Jornal da ABI 401

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SÓCIOS DA ABI SAÚDAM O VOTO ELETRÔNICO “A ABI ingressa no século 21 e reforça seu compromisso em ser fiel à manifestação de seus sócios”, disse Juca Kfouri, um dos jornalistas que manifestaram seu apoio à novidade.

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ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

A história das Diretas já e das Copas pelo olhar da imprensa PÁGINAS 14 E 24

Entrevista inédita com João Saldanha PÁGINA 26

MARTIN CARONE DOS SANTOS

“Meu jeito de escrever matéria nunca foi o de seguir o manual”

VIDAS MYLTON SEVERIANO • FERNANDO SEGISMUNDO • JOÃO CARLOS SAMPAIO


EDITORIAL

INIMIGOS DO FUTURO ROBERTO M ONTEIRO DE PINHO

N

ão se pode permitir que a Associação para o governo do Estado do Rio, em 1982, deBrasileira de Imprensa, a mais longeva monstra como estão desconectados da realiinstituição da sociedade civil,volte a ser dade dos dias de hoje. Vivem e pensam como ocupada por falanges que ainda usam capuz. há 32 anos. Não percebem a camada de pátina Com a ascensão de Tarcísio Holanda à presi- que usam como uniforme e abrigo. O VOTO ELETRÔNICO dispõe de mecanisdência da entidade, ela conseguiu livrar-se do abandono que a levaram ao coma profundo mos que garantem a segurança e a transparência que esse moderno procesdo qual acabou de se libertar. so oferece, como a auditoria A ABI não pode voltar a ser o Os inimigos do futuro balcão de pequenos negócios a querem apenas que um imediata de todo o processo de que foi reduzida pela última grupo fechado escolha a votação. A consulta através da internet ou da ligação 0800 é gestão. Os jornalistas não ponova direção da Casa e os utilizada por outras entidades dem deixar que ela seja também integrantes do Conselho nacionais como a Associação transformada em palco e vitriDeliberativo. A ABI, que dos Aposentados e Funcionáne de figuras sem expressão, no sempre se caracterizou rios do Banco do Brasil , a Premeio profissional, egressas de pelas posições de vi e o Creci, que possuem asagremiações políticas que persociados em todo o País. vanguarda, não pode deram espaço nos movimentos Os representantes do atrasociais. A ABI não tem partido. ter medo do novo. so alegam que o Estatuto da O seu passado e a sua história impedem que ela seja, outra vez, apequena- Casa não permite a realização de eleições fora da por interesses de ocasião. A Casa de Herbert do Rio de Janeiro. Acham que a ABI deve conMoses enfrenta uma das crises mais graves da tinuar como no passado, refratária às novas sua existência, diante da ameaça de fatiamento tecnologias. Os inimigos do futuro querem do prédio que abriga a entidade. A ABI cresce e apenas que um grupo fechado escolha a nova se renova, abrindo-se aos novos tempos, ou terá direção da Casa e os integrantes do Conselho o mesmo destino das instituições que se recu- Deliberativo. A ABI, que sempre se caractesaram a se conectar com a modernidade e desa- rizou pelas posições de vanguarda, não pode pareceram. A adoção do VOTO ELETRÔNICO ter medo do novo. Os militantes do passado, que se voltam conpermitirá que todo o corpo social se manifeste, pela primeira vez, de forma livre e democráti- tra a atual Diretoria, querem manter a votação ca, sobre os destinos da instituição. A mudança regionalizada, como se ABI fosse um clube de do processo eleitoral é o primeiro passo da Casa bairro. Insultam a inteligência da grande maioria dos sócios ao tentarem manter a entidade dos Jornalistas em direção ao futuro. Os inimigos da modernidade voltam-se ago- como está, desidratada, e desconectada do mundo ra de forma truculenta contra a eleição eletrô- moderno. Ofendem , inclusive, a capacidade de nica. Acusam a introdução do aplicativo on- escolha e discernimento dos jornalistas filiados line de ser uma tentativa de fraudar a votação à ABI ao tentar transformá-los no famoso burda ABI . Marx dizia que não se pode criticar ou ro de Buridan — o asno do paradoxo filosófico condenar o que não se conhece. Além de igno- que morreu de fome por não saber o pedaço de rarem o avanço tecnológico representado pela feno que deveria escolher para se alimentar. Como de hábito, interpretam o Estatuto e o votação eletrônica, perdem-se no passado de sombras em que vivem ao apontá-lo como uma Regulamento Eleitoral da Casa com antolhos. espécie de Caso Proconsult. A simples evoca- Continuam reféns da visão estreita que contemção desse velho episódio , ocorrido nas eleições pla apenas seus interesses de ocasião. O Artigo

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3º do Regulamento Eleitoral é claro: diz que “a votação será cumprida na sede da Associação ou em outros locais indicados pela Diretoria, na última semana de abril, sempre no segundo dia da Assembléia Geral instalada com esse fim”. O texto foi amplamente discutido e aprovado pelo Conselho Deliberativo há cerca de dez anos. Não se tirou, portanto, “nenhum coelho da cartola”, como sustenta o diagramador e seus subordinados que tentam impedir que a Casa dos Jornalistas ingresse no século 21. O Regulamento Eleitoral que entrou em vigor em 2004 estabelece que a eleição poderá, portanto, ser realizada tanto na sede da entidade como em outros locais. Como a ABI é uma instituição nacional, com associados em todo País, a Diretoria deve não só garantir como oferecer as condições necessárias para que o pleito se realize,em todo o País, eliminando e corrigindo uma injustiça com o corpo social que reside e trabalha fora do Rio de Janeiro. A alegação de que a eleição on-line não é secreta revela também o nível de desinformação e o embaçado ângulo de visão desses agentes a serviço do atraso. O artigo 2º do Regulamento Eleitoral diz que “as eleições realizar-se-ão em escrutínios secretos e em duas cédulas separadas, uma para a Diretoria e integrantes dos Conselhos Deliberativo e Consultivo e outra para o Conselho Fiscal “. Conforme se depreende do texto, ele se refere a escrutínios secretos; ou seja, qualquer meio que contemple esse princípio, como a votação eletrônica, deverá ser considerado válido. Quanto às diferentes cédulas a que se refere o Estatuto, elas estarão representadas virtualmente tanto na configuração on-line, onde o associado deverá registrar o seu voto com um clic , como na opção 0800, onde uma gravação vai orientar o associado como votar. Cada sócio terá sua própria senha de acesso a esse moderno processo de escrutínio que colocará a entidade em comunhão como o mundo moderno. Não podemos permitir que a Casa dos Jornalistas volte a ser apenas um monumento aos pombos.


ELEIÇÃO

VOTO ELETRÔNICO: UMA REALIDADE Sócios da ABI aprovam integralmente a novidade a ser implantada já na próxima eleição. O Voto Eletrônico e o serviço 0800 tornarão o pleito ainda mais democrático e amplo. MIRIAM ZOMER/AGÊNCIA AL

AUDÁLIO DANTAS DIRETOR EXECUTIVO DE NEGÓCIOS DA C OMUNICAÇÃO

“A proposta de voto eletrônico, a ser implantado para a realização da próxima eleição da diretoria da ABI, é uma garantia de que todos os associados passam a decidir sobre os destinos da entidade. É a superação de um sistema de votação que faz da ABI uma entidade local e não nacional.” ARNALDO NISKIER JORNALISTA E MEMBRO DA A CADEMIA B RASILEIRA DE L ETRAS

MURILO MELO FILHO JORNALISTA E MEMBRO DA A CADEMIA B RASILEIRA DE L ETRAS

"Excelente, a ABI sempre dando exemplos de grandeza. Sou a favor da

modernidade, de tudo que represente uma evolução que tenha por finalidade a melhoria das relações humanas e entre sociedades e instituições. São os novos tempos, e ela mostra que está em perfeita sintonia com eles. A ABI sempre me surpreendendo prazerosamente. É um passo à frente, que veio facilitar e democratizar a eleição na Casa. Por que apequenar uma eleição, restringindo-a ao Rio de Janeiro, quando ela poderia ser do mesmo tamanho da Entidade, que tem as dimensões do Brasil? Até, quem sabe, nós da ABL também não venhamos a pensar nisso?" HÉLIO FERNANDES JORNALISTA

“Aos 93 anos de idade, 78 dedicados à vida jornalística, sempre pautei pela modernidade e, dessa forma, defendo uma entidade que simboliza a liberdade e o direito de expressão, e que

FRANCISCO UCHA

"Eu apoio essa medida, claro, já estava na hora de uma Entidade como a ABI instituí-la. É um instrumento democrático e democracia sempre foi o forte da ABI. Este momento é uma oportunidade ímpar para que esta Entidade dê uma nobre demonstração de vanguardismo e, acima de tudo, lisura e honestidade porque o voto eletrônico não é somente para um, é para todos. Eu já havia tomado conhecimento de que a ABI viria com o voto eletrônico na próxima eleição, fiquei muito feliz. E não me venham com essa conversa fiada que jornalista com mais de 60 ou 70 anos não sabe lidar com a tecnologia digital, já está provado que sabe e que isso não será o menor empecilho para que seja adotado daqui por diante."

venha, nessa eleição, se inserir no contexto do universo eletrônico e, conseqüentemente, estender aos associados que residem fora da cidade do Rio de Janeiro, onde está a sede da ABI, o voto eletrônico. Ao alargar seu horizonte, a ABI demonstra apreço aos princípios da democratização na escolha dos seus dirigentes, garantido o direito do voto. Já realizamos eleições fora do estado

do Rio de Janeiro, embora naquela oportunidade não existisse ainda o meio eletrônico, sendo a participação naquele pleito esplêndida. Ocorre que, por diversas eleições, a participação tem sido diminuta, e com o novo sistema garantindo o sufrágio secreto, estaremos retomando os rumos da ABI do Século 21. Dessa forma, a ABI reafirma seu ideal de entidade participativa, democrática e comprometida com o ideal da classe.” BERTO FILHO J ORNALISTA

Votar sem sair de casa é um sonho de consumo, principalmente para jornalistas que estão nos "Senta", nos "Tenta" e acima dos "Tenta"... Poupa travessias longas e deslocamentos difíceis, aproxima o jornalista da ABI, é uma mão na roda. Nessa urna eletrônica da ABI eu acredito. JORNAL DA ABI 401 • MAIO DE 2014

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ELEIÇÃO VOTO ELETRÔNICO: UMA REALIDADE

FRANCISCO UCHA

um novo marco da legítima representatividade da imprensa brasileira.” OSWALDO AUGUSTO LEITÃO

que, através dos Sindicatos dos Jornalistas, em cada Estado da federação brasileira, faz com que a categoria possa eleger os seus dirigentes.”

JORNALISTA

JUCA KFOURI JORNALISTA

“Quanto menos a manifestação da vontade nas urnas depender do manuseio de quem quer que seja, mais seguro será o processo, mais transparente será a operação, mais confiável será o resultado. Finalmente, a ABI ingressa no século 21 e reforça assim seu compromisso em ser fiel à manifestação de seus sócios.” MÚCIO AGUIAR PRESIDENTE DA A SSOCIAÇÃO DA I MPRENSA DE PERNAMBUCO (AIP)

“A democracia é um princípio nato ao jornalismo, o ideal democrático derruba barreiras do totalitarismo e da ganância pelo poder, erguendo mártires como Vladimir Herzog que, banhado por sangue, fez do seu ideal uma luta pela igualdade. Não diferente, a Associação Brasileira de Imprensa agora ressurge como baluarte deste direito tão bem representado por Barbosa Lima Sobrinho e Tarcísio Holanda. Não é mais um discurso da porta pra fora, mas sim de sua própria base, implantando um sistema de voto onde todos são iguais, indiferente mente das distâncias geográficas e das condições sociais de cada região, o que faz da ABI, novamente, uma entidade verdadeiramente nacional.” ELIO MACCAFERRI ESCRITOR, ESPECIALISTA EM COMUNICAÇÃO CORPORATIVA

“Sobre a ‘Grande Virada’, inovação que permite aos associados da ABI de todo o País votarem pela internet na próxima eleição da Casa Brasileira dos Jornalistas, ela mostra uma nova visão da Diretoria da ABI, que circunscreve a votação dos jornalistas para sua direção nacional, pela modernidade e ampla abrangência de seus membros, em todo território nacional. Esse projeto de democratização do voto que passará a incluir os associados que, por força de contingência domiciliar, estão excluídos de participação, é 4

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“Sobre as eleições no mês de julho, achei importantíssima a votação eletrônica com um aplicativo no site da entidade ou através do 0800, representando avanço tecnológico, além de democrático, o que permite a participação de nós, outros, sócios dessa importante Casa do Jornalista. Esta decisão, inclusive, equipara, em parte, ao processo da nossa FenajFederação Nacional dos Jornalistas

DANIEL MAZOLA JORNALISTA

“A ABI do Terceiro Milênio só tem sentido se for renovada, modernizada e estiver antenada com os movimentos sociais. O primeiro passo passa pela escolha democrática da nova diretoria através da votação eletrônica. Comavotaçãoinformatizada,oPresidente e a nova diretoria não serão escolhidos apenas pelos cariocas. Essa é

Previ e Cassi também utilizam o "Vote Aqui” Duas importantes entidades de assistência dos funcionários e aposentados do Banco do Brasil – a Previ-Caixa de Previdência do Banco do Brasil e a Cassi-Caixa de Assistência do Banco do Brasil – já utilizam o aplicativo do Voto Eletrônico há vários anos e têm o total apoio e incentivo dos associados. Regina Marçal de Carvalho, aposentada do Banco do Brasil, conselheira da Cassi e associada da Previ, além de diretora da AAFBB-Associação dos Aposentados e Funcionários do Banco do Brasil, afirma que mesmo em se tratando de entidades representativas, principalmente, de pessoas da terceira idade, não houve nenhuma resistência à implantação do voto eletrônico: "Muito pelo contrário, quando souberam da notícia, e olha que no caso da Previ já vão mais de 10 anos, eles vibraram e participaram da votação sem nenhum problema." Ela explica o processo, praticamente, o mesmo desenvolvido para a ABI: "No caso da Previ, o associado abre a tela da entidade, vai no aplicativo ‘Vote Aqui’, digita o número da matrícula no banco e uma senha que lhe é dada para a votação. Então, abre-se uma outra tela com os candidatos das chapas concorrentes. Ele vota e em seguida recebe a mensagem que seu voto foi confirmado. Pronto, está encerrada a votação. No caso da Cassi é um pouco diferente, embora o processo seja o mesmo. Ele se dirige a um caixa eletrônico, em qualquer agência do Banco do Brasil, passa o seu cartão do banco, abre a tela com o ‘Vote Aqui’; ele, então, usa a senha que lhe foi dada, digita a chapa de sua preferência e recebe a confirmação do voto. Dez minutos depois já se sabe o resultado da eleição. Posso garantir que é um sistema seguro, inviolável, imune a qualquer tipo de fraude. Nesses anos todos, nunca tivemos uma reclamação sequer com relação ao voto eletrônico. E olha que as disputas eleitorais nessas entidades são acirradíssimas."

uma entidade nacional, nada mais justo que os associados dos outros 26 estados da federação também possam votar, sem que para isso precisem viajar para a capital fluminense. Também éprecisogarantiraparticipaçãodosidosos que residem na cidade do Rio de Janeiro, muitos estão debilitados fisicamente e não podem se deslocar de suas casas até o edifício-sede. Sendo assim, a votação eletrônica é justíssima, democrática e necessária.” LUTHERO MAYNARD J ORNALISTA

“O voto eletrônico irá permitir à ABI eleger seus dirigentes de forma mais ampla e democrática. Além disso, irá convocar jornalistas de todo o território nacional para participar da vida da entidade e fortalecer os mecanismos democráticos da instituição.” EDUARDO RIBEIRO DIRETOR DO JORNALISTAS & CIA

“O Brasil deu uma lição ao mundo ao introduzir o voto eletrônico nas eleições brasileiras. Nada mais natural do que a ABI introduzir o voto eletrônico nas eleições associativas. Isso é pioneirismo. Isso é a valorização da democracia numa das mais importantes instituições brasileiras.” TEREZINHA SANTOS J ORNALISTA

Excelente iniciativa! Estou confiante que a ABI terá um futuro melhor. O voto eletrônico vai facilitar muito a nossa vida. Eu me lembro da primeira vez que votei na ABI. Tinha acabado de me formar em jornalismo pela Facha,em 1978. Foi um grande orgulho ser associada e ter minha primeira carteira de jornalista. Houve naquela época um congresso para jornalistas no auditório, inesquecível! Foi neste evento que me convenci que devia me associar... Desde então continuo apoiando a ABI, mesmo conhecendo as mazelas internas. A entidade deve oferecer melhores condições para seus associados no que tange a eventos e serviços. Precisa renovar, buscar a participação dos futuros jornalistas plugados na internet. Espero que ela volte a ser de fato representativa para Brasil. Hoje a ABI está sem voz e passa por uma crise de imagem. É preciso mudar e trabalhar para fortalecer a imagem e a reputação da ABI. Contem com o meu apoio.


DEPOIMENTO

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Corria o mês de maio de 1976, eram umas três horas da tarde, momento em que o jornal começava a esquentar os motores para outra edição. ‘Ricardinho, dá uma lida nisso...’ Chamavamme assim, no diminutivo, porque eu era um dos mais jovens da equipe de duzentos e tantos jornalistas, que usavam terno e gravata e se tratavam com uma certa formalidade. Alguns poucos ainda se recusavam a adotar as modernas máquinas de escrever e redigiam seus artigos com canetas-tinteiro.” Este texto faz parte da introdução do livro Do Golpe ao Planalto – Ricardo Kotscho, Uma Vida de Repórter, lançado em 2006 pela Companhia das Letras. Assim que começamos a gravar esta entrevista, na varanda de seu aconchegante apartamento, Kotscho, que sabia que iríamos falar sobre sua carreira, se apressou a dizer: “escrevi um livro que conta toda essa história, a história da família, como comecei, tem tudo. Vai até 2004. Por isso o nome Do Golpe ao Planalto. Porque comecei minha vida profissional em 1964 e em 2004 eu estava no Planalto, trabalhando para o Governo”. É verdade. Quem quiser ter uma aula de jornalismo deve começar a ler imediatamente esse livro. Ricardo Kotscho tem jornalismo no sangue. Seu avô era um jornalista muito querido na Alemanha. Mas a ascensão de Hitler ao poder fez com que sua família se mudasse para o Brasil. Ricardinho foi o primeiro a nascer aqui. Sorte nossa. O Brasil ganharia, assim, um dos mais importantes jornalistas de sua geração. E que teve participação decisiva em dois eventos contundentes na História da redemocratização do País: a cobertura do assassinato de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, e na espetacular cobertura da campanha das “Diretas já”, que tomou conta das ruas há exatos 30 anos. E foi para falar de alguns momentos de seus 50 anos de carreira que Kotscho nos recebeu com a simpatia de sempre. De tão ricas as suas experiências profissionais, afinal ele trabalhou nas mais importantes publicações do Brasil, ele pode ser sempre uma pauta instigante.

Ricardo

KOTSCHO Meio século de reportagens Neste ano, um dos mais importantes e queridos jornalistas do País faz 50 anos de carreira. Aqui, ele conta um pouco dessa história. P OR FRANCISCO UCHA FOTOS MARTIN CARONE DOS SANTOS

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DEPOIMENTO RICARDO KOTSCHO

Jornal da ABI – Você começou muito cedo. Em 1964, tinha quantos anos? Ricardo Kotscho – Dezesseis anos. Na época, não precisava de diploma. E não é porque eu era precoce, pois muitos começaram cedo. A nossa escola era a própria Redação! Era comum isso. Muitos fotógrafos começaram no Laboratório...

hotel. Então, isso é custo zero para a revista. A Brasileiros tem seis anos e já fiz um monte de matérias desse jeito, porque pra todo lugar que se vai no Brasil tem assunto. E eu falava, no final da palestra: “agora vocês me ajudem a achar um assunto para fazer a matéria, para justificar os dias que eu não estou trabalhando”. E sempre deu certo. Uma vez, fui para Roraima, bem quando estourou aquela briga dos plantadores de arroz e os índios. Aí, aproveitei e fiz uma matéria sobre isso. A revista nunca iria mandar um repórter para Roraima, porque é muito caro. Então, aproveitei a palestra e fiz a matéria. E aconteceu outras vezes.

Jornal da ABI – E morava em Santo Amaro, não? Ricardo Kotscho – Sim. Trabalhei na Folha Santoamarense e na Gazeta de Santo Amaro. Mudei de um para o outro no mesmo ano. A Folha Santoamarense era um jornal novo quando fui trabalhar lá e não agüentou, e antes de acabar fui para a Gazeta. Jornal da ABI – Nessa época havia muito mais jornais de bairro do que hoje... Ricardo Kotscho – Muito mais. Não só jornais de bairro, como grandes jornais diários, matutinos, vespertinos, tinha muito mais títulos do que hoje. A gente começava em jornal de bairro. Era como começar num time de várzea e, se acertasse, ir subindo até chegar num time grande. Jornal da ABI – O que você fazia nesses jornais? Ricardo Kotscho – Nos dois, eu era repórter, que era o que eu queria ser, e vendia anúncios, o que também era comum. No período da manhã, ou da tarde, vendia anúncios, no outro era repórter e, à noite, estudava. Jornal da ABI – E como conciliava essas duas atividades, de repórter e de contato publicitário? Ricardo Kotscho – No jornal de bairro não tem quase nada de política, o noticiário é composto mais por problemas urbanos, trânsito, vestibular, comércio. A minha área era a de anúncios de emprego, pois existiam grandes indústrias em Santo Amaro, e ainda existem. Isso não interferia nas matérias. Se fosse um jornal grande, seria um repórter local, de buraco de rua. Naquela época, nos grandes jornais, a parte comercial, da publicidade, era totalmente separada da Redação. Eram a Igreja e o Estado; não podia confundir. Isso hoje está caindo, cada vez mais o departamento comercial interfere nas Redações, em ações conjuntas. Jornal da ABI – Mas os jornalistas não gostam muito dessa aproximação. Ricardo Kotscho – Eu também não gostava, mas era o jeito de ganhar alguma coisa, porque a ajuda de custo como repórter era muito baixa, e vendendo anúncio dava mais. Jornal da ABI – Três anos depois você já estava trabalhando num grande jornal, O Estado de S.Paulo. Ricardo Kotscho – Entrei em 1967, saí em 1977 e fui para a Alemanha como correspondente do JB. Jornal da ABI – O jornalista Audálio

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Jornal da ABI – E as fotos, nesse caso? Ricardo Kotscho – Para as fotos eu pegava alguém do lugar, freela, sempre tem. Às vezes do próprio evento que eu estava participando.

Dantas não se cansa de dizer que você foi um dos repórteres que fizeram a diferença no caso Herzog. Ricardo Kotscho – Na época ainda havia censura, repressão, e o Audálio era o Presidente do Sindicato dos Jornalistas. Ele conta que os repórteres dos outros jornais passavam lá no Sindicato para pegar a “Nota do Sindicato”, que a Diretoria do Sindicato soltava todo dia, com as investigações, o que eles iam fazer... E eu ia lá fazer matéria, entrevistava todo mundo. Queria mais detalhes sobre o que estava acontecendo com a família, os amigos. Sempre fiz isso; era o que eu chamava de matéria humana, não ficava só no oficial. Nunca gostei de press release, da nota oficial; eu gostava de contar histórias. Ia lá fazer matéria como se fosse ao Sindicato dos Químicos, dos Metalúrgicos, dos Professores. Fazia matéria todo dia no jornal. Muitas vezes cortavam, porque tinha censura, mas eu fazia a matéria. E a ordem no Estadão era essa: ‘Vamos trabalhar como se não existisse censura. Vamos fazer nosso trabalho, quem faz a censura é o censor; a gente escreve, ele corta’. Jornal da ABI – Teve muita matéria cortada? Ricardo Kotscho – Muita. Um monte. Jornal da ABI – Na íntegra? Ricardo Kotscho – Às vezes na íntegra, às vezes um pedaço. Por exemplo, sabe aquele negócio da pirâmide invertida, que tem que abrir com o fato principal e depois vai entrando nos detalhes? Eu fazia o contrário. Começava com o clima, o ambiente, a sala, o barulho, alguma coisa assim, e as informações mais importantes eu deixava para o final, porque eu achava que o censor ia começar a ler, cansava e deixava passar alguma coisa.

“Sempre fiz isso; era o que eu chamava de matéria humana, não ficava só no oficial. Nunca gostei de press release, da nota oficial; eu gostava de contar histórias.” Jornal da ABI – Isso era combinado com o editor? Ricardo Kotscho – Sim, o editor sabia. Não era só eu que fazia isso. Dentro do jornal, todo mundo sabia que esse era um jeito de passar pela censura. Eu fazia por iniciativa minha, mas mais gente deve ter feito também. Eu não sei fazer matéria por telefone. Tenho pavor disso. Você não vê as pessoas, onde moram, onde trabalham, como é que é. Meu jeito de escrever matéria nunca foi o de seguir o manual, sempre fiz daquele jeito. Eu já fazia assim no Estadão, num estilo mais parecido com o do Jornal da Tarde, da Realidade. Eram os modelos da época, nos anos 1960. Surgiram na mesma época e foram, para mim, as grandes publicações de reportagem, que sempre foi a minha área. Hoje, trabalho também na revista Brasileiros, que está longe de ser uma Realidade – que era uma revista rica, da Editora Abril – mas a idéia é a mesma: fazer matérias sobre temas e personalidades que não estão na grande mídia. Jornal da ABI – É difícil trabalhar na Brasileiros? Ricardo Kotscho – É fácil, mas não tem recursos, e reportagem precisa de recursos. Um jeito que eu encontrei para fazer certas reportagens foi aproveitar as viagens que eu faço para dar palestras e fazer reportagens também. Porque quando se vai fazer palestras, pagam passagem e

Jornal da ABI – De 1967, quando você entrou num grande jornal, até a data marcante do Herzog, foram nove anos escrevendo matérias em meio a uma enorme ditadura e repressão... Ricardo Kotscho – Só um pequeno parêntesis: a repressão da ditadura só pesou mesmo a partir de 1968, do AI-5, que foi o golpe dentro do golpe. De 1964 a 1968 foi uma época rica do jornalismo em geral – por incrível que pareça –, do teatro, do cinema, da música. Mesmo com a ditadura, tinha uma efervescência cultural fantástica. Surgiram nessa época a Veja, a Realidade e o Jornal da Tarde... Jornal da ABI – Marco Antônio Vila afirma que não houve ditadura entre 1964 e 1968... Ricardo Kotscho – Houve, claro que houve. Muita gente foi presa, teve gente que morreu. O Marco Antônio Vila... (risos) Olha, outro dia fui convidado de um Roda Viva com Almino Afonso como entrevistado. O Vila, que também estava lá, começou a contar essas histórias, de que não houve ditadura, começou a falar um monte de coisas do João Goulart, do golpe. Aí o Almino disse: ‘Olha, você como historiador é muito criativo, você é mais um ficcionista, porque eu estava lá, nesse dia, nesse lugar, e não aconteceu nada disso’. Algumas pessoas, como o Vila, estão querendo reescrever a História... Ditadura branda, essas coisas. Havia a ditadura, mas a gente continuava trabalhando. Jornal da ABI – No dia do golpe e nos dias subseqüentes, o que se viu nas ruas era a população apoiando os militares. Ricardo Kotscho – Não, não. Antes do golpe, ocorreram as Marchas da Família. E depois, no Rio, teve a Marcha da Vitória. Mas o povão, mesmo, não tomou conhecimento. Mais ou menos como aconteceu na Independência e na Proclamação da República. Tem até uma expressão, que não é minha e não me lembro de quem é, de que o povo assistiu a tudo bestificado. Porque as marchas foram promovidas pela igreja Católica e pelas eli-


ACERVO DCS/APESP

tes e a classe média de São Paulo e Rio de Janeiro; não foi uma coisa do povo. E poucos dias depois, acabou. Não houve resistência nenhuma. O Laurentino Gomes, que é um grande jornalista e historiador, tem três livros fantásticos – 1808, 1822 e 1889. Neste último, ele fala da proclamação da República e faz um paralelo com a campanha das Diretas em 1984. Ele diz que a verdadeira República no Brasil começou na campanha das “Diretas já”, que foi a primeira participação popular na política e na História do País. Jornal da ABI – Que você cobriu de ponta a ponta... Ricardo Kotscho – Eu cobri de ponta a ponta na Folha. Acho que eu fui o único repórter que pegou, do começo ao fim, a campanha das Diretas no Brasil inteiro. Jornal da ABI – Teve alguma restrição para cobrir as “diretas”? Ricardo Kotscho – Não, ao contrário. Havia um movimento social popular, forte em São Paulo, e eu cobria mais a área da luta social, sindicatos, movimento contra a carestia, pela anistia, havia vários movimentos simultâneos nessa época. E começaram a falar nesse negócio de diretas, daqui e dali. Aí teve um primeiro comício em frente ao Pacaembu, no final de 1983, na Praça Charles Miller, que juntou de tudo, teve até um ato de solidariedade à Nicarágua, e esse foi o primeiro comício maior das Diretas. Era uma festa; tinha um monte de coisas. Mas foi ali que começou. Então, escrevi para o Frias (Octavio Frias), que era o dono do jornal, uma sugestão de pauta dizendo que aquilo que estava acontecendo nas ruas era muito importante e que o jornal deveria se empenhar, não só cobrir, mas apoiar mesmo a campanha, e ele topou na hora e deu uma ordem para o jornal fazer isso – sucursais, correspondentes, todo mundo. E, realmente, a Folha se engajou na campanha das diretas abertamente, até o fim. E não havia, ao contrário do que normalmente acontecia, nenhuma restrição de gastos. Eu podia gastar o quanto, onde e com o que quisesse, e tudo o que eu escrevia era editado. Jornal da ABI – O Frias não era jornalista, mas tinha uma intuição... Ricardo Kotscho – O próprio Frias dizia que não era jornalista: “Eu sou empresário e vocês são jornalistas”. Só que ele tinha um faro muito aguçado, que muitos bons repórteres têm, e ele percebeu que ali era um bom negócio para o jornal, que a Folha vinha crescendo, vendendo mais, mais influente, mas faltava uma bandeira, uma coisa que se destacasse, e ele viu na campanha das Diretas essa oportunidade de dar um salto, e foi o que aconteceu. A partir daí, no final da campanha, a Folha passou a ser o maior jornal do País e o de maior circulação, e é até hoje. Desde 1984, é a Folha. Claro que ele tinha um interesse empresarial, mas foi o momento de identificação da Redação com a direção, que é raro. Havia o mesmo objetivo, de redemocratização do País.

