Eu Creio. E Agora?

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N. T. WR I GHT

EU CREIO. E AGORA?

POR QUE O CARÁTER CRISTÃO É IMPORTANTE

TRADUÇÃO CLÁUDIA ZILLER FARIA


eu creio. e agora? — POR QUE O CARÁTER CRISTÃO É IMPORTANTE Categoria: Ética - Comportamento / Igreja / Vida cristã

Copyright © 2010, N. T. Wright Título original em inglês: After You Believe Publicado originalmente por Harper Collins Publishers 10 East 53rd Street, Nova York, NY, Estados Unidos Primeira edição: Setembro de 2012 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Cláudia Ziller Faria Tradução dos textos bíblicos: William Lane Preparação e revisão de texto: Daniela Cabral Mariana Furst Raquel Bastos Capa: Souto Crescimento de Marca Diagramação: Bruno Menezes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wright, N. T. Eu creio. E agora? : por que o caráter cristão é importante? / N. T. Wright ; [tradução Cláudia Ziller Faria]. — Viçosa : Editora Ultimato, 2012. Título original: After you believe. ISBN 978-85-7779-065-4 1. Caráter - Aspectos religiosos - Cristianismo 2. Fé 3. Liderança cristã 4. Missão da Igreja 5. Vida cristã I. Título.

CDD-241.4

12-10864

Índices para catálogo sistemático: 1. Caráter : Ética cristã : Cristianismo

241.4

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br

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Para Maggie Com amor e gratid達o


Sumário

Prefácio

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1. Por que estamos aqui?

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2. A transformação do caráter

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3. Sacerdotes e reis

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4. O reino vindouro e o povo preparado

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5. Transformado pela renovação da mente

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6. Três virtudes, nove variedades de fruto e um corpo

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7. Virtude em ação: o sacerdócio real

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8. O círculo virtuoso

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Epílogo

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notas

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Prefácio

Este livro é um tipo de sequência de Simplesmente Cristão e Surpreendido pela Esperança,* nos quais apresentei (entre outras coisas) o que considero um princípio básico do cristianismo primitivo — que Deus, o Criador, pretende unir Céu e Terra no fim, e que esse plano começou a se desenrolar com a vinda de Jesus Cristo. Tal visão acarreta implicações radicais em todos os aspectos do que pensamos sobre a fé e a vida cristãs. Defendi, especialmente em Surpreendido pela Esperança, que a esperança final dos cristãos não é apenas “ir para o céu”, mas a ressurreição como novas criaturas de Deus, o “novo Céu e nova Terra”. De fato, segundo os primeiros seguidores de Jesus, a ressurreição e a nova criação já começaram a acontecer, exatamente por causa dos eventos ocorridos com Jesus na Páscoa. Comecei, nos livros anteriores, * Ambos publicados pela Editora Ultimato. (N.E.)


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a apresentar como isso pode se dar como responsabilidade cristã — no mundo e por ele — e não apenas em termos de comportamento cristão. Já neste livro, tento desenvolver um pouco mais o tema, dando atenção especial à noção de “caráter” e “virtude” cristãos. O ponto fundamental é: a vida cristã no presente, com suas responsabilidades e chamados particulares, deve ser entendida e moldada com relação ao alvo final, para o qual fomos criados e redimidos. Quanto mais entendermos esse alvo, melhor conheceremos o caminho que leva até ele. O resultado desta reflexão, que apresento aqui, não é um tratado de “ética”. Com certeza, não é um conjunto de regras acerca de todas as situações, algo que muitos esperam quando se deparam com um livro sobre comportamento cristão. Como mostrarei, entendo que essa é uma abordagem errada do tema. Eu Creio. E Agora? explora a formação do caráter de Cristo, como um exemplo particular e focado de como o caráter é formado, em termos gerais. Dei atenção especial à leitura atenta de certos textos-chave do Novo Testamento, que considero muitas vezes mal-entendidos ou depreciados quando analisados sob outros pontos de vista. Tentei mostrar como os primeiros cristãos pensavam em “comportamento” não como tópico separado, mas como um dos aspectos de alvos mais amplos, tais como adoração e missão. Tentei manter uma linguagem acessível a todas as pessoas e evitei entrar em muitos debates atuais sobre comportamento cristão, quer de modo geral, quer particular. Quem está familiarizado com tais debates verá facilmente onde sigo a linha de um ou outro autor e quando me distancio de determinado ponto de vista. Acrescentei, ao final do livro, uma nota pontuando algumas das fontes onde encontrei ajuda e alguns dos debates aos quais — atrevo-me a esperar — este livro pode, em certa medida, ter algo a contribuir. Minha esperança é lembrar aos leitores do Novo Testamento que a grande tradição que trata comportamento como virtude tem mais a oferecer do que eles pensam, e também, aos que teorizam sobre a virtude, que o Novo Testamento tem mais a oferecer do que eles parecem supor. Contudo, o ponto principal do livro é outro: estimular e encorajar os cristãos de amanhã, de todos os tipos e tradições, a se empolgarem


