A Morte da Razão - Leia um trecho

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a morte

DA RAZテグ



francis SCHAEFFER

a morte

DA RAZテグ Traduzido por Joテ」o Bentes


a morte da razão Categoria: Apologética / Liderança / Vida cristã

Copyright © 1968 por Inter-Varsity Fellowship, Inglaterra Publicado originalmente por Inter-Varsity Press, Nottingham, Inglaterra Título original em inglês: Escape from Reason Segunda edição: Abril de 2014 Tradução: João Bentes Preparação: ABU Editora e Editora Fiel Revisão: Edison Mendes de Rosa Natália Costa Custodio Diagramação: Bruno Menezes Capa: Ana Cláudia Nunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Schaeffer, Francis A., 1912-1984. A morte da razão / Francis Schaeffer; traduzido por João Bentes. — 2. ed. — São Paulo : ABU Editora ; Viçosa, MG : Editora Ultimato, 2014. Título original: Escape from reason ISBN 978-85-7055-071-2 1. Fé e razão - Cristianismo - História das doutrinas 2. Filosofia moderna I. Título. CDD-231.042

14-03015 Índices para catálogo sistemático: 1. Fé e razão : Doutrina cristã

231.042

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados ABU Editora Av. Pedro Bueno, 1.831 Parque Jabaquara 04342-011 São Paulo, SP Telefone: 11 5031-6278 www.abub.org.br

Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br

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Sumário

Nota do editor Prefácio

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1. Natureza e graça

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2. Uma unidade de natureza e graça

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3. A ciência moderna nos primórdios

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4. O salto

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5. A arte como salto no andar superior

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6. Loucura

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7. Racionalidade e fé

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Nota do EDITOr

A

pesar de ter sido escrito há quatro décadas, A Morte da Razão é uma obra atualíssima. Mesmo com todas as mudanças sociais, culturais e geopolíticas que ocorreram no mundo desde então, a obra de Francis Shchaeffer não envelheceu, pelo contrário, demonstrou seu vigor, resistindo aos superficiais modismos intelectuais e estabelecendo-se como um marco na reflexão cristã evangélica contemporânea. Sua sóbria reflexão bíblica sobre o homem e o curso do pensamento da humanidade sem Deus sobrevive ao antigo discurso “bipolar” de um mundo imerso na Guerra Fria (final da década de 60), época em que o livro foi escrito. Tal paradigma hoje se demonstra insuficiente para se compreender a complexa realidade pós-moderna onde a hegemonia do pensamento capitalista tem influenciado cada vez mais um mundo globalizado cultural e economicamente, porém multifacetado em diversas formas de pensar.


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a morte da razão

Schaeffer fala sobre o desafio que cada geração de cristãos tem de enfrentar, sobretudo no que se refere à compreensão da forma de pensar da geração à qual pertence. Para se compreender o homem do século 21 é preciso entender não somente a forma de pensar desta geração, mas o que a leva a compreender o mundo dessa maneira. A Morte da Razão é uma obra chave para desvendar esse mecanismo. Mesmo com todas as conquistas obtidas em vários níveis sociais e tecnológicos nestes últimos decênios, não houve nenhum avanço na resolução do “mal estar” do homem com relação ao mundo, para consigo mesmo e para com a eternidade. As “respostas” atuais são tão diversificadas quanto frágeis, sob o ponto de vista intelectual: os velhos “ismos”, como o misticismo, hedonismo, materialismo, niilismo entre outros, são rapidamente renovados e apresentados como “novas propostas”. Nem o cristianismo se salva desse cardápio requentado. A apresentação de um neoevangelho desprovido de significado histórico, repleto de símbolos com significados desconexos e pleno de experiência não racionais é subproduto dessa “morte” da razão. No pós-moderno século 21, as pessoas continuam buscando sobreviver psicologicamente, valorizando a emoção e a “experiência” – às custas de um assassinato intelectual em virtude de uma preguiça ou inaptidão mental (o mundo de hoje conhece bastante, comunica-se muito – porém relaciona-se pouco –, mas reflete e compreende pouquíssimo). As coisas hoje não precisam ter significado, basta apenas ter função estética ou emocional. Não é preciso refletir mais. É o caso, por exemplo, do uso dos jeans pré-lavados e previamente rasgados, que de uma forma de protesto contra a sociedade consumista (por parte dos integrantes do movimento punk), foi tragada pela indústria cultural e de consumo passando a ser um padrão estético – mas desprovido do caráter de protesto – da própria sociedade criticada. A fonte dessa “forma não pensada” de


