O Ajuste Fino do Universo

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o ajuste fino do universo



Alister E. McGrath

o ajuste fino do universo Em busca de Deus na ciência e na teologia

tradução

Rodolfo Amorim

Palestras Gifford 2009


O AJUSTE FINO DO UNIVERSO Categoria: Apologética / Ética / Vida cristã

Copyright © 2009 Alister E. McGrath Publicado originalmente em inglês por Westminster John Knox Press, Louisville, Kentucky, EUA Título original em inglês: A Fine-Tuned Universe Primeira edição: Setembro de 2017 Coordenação editorial: Guilherme de Carvalho Tradução: Rodolfo Amorim Revisão técnica: Aldair Queiroz

Thalita Ubiali Revisão geral: Claudete Agua de Melo

Marcelo Meireles Braga Cabral Diagramação: Bruno Menezes Capa: Douglas Lucas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) McGrath, Alister E., 1953O ajuste fino do universo : em busca de Deus na ciência e na teologia / Alister E. McGrath ; tradução Rodolfo Amorim. — Viçosa, MG : Ultimato, 2017. ISBN 978-85-7779-169-9 Título original: A fine-tuned universe : the quest for God in science and theology 1. Ciência e religião 2. Deus 3. Fé (Cristianismo) 4. Religião e ciência 5. Teologia natural I. Título. 17-06498 Índices para catálogo sistemático: 1. Religião e ciência 215

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 www.ultimato.com.br

CDD-215


As últimas décadas testemunharam um florescimento mundial sem precedentes do diálogo entre a religião e as ciências, particularmente entre a teologia cristã e o campo científico. Atualmente várias associações internacionais, instituições acadêmicas, igrejas e missões cristãs contribuem para um esforço conjunto de construção de pontes entre a fé cristã e a ciência contemporânea. No Brasil, tanto as pressões laicizantes dentro e fora das igrejas quanto o próprio amadurecimento intelectual e cultural dos cristãos vêm aprofundando e expandindo o debate sobre fé e ciência, fazendo dele um imperativo espiritual e testemunhal para nossa geração. Para ajudar a comunidade cristã e a comunidade científica na compreensão da importância e do caráter desse diálogo global, e visando uma comunicação rica e significativa entre esses campos, apresentamos a série “Ciência e Fé Cristã”. Apresentará perspectivas cristãs sobre campos diversos, como a teologia natural ou teologia da natureza, filosofia da tecnologia, biologia e teoria evolucionária, história da ciência, temas de filosofia da ciência, neurociências, física e cosmologia, e a relação entre a Bíblia e a ciência.


A amostragem de obras incluídas nesta série privilegia contribuições substanciais a esse diálogo contemporâneo realizadas a partir da tradição cristã evangélica ou compatíveis com essa tradição de fé. Com isso, a série procura fertilizar a reflexão avançada sobre tais temas no contexto evangelical brasileiro e entre aqueles interessados no diálogo, com vistas a uma participação mais rica e independente na conversação pública dos evangélicos com outras tradições religiosas ou seculares. Esperamos, ainda, promover uma contribuição amadurecida para o universo acadêmico brasileiro. A série “Ciência e Fé Cristã” é, enfim, um convite a todos aqueles que queiram mergulhar nesse fantástico universo de debates, conhecimentos e questões que tocam a nossa existência. Afinal, tanto o Livro da Criação quanto o Livro da Revelação merecem lugar em nossas cabeceiras.

Soli Deo Gloria. Guilherme de Carvalho e Roberto Covolan Editores Marcelo Cabral Editor assistente

Esta publicação contou com o apoio e financiamento da Templeton World Charity Foundation, Inc. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente aquelas da TWCF.


