Criação ou Evolução

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Criação ou evolução



Denis R. Alexander

Criação ou evolução Precisamos escolher?

tradução

Elildo Carvalho Jr.


Criação ou Evolução Categoria: Apologética / Ética / Vida cristã

Copyright © 2008, 2014 Denis Alexander Publicado originalmente em inglês por Lion Hudson plc, Oxford, Inglaterra Título original em inglês: Creation or evolution Primeira edição: Junho de 2017 Coordenação editorial: Guilherme de Carvalho Tradução: Elildo Carvalho Jr. Revisão técnica: Tiago Garros Revisão geral: Lis da Matta Emerick

Marcelo Meireles Braga Cabral Raquel H. C. Bastos Diagramação: Bruno Menezes Capa: Douglas Lucas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Alexander, Denis R., 1945Criação ou evolução : precisamos escolher? / Denis R. Alexander ; tradução Elildo Carvalho Jr. — Viçosa, MG : Ultimato, 2017. — (Coleção ciência e fé cristã) ISBN 978-85-7779-165-1 Título original: Creation or evolution Bibliografia. 1. Ciência e religião 2. Criacionismo 3. Evolução (Biologia) - Aspectos religiosos - Cristianismo I. Título. II. Série. 17-04058

CDD-231.7652

Índices para catálogo sistemático: 1. Criação versus evolução : Cristianismo 231.7652 2. Evolução versus criação : Cristianismo 231.7652

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 www.ultimato.com.br


As últimas décadas testemunharam um florescimento mundial sem precedentes do diálogo entre a religião e as ciências, particularmente entre a teologia cristã e o campo científico. Atualmente várias associações internacionais, instituições acadêmicas, igrejas e missões cristãs contribuem para um esforço conjunto de construção de pontes entre a fé cristã e a ciência contemporânea. No Brasil, tanto as pressões laicizantes dentro e fora das igrejas quanto o próprio amadurecimento intelectual e cultural dos cristãos vêm aprofundando e expandindo o debate sobre fé e ciência, fazendo dele um imperativo espiritual e testemunhal para nossa geração. Para ajudar a comunidade cristã e a comunidade científica na compreensão da importância e do caráter desse diálogo global, e visando uma comunicação rica e significativa entre esses campos, apresentamos a série “Ciência e Fé Cristã”. Apresentará perspectivas cristãs sobre campos diversos, como a teologia natural ou teologia da natureza, filosofia da tecnologia, biologia e teoria evolucionária, história da ciência, temas de filosofia da ciência, neurociências, física e cosmologia, e a relação entre a Bíblia e a ciência.


A amostragem de obras incluídas nesta série privilegia contribuições substanciais a esse diálogo contemporâneo realizadas a partir da tradição cristã evangélica ou compatíveis com essa tradição de fé. Com isso, a série procura fertilizar a reflexão avançada sobre tais temas no contexto evangelical brasileiro e entre aqueles interessados no diálogo, com vistas a uma participação mais rica e independente na conversação pública dos evangélicos com outras tradições religiosas ou seculares. Esperamos, ainda, promover uma contribuição amadurecida para o universo acadêmico brasileiro. A série “Ciência e Fé Cristã” é, enfim, um convite a todos aqueles que queiram mergulhar nesse fantástico universo de debates, conhecimentos e questões que tocam a nossa existência. Afinal, tanto o Livro da Criação quanto o Livro da Revelação merecem lugar em nossas cabeceiras.

Soli Deo Gloria. Guilherme de Carvalho e Roberto Covolan Editores Marcelo Cabral Editor assistente

Esta publicação contou com o apoio e financiamento da Templeton World Charity Foundation, Inc. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente aquelas da TWCF.


Este livro é dedicado à memória de meu falecido irmão, David Alexander, cofundador da Lion Publishing e um dos primeiros a estimular meu interesse por escrever livros. Meu primeiro livro, Beyond Science, foi um dos primeiros publicados pela Lion.



Sumário

Prefácio à primeira edição

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Prefácio à segunda edição

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1. O que queremos dizer por criação?

