esquadrões dou postar soldados da PE à porta do jorda FAB e pelos fuzileiros da Marinha, final. Custou para os funcionários acrediéis a Jango no Rio. tarem que não seriam Moacyr já havia sumiSamuel vai se asilar na presos quando voltasdo escada abaixo. a trabalhar. E quanEmbaixada do Chile. sem Na verdade, àquela do voltaram, foi aqueTelefonou pra todo hora Jango já deixara o le marasmo desfiguPalácio das Laranjeiras. rante da combatividamundo abandonar Estava voando para de e autenticidade do a Redação porque Brasília. Onde o Senajornal. Samuel, tão logo dor Áureo Moura Anpôde, começou a tranLacerda está drade, Presidente do a venda da arregimentando gente sacionar Congresso Nacional, só UH de São Paulo para o pra vir empastelar e esperou que Jango enGrupo Frias da Folha de trasse de novo no avião S. Paulo. Em 1965, feincendiar o jornal com destino a Porto chou o arrendamento Quem ficar por aqui Alegre para declarar a do título com Octavio vacância da Presidência Frias. Em breve a edipode morrer! da República. Em Porto ção paulista seria defiAlegre, Jango seria garantido pelo General nitivamente extinta. Ladário Teles, comandante do 3º ExérciEm Pernambuco, com a Redação transto. Mas o Presidente se consideraria deposformada em ruínas e o Chefe da Redação to e não resistiria. “Porque não era de luMilton Coelho da Graça preso depois de tar”. Dizem que quando soube que os EUA agressões e torturas, a UH de Recife simhaviam reconhecido o Deputado Ranieri plesmente acabou. O empastelamento Mazilli – Presidente da Câmara Federal foi um troféu exibido aos camaradas empossado às pressas no Planalto – como pelo General Justino Alves Bastos, cochefe do novo governo brasileiro, Jango mandante do IV Exército. viu que nada mais havia a fazer. Brizola No Rio, com a Redação também destroainda insistiu. Mas Jango achou por bem çada, improvisaram-se lugares para se escontinuar fugindo. Iria para o Uruguai. Em crever no terceiro andar, onde funcionaterras de além-fronteiras tinha estância e va a administração. Nosso relato sobre o pasto verde para suas ovelhas. Além de paz que testemunhamos em Juiz de Fora saiu e garantias para sua mulher e filhos. na página 3 da edição do dia 3. Título: “ReVia das dúvidas, enquanto Moacyr supórter de UH nas primeiras trincheiras da mia da Redação, abri uma gaveta segura da revolução”, isso em três colunas, uma foto Chefia de Reportagens e botei lá meu texto de soldados por trás de sacos de areia e uma e os filmes operados por Mera. Desci as esmetralhadora de tripé ponto 50. Manchecadas. Vi o jipe 10 parado na rua. Depois o te que Miranda Jordão, editando a priveria de novo transformado em ferros meira página, mostrou a todos como a calcinados pelos incendiários que saqueespera de aprovação ou desculpa: aram também a garagem levando até ba– Acabou o comunismo! terias dos carros desprotegidos. Era claro que a manchete estava carreCaminhando rápido em direção à Pragada de ironia, ao mesmo tempo em que ça da Bandeira, alcançamos o repórter sinbuscava ir ao encontro das pretensões dos dical Nilson Azevedo que havia saído da novos donos do poder. Redação um pouco antes. Ele informou ofegante que havia instruções do SindicaJOSÉ ALVES PINHEIRO JUNIOR é jornalista, conselheiro da ABI e membro da Comissão de Ética do Sindicato to dos Jornalistas: todos deviam se reunir dos Jornalistas Profissionais do RJ. Este texto foi na ABI. Chegamos à Praça da Bandeira. extraído do livro A Última Hora (Como Ela Era), de Éramos um grupo de cinco ou seis. Em Pinheiro Junior (Editora Mauad X).
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Conspiração de papel Entre 1953 e 1964, diversos jornais e revistas hoje pouco lembrados conspiraram abertamente e de modo alarmista contra a ameaça comunista que seria falsamente personificada pelo Presidente João Goulart. P OR G ONÇALO J ÚNIOR
Não demorou para que boa parte da chamada grande imprensa brasileira – formada por jornais e revistas de projeção nacional – fosse responsabilizada historicamente pelo importante papel que desempenhou como fomentadora do golpe militar de 1964. Raras foram as publicações que se mantiveram a favor da legalidade, como o diário Última Hora, de Samuel Wainer (1910-1980). As chamadas Marchas da Família com Deus e pela Propriedade, realizadas nas maiores cidades do País em 22 de março daquele ano, e que levaram a classe média conservadora, empresários e a Igreja a pedir a intervenção militar, foram estimuladas por manchetes estampadas com alarmismo nas capas e primeiras páginas. Diziam elas que o Brasil estava muito próximo de cair nas mãos dos comunistas. A imprensa, na verdade, foi um instrumento ideológico na preparação e na instalação das ditaduras militares latino-americanas, resultado da crise de desestabilização política que os Estados Unidos, aliados a forças locais, promoveram em quase todo o continente, após a Revolução Cubana de 1959. Distorcia-se tudo: as políticas do governo, pregava-se abertamente o golpe militar nos seus editorais, apelava-se para a mobilização das famílias contra a ameaça fantasma do socialismo. O que parece condenado ao limbo da história, porém, foi o papel de uma série de veículos hoje considerados obscuros ou mesmo esquecidos, mas que foram importantes no processo, criados especificamente para conspirar de modo aberto para levar o pânico ante uma ameaça comunista que seus editores e patrocinadores acreditavam ser próxima e real. Títulos como as revistas Ação Democrática e Edição Extra, além das multinacionais norte-americanas Seleções do Reader ’s Digest e Américas, criavam uma situação que beirava o desespero, com um jornalismo alarmista e panfletário ao extremo. Suas reportagens forjadas e artigos tendenciosos se amparavam na idéia de que a democracia estava em perigo e só uma “revolução” por meio de um golpe militar poderia manter o País em um regime de liberdade e progresso, em que a religião oficial, o catolicismo, estaria protegido e, conseqüentemente, as instituições da família e da propriedade – leia-se os latifúndios rurais, muitas vezes improdutivos. Com tiragens que chegavam a 500 mil exemplares, como era o caso de Seleções 18
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(veja texto na página 23), esses veículos não podiam se queixar da falta de recursos, vindos principalmente da publicidade de grandes companhias norte-americanas multinacionais como General Eletric, Firestone, Ford e muitas outras. Assim, atingiam o público certo e, embora isso ainda não tenha sido devidamente estudado, sem esses veículos certamente não teria sido possível a criação do clima de desestabilização política pelo terror, indispensável para aparentemente legitimar a intervenção dos militares. Na verdade, essa preocupação americana com o comunismo e o uso da mídia para
combatê-lo datava dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Seleções, por exemplo, chegou ao País em 1942. Nesse mesmo ano, foi criada nos Estados Unidos A Voz da América, um engenhoso sistema de propagação dos ideais americanos tão ousado que, a partir de 17 de fevereiro de 1947, deu início em suas transmissões para a União Soviética – a idéia era atingir opositores do regime stalinista e incentiválos a se tornarem espiões. Antes disso, seu propósito inicial foi transmitir notícias e propaganda política para países da Europa e Norte da África, todos sob ocupação militar da Alemanha Nazista. Para isso, utilizava transmissores de ondas curtas das potentes rádios comerciais CBS e NBC. Durante o período da Guerra Fria, de 1945 a 1991, A Voz da América esteve sob controle da Agência de Informação dos Estados UnidosCIA, praticamente como uma arma de guerra. A partir de 1951, o serviço estendeu seus tentáculos para os impressos e começou a distribuir pelas capitais de todo Brasil, através de embaixadas e consulados, uma revista com a programação mensal, enviada pelos Correios. Impresso em papel especial, o boletim Voz da América revelaria, com sua coleção, um interessante roteiro histórico das atividades americanas contra o comunismo em todo o mundo. Era o que os soviéticos chamaram de expansão ideológica, principalmente na América Latina. Assim como A Voz da América, outra revista, Américas, tinha um estilo sutil de propaganda ideológica capitalista. Ao invés de publicar matérias sobre os malefícios do regime comunista soviético, procurava valorizar a grandiosidade cultural, social, econômica e política dos Estados Unidos. O país era retratado como a terra da liberdade, das oportunidades e, principalmente, uma nação irmã dos seus vizinhos americanos. Ou seja, tinha o propósito maior de promover a integração no continente. A revista foi lançada no Brasil em 1949, com o selo da Organização dos Estados Americanos-OEA. A versão brasileira tinha como editor-chefe Gerônimo Jardim e o resto da equipe aparecia envolta de mistérios. O endereço da Redação, por exemplo, era uma caixa postal no Rio de Janeiro, apenas. O direcionamento para os Estados Unidos se via na edição de julho de 1965, com a reportagem “Washington se renova”, escrita por Wolf Von Eckardt. Na foto principal, o gigantesco prédio do Pentágono, em uma visão aérea.
Falta de controle institucional
A partir de 1961, em especial, com a crise que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros, em agosto, e o empenho para impedir a posse do Vice-Presidente João Goulart – um latifundiário e grande criador de gado, mas apontado falsamente como comunista –, esses veículos começaram a receber generosos aportes de grandes empresários brasileiros e executivos de empresas americanas para ampliar suas tiragens e alcance. Precisavam formar a idéia primordial de impor a ordem em uma situação que a imprensa propagava como falta de controle institucional do governo, incapaz de por ordem frente a uma situação supostamente pré-revolucionaria. Desde o governo Juscelino Kubistchek, entre 1955 e 1960, segmentos conservadores perceberam a necessidade de uma contra-propaganda por causa da ameaça comunista. A revolução cubana redimensionou o pânico que existia. Não por acaso foi lançada nesse ano a revista Ação Democrática, identificada como “Boletim Mensal do Instituto Brasileiro de Ação Democrática-Ibad”. Seu slogan era “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. E o que era o Ibad? Desde o primeiro momento como Presidente da República, Goulart demonstrou “contrariar interesses das classes dominantes” com propostas de mudanças em favor dos trabalhadores urbanos e rurais – ampliação de direitos trabalhistas e reforma agrária. Antes da posse de Jânio Quadros, em janeiro de 1961, um acontecimento mostrou que estava em marcha um movimento pela moralidade política, social e religiosa, dentro de um contexto de Guerra Fria, contra a expansão do comunismo pelo mundo. Foi criada em 26 de outubro de 1960 a Sociedade Brasileira de Tradição, Família e Propriedade, que ficaria mais conhecida pela sigla TFP. Seu fundador, o advogado Plínio Correa de Oliveira (1908-1995), vinha de uma família tradicional de fazendeiros de Pernambuco e era um jurista de prestígio nos meios acadêmicos de São Paulo, estado onde nasceu. De fundamentação católica radical, a TFP se lançou na luta contra o comunismo com foco na juventude, considerada mais vulnerável e influenciável. Por todo o País, a entidade passou a organizar cursos gratuitos de formação doutrinária, ministrados por professores universitários, jornalistas e intelectuais simpatizantes da causa. Para Oliveira, o comunismo tinha uma concepção materialista destrutiva do es-
pírito e pela supressão da livre iniciativa na ordem econômica, da propriedade privada e da tradição familiar cristã. Em 1961, a organização ganhou um importante aliado, com a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais-IPES, formado pela nata do empresariado. Esta se definia como uma agremiação apartidária, “com objetivos essencialmente educacionais, e voltada para os estudos dos problemas brasileiros”. Na sede do IPES, que ocupava treze salas do edifício Avenida Central, no Rio de Janeiro, reuniamse diariamente grandes empresários e militares do Grupo de Levantamento e Conjuntura-GLC, um dos setores do IPES destinado a acompanhar os acontecimentos políticos, levantar informações e fixar diretrizes de ação. O GLC era então liderado pelo General Golbery do Couto e Silva (1911-1987), que se revelaria o principal estrategista da organização e futuro cérebro da ditadura iniciada a partir de 1964. A entidade chegou a ter, às vésperas do golpe, cerca de 400 mil associados em todo o Brasil. Com características semelhantes, foi criado na mesma época o Ibad, diretamente
ligado ao IPES, que viria a formar com a TFP uma frente articulada contra a suposta implantação do comunismo no governo brasileiro. O movimento conspiratório que se seguiu resultaria nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, que antecederam e sucederam o golpe militar deflagrado em 31 de março. O papel da imprensa conservadora e dirigida foi fundamental nessa mobilização. Das mulheres também. Elas, que até então tinham sido mantidas restritas ao espaço privado do lar, passaram a ser vistas como um novo elemento político, capaz de avalizar uma possível intervenção armada. Estatuto da Mulher Casada
Para se ter uma idéia do quanto as mulheres eram reprimidas, somente em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, elas puderam trabalhar sem autorização do pai ou do marido. Ao mesmo tempo em que patrocinava uma ampla campanha desgastante do governo, o movimento liderado pelo IPES/Ibad apelou para que os homens das classes dirigente e média incitassem suas mulheres a se posicionar como mães e figuras santificadas
em defesa de seus lares e de seus filhos, contra o “comunismo ateu” e na defesa da instituição “família”. Impresso em papel de alta qualidade, nas cores preta, verde e amarela e com 20 páginas, em média, a revista Ação Democrática era editada por Gladstone Chaves de Melo, auxiliado por Denio Nogueira (Redator Econômico) e Vicente Barreto (Secretário). Gustavo Corção (1896-1978) era o consultor de Redação. Escritor e pensador católico brasileiro, Corção era autor de diversos livros sobre política e conduta, além de um romance. Na época, era membro da União Democrática Nacional-UDN e um expoente do pensamento conservador no Brasil. Ivan Hasslocher, Presidente do Ibad, assinava como diretor responsável da publicação. A maioria dos textos não era assinada. Alguns artigos traziam os nomes de Jacques Maritain, Guido Gonella, J.Fernando Garneiro e José Carlos Barbosa Moreira, entre outros. A revista tinha correspondentes em todo Brasil. Uma de suas principais seções era Ronda dos Jornais, com trechos de reportagens da grande imprensa que seus redatores achavam importante destacar.
O boletim do Ibad tinha um esquema de distribuição diferenciado, dirigido a todos aqueles que consideravam sua causa justa. O envio era feito para todo País por meio dos Correios e jamais foi vendido em bancas de jornal. Em cada edição, vinha uma ficha para que o assinante indicasse uma pessoa que pensasse como ele a respeito da ameaça do comunismo e estivesse disposto a se posicionar contra essa “ameaça”. Embora anunciasse no expediente que cada exemplar custava Cr$15, não havia informação de custos de assinatura ou compra em separado. De acordo com a ficha de inscrição, bastava enviar o endereço e o exemplar seguiria sem custos. Em um momento dos mais curiosos, em sua edição de agosto de 1961, mesmo mês de renúncia do Presidente Jânio Quadros, a revista criticou a americana Times que, em sua edição do mês anterior, afirmou em reportagem que Jânio pretendia se tornar ditador – teoria hoje mais aceita, ele teria renunciado para tentar voltar com poderes absolutistas. “O impossível acontece: Time abraça os comunistas. Os comunistas abraçam a Times”. Segundo Ação Democrática, a publicação ame-
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE CONSPIRAÇÃO DE PAPEL
ricana teria “deturpado” palavras e fatos e provocado “desprestígio” para o Brasil e seu Presidente em todo o mundo. No artigo “Os cristãos e o comunismo”, publicado na edição de agosto de 1961, um retrato da postura política da revista: “Os redatores desta revista vêm, ultimamente, discutindo com certa freqüência a atitude dos cristãos em face do comunismo. Têm sido procurados ora por pessoas que se mostram inquietas com os progressos do esquerdismo nos meios religiosos, ora por jovens cristãos que declaram não entender nossa posição de combate ao totalitarismo comunista e de apoio à empresa privada, em nome da dignidade humana. Procuraremos mostrar neste artigo qual é de fato a atitude dos que crêem em Deus e dos cristãos diante da revolução totalitária”, disse o autor anônimo. Muitas vezes, prosseguiu ele, “o esquerdismo é uma forma de ódio ao estrangeiro, ao americano, que tem por fonte um recalque psicológico, um trauma de infância mal cicatrizado. Esses tais mal conseguem disfarçar no rosto o estigma de uma triste inferiorização de ordem psíquica que lhes aflora a consciência sob o disfarce cativante de amor à pátria e zelo pela justiça”. Comunista fichado
Folheando a coleção da revista Ação Democrática, fica claro que o alarmismo contra a ameaça comunista já era intensa em 1961. E que o Governador da Guanabara era um dos principais nomes que fomentavam a polêmica. Na edição de novembro daquele ano, a manchete de capa alardeava: “Na luta pela democracia, Lacerda não está só – Chefe do Estado Maior e Arcebispo de Porto Alegre também denunciam perigo comunista.” O Deputado Gladstone Chaves de Mello, secretário geral do Partido Democrata Cristão, afirmou: “Estamos convencidos de que a Encíclica (do Papa João XXIII) inaugura uma atitude simpatizante da Igreja com o socialismo. A grande sedução que os sistemas socialistas exercem sobre povos em via de desenvolvimento é a de se apresentarem como sistemas de produção mais eficientes e de distribuição mais justa”. Na mesma edição, a revista escandalizava: “Denúncia gravíssima e silêncio do governo – comunista fichado, confesso e categorizado em cargo da estrita confiança do Sr. João Goulart”. O personagem, no caso, era o secretário particular do Presidente, Raul Ryff. Uma curiosidade que aparecia na página 2 de todas as edições era a lista das 34 emissoras de rádio que retransmitiam o programa radiofônico A Semana em Revista, produzido e patrocinado pelo Ibad, o que mostrava um alcance bem maior que a revista. Como dizia seu slogan, a atração trazia no mesmo tom “comentários e análises sobre o que acontece no Brasil e no mundo”. O programa trazia curiosidades como a seção “Você sabia que...”, reproduzida na edição impressa. Em um dos informes, ouvia: “Você sabia que enquanto as nações democráticas, a partir da última guerra, tiveram a preocupação constante de libertar as nações até então sob 20
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seu controle, os comunistas – que tanto gostam de falar em imperialismo – mantêm sob seu tacão mais de 100 milhões de seres humanos, exatamente a partir do final daquela guerra?” Monitorando a influência comunista
Com seu formato mais comedido nos meses que se seguiram a seu lançamento, a revista Edição Extra se dedicou a monitorar a influência comunista no País, principalmente entre políticos importantes. Tinha o mesmo formato das semanais Manchete e O Cruzeiro, e pertencia a um grupo de políticos e jornalistas ligados ao então Governador Adhemar de Barros (1901-1969). Oficialmente, era publicada em São Paulo e pertencia à Companhia Editora Mundial, cujo diretor-presidente era Maurício Loureiro Gama e, vice, José Carlos de Moraes. Sua Redação ficava na Rua Avanhandava, 234, Vila Madalena. Na edição de 28 de julho de 1962, por exemplo, publicou uma entrevista com o Governador pernambucano Miguel Arraes, com destaque na capa – “Arraes e o Comunismo” –, em que ele afirmava, de modo convicto, não ter qualquer envolvimento com as idéias pregadas por Moscou. Com a proximidade do golpe, a publicação começou a se assumir inteiramente anticomunista e passou a ter um papel de destaque na consolidação do que chamava de “revolução democrática”. Em 15 de fevereiro, na reportagem “Greves param o Brasil”, a revista curiosamente defende esse instrumento de reivindicação com o propósito de ressaltar que o mesmo não existe em um regime comunista: “Em uma ditadura de qualquer cor, de qualquer tipo, de qualquer doutrina, greves não seriam permitidas. Porque greve é um direito exclusivo dos povos que vivem em regime de liberdade. A democracia reconhece e defende o direito de greve. Nem todas as greves, porém, são justas”, ressaltou Jairo Pinto de Araújo. A revista dedicou um número inteiro às comemorações pelo novo governo imposto à força. Na capa, um trocadilho sobre o tal plano comunista para tomar o País: “Depois da fortaleza vermelha, só mesmo um CASTELLO BRANCO”. Em destaque, não a foto do novo Presidente, mas do Governador de São Paulo Adhemar de Barros, um dos líderes civis do golpe e que entraria para a história política nacional por causa da expressão “rouba, mas faz”. No editorial, Edição Extra ressaltava o valor histórico das páginas a seguir. “Este documento pertence à história. Não é ele apenas o pronunciamento de um dos seus mais autênticos líderes, mas a palavra decisiva de São Paulo, através do seu governador. ‘Começamos a sentir a comunização do povo. Começamos a perceber por informes recebidos dos serviços secretos, a extensão da trama, da conspiração para um golpe de Estado, visando à instauração da República Socialista e Sindicalista entre nós’”. Liberalismo astuto e suicida
Em sua coluna de 9 de maio, Maurício Loureiro Gama defendeu a repressão maior aos inimigos, porque uma verdadeira revolução não brincava em serviço: “Al-
guns dos líderes mais notórios, na área política, foram afastados e arquivados através da cassação dos direitos políticos até 1974. Mas isso, apenas, não basta. A infiltração ideológica foi terrível e abran-
geu todos os setores da vida nacional. A imprensa. O rádio. A televisão. O cinema. A universidade. As escolas de todos os graus, inclusive a escola primária. A igreja.” Em seguida, Gama alertou que os Generais precisavam ampliar sua ação repressora com mão de ferro contra os oposicionistas do regime – embora não se soubesse exatamente quem eram eles. “Se o governo da República contemporizar, se o governo recuar para um liberalismo astuto e suicida, os totalitários da esquerda logo mais estarão criando condições para o retorno”. Para ele, era preciso considerar que o Exército não tinha saído dos quartéis “para uma revoluçãozinha epidérmica ou para brincar de revolução”. O primeiro número da Edição Extra a sair depois do golpe militar chegou às bancas no dia 11 de abril. Na capa, uma foto aérea da marcha da vitória, passeata realizada seis dias antes, no centro de São Paulo, com uma bandeira do Brasil e uma cruz vermelha no canto esquerdo. O título soaria irônico com o tempo: “32 motivos para dizer não ao totalitarismo”. Os editores da revista, claro, subestimaram as ambições dos militares que, desde o levante do Forte de Copacabana, em 1922, sonhavam em tomar para si o poder no Brasil. O editorial era curto e margeava outra imagem da festa da vitória. “Verde e amarelo, sem a foice e o martelo: Do ‘Show’ vermelho ou avermelhado da Central, que custou cerca de 300 milhões, à mobilização autêntica do povo – Resposta dos democratas ao soviete que intentou proclamar a República Sindicalista”. Em 5 de maio, mais de um mês depois, a revista anunciava um novo tempo, com a matéria de capa “O Brasil passado a limpo”. Com Castello Branco já empossado, a reportagem afirmava que a caça às bruxas continuava na ordem do dia dos revolucionários e sem prazo para acabar. Abaixo da foto do Presidente, que governaria o País por um longo tempo, uma imagem emblemática de oito oficiais de alta patente fardados e de quepe. No roteiro da posse, dentro da revista, Castello aparecia ao lado do ex-Governador mineiro Magalhães Pinto (1909-1996), um dos líderes civis que ajudaram a derrubar Jango. Na contracapa, uma linda foto de Maria Tereza Goulart trazia um texto que procurava ridicularizá-la: “A Bela Exilada”. Ação Democrática, Edição Extra e Seleções, em especial as duas primeiras, sumiram no limbo da história. Mas os poucos exemplares restantes publicados entre 1961 e 1964 mostram que elas se tornaram porta-vozes nos bastidores dos projetos de ruptura da democracia e de apelo aos militares para que, por meio de uma intervenção, derrubassem o Presidente a qualquer preço, mesmo com o vermelho do sangue sobre as calçadas. Elas saudaram o golpe como a salvação da democracia, pronunciaram-se abertamente a favor da instauração da ditadura e apoiaram a repressão como se fizesse parte desse esquema de suposta libertação. Podiam estar bem intencionadas, mas jogaram o País em uma ditadura na expressão completa do termo. Um equívoco que durou 21 anos.
