Abrir um livro é uma experiência. Há livros, no entanto, que, por conhecer o autor, abrimos de outro jeito. Sabemos que, por trás das palavras, há uma vida que palpita, um compromisso que se transforma em letras e um engajamento vivencial que traduz em livro uma opção de vida, uma vocação e um sonho. Este livro é assim. Junto com ele vem o seu autor: Mauricio Cunha. Alguém que se pode encontrar em algum rincão deste Brasil e em alguma igreja que quer aprender a viver a sua fé na comunidade e como um testemunho público. É ali que está Mauricio, compartilhando aquilo que ele esboça neste livro. Um livro que aponta para o reino de Deus e afirma que Deus ama e se interessa por cada pessoa e cada comunidade, para que haja transformação gerada pelo evangelho de Cristo. Esta obra nos convida a um compromisso marcado pela compaixão e justiça de Deus, que ganha forma num engajamento público e focado naquilo que Deus quer. O autor fala da fé impregnada no universo público e que assume formas concretas, seja no compromisso com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), seja em projetos desenvolvidos no bairro por uma igreja local e que levam ao estabelecimento de políticas públicas mais justas e humanas. Valdir Steuernagel Pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) Você tem em suas mãos uma reflexão de alguém que está engajado com transformação social. Mauricio Cunha compartilha neste livro suas experiências no campo da transformação social a partir das referências bíblico-teológicas e missiológicas. Se você também está buscando se engajar na transformação social por meio de uma missiologia integral, saiba que você está com um excelente material em suas mãos. Faça bom uso para a glória de Deus! Jorge Barro Teólogo, FTSA – Faculdade Teológica Latino-americana O livro O Reino de Deus e a Transformação Social surge num momento muito necessário e estratégico para a igreja de Cristo no Brasil. O livro é um profundo desafio para um cristianismo que se apresenta como sistema total de vida e pensamento e como fundamento da responsabilidade transformadora da igreja na sociedade. Nelson Monteiro Jr. Coordenador da Aliança de Discipuladores de Nações no Brasil O Reino de Deus e a Transformação Social reúne o que há de melhor com relação à teoria e aos efeitos transformacionais da sinalização do reino de Deus. Fruto de pesquisa séria e de anos servindo aos mais vulneráveis, essa obra é imprescindível para todos que, afirmando o seu amor a Deus, estendem as mãos para amar de maneira prática os que mais precisam de graça e de esperança. Sérgio Queiroz Presidente da Fundação Cidade Viva e da Faculdade Internacional Cidade Viva, e autor de Gloriosas Ruínas e Igrejas que Transformam o Brasil Reconheço Mauricio Cunha como um amigo que tem sido um dos valentes do Senhor Jesus, um líder que busca cumprir a missão apostólica de conquistar áreas da vida pública que ainda não podem ser consideradas partes do reino de Deus. Neste livro ele une sólidas bases teológicas e filosóficas com modelos e exemplos práticos, baseado num raro perfil pessoal de quem faz e ensina. Recomendo a leitura a todos os seguidores de Jesus, aos que compreendem que o evangelho é a boa nova para todos os aspectos da vida e àqueles que têm tido uma compreensão ainda parcial da missão que resulta de “Deus amou o mundo ...”. Gerhard Fuchs RENAS, Aliança Evangélica, ACRIDAS
Tendo acompanhado de perto a vida de Mauricio Cunha nas últimas décadas, posso afirmar que testemunhei os sólidos fundamentos que construíram de forma idônea e tecnicamente relevante o conteúdo compartilhado nesta obra. Saudamos com entusiasmo a publicação de O Reino de Deus e a Transformação Social, sobretudo por sua qualidade e pela vivência do autor no campo prático, além de sua formação profunda. Recomendo a todo cristão consciente de sua participação na construção do reino de Deus e a todos os líderes missionais em nosso país a leitura atenta e a ampla divulgação desta obra, a fim de abençoar a muitos e influenciar decisivamente na expansão da integralidade da missão em terras brasileiras e, quem sabe, além-fronteiras! Edson Barbosa Pastor e fundador do Projeto Oásis Este novo livro de Mauricio Cunha reúne sua ótima linha de contribuições