prefácio

pela busca da virtude em sua forma especificamente cristã e a terem o caráter moldado, em conjunto e individualmente, para se tornarem os seres humanos que Deus os criou para ser. Isso significa ter como principal preocupação a adoração e a missão, além da formação do caráter como meio vital para chegar a esse fim duplo. Aos que não seguem o cristianismo e leem este livro, eu diria o seguinte: descrevi em outro lugar os motivos que me levam a acreditar que, a despeito de todo o ceticismo do mundo ocidental nos dias de hoje, existe um Deus que criou o mundo e, no fim, o consertará. Nossos sonhos se recusam a morrer — sonhos de liberdade e beleza, ordem e amor, sonhos de poder fazer diferença — e ganham vida quando os colocamos no arcabouço da crença em um Deus que criou o mundo e irá acertá-lo para todo o sempre e que quer envolver os seres humanos no processo. No presente, temos essas questões sob outra perspectiva. Neste mundo tão confuso, não sabemos o que é “bom”. Desconhecemos todas as implicações do que é ser humano. Pretendo que este livro apresente dois desafios: para os cristãos, pensar diferentemente sobre o comportamento cristão; para todo mundo, pensar no que significa ser genuinamente humano. Defendo que, quando entendermos de verdade esses dois desafios, eles acabarão se tornando uma única coisa. Este tipo de livro não é lugar para outras controvérsias. Para tal propósito, assumi que Jesus de Nazaré fez e falou mais ou menos o que está registrado nos quatro Evangelhos, no Novo Testamento. Já escrevi detalhadamente sobre tudo isso, em resposta a pontos de vista opostos. Assumo, ainda, que Paulo escreveu Efésios e Colossenses, fato que muitos estudiosos vêm contradizendo há mais ou menos um século. Na verdade, a autoria do livro não altera as ideias, além do risco de inchar desnecessariamente a presente linha de raciocínio. Por isso, não voltarei a tratar dessas questões. Escrevendo sobre a vida da Igreja e os desafios que os cristãos enfrentarão amanhã, tenho a certeza incômoda de que conheço apenas a igreja ocidental contemporânea. Gostei imensamente de entrar em contato com cristãos de outras partes do mundo, de tradições muito

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diferentes da minha, e espero continuar aprendendo muito com eles e sobre eles. Porém não tenho a presunção de escrever sobre eles aqui. O ideal seria que eu usasse a expressão “cristão ocidental moderno” todas as vezes, para refletir esse fato, mas isso tornaria o texto pesado e esquisito. Estou certo de que os leitores, em especial os de outras partes do mundo, entenderão que falo a partir de minha perspectiva limitada. Espero que eles tenham a bondade de me perdoar por minha visão estreita e o bom senso de transpor o que digo para o seu contexto. A tradução dos textos bíblicos foi feita por mim.* As do Novo Testamento foram extraídas principalmente de minha série de guias (Matthew for Everyone etc.), publicada pela SPCK, em Londres, e Westminster John Knox, em Louisville, Kentucky. Como sempre, sou muito grato aos meus editores, especialmente Mickey Maudlin e Mark Tauber, da Harper One, e Simon Kingston e Joanna Moriarty, da SPCK, por toda ajuda e incentivo; e a meus colegas em Durham pelo apoio constante. Expressei minha gratidão a vários deles no epílogo. Minha esposa merece gratidão especial, pelo entusiasmo com meu trabalho e a disposição de suportar as consequências domésticas costumeiras, numa época em que outras pressões inesperadas se acumularam sobre ela. Não é possível escrever sobre virtude sem pensar em amor, e não sou capaz de pensar em amor sem pensar nela. Já dediquei a ela dois outros livros e cada um marcou um importante ponto de mudança em minha vida e trabalho. Este vai, como sempre, com amor e gratidão, mas as duas qualidades formaram, com o passar dos anos, um hábito ainda mais profundo no coração. N. T. Wright Auckland Castle Primavera de 2009

* As citações bíblicas seguem a tradução do autor. Portanto, não foram retiradas de nenhuma das versões da Bíblia publicadas em língua portuguesa. (N.E.)


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Por que estamos aqui?

Um James tinha pouco mais de 20 anos quando aconteceu. A vida corria tranquila, sem grandes sobressaltos, apenas os altos e baixos de costume. De repente, sem esperar, ele se encontrou com um amigo que ia para uma igreja que ficava por perto. Foi com ele e, naquela mesma noite, para sua própria surpresa, sua vida virou de cabeça para baixo e de dentro para fora. — Não sabia que essas coisas acontecem — contou-me ele, quando nos conhecemos, anos depois (“James”, claro, é um nome fictício). — Quando falo, parece que sou um fanático religioso, mas é a pura verdade. Conheci Jesus! Ele se tornou tão real para mim quanto você, aqui nesta sala. De repente, todos os antigos clichês se tornaram verdade. Eu me senti lavado, limpo e mais vivo do que em qualquer outra época da minha vida. Foi como se eu estivesse em sono profundo e acordasse em um novo mundo, totalmente refeito. Antes não entendia o que


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as pessoas falavam sobre Deus, mas — pode acreditar — tudo passou a fazer sentido. James me contou tudo isso porque estava diante de um dilema. Frequentava a igreja onde tivera aquela experiência maravilhosa de transformação de vida. Aprendera muito sobre Deus e sobre Jesus. Sobre ele mesmo também. Haviam-lhe ensinado, corretamente, que Deus o ama mais do que ele é capaz de imaginar — na verdade, chegou a mandar Jesus para morrer por ele. Os pregadores insistiam em repetir que nós, seres humanos, não podemos fazer nada para nos tornar mais aceitáveis a Deus, seja agora ou no futuro. Tudo é dom de sua graça e generosidade. James absorveu tudo isso em sua vida, como um sedento que caminhou 15 quilômetros sob o sol quente e recebe, inesperadamente, um copo de água fresca. A novidade era maravilhosa e ele vivia por ela. No entanto, agora ele se defrontava com um grande ponto de interrogação. Por que estou aqui? Veja como ele colocou o problema, durante nossa conversa: Sim, Deus me ama. Ele transformou minha vida, para eu descobrir que quero orar, adorar e ler a Bíblia, além de abandonar o caminho de autodestruição que eu seguia. Maravilhoso. Claro (as pessoas repetem isso o tempo todo na igreja, também), Deus quer que eu conte essa boa notícia aos outros, para eles também encontrarem o que encontrei. Certo. Parece meio estranho e não me sinto muito à vontade, mas estou me esforçando ao máximo. É claro que tudo isso vem com a maravilhosa promessa de que um dia viverei com Deus para sempre. Sei que vou morrer, mas Jesus disse que todos que confiam nele vão viver com ele no céu. Isso também é maravilhoso. Mas, por que estou aqui agora? O que acontece depois que você crê? O motivo que levou James a bater à minha porta foi que não se satisfez com as respostas que ouvia de seus amigos e dos membros da igreja de que participava. Eles se limitavam a dizer que Deus chama alguns para esferas específicas do serviço cristão — ministério pastoral de tempo


por que estamos aqui?