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2. A doutrina bíblica da criação

35

3. O que queremos dizer por evolução? Datação, DNA e genes

53

4. O que queremos dizer por evolução? Seleção natural, sucesso reprodutivo e cooperação

77

5. O que queremos dizer por evolução? Especiação, fósseis e a questão da informação

97

6. Objeções à evolução

131

7. E quanto ao Gênesis?

151

8. Criacionismo evolutivo

169

9. Quem foram Adão e Eva? O pano de fundo

189


10. Quem foram Adão e Eva? Um diálogo entre Gênesis e a ciência

213

11. A evolução e o entendimento bíblico da morte

255

12. A evolução e a queda

265

13. Evolução, mal natural e a questão da teodiceia

305

14. Design inteligente e a ordem da criação

323

15. Evolução: inteligente e planejada?

16. Origem da vida

343 361

Posfácio

383

Notas

387


figuras

Fig. 1. As principais eras geológicas recentes Fig. 2. Como o DNA se divide para formar duas moléculas filhas Fig. 3. O DNA é empacotado com proteínas histonas para formar a cromatina Fig. 4. Os genes Hox da mosca das frutas Fig. 5. A evolução é um processo em dois estágios Fig. 6. História dos principais eventos evolutivos Fig. 7. A geração de uma nova espécie de Tragopogon por duplicação cromossômica Fig. 8. Picos de extinção em massa nos últimos 550 milhões de anos Fig. 9. Intermediários fósseis entre os peixes e os tetrápodes Fig. 10. Olhos de moluscos vivos Fig. 11. Compreendendo nossa ancestralidade Fig. 12. Local preciso de inserção nos genomas de humanos, chimpanzés, gorilas e orangotangos


Fig. 13. Par de cromossomos humanos unidos no centrômero Fig. 14. Fusão cromossômica Fig. 15. História evolutiva do Homo sapiens ao longo dos últimos 7 milhões de anos Fig. 16. Forma como nosso DNA mitocondrial é herdado de uma única mulher, a “Eva Mitocondrial” Fig. 17. Níveis estimados de intencionalidade que podem ter relação com os ancestrais hominídeos do Homo sapiens Fig. 18. Flagelo bacteriano Fig. 19. Formas pelas quais uma enzima pode evoluir para atingir aptidão ótima para uma tarefa específica Fig. 20. Convergência evolutiva do tigre dente-de-sabre Fig. 21. O mundo do “espaço de design” genômico


Prefácio à primeira edição

Escrevi este livro principalmente para aqueles que creem, como

eu, que a Bíblia é, de capa a capa, a Palavra inspirada por Deus. Entendo, é claro, que outros possam se interessar por um livro sobre este tema tão controverso, incluindo pessoas de outras crenças, ou de nenhuma. Espero que os eventuais leitores desta última categoria considerem interessante ver como um cientista na ativa lida com o assunto, mas não peço desculpas por escrever primeiramente para os que compartilham minha fé cristã, pois me parece que são os membros desta comunidade os que mais questionam o tema criação e evolução. Portanto, não pretendo defender neste livro o papel da Bíblia como palavra autoritativa de Deus – simplesmente assumo que este é o ponto de partida para os cristãos. Se não for o seu, espero ao menos que o livro o ajude a ver como a Bíblia pode conviver muito bem com a ciência. Infelizmente, este tema tem se caracterizado, com frequência, por posicionamentos fortes, às vezes diametralmente opostos, entre cristãos. Os debates resultantes costumam gerar mais calor do que luz. Alguns


