Resumo Mostrar como a negociação coletiva que se processa entre trabalhadores e as empresas de exploração de minérios na região dos Carajás modifica a ideia de que a autocomposição seria a forma ideal para solução dos conflitos trabalhistas, em virtude do extraordinário aumento de ações que tem por objeto matéria disciplinada em acordos ou convenções coletivas, nos quais observa-se a renúncia por parte dos sindicatos dos empregados de direitos consagrados em lei, sem qualquer vantagem em contrapartida. Em seguida, evidenciar que os direitos em questão são fundamentais e incidem nas relações entre particulares, principalmente nas marcadas pela desigualdade. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais faz com que ele se irradie para todas as relações sociais, mesmo àquelas das quais não participa o poder público. Assim, na elaboração de uma norma coletiva estão os sindicatos representativos dos empregados vinculados aos direitos fundamentais não podendo postergá-los ou reduzi-los, ao fundamento da autonomia privada.
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A NEGOCIAÇÃO COLETIVA E A EFICÁCIA VINCULANTE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.
Rosita de Nazaré Sidrim Nassar1 1 – INTRODUÇÃO
Dentre as diferentes formas de solução de conflitos a autocomposição sempre foi proclamada como a melhor, a mais civilizada por implicar na criação de regras para disciplinar o relacionamento entre os próprios entes que as instituem. No âmbito do Direito do Trabalho se manifesta por meio da negociação coletiva, apontada como ideal para o futuro das relações laborais. Se cogitava que o conteúdo do Direito do Trabalho seria totalmente negociado e, por conseqüência, diminuiria o volume dos litígios submetidos à apreciação do Poder Judiciário. Não se vê a concretização de semelhante expectativa diante da verdadeira avalanche de ações que ingressam quotidianamente na Justiça do Trabalho, cujo objeto é exatamente a discussão de cláusulas de normas coletivas, seja de convenções, seja de acordos coletivos, sobretudo nas Varas trabalhistas situadas na região minerária dos Carajás. Essas cláusulas, sob o fundamento de privilegiar a negociação coletiva, consagram autênticas renúncias de direito e o pior é que se trata de direitos fundamentais, de natureza indisponível, de titularidade indiscutível, tranquilamente consagrados na legislação vigente, inclusive na Constituição, portanto inegociáveis. Exemplos delas são as que os empregados renunciam às horas extras, a integralidade de seu pagamento e parte do tempo destinado ao repouso seja intra ou interjornada, seja ao semanal. Outras tem por objeto direito que podem até ser alvo de negociação, porém esta não ocorre, pois apenas os empregados abrem mão do direito que lhe é conferido pela ordem jurídica, sem receber nenhuma contrapartida – pelo menos esta não figura no documento que resulta do processo negocial. Significa, em outras palavras, a inexistência de verdadeira transação.
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Professora da Universidade Federal do Pará, Mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro;Doutor pela Universidade de São Paulo. Juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho.
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É sabido que a fragilidade de nossa organização sindical, que ainda não conheceu a liberdade em sua plenitude e que não conta com uma legislação de fomento e promoção, constitui uma das principais causas dessa deplorável situação. O comportamento iníquo de entidades sindicais que, na qualidade de representantes de um conjunto de pessoas hipossuficientes, abrem mão dos direitos destes perante às entidades patronais, remete à Antígona, de Sófocles. Mais precisamente, às leis criadas pelo tirano Creonte que vedou o sepultamento dos cidadãos que haviam se revoltado contra o governo, com a cominação da pena de morte ao transgressor e, dentre eles, figurava Polinice, irmão de Antígona, que assim denunciou a injustiça da situação: “Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco acredito que tua proclamação tenha legitimidade para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, nunca escritas, porém irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém pode dizer desde quando vigoram! Decretos como o que proclamaste, eu, que não tenho o poder de homem algum, posso violar sem merecer a punição dos deuses! Que vou morrer bem o sei; é inevitável; e morreria mesmo sem teu decreto. E para dizer a verdade, se morrer antes do meu tempo, será para mim uma vantagem! Quem vive como eu, envolta em tanto luto e desgraça que perde com a morte? Por isso, a sorte que me reservas é um mal de bem pouca monta; muito mais grave seria aceitar que o filho de minha mãe jazesse insepulto. Tudo o mais me é indiferente! Se julgas que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura! 2
Aqui, Creonte são os sindicatos celebrantes do acordo. E tal como ele, as partes acordantes desrespeitaram leis comuns reconhecidas pelo consenso universal.3 Essas leis são aquelas que protegem o trabalhador, direitos humanos de segunda dimensão (ou geração), reconhecidos no momento em que o Estado Social se propõe a solucionar a desigualdade social e econômica surgida ou enfatizada no período liberal. O problema da fragilidade de nossa organização sindical, apesar da importância com que se reveste, escapa ao objetivo deste estudo, nele pretende-se enfocar a fundamentalidade dos direitos que são alvo do processo de negociação coletiva e a impossibilidade de serem transacionados. A temática envolve a questão, ainda controvertida, da eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações entre particulares. 2
Antígona. tradução Jean Melville. São Paulo. Martin Claret, 2005, p. 96
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COMPARATO, Fábio Konder. "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos". Ed. Saraiva: São Paulo, 2004, p. 40.