de textos anteriores e avança com aspectos muito práticos. Ele inicia pelas bases bíblico-teológicas que nos convidam a olhar para a missão de Deus como uma resposta salvadora face às realidades concretas do mundo ao qual Deus nos envia como sal e luz. Como fruto de suas vivências em missão que tem o reino de Deus como paradigma de atuação, Mauricio Cunha apresenta contribuições desafiadoras e, ao mesmo tempo, práticas, que podem ser de grande ajuda a todos os cristãos comprometidos com Jesus, líderes de igrejas e organizações sociais, missionários e trabalhadores sociais. Wilson Costa Pastor, administrador e diretor da Aliança Evangélica Brasileira Uma vez mais, Mauricio Cunha nos convida, com profundidade e ternura, a sermos sinais do reino de Deus e a proclamar o governo de Cristo em cada canto da terra e em todas as dimensões da vida! Ler este livro é um mergulho profundo no coração reconciliador de Deus e um chamado a encarnar a nossa vocação de sermos pessoas e comunidades transformadas e transformadoras! Por meio deste texto precioso nos unimos à oração de Jesus, clamando para que o seu reino venha e para que a sua vontade seja feita assim na terra como nos céus! Celebro o privilégio de recomendar esta obra com profunda gratidão a Deus e a Mauricio Cunha por ser instrumento do Senhor e voz profética no meio da nossa geração! Zazá Lima Diretora internacional de PMI – Povos Muçulmanos Internacional Um projeto que nasceu no coração de Deus, brotou no coração de alguns homens e hoje é uma árvore que dá muitos frutos. Esse é o CADI. Este livro traz de forma muito clara a visão que liberta, transforma e protege vidas de pessoas que precisam do apoio e da solidariedade humana. Mauricio representa a encarnação dessa visão. A ele os parabéns por nunca ter desistido! Antonio Wandscheer Empresário e deputado federal
O REINO DE DEUS &A TRANSFOR MAÇÃO SOCIAL
Mauricio Cunha
O REINO DE DEUS &A TRANSFOR MAÇÃO SOCIAL
FUNDAMENTOS, PRINCÍPIOS E FERRAMENTAS
O REINO DE DEUS E A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Categoria: Ética / Liderança / Vida Cristã Copyright © 2018, Mauricio Cunha
Primeira edição: Abril de 2018 Coordenação editorial: Natália Superbi Preparação: Lissânder Dias Revisão: Claudete Agua de Melo Diagramação: Bruno Menezes Capa: Lucas Gonçalves
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cunha, Mauricio O Reino de Deus e a transformação social : fundamentos, princípios e ferramentas / Mauricio Cunha. — Viçosa, MG : Ultimato, 2018. ISBN 978-85-7779-174-3 1. Ação e missão cristã 2. Igreja e problemas sociais 3. Missão da Igreja 4. Políticas públicas 5. Reino de Deus 6. Responsabilidade social 7. Serviço social e comunitário 8. Terceiro setor I. Título. 18-13785
CDD-261.7
Índices para catálogo sistemático: 1. Serviço social e comunitário : Missão transformadora : Igreja e políticas públicas : Teologia social 261.7
PUBLICADO NO BRASIL COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS POR: EDITORA ULTIMATO LTDA Rua A, no 4 - Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 www.ultimato.com.br
SUMÁRIO
Agradecimentos
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Introdução
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1. Integralidade e missão transformadora
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2. Cosmovisão cristã: compaixão, justiça e transformação
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3. Igreja e políticas públicas:
sinalizando o reino de Deus na esfera pública
4. Conceitos e ferramentas para o serviço social
e comunitário
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AGRADECIMENTOS
À
minha esposa, Aline, pelos muitos anos de amor e companheirismo, e aos meus filhos, Natália e Vítor Eduardo. Aqui está parte da herança de vocês. Aos meus pais, Albano e Carmen. Vocês prepararam todo o caminho, eu só andei por ele. Às equipes do CADI. Vocês são guerreiros, vocês me inspiram de verdade. É uma honra servir ao lado de vocês. Aos que ajudaram a construir a nossa história, em nossos 24 anos de vida. O legado de vocês permaneceu. Ao meu pastor Edson Barbosa, por acreditar desde o início, e principalmente por continuar cuidando de mim e da minha família. Ao amigo e companheiro Antonio Wandscheer e família, rogando as mais ricas bênçãos do Pai sobre vocês. Aos amigos especiais que acreditam no mesmo sonho e erguem os meus braços com excelência e graça: Marcel Camargo, Gustavo Góis, Achilles e Marta Oliveira, Sérgio e Dilma Leal,