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cristãos chegam a pensar que, para que outro seja considerado verdadeiro cristão, deverá adotar a mesma posição mantida por eles sobre esta questão. Portanto, é bom que os cristãos, ao lerem este livro, lembrem-se de que somos salvos pela obra consumada de Cristo na cruz por nossos pecados, e que nada pode ser adicionado à nossa salvação além do que Cristo já fez por nós, pois a única coisa que conta é “a fé que atua pelo amor” (Gl 5.6). A última coisa que desejo é que este tema provoque discórdia e desunião entre os cristãos. Este livro foi escrito como um debate e como um diálogo. É claro que expressa um ponto de vista particular, mas onde houver discordâncias, espero que sejam tratadas amigavelmente, no espírito do amor cristão. Algo que nós, como cristãos, nem sempre fazemos bem, é discordar em amor. Isso pode ocorrer quando doutrinas periféricas, não essenciais à salvação, são vistas como de importância central. As doutrinas bíblicas essenciais e centrais são as que afirmam que Deus criou e sustenta o universo, que os seres humanos são feitos à sua imagem, e que o pecado separa homens e mulheres de Deus de maneira tal que somente a obra expiatória de Deus, por meio de Cristo, pode resolver. Nestas doutrinas os cristãos estão unidos. Mas às vezes discordamos em doutrinas periféricas, tais como os métodos que Deus usou e usa para criar, os limites precisos da imagem divina nos seres humanos, ou a melhor maneira de conscientizar as pessoas sobre o abismo causado pelo pecado e o remédio de Deus para o problema. Se estas questões periféricas forem consideradas como de importância central, os cristãos correm o risco de esquecer de que é pela forma como nos amamos que as pessoas reconhecerão que somos discípulos de Jesus. Portanto, espero que ninguém se aproxime deste livro pensando que a resposta correta à pergunta levantada no título é essencial para a salvação! Sou feliz por pertencer a uma igreja em Cambridge onde os membros adotam diferentes pontos de vista sobre o tema, e ainda assim alegremente adoram e trabalham juntos. Entre meus amigos cristãos mais próximos, há alguns que compartilham meu ponto de vista sobre Deus como criador e redentor, mas que encaram a relação com questões científicas em termos muito diferentes da linha sugerida neste livro. Embora seja sempre bom para os cristãos encontrar a verdade e com ela concordar, devemos reconhecer que todos nós “em parte, conhecemos” (1Co 13.9) e que, visto que o conhecimento um dia será completo, só o amor desenvolvido agora culminará no reino vindouro. Portanto, nesse meio tempo podemos nos alegrar em permanecer no amor cristão, a despeito de discordarmos em algumas crenças.


prefácio à primeira edição

Por muitos anos tenho dado palestras sobre ciência e fé em igrejas, universidades, escolas e outros locais. Quando se trata de uma palestra genérica sobre o tema, costumo evitar completamente o tema criação e evolução (tudo o que quero é uma vida tranquila). Mas quando chega a hora das perguntas e respostas, a primeira pergunta geralmente é algo como: “O que você pensa sobre Gênesis 1?”, ou “Como o ensino bíblico sobre Adão e Eva se encaixa com a ciência?”. Ao tentar responder a estas perguntas, fiquei surpreso por encontrar tão poucos livros escritos por biólogos profissionais levando a Bíblia a sério e enfrentando temas polêmicos como a interpretação de Gênesis, Adão e Eva, a questão da morte antes da queda, e assim por diante. É claro que existem ótimos livros sobre o assunto, e tive o cuidado de citá-los aqui, mas como a ciência avança muito rápido, o debate precisa ser atualizado constantemente. Sou grato a Tim Bushell, ex-presidente da União Cristã do Imperial College, em Londres, pelo título deste livro. Fui convidado a dar uma palestra há alguns anos, em uma missão da União Cristã, e este foi o título dela. Gostei tanto que desde então tenho convivido com um livro com este título zumbindo na minha cabeça. Aqui está ele. Gostaria de agradecer também aos bondosos amigos que fizeram correções e sugestões em versões anteriores do manuscrito, alguns deles contribuindo com informações específicas; em especial, Ruth Bancewicz, John Bausor, Sam Berry, Peter Clarke, Keith Fox, Julian Hardyman, Rodney Holder, Ard Louis, Hilary Marlow, Paul Marston, Hans Meissner, Hugh Reynolds, Julian Rivers, Peter Williams e Bob White. Os erros e ideias que permanecem são todos meus, e a menção desses nomes não deve ser tomada como evidência de que eles concordam com a resposta que dou à pergunta do título. Também gostaria de agradecer ao editor pela ajuda e paciência na preparação do manuscrito, em particular Tony Collins, Simon Cox e equipe. Este é um livro escrito por alguém apaixonado pela ciência e pela Bíblia, e espero que sua leitura o encoraje a crer, como eu, que o “Livro da Palavra de Deus” e o “Livro das Obras de Deus” podem ser mantidos fielmente juntos, em harmonia.