integral, por exemplo, ou como professores, médicos, missionários, ou uma combinação de tudo isso e outras tarefas semelhantes. Porém James não se sentia chamado para nada disso. Estava concluindo o doutorado em ciências da computação e tinha diante dele várias opções profissionais. Seriam todo o seu conhecimento e todas as suas oportunidades simplesmente irrelevantes para questões “espirituais”? Teria ele de se contentar em ficar por aí durante algumas décadas, esperando para morrer e ir para o céu e, enquanto durar a espera, usando o tempo livre para convencer outros a fazerem o mesmo? Era só isso? Nada mais acontece depois que você passa a crer, até morrer e ir para o céu? Além disso, James encontrara outro dilema nessa questão. Muitos de seus novos amigos tinham vida muito correta e disciplinada. Aprenderam, basicamente na Bíblia, uma porção de regras para o comportamento cristão e acreditavam que Deus queria que as seguissem. Porém James não entendia como isso se encaixava no ensinamento fundamental de que Deus o aceitava como ele era, com base apenas na fé em Jesus e no que ele fez. Sendo assim, por que precisava se prender a essas regras, ainda mais quando algumas pareciam totalmente estranhas? Gostaria de poder dizer que sabia todas as respostas. Para ser sincero, não lembro exatamente o que falei — mas a última notícia que tive de James indicava que ele recebera a mensagem de alguma forma. Contudo, dificilmente, ele é o único a pensar nisso. Inúmeros cristãos no mundo ocidental, hoje, se encontram diante do mesmo dilema. E um dos motivos que me levam a escrever este livro é tentar ajudar a encontrar a resposta. Lembrei-me de James outro dia, ao receber um e-mail de um grande amigo. Ele escreveu que muitas pessoas acabam pensando que “podem apenas acreditar em Jesus e não fazer mais nada”. Muitos cristãos enfatizam tanto a necessidade de conversão, do ato de abertura da fé e do compromisso, da primeira declaração de fé (“acredito que Jesus morreu por mim”, ou algo semelhante), que acabam com uma grande lacuna em sua visão do que significa ser cristão. É como se estivessem à margem de um rio profundo e largo, olhando para a outra margem. Aqui, nesta margem, você declara sua fé. Na outra está o resultado final — a salvação

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eterna. Porém, o que fazer no meio do caminho? Ficar parado, à espera? Não existe uma ponte para ligar as duas margens? O que isso revela sobre a fé? Se não tomarmos cuidado — escreveu meu amigo —, esse primeiro ato de fé se “reduzirá à concordância com uma proposição (Jesus é o Filho de Deus etc.), sem implicar transformação alguma”. Transformação! Ideia interessante. Mas será apropriado pensar nisso? Os cristãos devem olhar sua vida sob esse aspecto? Talvez isso sugira que existe um caminho que leva do presente ao futuro, atravessando o largo rio que se chama Resto da Minha Vida — uma ponte construída antigamente, quando as pessoas achavam ser possível, com esforço moral, se tornarem boas o suficiente para Deus. Contudo, se o esforço moral nada vale, qual o motivo de ser cristão — além de ir para o céu um dia e tentar convencer outros a ir com você? Existe alguma razão para nos esforçarmos, depois que acreditamos, além de fazer o mínimo necessário para viver até o dia de morrer e ir ficar com Jesus para sempre? Quem medita sobre isso enfrenta ainda outra preocupação. Jesus, seguido pelos autores do Novo Testamento, parece ter feito exigências bem estritas sobre a moral dos primeiros discípulos. Onde tudo isso se encaixa? Se já fomos salvos, por que nossos atos teriam importância? E tais exigências são realistas em nossos dias? Nem todos os cristãos se incomodam com essas perguntas. Muitos, porém, o fazem, e espero que este livro lhes mostre que a ponte antiga, que talvez deixaram de lado, ou consideraram inadequada para uso, suportará o peso deles e ligará as duas margens do rio, em alto estilo. Essa ponte tem vários nomes, que apresentaremos à medida que avançarmos. Um dos mais claros, todavia, é caráter. É disso que este livro trata.

Dois Um segundo motivo me levou a escrever este livro. Muitas pessoas que nunca fizeram as mesmas perguntas que James fez, talvez, tenham se deparado com outras. Permita-me apresentar mais dois amigos meus (também com nomes fictícios): Jenny e Philip. Os dois discutiram durante uma reunião de muitos membros da igreja. O problema é que não discutiam sobre o mesmo tema.


por que estamos aqui?