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Após tecer considerações sobre os direitos fundamentais, destacando os de natureza social, pretende-se demonstrar neste breve estudo que com o surgimento do Estado Social, com a consequente irradiação dos princípios constitucionais no direito privado, não se pode mais sustentar a vinculação apenas do Poder Público aos direitos fundamentais sociais.
2 – DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS
Os direitos sociais, objeto das negociações coletivas, cujos titulares são os trabalhadores, são direitos fundamentais. Figuram no capítulo II, do Título II da Constituição brasileira de 1988, que trata "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", estabelecendo no § 1º do art. 5º deste título, que as normas que o definem tem aplicação imediata. A expressão "direitos fundamentais" apareceu pela primeira vez na Constituição alemã, aprovada na Igreja de São Paulo em Francoforte, em 1848, a qual estabeleceu o rol dos "direitos fundamentais do Povo Alemão". O qualificativo "fundamentais" indica que o papel do Estado foi de "reconhecimento" e não de "criação" de direitos. Assim, restava estabelecido o caráter pré-estadual e de indisponibilidade dos direitos.4 São direitos “inerentes à própria condição humana” e, por isso, “devem ser reconhecidos a todos e não podem ser havidos como mera concessão dos que exercem o poder”. 5 São inalienáveis tendo sido
proclamados na Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América, redigida por Thomas Jefferson, em 04/07/1776, e adotada pelas 13 Colônias britânicas da costa leste da América do Norte: “Nós consideramos estas verdades como evidentes em si; que todos os homens são criados iguais; que todos são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade; que para assegurar estas liberdades, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que sempre que alguma forma de governo se tornar destrutiva destes fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, pondo seus fundamentos em tais princípios e organizando seus poderes em QUEIROZ, Cristina. Direito Constitucional. As instituições do Estado Democrático e Constitucional.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Coimbra. Editora Coimbra , 2009, p.364-365 5 COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., p. 114 4
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tal forma que lhe pareça a mais provável de realizar sua segurança e felicidade”. 6
Foram qualificados como inatos pela Declaração do Bom Povo de Virgínia, publicada em 16 de junho de 1776: “1. Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de 7 procurar e obter a felicidade e a segurança”.
Este dispositivo é considerado como o “registro de nascimento dos direitos humanos na História”, na expressão de Comparato8 O mesmo autor assinala que: “O reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização. Os socialistas perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais não eram cataclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional das atividades econômicas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção, cuja lógica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior ao das pessoas. Os direitos humanos de proteção do trabalhador são, portanto, fundamentalmente anticapitalistas, e, por isso mesmo, só puderam prosperar a partir do momento histórico em que os donos do capital foram obrigados a se compor com trabalhadores. Não é de admirar, assim, que a transformação radical das condições de produção no final do século XX, tornando cada vez mais dispensável a contribuição da força de trabalho e privilegiando o lucro especulativo, tenha enfraquecido gravemente o respeito a esses direitos em quase todo o mundo”.9
Vale lembrar, ainda, que o direito à limitação do tempo de trabalho figura no art. XXIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. “Todo homem tem direito à repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e as férias remuneradas periódicas”.