Jornal da ABI – Mais ou menos o que aconteceu no Estadão quando se recebeu a ordem de “vamos fazer o nosso trabalho e os censores que façam o deles”? Ricardo Kotscho – A diferença é que nessa época já não havia a censura prévia do governo, mas havia a autocensura nas empresas, jornais, televisão... Eles tinham medo dos militares. Então, o que aconteceu é que no começo era só a Folha que cobria, dava cobertura ampla e diária. O velho Frias falou isso: “Quero matéria todo dia, não só em dia de comício, todo dia tem que ter matéria”. E tinha que se virar para fazer. Os outros jornais foram entrando aos poucos, quando a campanha ganhou uma dimensão maior. À medida que os comícios foram acontecendo, aumentado a quantidade de gente nas ruas, obrigava os jornais, revistas e televisões a cobrir também. Primeiro foi a Manchete, depois a Bandeirantes, e por último, a Globo, que só entrou na reta final. Jornal da ABI – A ordem do Frias e essa cobertura que a Folha fez, a partir de sua sugestão, ajudaram a mobilizar a sociedade? Ricardo Kotscho – Seria muita pretensão minha falar isso porque fui eu que dei a idéia, que tomei a iniciativa como repórter mesmo, percebendo que aquilo rendia matéria, mas acho que teve influência sim, porque eu não só cobria a coisa, como procurava ajudar, ia às reuniões. Quando a coisa caía um pouco, procurava personagens fora dos partidos, lideranças da sociedade civil, fazia uma entrevista com alguém importante apoiando a campanha das Diretas. Jornal da ABI – Alguma pauta foi difícil de fazer? Ricardo Kotscho – Não, não... (pausa) Eu tive uma dificuldade, nunca vou esquecer, em São Luís do Maranhão. Porque lá, os líderes da campanha das Diretas – Ulysses Guimarães, Lula, Brizola – desce-

ram o cacete no Sarney – você vê como é a vida, né? (risos) Ele já era, naquela época, o grande cacique do Maranhão... Jornal da ABI – E da Arena! Ricardo Kotscho – Sim, da Arena. E, na época, não existia celular. Então, tinha que passar a matéria ou de um orelhão, que era um negócio complicado por causa do barulho da Redação no horário de fechamento, ou de alguma Redação de jornal local... Jornal da ABI – E os telefones não funcionavam bem! Ricardo Kotscho – Pois é, era complicado, caía linha, era um sufoco. Então, eu procurei a Redação de um jornal local e, para o meu azar, entrei no jornal do Sarney, acho que era o Estado do Maranhão. E quando eu estava passando as informações por telefone, da Redação, as pessoas ouviram o que eu estava falando e ficaram olhando feio. “Como é que o cara vem aqui falar mal do Dr. Sarney?” (risos) Mas, terminei de passar a matéria! A dificuldade maior naquela época não era de emplacar a matéria, era transmitir, fazer a matéria chegar à Redação. Jornal da ABI – Em algum momento, na época da ditadura, teve que driblar a direção do jornal para conseguir publicar uma matéria? Os proprietários dos jornais cerceavam algum assunto? Ricardo Kotscho – Na Folha não, porque eu entrei lá em 1980 e já não havia censura, mas tive vários problemas no Estadão, onde peguei o período mais pesado da censura. E, além da censura do governo militar, havia interesses muito fortes da empresa. Um exemplo foi uma matéria sobre conflito de terras em Rondônia, um problema crônico. E o chefe do Incra local, que era um militar, estava indignado com o que ele viu lá e me passou os documentos, denunciou tudo. E eram famílias aqui de São Paulo, fazendeiros que estavam grilando terras.

Palanque do comício pelas Diretas já, realizado na Praça da Sé em 25 de janeiro de 1984, que reuniu políticos e artistas, e teve cobertura total da Folha de S.Paulo.

Jornal da ABI – Um militar denunciou? Ricardo Kotscho – Era o chefe do Incra local. Porque tinham os militares torturadores, mas também havia os militares sérios, empenhados, nacionalistas, nesses cargos. Aí eu fiz a matéria, com nomes e tudo, documentos, e deu a maior confusão no jornal. Vieram me perguntar se eu tinha provas, e eu disse que tinha tudo, um bolo de coisas. E, para azar meu, algumas daquelas famílias citadas eram ligadas à direção do jornal. Pessoas próximas. “Eu não vou mudar nada, porque é isso mesmo, tenho provas”. No dia seguinte, desmentiram a matéria. Num box, na última página do jornal, deram: “Ao contrário do que publicamos ontem, tal e tal...” Jornal da ABI – Mas como a matéria chegou a ser publicada se havia esses “problemas”? Ricardo Kotscho – Aí é que está. É um engano imaginar que o dono do jornal lê tudo antes de publicar. Ele lê depois. É impossível, hoje em dia, com o número de informações e de pessoas que participam do processo, que o dono do jornal acompanhe tudo. É inviável. Como é inviável, ao meu ver, o controle social da mídia. Não tem como. Acontecia muito isso, a matéria saía e dava problemas no dia seguinte. Jornal da ABI – Quando foi isso? Ricardo Kotscho – No começo dos anos 1970. Mas sobrevivi. Arrumei brigas, mas nunca fui demitido de jornal nenhum. Eu é que “demitia” as empresas quando não estava legal e ia para outro lugar. (risos) Mas na Folha aconteceu uma coisa curiosa. Quando fui trabalhar lá, foi depois do Jornal da República que foi uma experiência do Mino Carta que não deu certo...

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DEPOIMENTO RICARDO KOTSCHO

Jornal da ABI – Excelente jornal! Grande projeto do Mino Carta! Ricardo Kotscho – Era muito legal! Uma puta experiência! Mas, não deu certo... Aí o Frias levou uma parte dessa equipe para lá, inclusive o Cláudio Abramo, que tinha saído da Folha e voltou, e indicou alguns nomes. Eu não conhecia o Frias, e ele me chamou para conversar: “É, seu Kotscho, tenho umas informações aí, o Cláudio me falou, que você escreve bem e quero que você venha trabalhar aqui”. Acertei lá o salário, e ele disse: “Olha, aqui não é o Estadão. Aqui não tem lista negra nem lista branca. Não tem ninguém que seja proibido de ser citado em matérias e ninguém que você é obrigado a falar. Eu só te peço uma coisa: não faça matérias sobre a Estação Rodoviária, porque é minha”.(risos) E era um rolo no centro da cidade, uma confusão de trânsito. A estação era dele e do Carlos Caldeira Filho, que era o sócio dele. Os dois eram donos da Estação Rodoviária que ficava em frente à Estação da Luz, onde tem a Sala São Paulo. Eu me identifiquei muito com o jeito do velho e até brinquei com ele: “Não, ‘seu’ Frias, não se preocupe, porque eu não ando de ônibus”. E era perto da Folha, algumas quadras. Nunca ele proibiu um assunto ou cortou uma matéria. Nunca. E sofreu pressões. Uma matéria que fiz sobre a Receita Federal, o chefe da Receita na época ligou para ele, e ele bancou até o fim. Ele só perguntava: “Tem provas? Está bem fundamentado? Então, publica”. E, muitas vezes, era ele quem mandava fazer a matéria! Muitas vezes! Jornal da ABI – Faz falta gente na imprensa como o Frias? Ricardo Kotscho – Ah, falta, falta! Faz uma falta enorme. Não tem mais. Não tem nem dono, que hoje é chamado de ‘publisher’, e nem diretores de Redação com peso, com força. Tive a sorte de pegar, nos anos 1960, 1970 e 1980, Cláudio Abramo, Alberto Dines, Samuel Wainer, Clóvis Rossi. Eu não posso me queixar da vida, pelo contrário. Acho que é por isso que eu consegui chegar aos 50 anos de profissão trabalhando em três empregos. Eu tenho o blog no portal R7, que hoje é um dos maiores do País, sou comentarista na Record News, no jornal do Heródoto Barbeiro, que é um jornal muito bacana – ele é uma figura fantástica. E trabalho na revista Brasileiros até hoje. Acho que devo muito disso às pessoas com quem convivi e trabalhei. Hoje é difícil repetir essa história porque não tem mais essas figuras. Jornal da ABI – Não é por causa disso que o jornalismo impresso está perdendo a força? Ricardo Kotscho – Eu acho que é um dos motivos, mas não é só isso. Até porque os grandes jornais são também donos dos grandes portais da internet. Acho que não é a internet que está matando a imprensa de papel. Está havendo um suicídio da imprensa de papel. Você tem que se diferenciar dentro da sua mídia, a de papel,

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que não existe mais. E não havia essa ditadura da pauta, que determina o que o jornal vai dar. O repórter é que tinha que trazer a pauta, que vinha da rua para a Redação. E o que é pior: antigamente havia duplas de repórter e fotógrafo, que saíam sempre juntos, às vezes com o mesmo motorista de reportagem, que é outra figura que desapareceu. O que acontecia? A gente ia fazer uma matéria e descobria outro assunto. Podia largar aquela que a gente tinha e fazer a outra, ou fazer as duas. Era comum isso. O exemplo é a campanha das Diretas. Ninguém chegou para mim com uma pauta, foi um negócio que eu vi na rua e trouxe para a Redação. Isso não tem mais. E o profissional não briga mais pela pauta. Antes, o repórter tinha que brigar para fazer a matéria; depois tinha que brigar pelo espaço, para publicar a matéria. E não é sacanagem, nem censura; é porque tinham cem matérias para publicar, onde cabiam trinta. Aí, se brigava por um espaço na primeira página.

“Há meia-dúzia de chefes, cargos de confiança, que determinam o que o jornal vai fazer e o que vai dar no dia seguinte, já bolam a manchete do jornal às nove horas da manhã e o repórter virou um caçador de aspas.” e se diferenciar das outras mídias eletrônicas. Hoje está tudo muito parecido, muito igual. Você lê o noticiário da internet do Globo, Estado e Folha, durante o dia, e pega o jornal do dia seguinte e é a mesma coisa! E o que é pior: as notícias são as mesmas! E pior ainda: o enfoque é o mesmo! Jornal da ABI – Isso é o pior de tudo, não? Ricardo Kotscho – É o pensamento único, a pauta única. Antigamente, a competição, a concorrência dentro das empresas se dava no campo da reportagem, ter a história que o outro não tem, dar o furo que o outro não tem. Era muito em cima do trabalho do repórter para diferenciar um jornal do outro. Claro que cada um tinha suas posições políticas, mas havia uma diferença fundamental no noticiário e na parte da reportagem. Hoje não tem mais! É pensamento único, pauta única, se aceita o prato-feito e o repórter virou um ser subalterno nas Redações,

quando antes havia uma briga por bons repórteres. O cara saía de um lugar para outro para ganhar mais. Hoje não tem mais isso. Não existe mais. Quem manda é a pauta, é o jornalismo de tese. Há meia-dúzia de chefes, cargos de confiança, que determinam o que o jornal vai fazer e o que vai dar no dia seguinte, já bolam a manchete do jornal às nove horas da manhã – a não ser que aconteça alguma tragédia – e o repórter virou um caçador de aspas para justificar aquela tese. Se ele voltar para o jornal vários dias seguidos trazendo informações que contradizem aquela tese ele está ferrado, e sabe disso. Então, não precisa ninguém chegar para ele e dizer que tem que falar disso, ou não pode falar aquilo... Não precisa, porque está implícito. O cara que hoje vai trabalhar na Veja já sabe o que pode e o que não pode fazer; como é que ele sobe lá dentro. E como não tem mais uma luta coletiva que une os profissionais – hoje é cada um por si –, o controle ficou muito maior. Antigamente, quando uma empresa fazia demissões de vários profissionais – o que era até chamado de ‘passaralho’ –, quase havia uma rebelião na Redação, tinha reunião no sindicato. Não é mais assim. Nos anos 1980, na Folha, nós criamos a Comissão de Representantes da Redação, que eram eleitos nas Redações e tinham estabilidade durante o mandato, que era de um ano. Então, qualquer coisa que acontecia na Redação, a gente ia discutir com o dono, até mesmo a linha editorial. Havia uma participação dos jornalistas no produto,

Jornal da ABI – Era uma briga diária. Ricardo Kotscho – É. Hoje não tem mais isso. O repórter nem fala com o editor. Eu sempre fazia um negócio que chamava de ‘jornal falado’, que é quando eu vinha da rua cheio de histórias e falava com o editor, ‘vendia’ minha pauta para ganhar espaço, para ganhar destaque na página. Na minha última passagem pela Folha, a terceira, foi em 2000, já tinha mudado tudo, já tinha Manual de Redação, aquela coisa toda. E eu fui falar com o editor para dizer o que eu tinha, e ele falou: “Agora estou em horário de fechamento, manda por e-mail”. Nunca fiz isso porque acho que é uma perda de tempo. Escrever um resumo da matéria para mandar por email. Eu escrevia a matéria, mandava e ia embora, ia para o bar. Jornal da ABI – E a matéria era toda publicada? Ricardo Kotscho – Às vezes tinha problema de tamanho. Naquele caso, o editor publicou. Ele só não queria perder tempo comigo. Imagina, um editor conversar com um repórter... Para você ter uma idéia do respeito que havia, pelo menos comigo, é que eu sempre tive o defeito de escrever muito. Qualquer matéria que me davam, qualquer bobagem, eu tentava transformar numa boa história. (risos) Um dia eu exagerei, e às onze horas da noite me liga o Otávio Frias Filho, que hoje substitui o ‘Seu’ Frias, e é o Diretor de Redação: “Kotscho, tivemos um problema com a sua matéria, estourou tudo, tivemos que cortar, veja se você concorda...”, eu disse “O que você cortar está bom”. Geralmente corta-se pelo pé. Mas não era uma censura pelo que eu tinha escrito; era porque estava muito grande. Só tive problema de censura, com toda a franqueza, no Estadão. Não tive em nenhum outro lugar, nem no JB, nem na Folha, nem na IstoÉ. Trabalhei em quase todos os lugares, só não trabalhei na Veja.


Jornal da ABI – A autocensura no Estadão era persistente ou era eventual? Ricardo Kotscho – Era desagradável, porque havia uma interferência grande dos proprietários na Redação, e que se tornou maior depois que a censura saiu. Porque enquanto havia censura, eles estavam tranqüilos, porque os caras vinham e cortavam mesmo. Quando a censura saiu, eles é que passaram a exercer o controle. Aí, deu uma crise grande lá e saiu boa parte da Redação em 1977, quando eu fui para a Alemanha. Jornal da ABI – A ditadura fechou muitos jornais, onde havia diversidade de opinião. Será que isso não contribuiu de fato para que a mídia hoje seja tão padronizada? Ricardo Kotscho – No começo houve uma pressão muito grande sobre alguns jornais que fecharam em função disso, como o Correio da Manhã, no Rio. Mas depois, o Jornal do Brasil fechou agora nos anos 1990, e não teve nada a ver com a ditadura, foi um problema administrativo. Jornal da ABI – Sim, claro. Mas os jornais alternativos, como o Movimento e o Opinião, não poderiam ter crescido e se tornado grandes jornais que dariam pluralidade de opinião à atual imprensa? Ricardo Kotscho – Participei disso também, trabalhei no Movimento e no Opinião; mas eram jornais de uma época, datados... Mas você tem razão, eles poderiam existir até hoje. Dos grandes jornais, um que fechou por ação direta da ditadura foi o Correio da Manhã. Jornal da ABI – A TV Excelsior também... Ricardo Kotscho – Sim, é verdade. O pessoal da Excelsior foi para Globo, que tinha vindo da Tupi, assim como uma grande parte da Redação do JB, que foi o melhor jornal do País disparado durante uns bons anos, está hoje no Globo. Temos hoje três jornais nacionais: Estado, Folha e Globo, e mais o Valor Econômico, que está crescendo. Mas são das mesmas famílias. Jornal da ABI – Você estava com um problema com os militares quando foi convidado para ser correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha. Conte como esse convite chegou em tão boa hora... Ricardo Kotscho – Eu fiz duas matérias que tiveram uma repercussão muito grande. Jornal da ABI – Com uma delas você ganhou o Prêmio Esso... Ricardo Kotscho – Sim, das mordomias. Não fui só eu, foi uma equipe. Fui coordenador de uma série de reportagens sobre os abusos dos tecnocratas, dos militares, na ditadura, em 1975, 1976, mais ou menos na época do Vlado. Teve uma repercussão enorme e, naquela época, todos os jornais de São Paulo tinham setoristas no 2º Exército. O setorista do Estado era meu amigo. E ele vinha me falar que a barra estava pesando para o meu lado, que

“Um sujeito parou em frente à casa dela, bateu palmas e jogou um saco de lixo no quintal e disse: ‘Isso aí é o que sobrou do teu marido’, e foi embora.” era melhor dar um tempo; falava para evitar de assinar as matérias. Algum tempo depois, mataram, nas mesmas circunstâncias do Vlado, um operário chamado Manoel Fiel Filho, e isso era uma denúncia muito delicada, porque na morte do Vlado o Geisel veio para São Paulo e advertiu o Ednardo d’Ávila Mello, então comandante do 2º Exército em São Paulo: “Se acontecer de novo, eu demito todo mundo”. E aconteceu. Só que esconderam o caso. E não sei como, o Clóvis Rossi, que era o chefe de reportagem, ficou sabendo, me chamou e pediu para que eu investigasse isso para confirmar. Eu tinha a informação de que mataram um operário nas mesmas circunstâncias do Vlado e só tinha o endereço da fábrica onde ele trabalhava, o nome e mais nada. Aí fui à fábrica, e todo mundo com medo de falar, mas consegui que me dissessem pelo menos onde era a casa do operário. Cheguei à casa e não tinha ninguém. Vazia. Perguntei para os vizinhos onde estava a viúva e também ninguém queria falar, porque naquela época havia o medo! O medo é que mandava em tudo, não só nas Redações, em todo lugar. E um vizinho me falou que sabia que a viúva tinha um parente que morava em tal lugar, perto de uma padaria. Era umas cinco ou seis horas da tarde e eu falei para o fotó-

grafo: “Vamos arriscar, vamos até a padaria e a gente toma uma cerveja lá”. E na hora em que estávamos na padaria, passa um cara na calçada com um crucifixo pequeno no peito. Quando os padres deixaram de usar batina, passaram a usar um pequeno crucifixo. Ele deve ser o padre, deve ser ligado à Igreja. Me apresentei a ele, disse que era da Comissão de Justiça e Paz, trabalhava no Estado de S.Paulo e estava procurando a tal viúva. Ele me falou: “Acabei de sair da casa em que ela está, falei com ela agora”, e me levou lá. E facilitou as coisas, porque, claro, ela tinha medo de falar, mas o padre falou que eu era de confiança, gente da igreja, e era mesmo, era amigo do D. Paulo (Evaristo Arns). Por coincidência, anos depois, D. Paulo me chamou para participar do livro Brasil Nunca Mais, que foi a grande denúncia dos crimes praticados pelos militares de torturas e mortes, até hoje é a grande obra de referência, e participei disso também. Mas, voltando ao Fiel Filho, levantei a história toda. Tem uma passagem dramática, de como a viúva ficou sabendo da morte do marido, quando um sujeito parou em frente à casa dela, bateu palmas e jogou um saco de lixo no quintal e disse: “Isso aí é o que sobrou do teu marido”, e foi embora. Eram os documentos e as roupas dele. Aí eu escrevi a matéria e a direção do jornal quis saber do Clóvis Rossi se os outros jornais também iam dar aquelas informações. E o Rossi disse: “Não, só nós temos”. “Então, é perigoso!”. A censura tinha acabado de sair do jornal, quando o jornal fez cem anos, saiu a censura prévia, mas continuavam as proibições. Aí a direção só autorizaria a publicação da matéria se o repórter assinas-

se e assumisse a responsabilidade. Aí o Rossi me falou essa decisão da direção do jornal... E não tinha saída. Eu queria que saísse, que fosse publicado! Mas, na hora não lembrei que minha mulher já estava grávida e havia um clima tenso nas Redações; foram presos vários amigos na época. Eu nunca fui preso. Mas falei: “tudo bem, toca pra frente!”, e a matéria saiu. E os conselhos e ‘recados’ que eu recebia, aumentaram. O Geisel veio para São Paulo e demitiu Ednardo d’Ávila Mello e a cúpula do Segundo Exército. Foi aí que começou o processo de abertura lenta e gradual, foi um divisor de águas. Consegui levantar a história e contar... Jornal da ABI – Você não tinha medo? Ricardo Kotscho – Pô! Eu sempre fui cagão! Então, quando falam que o repórter tem que ser um cara atirado, que enfrenta, vai e fura tudo, eu nunca fui assim! Sempre tive medo de tudo. Sempre acho que não vai dar certo! (risos) Jornal da ABI – Mas como você teve essa coragem sabendo que sua mulher estava grávida? Ricardo Kotscho – Pra você ver... É que não foi bem ‘coragem’; é que eu queria que saísse a matéria, sabia que era importante ser publicada, que aquilo poderia ter um efeito bom na redemocratização do País. Mas eu posso te contar um episódio também que é ao contrário. Quando teve a missa do ato ecumênico do Vlado na Praça da Sé, a catedral estava cercada pelo Exército, polícia, aquele negócio todo... Minha mulher já estava grávida... Fiquei com medo de entrar na igreja e voltei para a Redação. Porque não faria nenhuma diferença eu estar na igreja ou não. Esse

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é o limite que eu acho da coragem e do medo. Se aquilo que você faz é temerário, mas pode ser uma coisa boa para a sociedade, você corre o risco. Mas, se é só para marcar presença, para dizer que esteve lá, não... Então, fui embora, não cheguei a participar do ato ecumênico. Jornal da ABI – Durante a cobertura do assassinato do Vlado, como administrava o seu medo? Ricardo Kotscho – Todo mundo tinha medo, não era só eu, mas era um negócio que tinha que enfrentar. O Audálio, que foi um líder naquele momento, também tinha medo. Mas você aprendia a conviver com o medo, fazia parte do dia a dia. Até fiz uma brincadeira besta com o Audálio. Começaram a prender um monte de jornalistas, antes de matarem o Vlado, aí pararam. E eu fiz um comentário uma vez, durante um jantar com os amigos, eu disse assim: “Acho que alguma coisa eu fiz de errado, porque estão prendendo todo mundo e não me pegaram...” Quer dizer... Era esse o clima. Porque se tivesse o meu nome na caderneta de endereços de alguém que fosse preso, eu ia preso também. As pessoas eram presas aleatoriamente! Na classe da minha mulher, que estudava na Usp, sumiam alunos de um dia para o outro! Desapareciam!... A gente não tem idéia, hoje, do que foram aqueles tempos! Jornal da ABI – E como acontece o convite para ser correspondente na Alemanha? Ricardo Kotscho – Essa história é engraçada. A maioria das coisas que aconteceram comigo ocorreu por acaso, como eu viria a ser assessor de imprensa do Lula por acaso. Essa história da Alemanha foi o seguinte: foi a época do acordo nuclear Brasil-Alemanha. O Estadão tinha mandado para lá um cara muito bom, que depois se tornou meu amigo, o William Waack, que está aí até hoje. Ele era correspondente do Estadão e dava furo nos outros jornais todo dia, porque falava alemão. A Dorrit Harazim, que é uma grande jornalista do Rio dos áureos tempos do JB, era chefe dos correspondentes internacionais do Jornal do Brasil. Ela queria um jornalista que soubesse escrever bem... Porque isso sempre ajuda (risos), e que soubesse alemão. E eu era um dos poucos que falava alemão, foi a minha primeira língua; eu só aprendi o português na escola, com seis, sete anos. Em casa só se falava alemão, eu nasci aqui, mas em casa a gente só falava alemão. E falava bem o alemão, mas era juvenil, porque depois eu não falei mais. Nunca vou esquecer, ela pediu para o José Roberto Guzzo – com quem ela tinha trabalhado na Veja e que era diretor de Redação da revista – para me convencer a aceitar o convite! (risos) E quando ela começou a falar, eu já louco para sair do Brasil – iria para qualquer lugar! –, não precisava nem ter trazido o Guzzo para me convencer; já estava aceito! (risos) E o salário era bom, as condições eram ótimas. Naque-

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la época, o Jornal do Brasil era a Seleção Brasileira do Jornalismo. Pagavam aluguel, passagem livre, cartão, enfim, era igual ser embaixador. Quando eu fui contratado pelo JB, teve um almoço e me falaram que ser correspondente do Jornal do Brasil era como ser um embaixador do Brasil na Alemanha. Muita responsabilidade. Eu não tinha nem trinta anos! Jornal da ABI – Você passou pelos melhores jornais em suas melhores épocas! Ricardo Kotscho – Tem uma frase antiga que diz que você tem que estar no lugar certo na hora certa. Mas, ao mesmo tempo, você não pode estar no lugar errado na hora errada. E nem sempre isso depende de você. Muitas vezes depende de sorte, de circunstâncias. Então, eu dei um tempo, fui para a Alemanha, fiquei uns dois anos, e voltei para trabalhar com o Mino Carta na IstoÉ, no início do crescimento do movimento sindical do ABC. Na época da anistia. Tudo estava acontecendo! E na IstoÉ tinha absoluta liberdade, porque o dono era um jornalista, o Mino Carta, que me escalou para cobrir o ABC. Eu virei correspondente no ABC. “Toda semana eu quero uma matéria”. Como depois o Frias fez, querendo todo dia matéria das Diretas, ele fez com o ABC... As greves, Lula, aquele negócio todo. A primeira entrevista com o Lula quem fez foi o Mino. Foi capa da IstoÉ. Ele dizia: “O que acontecer no Brasil daqui pra frente vai passar pelo ABC e esse tal de Lula aí vai ser importante!”. Mino tem um faro incrível. Ele é incrível! Depois fui para o Jornal da República, que foi a mesma equipe que passou para lá, e depois a Folha, que eu já falei. Jornal da ABI – Você começou a levar sua filha Mariana para as Redações a partir de quando? Ricardo Kotscho – Eu trabalhava no Estadão durante a semana – o Estadão não saía às segundas-feiras – quando saía um negócio chamado Edição de Esportes de O Estado de S.Paulo, um jornal semanal que circulava às segundas-feiras. Então, na verdade, eu trabalhava de domingo a domingo, até sábado no Estadão, e domingo nessa edição esportiva. Jornal da ABI – Você cobria esportes também? Ricardo Kotscho – Também. O pessoal que trabalhava aos domingos às vezes levava os filhos, porque era o dia de ficar com a família, e quando a minha filha cresceu um pouco, passei a fazer isso também, nos plantões de fim-de-semana, e ela começou a pegar gosto. Além disso, eu levava os amigos para casa depois do trabalho, porque a gente saía tarde e estava casado com filho, não podia mais ir para a boate, para a noite (risos). Aí, eu levava os vagabundos para casa e a gente ficava bebendo até de madrugada. E a Mariana ficava acordada, de colo em colo. Ela passou a conviver com esse mundo do jornalismo e acabou virando jornalista.

trabalho e no mercado de consumo como aconteceu nos dez anos de governo do PT. Isso não quer dizer que eu concorde com tudo, pelo contrário! Já naquela época eu discordava e brigava bastante, mas acho que a função do assessor é essa, como eu brigava com o meu chefe de Reportagem, e com meu editor.

Credencial de correspondente estrangeiro emitida pelo Parlamento Alemão (Deutscher Bundestag).

Jornal da ABI – Então, você é diretamente culpado por ela ser jornalista. Ricardo Kotscho – Eu acho... E tenho orgulho disso porque, geralmente, o jornalista não tem. “Meus filhos não vão fazer isso, não vou deixar!” Mas para mim foi ao contrário, fiquei feliz pra caramba! Eu acho o Jornalismo uma profissão fantástica, apesar de todos os problemas que tem. Outro dia me perguntaram sobre o mercado de trabalho, se é difícil para quem começa, mas hoje é muito mais amplo. Enorme. Claro que tem uma oferta maior também de profissionais, das faculdades. Jornal da ABI – Mas o salário não caiu muito? Ricardo Kotscho – Não, isso é outro mito. Jornal da ABI – Mesmo nos portais da internet? Ricardo Kotscho – Os salários na internet hoje são iguais ou maiores que nas Redações dos grandes jornais. Não todos... Tem o piso, mas o piso do jornalista é maior que o de muitas profissões. Uma vez fizeram uma comparação no jornal do Sindicato dos Jornalistas – não sei os números de hoje –, mas o salário inicial de jornalista era maior que o de engenheiro, de advogado, de médico. O mercado de trabalho se ampliou enormemente, inclusive com a internet, assessorias de imprensa – hoje tem mais gente nas assessorias de imprensa do que nas Redações. E, para mim, é uma função jornalística, sim. Quando trabalhei como assessor de imprensa com o Lula, nas campanhas, trabalhei como jornalista. Ele até brincava comigo: “Você não é assessor de imprensa, é assessor da imprensa”. (risos) Jornal da ABI – Você se decepcionou com o Lula? Ricardo Kotscho – De jeito nenhum. Não me decepcionei nem com o Lula nem com o governo, muito pelo contrário. Foi um governo importantíssimo para o Brasil, a vitória do Lula foi a vitória da minha geração – nós temos quase a mesma idade – e melhorou a vida da maioria do povo. Qual é o objetivo de qualquer governo? Melhorar a vida da maioria das pessoas. E nunca houve uma melhoria tão ampla, que incorporou tanta gente no mercado de

Jornal da ABI – E como o Lula recebia as suas críticas? Ricardo Kotscho – Ele não gostava não. Mas ele me respeitava. Então, era de igual para igual. É claro que eu não discutia com ele na frente dos outros. Mas quando estávamos só os dois discutindo algum assunto, eu tinha toda a liberdade de falar. Eu era autorizado a entrar no gabinete dele a hora que eu quisesse, não precisava pedir licença. Isso facilitou muito o meu trabalho. Se fizer um balanço dos prós e contras, acho que foi amplamente favorável, tanto o governo do Lula como a continuidade. Luis Fernando Veríssimo tem uma frase que eu acho fantástica. Ele escreveu: “Realmente, o governo tem muitos problemas, muita coisa errada, que eu não concordo. Mas quando eu olho para o lado e vejo quem são os outros...” (risos). Não é? Porque uma eleição é uma opção, e um governo é uma opção. Para quem vai governar? O Brasil era governado para 30 milhões de pessoas. Hoje é para muito mais gente, pra mais de 100, 120 milhões, a grande maioria. E essa foi a grande mudança, a distribuição de renda. É uma revolução sem armas, sem tiros, silenciosa, mas que vai ficar marcada na História do Brasil, não tenho dúvida disso. Jornal da ABI – É possível definir o que é jornalismo? Ricardo Kotscho – Jornalismo é muito chato definir, mas para mim é contar o que está acontecendo com a maior honestidade possível. Esse negócio que falam de neutralidade e isenção, isso não existe. O ser humano tem suas preferências. Agora, não dá para brigar com os fatos. Todo mundo sabe que eu sou ligado ao PT desde as origens, desde antes do PT, lá nos sindicatos, sou amigo do Lula, mas eu sou, antes de tudo, jornalista. O que eu conto tem que ter credibilidade. Caso contrário, não sirvo para nada. Eu falava isso quando estava no governo. Se eu mentir, se eu der uma informação errada, eu não sirvo nem para a imprensa e nem para o governo. E isso vale para uma Redação e para qualquer lugar em que se trabalhe. Tem que ser honesto. Não existe a verdade absoluta, não existe uma só verdade. Mas não se pode brigar com os fatos. A partir dos fatos, cada um de nós depois vai contar da sua maneira, mas não pode mentir. Esse é o limite. Jornal da ABI – Como a imprensa recebeu a notícia quando o Lula o escolheu como assessor? Ricardo Kotscho – Eu me dava muito bem com todo mundo. Eu não tenho inimigos, tenho uma boa relação e acho que


a função do Secretário de Imprensa é manter uma boa relação com a imprensa. Essa foi uma das minhas divergências. Eu sempre fui mais da conversa, da conciliação, do que partir para o enfrentamento, como aconteceu depois e acontece até hoje. É uma guerra inglória essa, porque a última palavra é sempre da imprensa. O governo passa, mas as famílias ficam. São as mesmas desde 1964, ou desde muito antes. Então, o governo precisa conviver com a imprensa, como precisa conviver com o Congresso Nacional. É claro que você nunca vai ter um Congresso que concorda com tudo o que o governo faz, mas precisa conviver com a oposição, com quem pensa diferente. O que acontece no Brasil é que a própria imprensa assumiu o papel de oposição. A Judith Brito, ex-Presidente da ANJ, falou isso com todas as letras. Com uma oposição partidária muito fraca e frágil, os meios de comunicação foram obrigados a fazer oposição, e fazem. Eu acho que está errado. O governo não deve ser ombudsman da imprensa. São campos diferentes, naturezas diferentes. Ao mesmo tempo, não pode a imprensa ser o principal instrumento de oposição no País. É uma deformação da democracia, dos dois lados. Jornal da ABI – Foi uma tacada de mestre o Lula ter te chamado? Ricardo Kotscho – Não, nesse caso não. Ele teve várias, mas não nesse caso. (risos) Algumas delas: o Henrique Meirelles, o Palocci, na área econômica. No meu caso, foi uma conseqüência natural. Por ser amigo, ele me chamou para a primeira campanha, chamou para a segunda, chamou para a campanha de 2002 e, naturalmente, acabei nesse lugar. Mas tem uma coisa curiosa: eu fiquei sabendo que seria Secretário de Imprensa com uma bronca... Lula já eleito, e eu estava no comitê de eleição uns quinze dias depois dos resultados, quando ele me perguntou: “O que você está fazendo aqui ainda?”. Eu continuava trabalhando como assessor. “Mas, você tem que estar em Brasília. Você não leu no jornal que começou a transição?”. Fernando Henrique e Lula montaram uma equipe de transição. E eu respondi: “Mas ninguém me avisou”. “Então, trate de ir para Brasília! Vá lá e procure a Ana Tavares...” – que era a Secretária de Imprensa do Fernando Henrique – “...converse com ela, se informe como é que funciona aquele negócio e vá cuidar da transição na sua área”. Não foi um convite. Foi uma seqüência do trabalho que eu tinha feito nas campanhas.

menores, não vão mais existir Redações de 200, 300 pessoas. Mas os bons jornalistas vão continuar na chamada grande mídia, ou irão criar seus próprios canais, como muitos já estão fazendo, com blogs, portais, sites, ou trabalhar em assessoria de imprensa. Não vai faltar mercado para o jornalista. E esse negócio da mídia ninja, da mídia informal, é um fenômeno mundial e a sociedade brasileira tem que aprender a conviver com isso. E a imprensa também. Como eu falei antes, não é a internet que está acabando com a mídia tradicional ou familiar. É preciso voltar a fazer o jornalismo de reportagem, contar histórias verdadeiras que acontecem no País, de bom e de ruim. Porque não é possível que num país como o nosso, com 200 milhões de habitantes, oito milhões e meio de quilômetros quadrados, não aconteça nada de bom de um dia para o outro. Tem que mostrar a realidade como ela é. E o que acontece no Brasil hoje não é isso. Lendo os jornais, você pensa que o País está se acabando. Você pega qualquer jornal ou telejornal e tem vontade de dar um tiro na cabeça. É por aí.