Jenny tinha certeza quanto às regras apresentadas na Bíblia. O próprio Jesus afirmara que se divorciar e se casar de novo é cometer adultério. Claro que as pessoas são perdoadas quando se arrependem e abandonam o pecado. Todavia, é impossível alguém que é casado de novo ser perdoado, já que vive no novo (e, aparentemente, adúltero) relacionamento sem intenção de voltar atrás, chegando até a considerá-lo correto e dado por Deus. Especialmente, a igreja não pode nem pensar em indicar uma pessoa em tal situação para assumir seu pastorado. (Claro que esse foi o motivo da convocação da reunião.) Como uma pessoa em tal situação poderia ensinar aos jovens o que é certo e o que é errado? Como poderia preparar casais para um casamento para toda a vida, se ele mesmo desobedecera às regras? Jenny afirmou que, quando acreditamos no evangelho, temos o Novo Testamento como guia de vida. As regras são bem claras. Você obedece a elas ou não. Philip foi tão claro quanto ela. Jesus não veio trazer um monte de regras. Afinal, o apóstolo Paulo afirma que “Cristo é o fim da Lei”. O ponto central dos ensinamentos de Jesus é a inclusão, especialmente daqueles que os hipócritas excluíam. (Não olhou diretamente para Jenny ao falar, mas todos entenderam a mensagem.) Jesus veio para nos ajudar a descobrir quem somos e, às vezes, como aconteceu com os primeiros discípulos, isso leva algum tempo e cometemos erros — mas acabamos chegando lá. Afinal, Jesus contou a história do pai que acolheu o filho pródigo, enquanto o irmão mais velho, justo a seus próprios olhos, ficou do lado de fora. Ele, Philip, preferia mil vezes um pastor que enfrentou dificuldades e descobriu que Jesus o ama incondicionalmente a uma pessoa que se coloca acima das outras e apresenta a lei, prendendo todos a um conjunto de regras que metade da congregação não consegue seguir. Isso incentiva a hipocrisia! Como o Jesus em que acreditamos é o que nos aceita como somos, a vida que se segue depois que cremos nele é de celebração dessa aceitação, tomando-a como ponto de partida. Este é o caminho da sinceridade, de ser verdadeiro consigo mesmo e aberto com os outros. Não sei se Jenny e Philip perceberam, mas o motivo de sua ira e decepção enquanto a conversa prosseguia era que partiram de lugares

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bem diferentes. Jenny falou que estava “partindo da Bíblia”, numa implicação de que Philip não estava, mas as coisas não são tão simples. Ela procurava regras — talvez devêssemos dizer Regras, com inicial maiúscula, que você precisa seguir quer queira, quer não. Ela queria um pastor que ensinasse e vivesse assim. Uma situação em que todos saberiam em que pé estavam. Philip, por sua vez, ansiava por caminhos para a autenticidade, para descobrir as verdades profundas por sua própria conta, para viver sem hipocrisia, com sinceridade intensa, rica e vulnerável. Era isso que ele queria no pastor. Poderia respeitar e confiar numa pessoa com essas características. A reunião foi difícil. As pessoas ficaram iradas (o que, como Jenny refletiu depois, com tristeza, por si só quebrava as Regras). Falaram coisas que, na verdade, não pensavam (o que, como Philip percebeu assim que as palavras de ira lhe saíram da boca, era uma forma de hipocrisia). A discórdia ia além da resposta à questão. Era sobre a própria questão. Eles não sabiam como os cristãos tomam decisões morais, como cada um de nós, seja ou não cristão, identifica o que é certo e o que é errado. Será que existe “certo” e “errado”, ou a vida é mais complexa? Existem Regras com inicial maiúscula? E, caso existam, como elas se relacionam a pessoas reais, que não são robôs morais? Na opinião de Jenny, Philip era um desses relativistas perigosos, que pensam que não existem aspectos preto-no-branco na vida moral, apenas tons de cinza, e que o mais importante é ser verdadeiro consigo mesmo. Ouvindo Jenny, Philip identificava apenas legalismo duro e frio, sem ligação alguma com o Jesus que ele conhecia, aquele que era amigo de pecadores e contava histórias sobre anjos celebrando com uma grande festa cada vez que uma ovelha perdida era encontrada. Esse confronto maior, entre duas abordagens distintas acerca do comportamento cristão, se repete semana após semana, ano após ano, em concílios, sínodos, assembleias, convenções e conversas particulares — e, com grande frequência, nos debates silenciosos entre mente e coração de uma pessoa. Trata-se, na verdade, da versão cristã da pergunta muito mais abrangente que toda pessoa sensata faz a si mesma, mais cedo ou mais tarde: não apenas “como devo viver?”, mas também “como saber?”.


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É outro grande divisor, diferente do que vimos antes, mas a resposta final é a mesma. Lá, na dúvida de James, o grande divisor era entre a fé inicial, adquirida na conversão, e o momento final em que, após a morte, a pessoa tem a promessa da salvação de Deus. Este livro trata parcialmente da questão que a ponte cobre: o que devo fazer com o tempo entre os dois extremos? Porém trata também da pergunta que pairava, não pronunciada, entre Jenny e Philip naquela tarde difícil. Como tomar decisões morais? Será que precisamos escolher entre um sistema de Regras (que precisamos estabelecer de comum acordo) e um sistema de Descobrir Quem Eu Realmente Sou (e ser fiel a isso)? Existem outras formas de não apenas descobrir como viver, mas também de viver dessa maneira? O que acontece, não apenas individualmente, mas também em conjunto, depois que você crê? A mesma resposta se aplica às duas perguntas, de modo que o livro trata delas ao mesmo tempo. O próprio Jesus, confirmado pelos primeiros autores cristãos, fala repetidamente sobre o desenvolvimento de um caráter específico. Caráter — transformação, mudança e estabelecimento da vida e seus hábitos — gera um tipo de comportamento que as regras podem ter indicado, mas que a mentalidade “legal” jamais conseguirá atingir. E produzirá uma vida que é realmente fiel ao ego transformado, não o mero ego “descoberto” do pensamento popular. Espero que este livro ajude não apenas os James deste mundo a descobrirem por que estão aqui, mas também as Jennys e os Philips a terem seus debates num arcabouço mais amplo, bíblico, satisfatório e, na verdade, mais cristão. Em última análise, o que importa depois que você crê não tem a ver com regras nem com autodescoberta espontânea, mas sim com caráter.