Quanto à denominação direitos humanos ou fundamentais, a doutrina, especialmente Ingo Wolfgang Sarlet, faz a distinção entre os termos direitos humanos e fundamentais, tomando por base o critério de positivação ou da concreção positiva desses direitos. Assim a denominação direitos fundamentais, que são sempre direitos humanos 6 apud Paul Singer. A cidadania para todos. In: História da cidadania/ Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky, orgs. 2 ed. São Pulo: Contexto, 2003, p. 201 7 COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., p. 114 8 Op. Cit., p. 49 9 Op. cit., p. 53-54
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porque seu titular será sempre o homem (mesmo quando
representado por entes
coletivos), designa os direitos do homem, reconhecidos e tornados concretos pelo direito positivo constitucional de cada Estado, ao passo que a expressão direitos humanos tem conotação mais ampla e indica os direitos outorgados ao ser humano em virtude desta condição e que ainda não foram positivados pela constituição de cada país. A terminologia direitos humanos relaciona-se a posições jurídicas referentes ao ser humano de maneira geral sem considerar a ordem constitucional a qual esteja ligado, possuindo conotação universal, isto é de validade para todos os povos e épocas. Revestem-se, pois, de caráter supranacional ou internacional. Os direitos humanos não se confundem com os direitos naturais na medida em que ao se positivarem em normas de direito internacional adquirem dimensão histórica e relativa, desligando-se, assim, da noção de direito natural. Devido a interligação existente entre os direitos humanos e os fundamentais, há na doutrina posicionamento no sentido de negar qualquer diferença entre o conteúdo dos dois termos: direitos humanos e fundamentais, como é o caso de Sérgio Rezende de Barros que, inclusive, utiliza a expressão direitos humanos fundamentais. Tanto é verdadeira a íntima correlação existente entre os direitos humanos e os fundamentais que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, bem como nos diversos documentos internacionais e regionais que a sucederam. Costuma-se classificar os direitos fundamentais em dimensões ou gerações que manifestam seu processo evolutivo, ou seja, seu reconhecimento progressivo. O termo dimensão e não geração é preferido pela doutrina por indicar a expansão e fortalecimento desses direitos enquanto que geração conduz à falsa ideia de que uma fase substituiu a outra. Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os civis e políticos. Constituem o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, complementados pelas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, de imprensa, de manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos de participação política, como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva. O direito de igualdade, entendido como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias processuais enquadram-se nesta categoria. Caracterizam-se como direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado. Correspondem à esfera de não intervenção do Estado e de autonomia individual em face 6
de seu poder. Apresentam caráter negativo uma vez que propõem uma abstenção e não a uma atuação positiva aos poderes públicos. Segundo Paulo Bonavides, são “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”. 10 Os direitos fundamentais de segunda dimensão são os econômicos, sociais e culturais. Atribuem ao Estado um comportamento ativo na realização da justiça social. A nota distintiva desses direitos é a sua dimensão positiva uma vez que não se trata mais do abstencionismo estatal, mas de sua intervenção no sentido de proporcionar um direito de participação no bem estar social. Conferem ao cidadão o direito a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho etc... Apesar de contempladas de forma embrionária antes do segundo pós-guerra, foram as constituições promulgadas posteriormente que os consagraram de modo expressivo. Abrangem além das prestações positivas, as liberdades sociais como a liberdade de sindicalização, a liberdade de greve, assim como o reconhecimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores, como por exemplo o direito à férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho. Os direitos sociais aqui mencionados são concernentes à pessoa individualmente considerada. A expressão “social” se justifica em virtude de os direitos de segunda dimensão serem considerados uma densificação do princípio da justiça social representarem
respostas
às
reinvidicações
das
camadas
menos
e
favorecidas,
especialmente do operariado, com o intuito de compensar sua extrema inferioridade em relação aos proprietários dos meios de produção que os empregavam. Os direitos fundamentais de terceira dimensão correspondem aos direitos de solidariedade e fraternidade. Seu traço característico está no desligamento da noção do homem-indivíduo e se destinarem a tutelar grupos humanos. Dentre eles encontram-se os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meioambiente, à qualidade de vida, direito à utilização e conservação do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação. Incluem-se como de terceira dimensão o direito contra manipulações genéticas, ao direito de morrer com dignidade, ao direito à mudança de sexo.