Jornal da ABI – Nas manifestações de 2013, muitas pessoas começaram a filmar e publicar coisas ao vivo na internet e se autodenominarem ‘repórteres’. O que você achou disso? Ricardo Kotscho – Olha... Vou ser bem franco. Eu acho que tem lugar e espaço para todo mundo. Hoje, com as novas tecnologias, novas mídias, todos nós somos, ao mesmo tempo, emissores e receptores de informações. Emissores podem ser institucionais, na grande imprensa, nas Redações, e os informais, que são esses que você falou, que estão lá com suas câmeras e microfones fazendo o trabalho deles. Mas, por mais que existam os informais, uma sociedade democrática, civilizada, nunca poderá abrir mão do jornalista profissional. Até porque, como hoje a gama de informações é imensa, é preciso alguém para organizar isso, com honestidade, conhecimento e capacidade profissional. Na internet tem de tudo, coisas boas e ruins, ofensas, calúnias. Hoje, se

“O governo não deve ser ombudsman da imprensa. Ao mesmo tempo, não pode a imprensa ser o principal instrumento de oposição no País. É uma deformação da democracia, dos dois lados.” quiser destruir alguém, uma empresa, um governo, mete na internet. Mas, já estão começando a punir, saiu há pouco tempo uma regulamentação. Mas, os jornalistas podem ficar tranqüilos; eu acho que isso não vai tirar o emprego deles, dos bons jornalistas. Vai haver uma seleção natural, os jornais vão sobreviver a meu ver, os grandes pelo menos, mas serão menores, de circulação menor, com equipes

Jornal da ABI – Você está entusiasmado com o seu blog, não é? Ricardo Kotscho – Estou gostando muito. É uma segunda vida profissional. Te confesso que eu não tenho mais paciência nem saúde para trabalhar numa grande Redação, nem para fazer campanha ou trabalhar no governo. Detesto velho que quer parecer jovem, moderninho. Mas acho que é preciso se adaptar a cada tempo... E o tempo hoje é esse, não tem escolha. É como quando os computadores entraram nas Redações, não tem escolha. Colocaram a máquina na sua mesa e você tem que usar, pô. Tem gente que até hoje escreve na máquina de escrever. O Mino Carta, por exemplo. A secretária dele tem que passar tudo a limpo. Mas vou dizer uma coisa: o computador ajuda muito. Você escreve mais rápido e pensa mais rápido. No tempo do jornal de papel, eu gostava de entregar a lauda limpa, não gostava de entregar lauda rabiscada e corrigida. Então, cada vez que eu errava, começava tudo de novo. Demorava muito. Agora não, vou escrevendo, corrigindo e mudando ao mesmo tempo. Nunca mais escrevi à máquina. Nem à mão eu consigo escrever mais. Uma brincadeira que faço com o Clóvis Rossi – ele é um excelente datilógrafo, acima de tudo – é que ele escreve mais rápido do que pensa. Ele é famoso por isso. É o teclado mais rápido da imprensa brasileira.

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HOMENAGEM

Todos devem ser Ricardo Kotscho Reunindo importantes nomes do Jornalismo brasileiro, encontro realizado em São Paulo lembrou o cinquentenário da carreira do repórter e discutiu o que é preciso fazer para transformar a profissão. MARTIN CARONE DOS SANTOS

M ARCOS S TEFANO

Profissional corajoso, que não se dobrou à burocracia e gosta de sujar os sapatos, sensível e escutador, capaz de percorrer 200 quilômetros para obter uma única frase. Um eterno foca, que não se conforma com o superficial e busca o profundo, e a solução para o jornalismo. Essas foram algumas das muitas formas pelas quais o jornalista Ricardo Kotscho foi descrito durante o Seminário 50 Anos de Histórias do Brasil, que homenageou o repórter e relembrou o cinquentenário de sua carreira, no dia 30 de maio, em São Paulo. Realizado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP) e pela Faculdade Cásper Líbero, que sediou o evento nas dependências do Teatro Gazeta, o encontro foi organizado pelo jornalista e professor Eugênio Bucci e pelo mestrando Camilo Vannuchi. Entre os participantes, importantes nomes da imprensa nacional, como Clóvis Rossi, Audálio Dantas, Jorge Araújo, Carlos Costa, Erasmo de Freitas Nuzzi, Fernando Pacheco Jordão, Eliane Brum, Hélio Campos Mello, Heraldo Pereira e Mônica Waldvogel. No comprido sofá instalado no palco, jornalistas e colegas fizeram com o homenageado um animado bate-papo, mediado pela filha de Kotscho, a também jornalista Mariana Kotscho. Além de rememorar os fatos mais importantes da história recente do País, apontaram que o jornalismo atual precisa voltar à prática da boa reportagem. Ou, como preferiram dizer, ser um pouco mais Ricardo Kotscho.

Jornal da ABI

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

“Fale para ele sobre qualquer pauta e verá seus olhos brilharem.” Veja o que eles dizem sobre Ricardo Kotscho “Aprendi com ele que o jornalismo é mais do que uma carreira ou profissão, é uma opção de vida. Nossa casa sempre foi uma extensão da Redação e a Redação, uma extensão de casa. Meu pai voltava para casa cheio de histórias e eu ficava deslumbrada. Assim, quando tinha plantão e ele me chamava para ir junto, aceitava na hora. Minha primeira cobertura foi aos cinco anos. Morávamos na Alemanha e ele era correspondente do Jornal do Brasil. Quando o papa João Paulo I morreu, fomos todos para o Vaticano, aguardar a eleição. Ficamos esperando a fumacinha branca sair. Ela era o sinal de que o novo pontífice fora eleito e de que voltaríamos para o Brasil. Ainda criança, achava a Redação da Folha de S. Paulo o máximo. Era cheia de gente, de máquinas de escrever... eu podia bolar historinhas que eram publicadas no caderno Folhinha, que saía aos domingos. Mas o trabalho do papai não se limitava a contar as histórias. Ele se envolvia com as personagens, ajudava, fazia um trabalho social. Lembro de uma vez em que ele fez o perfil de uma senho-

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Editores: Domingos Meirelles e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Apoio à produção editorial: André Gil, Cesar Silva, Conceição Ferreira, Paulo Chico. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva. Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Martinico Prado, 26, Cj 31 Vila Buarque - São Paulo, SP - Cep 01224-010 Telefones (11) 3868.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha) Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório. Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

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ra muito simples e humilde, mas que teve a coragem de adotar 18 crianças de rua. Tornamo-nos amigos da família, passamos a auxiliá-los e íamos almoçar com eles aos domingos. Assim como de um certo senhor barbudo, que vivia falando sobre melhorar o Brasil e, mais tarde, tornou-se Presidente. Naquela época, quando me disseram que ele tinha sido preso, não consegui me conformar: ‘Como prenderam o amigo do papai?’. Hoje, quando me perguntam porque eu virei jornalista, eu respondo: e tinha outra escolha?” M ARIANA K OTSCHO FILHA E COLEGA DE TRABALHO

“Conheço o Ricardo desde antes de ele virar lenda. Conheci o menino aos 17 anos, magrelo e cheio de espinhas no rosto, feio para chuchu, quando ele chegou à Redação do Estadão e, na maior cara de pau, pediu para trabalhar. Ainda que fosse de graça, sem receber nada. Na época, eu era chefe de reportagem e editor de assuntos locais, uma espécie de ‘amestrador de focas’, e o contratei. Em apenas três dias ele já revelou quem era, demonstrando sua paixão pelo bom jornalismo. Hoje, tenho certeza que a decisão de aceitar o rapaz na equipe foi um de meus raros acertos na profissão. Planejei-me para contar muito dos bastidores que vivemos ao longo desse tempo, mas, de repente, percebi que era inútil. As melhores histórias já são conhecidas, são as que ele publicou. Mesmo assim, quero citar uma como exemplo da importância de seu trabalho e da coragem que

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • MAIO 2014 O J401 ORNAL DADE ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE L ÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O D ECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


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diferencia o bom jornalismo. Trata-se da matéria que ele fez por ocasião da morte do operário Manuel Fiel Filho. Produzida numa época em que a imprensa estava sob censura e as fontes de informação se recusavam a dar entrevistas com medo de represálias por parte dos militares, ela denunciou o crime contra o operário, poucos meses após a morte de Herzog e nas mesmas circunstâncias: sob tortura nas dependências do DoiCodi, órgão de repressão ligado ao regime militar. Pressionado, o General Ernesto Geisel teve que tirar o também General Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército. Foi a melhor contribuição do Ricardo Kotscho para a redemocratização do Brasil.” CLÓVIS ROSSI , COLUNISTA DA FOLHA DE S. PAULO E PRIMEIRO CHEFE

E COMPANHEIRO DE PAUTAS

“Ao falarmos sobre a carreira do Kotscho, falamos também sobre os últimos 50 anos da história nacional e, claro, do jornalismo brasileiro. Aliás, como se diz no jargão da profissão, eu mesmo tenho muitos anos de ‘janela’ e tive muitas alegrias nela, inclusive, a de conhecer o País de cima abaixo. Porém, tive também algumas frustrações, como a de nunca ter trabalhado ao lado de profissionais como o Ricardo Kotscho. Acompanho seu trabalho desde os tempos de foca. Aliás, ele era um foca ‘metido’, no melhor sentido jornalístico, já que ia fundo na investigação de suas reportagens. Isso aconteceu em março de 1967, na cobertura da tragédia de Caraguatatuba, no litoral paulista, quando deslizamentos de terra vitimaram mais de 400 pessoas. Isso se repetiria muitas vezes. Nos dias que antecederam o assassinato de Vlado

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“A Marinha, com quem o Kotscho está casado há 45 anos, que me desculpe, mas a melhor união de nossas vidas, o casamento perfeito, é entre eu, ele e as matérias. Estou brincando, claro, mas o tempo que trabalhamos juntos me permite dizer que, diferente das pessoas que conhecem o produto final, eu o conheço antes da matéria ser produzida e publicada. Ele vive brigando. Mas ou é para ter mais espaço para seus textos, para suas histórias, ou por causas justas. Vi isso quando passamos vários dias morando com os garimpeiros em Serra Pelada. Lá, enfiamos literalmente o pé na lama. Também é um cara que se envolve com o que faz, capaz de se emocionar com o drama alheio. É a sensibilidade em pessoa, o que leva a conversar e se preocupar de verdade com as pessoas e não apenas em conseguir umas aspas. Mesmo quando a matéria é a enésima no sertão sobre a seca. Para contar essas histórias do povo tem que vencer o comodismo. E também o medo, no caso dele, de avião. Porém, diante de qualquer caso, afirmo que, na minha opinião, o Ricardo continua ‘foca’. Posso provar. Fale para ele sobre qualquer pauta e verá seus olhos brilharem.” JORGE A RAÚJO , REPÓRTER FOTOGRÁFICO Herzog, em 1975, muitos jornalistas estavam desaparecidos. A maioria vinha ao sindicato apenas para buscar aspas para os jornais sob censura ou pegar algum comunicado. Mas não um jovem repórter que adentrava os corredores e ia direto à sala da diretoria. Ele queria saber o que estava acontecendo, o que estava por trás daquilo. Fazia as perguntas certas e lutava sempre para publicar matérias. Como resultado do trabalho de gente como ele, o medo, que dominava ruas e Redações à época, refluiu e foi começando a dar lugar a alguma ousadia. Por outro lado, Kotscho fez das melhores coberturas na morte do Vlado. Anos depois, repetiria o trabalho nas Diretas. E, a partir daí, o Brasil passou a viver outros tempos. Hoje, nota-se a falta da reportagem na imprensa. Mas não foi a reportagem que acabou e, sim, os espaços dados a ela. Falta espaço, fal-

Kotscho na Redação do jornal O Estado de S.Paulo, em 1973. Ao lado, seis anos depois, junto com Mino Carta e Lula (de cabeça baixa), no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

tam profissionais nas Redações. A desculpa é a internet e os meios digitais com sua instantaneidade. Jornais e revistas quererem concorrer com isso é bobeira. Uma boa reportagem não precisa necessariamente ser longa. Mas tem que ter profundidade. Por mais que o texto seja bom, o que falta é o tipo de apuração que o Kotscho faz.” A UDÁLIO D ANTAS, JORNALISTA E AMIGO “Eu e o Kotscho nos conhecemos no fim da década de 1970, durante a cobertura das greves dos sindicatos do ABC. Mas nossa relação profissional começou a ganhar forma quando eu era diretor de Redação da IstoÉ e ele estava do outro lado do balcão, na Secretaria de Comunicação do Governo Lula. Podia perceber que, afastado da reportagem, ele não estava feliz. Ele deixou o cargo e eu saí da revista e fomos fazer matérias juntos para

O Globo. Foi a partir dessa convivência que nasceu o sonho de fazer uma publicação que resgatasse a missão de ir à rua e fazer grandes reportagens. Sonho que tomou forma com a revista Brasileiros. Hoje não temos uma Redação tão grande, mas é uma grande honra ter a companhia e sermos inspirados pelo Kotscho.” HÉLIO CAMPOS M ELLO, DA BRASILEIROS “Conheci o Kotscho primeiro como lenda, ‘o repórter ’, aquele que encarnava tudo que a gente admira. No final dos anos 1980, para mim, ele não era um rosto ou um corpo, mas uma entidade. Lá na Zero Hora, tinha um colega que era amigo do Kotscho. Falava com ele. O homem existia mesmo! E certa vez, outro jornalista foi cobrir a Caravana da Cidadania do Lula. Ele contava que o Kotscho disse isso, falou aquilo... quando voltou, parecia uns 15 ou 20 centímetros mais alto para mim. Um dia, o Augusto Nunes me chamou para trabalhar em São Paulo, na Época. Não sabia que minha mesa ia ficar bem na frente da do Kotscho. Se soubesse, eles poderiam até ter oferecido um salário menor. A Redação era bem diferente daquela do jornal. Quieta, parecia igreja. Todo mundo vivia no telefone e na internet. De repente, uma voz gritava: ‘Vou fazer reportagem externa hoje’. Era o Kotscho, provocando e pregando o corte das linhas telefônicas como única forma de desentocar alguns profissionais que até enchentes cobriam à distância. Ele resumia a clássica descrição do repórter, o ‘sujar os sapatos’. Lambuzava-se de rua, de humanidade, enxergando além do óbvio, olhando para os contrários e não se deixando burocratizar ou se dominar pela obediência cômoda com a qual tantos se deixam matar nas Redações e fora delas. Ainda bem que ele continuou falando comigo mesmo depois de termos ido almoçar num restaurante japonês e eu, uma destra com duas mãos esquerdas, derrubar metade da comida. Muito se fala sobre a situação do jornalismo, pergunta-se qual seria a saída para a crise. A solução para o jornalismo é o Kotscho, é a reportagem.” E LIANE BRUM, FÃ E COLEGA “O Ricardo merece todas as homenagens. Ele não somente acompanhou a trajetória brasileira nas últimas décadas, em seus períodos mais duros e de transformação, como também ajudou a contar toda essa história. Ao se manter todo esse tempo na ativa, dos dois lados, pois também assessorou o Lula, contribuiu para mostrar o Brasil. E me influenciou muito, pois quis ser jornalista querendo ser Ricardo Kotscho, desenvolvendo o olhar sensível e o texto preciso e impactante. Primeiro, comecei a lê-lo no jornal. Depois, tive a oportunidade de estar em muitas coberturas com ele. Eu, ainda foca, e ele, experimentado, quase um decano do jornalismo. Até hoje, continuamos nos falando e ele continua me ensinando muito, pois somos vizinhos em casas na praia.” M ONICA WALDVOGEL , ALUNA E VIZINHA JORNAL DA ABI 401 • MAIO DE 2014

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ACERVO DCS/APESP

HISTÓRIA

A imprensa, sem indiretas Há 30 anos a imprensa brasileira se uniu quase que unanimemente no grito de “Diretas já”. E não foi ouvida. P OR C ELSO S ABADIN

“Um dia de festa em São Paulo. A cidade comemorou seus 430 anos com mais de 500 solenidades. A maior foi um comício na Praça da Sé”. Assim o apresentador Marcos Hummel abriu a matéria comemorativa do aniversário da capital paulista, na edição de 25 de janeiro de 1984 do Jornal Nacional. Em pouco mais de dois minutos, o repórter Ernesto Paglia tece seu texto falando dos 9 milhões de brasileiros de todo o País que moram na cidade, e destacando a importância da bela Catedral da Sé, onde colhe um rápido depoimento do então cardeal arcebispo D. Paulo Evaristo Arns. O repórter depois se desloca para o campus da Universidade de São Paulo, onde a então Ministra da Educação, Esther de Figueiredo Ferraz, participa do evento comemorativo dos 50 anos daquela instituição de ensino. Há imagens de uma manifestação onde alguns estudantes e funcionários pedem mais verbas para a universidade. Já na metade da matéria, finalmente Paglia registra que houve também um comício na Praça da Sé, “onde milhares de pessoas se reuniram pedindo eleições diretas para Presidente”. Porém, rapidamente o repórter se apressa em esclarecer que “não foi apenas uma manifestação política. Na abertura, música: um frevo do cantor Moraes Moreira”, ele explica. Ou adverte. E prossegue: “No palanque, mais 14

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de 400 pessoas: deputados, prefeitos, e muitos artistas. Christiane Torloni, Regina Duarte, Irene Ravache, Chico Buarque, Milton Gonçalves, Esther Góes, Bruna Lombardi, Alceu Valença, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil”. E só no finalzinho da matéria, a generosa edição da Globo dedica 16 segundos à fala do então Governador paulista Franco Montoro (na imagem da tv, ao lado do locutor esportivo Osmar Santos e de Lula), que explicitamente pede eleições diretas para Presidente da República. Estes 16 segundos marcaram o início da capitulação da Globo diante de um poder popular que não mais podia ser escondido. Até então, a emissora, de estruturas fortemente fincadas no regime militar que a favorecia desde 1964, evitava a qualquer custo divulgar o movimento das Diretas já, que ganhava voz e força exponencialmente crescentes em todo o País. Ignorar o clamor das ruas, porém, começava a render dividendos negativos para a empresa de Roberto Marinho. “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo” era uma das palavras de ordem insistentemente gritadas nos 32 grandes comícios pelas Diretas que se registraram naquele Brasil de 1984. Não era mais possível esconder, nem para o maior grupo de comunicação do Brasil, o desejo que o povo manifestava de votar no maior mandatário da Nação. Aquele 25 de janeiro marcou não somente o grande comício da Praça da Sé

(há fontes que falam em 300 mil, outras em 500 mil pessoas presentes), como também o dia em que a Globo percebeu que não seria mais possível tentar tapar os raios fúlgidos do sol da liberdade com a peneira da clava forte da ditadura. Mesmo numa matéria diluída que falava em “mais de 500 solenidades” (seria possível isso?), mesmo num texto que preferiu digredir para a Catedral e para o aniversário da Usp, mesmo em parcos 16 segundos, o fato é que, finalmente, a Globo admitia naquele instante que havia um movimento pelas eleições diretas no Brasil. Paixão popular

De acordo com o site Memória Globo, oficial da emissora, “naquele primeiro momento, as manifestações não entraram nos noticiários de rede por decisão de Roberto Marinho. O Presidente das Organizações Globo temia que uma ampla cobertura da televisão pudesse se tornar um fator de inquietação nacional”. “Mas a paixão popular foi tamanha que resolvemos tratar o assunto em rede nacional”, afirmou o próprio Roberto Marinho em matéria publicada na revista Veja, de 5 de setembro de 1984. Bem mais tarde, o então diretor de programação da emissora, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o popular Boni, em entrevista concedida em 2005 ao jornalista Roberto D Ávila para a Agência Es-

tado, admitiu: “A campanha das diretas foi uma censura dupla: primeiro a censura da censura, depois a censura do doutor Roberto [Marinho]. Como a televisão é uma concessão do serviço público, eles [os militares] sempre mantinham uma pressão muito grande dentro da televisão. No momento das Diretas já eles ameaçaram claramente a Globo de perder a concessão ou de interferir mais duramente no entretenimento. Então, o doutor Roberto não queria que se falasse naquilo. Eu fui o emissário final do pessoal do jornalismo na conversa com doutor Roberto e ele permitiu que a gente transmitisse o fato dizendo que havia um show próDiretas já, mas sem a participação de nenhum dos discursantes”, conclui. Engana-se, porém, quem acredita que a Globo não tinha tocado no tema antes. O assunto havia sido rapidamente abordado pelo próprio Jornal Nacional em nota coberta [junção de imagens com texto narrado em off pelo próprio apresentador] veiculada em julho do ano anterior, 1983. Nela, mostrava-se uma pequena reunião entre Teotônio Vilela e Lula, na época, respectivamente Presidentes do PMDB e do PT, onde ambos se comprometiam a criar um movimento em favor de eleições diretas para Presidente da República. Não parecia nada muito grande, não havia ainda o bordão “Diretas já”, muito menos sinal de clamor popular. Era somente uma reuniãozinha de gabinete entre dois líderes de uma


ACERVO DCS/APESP ACERVO DCS/APESP

oposição que estava apenas começando a aprender a se reorganizar, após 18 anos de ditadura. Não parecia nada ameaçador. Mas, neste mesmo ano de 1983, a Folha de S.Paulo já se destacava por sua postura abertamente combativa, como raramente algum veículo da grande imprensa ousara ter nestes tempos de regime militar (leia entrevista com Ricardo Kotscho, nesta edição). Em editorial publicado em 27 de março daquele ano, o jornal assumia sua posição anti-ditadorial: “Em primeiro lugar, fomos e somos favoráveis a eleições diretas em todos os níveis, inclusive para a Presidência da República. Não só porque nos parece a forma de escolha democrática mais compatível com o sistema presidencialista – e não há sinal de que a substituição desse sistema esteja no horizonte das forças políticas”. Marco histórico

Quando o movimento começou efetivamente a ganhar as ruas e tornar-se grande, mesmo diante da hesitação da Globo, os demais veículos vestiram a camisa amarela que simbolizava a campanha. O enorme comício da Praça da Sé, no aniversário paulistano, foi um marco histórico que catalisou em uma só voz as várias correntes esparsas que exigiam o retorno da democracia. No dia seguinte, 26 de janeiro de 1984, a Folha de S.Paulo enche as bancas com uma capa histórica, onde uma foto de praticamente meia página mostra a Praça da Sé lotada por manifestantes, através de um belo ponto de vista tomado do alto da Catedral. “300 mil nas ruas pelas diretas” é a manchete. Uma foto de página inteira também conquista a capa de Veja, que estampa uma significativa vista aérea da Sé, captando com bastante precisão a grandiosidade e o apelo popular do movimento. A chamada vem em primeira pessoa (“Eu quero votar pra Presidente”) como que colocando a própria publicação a serviço das reivindicações. Ao pé da foto, a legenda simplesmente informava: “São Paulo, 25 de janeiro de 1984”. Nenhum outro assunto era abordado na capa. “Do alto da colina onde há 430 anos foi fundada a cidade de São Paulo, amontoadas por toda a Praça da Sé, 200.000 pessoas gritavam: Um, dois, três, quatro, cinco, mil. Queremos eleger o presidente do Brasil”, dizia o texto interno da revista. Poucos dias antes, em 12 de janeiro, Curitiba já havia colocado 40 mil pessoas nas ruas gritando pelas Diretas já. Belo Horizonte, em 24 de fevereiro, reuniu 200 mil, enquanto Porto Alegre contabilizou 400 mil gaúchos nas ruas, na manifestação de 12 de abril. O movimento das Diretas já torna-se irreversível. Se em 25 de janeiro São Paulo reuniu diante de sua igreja maior algo em torno de meio milhão de pessoas, em 10 de abril o Rio de Janeiro consegue arregimentar nada menos que o dobro de manifestantes diante da Igreja da Candelária. No palanque, sob o comando do Governador Leonel Brizola, 52 oradores representativos dos mais variados segmentos da sociedade brasileira dão sua contribuição, cada um ao seu estilo.

“São Paulo faz o maior comício” Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 17 de abril de 1984. Mais de um milhão de pessoas em silêncio, mãos entrelaçadas, braços para cima. Ao sinal do maestro Benito Juarez, da Orquestra Sinfônica de Campinas, a multidão cantou o Hino Nacional. Do céu caía papel picado, papel amarelo, a cor das diretas, brilhando à luz dos holofotes. No Vale do Anhangabaú, muita gente chorou. Houve outros momentos de emoções na maior manifestação popular já ocorrida no Brasil: houve choro quando chegou ao palanque um gigantesco boneco do senador Teotônio Vilela, ao som do “Menestrel das Alagoas”; quando a Sinfônica de Campinas tocou a Quinta Sinfonia de Beethoven, cujo prefixo iniciava os noticiosos da BBC durante a guerra contra o nazismo; quando a Corporação Musical Artur Giambelli, de Limeira, tocou o “Cisne Branco”, hino da Marinha de Guerra. Mas a alegria superou o choro. Enquanto a passeata avançava pelo centro da cidade, pequenos grupos se destacavam e dançavam forró, faziam humor (“Figueiredo para ex-Presidente”, dizia um cartaz: “Pois eu prefiro cheiro de cavalo”, lembrava outro), puxavam novas palavras de ordem: “Não, não, não/ao colégio do João”. Em nome da festa das diretas, os professores se privaram de vaiar o Governador Franco Montoro; PT e PMDB evitaram a costumeira troca de estocadas e trabalham juntos na organi-

zação da passeata; PCB, PC do B e MR8 aceitaram pacificamente uma escala de oradores que não os incluía. Quantas pessoas foram à passeata? Montoro falou em quase dois milhões, Osmar Santos anunciou 1 milhão e 700 mil, a PM calculou 1 milhão e meio , o secretário do Planejamento da Prefeitura, Jorge Wilheim, cita 1 milhão, o repórter Clóvis Rossi (ex-correspondente da “Folha” em Buenos Aires), comparando a manifestação com o último comício de Raul Alfonsin, não acredita em mais de 800 mil. Não importa: o que vale é que jamais houve concentração desse nível – e sem nenhum incidente a prejudicá-la, nenhuma briga, nenhum batedor de carteira, nenhuma ocorrência policial sequer, a multidão unida na alegria, na emoção e na luta pelas diretas (e, ainda por cima, qualquer dos números citados é maior e mais expressivo do que 686, número de integrantes do Colégio Eleitoral). O leitor pode fazer as contas: quantos de seus conhecidos foram à passeata? A multidão em marcha lotou a Sé, a Benjamim Constant, o Viaduto do Chá, a praça Ramos, a Conselheiro Crispiniano, a São João, o Anhangabaú; muitos bares do caminho ficaram abertos e não tiveram problemas – apenas lucros. Além dos adversários naturais – o Colégio, os candidatos indiretos, o governo – só se hostilizou um alvo: a Rede Glo-

No alto, manifestantes dirigem-se ao comício que reuniu mais de 1 milhão de pessoas. Acima, a primeira página da Folha: “No Vale do Anhangabaú, muita gente chorou”.

bo de Televisão, que preparou um esquema-monstro de cobertura. “O povo não é bobo/fora Rede Globo” foi o slogan mais utilizado. A vítima favorita, porém, foi o Colégio Eleitoral. Lula se transformou no orador mais aplaudido da noite ao afirmar, em resposta ao General Rubem Ludwig, que aquela manifestação não era baderna: “Baderna é o Colégio Eleitoral”. Às 20h30, no horário do final do comício, o Presidente Figueiredo surgia em rede nacional de tv para anunciar sua proposta: diretas mais tarde, em 1988. O delegado Romeu Tuma, da Polícia Federal, informava Brasília de que “o verde do Anhangabaú foi coberto pelo vermelho das bandeiras dos partidos de esquerda”. E, enquanto a multidão se retirava calmamente, os fogos de artifício escreviam no céu de São Paulo a mensagem do comício: “Diretas, já”.

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HISTÓRIA A IMPRENSA, SEM INDIRETAS

HISTÓRIA DIVULGAÇÃO/OLIVIO LAMAS/AGÊNCIA O GLOBO

“Todo poder emana do povo”

Agitando as massas, o apresentador Chacrinha conclama: “Alô Anacleta, vamos com as Diretas”, e a atriz Christiane Torloni puxa o coro de um milhão de vozes: “Chora Figueiredo, Figueiredo chora, chora Figueiredo, já chegou a sua hora”. Ovacionado, o jurista Sobral Pinto, do alto da experiência dos seus 90 anos de idade, sobe ao palanque para lembrar a todos que “Todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. O público delira. O que poderia ser mais significativo que 1 milhão de pessoas nas ruas do Rio de Janeiro? A resposta veio menos de uma semana depois: 2 milhões de pessoas nas ruas de São Paulo. Na realidade, não se tem o número preciso de manifestantes que se acumularam no Vale do Anhangabaú naquele histórico 16 de abril. Fala-se em 1,3 milhão, em 1,6 ou em 2 milhões. Só posso testemunhar, pelo lado pessoal de quem esteve lá, que havia gente até onde a vista alcançava. A apenas oito dias da votação da emenda Dante de Oliveira, que desejava implantar as eleições diretas para Presidente da República imediatamente no País, aquele mar de gente sob o Viaduto do Chá era uma inegável demonstração de força da sociedade civil. No dia seguinte, uma terça-feira, não se falava em outra coisa no País. O jornal paulistano A Gazeta, hoje extinto, dedica a totalidade de sua capa para o tema, com a manchete: “Dois milhões nas ruas. São Paulo Marcha unido e exige Diretas já”. A foto, tomando mais da metade do espaço da capa, exibe o Vale do Anhangabaú lotado. O Jornal da Tarde, mantendo sua tradição de capas inesquecíveis de grande apelo gráfico, publica simplesmente uma enorme foto da multidão que se formou no Vale do Anhangabaú, sem uma palavra sequer, sem uma manchete ou chamada, no melhor estilo “uma imagem vale mais que mil palavras”. O Jornal do Brasil saiu com duas grandes manchetes. No alto, de ponta a ponta da página, “Figueiredo propõe diretas em 88, com mandato de 4 anos e reeleição”. Mais abaixo, um pouco mais timidamente, mas igualmente impactante, “Diretas já reúne 1 milhão e 300 mil pessoas no Anhangabaú, em São Paulo.” Também em foto sangrada de página inteira, a Manchete alardeou: “São Paulo – a marcha pelas Diretas já”. Porém, bem ao estilo da revista, a publicação da Bloch dividiu o assunto com outras pautas “urgentes”, como “Agrotóxicos: o que você pode e o que você não deve comer”, “Uma ginástica contra as dores de coluna” e “O verdadeiro rosto de Cristo”. Quase um “porta-voz oficial” do movimento, a Folha de S.Paulo publicou um emocionante relato que pode ser lido na íntegra no Box da página 13 desta matéria. Foi o jornal dos Frias, por sinal, quem mais resultados positivos extraiu do episódio. Ao assumir de peito aberto e sem medo da ditadura a luta pelas Diretas, a Folha obteve uma imensa empatia popular que a alçou à 16

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condição de jornal diário de maior circulação do País, situação que sustenta até o momento. Uma bomba sobre o povo brasileiro

O apelo popular e o apoio da mídia foram tão marcantes que a rejeição da emenda Dante de Oliveira, votada em 25 de abril, caiu como uma bomba sobre o povo brasileiro. Por se tratar de emenda constitucional, era necessária a aprovação de 320 deputados, que representariam dois terços da casa. Mas os números foram implacáveis: 298 deputados votaram a favor, 65 foram contrários e 113 simplesmente não compareceram ao plenário. A Folha estampou em sua primeira página: “A NAÇÃO FRUSTRADA!”, assim mesmo, com ponto de exclamação e letras maiúsculas. Logo abaixo, a explicação: “Apesar da maioria de 298 votos, faltaram 22 para aprovar as diretas”. Completava a capa um imenso quadro com os votantes do sim e do não. O Jornal do Brasil também optou por uma capa numérica, exibindo uma placar dos votos sob a manchete “Congresso Rejeita Diretas”. O Brasil parecia ter acordado com uma imensa ressaca. Não seria desta vez que teríamos a tão sonhada democracia. Porém, mesmo com a enorme decepção que se instalou na população após a derrubada da emenda, é inegável que estes rápidos meses de intensa agitação política e social acabaram se constituindo numa base forte que impulsionaria as eleições de 1989. Estas, sim, finalmente diretas. Foram meses em que o Brasil se uniu de uma maneira que antes só conhecíamos em períodos de Copa de Mundo. União praticamente unânime, suprapartidária, multissocial, e que, como raramente se viu na história deste País, levou o povo às ruas não aos milhares, mas aos milhões. Foram meses que mudaram a história do Brasil. Irreversivelmente.

