A reforma

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John Stott | Michael Reeves

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O que vocĂŞ precisa saber e por quĂŞ

Editado por J. E. M. Cameron Traduzido por Mariane Lin


A REFORMA – O QUE VOCÊ PRECISA SABER E POR QUÊ Categoria: História / Igreja / Teologia

Copyright © 2017 Michael Reeves e John Stott Complete work © 2017 Lausanne Movement Publicado originalmente por Lion Hudson IP Ltd, Oxford, England Copyright © 2017 Lion Hudson IP Ltd Título original em inglês: The Reformation – What you need to know and why Primeira edição: Agosto de 2017 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Mariane Lin Revisão: Lis da Matta Emerick Diagramação: Bruno Menezes Capa: Lucas Gonçalves Todas as citações bíblicas foram extraídas da Nova Versão Internacional, da Sociedade Bíblica Internacional, salvo indicação específica. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Stott, John, 1921-2011 A reforma : o que você precisa saber e por quê / John Stott, Michael Reeves ; editado por J. E. M. Cameron ; traduzido por Mariane Lin. — Viçosa, MG : Ultimato, 2017. ISBN 978-85-7779-167-5 Título original: The Reformation Bibliografia 1. Cristianismo 2. Igreja - História 3. Igreja Reformada - História 4. Lutero, Martinho 1483-1546 5. Reforma 6. Reforma protestante I. Reeves, Michael, 1938-. II. Cameron, J. E. M. III. Título. 17-05832 Índices para catálogo sistemático: 1. Reforma : Igreja cristã : História

CDD-270.6 270.6

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 www.ultimato.com.br


“Aos que foram chamados, amados por Deus Pai e guardados por Jesus Cristo... senti que era necessário escrever-lhes, insistindo que batalhassem pela fé uma vez por todas confiada aos santos.” Judas, servo – e irmão terreno – de Jesus Cristo (v. 3)

“Aquela frase empolgou tanto o meu coração, que estava tão machucado de culpa pelos meus pecados, que senti maravilhoso conforto e segurança imediatamente. As Escrituras são mais doces, para mim, do que um favo de mel.” Thomas Bilney, um dos primeiros reformadores de Cambridge, sobre justificação pela graça, por meio da fé

“Os reformadores não amaram primeiro suas próprias vidas, nem mesmo diante da morte, para que nós pudéssemos receber o evangelho precioso e eterno intacto. Na idade da amnésia, relativismo e superficialismo, devemos nos agarrar ao mesmo evangelho e passá-lo adiante. Pois também caminhamos na procissão triunfante dos profetas e apóstolos de Deus, encorajados por uma grande nuvem de testemunhas. Cristãos cambojanos passaram por sua própria perseguição Neroniana, sob Pol Pot. Sempre reconheceram que são uma contracultura, e seguir a Cristo significava que seriam crucificados por um mundo pecaminoso e moldados por meio da cruz por um Deus santo.” Don Cormack, autor de Killing Fields, Living Fields – An unfinished portrait of the Cambodian church


A parte 2 surgiu primeiramente com o título Make the Truth Known – Maintaining the evangelical faith today [Fazer a verdade conhecida: Mantendo a fé evangélica hoje] (Leicester, Reino Unido: Universities and Colleges Christian Fellowship). Proferida em Abergele, País de Gales, na Páscoa de 1982, constituiu o Discurso Presidencial da UCCF 1981–1982. Texto atualizado em 2016. Usado com permissão. O apêndice 1 surgiu primeiramente em In Depth, publicação da Crosslinks (abril de 2014). Atualizado em 2016. Usado com permissão. Os royalties deste livro foram gentilmente cedidos para o ministério de publicações do Movimento de Lausanne.


Sumário

Linha do tempo da Reforma

9

Prefácio 15 Lindsay Brown

Parte 1 A história e a importância da Reforma Michael Reeves

21

Parte 2 Mantenha a fé e passe-a adiante John Stott

45

Apêndices A oração de Jesus por unidade em sua Igreja

67

As 95 Teses de Martinho Lutero

73

Perguntas para estudo e reflexão

85

Leituras recomendadas

89

Alan Purser

Notas 93



Linha do tempo da Reforma

Um volume tão modesto pode conter apenas a história bem simplificada da notável obra da graça que ocorreu nas mais corajosas vidas. Cada nome abaixo – bem como a vida e a morte de cada mártir não citado aqui – merece um capítulo próprio. A inclusão de diversas figuras de liderança que não aparecem em outras partes deste livro é para convidar os leitores a explorar mais o assunto. Em alguns casos nos quais as datas não puderam ser verificadas, indicamos as mais comumente usadas. 1324

John Wycliffe, “A Estrela da Manhã da Reforma”, nasce em Yorkshire, Inglaterra.