HISTÓRIA
Periquitos na capa da edição de novembro de 1964, que veio com um caderno especial sobre o golpe: ‘o povo brasileiro disse: Não!’
A revista que queria ‘salvar’ o mundo Em circulação há 92 anos, Seleções se transformou, a partir da década de 1940, em uma bandeira de combate ao comunismo em todo o mundo, durante a guerra fria, financiada por empresários e pela Fundação Rockfeller. P OR G ONÇALO J ÚNIOR
Em novembro de 1964, sete meses depois do golpe militar que derrubou o Presidente João Goulart, a edição brasileira da revista americana Seleções do Reader’s Digest publicou um longo artigo dirigido a seus mais de 500 mil assinantes – quando o Brasil tinha apenas 80 milhões de habitantes – com um balanço sobre a crise política em que mergulhou o País nos quatro primeiros meses daquele ano. Intitulado “A nação que se salvou a si mesma”, com o complemento “A rendição total parecia iminente... e então o povo brasileiro disse: Não!”, o texto foi escrito pelo jornalista americano Clarence W. Hall e também publicado em todo o mundo, nas mais de 20 edições internacionais da revista. A reportagem pretendia reafirmar que o maior país da América Latina fora salvo do comunismo por um triz. E defender que, de fato, o acontecimento que levou à queda do Presidente civil foi mesmo uma “revolução democrática”, com a participação de vários setores da sociedade brasileira. Leia-se as classes dominantes conservadoras do País. O texto fez tanto sucesso nos meios militares que, para comemorar um dos aniversários do “movimento”, o 14º, a Editora Biblioteca do Exército o relançou em formato de livro – impresso na gráfi-
ca do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE com uma pequena mudança no título: A Nação que se Salvou a Si Mesma – 31 de Março: 1964-1978. No verso dessa edição, os editores pediam para que, após sua leitura, seu proprietário passasse o texto adiante para que todos soubessem a importância do regime militar: “Por se tratar de documento de significação especial, mas editado em número reduzido, leia-o e faça-o chegar às mãos de outras pessoas”. O artigo de Seleções pode ser considerado o marco fundador nos diversos escritos memorialísticos de militares publicados após a posse do general Humberto de Alencar Castello Branco na presidência do Brasil, em 15 de abril de 1964. O artigo, em especial, pretendia colocar um ponto final na dúvida se de fato o País sofria nova ameaça comunista que levou ao fim do governo Jango, ou tudo não passava de exagero de militares golpistas, alarmados com o “perigo vermelho” a serviço dos interesses americanos e de seu militarismo. Uma simples volta no tempo mostra que essa não foi uma atitude isolada da revista americana. Campanha golpista
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, principalmente, Seleções publicava de um a dois artigos ou reportagens
por edição para denunciar a falta de liberdade dos cidadãos, de religião e do direito à propriedade nos países que se identificavam como comunistas. Seleções tinha um esquema eficiente de ação e, graças principalmente a vários artigos sobre o assunto escritos por americanos, que chegavam aos brasileiros por ela traduzidos e reproduzidos, ajudou a difundir o alarmismo e, mais adiante, a campanha golpista pela queda de Jango. Lançada no Brasil em fevereiro de 1942, a publicação de circulação mensal trabalhou desde o início para se tornar uma das mais influentes revistas e de leitura obrigatória pelos formadores de opinião brasileiros. Considerada a mais influente publicação anti-comunista da história da imprensa mundial, Seleções reunia em suas páginas uma rigorosa escolha de reportagens, matérias jornalísticas e artigos publicados na imprensa americana e européia. Seu projeto editorial funcionava como uma espécie de “revista das revistas”, com resumos cuidadosamente preparados e direcionados à conveniência de sua linha editorial, especializada na propaganda anti-comunista, justificada pela preocupação em preservar o “modo de vida americano”. Seu público alvo era principalmente a família, com foco na preocupação sobre a formação moral da “juventude”,
como tanto se dizia. “Tinha-se pouca ou nenhuma autonomia em relação ao Digest americano, para se produzir as matérias nacionais”, lembrou em entrevista ao jornal Gazeta Mercantil, em 2002, o escritor e jornalista Ruy Castro, que trabalhou na Seleções entre 1972 e 1974. Segundo ele, “o trabalho consistia em selecionar o que fosse aproveitável da edição americana e combinar esse material com o que nos era oferecido pelas outras 16 edições internacionais da Digest (francesa, japonesa, de língua espanhola, a chinesa de Taiwan etc.)”, explicou o ex-editor. A história do impressionante sucesso da Digest contada pela própria revista de forma heróica e com doses de romantismo é fundamental para ilustrar o clima histérico de ameaça comunista que começou a se propagar nos Estados Unidos a partir da década de 1920, após a revolução bolchevique da Rússia de 1917. Tudo começou em 1921, com um rapaz chamado DeWitt Wallace. Após cursar o Colégio Macalester, da cidade de Saint Paul, estado de Minesota, do qual seu pai era presidente, Wallace concluiu o curso de Educação na Universidade da Califórnia. Suas ocupações seguintes foram se dedicar à publicidade em uma editora e servir no Corpo Expedicionário Americano, na França, durante a Grande Guerra Mundial, entre 1914 e 1918. Desde os tempos em que trabalhou com propaganda, o astuto Wallace vinha desenvolvendo um projeto que estava lhe “consumindo os ócios e monopolizando o interesse”. No primeiro ano da década de 1920, ele decidiu que chegara o momento de publicar um novo tipo de revista, atraente e com baixíssimo custo de produção. Uma idéia original e promissora. “Wallace dispunha da sua idéia, da sua capacidade, e um pouco mais”, relembrou um empolgado redator de Seleções, ao romancear sua história. Suas economias mal passavam de mil dólares o que, para a época, não era uma quantia tão desprezível, mas insuficiente para estruturar uma revista. Galinha dos ovos de ouro
Em seu projeto ele defendeu a força da idéia: “Proporcionar às urgentes necessidades do grande público um serviço de leitura como ainda não existia”. Uma argumentação nada objetiva. Mas o raciocínio de Wallace era oportunista. As inúmeras editoras americanas lançavam todos os meses uma esmagadora quantidade de revistas, livros e publicações para o grande público. “Ora, DeWitt Wallace acreditava que as pessoas muito ocupadas, mas ávidas de saber, reservariam bom acolhimento a um serviço de escolha de leituras que pusesse à disposição delas o melhor, mais útil e agradável de quanto fosse aparecendo impresso, e que, sem o veículo dum tal serviço, ficaria talvez fora do seu alcance”, observou o historiador de Seleções. Na prática, seu plano era reunir grandes e importantes textos de cada mês já publicados em uma só revista no mês seguinte. O jovem editor descobrira a galinha dos ovos de ouro – uma fórmula de ganhar muito dinheiro gastando o mínimo possível.
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HISTÓRIA A REVISTA QUE QUERIA ‘SALVAR’ O MUNDO
Aos poucos, ele foi formatando melhor a publicação que queria lançar. Seu projeto pretendia reunir em uma única revista os melhores e mais conceituados jornalistas e articulistas da imprensa americana a um custo próximo de zero. Ao editor restava apenas um pouco de trabalho, pois, às vezes, seria preciso fazer condensação de um ou outro texto, de modo a adequá-lo. Esse trabalho aparentemente simples e sem qualquer compromisso se revelaria, no futuro, a principal arma da revista para atingir seus fins políticos. Em muitos casos, essas condensações levavam seus redatores a escolher e direcionar somente o que era conveniente aos interesses morais e ideológicos de Seleções, embora ninguém reclamasse porque ser escolhido por ele era um prêmio, a oportunidade de ser lido por milhões de pessoas em todo o mundo Se não mudavam o conteúdo do artigo, não raro, os redatores realçavam algumas idéias convenientes. Essas condensações “necessárias” foram justificadas por DeWitt Wallace em várias oportunidades. Ele explicou que “a leitura mais excelente redunda com freqüência em tarefa, devido ao peso morto dos excessos verbais”. E completou afirmando ter feito “várias experiências no sentido de aligeirar certos artigos, sem lhes sacrificar nem a tese nem o sabor, e descobrira assim que, longe de danificálos com essa poda de palavras inúteis, os melhorara consideravelmente”. Na verdade, não raro, Seleções realmente selecionava fragmentos de textos que mais lhe eram convenientes, dando-lhes até entonação alarmista. Do seu entusiasmo pela idéia de fazer uma revista “digestiva” participava Lila Bell Acheson, sua amiga desde os tempos de colégio e sua futura esposa. Os dois se conheceram na casa da própria Lila, onde Wallace fora passar umas férias de Natal na companhia do colega BarclayAcheson, irmão de Lila – e que depois ocuparia o cargo de redator-viajante do Reader’s Digest. Lila fora formada na Universidade do Oregon. Após a guerra, dedicara-se às obras de assistência social. Com o projeto na cabeça e uma caneta na mão, Wallace redigiu uma carta circular a seus supostos futuros leitores, datada de 9 de julho de 1921, na qual expunha os propósitos da revista que pretendia fundar em alguns meses. Além de descrever como seria a publicação, pedia a confiança do público, convidando-o a fazer uma “assinatura de fundador”. O esquema imaginado era simples. O assinante apenas confirmava seu interesse em receber o primeiro número da revista e não precisava fazer qualquer pagamento prévio ou assumir o compromisso de fazê-lo. Ao receber o exemplar, se não ficasse satisfeito, o assinante poderia desistir da assinatura e rasgar a conta, sem ficar devendo um único centavo. Caso contrário, se achasse a revista de seu interesse, o leitor deveria pagar pela assinatura. Para os editores de Seleções, esse momento decisivo foi marcado pela “romântica” decisão de Wallace e Lila. “Mal tinha caído na caixa do Correio a última 24
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rido o segundo ano, duplicara uma vez mais, e assim continuou “milagrosamente”, durante oito anos seguidos, “dispondo apenas de recursos modestos para o fomento das vendas’. Um dos segredos para o sucesso da revista estava no preço. Ao mesmo tempo em que conseguiu excelente padrão gráfico para a época – impressa em papel de alta qualidade, capa colorida e mais de 200 páginas por edição –, Seleções chegava ao leitor por um valor bem abaixo das demais revistas de variedades. Isso foi possível, principalmente, por causa das constantes injeções de subsídios e anúncios feitas por fundações e empresas que já nos primeiros anos se identificaram com a explícita posição anti-comunista da publicação dos Wallace. No final de 1922, o casal transferiu a sede da revista para uma povoação rural, a cerca de 40 quilômetros do centro de Nova York. No local, passou a funcionar uma espécie de pequena cidade da Seleções, onde os dois construíram moradias e escritórios numa pequena vivenda de pedra, situada entre deliciosos pinheirais no pé de uma colina. As instalações e o pessoal foram crescendo à medida que The Reader’s Digest se expandiu por vários países. Logo a editora ampliou seus negócios por toda povoação de PleasantVille. “Partindo de uma origem modesta, sem auxílio de estranhos, de bancos, sociedades, ou departamentos do governo, The Reader’s Digest é o exemplo claro dos felizes resultados a que pode atingir uma empresa individual e independente, dirigida com iniciativa e originalidade”, disse a revista em uma de suas edições de aniversário, comemorado todos os anos, sempre no mês de janeiro, cada vez mais com versões fantasiosas. A história real, no entanto, não aconteceu exatamente assim, de acordo com a pesquisadora russa Karen Katchaturov. Apoios financeiros
A “ameaça vermelha” nos artigos da Seleções.
circular, deram os dois jovens balanço aos seus recursos, que aos poucos se iam esgotando; encararam a vida a sério... e resolveram se casar”. Ao regressarem da lua de mel esperava-os uma animadora quantidade de cartas-resposta recheadas de um cheque cada uma, como pagamento pela assinatura de Seleções. Em janeiro de 1922, “cheios de esperanças”, a partir do seu apartamento em Nova York, Wallace e Lila embalaram todos os exemplares do primeiro número do Selections of the Reader’s Digest e os remeteram a cinco mil “assinantes-fundadores”. Praticamente todos aprovaram a revista, devolvendo a confirmação da assinatura. No final do primeiro ano, a circulação havia duplicado a tiragem. Decor-
À medida que se tornava uma publicação cada vez mais conservadora, o apoio financeiro de seus simpatizantes aumentava, em forma de anúncios de grandes empresas. E o negócio cresceu a passos largos no decorrer dos anos de 1930. A produção de Seleções na década de 1940 mobilizava, apenas na sua Redação americana, 61 redatores permanentes. Praticamente todos eles vieram de antigos cargos de diretores-gerentes de revistas conhecidas nacionalmente, jornalistas notáveis e colaboradores especializados de publicações literárias, científicas, religiosas, comerciais e educativas. A preparação do material para um único número exigia 8.235 horas de leitura por mês. Ou seja, mais de 1.029 dias úteis de oito horas. Essa leitura mensal, levada a cabo por um grupo de especialistas, equivalia ao que leria uma só pessoa em três anos de leitura constante. Mais de 92% dos seus 402 empregados da matriz americana viviam, em 1941, nas imediações dos terrenos da empresa. ‘Moderno e gracioso’, o edifício dos escritórios foi construído em 1939, e substituiu a primeira Redação fundada nos anos 1920.
Ficava a cerca de três quilômetros do centro de povoação mais próxima. Nesse momento, a revista alcançou o recorde de ter assinantes em exatos 105 países. Como estratégia de marketing, Wallace e Lila criaram uma série de serviços gratuitos para leitores carentes. Entre eles, o das assinaturas-prêmio, oferecidas todos os anos aos estudantes que mais se destacavam em cada uma das classes graduadas das 29 mil escolas superiores dos Estados Unidos e do Canadá. Mais de 600 mil exemplares eram concedidos com um desconto escolar especial aos professores e alunos das escolas que usavam a revista para fins docentes, o que também era o caso de 400 colégios e universidades conceituados. Todas as grandes multinacionais americanas anunciavam nas edições internacionais de Seleções. Esse apoio permitiu à revista um fenomenal e meteórico crescimento. Antes mesmo do lançamento de uma nova edição em algum país, toda a estratégia de marketing do grupo entrava em ação, garantindo previamente uma boa quantidade de anúncios por até anos seguidos. Todas as fases desse desenvolvimento foram financiadas com os lucros do Digest. Os anúncios publicados em quase todas as edições ajudavam a colocar a revista ao alcance de todos, a preços razoáveis. Segundo dados da própria revista, mais de 1.700 anunciantes figuravam regularmente em suas várias edições multinacionais. “Esses anunciantes empregam milhões de dólares anualmente, porque já verificaram que os leitores inteligentes e progressistas, que encontram idéias novas e estimulantes nos artigos do Digest, são os consumidores mais cobiçados em todo o mundo”, observou um de seus editorialistas. Em carta à revista, um leitor resumiu a importância política de Seleções como formadora de opinião internacional. “Apesar de exprimir-se em muitas línguas, no fundo a revista fala a linguagem universal da dignidade humana, da decência, da esperança e da liberdade”. Para tornar suas edições politicamente mais leves, Seleções mesclava textos científicos, de economia, de comportamento, curiosidades e resumos de um ou dois livros “recomendáveis” por edição. Os leitores de todo o planeta, por exemplo, conheceram as maravilhas da Nova Zelândia ou as propriedades mágicas do silicone, graças a um de seus artigos condensados. Crescimento editorial
Outra arma eficiente de Seleções foi o seu eficaz auto-marketing, em uma época em que a propaganda não tinha a ousadia que a concorrência ia exigir no futuro. Foram comuns, por exemplo, sucessivas autopromoções que ocupavam várias páginas de um único número. Com regularidade, a revista publicou matérias sobre seu crescimento editorial em todo o mundo. Cada nova edição estrangeira merecia matéria de duas ou mais páginas. Ainda nessa estratégia, era comum ouvir a opinião da elite intelectual e política de cada país. O aval dessas autoridades garantia ao público comum que quem detinha o poder era também leitor da publicação.
“A Nação Que Se Salvou a Si Mesma”: Um caderno destacável conta a “história inspiradora de como um povo se rebelou e impediu os comunistas de tomarem conta de seu país”. Em suas 28 páginas, o texto tendencioso elabora uma esquizofrênica teoria baseada na “ameaça comunista” no Brasil. Numa foto na qual aparenta histeria, Amélia Bastos questiona “quem tem mais a perder do que nós mulheres?”. Noutra foto, Castello Branco com semblante lúgubre, é apresentado como “honesto, isento da temeridade tão marcante de muitos governantes latino-americanos.”
Os elogios vinham dos mais altos escalões da política e da cultura locais. “O êxito da edição japonesa atesta o interesse universal pelo Reader’s Digest e o seu valor como veículo de intercâmbio cultural entre as nações”, disse o Primeiro Ministro japonês Shigeru Yoshida. “Quando uma publicação dedicada a informar e esclarecer atinge as proporções internacionais, a sua importância se multiplica tantas vezes quantas forem as línguas em que ela é publicada em todo o mundo”, afirmou o Vice-Presidente brasileiro, João Café Filho. O imortal e conservador Paul Claudel, da Academia Francesa de Letras (irmão da escultora Camille Claudel), chegou a fazer um apelo a seus leitores para que “leiam o Reader’s Digest. O ar da montanha, o ar do campo, perpassa em suas páginas. Com o Digest aprendemos que Deus, como diz a Bíblia, não nos deu mãos para ficarem debaixo dos braços, e que os cristãos não foram feitos para a amargura e o desânimo”. Auto-proclamada anti-comunista, no decorrer da década de 1950 e cada vez mais, Seleções não abriu mão do cuidado no processo de escolha dos textos, geralmente conservadores quanto a valores da família e da tradição e do catolicismo. De forma religiosa, pelo menos três textos em cada edição eram relacionados a críticas contra o comunismo. As edições internacionais de Seleções funcionavam mais ou menos a partir do princípio de que o que era bom para a família americana também o era para as famílias de todas as nações do oriente e do ocidente. Não faltaram, para difusão desses ideais, pesados incentivos financeiros da Fundação Rockefeller, famosa instituição anti-comunista – a mesma que intermediou a vinda de Disney e Orson Welles para o Brasil durante a Segunda Guerra. Seleções passou a ser editada para a América Latina, em espanhol, a partir de dezembro de 1940, batizada de Secciones del Reader’s Digest, com uma tiragem inicial de 150 mil exemplares. Dezoito meses depois, sua tiragem passou dos 400 mil exemplares. Essa circulação era superior a de qualquer outra revista ou magazine da América Latina. Dois anos depois, saiu em português para o Brasil. No quarto de século seguinte, com o crescimento do conflito ideológico entre Estados Unidos e União Soviética, a revista chegou a ter uma tiragem de 1,7 milhão, apenas da sua
edição latino-americana. A edição espanhola de Reader’s foi lançada em dezembro de 1940. Até sair em língua portuguesa, Selecciones foi distribuída regularmente em todo Brasil. Versão brasileira
Como praxe, antes de sair a edição brasileira, o quartel-general da revista enviou uma equipe de pesquisadores para estudar a possibilidade de aceitação da revista entre os leitores brasileiros e definir o investimento a ser feito. Segundo a própria revista, foram entrevistados editores de jornais e revistas, além de comerciantes e simples cidadãos – seus leitores. Os técnicos de Seleções estudaram desde a média salarial do brasileiro, seu poder de aquisição, os hábitos de leitura da população e o preço normal das principais publicações. Com essas estatísticas cuidadosamente elaboradas, foram fixados preços e descontos para a promoção do número um. “Sabíamos que só à base de baixo preço Seleções poderia atingir grande expansão”, disse seu editorialista ao justificar a edição brasileira. Para possibilitar a publicação da revista em português ficou decidido que “o trabalho e o custo da seleção de materiais correriam por conta da revista mãe”. A edição feita no Rio de Janeiro, como o original Reader’s Digest norte-americano, só aceitaria um número limitado de anúncios. Assim, “todos os arranjos relativos a papel e impressão da edição em português foram feitos tendo-se em vista as possibilidades de uma grande circulação”. Essa conclusão apresentada pela própria revista levou à injeção de recursos, no sentido de transformar a publicação numa campeã de vendas. A pesquisadora Karen Katchaturov garante que parte desses investimentos era patrocinada pela Fundação Rockefeller. Os Wallace escolheram pessoalmente o corpo redatorial da Seleções em português. O cargo de redator-secretário foi ocupado a partir de New York pelo baiano dublê de médico e escritor Afrânio Coutinho (1911-2000). Respeitado internacionalmente como ensaísta, crítico e professor da Faculdade de Filosofia da Bahia (que seria incorporada depois à Universidade Federal da Bahia), Coutinho chamara a atenção pelos seus inúmeros artigos publicados em revistas e jornais de todo país e pelos livros A Filosofia de Machado de As-
sis (1940) e Le Exemple du Métissage em L’homme de Couleur, da coleção francesa “Présces” (Plon, Paris, 1939). O cargo de co-redator foi entregue a José Rodrigues Miguéis, escritor português, cuja novela Páscoa Feliz obteve em 1932 o Prêmio da Casa de Imprensa, de Lisboa. Ensaísta, Miguéis colaborou em várias revistas e jornais como Seara Nova e Revista de Portugal. O jornalista colombiano Eduardo Cárdenas ocupou o cargo de redator-gerente. Cárdenas ficaria durante 14 anos na direção da Editor ’s Press Service, reputada agência jornalística americana. Mesmo com o “respeitável” trio de colaboradores, os Wallace estabeleceram que o trabalho da equipe deveria ser submetido à rigorosa equipe de “consultores” de New York. A tiragem de estréia da Seleções brasileira foi modesta e ficou em 50 mil exemplares. Mas logo no primeiro número, a revista esgotou em poucos dias, exigindo uma reimpressão urgente de mais 50 mil cópias. Na quinta edição, ultrapassou a marca dos 150 mil exemplares. Não por coincidência, a edição brasileira de Seleções foi lançada alguns meses antes de o Brasil entrar na guerra, no auge da campanha de boa vizinhança coordenada por Nelson Rockefeller, cuja fundação era publicamente uma das patrocinadoras da revista. O editorial de estréia não deixou dúvidas sobre o papel que Seleções pretendia desenvolver na vida política brasileira. Dizia o texto de apresentação do segundo número que “os brasileiros recebem com o mais intenso regozijo esta nova edição de Reader’s Digest, que muito poderá contribuir para desenvolver as boas relações entre os Estados Unidos e o Brasil, cuja amizade é tão antiga quanto a independência de ambas as nações. E tem sido reforçada, no curso da história, por inaudíveis demonstrações de solidariedade e afeto”. Como em outros países, a revista começou a circular com a assinatura de apoio de respeitados nomes da cultura local. Levi Carneiro, Presidente da Academia Brasileira de Letras, foi enfático ao afirmar que “Reader’s Digest realizou o milagre condensando, em cada edição mensal, uma verdadeira biblioteca e oferecendo uma súmula de empolgante interesse de toda a atividade mental da humanidade nos variados setores em que se desenvolve”. O então Presidente da ABI, Herbert Moses, também deu suas boas vin-
das: “Agora uma revista de língua portuguesa promove a realização de uma das mais belas aspirações do Brasil: a difusão da cultura universal nas Américas através das três línguas”. Sentido da união americana
As boas relações com o Dip (Departamento de Imprensa e Propaganda), da ditadura do Estado Novo, e a censura garantiram certa tranqüilidade para a produção da versão brasileira da revista. Cândido Motta Filho, diretor-geral do Dip de São Paulo, por exemplo, recomendou que “com ela (Seleções), com certeza, o sentido da união americana se fortificará ainda mais porque é pela comunhão espiritual que se definem os interesses primordiais das nações cultas”. O ‘doutor ’ Assis Chateaubriand, Presidente dos Diários Associados, afirmou que “pode-se aferir das linhas de humanidade do indivíduo pela sua ânsia em assimilar o Reader’s Digest”. Com mais de cinco milhões de assinantes em todo o mundo, em 1942, Seleções era lida mensalmente por nada menos de 15 milhões de pessoas. Seu respeitável parque gráfico, além da edição inglesa, imprimia também a espanhola e a portuguesa. Para isso, Wallace contava com modernas máquinas de última geração que imprimiam 24 mil exemplares por hora. O emprego de novos tipos de tinta de impressão, que secavam instantaneamente, permitiu às rotativas de grande velocidade imprimir ao mesmo tempo várias cores nas duas faces do rolo de papel acetinado, cortá-lo e dobrá-lo em poucos segundos. A possibilidade de um fim próximo da Guerra, a partir de 1944, fez com que Seleções do Reader’s Digest se preparasse para assumir seu mais nobre papel: dedicar-se “patrioticamente” e por completo ao combate ao único inimigo imediato da sociedade cristã – o comunismo. Um de seus editoriais ressaltou que a revista “contribuirá para facilitar a um bom número de pessoas, tanto na América Latina como na América de língua inglesa, uma compreensão mais clara das correntes do pensamento e dos problemas do mundo atual, concorrendo também para dar uma demonstração inequívoca da comunhão de ideais e interesses que liga as nações deste hemisfério”. E ela cumpriria bem esta missão nos vinte anos seguintes, até desaguar no golpe militar que cerceou as liberdades no Brasil por 21 anos.