10 Curso de Direito Constitucional, p. 517
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Fala-se em
uma quarta dimensão dos direitos fundamentais, porém esta
tendência não foi acolhida pela ordem jurídica internacional nem pelas ordens constitucionais internas.11 Os direitos fundamentais ocupam posição de grande relevância no Estado Constitucional. Estão intimamente ligados as noções de Constituição e de Estado de Direito. Integram a essência do Estado constitucional. Na perspectiva de H.P. Schneider podem ser considerados conditio sine qua non do Estado Constitucional democrático.12 Passaram a ser ao mesmo tempo a base e o fundamento (basis and foundation of government), conforme previsto na declaração de direitos da ex-colonia inglesa da Virgínia, realizando a ideia de que o exercício do poder do Estado condiciona-se aos limites estabelecidos na sua Constituição.13 Por outro lado, encontram-se estreitamente relacionados à ideia de democracia e de Estado Social, sendo responsáveis pela concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e dos valores da igualdade, liberdade e justiça.14 É relevantíssimo, portanto, o papel desempenhadao pelos direitos fundamentais, dentre eles, os sociais tem ainda a função de garantir o denominado mínimo existencial que traduzem as condições materiais mínimas para uma existência digna. Heinrich Scholler, citado por Sarlet, sustenta que a dignidade humana somente estará garantida “quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”.15 O mínimo existencial distingue-se do mínimo vital que equivale ao mínimo de sobrevivência. Este ponto interessa muito à demonstração da impossibilidade de negociação dos direitos fundamentais do trabalhador. 3 – A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
No Estado Liberal reinava a ideia de que para preservar a liberdade era necessário limitar a autoridade estatal, despontando a noção de direitos subjetivos Idem, p. 54-68 Apud Ingo Wolfgang Sarlet. Op. Cit., p.70 Sarlet, Op. Cit., p.70 Sarlet, Op. Cit., p. 74 Direitos Fundamentais Sociais, “Mínimo Existencial” e Direito Privado: Breves Notas sobre Alguns Aspectos da Possível Eficácia dos Direitos Sociais nas Relações entre Particulares”.In: Direitos Fundamentais – Estudos em homenagem ao Prof. Ricardo Lobo Torres Rio de Janeiro:Renovar, 2006. p. 567
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públicos, os quais somente se exerciam perante o Estado e este, por seu turno não intervinha no âmbito da liberdade individual do cidadão. Os direitos fundamentais nesta primeira etapa se faziam valer contra o ente estatal que se encontrava numa posição de superioridade em relação aos titulares dos direitos. Os direitos fundamentais se projetavam como liberdades públicas por serem exercidas frente ao Estado. Eram liberdades negativas por imporem deveres de omissão ao Estado. Somente este deveria respeitar e observar tais direitos. Vivia-se a democracia da polis antiga (“liberdade dos antigos”), caracterizada pela preponderância dos interesses e direitos individuais sobre os de natureza coletiva.16 Em suma,
no liberalismo não havia interesse na incidência valorativa dos
direitos fundamentais nas relações jurídicas interprivadas, pois a concepção vigorante era de que somente o Estado poderia desrespeitar os direitos e garantias individuais. Outrossim, a atuação estatal deveria ser mínima (liberdades negativas por constituirem espaços de não intervenção estatal) para que as relações sociais se desenvolvessem harmoniosamente. Estado e sociedade, eram universos completamente diferentes, submetidos a lógicas próprias independentes. O Direito Público, no qual vigoravam os direitos fundamentais com o intuito de tutelar o indivíduo, dominava na esfera do Estado. O Direito Privado, inspirado pelo princípio da autonomia da vontade, incidia sobre as relações entre os particulares. Neste primeiro momento os direitos fundamentais assumiam a feição de direitos de defesa para proteger os indivíduos contra as interferências dos poderes públicos no âmbito pessoal, de modo que os direitos fundamentais faziam sentido apenas no relacionamento entre as pessoas e o Estado. A vontade individual, considerada meio de dignificação da pessoa humana e de legitimação dos vínculos, ocupava lugar central no modelo liberal. Incumbia ao Estado garantir proteção à vontade das partes, reconhecendo os efeitos jurídicos por elas desejados, sem questionamento acerca da situação econômica e social das partes envolvidas na celebração do contrato. Como é sabido a liberdade e igualdade entre as partes contratantes, grande conquista da revolução francesa, demonstrou-se, com o passar dos tempos, meramente jurídico-formal. Não se concretizava na prática, diante da disparidade econômica e social, existente entre as partes contratantes. Anatole France evidenciou esta situação de