Em memória de John Macquarrie (1919–2007) e Thomas Forsyth Torrance (1913–2007)



Sumário Introdução 1. Desejando fazer sentido das coisas

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Uma teologia natural trinitária 2. A crise de confiança na teologia natural moderna

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3. Renovando a visão para a teologia natural

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4. Desafios a uma teologia natural renovada

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5. A teologia natural e a explicação da realidade

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6. As dinâmicas de uma teologia natural trinitária

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7. Fatos surpreendentes: Contrafactuais e a teologia natural

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8. Agostinho de Hipona sobre a criação: Uma lente teológica

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Ajuste fino: Observações e interpretações 9. No princípio: As constantes do universo

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10. Podem estes ossos viver? As origens da vida

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11. A matriz da vida: A curiosa química da água

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12. Os catalisadores químicos e os condicionantes da evolução

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13. As origens da complexidade: O mecanismo da evolução

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14. Os resultados da evolução: A direcionalidade da evolução

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15. Uma criação emergente e a teologia natural

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Conclusão

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Notas

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Bibliografia

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Introdução

O tópico deste livro é a busca por Deus nas ciências naturais e na

teologia cristã, tradicionalmente conhecida como “teologia natural”. Embora este tenha sido um tema de interesse humano desde o alvorecer da história registrada, ele tem recebido uma nova injeção de energia intelectual nos anos recentes por parte de teólogos e filósofos, mas acima de tudo, por cientistas naturais.1 A teologia natural padeceu de uma estagnação intelectual por grande parte do século 20, especialmente dentro do protestantismo.2 Ela era vista como extenuada e obsoleta, uma relíquia de uma era menos crítica na teologia e mais crédula na ciência. O avanço inexorável da explicação científica combinado com um recuo correspondente da teologia cristã da área pública significou que a teologia natural parecia estar encalhada na areia, deixada à deriva, agora que a maré que uma vez lhe emprestara tal vivacidade intelectual havia vagarosamente recuado.3 Ainda assim, há sinais claros de que a teologia natural está agora emergindo do seu período de eclipse. Há uma crescente simpatia pela visão de que a teologia natural pode fornecer um entendimento mais aprofundado sobre questões como o ajuste fino do universo, em que a ciência pode “fazer as perguntas que apontam para além de si mesma e transcendem seu poder de resposta”.4 A teologia natural poderá uma vez mais agir como uma ponte conceitual entre o mundo da ciência e o da religião? Ou como um ponto de encontro para a teologia, a literatura e as artes?


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Claramente, há uma necessidade de se recuperar uma visão para a teologia natural que seja tanto seguramente enraizada na longa tradição da reflexão teológica cristã quanto adequadamente adaptada ao nosso entendimento do mundo natural. Meu próprio interesse em estabelecer um envolvimento teologicamente rigoroso com as ciências naturais levou-me a apreciar a importância da teologia natural como um meio de engajar o mundo da natureza. Na minha obra A Scientific Theology [Teologia científica] (2001–2003), forneci um relato sobre como a legitimidade e utilidade da teologia natural pode ser reafirmada e posicionada sobre um fundamento teológico sólido.5 Embora esses volumes tenham se concentrado na importante pergunta sobre como o funcionamento dos pressupostos e os métodos da teologia cristã e das ciências podem interagir e esclarecer um ao outro, o empreendimento da teologia natural emergiu como uma interface importante entre os dois. Isso claramente apontou para a necessidade de um estudo mais detalhado do foco, do escopo e dos limites de uma teologia natural. Um convite para proferir as Palestras Memoriais Riddell na Universidade de Newcastle, em 2008, permitiu-me desenvolver esta abordagem com maior rigor. Na obra The Open Secret – A new vision for natural theology [O segredo revelado – Uma nova visão para a teologia natural] (2008), tentei desenvolver uma abordagem distintivamente cristã à teologia natural recuperando e reformulando abordagens mais antigas que foram marginalizadas ou consideradas como ultrapassadas nos anos recentes, estabelecendo-as em bases intelectuais mais seguras. A tese fundamental do livro é que, se a natureza deve desvelar o transcendente, ela deve ser “vista” ou “lida” de alguns modos específicos – modos que não são, eles mesmos, necessariamente colocados pela própria natureza. É argumentado que a teologia cristã oferece um esquema, ou estrutura interpretativa, mediante o qual a natureza pode ser “vista” de um modo que a capacite e autorize a se conectar com o transcendente. A teologia natural é aqui entendida como um empreendimento intelectual autorizado e dotado de recursos pela rica ontologia trinitária da fé cristã. Assim, o empreendimento da teologia natural está relacionado a discernimento, a ver a natureza de certa maneira, a vê-la por meio de um conjunto particular e específico de lentes.6 Isso tem importantes ressonâncias com o persistente interesse humano pela noção de acesso ao transcendente.7 The Open Secret foi concebido como um trabalho exploratório (um ensaio, no sentido exato do termo), uma tentativa de preparar o terreno para a renovação e a revalidação da teologia natural como um aspecto fundamentalmente legítimo da teologia cristã, mas também como uma