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CINEMA
Premiado no Festival de Gramado, Prá Frente, Brasil denuncia, como jamais acontecera no Brasil pós-1964, a repressão e a tortura política.
64, a 24 quadros por segundo Restaurada a democracia, cineastas correm em busca do tempo perdido e filmam histórias reais, ficcionais ou documentais que mostram às novas gerações (e relembram às antigas) como foi o terror dos anos de chumbo. P OR C ELSO S ABADIN
Março de 1982. Sob o comando do General Figueiredo, a ditadura militar brasileira implantada em 1964 comemorava a sua “maioridade”, chegando aos 18 anos. O mandatário da nação, que nunca escondeu preferir o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo, promovia o que na época se convencionou chamar de “abertura lenta e gradual”, ao mesmo tempo em que prometia prender e arrebentar quem fosse contra seu “processo de redemocratização”. Naquele mesmo mês, setores da política, da sociedade civil, dos militares e da cultura do País aguardavam, apreensivos, aquele que seria um dos maiores testes deste alardeado processo de abertura: a estréia mundial de Prá Frente, Brasil, agendada para o Festival de Gramado. Já há alguns meses se falava sobre o filme. Dirigido e roteirizado por Roberto Farias, a partir de um argumento criado por seu irmão, Reginaldo Faria (sim, há uma pequena discrepância entre os sobrenomes dos irmãos) e Paulo Mendonça (hoje um dos sócios do Canal Brasil), Prá Frente, Brasil vinha com a promessa de denunciar e escancarar, como jamais acontecera no Brasil pós-1964, os temas da repressão policial e da tortura política. Ninguém duvidava do talento de Roberto Farias, que antes do golpe já havia realizado o clássico Assalto ao Trem Paga26
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Oito presas políticas torturadas durante o regime militar dão depoimentos emocionados em Que Bom Te Ver Viva, filme vencedor do Festival de Brasília, estrelado por Irene Ravache.
gens haviam sido interrompidas exatamente em 1964, em função do golpe. Coutinho não só retoma a idéia como localiza as pessoas envolvidas, volta a reunir sua equipe, e repensa o projeto, agora sob o formato de documentário. O filme é lançado em 1984, conquista vários prêmios nacionais e internacionais, e até hoje é considerado um dos melhores e mais importantes documentários da história do cinema do Brasil. Se não o melhor. Após tantos anos de escuridão, o brasileiro começa a querer saber um pouco mais sobre sua história recente. Parece acordar. Há uma nova geração que já nasceu sob o jugo militar, e o cinema, ainda que timidamente, passa a se apresentar como a ferramenta ideal para jogar um pouco de luz sobre este passado. Também em 1984, Jango, de Sílvio Tendler (que já havia realizado Os Anos JK, em 1980), se transforma numa das maiores bilheterias já arrecadadas por um documentário brasileiro, batendo a casa de 1 milhão de ingressos vendidos. O mesmo 1984 marcaria ainda a estréia do drama intimista ironicamente batizado de Nunca Fomos Tão Felizes. Baseado no conto Alguma Coisa Urgentemente, o filme narra a angústia e a solidão de um jovem (Roberto Bataglin) que, sem saber os motivos, é retirado do colégio por seu pai (Cláudio Marzo) e passa dias inteiros isolado num grande e vazio apartamento. A frase “Nunca fomos tão felizes” vem de uma propaganda do governo militar que o rapaz vê na televisão, em seus dias de solidão. Antes da década terminar, em 1989, Lúcia Murat realiza um meio termo entre ficção e documentário em Que Bom Te Ver Viva. Vencedor do prêmio máximo no Festival de Brasília, o filme mistura depoimentos verídicos de oito ex-presas políticas que foram torturadas pelo regime militar, pontuados por uma personagem ficcional interpretada por Irene Ravache. A nova década traz finalmente a tão esperada democracia. O Brasil volta às urnas e escolhe o primeiro Presidente eleito pelo voto direto desde 1961. Fernando Collor de Mello toma posse em março de 1990, e num de seus primeiros atos extingue a Empresa Brasileira de FilmesEmbrafilme e o Conselho Nacional de Cinema-Concine, órgãos responsáveis pela produção e distribuição de filmes realizados no nosso País. A produção nacional despenca a quase zero. Instala-se no setor um desespero que dura quase cinco anos, até que os novos mecanismos de leis de incentivo à cultura comecem a surtir algum efeito. A retomada
dor, e que durante os anos mais difíceis da ditadura teve a competência de manter o seu ofício dirigindo filmes com Roberto Carlos e a turma da Jovem Guarda. O que se questionava é se as forças da repressão iriam permitir a estréia do filme e a sua subseqüente exibição nos cinemas do País. Permitiram. Prá Frente, Brasil não só foi exibido no Festival de Gramado de 1982, ano de Copa, como também ganhou o prêmio máximo do evento. Na seqüência, sob forte interesse da mídia, o
filme entrou normalmente no circuito exibidor brasileiro, sem maiores sobressaltos, e conquistou um público de respeitáveis 1,3 milhão de pagantes. Após um grande período de silêncio cinematográfico, estava dado o pontapé inicial para o cinema brasileiro voltar a abordar temas políticos. A abertura motivou o cineasta Eduardo Coutinho a retomar Cabra Marcado Para Morrer, a princípio uma ficção baseada no assassinato real de um líder camponês paraibano, cujas filma-
Creditam-se a Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, de Carla Camurati, lançado em 1995, os méritos de ter sido o primeiro grande filme do chamado período da “retomada”, após sofridos anos de vacas muito magras. Porém, subestima-se a importância de outra grande personagem da história brasileira que teve sua vida filmada e foi também um forte responsável pelo reencontro do público com as nossas telas: Lamarca, que Sérgio Rezende dirigiu em 1994.
Os maiores louros couberam a Carlota Joaquina principalmente pelo seu inegável feito de vender mais de 1 milhão de ingressos, mas vale lembrar que Lamarca, onde Paulo Betti vive o personagem-título, foi o primeiro sinalizador de que o cinema brasileiro estava renascendo. As qualidades técnicas e narrativas do filme são indiscutíveis, a despeito de seu fraco resultado comercial. Curiosamente, Carla Camurati também participa de Lamarca, mas como atriz, vivendo o papel de Clara, companheira do protagonista. Clara foi o pseudônimo escolhido por Rezende para representar Iara Iavelberg, já que a produção evitou utilizar nomes reais. Iara Iavelberg, por sua vez, foi biografada no documentário Em Busca de Iara, que acaba de ser lançado nos cinemas, e foi tema de reportagem no Jornal da ABI 399, juntamente com outro importante documentário que chegou recentemente em algumas salas de cinema – Militares da Democracia: Os Militares Que Disseram Não, de Silvio Tendler, – que denuncia a perseguição sofrida pelos militares que se opuseram ao golpe. Em 1997, três anos após Lamarca, surge o primeiro filme sobre a ditadura militar com ares de superprodução: O Que é Isso, Companheiro? Dirigido por Bruno Barreto, filho do produtor Luiz Carlos Barreto, e encabeçado por um elenco de atores globais (Pedro Cardoso, Luiz Fernando Guimarães e Fernanda Torres, entre outros), o filme se baseia no livro homônimo de Fernando Gabeira para recontar a história do seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969, por guerrilheiros antiditadura. Chegou a estar entre os cinco finalistas para o Oscar de melhor filme estrangeiro, e abriu os olhares de uma camada maior da população a respeito dos fatos acontecidos nos anos de chumbo. No ano seguinte, 1998, o elogiado e premiado Ação Entre Amigos, de Beto Brant, destila, simbolicamente, uma significativa vingança contra o regime militar. O tema é o encontro de um grupo de colegas que se reúnem, após um hiato de 25 anos, para fazer justiça com as próprias mãos contra o antigo algoz que os torturava nos porões da repressão. A chegada do novo século, principalmente depois dos atentados de 11 de setembro, chamou a atenção do cinema do mundo inteiro: os fatos reais estavam mais impressionantes e mais espetaculares que os ficcionais, o que acabou provocando um grande interesse por documentários. No Brasil não foi diferente. Além de enfocar acontecimentos à beira do inacreditável, os documentários também oferecem maiores facilidades de execução, o que vem ao encontro dos sistemas quase sempre deficitários de produção do cinema brasileiro. Assim, vê-se, a partir de 2000, que nosso cinema continua, sim, a produzir filmes sobre a ditadura militar, agora talvez com um distanciamento crítico mais criterioso, mas cresce ainda mais o número de documentários sobre o tema. Principalmente após a abertura de vários arquivos que até bem pouco tempo atrás estavam sigilosamente trancados.
O novo século Os anos 2000 reúnem vários e importantes exemplos de filmes brasileiros que têm no golpe de 1964, e em suas conseqüências, seu foco principal. CABRA CEGA 2004, DE TONI VENTURI.
Não se trata de simplesmente “mais um filme sobre a ditadura militar”. Ele começa mostrando a fuga desesperada de Tiago (Leonardo Medeiros), que vê seu “aparelho” (jargão da época para os esconderijos dos militantes antiditadura) ser estourado pelas forças do governo totalitário brasileiro dos anos 1970. Com uma bala no ombro, Tiago se refugia na casa do arquiteto Pedro (Michel Bercovitch). O primeiro encontro entre estes dois personagens já inaugura o clima de tensão que permeará todo o filme: ambos se estranham, mas parecem fazer parte de um código comum, se repelem ao mesmo tempo em que sabem que terão de se suportar. Logo entram em cena mais dois personagens: Rosa (Débora Duboc), ativista de bom coração, domina seus instrumentos de enfermagem, mas não sabe o que é pegar em armas. E Mateus (Jonas Bloch), estrategista, líder, mais velho, pondera com vagar e cuidado os rumos que está tomando o movimento guerrilheiro. São quatro faces de uma mesma moeda. Quatro formas diferentes de lutar contra um mesmo inimigo que, no filme, mal aparece. A pesquisa feita para o filme é um capítulo à parte: mais de 40 nomes de militantes da luta armada foram contatados, sendo que deste total 11 foram selecionados para longas entrevistas em vídeo, que resultaram em 32 horas de gravação. Esse material não serviu de base apenas para o roteiro de Cabra Cega; foi também utilizado na produção do documentário No Olho do Furacão, exibido na tv. Sem cair em clichês fáceis, Cabra Cega radiografa, de dentro para fora, as próprias contradições internas da luta armada daquela época. A direção de Toni Venturi (de Latitude Zero) é das mais eficientes. O filme se abre aos poucos, se auto-explica lentamente, se permite, devagar, aos planos mais abertos. Ou seja, ele se comporta, esteticamente, da mesma forma que Tiago realiza seu rito de passagem de guerrilheiro radical, que não pode sequer ser visto através da janela, a homem completo que se permite amar e comer uma macarronada a céu aberto. E como se tudo isso não bastasse, traz uma trilha sonora emocionante, com releituras de sucessos marcantes daquele período. Não por acaso, ganhou seis prêmios no Festival de Brasília.
um religioso francês que se tornou uma espécie de líder comunitário da região, onde desembarcou no início dos anos 1960. A partir desta sua liderança, novos personagens vão se incorporando à trama, que procura destrinchar os sentimentos de dúvidas, inseguranças e as ideologias daqueles jovens que acreditavam estar mudando a história do País. O filme utiliza os recursos do semidocumentário, ou docudrama, misturando depoimentos de quem participou da Guerrilha com cenas ficcionais. Foi concluído em 2004, mas só conseguiu lançamento em cinema cinco anos depois.
QUASE DOIS IRMÃOS 2004, DE LÚCIA MURAT
O filme narra a trajetória de dois homens ao mesmo tempo muito iguais e completamente diferentes entre si: Miguel (Werner Schünemann) e Jorge (Antonio Pompeo), os quase irmãos do título. Convivendo desde a infância, os amigos tomaram rumos diferentes na vida: enquanto Miguel se tornou um intelectual de classe média e, posteriormente, Deputado Federal, Jorge liderou o Comando Vermelho. Miguel é advogado. Jorge é filho de sambista. Miguel é branco. Jorge é negro. Quase dois irmãos? Sim, mas separados pela fossa abissal brasileira que existe entre ricos e pobres. E que transforma nossas diferenças sociais numa surda e diária guerra civil. As vidas dos dois personagens se cruzam, se entrelaçam; eles se amam e se odeiam em diferentes momentos de nossa história. Sem ordem cronológica nem maniqueísmos fáceis. O que transforma Quase Dois Irmãos não só num belo panorama histórico, social e
cultural do Brasil dos últimos 50 anos, como também num instigante exercício cinematográfico. A ingenuidade do antigo samba de morro, o golpe militar, a resistência civil, a escalada brutal da violência, tudo está no filme. Em linguagem ágil, reconstituição de época admirável, direção de arte soturna e magníficas interpretações.
O PROFETA DAS ÁGUAS 2005, DE LEOPOLDO NUNES
Documentário que resgata a biografia de Aparecido Galdino Jacintho, conhecido como “Profeta das Águas”. Um religioso que, em plena ditadura, liderou um exército de salvação para proteger o rio Paraná da construção da hidrelétrica de Ilha Solteira, o personagem foi acompanhado pelo diretor do filme de 1986 até 2005. Em 1970, na fronteira de São Paulo com Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, ele pregava paz e justiça aos fiéis e queria impedir que a população local fosse expulsa de suas terras. Jacintho e seus seguidores foram reprimidos pelas forças militares, que o deixaram a cargo do temido delegado Fleury. Após ser preso e torturado no Dops e no DoiCodi, Galdino, que não registrava nenhum distúrbio psiquiátrico, foi internado no hospital psiquiátrico de Franco da Rocha.
VLADO: 30 ANOS DEPOIS 2005, DE JOÃO BATISTA DE ANDRADE
Colega de TV Cultura e amigo pessoal de Vladimir Herzog, o cineasta João Baptista de Andrade realizou este documentário como uma espécie de homenagem indignada ao companheiro morto pela ditadura. Um dos casos mais conhecidos da época da repressão, a fraude que foi o ‘suicídio’ de Vlado é analisada pelo filme, que também aborda aspectos pessoais e profissionais do famoso jornalista. O filme tem depoimentos de Clarice Herzog, José Mindlin, Ruy Ohtake, Dom Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel, Fernando Morais, Paulo Markun, João Bosco, Aldir Blanc, Alberto Dines, Diléia Frate e Mino Carta, entre outros.
ARAGUAYA CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO 2004, DE RONALDO DUQUE
Tendo como pano de fundo a Guerrilha do Araguaia, a ação é narrada a partir do personagem Padre Chico (Stephane Brodt),
Vlado: 30 Anos Depois, de João Baptista de Andrade: homenagem a Vladimir Herzog.
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CINEMA 64, A 24 QUADROS POR SEGUNDO
HÉRCULES 56
Fernando Bonassi, Hoje busca discutir o Brasil atual a partir do Brasil de ontem.
2006, DE SILVIO DA-RIN
É como se fosse o filme O Que é Isso, Companheiro?, só que de verdade. Assim pode ser simploriamente definido este documentário. O filme registra os fatos que envolveram o seqüestro do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, em setembro de 1969. A concepção da idéia, a luta armada, a ação propriamente dita, a troca do diplomata por presos políticos e até a chegada destes mesmos presos ao exílio são assuntos levantados de forma criteriosa e minuciosa pelas pessoas que melhor podem falar sobre o tema: os próprios participantes. Os protagonistas são os quinze presos levados ao México no avião Hércules da FAB, prefixo 56. Todos os nove sobreviventes foram entrevistados individualmente, e os seis já falecidos comparecem por meio de materiais de arquivo. Para contemplar o seqüestro propriamente dito, foi produzida uma reunião entre alguns participantes da operação, como Franklin Martins, Claudio Torres e Daniel Aarão Reis. Uma terceira linha narrativa é constituída por extenso material audiovisual de época, boa parte inédito no Brasil, pesquisado nos Estados Unidos, Cuba, França e México. As imagens da chegada dos presos ao México foram obtidas em agências noticiosas dos EUA e nunca haviam sido editadas numa única sequência, como se vê no filme. Cenas de alguns personagens falecidos vieram de um filme anônimo de denúncia de torturas, que havia sido conservado por José Luiz Del Roio, em Milão. O Instituto Cubano Del Arte y Indústria Cinematográficos-ICAIC contribuiu com imagens de Cuba, entre elas as do desembarque dos brasileiros em Havana e a recepção por Fidel Castro. Outros personagens já desaparecidos apareciam em uma filmagem inédita feita em Roma por Hamilton dos Santos, enquanto a apresentação de cada um dos personagens foi visualmente unificada graças à série de fotos feitas pela polícia mexicana, logo após o desembarque dos brasileiros. No Brasil, a equipe do filme contou com o apoio do Arquivo Nacional, da Cinemateca do MAM-RJ, de José Carlos Avellar, dos arquivos públicos de São Paulo e Rio de Janeiro, da Iconographia, da Biblioteca Nacional, de personagens como José Dirceu e Mario Zanconato e, finalmente, de familiares de personagens já falecidos. Assim, o cineasta montou um painel testemunhal que conta com no mínimo dois grandes méritos: credibilidade e distanciamento crítico. Nada como conseguir documentar as vozes, olhares e expressões de quem realmente viveu as situações estampadas na tela. Nada como analisar os fatos com a consciência do tempo passado. Hércules 56 não faz a apologia juvenil dos ideais revolucionários nem perde tempo chovendo no molhado dos desmandos autoritários da época. Centradamente, ele recorda a ação, ao mesmo tempo em que se questiona e se autocritica à luz das quase quatro décadas que nos separam do seqüestro do embaixador.
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ZUZU ANGEL 2006, DE SERGIO REZENDE
Denise Fraga guarda um segredo da época da ditadura em Hoje, de Tata Amaral.
O ANO QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS 2006, DE CAO HAMBURGER
Apelidado de “o mais argentino dos filmes brasileiros”, esta ficção não volta suas lentes diretamente sobre a ditadura, mas sim sobre os efeitos que ela provoca em Mauro (Michel Joelsas). Envolvido pelo clima de Copa do Mundo, o garoto não consegue entender direito porque seus pais – Bia (Simone Spoladore) e Daniel (Eduardo Moreira) – tiveram de sair de Belo Horizonte, deixando o menino na casa do tio Mótel (Paulo Autran), no bairro paulistano do Bom Retiro. Filme de altíssima sensibilidade e de uma profunda tristeza melancólica, que ajudam a exteriorizar a sofrida visão de uma infância prejudicada pela truculência política que provoca a separação de pais de filhos. A reconstituição de época é impressionante.
HOJE 2011, DE TATA AMARAL
Embora fortemente focado nos “Anos de Chumbo”, o filme não trabalha com reconstituição de época, nem imagens de arquivo, preferindo focar os seus protagonistas nos dias – como diz o título – de hoje. A ação transcorre quase que totalmente dentro de um apartamento.
Caixas de mudança, paredes vazias e uma torneira que não funciona formam o universo de Vera (Denise Fraga), uma mulher que guarda um segredo da época da ditadura. Uma vizinha inconveniente e carregadores da transportadora ajudam a compor o clima caótico inerente a toda mudança. A de Vera, porém, não é apenas física. Junto com a alteração de endereço, ela busca reconstruir sua vida, ao mesmo tempo em que tenta fugir de medos e culpas do passado. Na base dramatúrgica de Hoje está a chamada “Lei dos Desaparecidos”, ou seja, a Lei 9.140, que reconheceu como mortas as pessoas que a repressão “fez desaparecer”. Vera é uma personagem que viveu durante anos numa espécie de estado de suspensão, sem saber se era viúva ou não. Como o governo não reconhecia a morte das pessoas, era comum um marido ou uma mulher não poder se casar de novo porque não era oficialmente viúva ou viúvo. O filho não podia herdar porque na verdade o pai não morreu oficialmente; uma criança não podia viajar sozinha com a mãe porque não tinha a certidão de óbito do pai, nem autorização para viajar. A dor desta condição é a espinha dorsal do filme. Baseado no livro Prova Contrária, de
Drama biográfico sobre a empresária e estilista brasileira Zuzu Angel (Patrícia Pillar), que vivia a ascensão de sua carreira nos anos 1960 ao mesmo tempo em que seu filho, Stuart, ingressava na luta armada contra a ditadura civil-militar. Quando descobre que seu filho fora torturado até a morte após ser preso pela polícia, ela inicia uma árdua e arriscada luta pela busca do corpo de Stuart, enfrentando o descaso e a má-fé das autoridades, que parecem determinadas em não lhe oferecer explicações. Zuzu morreria em 14 de abril de 1976, em um acidente de carro cujas causas seguem sendo um mistério. Do mesmo diretor de Lamarca.