1369

Jan Hus nasce em Husinec, Boêmia.1

1384

John Wycliffe morre em Leicestershire, Inglaterra. Seu desafio às crenças contemporâneas continuou a ser feito por um difuso grupo conhecido como wycliffitas ou (ironicamente) lolardos.

1407

James Resby é declarado herege. É queimado em Perth, Escócia, em 1407 ou 1408.2

1412

Jan Hus apela publicamente a Jesus Cristo como estando acima da autoridade da igreja.3


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1414

Jan Hus é atraído ao Conselho de Constance. É queimado em Constance, Suíça.

1416

Formandos da Universidade de St. Andrews são obrigados a jurar resistência aos Lollards.

1433

Paul Craw (ou Pavel Kravar), da Boêmia, é queimado em St. Andrews, Escócia.

1450

Johannes Gutenberg inventa a prensa móvel.

1466

Desiderius Erasmus nasce em Roterdã, Países Baixos.

1483

Martinho Lutero nasce em Eisleben, Saxônia.

1484

Ulrico Zuínglio nasce em Wildhaus, Suíça.

1487

Hugh Latimer nasce em Leicestershire, Inglaterra.

1489

Thomas Cranmer nasce em Nottinghamshire, Inglaterra.

1491

William Tyndale nasce em Gloucestershire, Inglaterra.

1494

Martin Bucer nasce em Sélestat, França.

1495

Thomas Bilney nasce em Norfolk, Inglaterra.

1499

Pietro Martire Vermigli nasce em Florença, Itália; e Jan Laski, em Łask, Polônia.

1500

Nicholas Ridley nasce em Northumberland, Inglaterra.

1504

Heinrich Bullinger nasce em Aargau, Suíça.

1505

Lutero ingressa no monastério agostiniano.

1509

João Calvino nasce em Noyon, França.

1513

John Knox nasce em Haddington, Escócia.

1516

Erasmo de Roterdã publica o Novo Testamento grego.

1517

Lutero afixa as 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg.

1521

Dieta de Worms. Lutero é detido no Castelo de Wartburg, onde traduz o Novo Testamento para o alemão. Henrique VIII publica sua Defesa dos Sete Sacramentos contra Lutero e recebe o título de “Defensor da Fé”.


LINHA DO TEMPO DA REFORMA

1522

Lutero completa a tradução do Novo Testamento em alemão.

1526

O Novo Testamento em inglês, de William Tyndale, é completado.

1528

Patrick Hamilton é queimado por heresia em St. Andrews, Escócia.

1531

Thomas Bilney é queimado por heresia em Norwich, Inglaterra.

1532

Thomas Cranmer é consagrado arcebispo de Canterbury.

1534

Henrique VIII é declarado “chefe supremo da igreja da Inglaterra”. Primeira edição completa da tradução de Lutero da Bíblia.

1536

Calvino chega em Genebra. A primeira edição das Institutas é publicada. Morre Erasmo de Roterdã. William Tyndale é executado. Nasce Lady Jane Grey, provavelmente em Leicestershire, Inglaterra.

1546

Lutero morre em Eisleben, Alemanha.

1547

Henrique VIII morre. É sucedido por seu filho evangélico, Eduardo VI.

1549

Livro de Oração Comum é publicado.

1551

Martin Bucer morre em Cambridge.

1553

Morte de Eduardo VI. Sua prima de primeiro grau Lady Jane Grey é coroada rainha da Inglaterra, mas deposta nove dias depois.

1553–8 A rainha “Maria Sangrenta” sobe ao trono e restaura o catolicismo romano na Inglaterra. 1554

Lady Jane Gray é decapitada.

1555

Nicholas Ridley e Hugh Latimer são queimados em Oxford.

1556

Thomas Cranmer é queimado em Oxford.

1558

Elizabete I sucede Maria, fazendo com que a Igreja Anglicana praticamente volte ao seu estado eduardiano.

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A REFORMA

1560

Jan Laski morre em Pińczów, Polônia.

1562

Pietro Martire Vermigli morre em Zurique, Suíça.

1564

Calvino morre em Genebra, Suíça.

1572

John Knox morre em Edimburgo, Escócia.

1575

Heinrich Bullinger morre em Zurique, Suíça.

1611

A Versão King James (ou Versão Autorizada) da Bíblia é completada.