16 QUEIROZ, Cristina. Op. cit., p. 370
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forma lapidar quando escreveu: “A majestosa igualdade das leis proíbe tanto ao rico como ao pobre dormir sob pontes, de mendigar nas ruas ou furtar um pão” 17 Enfim o Estado liberal demonstrou sua incapacidade em atender aos novos anseios sociais no sentido da concessão de um tratamento efetivamente justo. O Estado social tenta satisfazer as reivindicações sociais, abandonando a postura absenteísta, não intervencionista, de mero expectador e passa a assumir um papel mais ativo no seio das relações sociais e econômicas. No campo das relações contratuais compreendeu-se que para haver justiça, não é suficiente que se afirme a igualdade das partes, mas que se conceda condições para que ela se efetive. Isto foi particularmente acentuado na esfera das relações trabalhistas, nas quais se procurou compensar a inferioridade econômica do empregado, mediante a concessão de tratamento jurídico superior. Há, então, neste modelo de Estado a tentativa de conciliar as liberdades públicas com os direitos sociais. Altera-se a concepção de que a agressão aos direitos fundamentais somente parte do Estado e admite-se que também pode advir da ação dos particulares. Significa, em outras palavras, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas particulares, também denominada eficácia “privada” ou “horizontal” dos direitos fundamentais. Salienta Sarlet que no Estado social este não somente aumenta sua atuação, como a sociedade passa a exercer ativamente o poder, de maneira que a liberdade individual precisa ser protegida não apenas contra os poderes públicos, mas também contra os socialmente mais poderosos, isto é, detentores do poder econômico e social, uma vez que é nesta seara que as liberdades estão vulneráveis.18 No Estado social as constituições estabelecem diretrizes para as instâncias política, econômica, bem como para as relações privadas. Assumem o papel “dirigente”, regulador da ordem econômica e social, como ensina Paulo Lobo.19 As partes contratantes ainda que amparadas no princípio da autonomia da vontade no desenvolvimento das relações jurídicas devem respeitar os direitos fundamentais referentes ao tipo de relação que desejam celebrar.
17
MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p.328 18 SARLET. Op. Cit., p.402 19 Contrato e Mudança Social. Revista dos Tribunais v. 722, 1995, p.40
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Constata-se, assim, que os direitos fundamentais possuem uma dupla natureza. Garantem direitos subjetivos e princípios objetivos conformadores da ordem do Estado de direito, concedendo aos direitos fundamentais uma noção material que abrange sua dimensão jurídico-objetiva.20 Tais princípios não podem ser ignorados pelas normas de direito privado (infraconstitucionais), as quais devem ser interpretadas de acordo com os valores informadores das normas de direitos fundamentais. Deste modo, a perspectiva jurídicoobjetiva dos direitos fundamentais manifesta sua irradiação para todas as relações sociais, das quais não participa o poder público.21 Na evolução dos direitos fundamentais é possível observar que inicialmente havia apenas a eficácia vertical e que apenas com a trasmutação do Estado liberal para o social é que se pode falar de uma eficácia vertical e uma horizontal dos direitos fundamentais sociais. A vertical é a que incide sobre o Estado e é aquela que originalmente se verificou quando os direitos fundamentais eram vistos apenas como direitos de defesa do indivíduo contra o poder público. A horizontal é a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, da qual se passou a cogitar com o Estado Social quando surge a ideia da irrradiação dos preceitos constitucionais a todos os tipos de relações sociais. 4 - A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E
A
AUTONOMIA
DA
VONTADE
NA
NEGOCIAÇÃO
COLETIVA.
CONCLUSÃO Embora a eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas seja um dos temas mais controvertidos do Direito Constitucional, é induvidoso que esta controvérsia não alcança as normas instituidoras de direitos fundamentais sociais relativos aos trabalhadores que devem ser observadas diretamente pelo empregador. Ao discutir sobre a eficácia dos direitos fundamentais sociais, Sarlet declara que não há se questionar uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais quanto aos direitos dos trabalhadores que tem por destinatário os empregadores que são, em geral, particulares22.