Frustração: Em editorial, o Jornal do Brasil do dia 26 de abril de 1984 pergunta “Mas que País, afinal de contas, é este?”

Em outubro de 1982, a equipe do Corinthians se apresentou com a frase "Dia 15 vote".

Democracia em Preto e Branco. E em alto e bom som Na luta pela redemocratização do País, nos anos 1980, dois improváveis segmentos da população gritaram alto e forte pedindo eleições diretas: roqueiros e jogadores de futebol. É o que mostra o premiado documentário Democracia em Preto e Branco, dirigido por Pedro Asbeg. O cineasta conversou com o Jornal da ABI e reclamou da imprensa: “Somos diariamente entupidos com lixo feito para distrair nossa atenção dos temas realmente relevantes”. P OR C ELSO S ABADIN

Talvez os mais jovens não saibam, mas houve um momento bastante recente na História do Brasil onde toda a sociedade civil, praticamente sem exceção, se uniu em torno de um único ideal. Não foi por 20 centavos, nem por saúde, tampouco por educação ou para gritar gol. Ninguém pintou nem escondeu a cara, nem quebrou fachada de banco, muito menos ateou fogo em ônibus. No início dos anos 1980, a maioria esmagadora dos brasileiros não suportava mais o regime militar que se apoderara do País desde 1964. E começou a gritar mais alto por Democracia. Que estudantes e políticos gritassem, já era esperado. Que a mídia, ainda que sufocada pela censura, também gritasse, era coerente e desejável. Mas poucos, muito poucos poderiam supor que alguns dos mais fortes e estridentes gritos pela Democracia viessem justamente de dois segmentos da sociedade tidos como alienados e despolitizados: os jovens roqueiros e os jogadores de futebol do Brasil. É isso que enfoca o documentário Democracia em Preto e Branco, dirigido por Pedro Asbeg, filme que participou com

sucesso do festival “É Tudo Verdade” (específico de documentários), venceu o prêmio de melhor longa no CINEfoot (evento dedicado a filmes sobre futebol) e aguarda um espaço no circuito comercial brasileiro para entrar em cartaz. Atribui-se ao ano de 1982 o início de todo o processo. A ditadura militar entrava em sua “maioridade”, ao completar 18 anos, as letras da Música Popular Brasileira eram obrigadas a se utilizar de metáforas nem sempre compreendidas pelo público mais jovem, e o futebol, como sempre, era taxado de “o ópio do povo”, eternamente acusado de conduzir toda uma população a uma catarse alienante que a afastava da política. É neste cenário que um grupo de jogadores do Corinthians, capitaneados por uma liderança de raras inteligência e percepção neste esporte, implanta dentro do clube um sistema democrático tão inédito quanto provocador: todos os participantes do Departamento de Futebol, do presidente ao roupeiro, tinham o mesmo poder de voto nas principais questões do Corinthians. Inclusive na escalação do time. O movimento foi um tapa na cara de um País impedido de escolher o seu


Jornal da ABI – De que maneira ter participado tão de perto do filme Cidadão Boilesen, sobre a ditadura militar, incentivou você na realização de Democracia em Preto e Branco? Pedro Asbeg – Cidadão Boilesen foi o primeiro longa que eu tive a oportunidade de montar, e por isso ele terá sempre um lugar muito especial na minha memória. Além disso, a percepção de sua relevância histórica e o valor além do cinematográfico que um filme pode ter, sem dúvida, também serviram de incentivo e inspiração para o Democracia em Preto e Branco. Jornal da ABI – Você tem na política sua principal motivação em documentários? Pedro Asbeg – Inicialmente, eu diria que não. Além de Cidadão Boilesen, montei também trabalhos como Vou Rifar Meu Coração (dirigido por Ana Rieper, em 2011), que fala sobre o amor e a música

DIVULGAÇÃO/ARQUIVO/AE

DIVULGAÇÃO

próprio Presidente. A mídia reacionária achou um absurdo jogador de futebol se meter com política, e a atitude extravasou os muros do Parque São Jorge. Praticamente ao mesmo tempo, como se fosse um movimento orquestrado (não era), começa a ferver no cenário da música brasileira uma profusão de bandas que não se viam mais representadas pelo “olê, olê, olá” de uma geração de compositores da MPB que já havia se acostumado e se condicionado a chamar liberdade de “samba” e a ditadura de “você”. Jovens tidos como “despolitizados” se unem em grupos como Ultraje a Rigor, Titãs, Barão Vermelho, Legião Urbana e vários outros para cantar, ironicamente, que “a gente somos inúteis” pois não sabemos escovar os dentes, nem escolher Presidente. Pedro Asbeg não tinha sequer dez anos de idade quando tudo isso acontecia. Ele nasceu em Londres, em 1975, já com cinema correndo em suas veias: seu pai, José Carlos Asbeg, foi o diretor de 1958 – O Ano em que o Mundo Descobriu o Brasil, também um documentário que mistura futebol e política. Formou-se em Cinema pela Westminster University , de Londres, e começou a trabalhar com cinema muito jovem. Com pouco mais 30 anos de idade já havia assinado mais de 30 curtas-metragens, seja como produtor, diretor ou editor. Estreou como diretor de longas em 2011, com Mentiras Sinceras, que também roteirizou. Pedro Asbeg também editou o bombástico longa Cidadão Boilesen, dirigido por Chaim Litewski, que narra a infame trajetória do empresário Henning Albert Boilesen, grande patrocinador das torturas e do regime militar pós-1964. Asbeg (foto acima) conversou com exclusividade com o Jornal da ABI:

Vista aérea do Vale do Anhangabaú tomado por milhares de pessoas carregando faixas e cartazes durante o último comício a favor das Diretas já.

brega, e Carta Para o Futuro (de Renato Martins, 2011), que mostra três famílias cubanas e sua relação com a vida na ilha. Além disso, meu primeiro longa, Mentiras Sinceras, é sobre o processo da montagem de uma peça de teatro. Mas se eu tiver que eleger um tema, minha maior inspiração é o futebol. Ao longo de 10 anos, dirigi, produzi e montei mais de uma dezena de curtas sobre o futebol, e isso certamente me levou até a Democracia Corinthiana. No entanto, a política sempre foi muito presente na minha vida, nos debates dentro de casa, entre os amigos, e nos questionamentos diários que me faço. Era inevitável que as coisas se misturassem. Particularmente no Democracia em Preto e Branco, futebol e política estavam intrinsecamente conectados, e tive portanto a oportunidade de tratar dos dois assuntos num mesmo trabalho. Jornal da ABI – Há um momento em que o filme Democracia em Preto e Branco defende abertamente uma tese, o que nem sempre o documentarista tem coragem de fazer. Trata-se do trecho em que o filme, abertamente, apregoa que “O pior da ditadura permanece na alienação promovida pelo Estado e pela mídia. É preciso seguir lutando”. Em que medida você acredita que um documentário deve permanecer imparcial, se é que isto é possível, ou deve defender abertamente uma posição? Pedro Asbeg – Não acredito que sejamos 100% imparciais ao longo de um filme. Desde a escolha do tema, os entrevistados e, principalmente, a montagem, tomamos escolhas que definem o filme e o olhar

do espectador. Por outro lado, acho importante que sua verdade não seja imposta. Em Cidadão Boilesen, por exemplo, tentamos dar voz a todos os lados da história, para que a análise sobre o personagem central pudesse ser feita pelo espectador. No entanto, considerando que Democracia em Preto e Branco trata também dos reflexos que a ditadura tem no Brasil de hoje, achei importante reforçar minha posição através da locução da Rita Lee, e dizer que, apesar das conquistas, ainda temos muito o que fazer e não podemos deixar de lutar um só dia por um País melhor e mais justo. Foi um risco, para muitos é caricato ou panfletário, mas achei que era pertinente e resolvi arriscar. Jornal da ABI – Como jornalista, eu concordo 100%, mas gostaria que você elaborasse mais esta afirmação que o filme faz sobre a “alienação promovida pela mídia”. Pedro Asbeg – Nesta frase, que é parte da conclusão do filme, quis reforçar que não convivemos mais com a censura prévia nem com certas imposições sofridas durante a ditadura, mas que precisamos ficar atentos às verdades que nos são impostas. Além disso, justamente para que nossas capacidades de avaliação e percepção sejam afetadas, somos diariamente entupidos com lixo feito para distrair nossa atenção dos temas realmente relevantes. A idéia foi apenas demonstrar essa frustração que sinto e reforçar a necessidade constante de julgamento. Jornal da ABI – O filme traz, entre outras, uma entrevista com o ex-jogador

Sócrates, recentemente falecido. Foi um material feito especificamente para o filme ou são imagens de arquivo? Pedro Asbeg – Fizemos aquela entrevista exclusiva para o filme, em agosto de 2010. Foi uma sorte incrível, não só por tudo o que o Magrão passou alguns meses depois, mas pelo dia inspirado em que nos encontramos. Foi uma entrevista muito bonita e especial, pois apesar de não nos conhecermos, ele estava relaxado e bastante comunicativo. Ao longo da montagem, vendo e revendo aquela entrevista, me sentia muito sortudo. Jornal da ABI – Fica claro no seu filme que a maior parte da imprensa esportiva da época era contrária à Democracia Corinthiana. Você acredita que, atualmente, o envolvimento de jogadores de futebol com questões políticas seria encarado de forma mais positiva pela nossa imprensa? Pedro Asbeg – Acho que sim, mas até um certo limite. Se considerarmos a experiência do Bom Senso Futebol Clube [movimento de jogadores que pede mais racionalidade e responsabilidade nas tabelas dos campeonatos atuais] como a coisa mais parecida com a Democracia Corinthiana, é nítido que boa parte dos jornalistas deu voz e espaço aos jogadores. No entanto, existia um claro limite quando certas práticas da mídia, principalmente televisiva, eram questionadas. Infelizmente, continuamos com uma imprensa esportiva que gosta muito das coisas como são, impostas pelo poder do capital, e sem qualquer debate com aqueles que fazem o espetáculo (os jogadores) ou com quem o consome (os torcedores).

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IMPRENSA

GERALDÃO

PIRATAS DO TIETÊ

Humor e abertura Livro com 432 páginas recupera a história da Circo Editorial, de Toninho Mendes, marco da redemocratização do Brasil, com os quadrinhos de Angeli, Laerte e Glauco, entre outros talentos. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

Não vai demorar o dia em que antropólogos, sociólogos e historiadores da imprensa e das artes no Brasil comecem a recorrer aos quadrinhos de revistas como Chiclete com Banana, Circo, Piratas do Tietê e Geraldão para contar, dos pontos de vista cultural e de comportamento, como foi a redemocratização do País, a partir de 1985. Está tudo lá: a fossa causada pela ditadura, a desorientação sexual por causa de uma revolução que a censura e a repressão tentaram impedir de chegar à plenitude, ou as dúvidas sobre o que fazer com a liberdade recém-conquistada, com a volta do poder aos civis. Era uma sensação semelhante àquela experimentada por alguém que passou 21 anos preso e, de repente, vê-se do lado de fora do presídio, sem saber qual direção tomar. Lançadas entre 1984 e 1995, as publicações da Circo Editorial, do editor Toninho Mendes, eram o retrato crítico, cético e bem-humorado da abertura política, com todos os seus conflitos, a partir de personagens

R HALAH RIKOTA

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Luiz Gê, Jayme Leão e Laerte nas capas da Circo e Piratas do Tietê.

NANICO & MEIA OITO

marcantes dos quadrinhos e do humor brasileiros. Foi grande a sua influência na renovação do riso na televisão, com programas como TV Pirata, da Rede Globo. Artistas hoje consagrados como Angeli, Laerte, Glauco, Luis Gê, Chico e Paulo Caruso, entre outros, no auge de seu talento, criaram tipos inesquecíveis como o militante de esquerda, o machista inveterado, o roqueiro drogado, o punk contestador que cuspia em tudo, o casal neurótico, a secretária ninfomaníaca, a solidão da beberrona, os homens perdidos na noite das grandes cidades. Todos entraram e ainda permanecem no imaginário das pessoas. Agora, finalmente, por meio do livro Humor Paulistano – A Experiência da Circo Editorial, da Editora Sesi-SP, essa importância é recuperada, conferindo-lhe o valor histórico merecido. Por meio de ensaios de pesquisadores da USP, é mostrada a trajetória, 30 anos depois, dessa experiência editorial única que influen-

ciou tudo que viria depois na produção nacional de histórias em quadrinhos. O luxuoso volume, que traz como brinde um livro de poemas de Mendes, apresenta também histórias que o editor considera mais significativas, além de tiras e cartuns, fotonovelas e páginas de humor. Em comum, roteiros sempre contestadores e marcados por corrosiva sátira social e política. “O humor é uma maneira de expor à sociedade o seu próprio ridículo, de quebrar o respeito que as coisas têm por elas mesmas. Por isso, não existe o que teimam em chamar de humor politicamente correto”, observa Mendes. Para ele, nesses tempos atuais, em que tudo tem de ser certinho e a ninguém mais se pode ofender, não existem revistas como as suas. “O mundo ficou muito mais chato e careta 20 anos depois da existência da Chiclete. Hoje acho tudo muito sem proposta. Ninguém quer mais consertar o mundo, melhorar as coisas. As pessoas, no máximo, conseguem pensar em cuidar do seu próprio rabo”, diz ele, com seu peculiar senso de humor. Na Circo Editorial, o editor aglutinou um time de chargistas e ilustradores de primeira linha, todos ainda jovens como ele, com menos de 30 anos de idade, que deram outra cara ao humor paulistano e nacional, claro. Além disso, radiografaram a sociedade brasileira em um momento importante de transição política, um País que se mo-

bilizava pelo fim da ditadura militar, que ficou no poder por 21 anos. Para Toninho Mendes, não por acaso, portanto, a Circo foi um produto de um momento específico e importante da história do Brasil, quando o regime dos quartéis não se sustentava mais e o movimento das Diretas para eleição do Presidente da República ganhou as ruas e, literalmente, foi rompendo lacres, amarras, teorias, convicções, restrições e abusos. “A Circo só poderia nascer nesse momento”, acredita. Suas revistas, acredita Mendes, foram as primeiras que testaram a abertura para valer. Ou seja, Bob Cuspe se tornou candidato a Prefeito de São Paulo, uma mulher louca que dá pra um time de futebol, ou um casal que é libertário, mas vive brigando. Segundo o editor, a Circo simbolizou esse momento de ruptura, da liberdade sem limites, porém responsável. E sem perder o viés de imprensa independente, alternativa, libertária. Do modo como a editora fez, acabou sendo mais importante que o material da grande imprensa. “Pois quando a imprensa foi falar, as coisas já estavam andando e a gente já tinha detonado tudo”. Muito disso, claro, ocorreu graças à felicidade de reunir um elenco tão talentoso. “Nesse momento, a carreira deles estava se consolidando. Esse foi o truque da Circo: colocar as histórias deles em bancas de jornais de todo Brasil. Porque, no jornal, eles faziam ou tirinha ou charge política. E quando criei a Circo Editorial, eles podiam fazer quadrinhos e não tinha nenhum tipo de restrição. A nossa linha era humor e vale-tudo. Com uma vantagem, nós éramos antes do ‘politicamente correto’”. Por mais contraditório que pudesse parecer, o editor lembra que havia muita seriedade no que seus artistas faziam. Uma vez que todos eles tinham se formado profissionalmente nos tempos da ditadura e tiveram seus cartuns rotineiramente censurados, na Circo os bravos autores foram

OS SKROTINHOS


DIVULGAÇÃO

Glauco, Angeli e Toninho Mendes numa foto de divulgação: “A gente incomodou muito”.

testando essa barreira do “não pode”, da liberdade de expressão que seria ratificada com a Constituição Federal, de 1988. Desse propósito nasceu algo novo, transgressor e diferente do que se faria três décadas depois, como lembrou Mendes em entrevista à revista do SESI: “Na Circo, o conteúdo é muito forte. Hoje, o pessoal do humor está voltado para o próprio umbigo. As piadas são engraçadas só pra eles, a namorada deles e o pessoal do prédio. Isso aqui atinge todo mundo. Não é voltado para o próprio umbigo. Você fala de você, mas reflete o mundo”. E acrescenta: “A gente não fazia para provocar, mas porque era engraçado. Você imagina há 30 anos um moleque ver na banca um cara espiando na fechadura e dizer ‘Amar é ver a mãe tomar banho’. Se hoje, as pessoas dizem: ‘Nossa!’, você imagina isso três décadas atrás. Na realidade, nós, eu e todos esses desenhistas e chargistas, tivemos uma formação como homem muito libertária, bem pra frente, com as mentes abertas, pulando os muros.” O elemento político era predominante nos anos de 1980 porque a ditadura havia fracassado e o Brasil tentava retomar o rumo da democracia, com as trágicas heranças dos militares, como a inflação descontrolada. Não podia ser diferente. “Mesmos esses artistas tinham tudo isso na cabeça, mas não tinham onde puCASAL NEURAS

blicar. Essa foi a chave da Circo. Imagine você pegar uma revista como a Chiclete com Banana e falar: ‘Angeli, vamos fazer o que quiser’”. Por outro lado, nenhuma publicação da editora teve posição política alguma vez. “Nós somos anarquistas ou transgressores pela própria índole. Não era uma revista para falar bem dos comunistas, esquerdistas ou de Che Guevara”, afirma o editor. Ele não esconde o orgulho do que fez. “A gente incomodou muito. O Angeli tinha personagem que falava muito mal do rock. E, aí, o pessoal falava: ‘Pô, tá falando mal do rock’. Aí o outro falava: ‘Pô, tá falando mal dos comunistas’. E eu dizia: ‘Onde vocês estão com a cabeça? Isso aqui é uma revista de humor, pô’. Nós estávamos falando de nós mesmos, em uma linha em que um autor ironiza a si mesmo em vários momentos da revista, por que ele vai respeitar outras coisas?”. Antes de fundar sua editora, Toninho Mendes teve uma série de experiências na imprensa que moldaram sua personalidade e convicções políticas. Depois de trabalhar como diagramador e editor de arte nos jornais de resistência à ditadura, como Versus e Movimento, passou pelo Jornal da República e pela semanal IstoÉ. Era amigo das pessoas com quem trabalhou, inclusive de chargistas, como os irmãos Paulo e Chico Caruso, Luiz Gê, Alcy e, claro, Angeli, que também passara por lá. Tinham em comum a paixão pelos quadrinhos. Ele, então, chamou Caruso para participar da sua primeira tentativa de criar uma editora, a Marco Zero, em 1980. Juntos, lançaram o volume Natureza Morta e Outros Desenhos do Jornal do Brasil. O projeto não foi além do terceiro livro. Precisou esperar até 1984 para tentar de novo. Queria fundar uma editora para publicar em livro os quadrinhos de talentos como, outra vez, Chico Caruso, Angeli e artistas de jornais e revistas que pouco ou nada haviam publicado em formato para livrarias. Um amigo que topara colocar dinheiro na empreitada desistiu e, para imprimir o livro Não Tenho Palavras, de Chico Caruso, o próprio artista completou o dinheiro que faltava. Assim, a Circo Editorial lançou-se oficialmente no aniversário de Toninho, em 30 de abril de 1984. Logo depois vieram os livros Chiclete com Banana e Bob Cuspe, de Angeli. O passo seguinte se deu quando o jornalista Arlindo Mungioli topou investir em uma revista para bancas. Em outubro de 1985, saiu o primeiro número da Chiclete com Banana, que vendeu 28 mil exemplares de uma tiragem de 30 mil. Um êxito extraordinário, se considerarmos também que o preço era o dobro do cobrado por uma revista de quadrinhos convencional. Mesmo assim, o só-

BIBELÔ

cio saiu do negócio. “Arlindo era muito ligado ao comunismo, fazia parte do sindicato, e a revista começou a criar problemas com antigos amigos e a família”, conta Toninho. Duas histórias ajudaram nessa decisão. Uma de Paulo Caruso, em que um militante colocava a boca em uma granada em forma de pênis para explodir inimigos do sexo. Em outra, Angeli retratava um viciado explodindo após uma seqüência de

carreiras de cocaína. Para não se afastar da revista, o jornalista propôs uma solução: “Continuo te ajudando, mas meu nome sai do expediente”. Pouco mais de um ano após seu lançamento, a Chiclete já atingia tiragens de 150 mil exemplares. Nos três anos seguintes, Mendes lançou três títulos de sucesso: Circo, Geraldão e Piratas do Tietê. A irreverência de Glauco combinava perfeitamente com o refinamento literário e plástico de Laerte e Luis Gê, dois gênios dos quadrinhos brasileiros. “A gente botou numa capa do Piratas do Tietê a moça do Leite Moça com peitinho de fora. Muita gente achou que a Nestlé ia fazer um barulho,

RÊ BORDOSA

mas a empresa ficou quieta”, lembra. Nem tudo, porém, tinha graça. A inflação descontrolada começou a fechar o cerco contra as pequenas editoras. Mesmo com o sucesso de vendas, as revistas não tinham anúncios, pois as empresas não queriam ligar suas marcas ao conteúdo da editora. “A única pessoa que colocou um anúncio na revista quase perdeu o emprego”, conta Toninho. Aconteceu com um amigo dele, publicitário da Thompson, que resolveu publicar anúncio da marca de roupas 775. “Reclamaram com ele: ‘Nesse tipo de revista não se deve anunciar ’”. A Circo acabou em 1995, quando Mendes tentara se associar à editora Nova Sampa para tocar suas publicações. Ele ficou cinco anos longe dos quadrinhos. Trabalhou no Bank Boston, na Editora Moderna e na Gazeta Mercantil. Em 2000, criou a Jacaranda, e passou a editar álbuns da turma da Circo em parceria com a Editora Devir. Nos seis anos seguintes, lançou 28 livros. Ao mesmo tempo, com a L&PM produziu 26 livros formato pocket, para bancas e livrarias. Hoje, dirige sua terceira editora, a Peixe Grande, que tem a proposta de editar as histórias da pornografia, dos quadrinhos, da censura e da imprensa. “Este livro representa a minha documentação como profissional. Percebo nele o que editei, o que fiz, o jeito como lidei com as pessoas, a paciência que tive. Eu acho que editei melhor os livros do que a minha vida”. Por fim, observa que o volume encerra um ciclo, no ano em que completa 60 anos. Não que vá parar de trabalhar. Ainda há muita coisa que não está no livro. Pelo menos dois desdobramentos dessa obra são perseguidos como projetos para um futuro breve: uma exposição e um documentário em vídeo.

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QUADRINHOS

O saci que incomodou os golpistas Há 50 anos, deixava de circular a revista Pererê, de Ziraldo, cujo cancelamento teria sido motivado por idéias políticas do autor consideradas subversivas pelos militares que derrubaram Jango. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

O que poderia haver de subversivo em uma revista em quadrinhos voltada para as crianças e cujo protagonista era o Saci Pererê, uma das mais conhecidas lendas do folclore brasileiro? A resposta poderia ser um "nada", simplesmente. Pois é, havia quem pensasse que sim. E com razão, o que não justificava sua censura, claro. Em meados de 1964, poucos meses depois que um golpe civil-militar derrubou o Presidente João Goulart (1917-1976), todo jornalista ou cartunista que trabalhasse em imprensa era considerado comunista de carteirinha até que se provasse o contrário. Ziraldo, criador do Pererê, era um deles, com o agravante de ter sido um atuante cartunista do jornal Pif-Paf, que circulou nos dois primeiros meses da ditadura e parou depois de oito números, por causa de pressão da censura contra seu editor, Millôr Fernandes (1923-2012). Ziraldo jura até hoje que o fim de sua bem sucedida revista teve motivações de perseguição e revanche política, por causa de sua assumida simpatia com as reformas de base que começavam a ser implementadas pelo Presidente que seria deposto. Aconteceu assim mesmo? O próprio ar-

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tista admitiu depois que havia sem dúvida nas tramas de Pererê uma tendência política que ele explicitava por ter simpatia com o nacionalismo trabalhista e o comunismo: "Meu saci era vermelho e hipernacionalista", avaliou, décadas depois. Na época, quando o último número de Pererê, chegou às bancas, em abril de 1964, a decisão da Editora O Cruzeiro de cancelar a revista gerou uma série de especulações sobre os motivos que a levaram a fazê-lo. Censura política foi a justificativa mais usada. Ao autor, o editor Renato Di Biasi justificou que a revista dava prejuízo por causa da queda crescente nas vendas e do alto custo da produção – na verdade, Ziraldo ganhava só o salário de funcionário da revista O Cruzeiro. O verdadeiro motivo foi político. A decisão veio de Manoel Lopes de Oliveira, o mesmo diretor comercial que estimulara Ziraldo a lançar seu personagem quatro anos antes, em outubro de 1960. No final de 1963, Oliveira estava entre os conspiradores contrários a Goulart mais atuantes e mandou suspender a publicação da revista por achar que Ziraldo passava mensagens subversivas às crianças em suas histórias. "Fazíamos isso (doutrinar os leitores) porque achávamos que o General Jair Ribeiro Dantas, ministro da Guerra de Goulart e que era um nacionalista convicto, iria garantir a continuidade do regime democrático. Nosso herói naquela época era um militar, entende?", reconheceu o artista. A desconfiança não era à toa. Quando isso aconteceu, o quadrinista era um dos líderes do movimento de nacionalização das histórias em quadrinhos, organizado por artistas de São Paulo e Rio de Janeiro, que havia conseguido que o Presidente Goulart baixasse um decreto em setembro do ano anterior determinando que as editoras estavam obrigadas a publicar dois terços do conteúdo de suas revistas de quadrinhos (66%) com material produzido no Brasil. A medida ainda dependia de regulamentação pelo Congresso, mas as editoras entraram com uma medida cautelar no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a suspensão de sua eficácia e questionan-

do a sua legalidade. Afinal, disseram eles, o decreto de Jango era abusivo porque atropelava as regras do livre mercado. Ou seja, o governo não podia dizer quem eles deveriam publicar em suas revistas. A Editora O Cruzeiro estava entre as empresas que assinavam a contestação, o que pode ter desgastado a relação da direção com Ziraldo. Racha entre os artistas

Com o golpe de abril de 1964, um suposto listão dos banidos criado pelas editoras provocou um racha entre os artistas envolvidos no movimento, rotulados de comunistas. Muitos deles, sem emprego fixo e sem qualquer perspectiva, passaram a reclamar de colegas que estariam contribuindo para que o boicote de companheiros fosse colocado em prática. Isto é, trabalhavam em dobro para surprir a demanda. Alguns tentaram convencer colegas a desistir da campanha pela lei de cotas, com o argumento de que a proposta fecharia por completo o mercado para todos eles, pois seria um retrocesso. Ao convencer alguns, esses artistas teriam ajudado a desmobilizar os demais. Não só Ziraldo como todos os ilustradores que lutaram pela lei de cotas passaram a ser vistos como suspeitos de serem subversivos. Portanto, deveriam ser monitorados. Muitos ficariam afastados do mercado editorial de quadrinhos por longos anos e até mudaram de profissão por absoluta falta de trabalho. Outros sobreviveram com dificuldades como colaboradores das pequenas editoras de São Paulo e com ilustrações avulsas para livros didáticos e

agências de publicidade. Ziraldo reconheceu que ele próprio, o desenhista José Geraldo – ligado ao Governador gaúcho Leonel Brizola –, e alguns outros membros tinham de fato suas preferências políticas de esquerda, como era comum naqueles tempos de polarização ideológica. Mas garantiu que as reuniões em defesa da lei não tinham propósitos nesse sentido. A revista Pererê foi a primeira publicação em quadrinhos duplamente bem sucedida, em um mercado que havia surgido pouco tempo antes, na década de 1930: trazia temática genuinamente nacional e teve longa duração, foi publicada mensalmente com tiragem, em média, de 120 mil exemplares. O personagem, no entanto, não nasceu para a publicação. Pererê foi publicado primeiramente em cartuns em 1959 nas páginas do semanário O Cruzeiro que, nos anos de 1950, era a publicação mais importante do País – circulava desde 1928, quando foi lançada pelo empresário Assis Chateaubriand. Seus personagens foram criados no ano de 1958. Em sua autobiografia, o artista contou que "Pererê, no dizer de Moacy Cirne, era um dos símbolos da época. Um tempo em que se acreditava que, pelas idéias, poderíamos mudar nossa história". Não era preciso ser um censor paranóico para perceber que havia uma analogia clara buscada pelo artista. Afinal, as histórias se passavam na Mata do Fundão, que seria, na verdade, uma alegoria do próprio Brasil desigual e injusto socialmente, emperrado por uma mentalidade arcaica que impedia seu desenvolvimento. Até 1960, O Cruzeiro nunca havia se arriscado a fazer uma revista brasileira de história em quadrinhos – estava nesse gênero de publicação desde 1940, quando lançou a revista colorida O Gury, exclusivamente com quadrinhos de origem norte-americana. E quando o fez, não se arrependeu, pois alcançou enorme sucesso. Na época, a editora publicava dois sucessos junto às crianças: Luluzinha e Bolinha. A aposta da editora no artista mineiro superou todas as expectativas de vendas e logo se tornou um dos quadrinhos mais lucrativos da editora. As histórias de Ziraldo foram recebidas como exemplos de quadrinhos feitos com talento e que valorizavam a cultura nacional. Jornalistas – ainda não havia críticos dos quadrinhos –, intelectuais e leitores da época a saudaram como um exemplo sadio de "brasilidade" e de vida inteligente nos quadrinhos que deveria ser copiado por todos os editores que publica-


ACERVO PESSOAL ZIRALDO ALVES PINTO

vam hqs. Mais que isso, entenderam que a revista era a demonstração clara de que a idéia de nacionalizar a produção das revistas contava com a aceitação dos leitores. Ninguém se atentou, porém, que o trabalho do artista era uma exceção, em uma área acostumada a copiar histórias de faroeste e de guerra vindas dos EUA. Os Diários Associados, que representavam uma cadeia de jornais e revistas, reproduziram, em todo o País, uma entrevista com Ziraldo sobre a repercussão de sua revista, com enfoque também para o preconceito contra os quadrinhos. O texto destacou em seu título: "Êxito de Pererê prova que público não quer só histórias de bangue-bangue". Na mesma conversa, Ziraldo disse que sua revista tinha o propósito de levar a criança a "pensar em brasileiro", porque, acostumada às histórias em quadrinhos importadas, ela só pensava em fazer bonecos de neve, em comer morangos e passear em trenós na época do Natal. Portanto, estabeleciam para ela uma falsa realidade, com graves distorções até mesmo climáticas, uma vez que no Natal é verão no Brasil. "E esses são defeitos que, se histórias excelentes como as das revistas Luluzinha e Bolinha conseguem anular, outras (a maior parte) só fazem acentuar". O desenhista mineiro comemorava uma tiragem mensal média de 90 mil exemplares vendidos da revista, número expressivo para o período e que contrariava a justificativa de que o título fora cancelado por causa das vendas baixas e prejuízos com custos de produção.

sado e usa um capacete com duas asinhas como o do deus Mercúrio. O macaco de pêlos bege se chama Alan e é diferente dos demais de sua espécie: calmo e gentil, não faz bagunças a não ser quando está com seus amigos. E Pedro Vieira, tatu rosa com as costas verdes que mora em uma caverna debaixo da terra. Além de ser gentil, está sempre pronto para ajudar os amigos. A Turma do Pererê voltaria às bancas e livrarias brasileiras diversas vezes nas quatro décadas seguintes. Mas não repetiria o sucesso da sua primeira fase. A primeira tentativa se deu em 1972, quando Ziraldo reuniu no Livro do Pererê antigas histórias dos tempos de O Cruzeiro. Três anos depois, em julho de 1975, a Editora Abril lançou uma revista mensal, de 68 páginas, com o título A Turma do Pererê. Saíram apenas dez números e a coleção foi encerrada em abril de 1976. O personagem voltou às revistas em janeiro de 1985, com o Almanaque do Pererê, que reunia 184 páginas de suas histórias clássicas. Até julho, saíram mais três edi-

Ziraldo em 1960, quando começou a publicar a revista Pererê, na Editora O Cruzeiro. Abaixo, a segunda página da história que abre a última edição da revista, em 1964, com o compadre dando uma explicação sobre a peça que vai estrear: “Tiradentes, com a corda no pescoço, faz um discurso sobre a liberdade e morre!”. Quase uma premonição.