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Prefácio à segunda edição

Os seis anos que se passaram desde a publicação da primeira

edição foram cheios de surpresas. Uma surpresa agradável tem sido a demanda constante pelo livro, levando-o a várias reimpressões, o que demonstra o interesse pelo assunto indicado no título. Outra surpresa foi a adoção do livro por segmentos da comunidade eclesiástica que eu imaginava já terem, há muito, entrado em acordo com a evolução, em especial anglicanos e os católicos. No prefácio à primeira edição, comentei sobre a escassez de livros fiéis tanto à Escritura como à ciência, abordando este tema específico. Felizmente este não é mais o caso, pois um conjunto significativo de novos livros, escritos sob diferentes perspectivas, apareceu. Estes incluem Historical Genesis – From Adam to Abraham [Gênesis histórico – de Adão a Abraão], de Richard Fischer (2008), The Lost World of Genesis One [O mundo perdido de Gênesis um], de John Walton (2009), Evolutionary Creation – A Christian Approach to Evolution [Criação evolutiva – Uma abordagem cristã da evolução], de Denis Lamoureux (2009), Darwin,


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Creation and the Fall [Darwin, a criação e a queda], editado por R.J. Berry e T.A.Noble (2009), Reclaiming Genesis [Reivindicando Gênesis], de Melvin Tinker (2010), Origins [Origens], de Deborah Haarsma e Loren Haarsma (edição revisada, 2011), The Language of Science and Faith – Straight Answers to Genuine Questions [A linguagem da ciência e da fé – Respostas diretas a perguntas honestas], de Karl Giberson and Francis Collins (2011), Did Adam and Eve Really Exist? [Adão e Eva realmente existiram?], de John Collins (2011), Mapping the Origins Debate – Six Models of the Beginning of Everything [Mapeando o debate sobre as origens – Seis modelos para o princípio de tudo], de Gerald Brau (2012), The Evolution of Adam – What The Bible Does And Doesn’t Say About Human Origins [A evolução de Adão – O que a Bíblia diz e o que ela não diz sobre as origens da humanidade], de Peter Enns (2012), o livro escrito por vários autores Four Views on the Historical Adam [Quatro visões sobre o Adão histórico] (2013), e The Adam Quest [A busca por Adão], de Tim Stafford (2013). Sou grato por estas e por muitas outras contribuições úteis a esta literatura crescente, tendo incorporado alguns dos pontos levantados por estes livros nesta nova edição. É claro que o fato de eu mencionar estes livros não significa que concordo com tudo o que há neles, assim como estou certo de que seus autores não concordam com tudo o que escrevo neste volume! Mas é bom testemunhar o surgimento de um diálogo respeitoso, com os cristãos permanecendo fieis à Escritura, mas também percebendo que a Bíblia não exclui necessariamente uma visão científica à qual eles anteriormente se opunham. Um livro surpreendente, surgido em 2009, foi a obra conjunta intitulada Should Christians Embrace Evolution? [Devem os cristãos aceitar a evolução?] (ed., Norman Nevin). Digo “surpreendente” porque o livro foi escrito especificamente como uma resposta à primeira edição do presente volume. Embora “livros de resposta” escritos por cristãos abordando, por exemplo, os “neoateístas”, sejam relativamente comuns, ver um “livro de resposta” escrito por um grupo de cristãos contra outro é algo raro para mim, e não estou convencido de que seja uma boa ideia. O problema dos “livros de resposta” é que eles podem acabar apenas marcando território em um debate, em vez de oferecer uma visão bem pensada sobre um tema que exige uma reflexão mais tranquila. No caso em questão, Should Christians Embrace Evolution parece ter sido escrito apressadamente após a publicação da primeira edição deste livro, levando a descrições imprecisas dos pontos de vista aqui expressos, sem falar de uma sequência de afirmações cientificamente incorretas. De forma alguma esta segunda edição pretende ser