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contribuição para uma discussão cultural mais ampla. The Open Secret foi escrito com a convicção de que há razões reais e urgentes para a renovação e reorientação da teologia natural, envolvendo a realocação dogmática da disciplina dentro da esfera da teologia sistemática e a expansão conceitual da noção, além da ideia de fazer sentido racional do mundo para adotar a busca tradicional pela verdade, pela beleza e pela bondade. Não obstante, embora o livro cubra uma quantidade substancial de território, o método que ele propõe necessita de calibrações e aplicações adicionais – acima de tudo, ao ser aplicado a um estudo de caso específico, extraído da observação do mundo natural. Foi um prazer ter sido convidado para proferir as Palestras Gifford de 2009 na Universidade de Aberdeen, uma vez que isso me concedeu a bem-vinda oportunidade de expandir minha abordagem à teologia natural. Adam Lord Gifford (1820–1897) estipulou que essas palestras deveriam ser dedicadas “à promoção, ao avanço, ao ensino e à difusão do estudo da teologia natural”.8 Conquanto Lord Gifford e eu compartilhemos um entusiasmo comum pela teologia natural, no entanto nós a definimos de modos significativamente distintos. Essas palestras tornaram possível expandir e desenvolver a abordagem mapeada em The Open Secret , especialmente por meio da exploração do grau de “ajuste empírico” entre a teoria e a observação que resulta da aplicação dessa abordagem. Como estive envolvido por alguns anos com discussões relacionadas aos fenômenos antrópicos nas ciências naturais, pareceu-me altamente apropriado considerar como estes podem se relacionar com as tarefas e metas de uma teologia natural renovada. Quais são as implicações do aparente ajuste fino do cosmos para uma teologia natural? Essa é uma pergunta relativamente nova para a ciência moderna. Desde o século 17, tem sido amplamente assumido que nenhuma condição especial inicial era requerida para a emergência de um universo que tivesse vida.9 No entanto, nas últimas décadas tornou-se claro que esse não é o caso. Tem havido um reconhecimento crescente do grau extraordinário de contingência das condições iniciais do universo para que elementos pesados, planetas, e, finalmente, a vida complexa viessem a se desenvolver. As propriedades que sustentam a vida do universo são altamente sensíveis aos valores das forças fundamentais e às constantes da natureza. O físico teórico Lee Smolin ressalta algo sobre a importância desse ponto em relação ao desenvolvimento das estrelas:10

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A existência das estrelas se baseia em alguns delicados equilíbrios entre forças distintas na natureza. Estes exigem que os parâmetros que governam o nível de ação dessas forças sejam ajustados precisamente desse mesmo modo. Em muitos casos, uma pequena modificação do seletor em uma ou outra direção resultaria num mundo não apenas sem estrelas, mas com muito menos estrutura do que o nosso universo.