Confissões de fé após o início da Reforma 1523

Os 67 artigos de Ulrico Zuínglio

1527

Confissão de Schleitheim

1530

Confissão de Augsburgo

1536

Confissão de Genebra

1561

Confissão Belga

1563

Catecismo de Heidelberg

1571

Os 39 Artigos da Igreja Anglicana

1619

Os Cânones de Dort

1647

Confissão de Fé de Westminster

1689

Confissão de Fé Batista de Londres de 1689


Um hino pré-Reforma

Vem, ó amor divino, busca essa alma minha, e visita-a com teu próprio ardor brilhando; Ó Consolador, aproxima-te, entra em meu coração, e acende-o, concedendo tua santa chama. Ó deixe que queime livremente até que as paixões da carne virem pó e cinzas consumidas em seu calor; e que a tua gloriosa luz brilhe sempre em mim, e me envolva todo, iluminando meu caminho. Que o santo amor seja minha vestimenta externa, e a modéstia seja minha vestimenta interior; verdadeira modéstia de coração, que toma a parte mais humilde, e chora repudiando seus próprios defeitos. E assim o forte desejo, que a alma ansiará, irá muito além do que homens podem dizer; pois ninguém pode imaginar sua graça, até que ele se torne o lugar que o Espírito Santo faz morada. Bianco de Siena (1350–1399) Traduzido para o inglês por Richard Frederick Littledale.



Prefácio Lindsay Brown

S

aúdo calorosamente este curto livro. Temos muito a aprender com a história da igreja e aqui vemos como os acontecimentos de seis séculos atrás prepararam o cenário para o ministério de grandes pregadores dos séculos 18 e 19, como os Wesleys, George Whitefield, Jonathan Edwards, Charles Simeon, C H Spurgeon – e como eles nos entregaram o evangelho de hoje. Isso não quer dizer que Deus ficou sem testemunhas até a Reforma. Antes do século 16, temos não apenas a obra de Wycliffe e de seus seguidores, os primeiros mártires, e a liderança de Jan Hus, mas também outros lampejos de luz pela Europa. Por exemplo, o poeta místico italiano e jesuíta Bianco de Siena, que deixou-nos o belo hino “Vem, ó amor divino”. Enquanto lermos a parte 1, olhando para os acontecimentos da Reforma, não percamos de vista quatro coisas. Primeiro, em Lutero, Deus usou um monge ordinário, que nunca perdeu sua personalidade severa. Seu jeito de ser,


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e até mesmo seu humor, podiam ser um pouco grosseiros. Hoje, se alguma igreja ou seminário tivessem uma vaga, Lutero talvez não estaria nem na lista de possíveis candidatos. Deus é Deus e escolhe à sua maneira seus servos para ocasiões especiais. Segundo, Deus usou um movimento com vários desdobramentos e ele se estendeu por mais de duzentos anos, como podemos ver na “Linha do tempo”. Embora a noite de 31 de outubro de 1517, em Wittenberg, seja considerada popularmente como “o início da Reforma”, ela foi mais precisamente o início marcante de seu longo desfecho. Terceiro, era necessário levantar-se contra a doutrina e a autoridade da igreja. Isso demandou imensa coragem, mas o pó e a sujeira que se acumularam sobre a igreja medieval ao longo dos séculos haviam modificado e ofuscado a mensagem dos escritores do Novo Testamento. Àquela altura, servia apenas para ocultar a verdade que está em Cristo Jesus; pois apenas as Escrituras são nossa autoridade final. Quarto, a Reforma constrói uma defesa da importância da doutrina. A compreensão clara da doutrina bíblica produz fundações sólidas e dá base para uma fé que confia na obra redentora de Jesus Cristo. Refresca-nos espiritualmente, como “o orvalho da manhã” (Dt 32.1-2), ao aprofundar nosso entendimento sobre Deus. Como John Stott nos lembra na parte 2, os reformadores estavam simplesmente reafirmando o que os primeiros líderes da igreja, os apóstolos, haviam ensinado. Pois a fé evangélica (longe de ser uma divergência) é simplesmente uma reafirmação da verdade apostólica, nada mais nem menos. Os reformadores estavam abrindo as Escrituras para olhos incrédulos e mostrando a pessoas necessitadas