BATISMO DE SANGUE 2007, DE HELVÉCIO RATTON
Baseado no livro homônimo de Frei Betto, a partir de casos reais, o filme conta a história de quatro frades num convento dos anos 1960: o próprio Betto (Daniel de Oliveira), Tito (Caio Blat), Fernando (Léo Quintão) e Ivo (Odilon Esteves). Movidos por ideais tanto cristãos como políticos, eles passam a apoiar a Ação Libertadora Nacional, comandada por Carlos Marighella (Marku Ribas). As prisões e as conseqüentes torturas de membros do grupo levam a história a consequências trágicas para todos os personagens. O delegado Fleury é interpretado por Cássio Gabus Mendes.
CIDADÃO BOILESEN 2009, DE CHAIM LITEWSKI
Documentário biográfico sobre Henning Albert Boilesen, Presidente do grupo Ultra, da Ultragaz, assassinado pela guerrilha em 1971. Nascido na Dinamarca, Boilesen veio para o Brasil aos 22 anos de idade, onde se naturalizou. Entre depoimentos de pessoas que vão de familiares a militantes rivais, no Brasil e na Dinamarca, além de imagens e textos de arquivo, o filme esboça um perfil deste poderoso empresário e suscita debates acerca de um capítulo sempre subterrâneo dos anos de chumbo no Brasil: o financiamento por grandes empresários da repressão violenta do Estado à luta armada. O filme expõe as ligações de Boilesen com a ditadura, sua participação na criação da temível Operação Bandeirante e acusações de que ele teria assistido voluntária, e prazerosamente, a diversas sessões de tortura.
O DIA QUE DUROU 21 ANOS 2012, DE CAMILO TAVARES
Hércules 56: Desembarque dos quinze presos políticos levados ao México no avião da FAB.
Documentário que investiga a participação violenta e decisiva dos Estados Unidos no golpe militar brasileiro de 1964. Obviamente, não se trata de descoberta ou fato novo, mas quando esta informação é lançada de forma inexorável diante dos nossos olhos e do nosso orgulho, com imagens, documentos históricos e depoimentos dos mais preciosos, o novo impacto daquilo que já era conhecido
assume proporções que chegam a ser perturbadoras. O resultado é ao mesmo tempo empolgante e atordoante. No filme, entre outras denúncias e constatações, o cineasta Jean Mazon, famoso por seus documentários ufanistas, é abertamente acusado de ter sido participante do braço de propaganda financiado pela CIA, a central de inteligência norte-americana. É mostrada também de forma incisiva e fartamente documentada a atuação do Instituto Brasileiro de Ação Democrática-Ibad como fachada da mesma CIA para a compra de parte da mídia e parte do Senado brasileiro. O objetivo explícito era influenciar a opinião pública nacional favoravelmente a toda e qualquer ação proveniente dos Estados Unidos, além de instaurar o pânico contra a “perigosa comunização” do governo João Goulart. O documentário lembra ainda que, aos se instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI para investigar a atuação do Ibad, o relator escolhido foi Rubens Paiva, que viria a ser assassinado pela ditadura, em 1971. O documentário ainda registra que John Kennedy, em 1962, já havia decidido derrubar João Goulart. A informação está registrada em telegramas e em uma gravação de áudio de uma conversa entre o Presidente e Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil, na época. A produção de O Dia que Durou 21 Anos contratou pesquisadores em Washington e em Nova York, além de contar com o apoio do historiador Carlos Fico e da jornalista Denise Assis para levantar o máximo de documentos, áudios e imagens de televisão referentes a John Kennedy e a Lyndon Johnson sobre o Brasil.
DOSSIÊ JANGO 2012, DE PAULO HENRIQUE FONTENELLE
O ponto de partida do documentário é, no mínimo, intrigante: a partir do fato incontestável que João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda morreram em circunstâncias não totalmente esclarecidas, no curto período de tempo inferior a um ano, o filme denuncia, com clareza e pés no chão, sem descambar para insanas teorias de conspiração, como os tentáculos da ditadura se estenderam por tempos e espaços que a história oficial não registra, cometendo sórdidas queimas de arquivo. Além disso, ele aborda também a angústia de Jango e seus pensamentos nos anos de exílio, que é um período pouco retratado da vida do ex-Presidente. O projeto surgiu a partir de um argumento dos cineastas Paulo Mendonça e Roberto Farias, ambos de Prá Frente, Brasil, quando Roberto pesquisava a possibilidade de fazer um longa de ficção sobre João Goulart. Envolvido neste projeto, Fontenelle filmou entrevistas iniciais que serviriam como base das pesquisas, e logo se percebeu que havia um documentário dos mais instigantes já embutido ali. Uma entrevista feita com um ex-agente da polícia secreta uruguaia, que afirmava ter conhecimento do suposto plano de assassinato do Presidente, foi o ponto fundamental e decisivo para o início da produção do documentário. Dossiê Jango foi o vencedor do prêmio de
Repare Bem: A diretora Maria de Medeiros colhe um depoimento emocionante da ex-presa política Denise Crispim, esposa de Bacuri, um dos guerrilheiros mais atuantes contra a ditadura.
melhor filme pelo júri popular da 16ª edição da Mostra Tiradentes.
A MEMÓRIA QUE ME CONTAM 2012, DE LÚCIA MURAT
Um grupo de amigos que participaram da resistência à ditadura civil-militar brasileira, acompanhados de seus filhos, enfrenta o conflito com o passado no momento em que uma jovem companheira de lutas está prestes a morrer. Dentre essas pessoas reunidas na sala de espera de um hospital, está uma diretora de cinema, que se sente desnorteada ante a iminente morte de sua amiga ex-guerrilheira. Numa visita às memórias da luta, a cineasta terá de lidar com questões que lhe são caras e com a inesperada prisão de seu marido.
MARIGHELLA 2012, DE ISA GRINSPUM FERRAZ
O pessoal e o público, o emocional e o político, o social e o individual se unem, se misturam e se completam neste belo documentário intitulado simplesmente Marighella. Apenas Marighella, sem nenhum subtítulo que neste caso se tornaria fatalmente redundante e/ou desinteressante diante de um nome que dispensa maiores apresentações. Marighella tem direção de Isa Grinspum Ferraz, socióloga recifense que trabalhou com Darcy Ribeiro, que esteve na equipe que desenvolveu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que dirigiu a minissérie O Povo Brasileiro, mas que traz para este filme um handicap que nenhum outro sociólogo ou cineasta possui: ela é sobrinha de Carlos Marighella. As primeiras cenas, narradas em primeira pessoa, já dão o tom do documentário. A cineasta/sobrinha relembra o momento em que seu pai, Salomão, a estava levando para a escola. Eles moravam no Jardim São Paulo, que na época era um bairro afastado, justamente para poder hospedar Marighella e a esposa Clara. Trata-se de um documentário que se reveste de uma áurea intimista única, humanizando o biografado, e trazendo para as luzes familiares e pessoais uma das personagens mais
marcantes da história recente do Brasil. Com o centenário de nascimento de Marighella, comemorado em dezembro de 2012, a cineasta decidiu intensificar a briga pela viabilização de seu projeto, refez o roteiro, aprofundou a pesquisa, e finalmente conseguiu transformar suas idéias em longa metragem. Neste processo, recebeu ajuda fundamental de Mário Magalhães, repórter especial da Folha de S.Paulo, biógrafo de Marighella. Mário acabou se tornando consultor especial do filme, auxiliando inclusive na seleção dos entrevistados.
REPARE BEM 2013, DE MARIA DE MEDEIROS
Documentário que investiga os destinos da família de Eduardo Collen Leite, o Bacuri, um dos guerrilheiros mais atuantes contra a ditadura. O filme realiza uma longa e emocionante entrevista com Denise Crispim, esposa de Bacuri e também guerrilheira, presa no Dops paulista já grávida de Eduarda, que jamais viu o pai. A história chamou a atenção da atriz e produtora Ana Petta, que convidou para dirigir o projeto a também atriz, cantora e cineasta portuguesa Maria de Medeiros. Assim, compartilhando roteiro, produção e direção, estas duas mulheres mergulharam no doloroso universo de outras duas mulheres, Denise Crispim e Eduarda, para a realização deste documentário, que recebeu os prêmios de Melhor Longa-metragem Estrangeiro (trata-se de um coprodução França/Itália/ Brasil) pelos júris oficial e da crítica no 41º Festival de Cinema de Gramado. Optou-se pelo uso apenas de imagens dos arquivos da família, bem como de objetos pessoais, documentos, fotos, casas, sempre com a carga afetiva que eles representam.
CARA OU COROA 2012, DE UGO GIORGETTI
A ação se passa em São Paulo durante o inverno de 1971. Ainda é a São Paulo da garoa, do frio e das malhas de lã, que não existe mais. João Pedro (Emílio de Mello) é um diretor de teatro estressado com a montagem de uma peça escrita pelo seu irmão Getúlio
(Geraldo Rodrigues), e com o relacionamento conturbado com sua esposa. Sua situação piora ainda mais quando ele é praticamente forçado por setores da esquerda (que financiam sua peça) a esconder dois refugiados políticos. Mais que o clima de tensão que costuma acompanhar filmes sobre esta temática, Cara ou Coroa traz um roteiro (também assinado por Giorgetti) dos mais equilibrados e lúcidos. Sem nenhum tipo de panfletarismo, o filme faz um retrato fiel da época, foge do maniqueísmo e desenha com precisão os mais diferentes tipos humanos marcantes daquele período. Corajoso, o cineasta cria no mínimo duas personagens que anos atrás seriam execradas pelas chamadas “patrulhas ideológicas”: um general humanizado e um comunista totalitário. Hoje, o necessário e saudável distanciamento histórico já permite este tipo de revisão. A construção dos personagens, digase, é provavelmente o ponto alto do filme. Entre medos, sussurros e desconfianças, vemos uma juventude ao mesmo tempo atemorizada e consciente da tomada de uma posição. Seja ela qual for. Já Otávio Augusto, excelente como sempre, faz um delicioso contraponto cômico ao incorporar a classe média conservadora, tão presente em nosso País, que não diferencia macumbeiro de budista. O pequeno (porém fundamental) personagem da empregada do general, em seu silêncio omisso, também é uma fortíssima referência sócio-cultural brasileira. Entre todos eles, ninguém é herói, ninguém é vilão. Todos são vítimas de uma violência que o filme sabiamente opta por não explicitar, mas que se sente, internamente, em cada olhar, em cada respiração tensa. Em determinado momento, uma jornalista recém libertada da prisão alerta para a necessidade de diferenciarmos aqueles que foram torturados daqueles que tomaram apenas “um tapa na bunda”. E preconiza que, no futuro, oprimidos e opressores estarão juntos, dançando no mesmo baile. Uma constatação que soa impossível aos ouvidos de 1971, mas se constitui no triste, tristíssimo cerne da nossa política atual que colocou todas as farinhas no mesmo saco da ambição pelo poder. Provocador, Cara ou Coroa gera densas reflexões, e propõe uma revisão dos Anos de Chumbo com rara maturidade.
VERDADE 12.528 2013, DE PAULA SACHETTA E PEU POBLES
Batizado com uma referência ao número da lei que criou a Comissão Nacional da Verdade, em 2011, e a instituiu em maio de 2012, o filme documenta o anseio por respostas ainda não esclarecidas da época da ditadura. São registradas expectativas e cobranças da sociedade em relação ao trabalho desempenhado pela Comissão, e o que ainda precisa ser descoberto e esclarecido. Depoimentos de Clarice Herzog, Ivan Seixas, Maria Rita Kehl, Marcelo Rubens Paiva, José Miguel Wisnik, Laura Petit, Bernardo Kucinski, Franklin Martins e Marlon Weichert, entre outros, enriquecem a narrativa.
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MEMÓRIA FOLHAPRESS
O que teriam colocado na água que o mundo bebeu em 1964? Que o ano seja icônico para o Brasil e para os brasileiros, isso todos nós já sabemos. Não foram poucas as recordações, homenagens, protestos, manifestações e efemérides que tivemos, e ainda estamos tendo, relacionadas ao meio século de golpe militar. Contudo, uma olhada mais atenta ao relógio do planeta vai revelar que não foi apenas o chão brasileiro que tremeu naquele 1964, mas sim as estruturas e os pilares de toda a Terra. Logo no dia 7 de fevereiro, por exemplo, o vôo 101 da PanAm, vindo de Londres, aterrissa no Aeroporto Internacional de Nova York, recém batizado com o nome do Presidente Kennedy, assassinado há menos de três meses. O avião trazia consigo sua própria revolução: quatro jovens então considerados “cabeludos” atraindo para si as atenções de 200 jornalistas e de aproximadamente 10 mil garotos e garotas (mais garotas) que faziam alvoroço no saguão e até na pista para vêlos. Pela primeira vez, Paul, John, George e Ringo tocavam o solo norte-americano, e o mundo jamais seria o mesmo. Os rapazes de Liverpool atenderam público e imprensa com muito bom humor e irreverência, arrancando do famoso jornal britânico The Times a manchete “O humor dos Beatles é contagiante”. Já a norte-americana Newsweek preferiu a sisudez: “Visualmente, são um pesadelo. Ternos eduardianos apertados e cabelos em forma de tigela. Musicalmente, um desastre: guitarras e bateria detonando uma batida impiedosa, que afugenta ritmo, melodia e harmonia. As letras, pontuadas por gritos de ‘yeah, yeah, yeah’, são uma catástrofe, um amontoado de senti30
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POPPERFOTO/GETTY IMAGES
1964: Um ano que mudou o mundo Revoluções na área da cultura, em especial na música e no cinema. Graves conflitos internacionais. Muitos foram os fatos que, para além do golpe militar, fizeram de 1964 um ano relevante para a História. P OR C ELSO S ABADIN
mentos baseados em cartões do dia dos namorados”. O New York Daily News não fez por menos, e imprimiu para a posteridade: “Bombardeada com problemas ao redor do mundo, a população voltou seus olhos para quatro jovens britânicos com cabelos ridículos. Em um mês, a América os terá esquecido e vai ter que se preocupar novamente com Fidel Castro e Nikita Krushev”. O Jornal do Brasil publicou: “Olha a cabeleira dos Beatles”. Dois dias depois, o impacto dos Beatles sobre aqueles 10 mil fãs presentes no aeroporto seria potencializado ao máximo: a apresentação do grupo no famoso Ed Sullivan Show, na CBS, líder disparado de audiência na época e no ar desde 1947, marcou a história da televisão, da mídia, da música e dos costumes da civilização ocidental. O pequeno show, ao vivo, teve cinco canções (All My Loving, Till There Was You, She Loves
You, I Saw Her Standing There e I Want To Hold Your Hand), foi visto por 728 pessoas presentes no auditório, e por nada menos que 73 milhões de telespectadores em todo o território norte-americano. I Want to Hold Your Hand e She Loves You ficam, respectivamente, em primeiro e segundo lugares na conceituada lista da revista Billboard que registra as canções mais executadas do ano. Deus e o Diabo na Terra de Mary Poppins Não por acaso, 1964 marca também a estréia, nos cinemas ingleses (em 6 de julho) e norte-americanos (em 11 de agosto) do filme dos Beatles A Hard´s Day Night, batizado no Brasil como Os Reis do Iê Iê Iê. No mesmo ano chegam às telas do mundo inteiro os clássicos Mary Poppins, dos Estúdios Disney; o musical romântico Os Guarda-Chuvas do Amor, com Ca-
therine Deneuve; e Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, este último provavelmente a melhor comédia já feita sobre a Guerra Fria. Mary Poppins acaba fechando o ano como a maior bilheteria norte-americana de 1964, seguida por My Fair Lady (o título em português, Minha Bela Dama, definitivamente não “pegou”), estrelado por Audrey Hepburn. Em terceiro lugar ficou 007 Contra Goldfinger, com Sean Connery no papel principal de James Bond. Este foi o último sucesso que Ian Fleming, autor da série de livros sobre o famoso espião, pode presenciar pessoalmente: o escritor faleceria naquele mesmo ano, em 12 de agosto. Pelo menos no cinema americano, Elvis Presley continuava fazendo mais sucesso que os Beatles: dois filmes estrelados pelo Rei do Rock, Carrossel de Emoções e Com Caipira não se Brinca, ficaram respectivamente em 6º e 7º lugares entre
U.S. ARMY
CINEMATECA BRASILEIRA
A tenista brasileira Maria Esther Bueno, tri-campeã em Wimbledon, e Os Beatles conquistam o mundo. Vidas Secas (abaixo), de Nelson Pereira dos Santos, ganha três prêmios em Cannes e, em 10 de julho, estréia nos cinemas brasileiros um marco do Cinema Novo: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Enquanto isso, o Presidente Lyndon Johnson consegue uma desculpa para entrar na Guerra do Vietnam, que se torna uma dura realidade para milhares de jovens nos Estados Unidos.
as maiores bilheterias de 1964, superando Os Reis do Iê Iê Iê, que cravou uma digna oitava colocação na terra do Tio Sam. Num mundo ainda não globalizado, os maiores sucessos das salas de cinema da França eram a comédia local Biquínis de Saint-Tropez, em primeiro lugar, e dois filmes do ano anterior, respectivamente em 2º e 3º postos: o desenho da Disney A Espada Era a Lei, e a aventura jamesbondiana Moscou Contra 007. Chamava a atenção, porém, a presença de uma aventura totalmente descompromissada na quarta colocação: O Homem do Rio, que JeanPaul Belmondo filmou aqui em terras brasileiras, atraindo quase cinco milhões de franceses às bilheterias. Por aqui, 10 de julho de 1964 marca a estréia de um dos maiores marcos, se não
o maior, do movimento Cinema Novo: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Embora não fizesse sucesso com o grande público, o Cinema Novo brasileiro ganhava cada vez mais respeito e prestígio junto à crítica e à comunidade cinematográfica mundial. Naquele mesmo ano, em 1º de maio, o belíssimo Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, conquistava três premiações no Festival de Cannes: o Prix Cinémas d’Art et d’Essai, do júri da associação francesa de cinemas de arte; o prêmio do júri do Office Catholique Internacional du Cinéma; e o Prêmio de Meilleur Film pour la Jeunesse, do júri de estudantes secundários e universitários. Por aqui, a população preferia mesmo ver a aventura Lampião, o Rei do Cangaço, de Carlos Coimbra, e sua sátiREPRODUÇÃO
ra cômica O Lamparina, de Mazzaropi, ambos lançados em 1964. O pequeno Vietnã entra no mapa da história Mas a história de 1964 pelo mundo não será lembrada somente por amenidades como Os Beatles ou Mary Poppins. Pelo contrário. Nos Estados Unidos, era cada vez mais tensa a questão racial, com o governo conservador de Lyndon Johnson se mostrando inábil em administrar o problema. Em 2 de julho daquele ano, tentando reduzir as tensões, Johnson decreta a Lei dos Direitos Civis, proibindo a discriminação racial em locais públicos e privados, e dando poderes ao governo federal para intervir em estados que promovessem a segregação. Os racistas mais radicais, principalmente no sul do país, fazem estourar conflitos cada vez mais violentos. Mas, entre os vários defensores da causa negra, desponta o pastor Martin Luther King, líder das lutas pela igualdade racial que lançou o seu livro-manifesto Why We Can’t Wait em 1964 e, em 10 de dezembro, foi agraciado com o prestigiado Prêmio Nobel da Paz. Contudo, a questão racial não seria o principal problema a ser enfrentado pelo governo norte-americano naquele 1964. Na noite de 4 para 5 de agosto, Johnson toma a decisão que alguns já esperavam, muitos temiam, e que Kennedy já havia prometido não fazer: começam os bombardeios norte-americanos sobre o Golfo de Tonkin, no Vietnã. Assim como já havia acontecido em Pearl Harbor, em 1941, as condições exatas do ataque são confusas e controversas. O então Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert McNamara, relata em seu livro de
memórias que o contratorpedeiro norteamericano Maddox comunicou pelo rádio que estaria sendo atacado por uma embarcação vietnamita. Em meio a uma forte tempestade, com visibilidade quase nula, tanto o Maddox como o Turner Joy, outro navio de guerra americano, teriam contra-atacado as agressões feitas com torpedos por navios inimigos. Parecia improvável o frágil Vietnã abrir fogo deliberadamente contra os americanos. Anos depois, um piloto do porta-aviões Ticonderoga, que sobrevoou naquela noite ambos os navios, afirmou não ter avistado nada de irregular ou diferente. De qualquer maneira, a trágica Guerra do Vietnã, iniciada naquela noite, só terminaria 11 anos mais tarde, com dois milhões de vietnamitas e 58 mil norteamericanos mortos. E com a derrota de Washington, o que abriu uma profunda chaga na vida e no orgulho do chamado país mais poderoso do mundo. Ampliando as preocupações norte-americanas, em 6 de junho é criada, no Cairo, a Organização pela Libertação da Palestina-OLP, com o objetivo de levar para a região uma paz até hoje não alcançada. Ano de livros, revistas e até enciclopédia Na área editorial, uns chegam, outros saem. A tradicionalíssima editora Encyclopaedia Britannica, fundada na Escócia no século 18, investe numa edição brasileira de sua famosa Enciclopédia. Em 1959, Dorita Barret, herdeira da família detentora dos direitos autorais da Britannica, em atitude pioneira, monta um corpo editorial eminentemente brasileiro para o desenvolvimento da coleção de livros. A proposta não era apenas tradu-
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MEMÓRIA 1964: UM ANO QUE MUDOU O MUNDO
zir o original, mas criar conteúdo próprio. Com Antonio Callado assumindo as funções de redator-chefe do grandioso projeto, a primeira edição é finalmente colocada no mercado em março de 1964. O nome escolhido para a Britannica nacional foi Barsa, junção do sobrenome de Dorita com o de seu marido, o diplomata Alfredo de Almeida Sá. O empreendimento contou com a colaboração de 300 redatores brasileiros, que ajudaram a elaborar as 7.500 páginas distribuídas em 12 volumes. A primeira edição foi totalmente esgotada em apenas oito meses, transformando-se num gigantesco sucesso editorial que resistiu até à revolução da informática. Desde 2000, a marca Barsa, tanto no Brasil como em toda a América Latina, é de propriedade do grupo espanhol Editorial Planeta. Por outro lado, se a Barsa chegou em 1964, no mesmo ano o mercado editorial brasileiro sofre duas lamentáveis baixas: as revistas Pererê e Senhor. Lançada em outubro de 1960, a Pererê é considerada a primeira revista de autor brasileiro de grande tiragem mensal. Tratava-se de uma publicação em quadrinhos totalmente protagonizada pela simpática e animada Turma da Mata do Fundão, ou Turma do Pererê, personagens criados por Ziraldo em 1958 e inicialmente publicados na revista O Cruzeiro. O índio Tininim, o coelho Geraldinho, o macaco Alan, o jabuti Moacir, a onça Galileu e tantos outros tipos inesquecíveis eminentemente nacionais eram capitaneados por ninguém menos que um Saci, símbolo chave do folclore brasileiro. Um verdadeiro choque de realidade para um público até então acostumado com patos e camundongos importados dos Estados Unidos. 32
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
Dois marcos do cinema são lançados em 1964: 007 Contra Gondfinger e Mary Poppins. Na área editorial, chega ao fim a lendária revista Senhor e o tablóide de humor, Pif-Paf, de Millôr Fernandes, precursor do Pasquim, que fôra lançado no mesmo mês do golpe militar.