Um universo com vida é muito mais condicionado do que havia sido reconhecido. Isso tem levado muitos a falarem do universo como sendo “finamente ajustado” para a vida. Obviamente, essa é uma metáfora inexata, no sentido de que é resistente às quantificações;11 ela talvez seja mais bem vista como uma intuição em vez da formulação de uma dedução matemática precisa. Além disso, a expressão é ambivalente, indicando tanto fecundidade quanto fragilidade. A fecundidade tende a ser o caso em contextos cosmológicos, nos quais sistemas “finamente ajustados” são robustos, levando a resultados produtivos. A fragilidade se aplica às situações biológicas, nas quais um sistema é vulnerável por ser tão adaptado ao seu ambiente atual que não consegue lidar com mudanças significativas. Nossa preocupação no decorrer desta obra é primariamente, mas não exclusivamente, com o primeiro entendimento de “ajuste fino”. Mas o que isso significa? A expressão “princípio antrópico”, introduzida por Brandon Carter em 1974, tem sido amplamente utilizada como uma maneira de falar das curiosas propriedades do universo.12 Ao que parece, o universo é surpreendentemente amigável à vida. Teria o universo incentivado a emergência da humanidade (antropos), que poderia posteriormente observar suas intrigantes características e refletir sobre o significado delas?13 O termo “antrópico” não nos ajuda de modo significativo, tendo sido desafiado em algumas frentes; no entanto, ele estabeleceu sua presença no campo, tornando-se agora difícil encontrar um termo alternativo.14 Ainda assim, embora o “princípio antrópico” seja mais bem visto como uma afirmação e contextualização do tema, mais do que algo que chegue a propor uma solução,15 é amplamente aceito que a observação do “ajuste fino” no universo requer explicação – uma explicação que é potencialmente de considerável importância teológica.16 O objetivo deste livro é aprofundar a discussão, tanto em termos de desenvolver uma teologia natural que seja adaptada ao envolvimento intelectual com as ciências naturais, quanto contribuindo com a discussão científica, filosófica e teológica do sentido mais amplo do fenômeno antrópico. Não argumento que o ajuste fino represente uma prova da crença cristã em Deus;


introdução

no entanto insisto que isso é coerente com a visão cristã de Deus, a qual é crida como sendo verdadeira com base em outros fundamentos, ao fornecer um grau significativo de ressonância intelectual em pontos de importância.17 Conquanto isso não “prove” nada, não deixa de ser profundamente sugestivo. Para usar uma brilhante frase de C. S. Lewis, isso poderia ser uma “pista para o significado do universo”? O ponto fundamental aqui é que há muitas coisas sobre o mundo natural que parecem estranhas a nós, tais como o seu aparente ajuste fino. O filósofo norte-americano Charles Peirce (1839–1914) argumentou que o que ele denominava “fatos surpreendentes” eram estímulos fundamentais para o avanço do pensamento humano. No entanto, Peirce talvez erre ao não argumentar que certos fatos são surpreendentes apenas porque eles são vistos de certo modo. Todos nós abordamos a observação da natureza com um grupo de suposições herdadas ou adquiridas, um mapa mental que nos ajuda a fazer sentido do que observamos.18 O argumento central deste livro é simples: de que certos fatos observados são, de fato, “surpreendentes”. Ainda assim, podemos facilmente imaginar uma perspectiva a partir da qual eles não são surpreendentes e podem até mesmo ser antecipados. A visão cristã da realidade, que tem sua própria base evidencial e racionalidade intrínseca, nos fornece uma perspectiva a partir da qual podemos ver o mundo natural e ver algumas coisas que outros podem, de fato, considerar como enigmáticas ou estranhas – tais como o ajuste fino – como coerentes com a visão mais ampla que o cristão tem a fornecer. Este livro objetiva estender a discussão e a análise sobre o ajuste fino na natureza e fornecer, eu espero, o que se comprovará uma estrutura teológica útil com base na qual pode ser explicado. É minha expectativa trazer tanto o rigor teológico quanto o entusiasmo para a discussão crescentemente interessante e produtiva desses fenômenos dentro da comunidade científica, que normalmente tende a marginalizar a teologia – não em razão de qualquer percepção da teologia como sendo irrelevante para a discussão, mas em razão do discernimento ligeiramente mais perturbador de que muitos teólogos profissionais não parecem considerar isso como particularmente significativo ou potencialmente produtivo.19 Há claramente mais a ser dito sobre esses exemplos de aparente ajuste fino do que a admissão da sua existência. Este livro estabelece uma abordagem defensável e baseada em princípios à teologia natural, a qual busca identificar e explicar fenômenos dentro do contexto da estrutura fornecida por uma teologia natural trinitária. Uma teologia natural, quando moldada