Personagens cativantes

A revista trazia personagens fortes, cativantes, inesquecíveis. O principal deles, claro, era Pererê, muitas vezes chamado apenas de Saci. Sua criação se baseou no personagem do folclore nacional, um menino negro de uma perna só, um cachimbo e uma pequena carapuça vermelha, que vive de pregar peças nas pessoas. Brincalhão, é capaz de criar até mesmo redemoinhos. Ziraldo mudou um pouco suas características e amenizou suas maldades. Deixou-o apenas mais peralta, diferente da natureza de sua lenda. Seu melhor amigo é Tininim, namorado de Boneca, uma menina vinda da cidade. Ele nasceu a partir de uma flor negra plantada pela Mãe Docelina que, mais adiante, adotou-o como seu filho. Era de origem indígena, da tribo dos Parakatoka, que fica na mesma Mata do Fundão, onde vive toda a turma. Na turma também fazem parte animais falantes da fauna brasileira. Como Galileu, a simpática onça branca com manchas marrons, de grande força e corajosa, sempre se arriscando pelos seus amigos. Em seu encalço, sempre, o Compadre Tonico e o Sêo Neném. Os dois, freqüentemente, armam planos contra ela, mas sempre perdem no final sendo retribuídos por pancadas pela onça. Geraldinho é um jovem coelho de pêlos vermelhos, típico garoto travesso que faz brincadeiras e planos mirabolantes. Moacir é como se chama o jabuti meio rosado com a carapaça marrom da Mata do Fundão. Ele trabalha como mensageiro sempre apres-

ções. Em outubro, os três primeiros almanaques foram encadernados em um só volume. Um ano depois, a Editora Primor fez a segunda edição do livro A Turma do Pererê, o mesmo de 1972. A Abril fez uma última tentativa no segmento de bancas, com histórias inéditas. O primeiro almanaque A Turma do Pererê saiu em janeiro de 1991. O segundo, dois meses depois. Os tempos tinham realmente mudado, pois as crianças pareciam mais interessadas nas revistas de Xuxa ou do New Kids on The Block. Em 1998, a turma ganhou versão para televisão, em 16mm, a partir de dezembro de 1998, em 20 episódios, produzida na cidade mineira de Tiradentes. Andre Alves Pinto, neto de Ziraldo, e Sônia Gancia foram os diretores dessa série produzida pela TVE. No novo século, a criação de Ziraldo se manteria viva nas livrarias, embalada com o sucesso de seus livros infantis, principalmente da série O Menino Maluquinho. Primeiro, com a série de três livros Todo Pererê, de 2002, lançada pela Editora Salamandra, que parecia iniciar o relançamento de todas as histórias. Em 2009, a Globo Livros publicou uma luxuosa caixa de três livros 50 Anos da Turma do Pererê, que trazia como brinde o fac-simile do número 1, de 1960. E o militante e simpático personagem de uma perna só certamente retornará muitas vezes ainda, ao longo do século 21.

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LEMYR MARTINS

FUTEBOL

Copa do Mundo

Da simples leitura de telegramas diante dos edifícios dos jornais, ao jornalismo-espetáculo dos dias de hoje, muita coisa mudou na história das coberturas das Copas. P OR C ELSO S ABADIN

Por mais que se fale em Copa do Mundo – e como se fala! – não tem sido devidamente divulgado pela imprensa que esta Copa de 2014, justamente a realizada no Brasil, marca a vigésima edição deste famoso campeonato mundial de futebol. A imprensa, que adora o “gancho” dos números redondos e comemorativos, deixou passar essa. De qualquer maneira, esta 20ª Copa do Mundo de Futebol já entrou para a História. Não apenas pelo gigantismo de seus recordes numéricos, que vêm sido sucessivamente quebrados a cada edição, mas principalmente pelas manifestações políticas que a cercam. Ninguém jamais havia pensado que, em pleno “país do futebol”, fossem tão grandes as pressões exercidas pela não realização de uma Copa. Ao Jornal da ABI, como sempre, interessa mais de perto o foco da Imprensa. Muita coisa mudou nos 84 anos que nos separam da realização da primeira Copa do Mundo, e a cobertura jornalística do evento não poderia ser uma exceção. Antes de mais nada, vale um brevíssimo apanhado histórico. Criado pelos ingleses, o futebol, na formatação que conhecemos hoje, é fruto do imperialismo expansionista britânico do século 19. A idéia era ensinar, através do esporte, noções de disciplina, lealdade e liderança para que, em última análise, os colonizados soubessem “seu devido lugar” no jogo cruel da dominação territorial. Para quem já havia se perguntado por que as medidas do futebol são tão quebradas (a extensão 24

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do gol, por exemplo, é de 7,32 metros), aí está a explicação: todas as regras foram criadas pelos britânicos e sua famosa aversão à simplicidade do sistema decimal. Inventado o jogo, ele é batizado como “association football”, por ser eminentemente um esporte coletivo. Do final do século 19 até os primeiros anos do 20, a Inglaterra reinou soberana na administração e organização do futebol. Mas já em 1904, Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça, além da própria Inglaterra, dão ao futebol status de organização internacional, criando a Fédération Internationale de Football Association-FIFA. A entidade começa a sonhar com a organização de um campeonato mundial sem a interferência do Comitê Olímpico Internacional-COI, que pregava o esporte somente como competição amadora, de acordo com os ideais olímpicos. Divergências internas entre os países membros e o advento da I Guerra Mundial fizeram com que o sonho só fosse realizado 26 anos após a Fundação da FIFA. Em 1930, finalmente, é realizada a primeira Copa do Mundo de Futebol. O país sede escolhido pela entidade foi o Uruguai, não apenas pela sua localização num continente que sofreu menos a destruição da Guerra, mas principalmente pelo fato de o país ter se sagrado bicampeão olímpico do esporte, em 1924 e 1928. É desta época o apelido de “celeste olímpica” dado à camisa azul clara da seleção uruguaia. Contudo, desavenças entre a Fifa e o Coi, além do descontentamento

de muitos países europeus que não estavam dispostos a enfrentar uma viagem de três semanas de navio até o sul da América do Sul, colocavam o evento em grande risco. A apenas um mês do pontapé inicial, ainda não se sabia exatamente quais países participariam e quais seriam as regras do torneio. Imagina na Copa! Após vários convites e inscrições (ainda não existia o sistema de jogos eliminatórios), a primeira Copa acabou contando com a participação de Peru, Argentina, México, Chile, Brasil, Bolívia, Paraguai, Iugoslávia, Romênia, Bélgica e EUA, além do próprio Uruguai, claro. Apenas três estádios foram utilizados nos jogos: o Parque Central, do Nacional, o Pocitos, do Peñarol, e o Centenário, o único construído especialmente para o evento. Construção, aliás, que só ficou completamente pronta cinco dias após o jogo inaugural. Em 2 de julho, 11 dias antes da abertura do evento, a delegação brasileira embarcou no navio SS Conte Verde, com direito a multidão no porto do Rio de Janeiro, banda de música, execução do Hino Nacional e do Hino à Bandeira, e escolta da Marinha. O Jornal do Brasil de 3 de julho registrou: “O Conte Verde transpunha a barra levando em seu bojo os depositários da esperança de todos os verdadeiros sportmen de nossa pátria”. Ufanismo jamais faltou. Apesar do amadorismo da competição, no Brasil os ânimos estavam acirrados em níveis profissionais, e a imprensa registrou todas as animosidades. A base do problema estava na velha rivalidade en-

tre paulistas e cariocas: uma briga entre a Confederação Brasileira de DesportosCBD e a Associação Paulista de Esportes Atléticos-APEA culminou com a não ida dos atletas paulistas à Copa. Conseqüentemente, jornais cariocas como Jornal do Brasil e A Noite assumiram posição favorável à CBD, enquanto o Estado de S. Paulo e a Folha da Manhã tomaram as dores da Apea. “Não nos falem os cariocas em patriotismo e outros sentimentos nobres. Eles não têm autoridade nenhuma para fazê-lo, porque, em todos os seus atos, apenas procuram defender seus interesses particularíssimos, as suas vaidades e suas ambições”, publicou o Estado de S. Paulo na sua edição de 15 de junho de 1930. A seleção embarcava para o Uruguai não apenas sem os jogadores paulistas, como também sem tranquilidade nem equilíbrio emocional para enfrentar a competição. Os jornais cariocas festejavam; os paulistas torciam contra. Um dia antes da estréia do time, o Jornal do Brasil publica uma nota conclamando a população: “O Jornal do Brasil transmitirá a público, por meio de um alto-falante e em combinação com a United Press e Companhia Radiotelephonica Brasileira, a narrativa dos jogos em que tomará parte a delegação brasileira. Amanhã, portanto, transmitiremos em seus detalhes o jogo Brasil x Iugoslávia”. Mas alguma dificuldade técnica impossibilitou a transmissão ao vivo, frustrando a multidão que se posicionou diante do prédio do jornal. Havia também uma outra multidão, esta diante da Redação do jornal A Noite, que


e imprensa: 84 anos de histórias REPRODUÇÃO

O gol de Ghiggia, que enterrou o sonho dos brasileiros em 1950 e traumatizou o País.

Com a sagração do Uruguai como o primeiro Campeão do Mundo, A Noite não deixou escapar a oportunidade de dar sua alfinetada final: “Por que venceram eles? Melhores de todos? Sim. Tecnicamente? Talvez não! E por que se fizeram campeões, então? Eis o motivo: o Campeonato devem os uruguaios à maneira como reuniram os seus melhores elementos, sem quebra do entendimento, da harmonia, de tudo isto que, paulisticamente, nos faltou”. De 1930 para frente, o mundo nunca mais foi o mesmo. Pelo menos o mundo das coberturas esportivas de copas do mundo. O segundo campeonato mundial de futebol, realizado na Itália, em 1934, credenciou o significativo número de 270 jornalistas. Com a ascensão do fascismo, Mussolini tentou extrair o máximo possível de dividendos políticos para sua imagem. Ele esteve presente em tantos jogos que cogita-se que tenha utilizado dublês nas aparições públicas, onde era invariavelmente ovacionado pela população. Se em 1930, a cobertura “ao vivo” realizada no Brasil se resumia a leituras de telegramas diante de alto-falantes colocados nos edifícios dos jornais diários, na Copa de 1938, na França, a evolução foi sensível: nada menos que cinco emissoras de rádio brasileiras transmitiram o evento ao vivo (agora sem aspas) para o País. Na época, contabilizavam-se cerca de 350 mil receptores radiofônicos em todo o Brasil. Dizem os mais céticos que os locutores de rádio daquela época, sendo praticamente as únicas testemunhas oculares dos jogos irradiados para o distante Brasil, distorciam sem o menor constrangimento a veracidade dos fatos: para eles, os juízes sempre nos roubavam, o adversário sempre era violento, e os nossos jogadores eram sempre geniais. Por outro lado, se a cobertura da imprensa brasileira crescia a cada nova Copa, trazendo à nossa população doses cada vez

ARQUIVO JB

divulgava lance a lance os principais momentos da partida, reproduzindo para o público os telegramas que chegavam do Uruguai. Era a “transmissão ao vivo” possível na época. Outros jornais também adotaram o sistema de ler telegramas diante da multidão, mas a prática começou a suscitar alguns temores: como a massa reagiria em caso de derrota brasileira? Para evitar a ação de eventuais ‘black-blocs’ numa época em que este nome ainda não existia (mas quebra-quebra sempre existiu), alguns jornais menos comprometidos com a verdade passaram a transmitir para o público informações falsas, sempre favoráveis ao Brasil. Dependendo do jornal diante do qual a multidão se prostrasse, o resultado do jogo poderia ser bem diferente. A verdade definitiva (Iugoslávia 2, Brasil, 1) só seria revelada no dia seguinte, com as massas já devidamente dispersas. Como sempre acontece, a imprensa começou então a sua eterna caça aos culpados. Havia quem culpasse o frio uruguaio ou o eterno carrasco, o técnico, mas A Noite optou por condenar os “paulistas fujões”, que não viajaram ao Uruguai para prestar seu serviço à Pátria. O Jornal do Brasil e A Noite divulgaram um protesto “contra a atitude impatriótica e perniciosa dos paredros apeanos, que, vaidosos e egoístas, negaram seu valioso auxílio dos jogadores paulistas à Confederação Brasileira de Desportos”. O manifesto também exigia o embarque imediato dos paulistas para o segundo jogo, contra a Bolívia. Mas já era tarde. Como não podia deixar de ser, quem perdeu com toda esta briga foi o próprio time brasileiro, desclassificado logo na primeira fase do torneio. Com o País fora da Copa, a competição passou a receber da nossa imprensa uma cobertura bem menor, quase burocrática, onde por várias vezes os próprios resultados dos jogos eram informados erroneamente.

Luiz Carlos Barreto fez este registro emocionante de Garrincha e Pelé na final da Copa do Mundo de 1958, em Estocolmo, Suécia. Abaixo, a solidão de Pelé no meio do campo, contundido, durante a Copa de 1962, no Chile, em foto de Alberto Ferreira vencedora do Prêmio Esso.

mais maciças de ufanismo, patriotismo e euforia, também foi a nossa imprensa uma das principais responsáveis pela maior tragédia futebolística de todos os tempos ocorrida em terras brasileiras: a derrota para o Uruguai, na final da Copa de 1950.

Pelo menos é esta a leitura feita pelo documentário uruguaio Maracaná, assim mesmo com acento agudo no final, dirigido por Sebastián Bednarik e Andrés Varela. De acordo com o filme, o favoritismo brasileiro diante do Uruguai era tão superior que parte da delegação celeste já havia até deixado o Brasil, antes mesmo do jogo final. De certa forma, todos já estavam conformados com o honroso vicecampeonato. Até que no dia 15 de julho, a poucos momentos da decisão, o irascível capitão uruguaio Obdulio Varela irrompe concentração adentro sacudindo furiosamente um jornal. Tratava-se do matutino carioca Mundo Esportivo, que trazia uma foto da seleção brasileira sob o título ESTES SÃO OS CAMPEÕES, assim mesmo em caixa alta. Varela arremessou o jornal contra a parede e o usou como motivação para a sua até então abatida equipe. O resultado todos sabem. E para quem viveu as últimas décadas em Marte e não sabe, sempre haverá o Google. A força da imprensa brasileira foi usada contra nós, com excelente resultado para os comandados de Varela.

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FUTEBOL COPA DO MUNDO E IMPRENSA: 84 ANOS DE HISTÓRIAS REPRODUÇÃO

Quatro anos depois, na Copa de 1954, na Suíça, nossa honra e nossa alma não seriam ainda lavadas, mas o evento entra para a história da mídia como o primeiro Campeonato Mundial de Futebol a ter transmissão ao vivo pela televisão. Ainda que para apenas oito felizardos países: França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica, Dinamarca e, evidentemente, a própria Suíça. Por aqui, não veríamos ao vivo nosso brilhante bicampeonato em 1958 (na Suécia) e 1962 (Chile). Longe disso. As geniais jogadas que Garrincha Em 1970, o mundo acompanhou ao vivo a campanha eternizou em 1962 chegariam, vitoriosa da Seleção Brasileira em campos mexicanos. sim, às emissoras de televisão brasileiras, graças ao recém-inventado “milagre” do vídeotape. Mas para meida, da Globo, e o segundo por Fernanisso era preciso esperar nada menos que do Solera, da Bandeirantes. Algo impensádois dias. Ou então ler as últimas novidavel nos dias de hoje. des na revista O Cruzeiro que, segundo Para a mídia brasileira, a bola da vez suas próprias palavras, enviara ao Chile “a foi o então Presidente Emílio Garrastazu mais competente e numerosa equipe de Médici, tido como o mais cruel da ditadujornalistas da imprensa brasileira”. Entre ra militar, que declarou um dia antes da eles, Jorge Audi, Henri Ballot, Ronaldo grande final que o Brasil venceria a ItáMoraes, George Torok, Luiz Carlos Barlia por 4 a 1. Nem o mais otimista dos torreto e Mário de Moraes. cedores acreditaria que o Brasil pudesse Se contarmos para um jovem de hoje, suplantar assim tão facilmente os podenascido na geração internet, como foi a rosos italianos, mas os demônios da ditatransmissão ao vivo da Copa do Mundo dura estavam do lado de Médici, e o resulde 1966, na Inglaterra, provavelmente ele tado previsto foi confirmado. O ditador pensará que estamos brincando. Mas a verfoi chamado pela imprensa de “Presidente dade é que naquela longínqua década, os pé quente”. brasileiros acompanhavam as partidas disCom a evolução tecnológica camiputadas na terra dos Beatles através de um nhando em proporções exponenciais, os painel elétrico com o desenho de um camnúmeros de mídia passam a ser cada vez po de futebol. Algo parecido com um cammais significativos, e a exploração comerpo de jogo de botão. Ao som de um locucial do evento cada vez mais lucrativa. Em tor de rádio, um ponto luminoso simu1994, o nome FIFA passa a ser oficialmente lando a bola do jogo se movimentava pelo incorporado à competição. O genérico campo, passando aos espectadores uma “Copa do Mundo” abre espaço para a “FIFA vaga idéia de quem atacava e quem defenWorld Cup”. A competição de 1998 regisdia naquele momento. O tal painel podia trou nada menos que 9 mil jornalistas ser visto ao vivo, nos centros de algumas credenciados, e em 2002 a cobertura telecapitais, ou mesmo acessado pela televivisiva alcançou 196 países e 19 territórisão, que transmitia a prosaica imagem. os. Naquele mesmo ano, eram 23 as câmeFoi somente em 1970, no México, que ras utilizadas na transmissão do jogo final finalmente o mundo inteiro pode acomentre Brasil e Alemanha. Somente durante panhar ao vivo as transmissões dos jogos 2006, ano de realização da Copa na Alemade um Campeonato Mundial de Futebol. nha, venderam-se no Brasil 10,8 milhões E em cores. Não no Brasil, onde o sistema de aparelhos de TV. colorido ainda não havia sido instalado, Para a Copa de 2014, foi credenciado mas em vários outros países onde a cor na um número arredondado de 20 mil jornatv já era uma realidade. Não por acaso, listas de todo o mundo. Até o fechamenassim que a televisão entrou na vida da to desta edição do Jornal da ABI, a FIFA Copa, as suas exigências começaram tamainda não havia divulgado números oficibém a prejudicar a vida dos atletas: para ais, mas já se sabe que trata-se de mais um satisfazer o fuso horário europeu, a FIFA recorde quebrado nesta competição. Hoje, determinou que vários jogos deveriam para o bem e para o mal, o Campeonato começar ao meio-dia, a despeito do escalMundial de Futebol é a segunda maior dante calor mexicano. audiência das televisões mundiais, perdenNo Brasil, formou-se um interessante do apenas para as Olimpíadas, e os valores pool de emissoras de televisão, através do movimentados em direitos de imagem e qual os mais importantes locutores esporlicenciamento de produtos alcança protivos da época, independente mente de porções astronômicas. Tudo gerenciado para qual emissora eles trabalhassem, com mão de ferro pela FIFA. Se o futebol transmitiriam os jogos em sistema de rodínasceu para solidificar barreiras que divizio, na proporção de um tempo de jogo para diam colonizadores de colonizados, talcada um. Assistia-se a uma determinada vez ele não tenha se distanciado tanto partida na qual, por exemplo, o primeiro assim de seus propósitos, neste ano em que tempo era narrado por Geraldo José de Ala FIFA completa 110 anos de vida. 26

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DEPOIMENTO

JOÃO “Comentaristas desconhecem futebol e ficam impondo místicas” Em entrevista inédita feita há 25 anos para trabalho universitário, o João Sem Medo desfiou, um ano antes de morrer, seu conhecimento e sua verve sobre jornalismo esportivo e outros assuntos. POR M ÁRIO M OREIRA

E

ncontrei-me com João Saldanha exatos 25 anos atrás, numa manhã de sexta-feira, no final de maio de 1989. Eu havia agendado com ele uma entrevista para minha monografia de fim de curso na PUC do Rio, cujo título era “A paixão clubística no comentário esportivo”. Evidentemente, tratando-se do João Sem Medo – um dos maiores, se não o maior, nome da história da crônica esportiva brasileira –, não faria sentido restringir as perguntas a esse tema específico. Até porque a monografia envolvia outros tópicos, como a importância do comentarista, a linguagem utilizada nas análises, a diferença entre comentar futebol neste ou naquele meio de comunicação, enfim, questões pertinentes a um trabalho acadêmico daquela natureza. E o papo acabou descambando para o futebol propriamente dito, incluindo a polêmica passagem do jornalista pela seleção brasileira, e outros assuntos. É essa entrevista, ainda inédita nos meios de comunicação, que o Jornal da ABI publica agora, aproveitando a realização da Copa do Mundo no Brasil. A conversa ocorreu no apartamento de Saldanha, no Leblon. Pouco mais de um ano depois, em 12 de julho de 1990, o grande jornalista morreria em Roma, onde participara, já muito doente, da cobertura do Mundial da Itália, encerrado quatro dias antes. Por sinal, o estado de saúde de João, então prestes a completar 72 anos, já dava mostras evidentes de deterioração naquela manhã de maio: ao longo da entrevista, ele sofreu vários acessos de uma tosse avassaladora, sintoma da grave insuficiência pulmonar que acabaria por levá-lo à morte. Uma entrevista feita há 25 anos contém trechos inevitavelmente datados, como o que aborda a crise política na China que resultaria, dali a alguns dias, no Massacre da Praça da Paz Celestial. Por questões óbvias, não há menção à internet, que só chegaria ao Brasil seis anos depois. E Saldanha se mostra um tanto confuso em alguns momentos, como quando mistura datas ao recordar a doença e a morte do ex-Presidente Costa e Silva, na época em que treinava a seleção para o Mundial de 1970. Mas o cerne do pensamento de João Saldanha sobre diversos assuntos – futebol, jornalismo, política, o Brasil – e sua verve inigualável estão lá. Tive a sorte de encontrar a fita cassete com a entrevista ainda em muito boas condições. Lamentavelmente, 14 minutos estão incompreensíveis – já na parte final da conversa, João trouxe do banheiro um barbeador elétrico e começou a se barbear enquanto falava. Isso interferiu na gravação, e um chiado forte se sobrepôs ao diálogo. Uma pena, porque foi o trecho em que ele falava das táticas do futebol. A maior parte da conversa, porém, incluindo o final, está preservada.


FOLHAPRESS

SALDANHA Como você começou no jornalismo esportivo? João Saldanha – Eu já trabalhava em jornal há muito tempo. Como era ligado a esporte – fui treinador do Botafogo, e tal –, o Samuel Wainer pediu pra fazer esporte também. Isso em que época foi? João Saldanha – No começo de 1960. Eu trabalhava na Rádio Guanabara, e o Samuel Wainer, pra quem eu já havia trabalhado como jornalista comum, pediu pra fazer esporte e eu fiz. E estou até hoje. Nessa época você já era comentarista esportivo? João Saldanha – Já, já. Eu fazia coluna na Última Hora. E era comentarista da Rádio Guanabara. Era uma rádio que tinha... a melhor equipe. Todos os cobras de locutores: (Jorge) Cúri, (Oduvaldo) Cozzi, Doalcey Camargo, tudo era de lá. O fato de você ter sido jogador e depois técnico foi um bom embasamento? João Saldanha – Claro! Não é orgulho nem nada, mas o que escrevem de besteira alguns coleguinhas por nunca terem... É uma barbaridade! Eles podiam estar numa seção de polícia... Até escrevem bem... Você acha que é fácil entender de futebol? João Saldanha – É, relativamente é, porque o futebol não tem grandes mistérios nem grandes modificações. Mas mesmo assim há comentaristas que não entendem? João Saldanha – Nada. Como eu não conheço as particularidades do basquete, do vôlei – eu não conheço as leis! Eles não conhecem o jogo, as leis do desenvolvimento do jogo, então eles não podem conhecer! Claro que tem alguns que conhecem. Mas a maioria é uma calamidade! Eles chamam de quarto-zagueiro. (Saldanha estica quatro dedos da mão para mostrar que a denominação não faz sentido) Qual é o quarto-zagueiro: um, dois, três, quatro. (Aponta os dedos) Seria esse? Ou seria esse? Só porque, historicamente, foi o último a descer, então ficou sendo o quarto, porque já tinha três... O cara que joga na frente dos zagueiros eles chamam de cabeça-de-área. Outro dia o Torres, zagueiro do Fluminense: “Não, porque eu jogo melhor de quarto-zagueiro que de zagueiro central”. (Mostra de novo os dedos) Onde é o zagueiro central? Porra, geometricamente não tem senso: ou é este ou é este. Se o jogo

vem por aqui, este é que faz cobertura. Se vier por aqui, é este. Mas eles não entendem isso. O futebol brasileiro está atrasado uns 30 ou 40 anos. Os comentaristas esportivos têm a função de auxiliar na evolução do jogo? João Saldanha – E na involução também. Na involução também? João Saldanha – Claro. Pelo total desconhecimento. Teve jogo ontem, nenhum deles analisa o que é que houve: houve pura e simplesmente um roubo! E o time do Vasco, o que está acontecendo com o time do Vasco? É a seleção, porra! O Geovani tá vendendo (o meia vascaíno estava indo para o Bologna). Então, porra, o Geovani tem um milhão e tanto de dólares pra receber, ele vai meter a perna contra o Cabofriense? Que é que há? Não vai nem discutir. Então, fica discutindo: “Porque não sei o quê, eu fui dominar, ela fugiu”. Fugiu o caralho! Ele não foi (na bola)! Ele não devia era ter jogado, tá certo? Aí vem uma mulher hoje que escreve uma besteira!... “Não há lei para esse negócio! Porque o jogador, porque o Banco Central...” Ora, porra, a lei da escravatura acabou, com a Lei Áurea, há cem anos! Então, é claro que não há lei de venda de jogador! Não existe. A Lei do Passe é uma lei de relacionamento esportivo entre clubes. Uma compensação. Essa questão do cabeça-de-área, que você combate muito... João Saldanha – Isso não existe, pô! Não existe, não. Isso existiu na década de 1930. Os italianos é que usavam o Andreolo na frente dos quatro zagueiros: Serantoni, Foni, Rava e Locatelli. E o Andreolo dava o primeiro combate. Mas isso prende e obriga... Eles jogavam com dois meias recuados. Então, eles faziam um meio-campo de três. Atualmente, como o meio-campo é mais adiantado, essa função é burra! O adversário tem dois homens aqui e você prende cinco atrás? Isso é um troço de uma burrice! E de um primarismo muito grande do treinador brasileiro. Nós estamos atrasados... Por isso é que está todo mundo encostando na gente. Por isso é que o Brasil faz jogo duro com qualquer um... João Saldanha – Com qualquer um. Com a Venezuela ou com a Inglaterra. E era fácil, a Venezuela a gente passava por cima. Chile, essas porras...