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Cadú Somaggio, Airton Humber, Emerson Santana, Wesley Cavalheiro, Hélio Moraes, Lissânder Dias, Jiro Nishimura, Daniela Rodrigues, Amaury Silva, Celso Machado, Márcio e Carla Santos, Emerson Crema, Wilson Costa, Teresa Cristina, Suzana Lopes, Celso Godoy, Zazá Lima, Dejalmir Waldhelm, Julio Vallim, Marcos Pratt, Joyce Dias, Beth Wood, Liceia Franco, Gerhard Fuchs, Acyr de Gerone, Jonia Nogueira, Amilcar Teixeira, Alexandre Belchior, Patrick Reason, Carlos Eduardo Arent, Eugênio Anunciação e muitos outros. Impossível mencionar todos aqui. Um sonho não se constrói sozinho! Recebam a minha mais completa admiração e apreço. Às nossas crianças e adolescentes do CADI e suas famílias. Vocês são a razão de ser disso tudo.
INTRODUÇÃO
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no de 1994. Eu havia sido convidado para ministrar algumas aulas numa escola de treinamento missionário da JOCUM, na periferia do Rio de Janeiro. Meu coração estava alegre, eu havia concluído o meu curso básico de formação missionária e estava cheio de vontade de “transformar o mundo”. Muitos sonhos na bagagem, agora ancorados num fundamento mais sólido, pois as experiências no campo transcultural, os estudos missiológicos e as reflexões a respeito da realidade social brasileira haviam conduzido a minha mente, o meu coração e as minhas convicções de modo irreversível para o território da Integralidade da Missão da Igreja. O CADI, organização que eu havia acabado de fundar juntamente com um grupo de amigos, estava sendo concebido, e como resultado de um poderoso sopro de vida que viera do Alto, eu começava a vislumbrar seus frutos para a eternidade. Uma assinatura estava sendo escrita no universo. Depois da ministração, fomos chamados para a inauguração de um projeto social em Vigário Geral, subúrbio do Rio. Uma
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comunidade marcada pela famosa chacina, no ano anterior, em que 21 pessoas inocentes haviam sido assassinadas, e que virou notícia nacional. Mas, enfim, a esperança parecia brotar novamente. Afinal, caminhávamos tranquilos pelas ruas da comunidade, que agora teria mais uma iniciativa social implantada. Ao andar pela comunidade, observei muitas igrejas. Comunidades de fé com vários nomes e formas de expressão, uma profusão de versículos bíblicos e imagens do universo gospel por todos os cantos e becos. No meu ver simplório, uma verdadeira invasão do sagrado em meio ao profano, reivindicando o seu espaço, trazendo esperança, recusando-se a se entregar no meio de uma realidade caída. Meu jovem coração missionário não conseguia pensar num modo de transformação que não passasse por aquelas expressões de fé, e que não tivesse na igreja o seu agente protagonista. Ao meu lado, um sociólogo, não cristão, responsável pelo projeto, estudioso da sociedade e dos comportamentos humanos. Quase despretensiosamente, orgulhoso da presença cristã naquele ambiente, perguntei sobre o papel e a relevância das comunidades de fé naquele conhecido território de tantas vulnerabilidades, como agências de transformação da realidade. Ele me respondeu: “Eu não acredito em grupos que falam de amor, mas só ministram às necessidades dos seus próprios membros”. Para mim, essa afirmação foi como um choque, ou um soco na barriga. O quê? O que isso significa? Temos igrejas aqui, temos cristãos aqui, e não há uma transformação perceptível e reconhecida? Temos uma fé proclamada, mas que não é capaz de romper com as quatro paredes de um templo e invadir as ruas e praças da cidade? Além disso, pela primeira vez na minha (até então) curta trajetória cristã, eu ouvia alguém desprezar o poder transformador que reside na igreja por meio do evangelho do reino. Porém, na verdade isso não é nada novo. O que se desnudara para mim, como pedras que clamam, era a leitura de uma realidade
Introdução