A revista durou 43 edições, e mesmo mantendo uma respeitável tiragem média de 120 mil exemplares por número, foi descontinuada, não conseguindo encarar satisfatoriamente a forte concorrência multinacional. Se a Pererê circulou durante quatro anos, a Senhor teve um pouquinho mais de sorte: durou cinco. Lançada em janeiro de 1959, sua última edição, a de número 59, também chegou às bancas em 1964. A revista Senhor foi criada pelo jornalista Nahum Sirotsky para ser uma espécie de porta-voz de um Brasil novo e vanguardista, que se orgulhava da Bossa Nova, da construção de Brasília e da nossa moderna indústria automobilística. O time de colaboradores era formado por nomes de peso, como Paulo Francis, Odilo Costa, Otto Lara Resende, Carlos Scliar, Clarice Lispector, Diogo Pacheco, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar e Jaguar. Mas como o tal Brasil novo e pujante havia se transformado numa arcaica ditadura militar, não havia mais espaços, nem editoriais, nem publicitários, para um projeto que tomasse a vanguarda
como farol. Mesmo sob a sombra dos fechamentos de Pererê e Senhor, o sempre revolucionário e irreverente Millôr Fernandes lançou, em 21 de maio de 1964, a sua Pif-Paf. Na verdade, a nova revista, agora independente (onde “cada número é exemplar e cada exemplar é um número”, como já advertia a própria capa da primeira edição), era uma versão ampliada e reformatada da seção homônima que o escritor mantinha até o ano anterior na revista O Cruzeiro. “Agora diretamente do produtor ao consumidor”, conforme escrito na capa. No corpo editorial, nomes como Claudius, Fortuna, Jaguar, Ziraldo e outros grandes expoentes do humor nacional faziam troça e chacota (como se dizia na época) de tudo e de todos, como, aliás, deve ser o bom humorista. Porém, como não existe ditadura bem humorada, evidentemente o projeto durou pouco: apenas oito números. Todos eles exemplares. Além de enciclopédias e revistas, 1964 foi também um ano marcante na área de lançamentos de livros. Entre eles, o muito estudado e pouco compreendido Mani-
festo do Poema-Código ou Semiótico, de Décio Pignatari e Luiz Angelo Pinto. Mais acessível e irreverente, Stanislaw Ponte Preta lança seu Garoto Linha Dura, enquanto Clarice Lispector coloca A Legião Estrangeira nas prateleiras. Aquele também foi o ano de lançamento de Re/Visão de Sousândrade, de Augusto de Campos e Haroldo de Campos, de Ideologia da Sociedade Industrial, de Herbert Marcuse, enquanto Marshall McLuhan, o teórico da “aldeia global”, lançou Understanding Media: The Extensions of Man. O ano também marca o lançamento de As Palavras, autobiografia de Jean-Paul Sartre. Não deve ter sido fácil para os fãs da boa leitura manter o orçamento em dia durante 1964. Nos esportes, o ano registrou uma grande vitória e uma constrangedora derrota para o Brasil. Primeiro, a boa notícia: em 4 de julho, a tenista Maria Esther Bueno vence seu terceiro título em Wimbledon ao bater a australiana Margareth Smith, por 2 sets a 1. Pouco tempo depois, entre 10 e 24 de outubro, o Brasil leva para o outro lado do mundo nada menos que 68 atletas (apenas uma mulher) para representar o País nas Olimpíadas de Tóquio. Disputamos atletismo, basquete, boxe, futebol, hipismo, judô, natação, pentatlo moderno, polo aquático, vela e vôlei. Resultado: uma única medalha de bronze (no basquete masculino) e um discretíssimo 35º lugar no quadro de medalhas. Em plena Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética disputaram também a liderança da competição, onde os norte-americanos levaram 90 (36 de ouro, 26 de prata e 28 de bronze) e os soviéticos 96 (30 de ouro, 31 de prata e 35 de bronze). Num ano de intensos conflitos raciais, como já foi visto, a África do Sul foi banida do evento por conta de sua política segregacionista. Ouro e centavos Em clima de medo econômico, os Diários Associados lançam, em maio, a campanha “Ouro para o bem do Brasil”, com o objetivo de angariar doações de peças de ouro para ajudar no progresso do País. Quem se dispusesse a doar parte de suas jóias, alianças ou qualquer artefato de ouro se tornaria, aos olhos dos Diários, um “legionário da democracia”, recebendo em troca uma aliança de prata com a inscrição “dei ouro para o bem do Brasil”. Mas era bom doar logo, antes que a inflação corroesse o poder aquisitivo da população. Afinal, o ano termina com a eliminação daquilo que já não valia mesmo mais nada: os centavos da nossa moeda. No dia 2 de dezembro, enquanto o então Ministro Roberto Campos travava uma batalha insana contra a inflação, os centavos foram extintos por decreto presidencial. Não fizeram nenhuma falta. Naquele momento, cada centavo brasileiro valia 0,0000061 dólar. E, depois daquele ano, nosso país nunca mais foi o mesmo. Nem o mundo.
LIBERDADE DE IMPRENSA
Brasil tem maior número de assassinatos de jornalistas na América Latina em 15 anos P OR C LÁUDIA S OUZA Com quatro mortes ocorridas no primeiro semestre, o Brasil registrou em 2013, ao lado da Guatemala, o maior número de assassinatos de jornalistas entre todos os países das Américas, segundo o Relatório Anual sobre Liberdade de Expressão preparado pela relatoria especial do tema na Comissão Interamericana de Direitos Humanos-CIDH da Organização dos Estados Americanos-OEA, divulgado em 24 de abril, em Washington-EUA. O documento relaciona o Brasil entre as nações do continente nas quais houve recentemente avanço significativo de assassinatos de profissionais de comunicação. Entre 1995 e 2010, o País registrou 26 casos. No triênio 2011-2013, foram 15 mortes. A cobertura de manifestações aumentou o risco para o exercício da atividade jornalística no Brasil. Honduras e México são outros Estados com estatísticas de mortes de jornalistas alarmantes. Foram assassinados 18 profissionais no continente em 2013 – todos na América Latina. “No caso do Brasil, a violência tem estado associada à investigação de esquadrões da morte e do crime organizado, a violações de direitos humanos cometidas pelas forças de segurança do Estado, à corrupção e à conduta de servidores e políticos locais”, afirma o documento, assinado pela relatora especial de Liberdade de Expressão, Catalina Botero. Em 22 de fevereiro do ano passado, o jornalista Mafaldo Bezerra Goes, âncora da Rádio FM Rio Jaguaribe, foi assassinado com cinco tiros em Jaguaribe, no Ceará, após ser emboscado por dois indivíduos. Ele estava recebendo ameaças de morte por denunciar crimes na região. Num espaço de 40 dias, dois jornalistas foram assassinados em 2013 na região do Vale do Aço, em Minas Gerais. O repórter de Polícia do jornal Vale do Aço, Rodrigo Neto de Faria, também âncora do “Plantão Policial” da Rádio Vanguarda, foi morto com dois tiros em 8 de março, em Ipatinga. Ele vinha recebendo ameaças por denúncias de corrupção policial e crimes. Duas pessoas, entre elas um policial, foram indiciadas pelo crime. Em 14 de abril, o fotógrafo Walgney Carvalho, que também trabalhava no Vale do Aço, foi assassinado com vários tiros por um motoqueiro enquanto jantava em um restaurante de Coronel Feliciano. O acusado foi um dos assassinos de seu colega Rodrigo, com o qual havia feito reportagens e compartilhado informações. Outra morte registrada em 2013 foi a de José Roberto Ornelas de Lemos, diretor administrativo, jornalista e filho do dono do diário Hora H, de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, no estado do Rio. Ele já havia sofrido um atentado em 2005. O periódico é especializado em cobertura policial.
Emboscado por quatro homens em uma padaria, José Roberto foi alvo de mais de 40 tiros em 11 de junho. De acordo com o relatório, “o Estado deve reforçar seu papel de protetor da integridade dos profissionais de comunicação e enfatizar a investigação dos casos de violência, conforme o item 9 da Declaração de Princípios de Liberdade de Expressão da CIDH, adotada em 2000.” O órgão observa que o Brasil precisa oferecer proteção adicional às testemunhas deste tipo de crime, que acabam muitas vezes assassinadas, o que promove a impunidade. “O assassinato, o seqüestro, a intimidação e/ou as ameaças a comunicadores sociais, bem como a destruição de meios (e instrumentos) de comunicação, violam os direitos fundamentais dos indivíduos e restringem severamente a liberdade de expressão. O Estado tem o dever de prevenir e investigar essas ocorrências, punir os culpados e assegurar que as vítimas recebam a devida compensação”, diz o Princípio 9. Segunda a relatoria, há avanço no Brasil no combate à violência contra jornalistas, citando o julgamento dos assassinos do repórter da TV Globo, Tim Lopes, como exemplo para toda a América latina – e aplaudindo a criação do Grupo de Trabalho federal sobre direitos humanos dos profissionais de mídia. Proteção A intenção do governo de criar um programa especial de proteção a jornalistas foi considerada uma das ações de destaque nas Américas em 2013, ao lado de iniciativas semelhantes de México, Honduras e Guatemala. Também é vista como medida acertada o projeto de lei que dá à Polícia Federal autorização para investigar crimes contra jornalistas e a mídia de forma geral. Em relação aos protestos que levaram milhões de pessoas às ruas em diversos estados brasileiros, a Relatoria de Liberdade de Expressão recebeu 56 denúncias de casos de violência contra jornalistas em apenas cinco meses, englobando agressões por policiais (28) e por manifestantes (16), incluindo uso deliberado de balas de borracha contra quatro profissionais de imprensa – com danos permanentes de visão a alguns deles – e a prisão arbitrária de sete repórteres durante a cobertura dos eventos. O documento, porém, menciona o relatório da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo-Abraji pelo qual a contabilidade sobe para 102 ataques a jornalistas, dos quais 77 realizados por forças policiais. O documento da CIDH enfatiza a necessidade de o Estado implementar as diretrizes da Declaração Conjunta (com a relatoria da Organização das Nações Unidas) sobre Violência contra Jornalistas na Cobertura de Protestos, de 2013, pela qual o trabalho da imprensa deve ser protegido, com a adoção de protocolos pela Polícia com
esta finalidade, e o acesso aos locais deve ser viabilizado, para garantir o direito à informação da população. As autoridades devem vir a público condenar agressões aos profissionais de comunicação. Iniciativas do governo brasileiro foram elogiadas pela Relatoria. Entre os destaques estão a resolução do Centro de Defesa de Direitos da Pessoa Humana da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, recomendando que não sejam utilizadas armas de fogo e seja restrito o uso de ferramentas como gás lacrimogêneo e sprays de pimenta pela Polícia em manifestações, e a criação de um grupo para estudar a regulamentação dessas armas não-letais. O órgão da CIDH também recomenda o treinamento de jornalistas para situações de risco pelos veículos de comunicação, como coberturas de manifestações e áreas conflagradas. Outro tema que suscita a preocupação da Relatoria é a grande quantidade de ações criminais contra jornalistas, condenados por calúnia, difamação, desacato e injúria à prisão e ao pagamento de compensação financeira, conforme prevê o Código Penal de 1940, atualmente em revisão pelo Congresso Nacional. O documento sugere que juízes não observam o critério de proporcionalidade nas sentenças e que políticos, autoridades e servidores estão entre os principais litigantes da imprensa. Comentários negativos contra o Senador José Sarney em um blog levaram a Justiça Eleitoral do Amapá a condenar a jornalista Alcinéa Cavalcanti, que teve contas e bens bloqueados, a pagar R$ 2 milhões em indenização. O jornalista Luiz Carlos Bordani, foi condenado a pagar R$ 200 mil ao Governador de Goiás, Marconi Perillo, e retirar do ar todo o conteúdo de seu site relativo ao político. Em Sergipe, ocorreu o caso do jornalista Cristian Goes, que foi condenado a sete
meses e 16 dias de prisão e pagamento de indenização de US$ 150 mil por crime de injúria contra um juiz que se sentiu ofendido por um texto de ficção, intitulado “Eu, o coronel em mim”, que o profissional publicou em seu blog. Em audiência na CIDH em 2013, a relatora especial Catalina Botero já havia advertido o Brasil sobre os riscos de se manter a criminalização da opinião, representada pelas tipificações de calúnia, difamação, injúria e desacato. A Relatoria, que apresentou a pedido do Brasil parecer sobre a reforma do Código Penal, faz ressalvas sobre o projeto de lei, de autoria de Sarney. O PL acaba com a figura do desacato, mas mantém a qualificação para ofensa a funcionários públicos e sobe o acréscimo de tempo de prisão para 50% nestes casos. Calúnia, injúria e difamação têm a pena máxima elevada a três anos. – A Corte Interamericana de Direitos Humanos já deixou claro que este tipo de norma penal, que pode incidir sobre o vigor, a abertura e a desinibição do debate público, tem que respeitar a Convenção Americana. É importante revisar as normas de desacato, não porque não tenham honra os funcionários públicos, mas pelo dano que essas normas podem causar ao debate democrático. A ameaça de prisão produz medo, intimidação, especialmente a jornalistas de áreas mais vulneráveis – afirmou Catalina Botero, em outubro de 2013. O relatório faz análise especial da situação da internet no contexto da liberdade de expressão. O Marco Civil da Internet, sancionado pela Presidente Dilma Rousseff, é elogiado como referência para as Américas. São elogiadas a garantia de neutralidade da rede, a proteção dos intermediários (como sites de notícias, em relação a obrigação de controle de conteúdo publicado) e os mecanismos de incentivo ao acesso à rede.
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LIBERDADE DE IMPRENSA
Explode número de casos de agressões a jornalistas Em 2013, ano em que os protestos populares tomaram as ruas do Brasil, as agressões contra jornalistas no País cresceram 232%. De acordo com dados do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana-CDDPH, órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República-SDH/PR, enquanto em 2012 houve 41 casos de violência, em 2013 o número saltou para 136. O estudo foi apresentado no dia 8 de abril, no seminário “A Liberdade de Expressão e o Poder Judiciário”, no Rio.
Segundo Tarciso Dal Maso Jardim, do CDDPH, a escalada da violência em 2013 se deveu principalmente aos protestos iniciados em junho. Ele defendeu a criação de um protocolo policial para evitar agressões a jornalistas por parte da polícia e para protegê-los de ataques de manifestantes. Outras propostas do CDDPH são a criação de um programa de escolta da Polícia Federal para jornalistas ameaçados, um observatório das violações na área e uma campanha para classificar como
abuso de autoridade a apreensão de equipamentos de trabalho dos repórteres por agentes de segurança. Segundo o levantamento, desde 2009 o Brasil registrou 321 casos de violência contra jornalistas e comunicadores, com 18 assassinatos. Para Guilherme Canela, assessor regional da Unesco, a agressão a jornalistas é um ataque à liberdade de expressão: “Se o cidadão percebe que nem os jornalistas estão protegidos, ele imagina que também não está, bem como o seu direito de se expressar”.
Jornalistas cobram novo perfil na formação de PMs Sindicatos de jornalistas e representantes do Ministério da Justiça participaram, no dia 11 de abril, de um debate na Câmara sobre os recentes episódios de violência policial contra profissionais de comunicação que cobrem os protestos de rua. Na audiência pública, promovida pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, comunicadores pediram mudanças na formação de policiais. De acordo com o diretor de relações institucionais da Federação Nacional de Jornalistas-Fenaj, José Carlos Torves, dois terços das agressões sofridas pelos jornalistas partiram da polícia. “Nós já expressamos ao Ministério da Justiça que é preciso rever a formação dos policiais, que ainda estão sendo formados como no período da ditadura. Jornalistas, quando identificados em uma manifestação, muitas vezes são agredidos e têm seu material apreendido. Isso não pode mais ocorrer”.
Torves, que também representou a Central Única dos Trabalhadores-CUT, afirmou que as agressões de manifestantes vieram de grupos violentos infiltrados nos protestos, e cita como exemplo a morte do cinegrafista Santiago Ilídio de Andrade, da TV Bandeirantes, em março. O diretor da Fenaj acredita haver o hábito de confundir os jornalistas com a linha editorial dos veículos. A Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça criou um grupo de trabalho com associações de jornalistas e de empresas jornalísticas para buscar diretrizes que auxiliem na proteção desses profissionais e no livre exercício da profissão. O grupo de trabalho deve encerrar suas atividades em abril. Segundo o assessor da Secretaria Nacional de Segurança Pública, Guilherme Leonardi, esse grupo vai apresentar orientações para redução do risco no trabalho, como o uso de equipamentos de proteção.
Segundo Leonardi, o estudo definirá orientações sobre como se preparar para a manifestação, como proceder durante a manifestação e, posteriormente, também como avaliar o que ocorreu, quais foram os danos, o que poderia ter ocorrido de forma diferente, o que poderia ter sido evitado. “São para todos os espectros. É importante que a gente reconheça o papel dos profissionais de comunicação, das entidades que possuem os veículos de comunicação e também dos profissionais de segurança.” Para o Deputado Policarpo (PT-DF), debates como o realizado pela Comissão de Trabalho são importantes para chamar a atenção sobre o tema. “Que esse debate sirva não apenas para permitir que o trabalho do jornalista seja feito com tranqüilidade, mas ao mesmo tempo que chame atenção para esse problema. As pessoas têm que se manifestar, têm que fazer suas manifestações, mas de forma livre e sem violência.”
ABI repudia violência policial contra repórter de O Globo P OR I GOR W ALTZ O repórter do jornal O Globo, Bruno Amorim, foi detido no dia 11 de abril por um policial militar, quando cobria a desocupação da favela da Telerj, na Zona Norte do Rio. Durante ação, PMs agrediram fisicamente e ameaçaram de prisão os profissionais de imprensa que estavam no local. De acordo com o relato do jornal, o policial militar, sem identificação, teria arrancado os óculos de Amorim e aplicado-lhe uma ‘chave de braço’. Após ser imobilizado, o repórter afirmou que foi filmado pelo PM, que teria dito: “Estou filmando um repórter da Globo que estava jogando pedras. Vocês mostram a nossa cara, agora estou mostrando a sua”. Amorim teve o seu aparelho celular apreendido pela polícia por mais de uma hora e não conseguiu se comunicar com a Redação. Jornalistas de outros veículos ligaram para suas chefias para noticiar a prisão de Amorim, que foi encaminhado para a 25ª DP (Rocha), sendo liberado em seguida. Bruno foi acusado de desacato, incitação à violência e resistência à prisão, mas o caso não foi registrado pela Polícia Civil.
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Censura A Associação Brasileira de Imprensa-ABI manifestou preocupação com a escalada da violência que vem sendo registrada contra jornalistas, não apenas no Rio de Janeiro, mas em todas as regiões do País. “A violência reflete o desrespeito com a atividade jornalística. É inadmissível que em pleno Estado de Direito se reproduzam atos de truculência e censura contra profissionais de imprensa. Esta grave situação nos remete aos métodos de intimidação utilizados durante o regime militar”, destacou Domingos Meirelles, diretor da ABI. Desocupação A retirada dos moradores da favela da Telerj foi determinada pela Justiça como reintegração de posse do prédio de propriedade da empresa Telemar, que estava ocupado por cerca de 6 mil pessoas há 11 dias. Aproximadamente 1.650 policiais do 3º BPM (Méier), do Batalhão de Operações Especiais-Bope e do Batalhão de Choque-BPChq foram mobilizados para a retirada dos ocupantes do imóvel. A desocupação começou de forma pacífica
ainda na madrugada, mas por volta das 6h45 teve início o confronto entre policiais militares e os ocupantes após a prisão de uma das líderes dos sem-teto. Os PMs utilizaram bombas de efeito moral e gás lacrimogênio para tentar controlar a situação. Quinze ônibus foram atingidos (quatro deles, queimados), outros três veículos foram incendiados (entre eles um carro da polícia) e pelo menos três agências bancárias foram depredadas. Um supermercado foi invadido e saqueado, e um veículo de uma emissora de televisão também foi atacado. No confronto com a PM, pelo menos 19 pessoas ficaram feridas, entre elas, 12 policiais militares e três crianças. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, Maicom Gonçalves Melo, de 25 anos, um dos integrantes do protesto, perdeu o globo ocular esquerdo e está internado no Hospital Souza Aguiar, no Centro. De acordo com a polícia, 25 pessoas foram detidas – sendo 21 suspeitos de participar do saque ao supermercado. Deles, quatro foram presos. Às 13h27, entretanto, a maioria havia sido liberada, já que não houve flagrante.
O seminário, promovido pelo Supremo Tribunal Federal, Organização das Nações Unidas-ONU, Organização dos Estados Americanos-OEA e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura-Unesco, teve como objetivo debater o papel do Judiciário na garantia da liberdade de expressão. “A impunidade retroalimenta a violência. Há lugares em que há poucos casos de violência, mas uma autocensura absurda, porque ameaças anteriores já deram conta do recado”, disse Canela.
Brasil é terra fértil em impunidade para assassinos de jornalistas O Brasil é um dos países do mundo com maior número de casos não solucionados de mortes de jornalistas, de acordo com o Índice Global de Impunidade, divulgado em 16 de abril pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas-CPJ. Na 11ª posição, o Brasil aparece com nove assassinatos de profissionais de imprensa cujos responsáveis não foram punidos. Para o CPJ, organização não governamental de defesa da liberdade de imprensa, sediada em Nova York, as autoridades brasileiras obtiveram em 2013 apenas três condenações. Na América do Sul, Brasil e Colômbia são os únicos a integrar a lista. O Brasil ficou atrás do país vizinho, oitavo colocado com seis mortes impunes, porque o índice calcula o número de assassinatos não resolvidos levando em conta o percentual em relação à população. Apesar de ter matado mais, o Brasil aparece com 0,045 assassinatos por milhão de habitantes contra 0,126 da Colômbia. Apenas os países com cinco ou mais casos sem solução são incluídos na lista. Este ano, 13 foram enquadrados nesse critério, contra 12 na relação divulgada em 2013, destacou o CPJ. Assim como no ano passado, a lista atual é liderada por Iraque, Somália e Filipinas. Também integram a relação o Sri Lanka, em quarto, seguido por Síria, Afeganistão, México, Colômbia, Paquistão, Rússia, Brasil, Nigéria e Índia. “Nos últimos anos, a posição do Brasil no índice tem subido e baixado à medida que avanços esporádicos, mas significativos, na abertura de processos judiciais contra criminosos são confrontados com novos casos de assassinatos”, explica a organização em comunicado. (Igor Waltz)
ROSANI ABOU ADAL
VIDAS
Morto aos 76 anos, no dia do trabalho, jornalista e escritor, humanista exemplar, ele foi um incansável e respeitado defensor da ética humana e da justiça social, princípios a que se manteve fiel até o fim.