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Então, a crônica esportiva tem realmente essa função... João Saldanha – Evidente, pô! É como o jornalismo brasileiro. “Tropas ampliam a situação na China...” Porra, não tem... Eu trabalhei na China quase dois anos. A China nunca teve um governo central lá, tem vários governos. Tomava conta a dinastia Ming, lá do sul, a outra lá do norte, a dinastia Manchu... Outro dia apareceu um filme, O Último Imperador. O cara não foi imperador da China porra nenhuma, foi imperador manchu! Foi metido lá numa dessas tentativas de negócio, pega o rei, bota lá, tira... E passa um filme daqueles... Puta que pariu!... Filme mentiroso, do começo ao fim, do (Bernardo) Bertolucci... Tá aqui a manchete... (Mostra o jornal do dia) O jornalismo brasileiro é esse, o que é que você quer? “Tropas ampliam a situação na China.” Notícias feitas aí, em Nova York, aqui... Ou então aquelas notícias assim: “Viajantes que viram não sei de onde...”. E, para o público, qual a importância do comentarista esportivo? Ele é fundamental para o público entender o jogo? João Saldanha – Eu não sei... Olha, acho que a gente fala demais. Jornalismo esportivo só existe aqui, na Argentina, parecido. Em outras partes do mundo é um trocinho pequeno... Na Itália tem bastante. João Saldanha – É parecido. Tuttosport, Gazzetta dello Sport... Na Itália é na base dos paparazzi, na base do escândalo. Aqui a seção de Esporte de um jornal é mais na base de escândalo da vida esportiva do jogador, do treinador, de quem está no meio, do que propriamente do jogo. Comentários mesmo bem feitos sobre uma partida... João Saldanha – Eles (comentaristas) não sabem o que está acontecendo, porra! Eles sabem analisar resultado, mas a partida... não têm condição! Então, eles ficam impondo místicas, impondo uma porrada de besteiras... Aliás, isso faz parte do nosso jornalismo. Mística, você está falando de que tipo de coisa? João Saldanha – “O Botafogo dá azar”, “O Vasco dá sorte”... Como você vê essas frases? Por exemplo, “há coisas que só acontecem ao Botafogo”? João Saldanha – Isso é palhaçada. Que coisas que só acontecem? Há 20 anos o Botafogo vendeu até as balizas, quer o quê? Entendeu? Fica que nem um time de rua, um time de esquina. Pega um quadro: amanhã todo mundo no campo tal... Pronto, não tem nem sede! Porra, “há coisas que só acontecem ao Botafogo”! Um negócio filho da puta de sujo! Aqui fizeram o Maracanã, os

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“Depois deram um golpe nele, lembra? Porra, empacotaram ele, meteram ele numa geladeira, fizeram o AI-5, ele assinou com a mão fria.” clubes não estão crescendo: o Flamengo não tem campo, o Botafogo não tem campo, o Fluminense não tem campo. Lá no Rio Grande do Sul os clubes fizeram os campos deles, em São Paulo também. Em Curitiba também... Então, os clubes tiveram que crescer pelo próprio mérito deles. Aqui (no Rio de Janeiro), não, os clubes involuíram. O Flamengo tem um barraco aí, uma merda de campo. O Fluminense é um campo cortado pela metade, porque abriu uma rua (a Pinheiro Machado) e cortou o campo. E o Botafogo vendeu, o que é que você quer? Que o futebol carioca evolua? Como? Se a base, que são os clubes, mesmo, eles não... Então, tem esses clubes de bicheiro por aí. Parece que o Carlinhos Maracanã vai mudar pra não sei que clube...O cara torce por um clube, porque resolveu torcer – influência do pai, da mãe, de um tio, sei lá. Mas esses caras mudam de clube. Era Bangu, daqui a pouco é Vasco, daqui a pouco... O Carlinhos Maracanã já esteve em dois ou três clubes. João Saldanha – E esse outro, o Luizinho Drummond. O negócio deles é que o clube de futebol é uma espécie de habeas corpus pra eles, pro jogo, pra outros negócios deles, sei lá. E outras frases como “quem tem um não tem nada”, “quem não faz leva”? Isso existe mesmo? João Saldanha – Não. São frases típicas que existem em qualquer setor de atividade, e no futebol também. “Quem não faz leva” foi o Gentil Cardoso que disse. Tem até no Ceará uma sociedade que coleciona isso. Porque essas frases não são necessariamente verdadeiras, não é? Às vezes quem não faz também não leva... João Saldanha – Não. Por exemplo: “Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária não perdia pra ninguém” é minha. Porque nós fomos jogar lá e tinha um ex-jogador, aliás muito bom, que tomou um porre e matou um cara. Bestamente. Fugiu, mas depois pegaram ele. Um tal de Paulista. Jogava pra cacete. Joguei com ele na praia e tal. E nós fomos jogar lá. O seu Carlito (Carlito Rocha, lendário e folclórico dirigente do Botafogo na fase áurea do clube) levou o time lá. Eu já estava até parando, fui meio de sacanagem. Encontrei o Paulista e ele disse: “Pois é, estou

concentrado aqui há cinco anos pra esse jogo. Não vou dar mole não”. Daí eu saquei (a idéia da frase). A do Campeonato Baiano também: “Se macumba valesse, o Campeonato Baiano empatava”. Porque a Bahia é a terra da macumba, né? Lá todo mundo faz macumba, então terminava empatado. E tenho milhões de frases. “Zona do agrião”... É sua também? João Saldanha – Também. Foi de um português, seu Manuel (fazendo sotaque de português): “onde vai o agrião, o anão pula por cima e está certo”. Então, surgem, não fui eu que inventei, é histórico. O agrião, sendo da mesma espécie agrícola, qualquer coisa que você jogar ali, milho, por exemplo, o agrião, tumpt! No milho você pode jogar outras coisas e nasce; mas o agrião come tudo que estiver ali. Não só agrião, tem outras espécies que fazem isso. O fato de você ter a sua vida muito ligada ao Botafogo, como jogador e treinador, na hora comentar um jogo do clube... João Saldanha – Não, eu já estou vacinado, nem tô ligando. Geralmente eu estou torcendo para o time que está jogando melhor. Ah, então você torce? João Saldanha – Instintivamente, você vê um jogador fazer uma jogada bonita, você quer ver esse, não aquele. De repente é o outro lado. Isso eu estou acostumado. O fato de eu nunca ter sido de outro clube – o Botafogo foi mais ou menos contingência, eu já estava lá dentro, jogava, até tive uma lesão violenta, machuquei uma perna. Eu trabalhava e não tinha nenhum interesse em futebol. Futebol era só brincadeira e tal... Mas você não é botafoguense? João Saldanha – Claro que sou! Por isso é que sempre participei só do Botafogo. Eu nunca quis ser nem jogador nem treinador em outro lugar, porque já ia esculhambar minha vida, entende? Minha vida particular. Foi em 1963, se não me engano, tive uma proposta muito boa para treinar o Juventus, na Itália. Foi o commendatore Girolla que veio aqui fazer. Outra vez foi o Corinthians. Eu estava no Maracanã, num jogo da Rádio Globo, acho, e vieram dois caras do Corinthians, oferecendo o diabo! Dez vezes mais do que eu ganhava. Eu, não... Depois que você entra nessa roda viva não sai mais. E esses treinadores que ficam num negócio que eu não sei fazer: “Eles perderam, nós empatamos, eu ganhei.” É o verbo que eles conjugam. Mas isso por uma necessidade de garantir emprego. Mas, depois você voltou a ser treinador... João Saldanha – Na seleção! Mas na seleção o Havelange veio... Foi lá

em casa, num dia de Natal, em 1968. Ou véspera, não sei... Você não estava treinando nenhum clube? João Saldanha – Não, eu era comentarista da Rádio Globo, TV Globo. Escrevia para O Globo... Não me lembro. Não! Eu era da Rádio Nacional, escrevia na Última Hora. Trabalhava na TV Globo. Era comentarista da TV Globo. Ele convidou. E na época, e tendo, como a gente tinha, um ano pra preparar o time, e já tendo o time formado, pô!... Naquele tempo, tinha um campeonato em que jogavam 12 clubes: dois do Rio Grande, quatro do Rio, quatro de São Paulo e dois de Minas. Tava ali tudo que era jogador do Brasil. E não tinha nenhum fora! Eu chamei e no dia seguinte estavam todos lá, na sede da CBD (antiga Confederação Brasileira de Desportos). Não tinha problema. Fomos pro México dois meses antes, o que era uma covardia. Eles me puseram pra fora da seleção um mês antes. Não, um mês não... Assim da Copa (faz um gesto com os dedos querendo dizer pouco tempo)... Quatro dias antes de embarcar. Embarcava dia 22 e eles... Foi por causa daquela história do Médici? João Saldanha – Foi. Ou aquilo foi só pretexto? João Saldanha – Não, não. Do governo! Do governo, pô! Eu sempre fui contra o governo, chamava eles de bandidos. Aquela história do ministério... João Saldanha – Não, aquilo já foi de sacanagem, eu já sabia que... Uns três meses antes o pessoal mais ligado à área do governo... Porque mudou, entendeu? O Costa e Silva estava fazendo umas aberturas. Lembra? Teve a Passeata dos Cem Mil. Porra, eu fui diretor da Une! Eu fugi do Brasil em 1949 num tiroteio que houve na Une. Eu fui condenado. E o Getúlio (Vargas) é que anistiou a gente. Fiquei cinco anos fora. Se eu venho aqui... Quer dizer, eu vim, vim ver a Copa do Mundo (de 1950), e tal, mas vim com documentos, e tudo, fajutos. Não dava. Então, o Costa e Silva, quando chamou, ele queria fazer uma abertura. Queria abrir pro, vamos chamar, populismo, pra esquerda, a quem eu era intimamente ligado. Depois deram um golpe nele, lembra? Porra, empacotaram ele, meteram ele numa geladeira, fizeram o AI-5, ele assinou com a mão fria. Já nem... Dizem até que ele não tava mais vivo, sei lá. Eu creio que não, porque o (General) Eloy Menezes (então Presidente do Conselho Nacional de Desportos) foi ao Maracanã no dia do jogo do Paraguai (31 de agosto de 1969, pelas eliminatórias da Copa) e disse “Morreu o Presidente, eu vim agora do hospital” – que era ali ao lado do Maracanã, o Hospital Central do Exército. Faz um minuto de silêncio, não faz? Sei lá, pô! Mas

isso não é comigo, é com o juiz. Tava eu, Antônio do Passo (diretor da CBD), o Russo (Adolpho Milman, supervisor da seleção), Mário Américo (massagista), todo mundo. Eu disse: “Ó, vai lá falar com o juiz”. Ele aí foi lá. Aí não teve um minuto de silêncio. (Oficialmente, Costa e Silva morreu em 17 de dezembro de 1969; o AI-5 fora assinado pelo próprio Presidente um ano antes, em 13 de dezembro de 1968, muito antes de ele adoecer.) A multidão também não devia saber, né? João Saldanha – Não, soube. Todo o Brasil, o Rio de Janeiro inteiro soube que o Costa e Silva tinha morrido. Esse troço extravasa. E ele (Eloy Menezes) não fez mistério nenhum. Aí eles se encolheram. Foi no dia do jogo do Paraguai, a segunda partida. Aquele 1 a 0, do gol do Pelé? João Saldanha – Foi... que ele disse que o Costa e Silva tinha morrido. Mas o Costa e Silva só foi enterrado em 14 de novembro. Eles puseram ele numa geladeira e ficaram discutindo, entendeu? Aí elegeram... Elegeram, não, resolveram num triunvirato (os ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica), lembra? Mas o Costa e Silva tava lá assumido, porra! Aí em novembro enterraram o Costa e Silva e o tal triunvirato tava no poder. Aí veio o Médici. Quando veio o Médici, o pessoal da Globo, todo mundo disse: “Pô, você não emplaca dez dias. Isso é extrema direita”. Eu dizia “Foda-se, porra, quero que morra!”. Aí eles começaram com onda... O Médici disse: “Ah, eu gostaria de ver o Dario nesse time”, e eu disse pra ele em Porto Alegre. Na televisão. “Você nunca viu o Dario jogar. E é fácil de provar. Eu provo onde você tava e onde tava o Dario. Então, isso é onda. Agora, organiza o teu ministério” – porque ele era novinho – “que eu vou arrumar o meu time”. Porra, deu uma merda filha da puta. Bom... eles não queriam porque eu era de esquerda, preso como de esquerda, membro do Partido Comunista, tudo isso, porra. Tudo eu sabia e tava cagando pra isso. Aí o Antônio do Passo: “Quem é que eu pego?”. Eu digo: “Pega o Dino Sani ou o Zagallo, um dos dois. O Zagallo conhece esse time quase todo, trabalhou no Botafogo...” O Zagallo estava no Botafogo na época, né? João Saldanha – Não sei se tava no Botafogo... Não me lembro. Ele estava em começo de carreira como técnico. João Saldanha – Não, ele já tinha sido técnico do Botafogo em 1968, 1960 e tantos... Pois é, mas relativamente... João Saldanha – Não, já tinha uns cinco anos. Ou mais, não sei. E o Dino Sani, que era o olheiro de São Paulo.


ARI/CPDOC JB

João Saldanha, na época em que era técnico da Seleção Brasileira, fala com os jornalistas que Everaldo é o único jogador garantido na defesa.

Nós tínhamos 12 ou 13 de São Paulo e o Dino nos informava. Aí vieram e o Dino disse: “O Dario não entra no meu time”, mandaram embora.

não é mais o mesmo? Essa matéria que está aqui, ó, eu já escrevi há quatro dias. “Geovani saiu.” Foi do outro jogo, mas serve pra esse de ontem.

Ah, o Dino também falou isso? João Saldanha – Foi, tem fotografia, o Dino chegou no avião e coisa, foi lá na CDB: “Vai ser Dino, Dino é o técnico, e tal”. O Dino disse: “Não. O Dario não entra no meu time”. Então mandaram ele embora. Aí chamaram o Zagallo e condicionaram: “O Dario tem que entrar porque tem que agradar ao homem, precisamos de dinheiro, o caralho”. E puseram, e o Dario foi e, coitado, nem no banco...

Qual a grande diferença entre comentar um jogo para a televisão, o rádio e escrever no jornal? João Saldanha – A diferença é que, no rádio, se a bola saiu, você tem que dizer: “A bola saiu pela linha de fundo”. Na televisão tem uns caras que dizem (risos) “Bola pela linha de fundo”. Não é possível... O cara tá vendo.

Foi só pra cumprir essa condição... João Saldanha – E ele, inclusive, não merecia isso. Dario era um bom jogador. Era um goleador, né? João Saldanha – Mais ou menos... Fazia os seus gols, mas não era assim nenhum absurdo. Era um bom jogador. Mas, porra, isso tinha às dúzias aqui no Brasil naquela época. Por exemplo, tinha o Edu... O Eduzinho (irmão de Zico)? João Saldanha – É. A mãe do Edu até hoje não me perdoa de eu não ter chamado. Eu digo: “Vou chamar no lugar de quem? Do Pelé, do Tostão, do Gérson ou do Rivelino?” Quem é que eu ia tirar? Outro de que falam muito é o Dirceu Lopes, que era craque... João Saldanha – Não, mas o Dirceu Lopes eu chamei. Foi um troço curioso: o Dirceu Lopes vestia a camisa amarela, ficava amarelo. Amarelava... João Saldanha – Porra, mas ele ficava... (Faz gesto de quem está sufocando) Não conseguia nem travar a bola, impressionante! Nunca vi um troço assim... E ele era um cracaço, era o cobra do Cruzeiro. Era mais que o Tostão talvez... Ah, é? João Saldanha – Não sei, tinha mais cartaz. Do mesmo nível. Mas o Tostão era mais jogador... Porra, provou. Uma personalidade, um puta jogador... Quer dizer então que você... João Saldanha – Então eu fui, topei, cabou, foda-se! E nunca mais quis saber de clube nenhum. Aí você voltou à sua vida de jornalista. João Saldanha – É, prefiro a vida modesta, de jornalista, você ganha... Dá pra viver e tal, mas... Está fazendo o que gosta... João Saldanha – É, e nem me chateio, vão tomar no cu... Você vê: o Sérgio Cosme. Há três meses tava glorificado, endeusado. E agora ele

Sim, mas para comentar. João Saldanha – Eu acho que o comentário na televisão tem que ser muito pequeno, curtinho. Porque o resto o cara tá vendo. E no rádio não. No rádio você tem que explicar, procurar transmitir a imagem. E em jornal? João Saldanha – Não, em jornal... Eu não sei, eu faço diferente, eu escrevo mil coisas. Saio fora do troço. Às vezes, o cara lasca “Pô, amanhã tem Fla-Flu”. Eu digo foda-se, pô, tem FlaFlu há 30 anos! Ou 50 anos. Eu escrevo outro troço. A história do Geovani tá escrita há cinco dias, quatro ou cinco dias que eu entreguei lá. Domingo eu escrevi a matéria e entreguei. Minha folga, pra não ir lá (na Redação) segunda nem terça. E calhou que eles puseram o Geovani no time outra vez... isso é uma burrice coletiva. Claro, o jogador tá contratado, vai receber não sei quantos mil dólares... Mil, milhão, não sei. Muito dinheiro... João Saldanha – Claro. Ele tá com o pensamento e a preocupação toda voltada para esse negócio... O Bebeto também, porra. (O atacante estava trocando o Flamengo pelo Vasco) Até inconscientemente também, não é? Mesmo que o cara esteja concentrado... João Saldanha – Evidente, porra. Eles são uns meninos, de um modo geral, pobres. De repente, isso é como ganhar na loteria. Não vai receber? Qualquer transação dessas na Europa, em qualquer parte, o cara vai embora no dia seguinte. Aqui, não. “Não, tem que jogar porque está na Seleção.” Ficam fazendo essa frescura de Seleção... o que é isso?! É uma merda de time. Isso é um time de camisa amarela e mais nada, com meia dúzia de malandros em cima pra ganhar dinheiro. Vende pra televisão, pros anunciantes, pro cigarro, vende pra todo mundo. Não precisa nem ir gente no campo. Tá vendido o jogo. Esse jogo com Portugal não vai ser transmitido pro Rio, mas vai pra fora, pra todo o Brasil. (O amistoso, em 8 de junho de 1989, foi vencido pelo Brasil por 4 a 0) Parece que a CBF tem que ter dinheiro pra poder pagar os salários do jogadores que atuam na Europa.

João Saldanha – Tudo bem, mas a CBF quer os jogadores o ano inteiro! Então, ela tem que pagar aos jogadores. Mas pra pagar tem que ter o dinheiro. João Saldanha – É evidente. Então, deixa eles lá, não convoca, ué! Pra que convocar, se tem que pagar? Vira uma fortuna. Quando eu convoquei os jogadores, não tinha nenhum fora, então, moleza. Nem dinheiro tinha, a gente se concentrava no campo do Flamengo. Concentrava, não, dormia na véspera. Vinte e tantos caras num três quartos vagabundo. Cinco, seis em cada quarto, tudo empilhado. Por que naquela época os jogadores não saíam tanto do País? João Saldanha – Como assim? Saíam, sim. Mas bem menos. João Saldanha – Não, houve fases. No começo de 1930, com o profissionalismo, que aqui não tinha, teve jogador brasileiro na Argentina, Uruguai, Itália, Espanha e Portugal, saiu todo mundo. Aí voltaram. Foi quan-

“Seleção... o que é isso?! É uma merda de time. Isso é um time de camisa amarela e mais nada, com meia dúzia de malandros em cima pra ganhar dinheiro. Vende pra televisão, pros anunciantes, pro cigarro, vende pra todo mundo.”

do o câmbio equilibrou. Por exemplo, o Didi ia pro Valencia, em 1956. Fui eu que, lá no Botafogo, propus: nossa folha era toda – os 30 jogadores que tinham lá, 20 e tantos – dava 425 mil (cruzeiros). O Didi ganhava 28 ou 30. O Valencia ofereceu a ele 80 mil por mês. Então, nós oferecemos 70. Pra nós, virava mais 50 contos. Nem isso, 40. Não era dinheiro muito... Não pesava. A gente podia. Então nós pagamos ao Didi 70 e ele ficou aqui! Pra que ir pra Europa, porra? Ambiente estranho, terra estranha, tudo estranho. Ficou aqui. Gratificações eram iguais. Nossas relações de câmbio eram estáveis. Eu me lembro que eu ganhava na Última Hora, quando eu trabalhava lá, o mesmo ordenado durante anos. Tinha um aumentinho às vezes... Os preços também se mantinham mais ou menos. João Saldanha – Totalmente. O aluguel... “Quanto você paga de aluguel?” “Mil”. Pronto. Hoje, ninguém sabe. Não tem nenhum valor, nada. Então, porra. A situação lá fora é estável. Eu tenho uma filha que mora na Europa. Porra, os preços lá são os mesmos de três anos atrás. Não alteraram. E aí o grande êxodo dos nossos jogadores começou justamente na década de 1980... João Saldanha – Inflação. Inflação. Levam até aqueles que não são nem tão bons. João Saldanha – Exato. Quer ver? Por exemplo, jogadores como Pelé, Tostão, Garrincha, eles não ganharam dinheiro. Eles ganhavam aqui um ordenado, e tal, agora, essas fortunas... O Pelé não ganhou nenhum níquel do futebol. Ele ganhava um ordenado mixo. Quer dizer, um bom, mas... Agora é que surgiu esse troço de participação no passe. Os europeus não têm isso que os sul-americanos têm. Os 15% sobre o valor do passe? João Saldanha – Não é bem 15%.

O cara diz: “não vou, só vou se me der 30”, aí o clube dá, porra, o clube quer o dinheiro. Quem quer o dinheiro são os clubes, eles querem os dólares pros negócios deles. E o que tem de pilantra no meio do negócio... Num País pobre como o nosso... Como comentarista, como procura se manter atualizado com o que está acontecendo lá fora no futebol... Costuma ler revistas estrangeiras? João Saldanha – Não, não. Eu viajo muito. Por exemplo, agora, daqui a uma semana, eu vou lá pra Dinamarca (onde o Brasil jogaria um amistoso e levaria de 4 a 0 da seleção da casa). Este ano eu já estive na Europa, já estive no Peru... Sei lá onde mais... E no Brasil inteiro. E a imprensa esportiva brasileira se caracteriza por dar tudo. Pô, você está na França, pra saber o resultado de um Fla-Flu você vai saber 15 dias depois, uma semana depois, quando o Jornal do Brasil chegar lá na Varig. Ou então bate um telefone pra cá. Agora, nós damos tudo. Por exemplo, o chefe lá do Jornal do Brasil no domingo – eu até ia escrever essa matéria – tava atrás do resultado de um time de Ponta Porã, que não tinha. E os apuradores, a minhocapress, como a gente chama, porra, eles sabem tudo. A gente pergunta “Onde é que pega a rádio não-sei-o-que do Chile?” Eles: “Aqui! Rádio Valparaíso!”. Eles se ligam com radioamador, os caras da Sport Press daí a pouco telefonam. São gozadíssimos esses caras, são tarados! Eles sabem tudo de onda curta, onda média, o caralho! Impressionante! Porra, então é sopa, você pergunta prum cara desses. Você quer ver que loucura que é? Outro dia teve um jogo... do Napoli. O Careca fez um gol, o Alemão... “Vitória brasileira na Itália”. Ah, porra, o napolitano tá cagando pra onde é que o cara nasceu! Tá torcendo lá pro time dele! “Vitória brasileira na Itália!” Quer dizer, um troço ufanista, um troço de Hino Nacional, positivista, “Ordem e Progresso”, essas merdas que infe-

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J. B. SCALCO/EDITORA ABRIL

lizmente o Brasil cultiva e se crê grande! O Brasil é talvez o segundo País mais atrasado do mundo. Qual seria o primeiro? João Saldanha – A Índia, porque tem mais gente, o que é uma merda também. A Índia fede, e o Brasil começa a feder. Copacabana fede! E o Brasil também. “Brasil! Brasil!” (empostando a voz). Cultivaram o ufanismo, principalmente agora na fase da ditadura, “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Quando está comentando uma partida de futebol, você fala para pessoas das mais diversas classes sociais e níveis intelectuais. Como se comunicar bem com todas? João Saldanha – A grande maioria é classe média empobrecida. O resto não está nem aí. Acho eu. Você acha que uma pessoa rica não escuta? João Saldanha – Não, ouve. Mas um ou outro. Mas aí, na hora de comentar, você tem a preocupação de adequar a linguagem a todos? João Saldanha –– Não, nenhuma. Eu vou falando e... A linguagem que a gente tem é a que a gente adquire através do dia-a-dia. Você falou que acompanha os resultados do exterior, na medida do possível... João Saldanha – Alguns. Por exemplo, se você perguntar quem foi o campeão inglês, sabe que eu não sei te dizer? Eu antes sabia, porque tinha Campeonato Inglês sempre (no noticiário), agora não tem tido. Acho que o campeão inglês foi um time de Liverpool... O Liverpool mesmo... É, acho que foi... Mas não vi. (Na temporada recém-concluída, o campeão tinha sido o Arsenal; o Liverpool foi vice.) Aí você fica sabendo o resultado, mas em termos de novas táticas talvez... João Saldanha – Não, mas as táticas não mudam muito. Rigorosamente, (...) (Toca a campainha. Saldanha grita “Entra!” e se levanta para receber o filho Joãozinho. Depois vai até o banheiro, pega um barbeador elétrico, volta e começa a se barbear enquanto dá a entrevista. Passam-se 14 minutos, até que ele desliga o aparelho.) Pra terminar: o Brasil na Copa no ano que vem, tem boas chances? João Saldanha – Se a gente for à Copa!... Tem que disputar com o Chile (as eliminatórias). É duro. Mas passa, né? João Saldanha – Palavra de honra que eu não sei. Tem que ganhar do Chile e da Venezuela. As últimas três partidas com o Chile nós perdemos: 4 a 0, 2 a 0... Não, uma empatou: 0

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a 0. Venezuela... Esse é mais fraco. Sempre nós ganhamos da Venezuela de seis, oito... Porra, agora é jogo duro, 2 a 1, 1 a 1, o que é que há? Classificando, o Brasil na Copa? João Saldanha – O Brasil tem a mesma chance de mais uns quatro ou cinco. Alemanha, Itália, Inglaterra, Espanha. Tá todo mundo sempre lá. (O Brasil acabou eliminado nas oitavas-de-final pela Argentina. Os quatro primeiros colocados foram, pela ordem: Alemanha Ocidental, Argentina, Itália e Inglaterra.) Aí é briga de foice. João Saldanha – Aí depende muito... De tabela... Por exemplo, time que joga duas prorrogações, uma prorrogação, ainda não ganhou nenhuma Copa. Nenhuma. Por quê? Isso, porra, desde 1930. A Bélgica, na última Copa, jogou duas ou três prorrogações. João Saldanha – É, a Bélgica foi garfando, né? Eles foram muito protegidos. Mas acabou... O time deles não era bom... Chegaram em terceiro, quarto, sei lá. (Na partida de oitavas-de-final contra a União Soviética, os belgas venceram na prorrogação por 4 a 3, após empate em 2 a 2 no tempo normal; naqueles tempos pré-tira-teima, dois gols da Bélgica pareceram ter sido feitos em claro impedimento, mas é impossível afirmar com certeza.) A França jogou com o Brasil aquele jogo duríssimo, chegou na Alemanha... (Os franceses venceram os brasileiros nos pênaltis, após empate em 1 a 1; no jogo seguinte, pelas semifinais, perderam de 2 a 0 para os alemães) João Saldanha – Aí acabou. Não tinha pernas. A Alemanha contra a Argentina: chegou, subiu o morro (rumo à Cidade do México) caindo aos pedaços. Não dá (a Argentina venceu a final por 3 a 2). Jogou a prorrogação, dança. Em nenhuma Copa do Mundo eu vi... A não ser a Itália, em 1934, jogou prorrogação. Mas a prorrogação não foi na final contra a Tcheco-Eslováquia? João Saldanha – Não, teve antes com a Espanha (na verdade, foi disputado um jogo extra no dia seguinte). Porra, jogaram o time da Espanha pra dentro do gol. A Espanha estava 1 a 0, o Mussolini tava no balcão, gritando, e a massa urrava. O estádio ainda existe lá, mas acho que não tem nem mais futebol... Porra, jogaram a bola no alto... Foi todo mundo pra cima... João Saldanha – Todo mundo, foi um escândalo. Oito minutos depois de acabar o jogo. O jogo já tinha acabado, aí empatou. Foi pra prorrogação, a Itália ganhou de 1 a 0. O time da Espanha se cagou de medo. E acabou a Copa, o time deu no pé.

A revista Placar registrou o duelo Zico x Maradona na Copa do Mundo de 1982: Seleção dos sonhos. Mas o técnico Telê Santana não escapou das críticas de Saldanha.

Em 1982, Saldanha remou contra a corrente Toda unanimidade é burra, dizia Nelson Rodrigues. Contrariando a quase totalidade dos críticos, que até hoje endeusam o técnico Telê Santana, João Saldanha já apontava, desde muito antes da eliminação para a Itália, sérias deficiências na seleção brasileira de 1982 – aquela cantada em prosa e verso, mas cujo brilho com a bola no pé mascarava graves problemas de preparação e concepção tática. Para quem quiser conferir, diversas crônicas da época

estão no livro O Trauma da Bola – A Copa de 82 por João Saldanha, publicado em 2002 pela Cosac & Naifi. Em 6 de julho, dia seguinte à dramática derrota por 3 a 2 no estádio Sarriá, em Barcelona, Saldanha publicou no Jornal do Brasil a crônica abaixo, desancando o trabalho de Telê e do preparador físico Gilberto Tim – mas sem deixar de enaltecer a inegável qualidade técnica de um time recheado de craques. (Mário Moreira)

O limite da estupidez P OR J OÃO S ALDANHA

Barcelona – Tantos crimes contra o bom senso, contra o senso comum, não poderiam passar impunemente. O fato de possuirmos jogadores extra-série como Zico, Falcão, Sócrates, Júnior e Cerezo dava a falsa impressão de que éramos superiores em tudo. Mas uma estupidez siderúrgica rondava nosso propósito de ganhar uma Copa, onde quem nos derrotou passou mal com o país do Camarões. Inventaram uma tática no Brasil abandonando preciosos espaços de campo. Ora, somente um primarismo infantil e teimoso poderia pensar que os adversários não iriam aproveitar o erro clamoroso. Veio logo o primeiro jogo, o da União Soviética. Sim, foi uma falha de Valdir Peres e isto é uma outra questão. Mas o time soviético, quando se apertava, jogava a bola para seu lateral-esquerdo que sempre estava livre. Claro, raios que me partam, pois se não tínhamos ninguém ali. Leandro, sempre mal fisicamente, tentava suprir o extrema que não tínhamos. No jogo da Itália, com mais quinze minutos seria levado pelas enfermeiras não para um hospital, mas para um cemitério. Estava “morto de cansaço”. E o Cabrini folgava sempre. Era o jogador de desafogo do time italiano. Qualquer problema e bastava jogar a bola por ali. Fizeram o primeiro e, quando precisavam da cera,

bastava segurar o jogo pelo lado onde tínhamos apenas o Leandro. Sim, Zico, Sócrates, Júnior, Cerezo e este estupendo Falcão sempre estiveram muito bem. Mas até carregadores de piano cansam quando fazem esforços acima de sua capacidade. Nosso time, com a tão decantada preparação especial, estava muito cansado no final do jogo. De um lado, existe algo positivo, que é a desmistificação do charlatanismo. Os inventores do futebol que se recusam a ocupar espaços indispensáveis e que não percebem que se joga num retângulo, rigorosamente geométrico, e querem jogar enviesado como se as balizas estivessem nos córneres. Se chegamos a uma posição tão elevada, devemos à qualidade de quatro ou cinco jogadores excepcionais, mas cuja capacidade física também tem limites. A Copa não era difícil de ganhar. Mas a teimosia superou tudo. Culpar Serginho seria um erro. O jogador não tem culpa da teimosia, que ficou clara no primeiro jogo, mas infelizmente não foi aproveitada. Não deixo de assinalar que faltou um pouco de modéstia quando empatamos ontem em dois a dois. Alguém andou rebolando ali e o time italiano, que estava melhor fisicamente do que o nosso, veio para cima e pôde ganhar. Paciência. Mas a estupidez tem um limite de tolerância.


LITERATURA

Eternamente Tarzan Primeiro livro do herói de Edgar Rice Burroughs ganha nova edição em português e permite a fãs e curiosos conhecerem o texto que originou a mitologia do herói mais popular do século 20. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

O maior herói da era contemporânea não tem superpoderes ou fantasias das mais esquisitas e de cores berrantes. Pelo contrário, anda quase nu e usa apenas uma tanga de couro rústico e uma faca para se defender de leões e crocodilos. Tarzan, O Homem-Macaco, criação do escritor americano Edgar Rice Burroughs (1875-1950), completou 100 anos em 2012 como um personagem imbatível na história do entretenimento em todos os tempos. Somente de textos originais, rendeu 24 livros – todos eles saíram no Brasil –, que continuam a ser reimpressos até hoje. E nada menos que 46 filmes em longa-metragem foram produzidos, sem contar as séries de tv, animações e milhares de páginas de histórias em quadrinhos. O tempo passa, Tarzan some um pouco e reaparece a cada década em novos produtos. Sucesso garantido. Está na imaginação de gerações de pessoas, com seu jeitão de caipira ingênuo das matas – com a diferença de que precisa enfrentar leões, crocodilos e outros animais selvagens para sobreviver. Este ano, enquanto um novo filme para os cinemas começa a ser planejado, ele volta às livrarias brasileiras com o primeiro livro original, Tarzan – O Filho das Selvas, pela Zahar Editora, que promete outros volumes para breve. É uma chance para as novas gerações terem contato com o texto original, a trama que deu origem ao personagem, cuja vida já foi recontada dezenas de vezes. Seus livros estavam fora de catálogo no País desde a década de 1970. O romance de aventura sai em edição comentada e ilustrada, com 40 desenhos de Hal Foster, de 1929, até hoje considerado um dos melhores quadrinistas do herói. A apresentação, tradução e notas são de Thiago Lins. A obra conta a história do jovem filho de um casal de aristocratas ingleses, forçado a desembarcar na África, após um motim no navio em que viajavam. O filho dos dois acaba por nascer na selva africana e fica órfão com apenas um ano de idade. Sem sequer saber falar, o pequeno lorde Greystoke é encontrado por uma gorila, que o adota como uma forma de compensar a perda recente de seu filhote. Ele passa a ser chamado de Tarzan (“Pele branca”, na linguagem dos macacos) e cresce saudável e se torna ágil, forte, poderoso guerreiro, líder de seu bando e rei da selva, como descreve o autor.