de inoperância, irrelevância e apatia, que aponta para um crescimento significativo da igreja evangélica, especialmente em contextos de pobreza e vulnerabilidade, mas que trazia (e traz) pouco impacto social. Um “sagrado” que, convivendo lado a lado com o “profano”, não tem força suficiente para redimi-lo. No entanto, a minha fé não haveria de se conformar com isso. Pelo contrário. Começou então uma caminhada que, para além do desejo de vivenciar a realidade do reino mudando diretamente as vidas dos pobres e vulneráveis, numa espécie de “saudades de casa”, por meio da implementação de projetos sociais, haveria de se revelar uma trajetória verdadeiramente apologética. Apenas depois de vários anos foi que percebi que, de fato, eu lutava o tempo todo pela igreja, pela sua mensagem, pela relevância e pela capacidade transformadora do serviço incondicional dos filhos de Deus. Trabalhamos, firmemente arraigados na crença de que a chegada do reino transforma realidades muito mais do que provoca experiências místicas e individuais, de que a igreja é o único organismo capaz de ministrar às necessidades integrais do homem, e de que o evangelho é o poder que vem do Alto para a transformação de indivíduos, comunidades e nações. Este livro nasce dessas convicções e dessa militância. Nasce da experiência direta com as comunidades, nos mais diversos contextos do Brasil, mas também da formação e do empoderamento de centenas e até milhares de lideranças cristãs, missionários, pastores e empreendedores sociais cristãos, gerando um verdadeiro movimento de transformação social, que se recusa a aceitar a realidade de pobreza, miséria e opressão como ela é. Mais que isso, que se recusa a ver a igreja como coadjuvante. Ela é a protagonista da mudança que almejamos ver.
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1 INTEGRALIDADE E MISSÃO TRANSFORMADORA “Não há um só centímetro, em todos os domínios da nossa vida humana, sobre o qual Cristo, o Senhor de tudo, não clame: É meu!” – Abraham Kuyper
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o falarmos de transformação social a partir do serviço cristão e da responsabilidade social da igreja, a nossa base orientadora, tanto em nível conceitual quanto prático, deve ser partir de uma fundamentação bíblico-teológica. O que as Escrituras têm a nos informar sobre isso? Qual é a base e o fundamento para a ética cristã e a ação cristã na sociedade? Qualquer resposta a essas perguntas que seja diferente de um sólido fundamento bíblico será reducionista, ineficaz e frágil. Temos visto engajamentos de igrejas na ação social com base num “desencargo de consciência”, ou, muitas vezes, o envolvimento é meramente um “gancho para o evangelismo”. Outras vezes, a igreja age, ressentindo-se de que o governo “não faz a sua parte” (como se a nossa missiologia pudesse ser baseada apenas em alguma coisa que alguém deixou de fazer). No campo mais prático, na maioria das vezes as ações se restringem a atividades de cunho
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assistencialista, mais voltadas para o “doador” do que para o “beneficiário”, sem causar impactos transformadores e sustentáveis efetivos, o que aumenta a relativa irrelevância social da igreja. Certamente, uma das razões dessa ineficácia e irrelevância é uma carência de fundamentação bíblico-teológica a partir de uma visão cristã de mundo com base no cristianismo histórico, na tradição da igreja na sua ação social transformadora e nos ensinamentos dos Pais da igreja. Será que, de fato, temos compreendido a nossa responsabilidade ética e social diante de um mundo caído, distante de Deus e com tantos problemas e mazelas sociais? Se a nossa fé não “dá conta” da vida real, das múltiplas necessidades das pessoas nos seus dilemas e anseios mais profundos, estamos brincando com uma ilusão, pois a vida real exige de nós respostas concretas para as questões do ser humano e da sociedade em toda a sua complexidade. Ou seja, para a igreja, engajar-se “no mundo” sem ser “do mundo” não é uma opção. Uma missiologia integral, em resposta ao fundamentalismo raso que não dá conta do nosso contexto social e cultural, vai muito além de uma mera preocupação com a “salvação das almas”. Embora a verdade revelada de Deus seja supracultural e supratemporal, nossa teologia e nossa missiologia devem ser adequadas ao