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e informada pelos temas fundamentais da tradição cristã – resumidamente, uma teologia natural trinitária – pode agir como um ponto de convergência entre a fé cristã, as artes e a literatura e, acima de tudo, as ciências naturais, dando origem a importantes possibilidades para o diálogo, a fertilização e o crescimento mútuo. Uma abordagem trinitária à teologia natural permite à fé cristã derramar sua própria luz intelectual distinta sobre o cenário da realidade, liberando a humanidade de uma autopreocupação introspectiva e inspirando nossos estudos do mundo natural. Esse tipo de abordagem à teologia natural é plenamente capaz de confrontar o espectro de complexidades do mundo natural sem que ocorra evasão, distorção ou deturpação intelectual. Desse modo, este livro propõe estabelecer e explorar as virtudes intelectuais de uma teologia natural trinitária, principalmente ao considerar a importância da observação do ajuste fino, ou dos fenômenos antrópicos, em qualquer relato coerente da realidade. Isso representa uma contribuição tanto para o diálogo contemporâneo entre as ciências naturais e a teologia cristã, quanto ao persistente debate dentro da comunidade acadêmica cristã relacionado à legitimidade teológica e à importância da teologia natural. Também dá origem à possibilidade de recuperarmos uma história da criação tradicionalmente religiosa para nossa geração que seja, ao mesmo tempo, cientificamente coerente.20 Acredito que ficará evidente que tenho pouca simpatia pela noção bem-intencionada, mas em última análise equivocada, de Stephen Jay Gould de “magistérios não sobrepostos” em ciência e religião; em vez disso, defendo que as ciências naturais e a teologia cristã representam áreas distintas de inquirição intelectual que, não obstante, fornecem uma à outra possibilidades de fertilização mútua em virtude dos seus temas e métodos. Tendo argumentado a favor da fecundidade explanatória e do poder de uma teologia natural trinitária, volto-me então para a consideração de alguns aspectos do mundo natural que claramente exigem explicação – a saber, a evidência de ajuste fino na natureza. Uma parte substancial deste volume é dedicada à análise científica da noção de ajuste fino, em parte por causa da sua relevância óbvia para a teologia natural e, em parte, em razão das estipulações do Lord Gifford de que eu deva tratar a teologia natural “como uma ciência estritamente natural, a maior de todas as ciências possíveis”.21 Muitas obras sobre os fenômenos antrópicos têm focado na importância das constantes cosmológicas para a emergência da vida. Essa seção do livro expande essa análise substancialmente, demonstrando como os fenômenos


introdução

antrópicos podem ser identificados nos campos da química, da bioquímica e da biologia evolutiva. É argumentado que a existência desses fenômenos pode ser explicada com base na visão cristã da realidade, especialmente as formas de teologia natural que eles geram e sustentam. Resta-me agradecer àqueles que foram instrumentais na execução desta obra. Sou grato à Universidade de Aberdeen pelo convite acolhedor para proferir as Palestras Gifford de 2009, das quais este livro é uma versão expandida. Quero agradecer especialmente ao professor Trevor Salmon, professor Robert Frost, ao doutor Duncan Heddle e à Sarah Berry pela eficiente organização e hospitalidade no tempo que passei em Aberdeen. A Harris Manchester College, Oxford, forneceu-me uma incrível comunidade acadêmica, dentro da qual fui capaz de pesquisar os temas fundamentais deste livro. A John Templeton Foundation forneceu assistência financeira para este projeto, sem a qual este livro nunca poderia ter sido escrito. Também fui consideravelmente beneficiado pela colegialidade acadêmica e gostaria de reconhecer em particular o auxílio de Denis Alexander, John Barrow, Simon Conway Morris, Rodney Holder, Ard Louis, R. J. P. Williams e Wilson C. K. Poon. Também reconheço com gratidão as úteis conversas com Justin Barrett, John Hedley Brooke, Bernard Carr, Joanna Collicutt, Paul Davies, Peter Harrison, Richard Swinburne e Keith Ward. Assumo a responsabilidade por quaisquer erros de interpretação ou fato. Esta obra é dedicada à memória de dois dos grandes teólogos do século 20, John Macquarrie (1919–2007) e Thomas Forsyth Torrance (1913–2007). Cada um fez contribuições significativas para o nosso entendimento da teologia natural, assim como deu-me apoio pessoal e encorajamento na minha própria peregrinação teológica. Ambos fazem bastante falta. Alister E. McGrath Oxford 2008