Três Para que estou aqui? Como saber o que é certo e o que é errado? Todo ser humano — e talvez toda comunidade humana — faz essas perguntas esporadicamente, nem que seja por implicação. Porém existe um terceiro conjunto de questões que é muito mais amplo, vai muito além dos limites da Igreja e chega a um mundo muito confuso e ferido — nosso mundo.

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Em meados de 2008, um vulcão que rugia há muito tempo no subsolo entrou em erupção violenta, de uma hora para outra. Não foi um vulcão literal, mas o efeito devastador foi semelhante. O sistema financeiro ocidental, que dominou a cultura global durante várias gerações, adquiriu proporções incontroláveis e se desintegrou, incapaz de suportar seu próprio peso. Foi como um gigante que subisse em uma árvore para colher e comer todas as frutas. Excedeu-se em sua cobiça e esticou a mão para pegar as frutas das outras árvores ao redor. Mas ele era pesado demais, e a árvore não suportava mais carga; assim, desabou, com o gigante agarrado às frutas que conseguira pegar. Muitas causas complexas levaram ao caos financeiro de 2008, e o leitor ficará aliviado ao saber que não vou tratar delas. Todavia, logo depois do desastre, muitos comentaram que, nos 20 anos anteriores, muitas normas e regulamentos estabelecidos para evitar que bancos e outras instituições de crédito agissem com irresponsabilidade haviam sido, pouco a pouco, abandonados. Disseram aos políticos que as normas eram restritivas demais. Que uma economia saudável precisa correr riscos e recompensar os que se arriscam. Todos se uniram à jornada, sem se dar conta de que se aproximavam, cada vez mais rapidamente, da borda do abismo. Por isso, as pessoas dizem que agora precisamos restabelecer todos os regulamentos. Está na hora de fechar o cerco. Isso se dá em muitos outros aspectos da cultura moderna também. Desde 11 de setembro de 2001, os aeroportos instalaram sistemas de segurança complexos. A maioria das pessoas nem se lembra como era entrar em um avião sem passar, junto com seus pertences, pelos aparelhos de raios-X. Quem costuma ir aos Estados Unidos já se conformou em ser fotografado e tirar as impressões digitais todas as vezes que passa pelo departamento de imigração. Contudo, em praticamente qualquer parte aonde se vá, em especial para passar um período maior do que poucos dias, há formulários a preencher, entrevistas, fotografias e assim por diante. Milhões de pessoas das quais se pode dizer, apenas por uma olhada superficial, que jamais entrarão com uma bomba em um avião desperdiçam tempo e dinheiro em rotinas oficiais para assegurar que são cidadãos cumpridores das leis (embora, depois de passar horas na


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fila e irem de um lugar para outro para preencher outro formulário inútil, talvez não tenham mais tanta vontade de cumprir a lei). No meu país, qualquer voluntário para atividades comunitárias que podem envolver crianças precisa enfrentar verificações complexas e demoradas que buscam o menor traço de mau comportamento em seus registros. Isso se aplica, inclusive, a pessoas de 70 ou 80 anos, de vida ilibada, cujos amigos e familiares atestam o bom caráter. Não confiamos mais nas pessoas. Em ninguém. Tenho consciência de que, ao escrever isso, alguns podem pensar que sou perigosamente irresponsável ao questionar o sistema que conhecemos. (E vai piorar. Há promessa de mais formulários oficiais. Porém isso não funciona, a não ser para os advogados que ganham dinheiro sempre que alguém é processado.) O mundo ocidental está preso por leis, regras e regulamentos. Motivos culturais profundos nos levaram a esse caminho. No momento, porém, precisamos apenas notar que nossa cultura oscila entre desregramento nas principais áreas da vida — dinheiro, sexo e poder, para deixar claro — e o que podemos chamar de re-regulamentação. O desregramento aconteceu porque as pessoas queriam agir por conta própria; serem, digamos assim, verdadeiras consigo mesmas, para ver o que aconteceria. Mas isso resultou em caos no sistema bancário (dinheiro), nos relacionamentos humanos (sexo) e na forma como fazemos guerra, política, prisões, interrogatórios e coisas semelhantes (poder). Portanto, as pessoas anseiam por reintroduzir regras que nos levem de volta aos trilhos. O problema é que novas regras não chegam ao âmago do problema. Cada um fazer o que bem entende não é bom o suficiente, mas normas, por elas mesmas, não resolvem o problema. Dei-me conta disso no começo de 2009, conversando com um banqueiro que conheço bem, que estivera no centro do caos financeiro de 2008 e que tentava, quando conversamos, reunir os cacos e reintroduzir algum grau de sanidade em sua vida. Ele me disse: — Tom, eles podem criar quantas normas quiserem. É verdade que precisamos colocar de volta algumas diretrizes. Fomos longe demais, demos liberdade às pessoas para jogarem com quantias enormes e para fazerem acordos malucos. Porém qualquer banqueiro ou corretor hipotecário