Sua vida segue o curso natural de perigos e desafios do mundo selvagem, mas muda radicalmente quando ele tem contato com os homens brancos civilizados, que fazem parte de uma expedição americana e vão lhe mostrar o instinto destrutivo de seus semelhantes. Dentre eles está a bela Jane, que encanta o herói bom selvagem. Narrativa de encantamento

Burroughs era um mestre na narrativa de encantamento, sem rebuscamentos literários, mas eficiente e funcional, no sentido de prender o leitor e encantá-lo com muita ação e suspense. Sabia escrever em tom folhetinesco, com os recursos necessários para segurar quem lesse a primeira página até o fim do volume. Sem pudores, mais preocupado em agradar os leitores das revistas baratas nas quais seu personagem apareceria, cria uma trama aparentemente de pouco romantismo, pelo menos no início, quando descreve a matança dos pais de Tarzan e a cruel situação em que fica seu bebê. Mas ele era, acima de tudo, um crédulo da idéia do homem como um ser puro e cheio de bondade que é deformado em seu caráter e em sua natureza pela sociedade industrializada e capitalista. Assim, cria uma trama irresistível em que a natureza funciona como um elemento harmonizador. O autor se inspirou e compôs uma adaptação moderna da tradição mitológico-literária de heróis criados por animais. Como os irmãos italianos Rômulo e Remo, criados por lobos e que, posteriormente, fundaram a cidade de Roma. Também lembrava Mogli, o Menino Lobo, o jovem herói de O Livro da Selva, de Rudyard Kipling (18651935), que teve todos os animais como seus mestres na luta pela sobrevivência na selva. Na trama de Burroughs, ao encontrar os livros deixados por seus pais numa choupana, Tarzan, sozinho, aprende a ler e descobre seu lugar no mundo. O personagem estreou na revista AllStory Magazine, em 1912, e foi publicado em formato de livro até 1947, três anos antes da morte de seu criador. O personagem apareceu em narrativas de outros escritores como Barton Werper, Fritz Leiber, Philip José Farmer. No Brasil, começou a ser publicado em 1932, pela Editora Companhia Nacional, na Coleção Terramarear, com tradução de Medeiros e Albuquerque. Dentre as aventuras lançadas, des-

tacaram-se As Feras de Tarzan; Tarzan na Selva; Tarzan, o Destemido; Tarzan – O Rei da Jangal; Tarzan e o Leão de Ouro e Tarzan e os Homens-Formigas. A editora publicou o personagem ao longo de 40 anos. Ao mesmo tempo, as revistas com suas histórias em quadrinhos, lançadas pela Editora Brasil-América (Ebal), entre as décadas de 1940 e 1970, fizeram tanto sucesso que tiveram oito séries, com quase 800 números. Tarzan dos filmes

Coube ao cinema, porém, difundir o herói por todo o planeta e alimentar seu mito ao longo de todo o século 20. O primeiro Tarzan das telas foi interpretado pelo obscuro Elmo Lincoln (1889-1952), com seu jeito de canastrão, no filme Tarzan, O Homem Macaco ou Tarzan dos Macacos (Tarzan of the Apes), de 1918. Lincoln também estrelou o filme seguinte, O Romance de Tarzan ou Os Amores de Tarzan (The Romance of Tarzan, 1918) e o seriado As Aventuras de Tarzan (The Adventures of Tarzan), de 1921, que teve nada menos que quinze episódios, exibidos semanalmente nas salas. Na era muda foram produzidos quatro filmes e quatro seriados com o herói. O primeiro Tarzan do cinema sonoro se tornou o mais famoso e é até hoje cultuado. Era interpretado pelo na-

dador e campeão olímpico americano Johnny Weissmuller, que encarnou o herói em doze longas nos estúdios da MGM e da RKO ao longo de duas décadas. O refinado lorde dos livros foi transformado por Weissmuller em um selvagem que conseguia apenas grunhir e emitir frases monossilábicas, segundo seus implacáveis críticos. Mesmo assim, o público adorava vê-lo enfrentando leões (adestrados) e jacarés (que pareciam dopados ou bonecos de couro sintético). Se depender da receptividade logo no primeiro livro, serão muitos os relançamentos da Zahar. “É um dos grandes prazeres da literatura e, tenha você 12 ou 32 anos, só precisa de uma coisa para apreciálo: ser criança”, escreveu Ruy Castro, em resenha na Folha de S. Paulo. Ele leu Tarzan pela primeira vez aos seis anos, em 1954, na edição da Coleção Terramarear. “Foi o primeiro livro que comprei. E devo ter gostado, porque a ele se seguiram outros 19 livros da série. Livros estes que foram se perdendo pela vida, mas que, nos últimos 20 anos, dediquei-me a encontrar nos sebos, um a um, as mesmas edições, com seus irresistíveis títulos – Tarzan Triunfante, Tarzan, o Rei da Jangal, Tarzan e os Homens-Formigas –, as capas gloriosas, o papel amarelado e, até hoje, um cheiro familiar, de descoberta da vida.”

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HUMOR

para descrever. Tenho em mente que fui de carro ao Jornal do Brasil, lembro do clima agitado que encontrei na Redação assim que entrei. Na volta para casa, passei em frente ao prédio da UNE (União Nacional dos Estudantes) e vi que o mesmo estava pegando fogo e um grupo de jovens musculosos, em um carro conversível que emparelhou com minha Kombi, gritava para mim: “Buzina! Você não vai mais perder sua propriedade!”. Parece ridículo, e é. Uma velha tia minha estava convencida de que os comunistas iam invadir o apartamento dela, ocupá-lo com várias famílias. E, naturalmente, roubarlhe todas as suas jóias tão bem guardadas e importantes para ela. Foram muito eficazes as campanhas contra o governo João Goulart e as reformas de base que propunha. O golpe não foi simplesmente um golpe dos militares.

A natureza de ser contra, segundo Claudius Um dos fundadores do jornal Pasquim, ele se tornou símbolo da resistência contra a ditadura militar. Agora, cartunista carioca ganha merecida retrospectiva no SESI-Santo Amaro, em São Paulo. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

Não se faz mais humor como antigamente. Pelo menos, na imprensa escrita. Essa é a impressão que passa quando se conversa com o mestre carioca Claudius Ceccon, de 76 anos, conhecido apenas como Claudius. Ele faz parte de uma geração de cartunistas para a qual levar ao riso os leitores de jornais e revistas sempre foi, sobretudo, um ato de contestação. E não apenas para fazer gracinha, como muitas vezes acontece nesses tempos do politicamente correto. Como ele mesmo diz, a natureza do humor é ser do contra. Sempre. Significa ser contra a autoridade de qualquer tipo, que faça parte do poder estabelecido. É revelar o que está escondido por trás da aparente normalidade do poder – o que muitas vezes não se consegue expressar por meio de palavras escritas ou a censura não deixa. O cartum é a síntese do que não deve ser dito. Do que não se quer que seja dito. É o despir, o pegar de calças curtas. Impressões que se tem quando se está diante de um desenho seu. Era assim com colegas que já se foram, mestres dos mestres, como Fortuna, Henfil, Carlos Estevão, Péricles Amaral e Millôr Fernandes. Continua a ser, com Ziraldo e Jaguar, parceiros de toda a vida, que continuam a produzir e a reclamar. Ou com Angeli, da geração seguinte, que honra a tradição. E foi desse modo que Claudius construiu uma carreira singular, principalmente nas páginas do Pasquim, em mais de meio século de carreira – na verdade, quase 60 anos, embora ele não saiba precisar exatamente quando começou. Parte representativa de sua produção ganha merecida retrospectiva, em São Paulo, até o final de ju32

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lho, com direito a um imperdível catálogo para manter na estante. “Claudius: Quixote do Humor”, no Sesc Santo Amaro, tem curadoria assinada pelo próprio artista e reúne imagens e frases que marcam sua atuação no jornalismo – veículos como Jornal do Brasil, Folha, Estado, O Globo, revistas Cruzeiro e Manchete, entre outros. Além da mostra, o Sesc recebe também uma programação especial ligada ao evento, com direito a bate-papo com o artista, contação de histórias, oficina e apresentações artísticas para que o público possa ampliar sua percepção em relação

ao conteúdo exposto e a importância do seu trabalho. O evento foi dividido em módulos cenográficos, como se fossem folhas de papel espalhadas pelas paredes da unidade. Dessa forma, torna mais fácil a interatividade com o público e facilita a visualização dos cartuns em reprodução no tamanho gigante. Na entrevista exclusiva a seguir, Claudius fala do seu olhar crítico e aguçado sobre os acontecimentos do Brasil e do mundo, que acompanhou não apenas como um espectador passivo. Ao contrário, observou tudo com seu olhar crítico, às vezes implacável, às vezes poético. O artista explica como traçou seu caminho no cartum brasileiro, com foco maior na produção feita a partir de 1964, quando o golpe iniciou um período de censura que afetou tanto ele quanto muitos de seus colegas do traço. Hoje, não é menos combativo do que foi no passado. Jornal da ABI – Consegue se lembrar onde o senhor trabalhava exatamente na manhã do dia 31 de março de 1964, quando correu a notícia de que os militares tinham se levantado contra o Presidente Goulart e a democracia? Só no Pif-Paf? Claudius – Lembro-me perfeitamente, ora. Não era apenas em um só lugar, mas em três: no Jornal do Brasil, na revista Manchete, de Adolfo Bloch, e no tablóide Pif-Paf, de Millôr Fernandes e sua turma. Jornal da ABI – O que se lembra desse dia? Como soube que havia um golpe em marcha? Na Redação do Jornal do Brasil? Claudius – Acho que, pelo fato do trauma dessa data ter sido muito grande, minhas lembranças não são muito nítidas

Jornal da ABI – Sim, os civis participaram ativamente com as marchas, muitos levados ao medo e ao pânico de uma ameaça comunista que não existia... Claudius – Essas pessoas foram influenciadas por institutos como o IPES-Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, fundado em 1961 e que serviu como um dos principais catalisadores do pensamento contra Jango], formado por intelectuais conservadores, pelas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” – um slogan genialmente bolado – e por movimentos como o Ibad-Instituto Brasileiro de Ação Democrática (organização anticomunista fundada em maio de 1959, por Ivan Hasslocher) e o CCC-Comando de Caça aos Comunistas, órgãos golpistas muito ativos antes e depois do golpe. Sabe-se hoje que houve civis que não só financiaram o golpe em si, mas também deram decisivo apoio à tortura. Jornal da ABI – A maioria da grande imprensa apoiou o golpe. Isso incomodava os cartunistas? Claudius – Sem dúvida. Em toda Redação o cartunista ocupa um lugar muito especial, porque o cartum tem um enorme poder de comunicação. A mensagem é apreendida imediatamente, porque ela expressa, na grande maioria das vezes, um sentimento pré-existente dos leitores, que se materializa na síntese apresentada pelo cartunista. Uma boa charge comunica mais do que um bom editorial. Ela é fruto de observação, de conhecimentos, de leituras, de conversas, de posições, idiossincrasias e ética pessoais do cartunista. Isso tudo turbina o que eu chamo de “dom”: algo indescritível, que não se aprende na universidade, não passa de pai para filho nem de professor a discípulos. Como o senso de humor. São coisas que uns têm, outros não. E ponto. Por essa razão, os cartunistas se sentem muitas vezes tolhidos em seus ímpetos semi-anarquistas diante de uma situação que seu sexto ou sétimo sentidos imediatamente identificou. Mas, fazer o que, se o seu jornal pensa o contrário? Até que se crie o posto de “cartunista ombudsman”, nossa produção depende da aprovação ou tolerância vinda de cima.


Jornal da ABI – Pelo que o senhor acompanhava, como ficaram os cartunistas diante dessa situação? Seguiam a linha do jornal ou tentavam ser imparciais? Claudius – Não existe cartunista imparcial, não é verdade? Jornal da ABI – O Pif-Paf tentava decolar quando veio o golpe. Vocês se reuniram imediatamente para saber qual postura tomar? Claudius – O Pif-Paf era uma iniciativa de Millôr, à qual todos nós, solidariamente, aderimos. A decisão de fechar o Pif-Paf foi exclusivamente dele, pois era o único financiador. Era um jornal impresso em papel couché, todo a cores. Isso era muito caro na época, mas o Millôr não fazia por menos. Jornal da ABI – Afinal, por que o PifPaf acabou? A polícia chegou a ir à Redação? Vocês receberam ameaças? Claudius – Mais eficaz do que a polícia ou as ameaças é o boicote econômico. E foi isso que aconteceu. Se você examinar a coleção do Pif-Paf com um mínimo de isenção, os oito números publicados, você certamente verá que era uma publicação excepcional naquele momento, pelo seu conteúdo, pela sua linha editorial e política. Nele colaborava o que havia de melhor na imprensa brasileira. Mas, mesmo assim, nenhuma agência de publicidade programou esse veículo para receber anúncios e a venda em banca, sobretudo com as restrições impostas pelo regime, não eram suficientes para manter o jornal pelos dois primeiros anos, período que alguns consideram necessário para que uma publicação vingue. Jornal da ABI – O Pif-Paf é lembrado pela postura crítica de seus artistas em relação à política e ao conservadorismo da sociedade brasileira. Mas havia um genial projeto gráfico de Eugênio Hirsch, não? O senhor conhecia ele? Como foi trabalhar a seu lado? Como ele era? Claudius – Mal o conheci, porque o Pif-Paf durou pouco tempo, apenas dois meses. Sabia que era um cara super criativo e com enorme experiência como artista gráfico. Ênio Silveira

que qualquer um de nós. Não haveria motivo para ficar no País naquelas circunstâncias. Ele se foi, eu faria o mesmo se estivesse na sua situação, certamente.

lhe deu um amplo espaço para mostrar seu talento nas publicações da Civilização Brasileira, para onde fez muitas capas de livros. Acho que ele colaborou com o PifPaf sem nada receber, como todos nós, e imprimiu seu estilo principalmente no primeiro número. Creio que Fortuna deu uma enorme mão nessa área, mais tarde. Jornal da ABI – Por falar em Eugênio Hirsch, que era austríaco e tinha fugido do nazismo, ele insinuou a um amigo que teria ido embora do Brasil em 1964 por pressão dos militares. Mas não disse se foi preso ou torturado. Sabe algo a respeito? Claudius – Não me consta que ele tenha sido preso. Mas, sendo estrangeiro, era mais vulnerável a todo tipo de ameaça do

Jornal da ABI – Colegas seus tentavam, de alguma forma, mostrar por meio dos cartuns suas desconfianças quando os militares chegaram ao poder? Claudius – Mais do que desconfianças, nos opusemos àquela farsa ridícula, na medida de nossas forças. E nos arriscando muito, talvez por não termos ainda noção de quão grave se tornaria a situação com o correr dos meses e dos anos. Havia um consenso de que aquilo era apenas mais uma quartelada, e que logo o poder seria devolvido aos civis. Quando estive preso no Dops, ao final de um depoimento em que eu havia sido bastante ajudado pelo delegado que me interrogava, ele me sussurrou: “Quando isso virar, lembre-se de mim, lembre-se de que eu te ajudei”. Jornal da ABI – Quanto tempo a imprensa demorou para concluir que uma ditadura começava, já que muita gente foi “caçada” e “cassada”, perseguida, torturada e acabaram com os partidos e as eleições diretas? Claudius – Sim, houve gente caçada e cassada. Creio que rapidamente caiu a ficha de jornais como o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil, pois logo foram submetidos à censura e com agentes na Redação queren-

do listas dos “subversivos” que ali trabalhavam. Viram que a emenda era muito pior do que o soneto. No regime que havia sido derrubado havia a mais ampla liberdade de crítica. Essa, entre muitas outras, é uma característica fundamental para se definir um regime. A crítica não tem lugar, não é admitida e é severamente combatida num regime ditatorial. E isso não demorou a aparecer quando veio o regime militar. Jornal da ABI – Ainda em 1964, juntamente com Jaguar e Fortuna, o senhor publicou alguns trabalhos na coletânea intitulada Hay Gobierno?, lançada pela Editora Civilização Brasileira. Qual é a história desse livro? Uma declaração de independência, de que não confiavam no novo regime? Claudius – Foi um livro lançado poucos meses depois do golpe militar, composto de uma seleção de charges publicadas na imprensa por Fortuna, Jaguar e eu, demonstrando que os órgãos para os quais trabalhávamos na época nos abriram esse espaço. Foi um ato de coragem de Ênio Silveira – um entre tantos outros – publicar o livro naquele momento. Jornal da ABI – Como nasceu o projeto? Claudius – Fortuna e Jaguar vieram ao meu escritório – eu tinha uma prancheta numa salinha alugada, onde cometi meus primeiros projetos de arquitetura – e ali selecionamos nosso material. O livro se tornou depois um importante documento sobre o golpe. Há alguns anos, Fortuna me procurou, propondo que o reeditássemos, adicionando-lhe textos que contextualizassem situações e personagens. Esse projeto acabou não acontecendo, mas é o que farei no livro que estou preparando sobre meus 50 anos de trabalho na imprensa, no qual haverá uma parte que trata em imagens eventos que vão do golpe até o momento presente. O livro, primorosamente editado pelo Sesi-SP, será lançado na próxima Flip. Atenção, rapazes da ABI: isto é um furo!

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MARIA JULIA COSTA SEVERIANO

VIDAS

A coerência exemplar de

Mylton Severiano Um dos fundadores da lendária revista Realidade, Myltainho, como era chamado por todos, morre aos 73 anos e deixa como legado uma carreira de repórter exemplar e brilhante editor. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

O coração traiu Mylton Severiano da Silva, aos 73 anos, no último dia 9 de maio. Um infarto fulminante o levou. Ele ficou conhecido pela generosidade e a ética com os colegas e ao tratar de temas como jornalista cujo interesse maior era sempre o povo e o Brasil, que tanto amava. Ele, que jamais perdeu a fé na sua profissão e ensinou a, pelo menos, duas gerações de jornalistas a amar o que faz e a dar dignidade ao próprio trabalho. Ele, que conversava com o mais inexperiente dos pares de igual para igual, que ouvia o que seu interlocutor tinha a dizer como se qualquer observação tivesse realmente grande importância. Não havia qualquer ranço ou esnobismo em tudo que dizia, apenas gentilezas. Severiano confiara a mim a missão de contar a história de sua vida profissional e de todos os seus inseparáveis amigos que mudaram a cara do jornalismo brasileiro a partir da década de 1960, com publicações inovadoras e que modernizaram a imprensa, como Quatro Rodas, Jornal da Tarde, Realidade, Bondinho, O Grilo e Ex-, entre outras. Era tão gentil que, mesmo sem me conhecer pessoalmente, deslocou-se de Florianópolis, onde morava, para o lançamento de A Morte do Grilo, que saiu pela editora Peixe Grande, do nosso amigo em comum, Toninho Mendes, em dezembro de 2012. Sua postura de gentleman do jornalismo fez com que só fizesse elogios à obra e nenhuma ressalva à sua história ou dos companheiros. Escreveu uma generosa resenha no site Observatório da Imprensa que valeu por todo silêncio da imprensa sobre meu livro. Poderia ter apontado erros, incorreções que sempre acontecem. Nada. O incansável repórter estava orgulhoso de ver o registro daqueles tempos heróicos, contados com empenho e esforço de pesquisa, como fez questão de ressaltar. 34

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Quem o conhecia de perto, trabalhara com ele, variava pouco nos adjetivos, sempre positivos. Era um homem firme, sério, correto, decidido, engajado, humano demais, de grande coração. Daqueles jornalistas cada vez mais raros que levam ao limite e testam todas as possibilidades de usar as palavras escritas às últimas consequências, no esforço de fazer do mundo um lugar melhor. Como disse a amiga e jornalista Luana Schabib, ele era ‘Repórter ’ com ‘R’ maiúsculo, e ‘Jornalista’ com ‘J’ maiúsculo. “Um dos mais generosos editores que se poderia conhecer, dono de um texto incrível”, acrescentou. Severiano sentiu uma dor no estômago, foi ao médico que lhe receitou um remédio qualquer. Voltou para casa e morreu do coração. “Estômago que conduziu muitas pesquisas que culminaram em seu livro Em se Plantando Tudo Dá. Coração que acolhia jovens idealistas, abrigava eternos amigos e guardava a força e o amor à escrita e ao povo”, lembra Luana. “Conheci Mylton Severiano aos 20 anos. Estava escrevendo minha ‘monografia’ para conclusão do curso de Jornalismo. Entrevistei o mestre.” (veja na página 32) Hoje, aos quase 28, prossegue ela, “em um mundo hiperconectado, que tenta se reconhecer (mas permite a disseminação do discurso de ódio), lembro do poema de Wislawa Szymborska, escritora polonesa que Myltainho me fez admirar, que um dia me enviou por e-mail para eu não desistir do jornalismo. Tenho, hoje, jornalistas que eu sigo para não desistir de tudo. E tive nele a materialização de qualquer idealização de jornalismo que eu poderia ter ”. Não há quem discorde disso. Poucos jornalistas tiveram tanta experiência excitante e viveram no olho do furacão quanto esse paulista nascido em Marília, em 10 de setembro de 1940. Era tão precoce que, com apenas nove anos de idade, publicou seu primeiro texto, no jornal de sua cidade. “Terra Livre” denunciava as condições em que vivia um casal

de camponeses na Fazenda Bonfim, que fazia parte do município. José Hamilton: inspiração

Na adolescência, tornou-se amigo de um paulista da cidade de Santa Rosa do Viterbo, nascido em 1935. É José Hamilton Ribeiro, que, com apenas 20 anos, havia estreado na Folha da Noite, depois Folha de S. Paulo, em 1955, e se tornou uma inspiração para Severiano. Seis anos depois, em 1961, Ribeiro deixou o jornal para se juntar à Redação que estava sendo montada de Quatro Rodas, por Mino Carta, para a Editora Abril. Com ele levou dois garotos de Marília, colegas entre si desde os tempos que faziam pequenos jornais no grêmio da escola: Mylton Severiano da Silva e Woile Guimarães. Severiano se mudou para São Paulo em janeiro de 1960. Portanto, já morava na capital quando veio o convite de Ribeiro, e já atuava no segmento. Chegara, na verdade, com a intenção de estudar Direito por-

que gostava de política e tinha “preocupações sociais”. Sonhava em defender trabalhadores e sindicatos nos tribunais. Ou seja, “os mais fracos” – o povo, o Brasil. Tinha um bom exemplo em casa: quando é deflagrado o golpe militar em 1964, seu pai é preso, por fazer parte do Partido Comunista Brasileiro. Como a família passava dificuldades em Marília e também precisava trabalhar para se sustentar, recorreu a Woile, que chegou um ano antes e trabalhava na Folhacomo revisor. Conseguiu vaga de redator para o conterrâneo na seção de “Interior e Estados”. No ano seguinte, veio o chamado para Quatro Rodas. Entre o rigoroso expediente das 9 horas da manhã às cinco da tarde, na Editora Abril, e a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que cursava pela manhã e lhe exigia enorme empenho, a necessidade fez a balança pender para o primeiro. Deixou o curso na metade do terceiro ano. Encontrou um consolo que se mostraria verdadeiro. Ao


Jornal da Tarde, Quatro Rodas, Realidade, Bondinho e Ex(abaixo): Myltainho presente em publicações que marcaram uma época.

escolher o jornalismo, imaginou que nas páginas dos jornais e das revistas também cumpriria a tal função social tão idealisticamente defendida por seu pai. Além da Quatro Rodas, Severiano passou a colaborar no O Estado de S. Paulo, em 1965, juntamente com Mino Carta, com o propósito de fundar o novo diário do grupo, o Jornal da Tarde, que começaria a circular em 1966. Alguns como ele trabalhavam simultaneamente na Quatro Rodas e em O Estado de S. Paulo por algum tempo desde o ano anterior. Sua função era de redator e copy do caderno esportivo dominical, junto com Rolf Kuntz, Miguel Jorge, Guilherme Cunha Pinto e Luciano Ornellas. Logo em seguida, entraram para a mesma equipe Murilo Felisberto e Carlos Brickman, que exercitavam no suplemento uma espécie de balão de ensaio para o Jornal da Tarde, que seria lançado no começo do ano seguinte. Severiano participava de um acontecimento marcante na história do jornalismo nacional. Mas não era o único em que se metia. Da Quatro Rodas, passou a compor a Redação de Realidade, revista mensal que inovou com aspectos hoje bem destacados o que se fazia para as bancas na época, como matérias escritas em primeira pessoa, supervalorização das fotos e design gráfico pouco tradicional e contemporâneo, inovador, de vanguarda. Destacou-se também por suas grandes reportagens, pois permitia que o repórter “vivesse” a matéria por um mês ou mais, até a publicação. Em 2012, no seu livro Realidade, a Revista que Virou Lenda, lançado pela Editora Insular, recordou: “Há 47 anos, eu estava no Jornal da Tarde, de onde me passaria meses depois para Realidade, lançada em abril. O JTsacudiu o jornalismo diário, pela diagramação e pela linguagem. Realidadefoi mais fundo. Mexeu com as estruturas do ‘sistema’, desafiou os conservadores, os preconceituosos, quebrou tabus. E em plena ditadura militar. Neste momento, quase meio século depois, reflito sobre as perguntas que mais me fizeram os estudantes todos esses anos: por que não fazem mais uma revista como Realidade? Muitos abrem a boca de espanto quando digo que é porque a ditadura ainda não acabou”. Mylton Severiano contou certa vez que sua geração veio da experiência vi-

brante de ler os textos de nomes como Norman Mailer, John Hersey, Truman Capote e Tom Wolfe, entre outros. Referências que nortearam a primeira Redação de Realidade, cujo comando coube à dupla formada por Paulo Patarra (redator-chefe) e Sérgio de Souza (editor de texto). Curiosamente, não havia “repórteres”, mas “redatores” em seu expediente. Dois nomes não apareciam nos créditos iniciais, mas faziam parte do grupo: Roberto Freire e Severiano, então colaboradores freelancers. Descrito por Severiano como um sujeito elétrico, de um bom senso afiadíssimo, peitudo, apesar do físico esquelético, Patarra fazia a ponte entre a Redação e o comando da Abril. Enquanto isso, confiava na inteligência de sua equipe, na adoção de táticas e de estratégias para exercerem sinceridade em seus textos e revelarem a verdade sobre os problemas da vida brasileira. Para ele, Patarra se revelava “um dos subversivos mais fantásticos que conheceu: atirado, ousado, sujeito verdadeiro, colega até as raias da demência”, como mostraria anos depois. A moral e os bons costumes

À medida que a ditadura dava sinais de que não pretendia restabelecer tão cedo o regime democrático, a censura se incomodava cada vez mais com a revista da Abril. Em janeiro de 1967, por exemplo, Realidade lançou a edição especial “A mulher brasileira hoje”. Foram seis meses de reportagens e uma pesquisa encomendada a um dos institutos mais importantes da época, o Inese, sobre a sexualidade da mulher brasileira. Poucas horas depois de ter sido feita a distribuição de metade dos exemplares na capital paulista, a revista começou a ser recolhida por viaturas do serviço de vigilância e ronda especial da polícia, com apoio da Delegacia de Costumes de São Paulo. Os exemplares que ainda restavam na gráfica também foram confiscados e, em seguida, destruídos. A justificativa, segundo o juiz de menores Artur de Oliveira Costa, era de que a revista continha assuntos que ofendiam a moral e os bons costumes da época. No Rio de Janeiro, a mesma situação se deu, com exemplares recolhidos e a mesma medida da justiça. Entre outras ofensas à moral, a publicação estampava fotos de um parto natural, o que foi entendido como imoral e ofensivo. A pressão aumentou ainda mais depois que, em 13 de dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institucional nº5 (AI-5), pois estabelecia-se a censura prévia contra jornais e revistas, que passava a ser centralizada pela Polícia Federal em todo País. A edição daquele mês marcava o fim

do melhor período de Realidade. Com o ato, demonstrar inteligência crítica tornou-se algo muito perigoso para quem trabalhava em imprensa. Principalmente para a turma da qual Severiano participava, motivada principalmente por um idealismo transformador. “Nós, os comunicadores, éramos obrigados a falar por metáforas, nas entrelinhas. A mínima suspeita de ‘subversão’ podia nos custar a vida. Foi um tempo de queima de livros, enterro dos livros, livros atirados em latrinas, atirados no rio”, observou Severiano. Dissidências com a direção da Abril, enquanto isso, que acatava cada vez mais a pressão do regime militar, como diziam os jornalistas da Redação, levaram o grupo de redatores e repórteres a pedir demissão coletiva. Além de Sérgio de Souza, Roberto Freire e Eduardo Barreto, entre eles, claro, estava o incansável Mylton Severiano. Ao invés de procurar emprego individualmente, mantiveram-se como um coletivo e se ofereceram ao mercado, como uma equipe jornalística completa. Não deu certo e, como forma de sobrevivência, criavam uma pequena editora em forma de cooperativa, a Art & Comunicação, que marcaria a história da imprensa alternativa no Brasil com o lançamento do jornal O Bondinho, inicialmente para clientes da rede de supermercado Pão de Açúcar, mas que depois se tornaria independente, com venda em banca e portavoz da contracultura no Brasil, a partir de janeiro de 1972. Além disso, a Art & Comunicação criou a Grilo, um jornal tablóide de quadrinhos, e a Revista de Fotografia, ambas de 1971. Em dezembro desse ano, lançou o Jornalivro, uma das mais inovadoras inici-

ativas editoriais da época, com a republicação de clássicos, nacionais e estrangeiros, em sua maioria caídos em domínio público, a preço de um exemplar de jornal de banca. No O Bondinho, publicavase reportagens grandes, quase ao estilo da Realidade, e as capas assumiram uma estética mais ousada. A censura, no entanto, não estava para brincadeira, naquele que foi o período mais repressor da ditadura. O Bondinho parou de circular e o Grilo foi vetado, por causa de seus ousados (e eróticos) quadrinhos de vanguarda. Em seus lugares, existiu, entre 1973 e 1975, com periodicidade mensal, o jornal Ex-, que se tornou um dos expoentes da chamada mídia alternativa, que deu continuidade ao projeto da turma de Severiano de fazer reportagens aprofundadas, textos ácidos e imagens provocativas. Saíram 16 edições e quatro especiais. Dentre eles, o especial que desmascarou o suposto suicídio do jornalista Vladimir Herzog, enquanto era torturado pela polícia no Doi-Codi. A manchete e a matéria de capa do 16º acabaram condenando o jornal: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós – a morte do jornalista Vladimir Herzog”. Era outubro de 1975 e o jornal vendeu 50 mil exemplares, depois de duas reimpressões. A reportagem histórica foi coordenada por Severiano e pelos editores Kalili e Hamilton Almeida Filho, e se tornou um acontecimento histórico que abriu as veias da ditadura militar. O regime opressor passou e Mylton Severiano se manteve sempre alerta: crítico, independente, defensor do jornalismo honesto e engajado, sem fugir da ética um único milímetro. Nos quase 40 anos seguintes, trabalhou na Rede Globo, Rede Cultura, TV Tupi e na Caros Amigos, onde reencontrou parte da turma de Realidadee foi colunista e editor-executivo até 2009. Escrevia uma coluna na revista Almanaque Brasil de Cultura Popular, junto com Katia Reinisch, sua companheira. Publicou uma série de livros importantes, como Se Liga – o Livro das Drogas, a Biografia de João XXIII: Um Século de Boa Vida, em parceria com Jorginho Guinle; Paixão de João Antônio e Nascidos para Perder – História do Jornal da Família que Tentou Tomar o Poder Pelo Poder das Palavras. Colaborou na edição dos livros de seu amigo Palmério Dória, Honoráveis Bandidos O Príncipe da Privataria. Tocador de acordeão, ia lançar seu disco na metade deste mês de maio. Deixou três filhos e sua mulher. Estava cheio de planos. Não pretendia parar tão cedo.

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MARIA JULIA COSTA SEVERIANO

VIDAS

Precisão, generosidade e defesa do mais fraco O registro de um repórter que não deixava ninguém desistir do jornalismo, apesar de suas posições críticas em relação à mídia.