Rodolfo Konder, um humanista POR GONÇALO JÚNIOR
H
avia um tempo em que um jornalista tinha de tomar posição. Ficar em cima do muro, nem pensar. Mesmo que se obedecesse à risca a cartilha do chamado jornalismo imparcial, cuja ética recomendava o equilíbrio, o ouvir os dois lados. Que assim fosse. Mas se o momento pendesse a balança para o lado errado, o da opressão, da censura, da injustiça social, como nos 21 anos da ditadura militar, era preciso denunciar, brigar, ir às últimas consequências. Mesmo que a vida estivesse em risco. Com essa noção em mente, Rodolfo Konder presenciou um dos mais trágicos e decisivos momentos da história recente do País. No dia 25 de outubro de 1975, ele estava preso no Doi-Codi, em São Paulo, e se tornou uma das últimas pessoas a ver seu colega jornalista Vladimir Herzog com vida, enquanto enfrentava ameaças e violentos interrogatórios. Foi o primeiro a denunciar que Herzog havia sido assassinado pelos torturadores. Konder estava preso por causa de sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas incomodava de fato pela ousadia de denunciar tantos abusos e injustiças cometidos depois que a ditadura militar começou, em abril de 1964. Por isso, tinha sido obrigado a se exilar para salvar a própria vida e as daqueles que com ele conviviam. Havia se transformado em um batalhador da liberdade de imprensa e da democracia no Brasil. Para azar do regime, sua prisão foi fundamen-
tal para se saber em detalhes tudo o que aconteceu com Herzog. Quem questionaria na época a verdade por ele dita? Mas ele só teve chance de revelar o assassinato depois de sair da prisão. Do Doi-Codi, foi para o Dops. No escritório do seu advogado, fez o depoimento sobre tudo o que tinha visto na central de tortura da ditadura. Em 1976, com o avanço do processo de abertura, instado por amigos como Clarice Herzog e Fernando Jordão e por seu advogado, achou que era hora de publicar o depoimento. Saiu em todos os jornais. Há cinco anos, ele relembrou toda a história ao Jornal da ABI, em uma longa entrevista. “A partir daí, comecei a ser ameaçado pelo braço armado da repressão e tive de fugir pela fronteira em Foz do Iguaçu. Meu segundo exílio, de dois anos”. O que contou foi apenas o que viu lá dentro, ressaltou. “Ficávamos todos em uma sala de espera com macacão do Exército, sem cinto e encapuzados. Mas, levantando um pouco o capuz, era possível ver e até identificar as pessoas sentadas por perto. Eu e o Duque Estrada, que estávamos lado a lado, vimos quando chegou por ali o Vladimir Herzog”. Konder viu quando o jornalista da TV Cultura foi levado para o interrogatório. Essa sala de espera ficava no térreo. “Eu tinha sido interrogado no dia anterior no andar de cima, mas ele foi interrogado numa sala ao lado, no próprio térreo. Sei disso porque um dos carcereiros, cujo apelido era Marechal, veio nos pegar e nos le-
vou à sala onde ele estava sendo interrogado. O Sargento Pedro Grazieri, com sua âncora tatuada no antebraço esquerdo, era quem o interrogava. O homem era um torturador e já o havia torturado na véspera. Ele disse: ‘Vlado aí está negando tudo. Vai entrar no cacete. É melhor vocês o convencerem a abrir logo o jogo’”. Desesperado, Konder tentou ajudar. “Eu e Duque Estrada lhe dissemos: ‘Olha, Vlado, eles já estão sabendo da existência da nossa base, então não adianta mais negar’. Mas ele respondeu: ‘Não sei do que vocês estão falando’. Fomos retirados da sala. Pouco tempo depois, começamos a ouvir os gritos dele. Veio até um policial aumentar o som do rádio no corredor, mas nem isso conseguiu abafar os gritos, que eram de quem primeiro estava apanhando e depois levando choques elétricos. Eram gritos diferentes. Quando tudo parou, fui levado novamente à sala. Ele já estava assinando a confissão. Nós, comunistas, éramos obrigados a assinar de próprio punho uma confissão”. Mas era tudo ditado, forçado em circunstâncias de grande horror pela tortura. “A dele dizia: ‘Fui aliciado para o Partido Comunista pelo Rodolfo Konder ’. Nenhum de nós usaria esses termos. Eu percebi que o Vlado estava em dúvida sobre o nome de um de nossos companheiros, o Argileu, que não tinha aparecido ainda. Mas Vlado não sabia disso. Tergiversei e disse: ‘Hum, Vlado, acho que você está confundindo com fulano’. Ele percebeu e concordou.
Nesse momento, tiraram-me da sala novamente. Ele estava assinando a confissão. Acredito que ele tenha tido uma crise de consciência e rasgado o papel”. Veio, então, a morte. “Aí, o pessoal bateu nele outra vez, mas agora sem técnica, com raiva. Nisso, ele caiu com a base da cabeça sobre o parapeito da janela e morreu. Para que pudessem retirar o corpo, fomos todos levados para o andar de cima com a desculpa de reconhecer alguns retratos. Eram pessoas que ninguém conhecia, apenas para nos ocupar no outro piso. No dia seguinte, o comandante do Doi-Codi nos chamou para dizer que Herzog era agente da KGB, o que já provocou uma indignação geral, pois o homem era iugoslavo e detestava a União Soviética. Imagina se seria agente da polícia secreta soviética? Depois, completou falando que ele tinha se suicidado”. Graças a Konder essa história foi contada, em detalhes, por um ato de coragem, algo que lhe era peculiar. Ele dizia que a liberdade de consciência é essencial. “Há uma farsa enorme na ação daqueles que a cerceiam com o argumento de que estão montando regimes para resolver todos os tipos de problemas. Lutar por essa liberdade é essencial”. Biografia rara
O potiguar que virou paulistano, nascido em 5 de abril de 1938, viveu para o jornalismo por toda a sua existência e construiu para si uma biografia rara, pre-
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FOTOS: ACERVO PESSOAL
VIDAS ciosa, impecável e exemplar, que merece ser reverenciada para além das Redações. Uma história de vida que sem dúvida renasceu quando ele partiu, no dia 1º de maio, dia do trabalho, depois de lutar contra um câncer. Ele estava internado na Unidade de Terapia Intensiva-UTI, do Hospital Beneficência Portuguesa, havia 20 dias. O corpo do jornalista foi cremado às 17h, no Crematório Horto da Paz, em Itapecerica da Serra, interior de São Paulo. “Comunas desde pequeninos”
Filho de Valério Konder, dirigente do PCB, e de Ione Coelho, e irmão do filósofo Leandro Konder e de Luíza Eugênia Konder, Rodolfo cursou Direito na faculdade do Largo de São Francisco, mas não terminou. Queria ser jornalista. “Como sabia ler e falar inglês muito bem, trabalhei muito com tradução de livros”. Gostava de dizer que se formou politicamente no útero da sua mãe. “Meu pai foi um dirigente comunista, dirigente inclusive internacional, membro do Conselho Mundial da Paz, amigo de Pablo Neruda, de Sartre. Sua personalidade muito forte influenciou toda a família. E eu e meu irmão nos tornamos comunas desde pequeninos”. Konder entrou no PCB quando foi aprovado no concurso da Petrobras, no fim dos anos de 1950 e começo dos anos de 1960. Quando veio o golpe militar de 1964, era um dos diretores do Sindicato dos Petroleiros do Estado da Guanabara. Embora muito jovem, tornara-se um destacado dirigente sindical e fazia parte da Fração Nacional dos Petroleiros. “Eu e outros colegas fomos recebidos em Brasília pelo Presidente João Goulart para discutir a cogestão na Petrobrás, que era um projeto nosso. Quando veio o golpe militar, eu fui cassado e passei a ser caçado pelo Governo”. Ainda em abril, nos primeiros dias do regime que já nascia ditadura, com perseguições e torturas, Konder concluiu que não poderia mais se esconder, pois estava colocando em risco as pessoas que o abrigavam. “Fui para o Consulado do México, na Praia do Flamengo, e de lá para a embaixada, na Praia de Botafogo, onde fiquei por quase dois meses até conseguir o salvoconduto e ir para o México”. No tempo em que esteve naquele país, manteve contato com o ex-Presidente Lázaro Cárdenas, a quem descreveu como uma figura ilustre na História mexicana e amigo de seu pai. “Fui muito bem recebido, mas percebi que precisava ficar mais próximo do Brasil. Procurei a Embaixada do Uruguai para tentar a transferência do asilo político”. Como o embaixador era um ex-bancário e o brasileiro tinha alguns amigos entre os líderes bancários que também estavam exilados, ele foi incluído na lista e transferido. “Saímos do México, viemos pela Costa do Pacífico, porque não podíamos sobrevoar o território brasileiro, fomos até o Chile, Argentina e, por fim, Uruguai, onde estive um tempo com João Goulart, Leonel Brizola e diversos políticos brasileiros”. Depois de um tempo no Uruguai e mais algumas reuniões com os líderes políticos brasileiros exilados, Konder 36
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concluiu que era tempo de voltar. “O pessoal (que apoiara Jango) estava sem direção, Brizola queria promover um levante no Rio Grande do Sul contra o Governo, mas as possibilidades de êxito eram pequenas”. Em algumas conversas, o jornalista descobriu que havia um aparelho (pequeno grupo de militantes do PCB) na fronteira que ainda estava em fase experimental e resolveu arriscar. “Lembro-me ainda da senha quando cheguei a Porto Alegre: ‘Vou negociar os couros de Santa Maria’”. Começar de novo
Eram fins de 1965, Konder estava voltando e precisava começar de novo. Por isso, escolheu o jornalismo. “Uma das minhas raras habilidades era ler e escrever”, justificou, modestamente. “Naquela época, o jornalista sabia ler e escrever muito bem, hoje nem tanto”, ressaltou. Na clandestinidade, fez traduções para Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira. Como também sabia inglês, recebeu um convite de Luiz Mário Gazzaneo e foi trabalhar como redator na Agência Reuters. Em seguida, para o jornal O Paiz. “Assim comecei minha vida profissional. Dava para me manter tranqüilamente. Até o AI5, quando novamente me senti ameaçado e aceitei o convite do Milton Coelho da Graça para trabalhar em São Paulo, na revista Realidade”. Na lendária publicação da Editora Abril, que modernizou a forma de se fazer jornalismo no País, ele trabalhou ao lado de profissionais de grande talento como Maurício Azêdo, Presidente da ABI, falecido no ano passado. Em quase meio século de carreira, Rodolfo Konder participou de praticamente todos os grandes veículos importantes da imprensa brasileira. Autor de mais de duas dezenas de livros, tornou-se militante político contra a ditadura militar pela imprensa e fez política clandestinamente, o que o levou à prisão e à tortura em 1975. No período da redemocratização, atuou em grupos de direitos humanos e presidiu a seção brasileira da Anistia Internacional. Nos últimos 35 anos, passou pelas Redações das revistas Singular Plural, Visão, IstoÉ, Afinal, Nova, Playboy, Revista Hebraica e Época. Até descobrir sua vocação para tv e rádio. Durante quatro anos, foi editor-chefe e apresentador do Jornal da Cultura, na TV Cultura de São Paulo, e colaborador permanente de O Estado de S. Paulo durante dez anos. Ele comparou os dois veículos que adotou no fim da vida: “No rádio você tem um público que reage muito mais prontamente, informação imediata. Na televisão você tem uma visibilidade maior. Aprendi como lidar diariamente, cotidianamente. Quando entrei na TV Cultura, introduzimos no telejornal a prática de o apresentador fazer comentários sobre a notícia, o que aprofundava o conteúdo”. Lembranças dos amigos
Ao mesmo tempo, Konder foi professor na Faculdade de Jornalismo da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) durante um ano e conselheiro da União
Brasileira de Escritores. Em 2001 ganhou o prêmio Jabuti pelo livro Hóspede da Solidão, além dos prêmios Monteiro Lobato (1979), Vladimir Herzog (1982), Hebraica (1995), ECO (2002) e Borba Gato (1996). Mas a melhor forma de dimensionar o vazio que Konder deixa é, sem dúvida, pelo lamento dos amigos. “Pouco conversei com ele ao longo de sua vida. Mas, muito me entendi com ele”, observa o jornalista e escritor Nildo Carlos Oliveira, parceiro de décadas. Os dois se conheceram em meados dos anos 1970. “Até então, ele já vivia perseguido, uma perseguição política implacável iniciada imediatamente depois do golpe de 1964 e que só parou – se é que a perseguição à inteligência pára algum dia – por volta de 1978 ou 1979”. Segundo Oliveira, quando era perseguido, o amigo vivia se movimentando em dois caminhos: a política e a cultura. “E, na política, as conversas eventuais eram de bastidores para a preservação da sobrevivência própria e dos companheiros que se articulavam contra a ditadura. Contudo, política e cultura têm caminhos entrelaçados. Rodolfo vinha de uma família onde esses dois vetores da identidade e da consciência humana se enriqueciam”. Para o amigo, Konder deixa um legado cultural com obras de ficção, com trabalhos jornalísticos cuidadosamente elaborados e com a memória do que viveu. Sobretudo, deixa a seguinte advertência, inserida em um de seus últimos trabalhos publicados: “Não podemos esquecer (a ditadura brasileira), até porque os demônios do autoritarismo e da intolerância ainda nos espreitam, na sombra”. Beatriz Helena Ramos Amaral, escritora, ensaísta e Procuradora de Justiça, amiga
inseparável e dedicada, fala dele como alguém que era e sempre será um dos maiores parceiros de idéias e princípios que teve na vida. “Elegante, bom ouvinte, conselheiro, confidente, mestre. Adorava contar histórias, mas também sabia ouvir como ninguém”. A amizade dos dois floresceu no começo dos anos de 1990, quando Konder editava e apresentava o Jornal da Cultura, antes de assumir a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Em 1994, ele e o escritor Cláudio Willer convidaram Beatriz para coordenar alguns projetos de literatura e cultura na Secretaria. “Aceitei e coordenei vários ciclos, como Clarice Lispector, Edgard Braga, Poesia 96/97 etc. Lembro-me muito bem do lançamento de seu sétimo livro, Palavras Aladas (1992), e dos vinte e seis que se seguiram, em cujas sessões de autógrafos sempre compareci. Os livros mais recentes, ele me enviava pelos Correios”. Os dois estiveram juntos em várias gestões da Diretoria da União Brasileira dos Escritores, São Paulo (UBE-SP). Ele, como Conselheiro, ela, como Secretária-Geral e Diretora, entre os anos de 1996 e 2005. Atuaram em Comissões Julgadoras de Concursos de Literatura e fizeram parte de várias coletâneas de contos lançadas até o começo do novo século. “Em 2003, Rodolfo deu-me a alegria de prefaciar meu livro Alquimia dos Círculos (Escrituras Ed.), presenteando-me com seu belo texto ‘Asa livre’. Também escrevi resenhas sobre vários de seus livros, entre os quais A Memória e o Esquecimento, Rastros na Neve, Cassados e Caçados, A Invasão, Educar é Libertar, O Destino e a Neve. Ele gostou tanto das resenhas que decidiu publicá-las, reunidas a outras, de outros autores, no volume En-
“Deixou os amigos saudosos de verdade” Conheci Rodolfo Konder quando passei a dirigir a revista Visão, onde ele era editor da seção Internacional. Impressionavam seus textos, e a sua permanente atenção, educação, delicadeza e fidelidade aos amigos. Apreciava como ninguém os textos de Jorge Luis Borges, que sabia de cor, e um bom sorvete Kibon, que consumia por atacado. Assim como na TV Cultura, convivi bastante com ele no dia a dia do trabalho, bem-humorado, solícito, e pronto a comentar com inteligência os fatos políticos do dia. No enterro de Vladimir Herzog, chegou direto do Doi-Codi em uma daquelas vans mal-assombradas e se dirigiu até mim. Atrás de nós postaram-se dois dos três tiras que o haviam trazido. “Vão me matar”, disse, trêmulo e abalado, enquanto mostrava os sinais dos choques elétricos aplicados em seus punhos. Passada a época negra, nunca vi Rodolfo queixar-se dessa macabra experiência. Preferia tratar o assunto com a mesma lhaneza com que enfrentava assuntos não tão espinhosos, sem dramatizar. Deixou os amigos saudosos de verdade. R OBERTO MUYLAERT
Considero um privilégio a amizade e o convívio com Rodolfo Konder. Na homenagem ao cidadão que marcou com grandeza sua presença no País, expresso minha admiração não apenas ao intelectual, mas ao homem solidário, pleno de qualidades de sumo valor. Culto, de conversa saborosa, permeada às vezes de certa ironia, de educação requintada, era admirado por seus amigos e por quem o conhecia. A vida profissional se estende em amplo e multifacetado percurso. Jornalista, escritor, cronista, contista, romancista premiado, com Hóspede da Solidão, que lhe rendeu o Jabuti. Konder ocupou cargos relevantes, foi Secretário de Cultura do Município, Conselheiro do MASP, da União Brasileira de Escritores, Membro do Conselho Municipal de Educação, fundador da Anistia Internacional em São Paulo, Diretor da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em São Paulo, Defensor dos Direitos Humanos. Sua luta contra a Ditadura levou-o à prisão, à tortura e ao exílio. Suas posições políticas exigiram-lhe o sacrifício do bem estar pessoal. A vida de Konder marcou-se pela Defesa dos Direitos Humanos, pela Defesa da Democracia e da Liberdade. Rodolfo Konder deixa saudades e um vazio para seus amigos. Na história da nação ocupa lugar relevante, entre
Rodolfo Konder entre amigos: acima, com Fernando Henrique Cardoso; ao lado, com Teotônio Vilela, e na outra página, com Ferreira Gullar.
Rodolfo Konder preso no Doi-Codi
as personalidades que recebem a admiração da posteridade. ANNA MARIA MARTINS
Rodolfo Konder, quer por iniciativa própria, quer pelas circunstâncias, desempenhou vários papéis importantes ao longo da vida: escritor, educador, jornalista e administrador. No âmbito das relações pessoais, destacou-se como leal amigo. Nos seus escritos cintila o culto da amizade. Ingressou na UBE/SP a 4 de agosto de 1982, em uma de minhas gestões, marcadas pelo combate à ditadura e pelo empenho pela profissionalização do escritor. Secretário de Cultura do Município de São Paulo, Konder recrutou na UBE os seus principais assessores. No período da abertura, imposta pela pressão popular, tornou-se Presidente da seção brasileira da Anistia Internacional, entidade destinada a proteger exilados, presos políticos e vítimas do pensamento livre. Recorde-se que, detido, dividiu a cela com Vladimir Herzog. Foi o primeiro a denunciar o assassinato do jornalista. Explorou repetidamente a obra de Jorge Luis Borges. Cronista e contista, divertiase a flagrar os rumos, ora trágicos, ora grotescos, do ser humano. Refinado, colecionava filmes anteriores a Hollywood e discos de música clássica. No último conto, publicado em 2014, proclama que “educar significa humanizar ”, que a educação deve perseguir um sonho. Pontua, na quarta-capa da derradeira obra, de 2014, Um Longo Percurso, o caminho que percorreu: “da fé à razão, da certeza ingênua ao ceticismo necessário.” Deixou amigos e admiradores. Saudosos e inconformados. FÁBIO LUCAS
contros com a Crítica, publicado em 2013, pela RG Editora.” Para surpresa da Procuradora, Konder decidiu inserir na capa deste livro uma foto em que estão juntos, na cerimônia de sua posse como titular da Procuradoria de Justiça Criminal. “Só soube da surpresa ao receber o livro, com uma belíssima dedicatória, o que me comoveu. Eram assim suas delicadezas e seu respeito pelo trabalho dos amigos”. Silvia Gyuru Konder, com quem Konder era casado havia quase 40 anos, escreveu um emocionante testemunho para o Jornal da ABI: “Rodolfo era um cavalheiro. Uma pessoa brilhante como profissional e um exemplo como pai. Lutou a sua vida toda contra a repressão, a favor da liberdade e da educação. Teve a capacidade de se reciclar ao longo de sua trajetória política e de se reinventar como profissional sempre no limiar do seu tempo. Além disso, esteve sempre presente na vida de nosso filho e foi, sem dúvida, seu melhor amigo”. Para ela, uma pessoa de princípios férreos que conseguia conviver com suas próprias contradições poéticas, um cidadão do mundo, defensor do humanismo, pai e esposo amado. Os seus textos, diz Silvia, como nos de Jorge Luís Borges que ele sempre admirou, tinham uma grande beleza estética aliada a uma profundidade singular, detinham uma imaginação infinita e eram
extremamente eruditos. “Usando a estrutura de um texto de seu maior ídolo, penso nas areias de Ipanema e na brisa do mar, no partido comunista e na tortura, nos encontros clandestinos e no amor da madrugada, a fuga pela fronteira e os anos de exílio, a neve dançando em nossa janela em Montreal, o jornalismo e a sua incessante defesa pela liberdade de expressão, o regresso à nossa pátria, o nascimento do nosso filho e os passeios pelas ruas de Estocolmo, um cachorro-quente em Nova Iorque, a Anistia e a Cultura, a grama verde de Machu Picchu, tardes assistindo a filmes no sofá, o amor, a doença, cada lágrima. Foram precisas todas essas coisas para que um dia nossas almas se unissem”. Para homenageá-lo, a companheira cita um fragmento de Borges que ele muito gostaria de reler: “Creio na imortalidade, não na imortalidade pessoal, mas na cósmica. Continuaremos sendo imortais, contudo, além de nossa morte corporal, resta nossa memória, restam nossos atos, nossos feitos, nossas atitudes, toda essa maravilhosa parte da história universal, ainda que não o saibamos e é preferível que não o saibamos”. Rodolfo Konder fez exatamente tudo isso ao longo de sua vida, sem titubear, sem vacilar, de modo natural, com a honestidade, a decência e a coerência com as mais nobres virtudes que norteiam a existência humana.