Prefácio à segunda edição

uma “contra-resposta” a este tipo de material, embora eu tenha adicionado ou revisado algumas seções para esclarecer pontos que podem ter levado a mal-entendidos.1 Outra questão, associada à anterior, que tem se desenvolvido de forma alarmante desde a publicação da primeira edição deste livro, é o posicionamento de alguns cristãos, sem dúvida bem-intencionados, pedindo que seus companheiros na fé mantenham distância da “opinião do Alexander sobre criação e evolução” ou, pior ainda, questionando se alguém pertence ao “grupo do Alexander” no que se refere a estas questões. O Apóstolo Paulo criticou duramente tais atitudes divisivas, embora no contexto do batismo (1Co 1.10-18). Isso nos dá uma oportunidade para sublinhar o fato de que não há nada conceitualmente novo em termos teológicos, em nenhuma das edições deste livro. Pode não ser a melhor forma de um autor vender mais cópias de seu livro, mas é simplesmente a verdade. Todas as interpretações bíblicas e opiniões teológicas expressas ou sugeridas no presente volume têm uma longa história. E, em se tratando da história mais recente, meus próprios pontos de vista sobre o tema foram moldados pela grande geração de estudiosos acadêmicos evangélicos que tanto contribuiu para o avanço da obra cristã entre os estudantes na Grã-Bretanha durante os anos 1950– 1990. Penso particularmente em Jim Packer, Oliver Barclay, Derek Kidner, Donald MacKay, John Stott, Sam Berry, Colin Russell, Donald Wiseman, Jim Houston, e em muitos outros. Embora meus pontos de vista possam diferir ocasionalmente dos expressos por estes comentaristas, as raízes deste livro podem ser encontradas em muitos de seus livros, palestras e sermões, sem falar em amizades pessoais. Uma das experiências positivas decorrentes da publicação da primeira edição tem sido o fluxo constante de centenas de e-mails e cartas de leitores, provenientes de muitas partes do mundo. Os mais encorajadores vieram de leitores que receberam o livro, literalmente, como um salva-vidas espiritual. Educados em igrejas que os confrontam com a difícil escolha entre a ciência e a fé, alguns cogitaram seriamente pular do navio e abandonar a fé por completo, até perceberem que a ciência e a fé são amigas, e não inimigas, aliviando o peso da dissonância cognitiva. Outros se tornaram cristãos depois de lerem o livro, que ajudou a remover o último obstáculo sério no caminho da fé. Uma das cartas veio de um professor cujo avô, aos 90 anos, leu o livro de forma entusiasmada, relatando que ele o tinha ajudado a vencer algumas batalhas em sua fé. Alguns se limitaram a fazer comentários agradáveis, para em seguida apresentar algo como cinquenta

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questões pedindo comentários adicionais. Minhas desculpas aos que não receberam respostas pormenorizadas – a vida é muito curta. Mas tentei incluir material adicional nesta edição para tratar ao menos de algumas dessas FAQs e de outras “questões decorrentes”. Agradeço a todos que escreveram em resposta à primeira edição, apresentando correções e sugestões para a “próxima edição” (ou seja, este livro). Em particular, Pablo de Felipe e colegas em Madri fizeram correções importantes durante a preparação da edição espanhola. Meus agradecimentos especiais vão para Nell Whiteway, membro da equipe do Instituto Faraday, que contribuiu enormemente para esta segunda edição ao ajudar na correção e na atualização dos dados científicos. Também gostaria de agradecer às muitas pessoas que leram versões preliminares de diversos capítulos desta edição, ou mesmo de todo o livro, ocasionalmente resultando em almoços no pub, regados a vigorosas discussões. Este grupo, que também engloba aqueles que trouxeram artigos e considerações úteis, inclui Gerald Bray, Neville Cobb, Dave Gobbett, Brad Verde, Ian Hamilton, Jeff Hardin, Julian Hardyman, Rodney Holder, Nathan James, Hilary Marlow, Ian Randall, Mike Reeves, Dennis Venema, David Vosburg, Garry Williams, Peter Williams e Stephen Williams. A menção desses nomes não implica, obviamente, que esses amigos concordem com tudo que está neste livro e, como sempre ao fazer esses agradecimentos, ressalto que os erros que permanecem são todos meus. Para os leitores desta segunda edição, só posso pedir que mantenham o fluxo de cartas e e-mails (veja www.faraday-institute.org para detalhes de contato) com suas opiniões e sugestões, mas peço que não se esqueçam que nem sempre serei capaz de responder detalhadamente. Os que leram a primeira edição podem questionar, com razão, se vale a pena comprar a segunda. O que há de novo? Esta edição tem 32 mil palavras a mais. O conteúdo científico foi atualizado, embora alguns campos se movam tão rapidamente que, inevitavelmente, haverá resultados ainda mais recentes disponíveis quando esta edição for publicada. A genômica continua a transformar a nossa compreensão sobre a evolução humana recente. Desde a primeira edição, ficou evidente que os humanos modernos são levemente poligênicos ao invés de estritamente monogênicos, e essas novas descobertas são tratadas com algum detalhe. Os estudos sobre a origem da vida avançaram significativamente nos últimos anos, e descrevemos aqui algumas das novas descobertas. O capítulo sobre o design inteligente leva em consideração algumas das publicações mais recentes sobre o tema. Mas o maior aumento no número de palavras ocorreu nas seções teológicas.