PREFÁCIO

e tomadas pela culpa como as Escrituras lhes ofereciam a dádiva da salvação apenas pela graça de Deus, somente por meio da fé. Está em voga desmitificar a palavra “evangélico”. É verdade, ela tem sido apropriada – e degradada – por alguns partidos políticos. Além disso, em alguns países, é sinônimo da palavra “protestante”. Porém, em vez de rejeitá-la por causa disso, talvez esteja na hora de reafirmar seu significado e valor. Lembro-me de uma conversa com John Stott, o qual estava entristecido pelo mau uso dessa palavra. Disse-me que não estava entusiasmado com termos como “evangélicos liberais”, “evangélicos conservadores”, “evangélicos generosos”, “evangélico aberto” ou “essencialmente evangélico”. Isso porque acreditava que a palavra “evangélico” era suficiente por si só. Como ele explicou, é “uma palavra nobre com uma história longa e honrada”, que remonta ao segundo século.4 John Stott nos oferece uma excelente exposição sobre o legado dos reformadores e sobre o que significa, para nós, estar na mesma tradição apostólica. É nesse sentido que o Movimento de Lausanne é livremente um movimento evangélico. O termo não requer nenhuma filiação política específica ou mesmo tradição eclesial. Sua raiz euangelion, o evangelho, é usada no Novo Testamento apenas em relação à obra salvadora de Cristo. Portanto, a essência do evangelho é a doutrina apostólica da justificação só pela graça, somente mediante a fé. Como podemos ver, isso era para ser central à Reforma. De fato, diz-se que Lutero a resumia como “o artigo que define se uma igreja está de pé ou caindo [...] ela preserva e direciona toda doutrina da igreja”.5

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A REFORMA

É por isso que Alan Purser nos chama a olhar novamente para a oração de Jesus pela igreja. Na noite em que Cristo foi traído, ele orou para que os cristãos permanecessem firmes na verdade apostólica. É isso que nos manterá eficazes na missão. É o mesmo poder da graça de Deus somente, chamando as pessoas à fé, que vemos de novo e de novo quando passamos pelos séculos e olhamos para o mundo. Poderia segui-lo nos registros dos avivamentos galeses, aqui mesmo no meu próprio país. É somente pela graça de Deus que o Espírito Santo se moveu em avivamentos no leste e no oeste da África, na formação da igreja de Cristo na China e nas muitas conversões no mundo muçulmano das quais ouvimos falar. A centralidade da graça era importante não apenas para os reformadores; podemos encontrá-la também nos escritos de Agostinho, Wesley e C. S. Lewis. Uma compreensão firme da graça é o fundamento para uma confiança profunda. Mais do que isso, é a fonte da experiência da alegria, que é tão procurada, mas tão raramente encontrada. Lutero escreveu a respeito dessa verdade: “Se soubesse do que foi salvo, morreria de medo, mas se soubesse para quê foi salvo, morreria de alegria”. É por isso que a Reforma ainda não acabou. Na nossa geração da “pós-verdade”, a mensagem de autoridade das Escrituras precisa ser proclamada o mais claramente possível; pois as Escrituras são verdadeiras e é preciso crer nelas, obedecer-lhes e defendê-las, e, se necessário, é preciso estar preparado para morrer por elas. Concluo com uma história pessoal. Alguns anos atrás, eu estava falando sobre a doutrina da justificação pela graça mediante a fé em um congresso estudantil, na Argentina.


PREFÁCIO

Era uma noite estrelada e, após a exposição, saí para admirar as estrelas do hemisfério sul. Um senhor idoso me seguiu. Era um missionário holandês de certa idade. – Obrigado – disse ele – por falar sobre essa grande verdade nesta noite. Eu mesmo falei sobre esse tema diversas vezes e sempre fico emocionado quando outras pessoas falam sobre ele. – Por quê? – perguntei. – Bem – disse ele –, durante a Segunda Guerra Mundial, fui membro da Juventude Hitlerista; fiz e vi coisas terríveis. Logo depois da guerra, experimentei a graça salvadora de Deus, tornei-me um cristão e segui a Jesus Cristo. Então, Deus me chamou para o ministério cristão e fui enviado como missionário pioneiro a Irian Jaya. Lá, Deus me usou em um avivamento. Num domingo, batizei 2 mil novos crentes. Então, vê por que essa grande verdade é tão importante para mim? Porque me lembra que nenhum poço é tão fundo que Deus não possa nos levantar e nos colocar sobre terra firme. Mereço ser julgado e rejeitado, mas por causa da graça justificadora de Deus, ele não apenas me salvou e me usou no ministério, como entendeu por bem me usar num avivamento. Tal é a maravilha do ato justificador de Deus por meio da obra de Cristo. Que este livro seja usado, de alguma forma, para mexer com os corações de muitos de nossa geração, para proclamarem essa mensagem com tanto vigor quanto o fizeram os reformadores do século 16. Lindsay Brown serviu como secretário-geral da IFES de 1991 a 2007 e como diretor internacional do Movimento de Lausanne de 2008 a 2016. Ele é evangelista-geral da IFES.