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contrata, com a maior facilidade, um contador e um advogado espertos para ajudar a mexer os pauzinhos no governo, entrar pela porta de trás do sistema e fazer o que bem entende. Então, não adianta nada. — E qual a solução? — perguntei. — Caráter — foi a resposta dele. — Seguir regras dá certo, até o ponto em que elas vão, mas o verdadeiro problema é que a geração de hoje perdeu a noção da importância do caráter, da integridade. O sistema só é saudável quando sabemos que as pessoas que o dirigem farão o que é certo, não por causa das leis, mas porque isso está na natureza delas. Esse comentário está de acordo com a perspectiva pragmática de J. K. Galbraith, que escreveu, no início dos anos 1950, sobre a crise financeira da década de 1920. Ele sugeriu que a melhor forma de manter o mundo financeiro num rumo tranquilo é ouvir os que estavam no meio da crise anterior. Ele chega a inferir que as crises financeiras acontecem exatamente porque os que se lembrariam da anterior já morreram ou se aposentaram, de modo que já não estão por perto, com as lembranças e o caráter formado pela experiência, para aconselhar as pessoas a não serem irresponsáveis. Desde que tive aquela conversa, aconteceu outra coisa na vida pública no Reino Unido quase tão devastadora quanto aquela. Pessoas de outros países talvez não deem tanta importância, porque tem a ver com corrupção de políticos — e em muitos países se assume que os políticos são corruptos e os cidadãos nada podem fazer quanto a isso —, mas, em meu país, até as bases do sistema foram abaladas. Foi revelado que políticos estavam declarando “despesas” que os contribuintes consideram ridículas e fraudulentas, como hipoteca de propriedades inexistentes. E a desculpa foi que agiam “segundo as normas”. Talvez, mas as normas foram estabelecidas por eles! Alguns políticos chegaram a afirmar, quando confrontados, que não viam nada de errado em usar dinheiro público para aumentar sua própria riqueza. E quando, após forte pressão da população, aceitaram abrir ao público suas despesas, não deixaram de apagar, ou tornar ilegíveis, elementos-chave. Fazia anos que o povo olhava com desconfiança para os políticos, mas aquilo jogou por terra qualquer resquício de confiança.


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Em certo nível, não passou de farsa, mesmo que cara e ofensiva. Contudo, essa questão demonstra outro lugar em que o problema moral do início do século 21 se manifesta. O que acontece “depois que você crê” — na democracia? No sistema financeiro ocidental? Na vida pública e na comunidade global de amanhã? Podemos viver por “regras” e “regulamentos” ou eles incentivam uma mentalidade estreita, em vez de desenvolver um caráter profundo, sábio e digno de confiança? E o que acontecerá se permitirmos que cada um seja “verdadeiro consigo mesmo” e esperarmos que tudo dê certo? Será que isso funciona? Uma vez que o “caráter” se desenvolver, as pessoas agirão com altruísmo no serviço público (como, devemos notar, alguns políticos fazem)? Outra caminhada de vida começa com história semelhante. Há alguns anos, compartilhei uma plataforma com um conhecido jogador de rúgbi inglês. Ele falou sobre as imensas mudanças que haviam ocorrido no esporte, nos dez ou quinze anos anteriores àquele dia, com profissionalismo cada vez maior e enorme pressão sobre os jogadores mais jovens, no sentido de produzirem “resultados”. Comentou que os desportistas sofrem com excesso de treinamento. Aprendem dezenas de “jogadas” — como reagir em uma situação, como se defender contra a mesma estratégia, como controlar o jogo, como abri-lo. Porém poucos jogam por prazer, adquirindo, assim, um sexto sentido para improvisar. Por isso, acabam perdidos diante do inesperado. Não receberam uma lista de regras para aquelas circunstâncias imprevistas. Falta-lhes um caráter profundo, capaz de “ler” o jogo com uma segunda natureza e encontrar uma solução perspicaz e rápida. As questões com que começamos, então, talvez pareçam específicas para os cristãos (e não para o resto do mundo), e até mesmo para um tipo específico de cristão (os que enxergam a vida em termos de conversão inicial e salvação final, sem nada importante no meio). Porém não o são. Todo o mundo ocidental as enfrenta neste exato momento. E, como o Ocidente vem dominando a cultura, a política e a economia — e até, pelo menos em algumas áreas, o esporte — globais há algum tempo, isso implica que as questões serão enfrentadas, mais cedo ou mais tarde, por toda a comunidade global.

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A princípio, nosso ponto de partida — o que acontece “depois que você crê” — parecia se relacionar apenas com o cristão individualmente. Entretanto, como vimos, envolve também toda a família da Igreja, as Jennys e os Philips que se perdem em dilemas morais. E também aponta para fora da Igreja, para questões que todo mundo enfrenta. Por que em vez de pensar com clareza e sabedoria apenas sobre o que fazer na vida pessoal, na Igreja e na vida pública não tentamos descobrir também como fazê-lo? Acabamos sempre voltando a uma resposta específica: caráter. É interessante verificar que foi o que Jesus desafiou seus ouvintes a desenvolverem. É necessário olhar agora para um de seus confrontos mais famosos, que abre a questão de forma penetrante e notável.

Quatro Uma das cenas mais marcantes dos Evangelhos é a história de um jovem rico, inteligente, ansioso, que corre até Jesus com uma pergunta importante (Mt 19.16-30; Mc 10.17-22; Lc 18.18-30). Vale lembrar que, no mundo antigo, as pessoas sérias não corriam. Era indigno. Porém o homem queria muito se encontrar com Jesus, queria uma resposta para sua pergunta — ou achava que queria. Por isso, deixou a dignidade de lado, correu até Jesus e perguntou: — Que coisa boa eu preciso fazer? Estava sem fôlego, empolgado, doido para ouvir o que o mestre extraordinário tinha a dizer. Jesus parece ter um caminho próprio em todas as coisas. Vejamos qual será aqui. O jovem ansioso faz a pergunta porque tem uma referência futura. Quer esperança e, como quase todos os seres humanos, acredita que os atos do presente têm consequências no porvir. Sendo um judeu do primeiro século, ele pensa na era vindoura de Deus, que se aproxima, o tempo em que — eles acreditavam — Deus uniria Céu e Terra, inundando toda a criação com justiça, paz e glória. — O que preciso fazer — pergunta num ímpeto — para herdar a vida eterna? Antes de avançarmos, é necessário tirar da mente a imagem que se forma quando ouvimos essas palavras. Os judeus do primeiro século