Prefácio à segunda edição

E quanto a Adão e Eva? A queda? O pecado original? A morte antes da queda? A expiação? Agostinho? Estas costumam ser as questões mais prementes nestas discussões, e por esta razão os Capítulos 10 e 12 ficaram mais longos para abordar estes temas. Outra característica adicional desta edição foi o aumento no número de notas de rodapé. Na primeira edição, tentei deliberadamente incluir poucas citações, já que o livro é destinado ao público geral que não tem, necessariamente, experiência na área científica. No entanto, alguns leitores se queixaram da falta de citações em pontoschave, de forma que isto foi corrigido, na medida do possível, na presente versão, embora não tenha sido feito um esforço para incluir citações detalhadas para todos os pontos. Poucos dias antes de escrever este prefácio, dei uma palestra numa conferência nos EUA. Em um dos intervalos, um homem me procurou para conversar e para agradecer. Ele disse que sua filha de 11 anos foi para uma escola cristã, e que um dia ela chegou da escola anunciando que não podia mais crer em Jesus, pois a ciência era verdadeira e por isso a Bíblia não era confiável. Mesmo naquela tenra idade ela havia sido confrontada com a escolha difícil entre Deus e a ciência – com apenas 11 anos! Felizmente, o homem mostrou à sua filha alguns artigos que escrevi e que foram publicados no website da BioLogos (www.biologos.org) e estes artigos, junto com outros materiais encontrados no site, ajudaram a pequena jovem em sua crise de fé. Colocar a fé contra a ciência é tanto um escândalo como uma tragédia em certos setores da igreja contemporânea, algo tão sério em suas graves consequências como os esforços dos neoateus para colocar a ciência contra a fé. Espero que esta nova edição continue ajudando a mostrar que essas duas abordagens são completamente desnecessárias, e que ela possa alimentar, assim, a amizade que tradicionalmente tem caracterizado a relação entre ciência e fé ao longo dos séculos.

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O que queremos dizer por criação?

Todos os cristãos são, por definição, criacionistas. O autor da carta aos Hebreus, no Novo Testamento, expressa isso claramente quando diz que: Pela fé entendemos que o universo foi formado pela palavra de Deus, de modo que aquilo que se vê não foi feito do que é visível. – Hebreus 11.32

Não podemos conhecer a Deus pessoalmente pela fé, sem crer também que ele é o Criador de tudo o que existe. O Credo Apostólico afirma: “Creio em Deus Pai, Criador do céu e da terra”, declaração que é central à fé de todas as principais denominações. Portanto os cristãos, por definição, creem em um Deus Criador; eles são criacionistas. No entanto, há o problema de que, na linguagem popular, o termo “criacionismo” está associado a um conjunto específico de crenças, mantido por alguns cristãos, bem como por alguns muçulmanos e judeus, relacionado à forma específica pela qual creem que Deus efetuou a criação. Por exemplo, alguns criacionistas creem que a Terra tem 10 mil anos ou menos. Outros


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criacionistas acreditam que a Terra é muito antiga, mas que Deus interveio de forma miraculosa em vários estágios da criação, por exemplo, para produzir novas espécies. Uma vez que as palavras são definidas pela forma como as utilizamos, devemos aceitar que a palavra “criacionista” se aplica a este tipo de crença. Mas isto não pode ocultar o fato de que, na realidade, todos os cristãos são criacionistas num sentido mais básico – eles apenas diferem em sua forma de ver como Deus criou. Cedo ou tarde (geralmente cedo), as discussões sobre criação e evolução chegam à questão sobre como os cristãos interpretam a Bíblia. Adão e Eva foram personagens históricos reais? O fruto no jardim do Éden era simbólico, ou era como os frutos que encontramos em nosso pomar? Existia morte física antes da queda? Podemos acreditar simultaneamente na narrativa de Gênesis e na evolução? A única forma de responder a estas perguntas é investigando o que a Bíblia diz sobre a criação, considerando se ela de fato nos informa algo sobre a maneira pela qual Deus criou os seres vivos. Mas, antes mesmo de embarcar nesta importante tarefa, temos que pensar sobre nossa interpretação da Bíblia. Interpretando a Bíblia

Você já se deparou com algum irmão na fé afirmando algo como: “Bem, eu não interpreto a Bíblia – apenas a leio, da forma que ela é”? Eu já. E também já encontrei comentários deste tipo impressos, não somente em conversas casuais. Mas a maioria dos cristãos está, é claro, bem ciente do fato de que todos nós interpretamos quando nos colocamos diante do texto bíblico.