20 QUEIROZ, Cristina. op. cit., p.366 21 Sarlet, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p.407 22 op. cit., p 424
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Do mesmo modo Angela Almeida e Sérgio Augustin dizem que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, não gera maiores dificuldades no tocante aos direitos trabalhistas porque concebidos para incidir sobre relações privadas.23 Pergunta-se :E quando o destinatário é o sindicato na qualidade de representante dos empregados no caso da negociação coletiva? Situação em que celebra uma convenção ou um acordo coletivo estabelecendo normas para disciplinar o relacionamento entre empregados e empregadores pertencentes às categorias envolvidas na negociação. Estaria ele vinculado aos direitos fundamentais sociais? Ou, prevaleceria a autonomia da vontade? A resposta é que ficam também vinculados. Não podem renunciar direitos incluídos no catálogo dos direitos fundamentais em nome da autononomia privada. Há países em que a Constituição proclama expressamente a vinculação de particulares aos direitos fundamentais. É, por exemplo, o caso de Portugal que no art. 18º-1 da Carta Constitucional prescreve: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. Os direitos fundamentais em razão do princípio da supremacia da Constituição e da unidade material da ordem jurídica incidem sobre a totalidade desta, inclusive sobre a esfera privada. Os direitos fundamentais se incluem no núcleo material da Constituição, atuando como instrumento de unificação material do ordenamento jurídico.24 Por outro lado, sua aplicação se impõe pela necessidade de se proteger o indivíduo contra ofensas aos direitos fundamentais praticadas por outras pessoas ou entes privados.25 Significa que no seio das relações privadas, como é curial, existem situações de desigualdades, decorrentes do fato de alguns indivíduos possuirem maior poder econômico e social que outros, sendo impossível aceitar agressões ou discriminações à dignidade da pessoa humana, noção umbilicalmente ligada à de direitos fundamentais.26. Outro fundamento importante para a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais são os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, sendo o primeiro um dos fundamentos da república brasileira (art. 1º, III) e o 23
A Eficácia Dos Direitos Fundamentais Sociais Nas Relações Privadas: Parâmetros Ético-Jurídicos, p. 402 24 STEIMNETZ, Wilson. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, p. 104 25 Sarlet, p. 403 26 Idem, p. 404
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segundo um de seus objetivos: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). No que diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, este somente se concretizará mediante a garantia de fruição dos direitos fundamentiais. Sarlet assinala haver relativo consenso sobre a eficácia vinculante dos direitos fundamentais na esfera privada diante de relações marcadas pela desigualdade, em que há possibilidade de agressão à dignidade das pessoa humana. Isto
porque estas
hipóteses se assemelham às relações que se travam entre os particulares e os poderes públicos. Nas relações entre os particulares caracterizadas por relativa igualdade prevalece o princípio da liberdade.27 Esta necessidade de proteção do ser humano contra o desrespeito aos direitos fundamentais praticados por outros indivíduos ainda mais se acentua no âmbito das relações trabalhistas em virtude da flagrante desigualdade entre as partes contratantes, sendo esta a razão pela qual o Direito do Trabalho é norteado por princípios protetores. No campo das relações laborais, admite-se a negociação, que implica em concessões recíprocas e não em renúncia, dos direitos que não concernem à proteção da saúde do empregado, considerados de disponibilidade relativa. Todavia, os direitos revestidos de indisponibilidade absoluta que visam à preservação da saúde, tais como, por eemplo, as normas de segurança e medicina do trabalho e as concernentes à duração do tempo de trabalho, são inegociáveis. Em virtude da dimensão objetiva dos direitos fundamentais que faz com que ele se irradie para todas as relações sociais, mesmo daquelas das quais não participa o poder público, na elaboração de uma norma coletiva estão os sindicatos representativos dos empregados vinculados aos direitos fundamentais não podendo postergá-los ou reduzi-los ao fundamento da autonomia privada. É certo que a Lei Maior, ao consagrar a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, tutela também a autonomia privada que é o poder reconhecido aos particulares de estabelecer regras jurídicas para pautar seu comportamento, no caso do direito do trabalho é a chamada autonomia privada coletiva. O reconhecimento deste poder não significa que seu exercício se faça sem considerar os direitos fundamentais.
27 Idem, p.406
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É importante que se leve em conta a limitação da autonomia privada pela dignidade da pessoa humana que atua como espécie de defesa da pessoa contra seus próprios atos, pois a ninguém se reconhece a faculdade de violar a própria dignidade.28 Enfim a constitucionalização do direito privado, a eficácia vinculante dos direitos fundamentais sociais nas relações entre particulares, impede que o sindicato, em nome dos empregados transacione ou simplesmesnte renuncie direitos revestidos de indisponibilidade absoluta, sob pena de grave ofensa à ordem constitucional.
BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Angela & AUGUSTIN, Sergio. A Eficácia Dos Direitos Fundamentias Sociais Nas Relações Privadas: Parâmetros Ético-Jurídicos. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, realizado em Fortaleza – CE, de 9-12 de junho de 2010 http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3417.pdf.
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28 Idem, p.406
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