nota do editor

pensar e agir é essa “morte da razão” explicitada por Schaeffer. No mundo evangélico, a valorização do privado em detrimento da comunidade, evidanciado por uma mensagem centrada no acúmulo de riquezas e resolução de problemas pessoais ao invés de uma busca por justiça social e denúncia do pecado é legitimada por uma teologia não íntegra e não integral. Essa “partição” convenientemente intecional da mensagem do evangelho é resultado dessa desintegração equivocada do universo, conforme observado pelo autor. Muitos outros exemplos e situações poderão ser levantadas através da compreensão, análise e reflexão deste pequeno volume. Daí a importância de reeditá-lo em língua portuguesa, totalmente revisado e rediagramado a fim de evidenciar esse processo a esta nova geração de cristãos. Cumpre a nós, cristãos do século 21, apresentar a mensagem do Evangelho de Cristo de modo contextualizado e relevante, a partir da compreensão “do presente século”.

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Prefácio

S

e alguém vai passar uma longa temporada no exterior, é de se esperar que a pessoa aprenda a língua do país para onde vai. Mais do que isso, entretanto, é preciso que essa pessoa realmente consiga comunicar-se com aqueles entre os quais vai viver. É necessário ainda aprender outra linguagem: a das formas de pensamento das pessoas com quem falará. Só assim nosso viajante será bem sucedido em sua comunicação com elas. O mesmo ocorre com a Igreja Cristã. Sua responsabilidade não é apenas professar os princípios básicos da fé cristã, à luz das Escrituras; sua tarefa é comunicar essas verdades imutáveis à geração em que se situa. Cada geração cristã depara com esse problema de aprender como falar à sua época de maneira comunicativa. Esse é um problema que não pode ser resolvido sem uma compreensão da situação existencial, em constante mudança, com que


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se defronta. Para comunicar a fé cristã de modo eficiente, portanto, temos que conhecer e entender as formas de pensamento de nossa geração. Tais formas diferem ligeiramente de lugar para lugar e, em maior grau, de nação para nação. Entretanto, há determinadas características da época em que vivemos que são as mesmas, independentemente do lugar onde nos encontramos. São a essas características que darei consideração especial neste livreto. Mas o propósito que tenho está longe de ser mera satisfação da curiosidade intelectual. À medida que avançarmos, ficará cada vez mais evidente o alcance das consequências práticas da compreensão adequada desses movimentos de pensamento dos dias atuais. Alguns vão se surpreender com o fato de, na análise das tendências do pensamento moderno, eu considerar Tomás de Aquino como ponto de partida. Estou, porém, convencido de que o nosso estudo deve interessar-se não apenas isoladamente como também conjuntamente pela história e pela filosofia. Só poderemos compreender as tendências atuais do mundo do pensamento se visualizarmos a situação segundo sua origem histórica e, ao mesmo tempo, atentarmos de maneira minuciosa para o desenvolvimento das formas de pensamento filosófico. Somente após haver efetuado esse ponto preliminar teremos condições para enfrentar os aspectos práticos da questão de como comunicar a verdade imutável a um mundo em mudança.