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Desejando fazer sentido das coisas

É uma verdade da natureza que anelamos por fazer sentido da

natureza. “A fé religiosa”, William James escreveu, é basicamente a “fé na existência de uma ordem imperceptível de algum tipo na qual os enigmas da ordem natural podem ser encontrados e explicados”.1 Os seres humanos anelam por fazer sentido das coisas – identificar padrões na rica estrutura da natureza, fornecer explicações do que ocorre ao redor deles para refletir sobre o significado da própria vida.2 É como se nossa “antena” intelectual estivesse sintonizada para discernir pistas sobre o propósito e o sentido ao nosso redor, pistas essas incorporadas na estrutura do mundo.3 “A busca pela descoberta”, Michael Polanyi observou, é “guiada pela percepção da presença de uma realidade oculta na direção da qual nossas descobertas estão apontando.”4 Portanto, não é de admirar que homens e mulheres têm ponderado sobre o que observam no seu entorno, alertas à possibilidade de níveis mais profundos de significado situados abaixo da superfície da experiência. A busca por significado transcende os limites históricos e culturais, mesmo que culturas e indivíduos dentro desses limites possam fornecer relatos bastante distintos sobre qual possa ser o sentido da vida.5 Por exemplo, baseado em extensas entrevistas pessoais, Roy Baumeister propõe que quatro necessidades básicas – propósito, eficácia, valor e dignidade pessoal – parecem estar subjacentes à procura humana por sentido, entendida como “representações mentais compartilhadas de relacionamentos possíveis entre coisas, acontecimentos e relacionamentos”.6


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Então, por que essa busca por sentido é tão importante? Stefan Schulz-Hardt e Dieter Frey sugerem que três razões principais podem ser identificadas por trás da universalidade dessa busca.7 Primeiramente, ela dá estabilidade à existência, permitindo às pessoas se orientarem na vida. Em segundo lugar, ela fornece um mecanismo de defesa face à ameaça percebida da ausência de sentido, que pode sobrepujar as pessoas e deixá-las incapazes de lidar com a vida. Assim, a percepção de ausência de sentido pode levar a resultados negativos angustiantes, tais como depressão, tentativa de suicídio, alcoolismo ou vícios. E em terceiro lugar, ela pode ser entendida como a resposta subjetiva a uma realidade objetiva, na qual a pessoa tenta realinhar seu mundo interior a uma ordem mais profunda das coisas, que é considerada como existindo independentemente dela. Portanto, a busca subjetiva por sentido é alicerçada numa convicção de que esse sentido existe objetivamente e pode ser descoberto por aqueles com a vontade e a habilidade para fazer isso.8 A história reforça nossa apreciação da importância dessa busca por sentido para a identidade humana. Nossos ancestrais distantes estudavam as estrelas, conscientes de que o conhecimento dos movimentos delas os capacitariam a navegar os oceanos do mundo e a predizer as inundações do Nilo. No entanto, o interesse humano pelo céu noturno foi muito além das questões de mera utilidade. Muitos se perguntavam se esses pontos de luz na escuridão de veludo dos céus poderiam revelar algo mais profundo sobre a origem e os objetivos da vida. Eles poderiam testemunhar uma ordem moral e intelectual das coisas, com a qual os humanos poderiam se alinhar? A natureza poderia ser provida e dotada de pistas dos seus sentidos, e as mentes humanas serem moldadas de tal modo que eles possam ser identificados e seu significado ser apreendido? Esse é um pensamento que tem cativado a imaginação por gerações, do alvorecer da civilização aos dias atuais. A verdadeira sabedoria estava relacionada com o discernimento da estrutura mais profunda da realidade, subjacente à sua aparência na superfície. O livro de Jó, um dos melhores exemplos de literatura sapiencial do Antigo Oriente Próximo, fala de sabedoria como algo que está oculto, que deve ser encontrado nas profundezas da terra, o seu verdadeiro significado escondido de um olhar casual e superficial.9 A emergência da disciplina da semiótica nos incentivou a ver os objetos naturais e as entidades como indicadores, apontando para além de si mesmos, representando e comunicando a si mesmos. Encontrar o verdadeiro significado das coisas requer o desenvolvimento de hábitos de