O desafio da tradução Para começar, a maioria de nós não lê a Bíblia em sua versão original, no hebraico ou grego, de forma que dependemos de tradutores para obter a tradução mais fiel possível ao texto original. Mas isso nem sempre é fácil. Por exemplo, o hebraico tem quatro palavras diferentes para você, distinguindo entre masculino e feminino, bem como entre singular e plural, enquanto o inglês tem apenas uma. Uma comparação entre as diferentes traduções em nossa língua deixa logo evidente que existe certo grau de interpretação na tradução exata de diversos versos, ainda que em nenhum destes casos as doutrinas básicas do cristianismo sejam afetadas. Com frequência, é difícil fazer com que uma tradução realce as nuances do texto original, da forma claramente pretendida pelo autor. A versão NVI de Gênesis 2.25 diz:


O que queremos dizer por criação?

O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha. Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito.

Mas a versão em português perde o fato de que as palavras hebraicas traduzidas como “nu” (arom) e “astuto” (arum) são quase idênticas na grafia e na pronúncia, servindo para ligar os dois versos.* Frequentemente, nova luz é lançada sobre o significado de palavras hebraicas, graças à descoberta de novos textos em línguas diferentes do hebraico. O corpo da literatura hebraica antiga disponível ainda consiste somente do Antigo Testamento, Manuscritos do Mar Morto (muito mais curtos do que o Antigo Testamento), trechos dos apócrifos e algumas inscrições curtas. A tradução King James foi produzida no início do século 17, antes do advento da arqueologia e sem qualquer senso moderno de linguística comparativa (as regras que governam a relação entre duas línguas diferentes). Além disso, línguas como o acadiano (Babilônia e Assíria), que são de grande ajuda na compreensão do significado de palavras hebraicas, ainda não tinham sido decifradas naquela época. Podemos ficar surpresos ao ler a prescrição “Dê bebida forte aos que estão prestes a morrer” (Pv 31.6) na Bíblia King James, e, de fato, a expressão “bebida forte” é mencionada 21 vezes no texto do Antigo Testamento da King James, traduzida da palavra sekar. Mas, em traduções mais recentes, como a NVI em inglês, lemos: “Dê cerveja aos que estão prestes a morrer”, e sekar é agora geralmente traduzida como “cerveja” em vez de “bebida forte” na NVI em inglês. Como isso ocorreu? Os tradutores mais recentes ficaram incomodados com tantas menções a “bebida forte” na Bíblia? Não – a Bíblia é dura com bebedices em qualquer tradução. O verdadeiro motivo é bem mais prosaico. Foram descobertos textos em acadiano nos quais a palavra sikaru, muito parecida com o hebraico, claramente significa cerveja, por ser descrita como uma “cerveja doce feita de grãos”,3 e isto foi o suficiente para alterar as traduções em favor de cerveja.** Como falante do turco, e tendo colaborado por muitos anos com tradutores da Bíblia para o turco moderno, tenho um interesse especial por esta língua fascinante. Como em qualquer outra tradução, a equipe enfrenta

* Uma tradução que aproxime o texto do jogo de palavras do original faz as palavras-chave rimarem: “E o homem e sua esposa estavam com a nudez descoberta [...] e a serpente era a criatura mais esperta [...]”. (N.T.) ** A Nova Versão Internacional, em português, traduz o termo como “bebida fermentada”. (N.T.)

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enormes desafios ao lidar com certas passagens. Por exemplo, como traduzir Romanos 12.20? Na tradução em português lemos: “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, amontoarás brasas vivas sobre a cabeça dele”. Agora, imagine um leitor turco encontrando o Novo Testamento pela primeira vez, sem nenhum comentário bíblico por perto. O que o leitor pensaria deste verso em particular? Sabiamente, os tradutores fizeram com que a frase final na versão turca deste verso fosse lida como: “Desta forma você deixará aquela pessoa envergonhada”.4 Existem centenas de exemplos como este, mantendo tradutores da Bíblia ao redor do globo sob constante desafio intelectual e espiritual. Devemos orar por eles. É uma tarefa difícil, e nos lembra que, gostando ou não, lidamos com o trabalho interpretativo de outros sempre que lemos a Bíblia numa língua diferente do original.