Francis Schaeffer


capítulo 1

Natureza e graça

A

origem do homem moderno pode ser atribuída a diversos períodos. Entretanto, partirei do ensino de alguém que transformou o mundo de modo muito real. Tomás de Aquino (1225-1274) abriu caminho para a discussão do que convencionalmente é designado de “natureza e graça”. Isso pode ser representado por meio do seguinte diagrama: GRAÇA NATUREZA

Esse diagrama pode ser ampliado da seguinte maneira, mostrando o que se inclui nos dois níveis:


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A morte da razão GRAÇA, O NÍVEL SUPERIOR Deus, o Criador; o céu e as coisas celestes; o invisível e sua influência na Terra; a alma humana; a unidade NATUREZA, O NÍVEL INFERIOR A criação; a Terra e as coisas terrenas; O visível e o que fazem a natureza e o homem na Terra; o corpo humano; a diversidade

Até a época antes de Tomás de Aquino, as formas de pensamento tinham sido bizantinas. As realidades celestiais capitalizavam toda a importância e se revestiam de tal santidade que não eram retratadas de maneira realista. É o que se observa com relação a Maria e Jesus Cristo: ambos nunca são retratados de forma realista nessa fase. Retratam-se apenas símbolos. Assim, se examinarmos qualquer dos mosaicos do fim do período bizantino no batistério de Florença, por exemplo, não é um retrato de Maria que veremos, mas um símbolo que representa Maria. Por outro lado, a natureza em si – as árvores e as montanhas – não se revestia de interesse para o artista, exceto como parte deste mundo em que vivemos. O alpinismo, por exemplo, simplesmente não exercia nenhum apelo como escalada a ser feita pelo prazer de subir montanhas. Como veremos, esse esporte como tal só surgiu quando ocorreu um novo interesse pela natureza. Assim, antes de Tomás de Aquino, dava-se fortíssima ênfase às coisas celestes, tão remotas e transcendentes, tão santas e sublimes, representadas por meio de símbolos, com pouco interesse pela natureza como tal. Com o advento de Tomás de Aquino, temos o verdadeiro surto da Renascença humanista.


Natureza e graça

A concepção tomista de natureza e de graça não envolvia completa descontinuidade dos dois princípios, pois sustentava um conceito de unidade que as correlacionava. Desde os tempos de Aquino, e por muitos anos a seguir, houve empenho constante em se estabelecer uma unidade da graça e da natureza, bem como a esperança de que a racionalidade tinha de dizer algo a respeito de uma e de outra. Uma boa porção de coisas excelentes adveio do surto do pensamento renascentista. De modo particular, a natureza passou a usufruir de conceito mais apropriado. Do ponto de vista bíblico, a natureza é importante porque foi criada por Deus; por isso, não deve ser menosprezada. Do mesmo modo, não devem ser desprezadas as coisas relativas ao corpo, quando comparadas às da alma. Tudo o que reflete a beleza reveste-se de importância. A sexualidade em si não é um mal. Tudo isso se integra no fato de que Deus nos outorgou na própria natureza uma dádiva excelente. Portanto, se o homem a desdenha, ele está, na verdade, atentando contra a dignidade daquilo que é criação divina. Assim, em certo sentido, o homem está desprezando o próprio Deus, já que despreza o que Deus criou.

Tomás de Aquino e o autônomo Ao mesmo tempo, estamos agora em condições de ver o significado do diagrama da natureza e da graça sob uma perspectiva diferente. Embora bons resultados adviessem da posição de maior realce conferida à natureza, isso deu lugar a muita coisa de cunho destrutivo, como se verá adiante. Na concepção tomista, a vontade humana está decaída, mas não o intelecto. Dessa noção incompleta do conceito bíblico da Queda resultaram todas as dificuldades que vieram depois. O intelecto humano