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não pensavam na vida eterna como “ir para o Céu”, como nós. (Tratei mais disso em Surpreendido pela Esperança.) “Vida eterna” significava a era que viria, quando Deus uniria Terra e Céu, o tempo em que o reino de Deus chegaria e sua vontade seria feita na Terra como no Céu. O homem queria saber se ele faria parte quando isso acontecesse. Como poderia saber? Que tipo de pessoa eu preciso ser no presente para ser parte da era vindoura, quando Deus vai resgatar este mundo triste e velho e cumprir suas promessas? Como a realidade futura pode moldar o tipo de pessoa que estou me tornando agora? Sendo esse meu alvo, qual caminho leva até lá? Embora o jovem fosse um judeu do primeiro século, a questão subjacente é a mesma de gente de todos os lugares e tempos. Muitas vezes, aparece em termos de “felicidade”: como encontrar a felicidade verdadeira, a vida profundamente satisfatória, para a qual eu sinto ter sido criado, mas que parece escapar por entre meus dedos? Os Estados Unidos chegaram a incluir isso em seus documentos de fundação, quando afirmam que todas as pessoas têm direito à “vida, liberdade e busca da felicidade”. Claro que isso levanta a questão, feita antes pelos filósofos da antiguidade: como saber o que é a verdadeira felicidade? Muitos procuram sem encontrar, de modo que não sabemos o que ela é, nem a melhor forma de buscá-la. O que precisamos fazer agora para alcançar o alvo da existência humana plena, atingindo todo o nosso potencial, tornando-nos as pessoas que sabemos, lá no íntimo, que fomos criados para ser? Muitos presumem que o cristianismo responde à primeira pergunta (“como devo me comportar?”) e deixa a segunda (“como posso me tornar realmente feliz, sendo quem fui criado para ser?”) para filósofos e não-religiosos. Afinal — pensam — uma vai contra a outra; as regras de comportamento nos impediriam de ser felizes. Ou, em outras palavras, para encontrar a verdadeira felicidade será necessário quebrar ou, pelo menos, forçar um pouco as regras. Creio que a vida é mais complexa e interessante do que isso. Comportamento e felicidade são vistos pela fé cristã autêntica como desdobramentos ou subprodutos de algo mais. Se conseguirmos entender esse

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“algo mais” — e a história do jovem rico que correu até Jesus mostra o caminho —, talvez façamos progresso com os desdobramentos também. Espero mostrar neste livro que a visão bíblica do propósito da vida humana abrirá uma perspectiva em que questões de comportamento e satisfação acabarão se encaixando. A preocupação básica do livro, contudo, é com o comportamento e as raízes bíblicas da resposta cristã a essa questão. Os mais sagazes devem ter percebido que a pergunta “como devo me comportar?” contém duas perguntas diferentes e importantes. Primeiro, se refere ao conteúdo de meu comportamento: de que maneira devo me comportar? Em outras palavras, que coisas específicas devo fazer e deixar de fazer? Segundo, se refere ao meio ou método do comportamento: já que sei o que devo fazer, por qual meio serei capaz de colocar isso em prática? Um dos dilemas morais mais antigos e mais conhecidos, afinal, é que fazemos o que sabemos que não devemos fazer, e deixamos de fazer o que sabemos que devemos fazer. É interessante notar que Jesus deu a mesma resposta aos dois lados: — Sigam-me! Isso é tanto o “o quê” quanto o “como”. Voltemos, então, ao encontro de Jesus com o jovem nervoso. Ele, assim como muitos judeus de sua época, supunha que a promessa da era vindoura de Deus se reservava aos judeus leais — lealdade que se definia em termos da obediência à Lei, encapsulada nos famosos Dez Mandamentos. Não se tratava — como muitos supõem — de um esquema direto de mérito e recompensa, de “seguir as regras” e, com isso, conquistar a passagem para um mundo novo, mas, sim, uma aliança antiga de Deus com seu povo: ele os resgatara para serem povo dele e, na Lei, estabelecera os termos do acordo pelo qual eles lhe demonstrariam gratidão. Porém o jovem parece ter seguido os termos do acordo — nada de assassinato, adultério, roubo, falso testemunho, fraude, desrespeito aos pais — e, ainda assim, sentia que havia algo mais. Jesus concordou com ele. Todavia, ao apresentar o “algo mais”, levou o homem a terreno completamente desconhecido. Os mandamentos relacionados até esse ponto são os últimos seis. E os outros? Não há