Alguns princípios-chave na interpretação da Bíblia O próximo estágio na interpretação envolve nossa própria abordagem do texto, utilizando princípios como:5 • Que tipo de linguagem está sendo utilizada? • Qual é o tipo de literatura? • Qual é o público alvo? • Qual é o propósito do texto? • Que conhecimento extratextual está presente? Os dois primeiros pontos da lista são particularmente importantes quando investigamos o que a Bíblia ensina sobre criação. Os autores bíblicos utilizam uma ampla gama de estilos literários para nos trazer a mensagem divina. “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça” (2Tm. 3.16), mas isto não quer dizer que o Espírito Santo suprime a personalidade, a cultura, a linguagem e o estilo do autor. É aqui que a visão bíblica de inspiração difere daquela do Alcorão. Os muçulmanos creem que o Alcorão tem existido por toda a eternidade, na língua árabe, nos céus, e que ele foi transmitido a Maomé em uma série de visões ocorridas em determinada caverna. Maomé, portanto, é visto pelos muçulmanos como o porta-voz da revelação divina, não contribuindo em nada para o texto. Os cristãos, em contraste, creem que Deus inspirou os autores dos 66 livros da Bíblia a escreverem seus textos ao longo de um período de cerca de 1500 anos, carregando a marca indelével de seus interesses particulares, contexto e cultura. Os cristãos que creem na Bíblia não duvidam que o que é afirmado pelas Escrituras é afirmado


O que queremos dizer por criação?

por Deus,6 mas Deus fala por meio de pessoas reais, de carne e sangue, e não por meio de robôs. Como o escritor de Hebreus afirma no início de sua carta (Hb 1.1): Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas…

A variedade de estilos linguísticos e literários utilizados nas Escrituras é, de fato, bastante ampla. Quando utilizamos nossa língua materna em nossa própria cultura, preenchemos o significado correto dos textos e da pronúncia de forma automática e quase sem pensar. Quando ouvimos que alguém tem o “pavio curto”, não procuramos por um cordão pendurado em alguma parte de seu corpo. Se alguém “levantou da cama com o pé esquerdo”, não imaginamos que o pé direito ficou para trás. Nossa linguagem está saturada de expressões idiomáticas, metáforas, hipérboles, ironias, gírias e humor sutil, impregnados com o sabor e o caráter da cultura nacional que as originou. À medida que lemos diferentes materiais em nossa própria língua, nossa mente se adapta sem esforço ao contexto, mesmo quando nos deparamos com dezenas de estilos literários diferentes ao longo do dia. Num momento estamos lendo nosso jornal matinal, em seguida, receitas culinárias, mais tarde, uma novela histórica, ou talvez Harry Potter, ou um documento legal referente à compra de uma casa, ou a seção de quadrinhos do jornal, ou ainda (para alguns) um artigo científico ou (para outros) um relatório empresarial. Jamais sonharíamos em entender determinado tipo de literatura como se fosse outra; antes, interpretamos automaticamente as declarações de acordo com seu contexto literário. Quando leio, num anúncio de vendas escrito por um corretor de imóveis, que determinada casa “requer atenção”, eu interpreto da forma apropriada (por exemplo, a casa ficou abandonada por mais de um ano e precisa de ampla reforma); mas, se um bom amigo, depois de ler um rascunho do meu último livro, disser, num exemplo clássico de eufemismo britânico, que “o capítulo requer atenção”, então devo reexaminar, de forma bem cuidadosa, aquele capítulo. Quando Slughorn diz: “Devo informar-lhe que Felix Felicis é uma substância proibida em competições oficiais.”,7 leio na forma literária apropriada, e não como se fosse um atleta lendo o aviso no manual esportivo das próximas Olimpíadas. O contexto faz uma enorme diferença para a nuance. Se eu disser que “estou de coração partido, porque o técnico quebrou a promessa de consertar o equipamento quebrado”, estou usando a mesma palavra de maneiras

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