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tornou-se autônomo. Em um aspecto, o homem passou a ser independente, autônomo. Essa esfera do autônomo em Tomás de Aquino assume várias formas. Um dos resultados, por exemplo, foi o desenvolvimento da teologia natural. Nessa perspectiva, a teologia natural é uma teologia que se poderia formular independentemente das Escrituras. Embora fosse um estudo autônomo, Tomás de Aquino esperava que resultasse numa unidade e dizia existir uma correlação inegável entre a teologia natural e a Bíblia. O ponto importante, porém, no que se seguiu foi que uma área completamente autônoma assim se estabeleceu. Com base nesse princípio de autonomia, também a filosofia tornou-se livre e separou-se da revelação. Portanto, a filosofia começou a criar asas, por assim dizer, voando por onde queria e deixando à margem as Escrituras. Isso não quer dizer que essa tendência não tenha se manifestado anteriormente, mas apenas que, desse momento em diante, evidenciou-se de maneira mais completa. Tal tendência também não se limitou à filosofia de Tomás de Aquino, logo se fazendo sentir no mundo da arte. O processo educacional dos dias atuais tem um ponto falho, por não levar em conta as associações naturais entre as diferentes disciplinas. Tendemos a estudá-las separadamente, em linhas paralelas. Essa tendência é real tanto na educação secular como na educação cristã. Essa é uma das razões por que evangélicos têm-se surpreendido diante das tremendas mudanças produzidas em nossa geração. Temos estudado exegese apenas como exegese, teologia apenas como teologia, filosofia apenas como filosofia. Estudamos algo na esfera da arte apenas como arte. Estudamos música simplesmente como sendo música. Não percebemos que todas essas coisas são elaborações humanas e que as coisas do homem não podem ser concebidas como linhas paralelas não relacionadas.


Natureza e graça

Essa associação entre teologia, filosofia e arte emergiu de diversas maneiras após Tomás de Aquino.

Pintores e escritores O primeiro artista a ser assim influenciado foi Cimabue (1240-1302), mestre de Giotto (1267-1337). Considerando que Tomás de Aquino viveu de 1225 a 1274, essas influências se fizeram sentir bem depressa no campo da arte. Em vez de situar todos os motivos da arte acima da linha divisória entre natureza e graça na maneira simbólica do Bizantino, Cimabue e Giotto começaram a pintar as coisas da natureza como natureza. Nesse período de transição, a mudança não ocorreu de uma vez. Havia, por isso, a tendência, a princípio, de se pintarem os elementos de menos importância no quadro de forma naturalista, continuando, porém, a se representar Maria, por exemplo, como um símbolo. Depois, Dante (1265-1321) passou a escrever da maneira como esses artistas pintavam. De repente, tudo começou a se alterar no sentido de que a natureza veio a tornar-se importante. Idêntica expressão pode-se perceber nos renomados escritores Petrarca (1304-1374) e Bocácio (1313-1375). Petrarca foi o primeiro de quem se ouviu dizer jamais haver escalado montanhas sem ser pelo simples prazer de fazê-lo. Tal interesse pela natureza como Deus a criou é, como já vimos, bom e apropriado. Tomás de Aquino, porém, havia aberto caminho para um humanismo autônomo, uma filosofia autônoma, e tão logo o movimento adquiriu força, a tendência tornou-se um verdadeiro dilúvio.

Natureza versus Graça O princípio vital a se notar é que à medida que a natureza se fazia autônoma, passava a “devorar” a graça. Através da Renascença,

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de Dante a Miguel Ângelo, gradualmente a natureza se fez inteiramente autônoma. Ela libertou-se de Deus à medida que os filósofos humanistas começaram a operar cada vez mais à vontade. Quando a Renascença chegou ao seu clímax, a natureza havia devorado a graça. Isso pode ser demonstrado de várias maneiras. Comecemos com uma miniatura conhecida como Grands Heures de Rohan (Grandes Horas de Rohan), pintada por volta de 1415. O motivo explorado é uma história miraculosa do período. Maria, José e o menino, em fuga para o Egito, passam por um campo em que um homem está semeando, e um milagre se realiza. O grão semeado germina e cresce no espaço de mais ou menos uma hora, mostrando-se em condições de ser ceifado. Quando o homem se põe a cortar o trigo, aparecem os soldados que vinham em perseguição à família fugitiva e indagam: “Quanto tempo faz que eles passaram por aqui?”. O lavrador responde que na ocasião estava semeando aquele cereal, e diante disso os soldados retrocedem. Não é, porém, propriamente a história que nos interessa, mas a maneira como as figuras se dispõem na miniatura. Em primeiro lugar, há uma notória diferença entre o tamanho das figuras de Maria e José, do menino, do criado e do jumento, que ocupam a parte superior da tela e a dominam pelas dimensões avultadas, e as minúsculas representações do soldado e do homem que empunha a foice na porção inferior do quadro. Em segundo lugar, a mensagem se evidencia não só por causa do porte das figuras superiores, mas pelo fato de o fundo dessa porção ser coberto de linhas douradas. Há, pois, total expressão pictórica da graça e da natureza. Esse é o conceito antigo – a graça notoriamente importante, e a natureza pouco destacada. No norte da Europa, Van Eyck (1380-1441) foi quem abriu a porta à natureza em uma nova maneira. Ele começou a