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VIDAS ELIANE SOARES
Mocassins pretos POR RODOLFO KONDER
E
xamino o chão ladrilhado, com atenção meticulosa. As minúsculas manchas nos ladrilhos, em determinados pontos, parecem formar desenhos que consigo identificar; geralmente, são pequenos rostos, figuras humanas às vezes bem distorcidas, ou animais. As imagens surgem e desaparecem, ganham significado ou se diluem num todo disforme e cego. Durante horas, elas se projetam e se retraem, vêm e vão, escorregadias como peixes, quase inapreensíveis. Vejo apenas o chão ladrilhado. Há dois dias, vejo apenas o chão ladrilhado. É verdade que vi alguns pés, durante essas 48 horas; vi os pés imensos de um estivador negro, que calçava sandálias de borracha; vi as botas enlameadas de um mecânico; os sapatos de camurça de um arquiteto; os mocassins pretos de um jornalista. (Vi também botas militares; conheço-as bem, porque, durante dois anos, muito tempo atrás, fiz o curso para oficial da reserva). Mas os pés logo se afastam, para gemer e gritar nas salas contíguas. É estranho pensar que, para os outros presos, também sou um par de pés que ora descansa sobre os calcanhares, ora se planta por inteiro sobre o chão ladrilhado. É muito estranho imaginar que, para eles, também me transformei num par de botas de pelica marrom, que os deixa de vez em quando para gemer e gritar nas salas contíguas. Há momentos em que o carcereiro bate na cabeça da gente e grita: "Levanta a cabeça, comuna!" Depois, ele volta a bater: "Abaixa a cabeça, comuna!" Está sempre batendo na gente, esse carcereiro. O outro apenas gritava – não batia. Teriam recebido instruções diferentes, ou seriam, de fato, pessoas diferentes? Essa minha dúvida decorre da minha incorrigível ingenuidade, ou é uma dúvida saudável, que devemos sempre estimular, mesmo na cadeia? Uma coisa é certa: ela não é operacional, isto é, não me ajuda a vencer o medo, nem a organizar as idéias. Lá dentro, o jogo se torna mais evidente: há sempre um interrogador violento, que grita, ameaça e bate
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com força, ao lado de outro brando, que argumenta, promete, adverte. Se a tática não funciona, então é hora da violência crua – e todos se tornam maus. Aqui no corredor de espera, as coisas são diferentes: a gente respira... puxa, como é importante a gente poder respirar direito... Além disso, a gente não ouve apenas as ameaças e os nossos próprios gritos, como acontece lá dentro. Vieram buscar o par de mocassins. Ele se arrasta – todos nós arrastamos os pés, ao caminhar de cabeça encapuzada. Desaparece. Então, ouço vozes, gritos, gemidos. Os gritos, inicialmente, são estridentes, fortes e abertos; meia hora depois, tornam-se fracos e abafados. Certamente enfiaram algum coisa na boca do jornalista. Alguém liga o rádio e aumenta ao máximo seu volume. Os gritos se misturam à voz empostada do lo-
cutor, que anuncia um terremoto na Indonésia. Em seguida, ele diz que o generalíssimo Francisco Franco – o ditador espanhol – recebeu extrema-unção e dificilmente sobreviverá a mais uma hemorragia interna. Mais gritos, mais notícias. Os pés se movimentam, inquietos. Todos se sentem intimidados, aviltados, sozinhos. Quando será minha próxima vez? Examino as mãos trêmulas que se apóiam no banco de madeira: há pequenas marcas escuras em volta dos polegares e dos indicadores – onde eles prendem os fios da tortura. Sinto a cabeça zonza, ainda me doem as pancadas recebidas nos ouvidos e na nuca. Pedi ao carcereiro um pouco de água, há quase meia-hora, mais sei que ele sempre demora a trazer a caneca de alumínio. Isso certamente faz parte das suas funções de carcereiro. Olho novamente o chão ladrilhado. Os ladrilhos me atraem, me observam. Tento inutilmente desviar os olhos, mas lá estão aquelas figurinhas enigmáticas, escorregadias, quase inapreensíveis. Ali está um rosto, de boca aberta; aqui, um cachorro; ao lado, um perfil de mulher. Logo, terão desaparecido. No fim da tarde, somos todos levados pelo braço até o primeiro andar. Fazemos fila, uns seguram nas costas dos outros, "cuidado para não tropeçar na escada", grita o carcereiro, e a sinistra procissão de cegos sobe os degraus. Lá em cima, somos autorizados a tirar o capuz, para ver algumas fotografias – e identificar gente que nenhum de nós conhece. As fotos passam de mão em mão. Vejo finalmente os rostos de cada par de sapatos: o arquiteto usa bigodes imensos e está ficando careca; o estivador não tem os dentes da frente, parece um homem simples e humilde; o mecânico é magro, está bem machucado – talvez sinta o mesmo medo que me comprime a nuca. Há ainda um estudante de medicina, forte e cabeludo; um advogado de cabelos crespos e olhar tranquilo; um jovem de óculos, alto e agitado, que estuda comunicações. A encenação dura quase uma hora. Por que fazem aquilo? Na manhã seguinte, saberei: mataram o jornalista de mocassins pretos – e precisavam nos afastar do corredor de espera, para retirar o cadáver de uma das salas contíguas. Esta crõnica Rodolfo Konder enviou para publicação no Jornal da ABI antes de ser internado: uma homenagem ao amigo Vladimir Herzog.
“Vai-se um protagonista, fica sua História” O Instituto Vladimir Herzog publicou em seu site, no dia 9 de maio, uma nota de pesar em homenagem a Rodolfo Konder, com o seguinte teor: “Faleceu no dia 1º de maio Rodolfo Konder, que, acima e além de jornalista e escritor, desempenhou papel de fundamental importância na derrocada da ditadura no Brasil. Ao arrostar os agentes da repressão, denunciando a tortura e assassinato de Vladimir Herzog no Doi-Codi de São Paulo, Rodolfo tornou-se o pilar inicial e indispensável da ação declaratória impetrada pela família Herzog, que culminou em 1978 na condenação do Estado brasileiro pelo crime, por sentença judicial. Antes de se tornar preso político, juntamente com Vlado, ao retornar do exílio em 1975, Rodolfo trabalhou em vários dos principais jornais e revistas do
Brasil. Foi também professor de Jornalismo, secretário da Cultura da Prefeitura de São Paulo e um dos fundadores da Anistia Internacional no Brasil. Autor de diversos livros, Rodolfo Konder era ainda o diretor do Conselho Consultivo da Representação em São Paulo da ABI-Associação Brasileira de Imprensa. Ao lamentar profundamente seu falecimento, após persistente enfermidade, o Instituto Vladimir Herzog expressa a certeza de que o nome de Rodolfo Konder, valoroso e solidário em tempos penosos, será para sempre lembrado com honra e carinho, não só por todos os que tivemos o privilégio de conhecêlo pessoalmente, mas também nas páginas da História da democracia brasileira. Instituto Vladimir Herzog”
Henry Maksoud: um anarquista no comando do Grupo Visão O empresário escreveu seu nome na história da imprensa brasileira, publicando reflexões. E provocações. BRUNO FERNANDES/FOLHAPRESS
P OR A RCÍRIO G OUVÊA No dia 17 de abril, faleceu em São Paulo, aos 85 anos, o empresário e jornalista Henry Maksoud, dono do Hotel Maksoud Plaza, um lendário cinco estrelas paulista, inaugurado em 1979. Foi também fundador do Grupo Editorial Visão e da também não menos lendária Revista Visão, que pelas idéias neoliberais propagadas em suas páginas foi, durante quase uma década, um dos principais alvos da censura e dos olhares vigilantes dos censores do regime militar. De janeiro de 1988 a outubro de 1991, apresentou na Rede Bandeirantes o programa semanal Henry Maksoud e Você. Foram 171 programas veiculados em rede nacional – sendo que 171 é o código da profissão de jornalista no Ministério do Trabalho. Entre os entrevistados que passaram por sua sabatina estiveram os ex-Presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Enveredou também pelo teatro ao escrever e dirigir a peça Emoções Que o Tempo Não Apaga, uma crônica musical apresentada no Teatro Maksoud Plaza, contando a história de vários episódios por ele vividos nos bastidores do hotel. Filho de imigrantes libaneses e apaixonado por filmes e música, Maksoud nasceu em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, em 1929, ano do “crash” da Bolsa de Nova Iorque. Talvez por isso, em um desses meandros traçados pelo destino, enveredou pela economia e fez dela seu carro-chefe através da vida. Formado em Engenharia na Universidade Mackenzie, em 1951, foi para os Estados Unidos onde recebeu o título de Master of Science em Mecânica de Fluídos e Engenharia Hidráulica, pela Universidade de Iowa, em 1953. De volta ao Brasil, fundou a Hidroservice Engenharia, em 1958, empresa que marcou época por liderar grandes projetos de construção, no Brasil e no mundo, sendo responsável pelos aeroportos Tom Jobim/Galeão, no Rio; e Eduardo Gomes, em Manaus. Durante a reserva de mercado para o setor de informática, fundou a Sisco, uma das primeiras empresas de computadores, softwares e sistemas do País. Sendo autor ainda de mais de 40 livros “político-filosóficos”, recebeu centenas de condecorações e homenagens pela vida. Sua atuação específica e contundente no mundo do jornalismo, sempre com uma pitada de tempero provocante e contestador muito próprio, se deu quando ele esteve à frente da direção editorial da Revista Visão, comprada por ele em 1972 do publicitário Said Abrahim Farhat, que fazia questão de manter o caráter de independência dos repórteres e fotógrafos, apesar de todos os contratempos e dissabores que daí resultavam. Maksoud mudou o perfil editorial e tornou-a identificada com a ideologia liberal. Mesmo sob a censura ferrenha do regime, criticava o estatismo, o desenvolvimentismo e o intervencionismo econômico do governo militar brasileiro, ao mesmo tempo em que condenava o sindicalismo e as políticas sociais. A Revista Visão, antes de ser adquirida por Henry Maksoud, tinha uma linha editorial de
Maksoud: “Essa bobagem chamada neoliberal não existe. Pode escrever: neoliberalismo é besteira.”
informações gerais e que abordava quase todos os aspectos da vida do País que fossem notícia. Passou por vários proprietários e diferentes orientações editoriais e, nos anos 1960 e 1970, chegou a ser uma revista de importante significação, referência nacional em cobertura jornalística econômica e política, local e internacional, com investimentos em grandes reportagens. A revista foi pioneira em diversas iniciativas, com destaque para a publicação do anuário “Quem é Quem na Economia Brasileira”, formato que inspirou o lançamento de diversas publicações semelhantes. Na década de 1990, terminou vendida para o grupo DCI Shopping News, de Hamilton Lucas de Oliveira, que não conseguiu segurar a pressão exercida pelos problemas financeiros de uma combalida publicação que já havia caído no desinteresse dos leitores. Assim, no ano de 1993, depois de 41 anos de existência, Visão deixou de circular definitivamente. Maksoud era visceralmente um neoliberal. Mas, paradoxalmente, rejeitava esse rótulo, adepto de idéias francamente favoráveis à liberdade individual, à democracia representativa, ao estado de direito, ao governo limitado e adepto do liberalismo econômico. Admirador de Friedrich von Hayek (economista austríaco, nascido no ano de 1899 em Viena, Áustria) levou seu conceito de economia pós-moderna para a revista, que passou a ter marcante presença de temas político-filosóficos, mudando bastante o rumo editorial da publicação, que antes dele tinha uma tendência para a esquerda. Mas, como em um desses paradoxos inexplicáveis, foram essas idéias liberais, sempre fustigando e irritando o governo, que mais incomodaram e constrangeram o regime instaurado em 1964. Resultado: na segunda
metade dos anos 1970, os militares retaliaram Visão com cortes na publicidade, além de exercerem pressão sobre seus anunciantes, levando a revista a uma frágil situação financeira. Seu fiel escudeiro na Revista Visão e arauto de seus conceitos filosóficos, políticos e econômicos foi o editor José Ítalo Stelle, que já havia publicado artigos sobre os mesmos temas na Reason Magazine, em 1984, e na Freeman, em 1986, nos Estados Unidos. A dupla se deu muito bem durante alguns anos, conseguindo transmitir exatamente todo o conteúdo neoliberal e libertário concebido pelos dois. Certamente, Maksoud tinha noção de sua importância histórica no Brasil de então, pois disse em um de seus programas na Rede Bandeirantes: “Eu enterrarei as fitas de meu programa em um local secreto para protegê-las da perseguição que sofro por parte das autoridades as quais critico por suas políticas retrógradas. No ano 3000, um arqueólogo irá desenterrá-las e constatará então, no Brasil do futuro, já em um regime de ampla liberdade individual, que houve no passado um tal de Maksoud que defendia esses ideais”. Em outra oportunidade, ele afirmou: “Eu sou radical mesmo, não sou pela reforma, o que está errado precisa acabar”. E deve ter sido pensando nisso que ele tentou colocar em prática esse radicalismo, quase obsessivo, ao elaborar uma Constituição para o Brasil. A Carta Magna seria dividida em dez títulos, 218 artigos e 294 parágrafos. Logicamente, que suas bases eram calcadas no pensamento de seu grande ídolo Hayek. A constituição expressava uma forma de governo que ele denominou de “Demarquia”. Ela fugiria dos padrões convencionais da democracia como a conhecemos (democracia=demos+kratos) e se aproximaria de outro modelo (demos+arqueim), ou seja, um governo do povo, subordinado à lei.
A Demarquia seria uma evolução do constitucionalismo clássico, tendo como objetivo garantir a liberdade dos indivíduos, sob a égide do Estado de Direito e observando, rigidamente, a separação de poderes. O grande regulador da vida nacional, segundo o texto, seriam as leis, as leis acima de tudo e de todos. Ele diria depois sobre sua obra: “Nenhum poder, nem mesmo o do povo soberano, é ilimitado. Tudo deve ser regido pelas leis. Essas, sim, seriam a autoridade máxima”. E terminava criticando todas as Constituições Brasileiras, de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, exatamente por achar que elas não realizavam a efetiva separação de poderes entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, que sempre foi aparente e formal, causando toda essa controvérsia na aplicação das leis em nosso País. Indignado, anos mais tarde, com o texto da Constituição de 1988, ele afirmou que ela era um Caminho da Servidão, se referindo a uma expressão muito usada por seu amigo Friedrich von Hayek quando criticava a sociedade moderna e seus intricados modelos econômicos. Em uma entrevista que causou bastante repercussão, concedida ao jornal Folha de S. Paulo, na véspera do Natal de 2007, Henry Maksoud esbraveja contra tudo, na tentativa de convencer e implantar suas idéias que ele considerava muito próximas do anarquismo. Em alguns trechos, diz: “O conceito liberal que eu defendo não é o que se tem hoje. Essa bobagem chamada neoliberal não existe. Pode escrever: neoliberalismo é besteira. Não existe essa asneira. O que aconteceu na Inglaterra e na Escócia é algo que poderia ser chamado de liberalismo clássico, mas aconteceu só lá. Foi apenas uma pequena mancha tão forte que as idéias foram para alguns outros lugares. Mas isso não quer dizer que, depois disso, o liberalismo clássico, a economia de mercado, espalhou-se pelo mundo. Não. Se você procurar onde existe a economia de mercado, vai ver só algumas manchas”. Ele ainda provoca o Estado: “Sou um prisioneiro. Vivo prisioneiro de um Estado, igual a um clube ao qual sou filiado compulsoriamente. Eu me revolto contra o Estado, mas eles me punem”. Alfineta a Legislação Trabalhista: “Vivemos, isso sim, a legislação do desemprego. A Consolidação das Leis do Trabalho é um dos troços que vêm mantendo o País subdesenvolvido e, se continuar existindo, vai manter o País assim ao longo da vida. Não tem nada a ver com Justiça. É um troço estapafúrdio, travesseiro dos advogados. Segura o progresso e vai continuar segurando. O Brasil não cresce por causa disso. E também não tem como crescer por causa do sistema tributário”. Cutuca o sistema bancário: “Não temos um mercado de capitais no Brasil, banco privado. Todos os bancos são paraestatais. Os bancos existem somente para ajudar o governo. Para haver economia de mercado, um dos elementos que o empreendedor precisa ter é capital. Aqui não existe. Aqui existe desestímulo à formação de capital fixo, ou seja, desestímulo à formação de poupança pelos indivíduos e pelas empresas. Tudo o que existe de formação de capital ou de poupança, o governo lança mão para queimar, para jogar fora”. E conclui, lançando seu próprio manifesto: “Sou anarquista. As pessoas pensam que anarquia é bagunça. Anarquia é um sistema de governo. Quer dizer governo mínimo. Governo que uma penada não signifique prejuízo de milhões ao povo. Porque vocês não imaginam quanto se perde com todas as penadas governamentais em um dia”.
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VIDAS
LUIZ CARLOS MURAUSKAS/FOLHAPRESS
Nas lembranças de colegas, esportistas e espectadores, o resgate da trajetória do profissional que, mais do que um grande locutor, foi um incentivador do esporte brasileiro. P OR C ELSO S ABADIN
A televisão, todos nós sabemos, corre atrás da audiência. Seus departamentos de pesquisa detectam o que o público deseja ver, e as emissoras se esforçam para dar ao povo o que o povo quer. Neste processo, qualidade é apenas um pequeno detalhe a ser dispensado. Luciano do Valle subvertia totalmente esta triste e implacável lógica de mercado. O brasileiro queria ver futebol, Luciano oferecia vôlei e basquete. O brasileiro queria ver Fórmula 1, Luciano mostrava Fórmula Indy. O povo queria grandes esportes de massa com gigantescas torcidas, Luciano inovava com snooker. E quem ficava numa verdadeira sinuca era a concorrência, que investia milhões em grandes eventos esportivos, enquanto Luciano do Valle conquistava cada vez mais audiência provando que havia muito mais entre o céu e o ibope do que sonhava a vã filosofia das massas televisivas dominicais. Luciano do Valle colocava na televisão aberta (mesmo porque naquela época ainda sequer existia a tv paga) maravilhas esportivas que as audiências nem sabiam que existiam. E foi através de seu faro empreendedor que o País começou a perceber que nem só de 40
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futebol viviam o esporte e o jornalismo esportivo brasileiros. Jornalismo esportivo, aliás, que fez a base de toda sua carreira. Filho de pai comerciante e mãe professora, Luciano do Valle Queirós nasceu em Campinas, interior paulista, em 4 de julho de 1947 . Seu talento nato para o rádio e a televisão despontou muito cedo, logo aos 16 anos de idade, quando iniciou sua carreira de locutor na Rádio Educadora FM da sua cidade natal. Mas como naquela época as emissoras de Frequência Modulada pouco ou quase nada investiam em esportes, Luciano logo se transferiu para a Rádio Brasil AM, também de Campinas, que mantinha uma equipe esportiva. Lá, narrou seus primeiros jogos de futebol. De voz grave, timbre potente e grande agilidade com as palavras, a qualidade da narração futebolística de Luciano chamou a atenção do também narrador esportivo Pedro Luiz Paoliello, que o convidou a trocar Campinas por São Paulo e trabalhar na tradicional Rádio Gazeta. Em 1968, Luciano deixa a Gazeta e se transfere para a equipe de esportes da Rádio Nacional de São Paulo, do grupo Globo, onde passa a narrar não apenas futebol, como também vôlei e basquete . Dois
anos depois, atua na cobertura de sua primeira Copa do Mundo de Futebol, a do México, justamente a do histórico tricampeonato brasileiro, que consagrou a geração de Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino e tantos outros. No mesmo ano futebolisticamente mágico de 1970, começa a integrar a equipe de esportes da Rede Globo de Televisão . “Mas o rádio é a escola de tudo”, afirmaria Luciano anos mais tarde. “No rádio você treina dicção, raciocínio, você é obrigado a falar de improviso. Na época do Pedro Luís a gente fazia longas, longas aberturas, duas horas sem ter nada pra conversar, então você buscava assunto na sua imaginação. O rádio pra mim foi altamente inspirador ”, declarou. Mas ainda não seria desta vez, em 1970, que Luciano ocuparia o microfone de narrador oficial de uma Copa do Mundo. Mesmo porque, naquela ocasião, as emissoras de tv brasileiras se uniram em pool, retransmitindo todas a mesma imagem e o mesmo som, onde os mais importantes narradores esportivos de cada canal se revezavam a cada meio tempo de jogo. A primeira narração de Luciano na Globo foi a do Troféu Governador do Estado de São Paulo. O esporte? Basquete
masculino. Atuava também como “regra três” (jargão futebolístico para “jogador reserva”) no programa Dois Minutos com João Saldanha, fazendo o papel do titular que dava nome à atração, quando este por um motivo ou outro não conseguia comparecer. Participou da cobertura dos Jogos Panamericanos de Cali de 1971, dos terríveis Jogos Olímpicos de Munique de 1972 (quando 11 atletas israelenses foram mortos por palestinos), e da Copa do Mundo da Alemanha de 1974, a primeira transmitida em cores para todo o Brasil. A decepção pela derrota da seleção brasileira em campos alemães foi em parte compensada pelo bicampeonato mundial de Fórmula 1 conquistado por Emerson Fittipaldi, no mesmo ano, narrado por Luciano do Valle. No automobilismo, Luciano narrou também a vitória de José Carlos Pace no Grande Prêmio do Brasil de 1975 e o acidente que quase matou o campeão austríaco Niki Lauda, no GP da Alemanha, de 1976. O entusiasmo da narração de Luciano era algo contagiante. Mesmo com seu grave timbre de tenor, nos momentos cruciais de cada transmissão esportiva sua voz alcançava uma vibração diferente que adicionava ainda mais emoção àquilo que se
via na tela. Seu estilo inconfundível marcou presença nas Olimpíadas de Montreal, em junho de 1976. No mesmo ano, em agosto, o jornalismo esportivo brasileiro perdia uma de suas maiores vozes, a de Geraldo José de Almeida, veterano dos mais respeitados e conceituados do País. Com a morte de Geraldo, abriu-se uma grande vaga para a narração da Copa do Mundo de 1978, na Argentina. Luciano do Valle preenche esta vaga com talento e responsabilidade, e torna-se praticamente a voz “oficial” não só do famoso mundial argentino marcado pela manipulação política da ditadura, que então dominava aquele país, como também dos jogos olímpicos de Moscou imortalizados pelas lágrimas do urso-mascote Mischa, e da enorme decepção da Copa de 1982, onde o vistoso time de Telê Santana encantou o mundo, mas não ganhou a competição. Sempre que o Brasil “perde” (ou simplesmente não ganha) um Campeonato Mundial de Futebol, cai sobre o esporte uma premente necessidade de reformulação que parece se espalhar pela vida de todo o País. Com Luciano do Valle não seria diferente. Após a Copa de 1982, ele troca a Globo pela TV Record, emissora que abre espaço para que Luciano possa desenvolver com mais intensidade sua carreira paralela de empresário e promotor de eventos esportivos. Em sociedade com José Francisco Coelho Leal, funda a Luqui, empresa através da qual começa a empresariar e divulgar modalidades esportivas que mal conseguiam espaço de tv brasileira. Logo em julho de 1983, ele revoluciona tanto os setores do esporte como da mídia ao promover um jogo de vôlei como nunca se havia visto antes: numa quadra montada sobre o gramado do Estádio do Maracanã. Até os mais otimistas se surpreenderam quando o maior estádio de futebol do mundo recebeu nada menos que 95 mil pessoas para ver Brasil e União Soviética. Reunindo astros do vôlei brasileiro da época, como Bernard, William, Montanaro e Renan, a partida teve transmissão ao vivo pela Record e até hoje é recorde mundial de público para o esporte. Luciano ganha o apelido de “Luciano do Vôlei”. Porém, ainda sob o comando da família Machado de Carvalho, a problemática Record, que já há muito deixara de ser a grande potência que havia sido nos anos 1960, tornou-se pequena para Luciano do Valle. Ainda em 1983, o narrador/empresário se transfere do bairro do Aeroporto para o Morumbi, onde inicia uma nova e extremamente bem sucedida fase profissional, na Rede Bandeirantes. É nesta época que a Band se torna “O Canal do Esporte”, com Luciano do Valle e sua equipe produzindo o programa Show do Esporte, uma maratona esportiva dominical que ultrapassava dez horas de programação ininterrupta. Apresentado por Elia Júnior e Simone Mello, cabia tudo no Show do Esporte: vôlei, basquete, automobilismo, corrida de caminhões... até futebol. A poderosa Globo, assustada, batizou seu intervalo de futebol como Show do Intervalo, na tentativa de pegar uma carona no show de Luciano. E o nome permanece até hoje.