P OR L UANA S CHABIB

Estou em São Paulo há seis anos. Alguns deles passei na banguela, sem freio, trabalhando 12 horas por dia, jornada dupla. Aprendi muita coisa – ter coragem e foco – e um personagem se fez essencial. Fato é que, antes de chegar à maior cidade do País, quando estava terminando meu curso de Jornalismo na Universidade Federal do Mato Grosso-UFMS, em Campo Grande, decidi finalizar minha monografia por aqui. Meu trabalho era sobre a reportagem como elemento de estranhamento da realidade. Tinha 20 anos e muitas expectativas. Queria encontrar o que poderia ser tão ousado quanto o gonzo jornalismo, conceito estabelecido por Hunter Thompson, no Brasilzão. Tão transformador quanto o jornalismo literário. É claro que existia. Existiam João Antônio, Narciso Kalili, Sergio de Souza, a turma que a revista Realidade formou. Antes, existiam Graciliano Ramos e Euclides da Cunha, entre outros. Com tantas referências, qual a chance de não me perder no objetivo do meu trabalho de conclusão de curso (TCC)? Foi aí que decidi entrevistar quem fez história e estava atento aos “novos” tempos. Consegui falar com o grande Sergio de Souza – generoso e com pouco tempo – que me concedeu palavras certeiras. E, ao passar pela Redação da Caros Amigos – no que restava dos tempos áureos, que nunca mais retornarão –, encontrei Mylton Severiano. À época, Myltainho assinava na publicação uma coluna chamada Enfermaria. 36

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Ele explicava: “se a grande parte da mídia gorda for jornalista, eu não sou, e se eu sou, eles não são. Então, se eu não sou, o que eu sou? Um louco. Daí a enfermaria”. Isso há sete anos, quando conheci quem viria a se tornar grande referência para mim, que viria a ser um grande e presente amigo até o momento de sua partida – tão cedo... Myltainho me trouxe para trabalhar em São Paulo depois da entrevista que me deu. Foi em outubro de 2007, um papo que ampliou tanto minha visão. Ele me ensinou que o estranhamento com a realidade não era só questão de formato, de estilo, mas de atenção, ouvidos e dedicação à informação e ao povo. Uma lição que começou com a conversa a seguir, até hoje inédita: Como você entende o jornalismo que faz? Jornalismo literário, jornalismo investigativo, humanizado? Você acredita nestas divisões? Myltainho – Na verdade acho que nunca pensei sobre isso. É jornalismo. Mas, como toda e qualquer atividade humana, ela não é estanque. Você pode ser um marceneiro especializado em mesas, não pode? Mas, isso não significa que ele não seja marceneiro. Então, você é jornalista. O pessoal quer saber o que eu sou, jornalista político, de esportes... Hoje, tenho a alegria, o prazer de escrever o que eu quiser! As pessoas perguntam que tipo de jornalismo você faz? Se é de direita ou de esquerda? Myltainho – Olha, eu acho jornalismo de esquerda pleonasmo. Jornalista nessa

situação de direita ou esquerda é uma armadilha. O que se convencionou desde a França, no século 18, foi que os parlamentares, quando em determinada situação eram a favor das medidas populares, se sentavam do lado esquerdo. Os que eram filhos da puta ficavam do lado direito (risos). Eles ficavam a favor da reação, do conservadorismo, da realeza, do massacre. Então, convenciona-se que a esquerda é ser a favor do povo, do avanço, do progresso; e direita é a favor do atraso – tudo isso a grosso modo. Então, como é que pode um jornalista ser a favor do atraso? Não pode. Como é que você vê a mídia de hoje? Myltainho – Eu já fui até a esquina hoje (eram oito da manhã) e a única diferença entre a manchete do Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo – os dois principais jornais do Estado mais rico do País – é o tipo da fonte. Impressionante. No sábado, às 11 da manhã, eu já vi o carro de entrega do Diário Catarinense, que é o principal jornal de Santa Catarina, chegar na banca, trazendo o jornal de sábado e domingo juntos (risos). Nem quando eu que era fanático por ficção científica teria condições de imaginar tal proeza. Eles já sabem todas as notícias que vão acontecer até a meia-noite de domingo (risos)... e hoje, as duas manchetes iguais. Isso me faz lembrar um documentário recente, Encontro com Milton Santos (O Mundo Global Visto do Lado de Cá, dirigido por Sílvio Tendler, 2006). Quando a notícia é sobre a queda da bolsa de Nova

York, essa manchete sai no mundo inteiro. De Ribeirão Preto até Campo Grande. No documentário, tem uma seqüência genial. Pode descrevê-la? Myltainho – Um sujeito – chefe de Redação de um jornal – está muito aborrecido, porque a manchete do dia é igual a de todos os jornais do mundo. Eis que chega um fotógrafo e lhe diz: “Chefe, tenho uma manchete exclusiva para você”. O fotógrafo conta que no Central Park havia uma menininha passeando pelo gramado, quando aparece um cachorro enorme e feroz, que avança para devorar a menina. Eis que aparece um sujeito correndo, ele se atraca com o cachorro e lhe dá uma gravata. O cachorro está morto e a menina salva. “Maravilha! A manchete vai ser: Novaiorquino salva menina de cachorro feroz”, diz o chefe. Mas, o fotógrafo explica que ele não era nova-iorquino. O chefe continua: “Ah não? Tá bom, HERÓI AMERICANO SALVA MENININHA DE CACHORRO FEROZ!”. E o fotógrafo explica: “Desculpa chefe, ele não era americano... era árabe”. Aí o chefe gela e fala: “Já sei... TERRORISTA ÁRABE MATA CRUELMENTE CACHORRO AMERICANO” (risos). É mais ou menos esse o retrato do que eu acho de como é a mídia hoje. E no Brasil? Myltainho – No Brasil, a grande imprensa fica com aquele mito de imparcial, mas vamos analisar as duas manchetes idênticas que estão na banca. É muito possível que tenham acontecido ontem,


coisas tão importantes. Mas aquela notícia é mais interessante para puxar o País ladeira abaixo, o que vai, indiretamente, atingir o Governo Lula, contra quem eles vêm, há cinco anos, lutando para derrubar. Mas isso não é novidade, é? Myltainho – Quando eu comecei em jornalismo – e era mocinho – nós já íamos trilhando, desde o fim da ditadura Vargas, quase 20 anos de democracia. O processo estava bem avançado. Depois do fim da ditadura militar, acredito que não atingimos ainda o ponto em que estávamos. Porque a ditadura não acabou. Eu digo isso como se fosse uma brincadeira, um jogo de palavras, mas se você for analisar a rigor, os fenômenos humanos não são como a física clássica (dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo), mas sim, a grosso modo, como física quântica (estar morto e vivo ao mesmo tempo). Os fenômenos humanos têm uma continuidade no tempo. Explique... Myltainho – A ditadura militar acabou formalmente em 1985, quando Sarney tomou posse e Figueiredo saiu pelas portas dos fundos e não quis nem passar a faixa de tanta vergonha, mas isso é apenas uma data. Hoje, o que eu vejo na mídia me faz pensar que a ditadura não acabou. Cadê o Última Hora de Samuel Wainer? Cadê um jornal que está do lado do povo? Acabei de entregar ontem a “Enfermaria” de novembro. Eu estava na Redação, quando chegou a faxineira. Eu dei bom dia. E Benedita me responde: “Estou cansada”. Eram dez horas da manhã. Ela tinha acabado de chegar. Mas, sabe que horas ela acordou? Cinco. Sabe onde? Aqui em São Paulo. Lá em Guarapiranga, em um bairro a 16 km da Praça da Sé. Ela levantou às cinco da manhã, seis horas ela estava no ponto. Três conduções, quatro horas para chegar no trabalho. O que mais? Myltainho – Há quatro meses caiu um avião em Congonhas, o acidente com o vôo JJ 3054 da Tam. Morreram 199 pessoas e o que a mídia fez para dizer que a culpa era do Lula, não tava escrito. O que fez a Folha e o Estado? Eles são tão geniais, que tiveram a mesma idéia... Botaram um repórter na rodoviária e outro na ponte aérea, na mesma hora, para comprovar o caos. O repórter que foi de ônibus, levou as cinco horas que sempre levam de ônibus. E o repórter que foi pra Congonhas, levou 16 horas para chegar ao Rio de Janeiro. Mas, por que eles não vão lá pra casa de Benedita? Pegar um ônibus às seis da manhã em Guarapiranga para vir para a Vila Madalena? Por que não fazem essa matéria? Por que esperam uma tragédia? Porque não estão do lado do povo. É uma matéria que o Última Hora faria todo dia. Aliás, a imprensa perdeu aquilo que se chama de suíte – um assunto que não é abandonado. A ditadura não acabou. E como você virou jornalista? Myltainho – Eu já era jornalista. Sempre fui primeiro aluno na classe de portu-

guês, aquela coisa. Eu que fazia jornalzinho do ginásio. Vim para São Paulo fazer direito, mas precisava trabalhar. Comecei em 1960 e logo entrei na Folha. Pensei: “é isso aqui o que eu quero”. Meu pai queria que eu fosse advogado, mas veio o golpe militar e ele foi preso porque era do Partido Comunista. E aí eu tive a oportunidade de sair da universidade. Tive que segurar as pontas da família. Esse foi o álibi para continuar no jornalismo. Meu pai ficou seis meses preso e veio se refugiar em São Paulo. Venderam tudo em Marília e vieram. E eu fui viver de reportagem.

em comum. Mas, na nossa fórmula, eram reportagens de 18 laudas, em média. A lauda tinha 20 linhas de 70 toques, 1.400 toques por lauda. Uns 25 mil toques!

Como foi a experiência na revista Realidade? Myltainho – A Realidade foi o eldorado da nossa geração. Em média tínhamos 26 anos. Era 1966, eu ia fazer 26 anos, o Sérgio de Souza tinha 31, Paulo Henrique Amorim era o mais jovem, tinha 21 ou 22 anos. Éramos todos jovens com talento reunidos lá. Se estivessem separados, um na Folha, outro no Jornal do Brasil, outro na Veja, nada aconteceria. Foi histórico, estávamos ainda sob a vigência da Constituição de 1945, embora fosse dois anos após o golpe militar – mas estes ainda estavam cheios de dedos, tentando simular uma suposta democracia. Victor Civita apostou naquela turma reunida e abriu os cofres para as reportagens.

Você acha que o jornalista deve ser apenas um observador ou ele pode intervir? Myltainho – Segundo a física, a observação já interfere com o fato. Vou narrar um caso da revista Realidade. Narciso Kalili e um fotógrafo foram fazer uma reportagem numa ilha de pescadores no Nordeste, se não me engano em Alagoas. E, como eu disse antes, a editora Abril não negava recursos: além de pagar os melhores salários do País, os repórteres ainda viajavam com uma verba e tinham, em geral, um mês para fazer reportagem. Eram dez dias no lugar e mais uma semana para escrever. Quando Narciso chegou no lugarejo viu muita miséria. Então, ele pegou toda a verba que tinha, comprou comida e distribuiu para o povo (risos). Na seqüência, ele mandou recado para a sucursal. Paulo Patarra, que era o redatorchefe à época (e que me contou essa história), recebeu o bilhete que era muito “carinhoso”. Começava com um “Paulinho, aconteceu o seguinte...”, na sequência ele contava o que havia acontecido e fechava com um “acabou a verba, me mande mais. Pau no seu cu. Se vira!” (risos). Patarra não podia nem mostrar o papel para Roberto Civita, que era filho do homem, para justificar a grana. Então, ele jogou fora e o reescreveu contando uma outra história, na qual Kalili havia chegado no lugarejo, alugado um jipe, que atolou, por isso chamou um trator para desatolar do barro e, assim, a verba havia estourado (risos). No fim, Roberto autorizou a grana. Agora, eu vi um caso no início deste ano, em que uma mulher pulou para salvar o filho e o fotógrafo não fez nada para ajudá-la. Acho que esse cara não agiu corretamente; primeiro salvar a mulher e depois tirar as suas fotos mirabolantes. O que é diferente do caso de José Hamilton Ribeiro. Ele contou pra mim que, quando pisou na mina, depois da fumaça baixar, a primeira coisa que ele viu foi o fotógrafo japonês registrando tudo. Mas, a situação era diferente, pois havia médicos e enfermeiros por perto, e a única coisa que o japonês tinha que fazer era fotografar. Ele estava sentado no chão com aquela perna destroçada...

E o que você acha que fez a revista ser o que ela foi? Myltainho – É o que eu disse, a gente estava vivendo anos de democracia, o País estava legal, o povo todo se mobilizando cada vez mais, querendo as reformas de base. E a gente tocava nos problemas, falávamos sobre a fome, o petróleo, as minas de carvão... Você se inspirava em algum escritor ou jornalista? Myltainho – Todos ali eram grandes leitores, sem exceção. Aliás, estou entrevistando todos, porque estou escrevendo um livro sobre a revista (o livro Realidade - História da Revista que Virou Lenda foi publicado em 2013 pela Editora Insular) eu já falei com quase todos, menos os que morreram e mais uns três que faltam para eu entrevistar. O engraçado é que o que eles têm em comum é que todos gostavam de ler desde crianças. Outro dado é que, no geral, começaram a ler Monteiro Lobato. E é esta minha história também, com sete anos, meu pai me deu a coleção infantil de Monteiro Lobato e eu ficava lá me divertindo. Eu adorava ficar lendo em voz alta, eu ria na sala e minha mãe ria na cozinha. Como não rir da onça que tremia que nem um manjar branco? (risos) Na revista Realidade todo mundo estava a fim de fazer jornalismo, assim criamos uma fórmula brasileira. Os caras falavam que estávamos fazendo o new journalism... Mas, eu nunca tinha ouvido falar nisso. E quando ouvi, fui atrás pra saber o que era aquilo. “Ah, é o Gay Talese”. Quando li, pensei: “a gente já tava fazendo aquilo há mais de ano”. Se você for fazer a comparação, existem, sim, traços

E hoje? Você acha que a imprensa investe em reportagens? Myltainho – A mídia gorda não está interessada em tocar em problemas. Salvo em situações excepcionais, em que eles podem fazer uso disso pra atingir o governo, como no caso do avião que cai. Daí eles até investem uma passagem de avião para o Rio de Janeiro e outra de ônibus.

Como você produz sua Enfermaria? Myltainho – Anoto tudo o que vejo. Tudo em papelzinho. Colecionando anotações do que acontece na mídia, daí três, quatro dias antes do fechamento da revista, eu sento e escrevo tudo. Faço “micro re-

portagens”, como a história do Rolex do Luciano Huck... Eu não escreveria uma coluna dessas com 20 anos, foi um acúmulo de experiências, que me permitiu escrever isso. Ela é única. Assim, como as outras colunas. Mylton, acho que é esta a brecha para te perguntar sobre o jornalismo gonzo... Ou sobre o estranhamento da realidade, motivo que me trouxe para conversar com você. Myltainho – Gonzo remete, para mim, ao incrível Gabriel García Márquez. Ele deu uma entrevista em que falou que o jornalismo é um gênero literário. E que em dado momento que um texto, o autor tem que ter gonzos (de gongar) – tem que chamar o leitor para mergulhar no texto. Ele queria dizer, com isso, que tanto a literatura, quanto o texto jornalístico, têm que fazer você mergulhar no texto. Você vai lendo aquilo e volta e meia, tem que ter um elemento que retome a imagem, que traga de volta o interesse na leitura. Cada um descobre a sua carpintaria. E o anti-gonzo? O anti-gonzo são os chamados manuais de Redação. A imagem que me vem à cabeça quando penso em jornalistas que têm que seguir um manual de Redação é a de alguém, ao telefone ou na frente do computador, preenchendo um formulário. Sérgio falou algo neste sentido. Disse que para fazer sentido era preciso “escrever sobre algo que te agrada muito, ou sobre o que te desagrada profundamente”. Mas, o que você gosta de ler, hoje, na mídia? Myltainho – Leio Sergio de Souza, ele é tão low profile que nem assina... Aliás, ele foi meu professor de texto, aprendi 90% com ele. Não ser econômico, nada de se vangloriar, de ser solidário com os mais fracos, aprendi uma porrada de coisas com ele, mas fora da revista em que eu estou, eu gosto de ler alguns textos da Carta Capital, o Mino Carta – ele tem uma cultura vasta e uma boa ironia. Tem bons textos a serviço do mal, como Diogo Mainardi, né? Ele escreve bem, não posso deixar de reconhecer, mas isso não significa nada. O Hitler tocava violino e pintava umas aquarelas até legais (risos). Nota: A entrevista acabou naquele momento. Mylton saiu correndo para a Redação e eu fui até a banca. No dia 23 de outubro de 2007, estava estampada na primeira página da Folha e do Estado a MESMA manchete: “Remessa de lucros piora contas externas”. Em maio de 2008, fui trabalhar com Myltainho. Pude constatar que a generosidade e paciência dele eram cotidianas. Depois de sair da revista, Mylton publicou dois livros com seu parceiro Palmério Dória. Honoráveis Bandidos (2009) e Príncipe da Privataria (2013), em que colaborei humildemente com uma suíte sobre a Eletropaulo. Ele tinha sede pela reportagem, pensamento rápido, voz mansa, texto incrível e generosidade exemplar. Ele transformou o caminho de quem passou por ele. Nunca perder a coragem de narrar.

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VIDAS ACERVO ABI

Fernando Segismundo, o conciliador O veterano jornalista, morto no Rio aos 98 anos, ajudou a escrever a História da ABI, entidade que presidiu nos anos 1970 e 2000. P OR P AULO C HICO

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ACERVO ABI

O último 21 de maio foi demasiadamente penoso para a Associação Brasileira de Imprensa. Morreu na manhã daquele dia, uma quarta-feira, Fernando Segismundo, ex-Presidente da Casa. Prestes a completar 99 anos, o que ocorreria em 5 de julho, o jornalista morreu de infecção generalizada no Hospital São Lucas, em Copacabana, zona sul do Rio. Ele estava internado há cerca de um mês, devido a uma fratura na clavícula, em decorrência de uma queda. Segismundo esteve à frente da ABI em duas ocasiões. Em dezembro de 1977, assumiu a Presidência durante o licenciamento médico de Prudente de Moraes, neto, e foi eleito para permanecer no cargo até maio de 1978. Mais de duas décadas depois, voltou a ocupar a cadeira, entre os anos de 2000 e 2004. Segismundo nasceu na cidade de Braga, em Portugal, filho do português Antônio Augusto Segismundo Álvares Pereira e da enfermeira brasileira Paulina do Nascimento Esteves. Aos 18 anos, aprovado em um concurso público, foi estimulado por um colega a seguir carreira no jornalismo. Nas primeiras décadas do século 20, a profissão de jornalista não era remunerada e muitos profissionais acumulavam a função com cargos públicos. Sua estréia nas Redações ocorreu em 1933, trabalhando à noite no jornal A Pátria, fundado por João do Rio e mantido por membros da colônia portuguesa no Rio. Logo depois, foi contratado pelo Diário de Notícias, onde trabalhou por quase quatro décadas – de 1937 a 1974. Lá exerceu diversas funções, como editor da seção educativa e editorialista. “Eu passei em um concurso público muito jovem. Um dos cidadãos que também entrou comigo, que já era um homem feito – eu era garoto, tinha 18 anos –, me disse: ‘Você tem um estilo de falar e de escrever interessante. Você já foi jornalista?’. Ele me botou em um jornal antigo chamado A Pátria. Eu não recebia, mas gostei, porque naquele tempo eu era solteireco e o trabalho no jornal era à noite.

Então, eu saía de lá meia-noite, às vezes duas horas da manhã, e não havia assaltos, não havia esses problemas de hoje. Eu voltava para casa, na Tijuca, de bonde. Eu me tornei jornalista assim: acompanhava pessoas mais velhas na Redação que apostavam em mim, por eu ser um jovem estudante”, contava Segismundo sobre o início de carreira. A passagem pelo jornal seguinte, por certo, constituiria sua principal experiência profissional. “O Diário de Notícias foi um grande jornal, essa é a verdade. Era um jornal democrático – devo ser honesto –, rigorosamente democrático, muito bom. A UDN mandava e a UDN era democracia para um grupo, não para o povão todo. Mas o jornal era limpo, vivia de anúncios, não de cavações, golpes ou algo parecido. Foi um dos melhores jornais que eu já conheci. Era bem escrito, por gente muito importante: era o jornal dos militares, eles caprichavam, mandavam assuntos. Dentro do possível, era um jornal muito correto, muito decente, muito limpo. Para a imprensa da época, foi um jornal líder. Pagava mal, às vezes não pagava, a mim mesmo ficaram devendo muito dinheiro, mas paciência. Eu permaneci porque era um jornal realmente limpo. Quando dizíamos: ‘Sou do Diário de Notícias’, as pessoas respeitavam. Realmente era um jornal importante, foi um dos maiores jornais do Rio de Janeiro. Agora ninguém fala nele, acabou. Sempre gostei mui-

Fernando Segismundo cumprimenta seu amigo, o ex-Presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho.

to de imprensa. Trabalhei em jornais bons, jornais medíocres, pagos, não pagos. Mas estamos aqui, vivos”, recordou em entrevista ao Centro de Cultura e Memória do Jornalismo, em setembro de 2008. No mesmo período em que atuou no Diário de Notícias, Fernando Segismundo ajudou a fundar o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro, ao qual serviu como professor de cursos pioneiros de Comunicação, além de intervir na política de relacionamento da categoria com o empresariado. A partir de 1949, passou a atuar na administração da ABI, da qual era sócio benemérito. Ao longo de 54 anos, exerceu as funções de secretário, bibliotecário, diretor cultural, conselheiro, presidente do Conselho Administrativo e da Diretoria – além de Presidente da Casa nos dois períodos já citados. Em 1957, foi secretário geral do VII Congresso Nacional dos Jornalistas, realizado no Rio de Janeiro com o intuito de reunir e aproximar profissionais de todos os Estados do País. Além da ABI, outra importante instituição representou uma espécie de lar profissional para o jornalista. “Primeiro, estudei no Colégio Pedro II. Depois, logo que acabei os estudos, prestei concurso e fui ser professor – profissão que exerci durante 37 anos”. Na tradicional escola federal, Segismundo lecionou História até a sua aposentadoria, aos 70 anos. Em 2001, foi homenageado com o título de Professor Emérito pelo Colégio, que tam-

bém já havia concedido a ele o título de Aluno Eminente. Entre os vários livros que escreveu, destaca-se o título Colégio Pedro II: Tradição e Modernidade. Fernando escreveu também Imprensa Brasileira – Vultos e Problemas, em que faz uma retrospectiva da ABI, de Gustavo de Lacerda à Era Getúlio Vargas. Em Barbosa Lima Sobrinho — o Dever de Utilidade, dedicouse a resgatar a obra do também ex-Presidente da entidade. Segismundo sempre fazia questão de destacar o papel da Associação que presidiu. “A ABI é curiosa, foi criada para reunir jornalistas, fazer deles uma força, se não de atuação, de resistência. Há uns 50 anos, no meu tempo, a coisa era complicada. Então, a ABI foi, de fato, uma casa de amparo, de sustentação de certos princípios, por mais que ela fosse cheia de governistas. Não dominada por eles, mas eles também estavam lá. A casa sempre contou com pessoas de bom senso, de boa vontade, que freavam destemperos que, de vez em quando, a deslocavam. Sendo assim, em tese, o papel da ABI foi bom. De todos nós, ex-Presidentes, Herbert Moses era o mais inteligente, o mais capaz. Eu tive a sorte de trabalhar com ele.” Filho único de Segismundo, que deixa viúva a esposa Gioconda, com quem esteve casado por 55 anos, o advogado Cesar Cavaliere falou com o Jornal da ABI. “Meu pai tinha adoração pela ABI, na verdade, vivia em função da Associação. Tinha


João Carlos Sampaio, uma rara unanimidade P OR C ELSO S ABADIN

Com o perdão do mau jeito, que merda é fazer uma matéria sobre a morte de um amigo! Principalmente quando este amigo tinha 44 anos, um talento incrível, um profissionalismo invejável, rara inteligência e bom humor a qualquer prova. Não é porque morreu, não, mas João Carlos Sampaio era unanimidade entre os críticos de cinema do Brasil: não havia quem não o admirasse. Nascido em Aratuípe, no interior da Bahia, João zombava de si mesmo com a lenda da preguiça baiana: ao mesmo tempo em que fingia ser um preguiçoso bonachão, trabalhava incansavelmente como uma formiguinha. Mesmo porque ser crítico de cinema era apenas uma das atribuições que ele mantinha já há mais de 20 anos no jornal A Tarde, em Salvador, onde atuava também como o principal jornalista especializado na área de cultura. Lembro-me que, enquanto realizava a cobertura jornalística do Festival de Gramado de 2008, João foi surpreendido por um telefonema da Redação que lhe informava sobre a morte do conterrâneo Dorival Caymmi. Naquele momento, João sumiu. Ninguém o viu mais o dia inteiro. No dia seguinte ficamos sabendo que ele se fechara em seu quarto, onde ficara por horas, munido de telefone e internet, entrevistando diversas personalidades culturais do Brasil e escrevendo uma belíssima matéria sobre Caymmi para A Tarde. Mesmo distante, no Rio Grande do Sul, João era imprescindível para o diário baiano. Além disso, fazia serviços de curadoria para festivais de cinema, coordenava debates entre cineastas e imprensa, dava palestras, aulas e oficinas de crítica de cinema, e recentemente até atuava como ator em alguns filmes produzidos por amigos. Amigos, por sinal, que João fazia com a maior facilidade. Extremamente comunicativo, era recebido de braços abertos em qualquer roda de conversa, não apenas pelo seu afiado e inteligente humor, como também pela sua incondicional disponibilidade em ajudar os colegas, fosse o estagiário recém-chegado, fosse o mais experiente dos editores. Não era raro vêlo tentando resolver problemas de conexão de internet ou de rede de computadores para auxiliar colegas sem a mesma habilidade. Fã de tecnologia, era antenado com todo e qualquer novo aplicativo ou dispositivo eletrônico que pudesse ajudar em seu trabalho. Invariavelmente desenvolvido fora de sua querida Bahia. “Sei que estou em casa quando percebo que conectei a rede doméstica”, chegou a escrever certa vez, após mais uma de suas intermináveis viagens cobrindo festivais de cinema por todo o Brasil. Foi numa delas que João repentinamente nos

REPRODUÇÃO

uma linha de atuação mais representativa, de cunho político. Não era muito afeito às questões administrativas. E tinha por princípio sempre confiar nas pessoas, o que, em certas ocasiões à frente da ABI, chegou a custar-lhe algumas decepções. Sua primeira gestão foi em um dos períodos mais difíceis da história para o trabalho dos jornalistas: a ditadura militar. Ocupou o cargo entre os anos de 1977 e 1978. Ele mesmo foi um dos muitos profissionais da imprensa brasileira que foram presos e acusados de subversão, e teve que responder a processos por isso”, conta ele, que segue em sua avaliação sobre o pai. “De convívio ameno, irônico, só desfrutou de admirações e amizades onde tenha trabalhado. Impossível alguém não ter se rendido à sua simpatia e competência. Amaciava desavenças e recriava ambientes aprazíveis. Gostava de sentar-se à mesa sem horários ou obrigações, ensinando de tudo a todos. Bondoso, amigo, era considerado um pai e respeitado pela sabedoria e pela simplicidade. Distinguiu-se no cenário brasileiro como professor, historiador, orador, acadêmico, jornalista, político e figura humana. Perdendo-o, perde o País um cérebro privilegiado, um espírito cívico atento, um afirmador da verdade que buscou desde a juventude até o declínio físico”. O colega Milton Coelho da Graça soube traduzir bem o papel desempenhado por Segismundo à frente da Casa dos Jornalistas. “Ao lado de Prudente de Moraes e Barbosa Lima Sobrinho, ele constituiu o trio de Presidentes com que a ABI soube enfrentar a ditadura militar sem vacilações, sem medo, sempre coerente com a idéia básica de defender a imprensa e os jornalistas. Não tive a oportunidade de trabalhar com ele em Redação, mas convivemos dentro das dependências da ABI, onde por diversas vezes assumi assento no Conselho. Sempre fui um soldado fiel do professor Fernando, que foi um modelo de jornalista com idéias claras sobre a liberdade de imprensa e como defendêla. Ele tinha a coragem e a sabedoria de se aliar com os patrões quando necessário. Sabedoria de compreender que a defesa de uma imprensa livre é essencial tanto para o dono do jornal quanto para o profissional.” Além de lecionar História no Colégio Pedro II, Segismundo trabalhou como professor de diversas disciplinas – Geografia, Português e Organização Social e Política do Brasil – em escolas particulares e Faculdades da área de Humanidades. Atuou no Ministério da Educação, em diferentes fases, junto à Divisão de Ensino Superior, no Serviço Nacional de Radiodifusão Educativa e no Instituto Nacional de Cinema Educativo. Era membro do Pen Clube do Brasil, da Academia Carioca de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O corpo do jornalista foi enterrado no Cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, na manhã do dia 22 de maio.

deixou. Na madrugada de 2 de maio, último dia do Festival de Cinema de Pernambuco, ele sentiu-se mal no hotel e pediu ajuda a um colega hospedado no quarto ao lado, que rapidamente o levou ao hospital. Mas teve um enfarto fulminante assim que lá chegou. Sempre achei clichê dizer que “a notícia caiu como uma bomba”, mas esta caiu. Havíamos tomado café da manhã e almoçado várias vezes juntos durante a cobertura do Festival, que realizávamos naquela semana. Havíamos também visitado juntos, em Recife, o recém-inaugurado Museu feito em homenagem a Luiz Gonzaga. E, como sempre, havíamos nos divertido muito. Absolutamente nenhum sinal que existia algo de errado com o coração de João se manifestara naqueles dias. Nacionalista, ele reclamou comigo sobre a mania dos jovens brasileiros de torcer para times europeus. “Não quero nem saber da Champion´s League; meu negócio é a Lampion´s League, que é a Copa do Nordeste”, me disse em mais uma de suas infinitas frases de efeito. Uma de suas preferidas era iniciar uma conversa dizendo “Não é pra me gabar não, mas eu estou com muita fome...!”. Durante aquela semana ele também me falava, com entusiasmo, das vantagens de sincronizar o Windows Phone ao computador e atualizar imediatamente todos os dados e informações. Seu pensar era sempre jornalístico. Pelas redes sociais, era um feroz combatente do clã da família de Antonio Carlos Magalhães, ao mesmo tempo em que se orgulhava das novas universidades federais construídas pelo interior da Bahia. Só não usava a palavra “Bahia” para se referir ao time adversário de seu querido Vitória. Sempre dizia que o jogo era entre “Vitória e aquele outro time”. Irritava-se quando alguém dizia que o Vitória era rubro-negro como o Flamengo, e partia a explicar, a quem quisesse ouvir,

que o Vitória foi o primeiro time rubronegro do Brasil, e foi o Flamengo que o copiou. E mais: didaticamente explicava que o time foi fundado por negros recémlibertos da escravidão, e que o vermelho e o negro foram escolhidos em homenagem à Pomba Gira. Percebendo seu entusiasmo e conhecimento pelo tema, propus que ele fizesse um documentário sobre o Vitória, ao que ele prontamente recusou, maliciosa e mentirosamente: “Mas isso dá uma preguiça...” Certa vez, durante uma entrevista coletiva, a atriz Patrícia Pillar perguntou se João era nascido em Salvador, ao que ele respondeu negativamente: “Não, sou de Aratuípe”. Patrícia, então, disse: “Não conheço”, e João prontamente rebateu: “Não faz mal, nem na Bahia o pessoal conhece”. Talvez o baiano pouco conheça Aratuípe, mas eles conheciam João Sampaio. Houve minuto de silêncio em jogos oficiais do Campeonato Brasileiro, inúmeras homenagens em vários veículos de comunicação, e até o ator baiano Wagner Moura dedicou a primeira exibição no Brasil de seu filme, Praia do Futuro, ao jornalista, que também foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Críticos de Cinema-Abraccine. No dia seguinte de sua morte, o festival Janela de Cinema, que também acontece em Pernambuco, anunciou a criação do “Prêmio João Sampaio para o filme que melhor representar a alegria de viver”. O corpo de João Sampaio foi velado na sua cidade natal, no saguão do cinema que ele próprio articulou politicamente para que lá fosse construído. Sua, digamos assim, “missa de sétimo dia” foi, no mínimo, inusitada: críticos de cinema de todo País se mobilizaram pela internet para que em várias capitais sua memória fosse saudada, uma semana após a sua morte, com brindes de cerveja em rodas de amigos. João teria gostado.

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