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pintar a natureza real, tal qual se mostra. Em 1410, data muito importante na história da arte, ele pintou uma miniatura de apenas 12 x 8cm. Entretanto, é um quadro de tremendo significado, porque representa a primeira paisagem real. Essa obra deu origem a todos os fundos de quadro que surgiram posteriormente durante a Renascença. O tema é o batismo de Jesus, mas a cena abrange apenas diminuta área do quadro todo. O fundo representa um rio, um castelo muito real, casas, colinas e outros elementos – paisagem natural: a natureza tornou-se importante. Depois dessa obra, paisagens do gênero difundiram-se rapidamente do norte ao sul da Europa. Logo, surgiu o estágio seguinte. Em 1435, Van Eyck pintou a Madona do Chanceler Rolin, que está atualmente no Museu do Louvre, em Paris. A característica significante é que o Chanceler Rolin, ao se defrontar com Maria, tem as mesmas dimensões que ela. Maria não é retratada distante, e o Chanceler não é uma figura minúscula, como teria sido o caso em relação aos patrocinadores do período anterior. Embora tenha as mãos em postura de prece, ambos estão em pé de igualdade. Daí em diante, a pressão se fez sentir: como resolver esse equilíbrio entre graça e natureza? Nesse ponto, cabe uma menção a Masaccio (1401-1428), outra figura importante. Ele dá o próximo grande passo, na Itália após Giotto, falecido em 1337, ao introduzir perspectiva e espaço reais. Pela primeira vez, a luz é projetada de direção própria. Por exemplo: na maravilhosa Capela Carmina, em Florença, há uma janela que Masaccio levou em consideração ao pintar os quadros nas paredes, de modo que as sombras nas pinturas caem na posição determinada pela luz vinda dessa janela. Masaccio estava observando a natureza real, verdadeira. Ele pintava de tal modo que seus quadros parecem refletir a exata perspectiva da realidade em três dimensões. Eles dão a

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sensação de atmosfera, representam a introdução da composição real. Masaccio viveu apenas até os 27 anos de idade, mas abriu quase completamente a porta para a natureza. Com a sua obra, assim como a maior parte dos trabalhos de Van Eyck, a ênfase na natureza foi tal que poderia ter levado à pintura um verdadeiro ponto de vista bíblico. Com Filippo Lippi (1406-1469), salta à vista que a natureza começa a “devorar” a graça de modo mais sério do que o visto na Madona do Chanceler Rolin, de Van Eyck. Poucos anos antes, nenhum artista ousaria pensar em pintar Maria em moldes naturais – seria pintado apenas um símbolo. Quando, porém, Filippo Lippi executou o quadro da Madona, em 1645, a mudança que se tornava evidente era surpreendente. A obra retrata uma jovem extremamente formosa com uma criança nos braços, em uma paisagem que, sem dúvida, fora grandemente influenciada pela obra de Van Eyck. Essa Madona já não mais era um símbolo remoto, distante, de cunho transcendente, mas uma linda jovem com uma criança. Mas ainda há algo que devemos saber acerca desse quadro. A jovem que representa Maria era nada menos que a amante de Lippi, fato conhecido de toda Florença. Ninguém teria ousado fazer isso alguns anos antes. A natureza estava matando a graça. Na França, Fouquet (cerca de 1416-1480) pintou, por volta de 1450, a amante do rei, Agnes Sorel, como Maria. Todos quantos conheciam a corte de perto, vendo o quadro, sabiam tratar-se da então amante do rei. Além disso, Fouquet pintou-a com um dos seios à mostra. Enquanto nos tempos precedentes a representação seria de Maria amamentando o menino Jesus, agora era a amante do rei, com um seio à vista – e a graça estava morta! O ponto a se acentuar é que a natureza, uma vez tratada como coisa autônoma, reveste-se de caráter destrutivo. Tão logo se estabelece esse reino autônomo, verifica-se que o elemento


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inferior começa a corroer o superior. De agora em diante, vou me referir a esses dois elementos como o “andar inferior” e o “andar superior”.