contexto, uma vez que a elaboração dessa verdade acontece a partir da realidade social. Em grande medida, recebemos um cristianismo acrítico em termos de diálogo social, com a ausência de uma resposta cristã elaborada a respeito da nossa realidade e das nossas mazelas sociais. Nossa missiologia integral nasce do questionamento do reducionismo que coloca a fé cristã apenas como uma experiência subjetiva, religiosa, individual e mística. A fé cristã certamente envolve tudo isso, mas não se restringe apenas a isso. O cristianismo bíblico provê os elementos fundamentais e fundantes para o estabelecimento de uma visão de mundo, ou seja, para o
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discipulado de indivíduos, comunidades e nações, em todos os seus aspectos e dimensões. Portanto, a missão da igreja deve ser mais do que o “povoamento do céu”, mas a tradução da ação de Deus para o discipulado de nações. A fé deve “dar conta” da realidade; urge a compreensão de uma missiologia integral como fundamento efetivo para nossa ética e nossa responsabilidade diante da sociedade. Essa compreensão deve nos levar a uma ação mais efetiva e transformadora, fundamentando e orientando o que, muitas vezes, já acontece na prática de maneira amadora e intuitiva. Vemos indivíduos cristãos e igrejas empreendendo um esforço grande para, de alguma maneira, impactar a sua comunidade ou um grupo de pessoas em condições de vulnerabilidade ou marginalidade. No campo transcultural ou não, os missionários estão envolvidos na mais ampla gama de atividades. Eles estão estabelecendo igrejas, mas também estão ensinando a estabelecer, construindo escolas, lutando contra injustiças, trabalhando em centros de saúde, etc. O campo – a vida real – exige da igreja e do seu povo um envolvimento integral, quer se queira isso ou não!
CHAVE HERMENÊUTICA E EQUÍVOCOS INTERPRETATIVOS A Bíblia não é um livro comum. Ela é uma biblioteca, um conjunto de 66 livros, escritos originalmente em aramaico, hebraico e grego, por pessoas inspiradas pelo Espírito Santo, num intervalo de milhares de anos e em contextos totalmente diferentes do nosso. Embora sejamos defensores do princípio reformado do livre exame das Escrituras, concluímos que a leitura e a apreensão da verdade bíblica é uma tarefa complexa, que requer conhecimento e critério. Por essa razão, muitas vezes a Bíblia tem sido mal interpretada, chegando até mesmo a ser a fonte de todas as heresias. Por
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exemplo, ela foi utilizada para fundamentar o apartheid e também o sistema escravocrata. Atualmente, sacralizando o sistema capitalista, ela tem sido usada como amuleto para a prosperidade material. A Bíblia tem sido muitas vezes colocada a serviço da cultura, dos valores do nosso tempo, de um sistema específico de crenças, para fundamentá-lo e justificá-lo. Sem uma ortodoxia e uma chave hermenêutica ou interpretativa adequada, qualquer pessoa pode moldar a Bíblia ao que ela quiser. Sempre que abordamos a Bíblia, usamos “óculos” e isso ocorre sempre com todos nós. Não estou me referindo aos óculos físicos, mas aos óculos da nossa cultura, dos nossos valores, da nossa família e da experiência cultural, religiosa e subjetiva que acumulamos. Podemos chamar esses óculos de “cosmovisão” ou “visão de mundo”, e todos nós os usamos constantemente, pois a ausência deles significaria a ausência de sentido e significado, ou seja, um mergulho no “caos”. Esses óculos fazem a mediação entre o conteúdo e o que absorvemos e interpretamos dele. Ao fazer essa mediação socioanalítica, eles são encarregados de “conferir sentido” ao todo da revelação. Como estamos continuamente em busca de sentido e significado, não conseguimos ficar sem os óculos. Não conseguimos nos despir totalmente deles, pois tirar os óculos significaria “deixar de ser”, ou cair no caos ou o completo esvaziamento. Seja como for, os óculos estarão sempre conosco, moldando nossa maneira de ver, perceber e interpretar. Podemos usar o livro do Êxodo como exemplo: a história de um povo oprimido e de um povo opressor. O relato do Êxodo nos mostra a impressionante saga da libertação do povo de IsraeI rumo à Terra Prometida. Ao lê-lo, isso pode fazer tanto sentido para alguém que é utilizado como a chave hermenêutica para “o todo da revelação”. A tarefa primordial de Deus passa a ser “libertar o oprimido do seu opressor”. Jesus torna-se um mero ativista sociopolítico, sempre privilegiando o cuidado dos pobres e dos oprimidos. Começamos a