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[ parte 1 ]

A história e a importância da Reforma Michael Reeves

Uma busca desesperada pela paz

O jovem de 21 anos estava a caminho de sua universidade em Erfurt, na Alemanha, quando foi pego por uma tempestade violenta e repentina. Um raio caiu tão perto que o derrubou no chão. Em pânico, ele gritou “Santa Ana, ajuda-me! Me tornarei um monge!”. E foi assim que o jovem Martinho Lutero começou sua vida como monge. Foi uma vida que ele abraçou com intensa seriedade. Pois, aterrorizado pela morte e pela perspectiva de se apresentar diante de seu Juiz, Lutero estava determinado a subir as escadas para o céu, por mais íngreme que fossem. Saía de sua pequena cela apenas em intervalos de algumas horas para ir a cultos na capela, começando pelo culto de oração na madrugada, depois outro às seis da manhã, outro às nove, outro ao meio-dia, e assim por diante. Frequentemente, jejuava sem pão ou água por até três dias e


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passava frio deliberadamente no inverno, com a esperança de que isso agradasse a Deus. Levado à confissão, deixava seus confessores exaustos, demorando até seis horas para catalogar seus pecados mais recentes. No entanto, quanto mais ele fazia, mais perturbado ficava. Será que era suficiente? Será que suas motivações estavam corretas? Juntamente com todos os seus exaustivos trabalhos externos, percebeu que estava mergulhando numa introspecção cada vez mais profunda. Então, em 1510, teve a oportunidade de visitar Roma pelo monastério. Para ele, era um sonho que se tornava realidade: ali em Roma, poderia ficar mais perto dos apóstolos e santos do que em qualquer outro lugar. Roma estava lotada de relíquias e ele havia sido ensinado que cada uma concedia diferentes benefícios espirituais. Ao chegar, correu loucamente de um lugar santo para outro, esperando acumular virtudes de cada um deles. Desejou de verdade que seus pais estivessem mortos para que pudesse livrá-los do purgatório, por meio de todas as virtudes que estava acumulando. Então, decidiu subir a escadaria Scala Sancta. Essa era a escada que Jesus supostamente havia subido para comparecer diante de Pilatos e que havia sido posteriormente trazida a Roma. Garantiram-lhe que, beijando cada degrau à medida que subia e repetindo o Pai-Nosso para cada um, podia livrar do purgatório a alma que desejasse. Claro que ele agarrou a oportunidade. Entretanto, ao chegar ao topo da escada, sentiu-se obrigado a perguntar: “Será que alguém sabe dizer se isso é verdade?”. Ao retornar, Lutero foi transferido para o monastério agostiniano na pequena cidade de Wittenberg. O lugar podia ser pequeno, mas era a capital do Eleitorado da


A história e a importância da Reforma

Saxônia e o governante da região, Frederico “o Sábio”, havia transformado a cidade no lar de sua deslumbrante coleção de relíquias. Ali, na Igreja do Castelo, o peregrino podia apreciar nove corredores lotados com mais de 19 mil relíquias. Alguns dos destaques da coleção eram um fragmento de palha do berço de Cristo, uma mecha de sua barba, um prego da cruz, um pedaço de pão da Última Ceia, um galho da sarça ardente de Moisés, alguns fios de cabelo e pedaços de roupas de Maria, bem como incontáveis dentes e ossos de santos célebres. Mais precisamente, a veneração de cada peça valia a indulgência de 100 dias (com um bônus para cada corredor), o que significava que o visitante piedoso podia descontar mais de 1.900.000 dias do purgatório. A indústria do purgatório

O purgatório e as indulgências não são conceitos conhecidos por todos nos dias de hoje, mas surgiram do ensinamento de que poucos podem morrer justos o suficiente para, plenamente, merecer a salvação. Portanto, a não ser que cristãos morressem sem se arrepender de um pecado “mortal”, como assassinato (nesse caso iriam para o inferno), eles tinham a chance de, após a morte, ter seus pecados expurgados no purgatório aos poucos. Assim, poderiam entrar no céu, totalmente purificados. Poucos apreciavam a perspectiva de passar milhares, ou talvez milhões, de anos de castigo após a morte e buscavam acelerar o caminho por meio do purgatório, tanto para si como para pessoas queridas. Assim como orações eram feitas pelos mortos, missas inteiras eram dedicadas a almas no purgatório. A graça de tais missas podia, então, ser aplicada diretamente à alma atormentada.

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