A força do consórcio Luqui-Bandeirantes “inventou” o boxeador Maguila (“campeão mundial de boxe pela Rede Bandeirantes de Televisão”, ironizou certa vez o humorista Juca Chaves), deu status de horário nobre à sinuca (“Tudo que eu sou na vida eu devo a Luciano do Valle”, declarou o jogador Rui Chapéu no velório do narrador), além de apresentar ao público brasileiro a Fórmula Indy, o futebol americano e o hipnótico basquete da NBA. Isso sem falar no grande incentivo que deu ao basquete feminino brasileiro, elevando à condição de estrelas as jogadoras Hortência e “Magic” Paula, apelido que o próprio Luciano pegou emprestado do ídolo norte-americano Magic Johnson. “A gente criava eventos. Era obrigado a criar, a usar a criatividade, porque não dava pra pagar todos os grandes eventos do futebol”, declarou Luciano em entrevista para a TV Bandeirantes. Além de programas eminentemente esportivos, empresariou, produziu e apresentou também faixas de variedades dentro da Rede Bandeirantes, como Verão Vivo e Valle Tudo. O primeiro era transmitido diretamente sempre de alguma badalada praia brasileira, e trazia desde grandes ídolos populares da nossa música até concursos de beleza. Enquanto o Valle Tudo fazia a alegria dos repórteres da Band ao aceitar produzir as mais variadas e inusitadas pautas, mesmo que elas não tivessem nenhuma relação com a especialidade de cada repórter. Foi num destes programas, sob a direção de Luciano, que eu tive a oportunidade de realizar uma ampla matéria sobre a Esquadrilha da Fumaça, com direito a vôos radicais, acompanhado de um destemido cinegrafista. Estendendo-se durante as madrugadas de sábado para domingo, o Valle Tudo também deixava seus repórteres à vontade em relação à duração de cada matéria, o que é praticamente impensável no jornalismo televisivo. Defensor dos valores tradicionais da ética jornalística, Luciano chegou a causar polêmica ao criticar, no ar, seus próprios colegas. Durante um programa de televisão da própria Bandeirantes, vociferou, sem ser interrompido: “Para comentar do meu lado, tem que ter diploma. E eles não têm. Eles querem bagunça, eles querem audiência. Cadê o diploma? Cadê o diploma do Milton Neves? Cadê o diploma do Flávio Prado? Quero ver. Eles são radialistas; jornalistas, não. Eu estou nervoso mesmo, estou triste mesmo. Desculpa, eu sou sincero, o que eu sou fora eu sou dentro. Eu sou assim e não vou mudar depois de tanto tempo só para agradar a gregos e troianos. Quando eu transmito, eu grito gol do Sport igualzinho ao gol do Corinthians, igualzinho do Atlético, igualzinho do Náutico, igualzinho do Santa. Eu quero que se lixem aqueles que acham que eu estou aqui torcendo para este ou para aquele time. Eu torço pela minha empresa [e aponta o logotipo da Band]”. Transmitiu, pela Band, as Copas de 1986, 1990, 1994 e 1998. Em outubro de 1999, a morte de João Saad, presidente do Grupo Bandeirantes, altera as relações da emissora
A Palavra dos Colegas “Quando teremos outro Brasileirão em ano de Copa sediada pelo Brasil? Certamente não estarei aqui para ver, o que é simples constatação. Triste foi ter ouvido o deste ano começar sem a voz de Luciano do Valle, tão marcante desde sempre, assim como nas Copas do Mundo. A voz do Bolacha é inesquecível para todos e especialmente aos torcedores do São Paulo e Corinthians, em seus primeiros títulos mundiais.Luciano andava preocupado com os rumos dos grandes eventos que o País receberá neste ano e em 2016 – e que ele tanto queria ver no Brasil. Na última vez em que o vi, no hotel em que nos hospedamos, em Fortaleza, na Copa das Confederações, manifestou mais dúvidas que certezas sobre o andamento das coisas. Seja como for, se havia alguém que merecia narrar uma Olimpíada por aqui, este alguém era ele”. JUCA KFOURI, JORNALISTA.
“O Brasil não perde só seu maior narrador de tv de todos os tempos. Perde um ser humano generoso, humilde, carinhoso. Um visionário que ajudou a levantar e popularizar várias modalidades. A Copa do Mundo e a Olimpíada do Brasil acabam de perder muito do seu brilho. Não trabalhei nem convivi com Luciano do Valle, mas nossos encontros em estádios, aeroportos, hotéis, restaurantes foram sempre com o jeito dele, com fidalguia, elegância”. MILTON LEITE, SPORTV.
“Visionário, companheiro, amigo, muito além de um chefe, uma pessoa que se preocupava com o próximo. Que brilhava, mas que também estendia o tapete para seus colegas brilharem. Entrei na TV graças à confiança dele, a quem devo essa oportunidade de ouro. Grande pessoa, grande profissional. Quem trabalhava com ele fazia praticamente parte da sua família. Daí tantas homenagens sinceras e a sensação de uma lacuna importante no cenário brasileiro, que certamente não será tão facilmente preenchida. Trabalhei diretamente com ele de 1983 a 1990 e tenho grande orgulho de ter feito parte do inesquecível Show do Esporte, da Band que revelou tanta gente boa no jornalismo, pela sua habilidade em garimpar profissionais” ELYS MARINA. MEGA TV.
“Luciano que valia todos os esportes, de emoções incríveis e únicas. Já estou com saudades. Eu e todo um País”. TED RICHARD PAIVA SARTORI , A TRIBUNA, SANTOS (SP).
“Luciano do Valle conseguia transmitir com uma simplicidade total”. PETER RICHARED FABIAN, JORNALISTA, NATAL (RN).
“Comecei a aprender o que era futebol ouvindo Osmar Santos no rádio. Depois, enlouqueci com José Silvério. Descobri que mulher podia trabalhar com isso quando vi Regiani Ritter na tv. Mais tarde, me espelhava em Renata Figueira de Mello. Era o que eu
queria fazer da vida, e fiz. E fui atrás desse universo porque Luciano do Valle transmitiu isso pra mim desde que eu era criança: paixão por Esportes! Foi por causa dele que eu quis saber mais, quis conhecer, fui atrás, me interessei, descobri os demais. Eu falei isso pra ele, quando fui contratada para ser repórter na equipe dele, em 1995. Ele não era tímido nem nada, mas ficou meio sem jeito de tanto que eu agradeci e elogiei. Eu parecia uma criança, foi um sonho. Uma bênção na minha vida, por quem hoje eu faço uma prece, agradecida. A gente teve uma sorte imensa de ter Luciano do Valle. Ele é para sempre”. WANIA WESTPHAL, JORNALISTA, SÃO PAULO.
“Até na morte ele faz o torcedor chorar”. JOEL SILVEIRA LEITE, AGÊNCIA AUTO ESPORTE.
“Ele narrava com emoção e coração. Não com o ego”. VALERIA SANDRA VULETYC, JORNALISTA, RECIFE (PE).
“Em 1972, eu estava entrando no sistema Globo de Rádio e conheci Luciano do Valle na fila do Banco Português, que na época fazia os pagamentos da Globo em São Paulo. Era dia de pagamento e ele estava na minha frente. Como eu sou do tipo que perde o amigo mas não perde a piada, não resisti. Cheguei pra ele e lasquei: “Luciano você vai receber em que? Em Vale?” Ele riu e continuamos amigos até que nos reencontramos muitos anos depois, na TV Bandeirantes”. FAUSTO JOSÉ DE MACEDO, PESQUISADOR E JORNALISTA.
“O Luciano do Valle que vai ficar na memória do ‘fã do esporte’ é o das décadas de 1980 e 1990, especialmente. Diferentemente de outros narradores, Luciano do Valle não era um grande inventor de bordões. ‘Não somos artistas, somos jornalistas’, disse em uma entrevista à ESPN Brasil, explicando por que não usava bordões. Suas transmissões, carregadas de emoção, eram fundadas na descrição dos lances”. MAURICIO STYCER, JORNALISTA DA UOL.
“Graças a Luciano, conseguimos ter o mínimo de cultura esportiva além do futebol. Gênio com o microfone na mão, ele foi ainda mais visionário no que se referia à relação da mídia com o esporte. Com uma brutal diferença: o modelo criado por ele era completamente rentável para o esporte, para os patrocinadores, para a emissora que exibia os eventos e para os profissionais de mídia que lá trabalhavam. Mais do que o gogó afiadíssimo para gritar gooooooool, Luciano era o cara que permitia fazer existir toda uma indústria de marketing esportivo no Brasil, quando isso ainda era chamado de ‘promoção’. O esporte perdeu Luciano do Valle. E precisa de novos Lucianos para conseguir voltar a ser grande”. ERICH BETING, JORNALISTA DO BANDSPORTS.
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DIVULGAÇÃO
VIDAS com Luciano do Valle. A nova direção da empresa, agora sob o comando do herdeiro Johnny Saad, mata a galinha dos ovos de ouro ao eliminar o Show do Esporte de sua programação. O narrador continua prestando serviços para a Band, mas sem o ímpeto de sempre, e transfere-se por um tempo para Recife, de onde continua tocando seus negócios. Em entrevista recente, declarou: “Antigamente a gente tinha na televisão equipes menores, menos condições técnicas, mas a gente tinha menos vaidade. A televisão hoje é melhor posicionada tecnicamente, tem mais recursos, mas hoje cada um luta muito mais por si do que pela equipe toda.” Narrou as Copas de 2002, 2006 e 2010. Em janeiro de 2012 sofre um Acidente Vascular Cerebral-AVC, que compromete sua fala. Submete-se a sessões de fonoaudiologia e volta à narração esportiva, palco que só abandonou com a morte. Em 19 de abril de 2014, sente-se mal num vôo que o levava até Uberlândia, de onde transmitiria, no dia seguinte, o jogo entre Atlético Mineiro e Corinthians, pelo Campeonato Brasileiro de Futebol. Não resiste e falece pouco depois do pouso, vitimado por um infarto agudo. No dia seguinte, em jogos por todo o País respeitou-se o minuto de silêncio em sua memória, antes de cada apito inicial. No estádio do Morumbi, o time do São
Luciano do Valle apresenta o Show do Esporte.
Paulo entrou em campo com uma faixa que trazia os dizeres “Obrigado Luciano – sua voz eternizou grandes momentos do tricolor”, enquanto o sistema de som do estádio reproduzia um gol decisivo de Raí pelo Campeonato Mundial de Clubes. Oficialmente, o campineiro Luciano do Valle torcia pela Ponte Preta. Havia quem não acreditasse. Certo dia, antes de uma gravação nos estúdios da Band, cheguei a lhe perguntar se era verdade. Com olhar cansado, Luciano me respondeu: “Ultimamente eu só torço para o jogo acabar logo”...
A Palavra da Torcida “Ele foi o maior narrador esportivo da tv brasileira, mas sua maior qualidade ao longo destes anos todos foi nunca ter vergonha do Brasil”. ROBSON RAMOS, RÁDIO E TV, GUARULHOS (SP).
“Ele popularizou o vôlei em pleno País do futebol. E fez mais: levou uma partida de vôlei ao Maracanã, templo máximo do esporte bretão no Brasil. ‘Criou’ o mito Maguila e inaugurou o estilo ‘narrador torcedor ’, tão imitado hoje em dia. Uma voz que silencia e vai deixar saudades em todos os amantes do esporte”. CHICO NETO, REDATOR, RIO DE JANEIRO.
“Esse sabia narrar! Valorizava todas as modalidades esportivas. Tênis, vôlei, basquetebol, handebol, futebol feminino… esse é o cara que colocou todas essas modalidades, entre tantas outras, na grade de programação da televisão brasileira. Uma perda muito grande!” LUIZ ALBERTO CASSOL, CINEASTA, SANTA MARIA (RS).
“Tinha 17 anos e nunca me esquecerei dele narrando o basquete feminino. Acho que foi em 1990 ou 1991. Eu tinha que ir para o colégio, mas naquele ano não perdi um único jogo de basquete da dupla Paula e Hortência, que ele narrava como ninguém”. LEONOR MUÑOZ FERNANNDEZ, ESTUDANTE, SANTIAGO, CHILE.
“Minha primeira Copa do Mundo, que eu me lembro, foi a de 1982, com narração de Luciano do Valle. São inesquecíveis também suas narrações do vôlei masculino, Jornada nas Estrelas,
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JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014
Renan e Bernard, basquete com Paula e Hortência... Ele foi um gênio e um ativista do jornalismo esportivo”. YGOR FIORI, ATOR, SÃO PAULO.
“Uma das melhores idéias de Luciano do Valle foi a criação da Faixa Nobre do Esporte, que ofereceu uma excelente alternativa no horário nobre, concorrendo frente a frente com a Rede Globo. Não podemos nos esquecer do Valle Tudo, um verdadeiro mosaico de atrações, com jornalismo, esporte e entretenimento, e do Verão Vivo, muito marcante também, quando seu lado apresentador fluía com maestria nas praias do Brasil, proporcionando grandes shows de artistas renomados, prestação de serviços, e o marcante Garota Verão Vivo”. MÁRCIO ALESSANDRO FRANCISCO, FISCAL, AMÉRICO BRASILIENSE (SP).
“Não quero comentar se ele foi o maior locutor brasileiro e se já deveria ter se aposentado ou não. Quero lembrar como sua paixão em fazer acontecer me influenciou em toda minha carreira profissional e como sua certeza que a prática esportiva poderia ajudar os jovens a ter uma alternativa para uma vida saudável e de melhoria social. Luciano do Valle acreditava na criatividade do povo brasileiro. Ele sabia que se essa criatividade fosse canalizada em uma prática esportiva, poderíamos estar entre os melhores do mundo nesse esporte”. SIDNY SOARES, EXECUTIVO PÚBLICO, SÃO PAULO.
“Ele foi bem mais que um magnífico narrador. Ele foi um adorável sonhador”. LUIZ CELSO GALANTE, ENGENHEIRO, SÃO PAULO.
A Palavra dos Esportistas “Para mim, o maior narrador que existiu nesse País. Um cara que marcou o mundo esportivo com sua voz e com seus feitos que contribuíram demais para o crescimento do esporte brasileiro. Sempre fui muito fã desse cara e ao longo de mais de 10 anos estive ao seu lado nas transmissões esportivas da TV Bandeirantes. O departamento de esportes da emissora perdeu seu capitão. Perdeu o principal nome da casa. Espero que descanse em paz. Vou ficar aqui torcendo para que Deus dê paz a seus familiares. O Brasil perdeu uma das maiores figuras humanas do jornalismo esportivo, mas ganhou definitivamente um mito. Obrigado Luciano!” NETO, EX-JOGADOR E COMENTARISTA DA TV BANDEIRANTES.
“Hoje, o voleibol perde um de seus principais protagonistas, nosso querido amigo Luciano do Valle, carinhosamente conhecido por todos nós como o Luciano do Vôlei. O esporte brasileiro está de luto”. BERNARD, EX-JOGADOR DE VÔLEI.
“Ele foi o grande responsável pela dupla Hortência e Paula. Ele fez um estardalhaço tão grande que o Brasil passou a nos conhecer. Então, estou assim, com meu coração super apertado. Porque além de ser um grande locutor, era um grande amigo”. HORTÊNCIA, EX-JOGADORA DE BASQUETE.
“Luciano participou muito da minha vida. Para mim é um dia muito triste, quero prestar uma homenagem muito grande a este ícone do esporte brasileiro. O esporte brasileiro deve muito a ele”. EMERSON FITTIPALDI, EX-PILOTO DA FÓRMULA 1.
“Luciano foi um dos pioneiros. Minha lembrança do Luciano foi o único gol que eu fiz em Copa do Mundo. Foi ele que narrou, em 1982”. JÚNIOR, EX-JOGADOR DE FUTEBOL E COMENTARISTA.
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oucos profissionais invadem tanto a nossa privacidade, mexem tanto com nossos sentimentos mais íntimos, quanto os escritores. São nossos amigos, conselheiros, companheiros. Por isso mesmo, quando um deles parte, deixa para trás um vazio. Ainda que suas obras estejam por aí, eternizadas em papel ou compartilhadas em plataformas digitais, sentimo-nos sós. Abandonados dentro de nós mesmos. Imagine, então, a reação dos leitores de Gabriel José García Márquez, morto em 17 de abril, aos 87 anos. Vítima de uma pneumonia – lutava contra a reincidência de um câncer que atingia seus pulmões, gânglios e fígado –, o colombiano terminou por sentenciar seus admiradores à solidão, paradoxalmente pontuada pela companhia de seus livros. Num desfecho típico de suas histórias, que apresentaram a literatura latino-americana para o mundo e firmaram as raízes do chamado ‘realismo fantástico’. “Levo pela vida um enorme e formidável baú de lembranças. E quando penso no Gabo, confirmo a certeza de uma generosidade sem limites, de solidariedade silenciosa e absoluta, de lealdade sem fronteiras. De alguém que nunca foi movido por outra força além da amizade e do afeto. Todos os seus livros são livros da solidão e da nostalgia, e também da busca desesperada daquela segunda oportunidade que ele implorava para os Buendía de Cem Anos de Solidão. Tudo que ele escreveu é revelador da infinita capacidade de poesia contida na vida humana. O eixo, porém, foi sempre o mesmo, ao redor do qual giramos todos: a solidão e a esperança perene de encontrar antídotos contra essa condenação”, afirma o jornalista Eric Nepomuceno, amigo de ‘Gabo’ e que traduziu para o português esta e outras de suas obras, como Doze Contos Peregrinos e Memórias de Minhas Putas Tristes. Aliás, mais de 30 anos depois de ter sido lançado no Brasil, Cem Anos de Solidão ganha uma edição especial, que acaba de chegar às livrarias pela Record, editora de toda a obra do escritor colombiano no País. Esta edição virá com tradução inteiramente nova, refeita pelo próprio Eric Nepomuceno. O texto original teve algumas modificações sutis feitas por García Márquez, que reviu a obra pela primeira vez desde o seu lançamento em espanhol, em 1967. Outra novidade é uma útil e prática árvore genealógica dos Buendía, cuja saga é contada desde a fundação da
Na despedida de Gabo, a companhia da solidão Escritor colombiano, que mudou o panorama da literatura latino-americana, Gabriel García Márquez parte aos 87 anos, deixando para trás pelo menos uma dezena de livros primorosos. E um vazio que, para seus leitores, parece não ter fim. P OR P AULO C HICO DIVULGAÇÃO/ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES
cidade imaginária de Macondo até a sétima geração. Na abertura, a apresentação de Nepomuceno faz um passeio pela carreira literária de García Márquez desde o início, quando ele era ainda um escritor desconhecido com quatro livros lançados e uma atividade jornalística não desejada, até o nascimento do título que mudaria não só a sua vida, mas toda a literatura do continente. O autor já vivia na Cidade do México e começou a trabalhar em Cem Anos de Solidão depois de uma viagem com a família ao balneário de Acapulco. “Muito tempo depois, ele diria que o livro tinha começado a ser escrito em 1948, em longas tiras de papel jornal, em Cartagena das Índias. E que durante dezessete anos havia passado por diferentes versões, sempre com o título La Casa, sem que nunca tivesse surgido a estrutura correta, a atmosfera necessária, e principalmente o tom convincente da narração, aquele mesmo tom com que sua avó materna contava histórias inacreditáveis”, conta Eric Nepomuceno. Nesta edição, o leitor conhecerá muito mais sobre a trajetória de Cem Anos de Solidão e a vida do autor. A passagem de García Márquez pelo cinema, as amizades, influências literárias, o isolamento imposto pelo gigantesco assédio proveniente de países do mundo inteiro. Antes da fama, a falta de dinheiro que o fez penhorar primeiro o carro, as jóias e depois até o secador de cabelo da mulher, Mercedes, e uma batedeira de bolo para reunir a quantia necessária para enviar os originais do seu livro ao editor em Buenos Aires. “Cem Anos de Solidão foi lançado no dia 20 de junho de 1967, numa edição inicial de dez mil exemplares. Quando soube da tiragem, García Márquez escreveu, preocupado, ao editor Paco Porrúa, dizendo estar temeroso de ser o responsável por um encalhe de grandes proporções. Nenhum de seus livros anteriores havia vendido mais do que mil e poucas cópias. Porrúa tranquilizou-o, dizendo apostar que oito mil exemplares seriam vendidos até dezembro. Rude engano: a edição esgotou-se em quinze dias. Veio uma segunda, de outros dez mil, que teve o mesmo destino. Começaram a chegar encomendas de distribuidores e cadeias de livrarias de outros países: o México pedia vinte mil exemplares, a Colômbia queria dez mil. Recém-nascido, o livro era um fenômeno absoluto. A editora teve de suspender
a impressão de todos os outros livros e comprar cotas extras de papel”, recorda Eric Nepomuceno. Até sua morte, a obra-prima de Gabo já havia somado mais de 50 milhões de exemplares vendidos no mundo todo. Contudo, seria pecado reduzir a importância do escritor colombiano, prêmio Nobel de Literatura em 1982, a apenas este título. Outros tantos, como O Amor nos Tempos do Cólera; Crônica de Uma Morte Anunciada; Ninguém Escreve ao Coronel, Do Amor e Outros Demônios e Relato de um Náufrago ganharam recentemente novas edições pela Record, e podem ser encontrados nas livrarias. A notícia da morte do escritor
fez disparar a procura por sua obra. Por conta disso, a Record executou um rápido esquema de reimpressão. A começar por Viver Para Contar, o primeiro volume de uma série de três que o autor não conseguiu concluir. Gabo atuou também como jornalista, inicialmente para o jornal El Universal. Em 1949, vai para Barranquilha e trabalha como repórter no El Heraldo. Neste mesmo período participa de um grupo de escritores para estimular a literatura. Em 1954, atua como repórter e crítico no El Espectador. Quatro anos depois, vive fértil período como correspondente internacional na Europa. Foi um jornalista de
excepcionais qualidades. Sua incansável maneira de apurar os fatos, abordando ângulos inovadores da notícia, fez a diferença para que se tornasse o que veio a ser para a imprensa de seu país: um nome de respeito. Quem conhece seus escritos sabe o quanto foi importante na formação do futuro escritor ter sido, antes, um jornalista. A simples observação dos títulos de suas obras remete a manchetes de jornais. Em quase todos os seus livros, fazse notar a presença do jornalista. “Minha escrita é sempre uma espécie de literatura jornalística”, reconhecia o próprio. Para quem quiser conhecer em profundidade a vida do colombiano, o melhor caminho é mesmo a biografia Gabriel García Márquez - Uma Vida, editada pela Ediouro, em que Gerald Martin, professor da Universidade de Pittsburgh, detalha o mapa da infância do autor e narra a sua transformação em mito da literatura latino-americana. Ao contrário de outros geniais escritores que, em vida, não foram reconhecidos, Gabriel García Márquez conheceu a glória quando por aqui ainda passava. Prova de sua importância foi a enorme repercussão de sua morte pelo mundo afora. O Presidente Barack Obama declarou ser fã do autor, orgulhandose de possuir um exemplar autografado de Cem Anos de Solidão. “O mundo perdeu um dos maiores e mais visionários escritores, um dos meus preferidos desde que eu era jovem”, disse o líder norte-americano. Escritores brasileiros, como Luís Fernando Veríssimo, declararam que o autor colombiano mudou a ótica do mundo com relação à América do Sul. Mas, talvez, a melhor definição para esta perda tenha sido dada por Eric Nepomuceno. “Levarei comigo para sempre seu caminhar de bailarino caribenho, seu sorriso de fulgores, sua entrega à vida. Sua solidão infinita, rompida apenas pelo afeto dos amigos, escudada numa alegria travessa, e o Gabo querendo ser aquele pianista de fundo de bar, aquele que tocava apenas para que os namorados se amassem mais. Esse vazio, levarei para sempre. Um vazio infinito, do tamanho da minha dor”. Neste relato, o jornalista e tradutor não está sozinho. Há milhares, milhões de leitores de Gabo, que seguem por aí, mais que acompanhados, embalados pelas fantásticas histórias contidas em seus livros. Acredite: também eles nunca estiveram mergulhados em tamanha e irreversível solidão.
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