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menção ao Shabat; esse é um tópico para outra ocasião. Os três primeiros mandamentos, todavia, nos levam a uma esfera completamente diversa, a de fugir da idolatria e honrar apenas a Deus e seu nome. Jesus não os citou. Em vez disso, os introduziu de súbito na vida do jovem. Disse que, se quisesse ser “completo”, ele teria de se livrar de seus bens. Venda tudo, dê o dinheiro aos pobres. Depois, volte e me siga. Surpreendentemente, seguir a Jesus significa colocar Deus em primeiro lugar e vice-versa. Repare no que aconteceu. O jovem buscava plenitude. Queria ter vida completa — no presente, para ser completa no futuro. Sabia que ainda “faltava” alguma coisa, então buscava um alvo, a perfeição. Jesus sugere que ele vire tudo de cabeça para baixo. A vida dele teria de se tornar parte de um propósito maior, voltado para fora dele mesmo: colocar o reino de Deus em primeiro lugar e o próximo (em especial os pobres) acima de sua própria satisfação e bem-estar. Eis o verdadeiro desafio: não apenas acrescentar mais um ou dois mandamentos, nem estabelecer padrões morais mais elevados, mas se tornar uma pessoa totalmente diferente. Jesus desafia o jovem a uma transformação de caráter. Entretanto, não era isso que ele queria. Então, se vira e parte, triste. Eis aí o hiato entre teoria e realidade, ordem e desempenho. Jesus disse como se portar (no primeiro sentido), mas o jovem não sabia como fazer isso (no segundo sentido). E a questão paira, perturbadora, sobre todo o restante da história dos Evangelhos. Qual o caminho para a era vindoura de Deus, o novo tempo em que o reino de Deus inundará o mundo com justiça e paz? Como nos tornaremos o tipo de pessoa que não apenas herda o mundo, mas que participa, desde já, na sua construção? O que devemos fazer e por quê? Como? Haverá uma visão melhor do futuro de Deus, para nos ajudar a entender tudo isso? Antes de deixarmos de lado essa história pequena e poderosa, vejamos como Marcos, em especial, a enquadrou, apontando para o significado mais profundo. Ela faz parte de um pequeno conjunto de cenas do capítulo que conhecemos como Marcos 10. Jesus seguia para Jerusalém, mas ainda não havia chegado lá. Na primeira cena (v. 2-12), professores da Lei questionaram Jesus sobre a validade do divórcio, assunto quente no momento porque o

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governador da Galileia, Herodes Antipas, havia se casado com a esposa de seu irmão. A resposta de Jesus, enigmática e radical, remonta à intenção original de Deus quanto aos relacionamentos entre homens e mulheres. Depois, na cena final (v. 35-45), antes de Jesus e seus companheiros começarem a última etapa da jornada para Jerusalém, dois discípulos, Tiago e João, pedem o privilégio de se sentarem à sua direita e esquerda quando o reino se instalasse. De novo, a resposta de Jesus é enigmática e radical, e remonta à intenção original de Deus quanto ao poder humano. Temos aí, nesse espaço de pouco menos de cinquenta versículos, sexo, dinheiro e poder, tudo levado de volta ao propósito original, apontando para um alvo diferente, para um projeto maior de como deve ser a vida humana. Jesus não fala em obedecer a regras, nem em seguir as inclinações e os sonhos do coração. Tiago e João queriam seguir seu sonho, assim como Herodes. Porém Jesus não diz para seguirem regras porque os sonhos são perigosos. Ele sugere algo muito mais interessante, muito mais transformador. Entretanto, como o caráter pode ser transformado, “re-formado”? Entrelaçadas na versão de Marcos para a história, apontando para a resposta, há mais duas cenas, mais curtas. Na primeira (v. 13-16), Jesus declara que o caminho para o reino de Deus é o das crianças. Na segunda (v. 32-34), ele revela que, ao chegarem a Jerusalém, ele seria morto e ressuscitaria. Essas cenas sugerem, de alguma forma, que as grandes questões da vida humana devem ser resolvidas sob uma ótica bem diferente da costumeira. Podemos resumir essa ótica no projeto de Jesus — a chegada do reino de Deus — e em suas palavras: “Siga-me!”. O projeto e a convocação emitem um chamado que atravessa as duas principais opções para o comportamento humano. Podemos dividir as teorias sobre o tema em duas categorias: obedecer a regras impostas externamente ou descobrir os desejos mais profundos do coração e tentar agir de acordo com eles. A maioria das pessoas vacila entre os dois, obedecendo a algumas regras pelo menos, por considerar ser a vontade de Deus ou devido a convenções sociais, mas voltando à busca de seus sonhos, sua satisfação própria, sempre que tem oportunidade. Grandes teorias já foram construídas em torno dessas duas


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formas de encontrar um caminho pela vida, e trataremos mais delas no próximo capítulo. Em Marcos 10, contudo, encontramos algo que parece operar em outra dimensão. Para começar, trata-se de chamado não para atos de comportamento específicos, mas para um tipo de caráter. Além disso, chama para vermos uns aos outros como participantes de uma história — em que, para fazer sincronia com o primeiro ponto, há um Caráter supremo, cuja vida devemos seguir. E, aparentemente, esse Caráter tem os olhos fixos em um alvo, que molda a vida dele e a de seus seguidores. Tudo isso sugere que o Evangelho de Marcos, com Jesus como o grande Caráter que se destaca, nos convida para alguma coisa bem diferente da obediência às regras, por um lado, mas também diversa de seguir os sonhos, por outro lado. Trata-se de uma forma de sermos humanos à qual filósofos antigos e modernos deram um nome específico. Minha ideia, neste livro, é que o Novo Testamento convida seus leitores a aprenderem a ser humanos deste modo particular, que tanto dá forma ao julgamento moral quanto molda o caráter, para viver segundo sua orientação. O nome desse modo de vida, dessa transformação do caráter, é virtude. A noção de virtude é, por si mesma, multifacetada. No devido tempo, mostrarei que o desenvolvimento da ideia no início do cristianismo significa que Jesus e seus primeiros seguidores concordavam em alguns pontos com os filósofos de sua época e discordavam por completo em outros. Isso pode ser um modelo para nossos dias, em que o caráter cristão tanto é radicalmente diverso dos “caminhos do mundo” como alega entender a vida humana de uma forma que ninguém mais entende. Antes, porém, de entrarmos nesses detalhes, vejamos com mais exatidão como é a virtude na prática. Avancemos cerca de dois mil anos do jovem correndo até Jesus e testemunhemos um homem mais velho, mais sensato e equilibrado.

Cinco Quinta-feira, 15 de janeiro de 2009, era outro dia comum em Nova York. Pelo menos, parecia ser. No entanto, naquela noite, as pessoas comentariam um milagre.

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