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leitura e direções de olhar que capacitam o observador reflexivo da natureza a discernir sentido onde outros veem apenas casualidades e acidente. Ou, para usar uma imagem de Polanyi, onde alguns ouvem apenas ruídos, outros ouvem uma melodia.10 A imagem de Polanyi é esclarecedora e evidencia a importância da capacidade humana de discernir significado. Qualquer juízo desse tipo envolve pelo menos algum grau de intuição. “Nossa capacidade para discernir agregados significativos, de modo distinto de agregados aleatórios, é um poder último do nosso juízo pessoal. Isso pode ser auxiliado pelo argumento explícito, mas nunca determinado por este: nossa decisão final sempre permanecerá tácita.”11 A mente humana é capaz de discernir o que ela considera como padrões dentro da natureza, padrões que são carregados de significado e sentido. Do mesmo modo, a popularidade constante das histórias de detetives testifica do desejo humano de fazer sentido de pistas, enigmas e mistérios e da satisfação que é sentida quando a solução é encontrada.12 C. S. Lewis aludiu a isso quando sugeriu que o “certo e o errado” são “pistas para o sentido do universo”.13 Há um paralelo óbvio aqui com a peça de Shakespeare As You Like It [Do jeito que você gosta] (1599–1600), na qual o bom Duke Senior é exilado para a Floresta de Arden, onde, como Robin Hood, vive próximo da natureza com seus fiéis seguidores. Ali ele reflete que pode ser capaz de aprender mais da natureza do que da corte corrupta da qual havia sido banido:14 E esta nossa vida, livre dos tumultos públicos, Encontra línguas nas árvores, livros nas correntes dos ribeiros, Sermões nas pedras, e o bem em todas as coisas.

Nesse caso a natureza é entendida como tendo a capacidade de representar e falar. Então, como pode a natureza revelar seu sentido? Estariam as pistas do seu significado embutidas na sua estrutura? Ainda assim, talvez essas perguntas necessitem de reformulação. Afinal de contas, a natureza não revela nada. Ela não “fala”, pois é muda. A elaboração de sentido é a obra criativa da mente humana à medida que ela reflete sobre o que observa. A natureza não tem “língua para declarar, nem coração para sentir”; seu papel é limitado uma vez que ela pode “apenas ser” (Manley Hopkins).15 No entanto ela pode ser “imbuída”* com os sinais e símbolos que apontam * O termo aqui traduzido por imbuído é “ instressed”, originalmente cunhado pelo poeta britânico jesuíta Gerard Manley Hopkins. O sentido intencionado por Hopkins alude a um significado profundo e inerente que as entidades (coisas) possuem concedido diretamente pelo Criador delas. (N.T.)

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para o sábio o seu sentido. Ainda assim, a identificação desse significado cabe ao observador, que precisa elaborar um esquema, um mapa mental, para fazer sentido do que é observado. Esse pensamento está na base de um comentário revelador de Sir Isaac Newton (1642–1727), um dos mais significativos contribuintes para a revolução científica do século 17. As inovações científicas e matemáticas de Newton – tais como a descoberta das leis do movimento planetário, seu desenvolvimento do cálculo e a teoria óptica – o colocaram à frente do novo entendimento da natureza como um mecanismo. Para Newton, o que podia ser visto da natureza era um indicador para algo mais profundo, situado além desta, indicado pelo que podia ser visto. Assim ele escreveu ao fim de sua vida:16 Parece que fui apenas como um garoto brincando na praia, divertindo-me de vez em quando ao encontrar uma pedra arredondada ou uma concha mais bonita que as comuns, enquanto o grande oceano da verdade permanecia desconhecido diante de mim.