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transformar um princípio relativo e fundamental em princípio absoluto, orientador de toda a verdade, em resposta à realidade social que nos cerca. Nasce uma teologia ou uma missiologia, e, nesse caso, podemos citar a Teologia da Libertação, que teve um impacto e uma contribuição importante, especialmente na América Latina, apresentando importantes contribuições para a compreensão da igreja a respeito da sua missão e sua relação com a cultura, mas que, como sistema teológico completo, orientador de mundo, entendemos ser insuficiente e um “equívoco hermenêutico”. No outro extremo, um exemplo poderia ser relacionado às passagens que falam sobre prosperidade. Sabemos que a Bíblia apresenta um modelo holístico de prosperidade, e que há várias passagens que abordam essa questão, incluindo a prosperidade material. Num contexto como o nosso, de cultura humanista e secularizada, a classe média integra um sistema capitalista na busca de ascensão social e melhoria das condições materiais de vida e da capacidade de consumo. Torna-se fácil colocar a Bíblia a serviço dessa ideologia. A evidência da bênção divina passa a ser a bênção material, a Palavra é utilizada para não só justificar, mas fundamentar e fortalecer o sistema cultural vigente, sacralizando o capitalismo contemporâneo e colocando os cristãos e a igreja à mercê dos “ventos da nossa época”. Com isso, transformamos Deus num “Papai Noel cósmico”, que existe quase unicamente para nos abençoar e fazer-nos prosperar, e desse modo cometemos grave equívoco hermenêutico, causador de muitos problemas e disfunções no exercício da nossa fé e da nossa missão. Em outro exemplo, podemos pensar nos sinais, prodígios e maravilhas relatados em inúmeras passagens da Bíblia como chave hermenêutica e interpretativa das Escrituras, esperando que as manifestações sobrenaturais do poder de Deus sejam o que define o cerne da sua ação e da nossa relação com ele, devendo acontecer em toda reunião e em todo culto. Novamente,
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podemos ter aqui uma ênfase exacerbada em determinado ensino, comprometendo a coerência e o equilíbrio do todo. Diante disso, então, qual deveria ser a chave hermenêutica e interpretativa das Escrituras? Que tipo de óculos devemos usar quando abordamos a Bíblia para compreender a revelação de Deus? Em outras palavras: qual é o tema central das Escrituras? Qual é o assunto mais ensinado por Jesus Cristo? Qual é o tema central da maior parte das parábolas? Qual é a razão última da existência da igreja, a chave da sua missão? O reino de Deus como chave hermenêutica das Escrituras A compreensão mais fundamentada a respeito da integralidade da missão, da ética cristã e da responsabilidade social da igreja baseia-se numa compreensão a respeito do próprio reino de Deus, sua definição e abrangência. Poderíamos dar muitas definições de reino de Deus. Aqui utilizaremos uma definição simples, porém profunda e abrangente. Entendemos o reino de Deus como “todo lugar ou todo ambiente onde Deus reina”. O reino de Deus é o governo de Deus, a plena manifestação da sua vontade. Afirmar que o reino de Deus é chegado à nossa vida é afirmar que o governo de Deus chegou a nós. Isso abre a possibilidade de ampliar o escopo da nossa missão, pois passamos a entender que o reino de Deus vai além da própria igreja, assim como das implicações sociais desse governo. Ao nos ensinar a orar (“faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” – Mt 6.10), Jesus nos ensina que o reino de Deus está associado à vontade de Deus, e que a manifestação desse reinado é terrena, ou seja, embora seja um reino celestial, seus sinais se manifestam na terra, criação sua, para a glória de Deus. O campo de batalha é aqui! O reino de Deus compreendido como vontade, governo e domínio de Deus nos leva a perguntar: então, por que a igreja existe? Podemos dar infinitas respostas a essa pergunta: ela existe para