Leonardo da Vinci e Rafael Leonardo da Vinci é a figura a ser considerada a seguir. Ele introduziu um novo fator no fluxo da história, sendo, mais do que qualquer figura que o precedeu, a individualidade que mais se aproxima do homem moderno. Viveu de 1452 a 1519, período importante que coincidiu com os primeiros anos da Reforma Protestante. Tal período integra ainda, e com acentuada relevância, a assinalada mudança que se manifestou no pensamento filosófico. Cósimo, o velho, de Florença, que faleceu em 1464, foi o primeiro a perceber a importância da filosofia de Platão. Tomás de Aquino havia introduzido o pensamento aristotélico. Cósimo começou a bater-se pelo Neoplatonismo. Ficino (1433-1499), o grande neoplatonista, foi mestre de Lourenço, o Magnífico (1449-1492). Nos dias de Leonardo da Vinci, o Neoplatonismo era força dominante em Florença. Esse pensamento assumiu tal relevância simplesmente porque era preciso colocar algo no “andar superior”. O Neoplatonismo foi guindado a essa privilegiada posição com vistas a restaurar ideias e ideais, isto é, coisas universais: GRAÇA - UNIVERSAIS NATUREZA - PARTICULARES

Um quadro que ilustra esse ponto é A escola de Atenas, de Rafael (1483-1520). Na sala do Vaticano em que se encontra essa obra famosa, Rafael pintou, em uma das paredes, um mural

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que representa a Igreja Católica Romana, que contrabalança, na parede oposta, A escola de Atenas, que tipifica o pensamento pagão clássico. Em A escola de Atenas, Rafael retrata a diferença entre o elemento aristotélico e o platônico. Os dois filósofos ocupam o centro do quadro – Aristóteles, com as mãos voltadas para o chão; Platão, a apontar para o alto. Esse problema pode ser expresso de outra forma. Onde encontrar a unidade, depois de se conceder plena liberdade à diversidade? Se unidade e diversidade são libertadas, de que modo conservá-las em um todo uno? Leonardo debateu-se com esse problema. Ele era um pintor neoplatônico e, muitos o têm dito – julgo que com muita propriedade –, o primeiro matemático moderno. Ele percebeu que se partirmos da racionalidade autônoma chegaremos à matemática (matéria que se pode medir); e a matemática trata somente de particulares, nunca de universais. Portanto, não iremos nunca além da mecânica. Para uma pessoa que percebia quão necessária era a unidade, a insuficiência desse esquema era evidente. Leonardo procurou, então, pintar a alma. Não a alma cristã. A alma, para ele, era a universalidade, como, por exemplo, a alma do amor ou da árvore. ALMA - UNIDADE MATEMÁTICA – PARTICULARES – MECÂNICA

Uma das razões de Leonardo jamais ter pintado de modo intenso foi simplesmente porque procurou desenhar, sempre desenhar, com o objetivo de ser capaz de retratar o universal. Não é necessário dizer que ele jamais conseguiu isso. Giovanni Gentile, um dos maiores expoentes do pensamento filosófico italiano (1875-1944), disse que Leonardo morreu


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frustrado, porque não queria abrir mão da esperança de uma unidade racional entre os particulares e o universal.1 Para escapar dessa frustração, era necessário que Leonardo fosse uma pessoa diferente. Ele teria que se desvencilhar desse desejo por uma unidade acima e abaixo da linha. Apesar de não ser pensador da linhagem moderna, Leonardo nunca abandonou a esperança de um campo de conhecimento unificado. Em outras palavras, ele não abriria mão da esperança do homem erudito que, no passado, tinha se caracterizado por essa insistência em um todo unificado de conhecimento.

Nota 1. DA VINCI, Leonardo. O pensamento de Leonardo. Nova York: Reynal – Co., 1963. p. 163-174.

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