Não se deve permitir que a familiaridade tanto do texto quanto da imagem diminua a ideia fundamental que ele expressa: o empreendimento científico comumente concentra-se no fenômeno superficial, empírico, passando ao largo das estruturas mais profundas e dos sentidos do mundo. Brincamos na praia inconscientes das silenciosas profundezas além, ou, então, não desejosos de nos aventurar nelas. A pedra e a concha são imagens de liminaridade, a consciência de permanecer numa fronteira. O que pode ser visto é o indicador de uma totalidade mais ampla que quer ser descoberta.17 Esse tem por um longo tempo sido o interesse da teologia natural, o que é mais bem interpretado como uma tentativa de encontrar uma base comum para o diálogo entre a fé cristã e a cultura humana baseada numa conexão proposta entre o mundo cotidiano da nossa experiência e um campo transcendente – no caso da fé cristã, com o “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Pe 1.3). Isso representa um “entrelaçamento de conhecimento e crença”, dois hábitos de pensamento que são comumente vistos como antitéticos no século 21, mas que ainda assim têm o potencial para uma convergência criativa.18 O crescente interesse pelo diálogo entre as ciências naturais e a teologia cristã aponta claramente para a teologia natural como um ponto de encontro conceitual, capaz de estimular as visões mais ricas da realidade bem como fornecer recursos para isso. No entanto, a teologia


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natural tem sido curiosamente marginalizada nessas discussões, e seu potencial permanece frustrantemente inexplorado. Por que isso acontece? Conquanto sem dúvida vários fatores tenham contribuído para essa marginalização, é evidente que a preocupação predominante é de que a teologia natural é uma relíquia do passado, uma causa perdida, comprometida pelas ambivalências do seu passado e manchada pelas suas associações presentes. Se minhas conversas pessoais com teólogos, filósofos e cientistas naturais por toda a última década são, de alguma maneira, representativas, a teologia natural é geralmente vista como sendo uma baleia morta, deixada encalhada numa praia por uma maré vazante, grotescamente apodrecendo sob o calor de um sol filosófico e científico. Essa é uma questão da maior seriedade. No passado, a teologia natural era vista como o mapeamento de uma área com fronteiras conceitualmente porosas, permitindo o diálogo e a fertilização mútua entre a teologia cristã, as artes, a literatura e, especialmente, as ciências naturais. A era vitoriana, não obstante todos os seus erros, testemunhou algumas discussões notavelmente criativas da teologia natural, como os escritos de Charles Kingsley, John Ruskin e Gerard Manley Hopkins indicam.19 No entanto, essas conversas são agora raras, em parte refletindo uma falta de um envolvimento teológico sério com o conceito de “natural”.20 Uma crença de que o envolvimento com a natureza é teologicamente estéril tem impedido aquilo que tem o potencial para um enriquecimento intelectual considerável. Assim, o fato lamentável de Karl Barth não ter se envolvido de modo significativo com as ciências naturais21 está claramente ligado a essa avaliação decididamente negativa da teologia natural. No entanto, a própria ideia de teologia natural designa um método, mais do que um corpo definido de crenças e suposições. Não há uma narrativa única contínua da teologia natural dentro da tradição cristã que defina uma abordagem como normativa e outras como heterodoxas ou marginais. Os estilos de envolvimento entre a teologia cristã e o mundo natural são moldados, numa extensão vaga e variante, pelas condições culturais e intelectuais da época. Assim, os estilos de teologia natural que foram desenvolvidos no século 4º em Alexandria são muito diferentes daqueles que predominaram na Inglaterra do princípio do século 19. Teologias naturais são comumente “teologias locais”,22 refletindo as histórias e as particularidades dos seus resspectivos contextos, incluindo entendimentos altamente específicos do próprio conceito de “natureza”.23

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