Esly Regina Carvalho
Q UANDO
O VÍNCULO SE ROMPE — separação, divórcio e novo casamento —
QUANDO O VÍNCULO SE ROMPE Categoria: Casamento/Família
Copyright © 2000, Esly Regina Carvalho Todos os direitos reservados Primeira edição: Março de 2000 Projeto Gráfico: Editora Ultimato Capa: Expressão Exata Revisão: Délnia M. C. Bastos Elsie B. C. Gilbert
Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação e Classificação da Biblioteca Central da UFV Carvalho, Esly Regina, 1955-
C331q Quando o vínculo se rompe ; separação, divórcio e novo 2000 casamento / Esly Regina Carvalho. — Viçosa : Ultimato, 2000. 104p. ISBN 85-86539-32-5 1. Separação (Psicologia). 2. Divórcio - Aspectos religiosos. 3. Divórcio - Aspectos psicológicos. 4. Segundas núpcias - Aspectos religiosos. 5. Segundas núpcias - Aspectos psicológicos. 6. Ética cristã. I. Título. CDD. 19.ed. 155.643 CDD. 20.ed. 155.643
PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAÇÃO E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS PELA
EDITORA ULTIMATO LTDA Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3891-3149 — Fax: 31 3891-1557 E-mail: ultimato@ultimato.com.br www.ultimato.com.br
3ª reimpressão
2.
Separação e divórcio
Há alguns anos assisti a uma série de conferências em Quito, Equador, ministradas pelo Dr. Jorge Maldonado sobre o ciclo vital da família. À medida que o conferencista desenvolvia o tema, percebi que era necessário incluir também uma situação que atualmente afeta nossas famílias, cristãs ou não. Refiro-me à separação e ao divórcio. Gostaria de compartilhar algumas ideias sobre as tarefas, os conflitos e a terapêutica desse processo. Creio que a separação é um aborto: interrompe o processo natural do desenvolvimento da vida familiar. A separação implica uma série de perdas imediatas, que precisam ser elaboradas, e alguns benefícios, a médio e longo prazo. Existe uma série de tarefas emocionais no ciclo vital do casal que se separa. Analisemos algumas delas. Elaboração das perdas. Em primeiro lugar, a família perde a convivência constante de todos os seus membros. Às vezes, essa perda pode significar um alívio, já que em muitos casos a convivência havia se tornado insuportável. Mas, mesmo na pior das situações, perde-se aquilo e aqueles com quem se
26
Quando o Vínculo se Rompe
estava acostumado. Há uma mudança básica na convivência. Há explicações a dar, principalmente aos filhos: Por que meu pai não mora mais aqui? Como é que vocês pararam de se amar? Quando é que ele vai voltar? Por que não podem ficar juntos? Por que minha mãe não quer mais viver com você? E assim por diante. Perguntas justificadas, que merecem respostas honestas e sérias, mas muito difíceis porque, muitas vezes, até a própria pessoa não tem as respostas. Não só os filhos perdem a convivência com um dos pais, mas um cônjuge perde a convivência com o outro. Bem ou mal, trata-se de uma perda. As pessoas se casam para ficar juntas e a separação põe fim a esse projeto de vida. Esperava-se compartilhar a vida, ter com quem contar nas horas difíceis, ter a quem recorrer nas alegrias e nas tristezas, ter filhos e envelhecer juntos. Esse sonho acaba. Muitas outras coisas acabam... É comum ter que mudar de casa, o nível socioeconômico cai, os salários que sustentavam uma família agora devem sustentar duas casas, a mãe tem de sair para trabalhar, se já não o fazia. Os filhos perdem a convivência dos dois. A mãe, que trabalha fora e passa 8 horas no trabalho, chega cansada e tem de resolver mil (pelo menos mil!) problemas. Antes algumas tarefas eram divididas; agora existe um só para fazer tudo, resolver tudo, olhar tudo. É difícil dividir com quem não está presente. O casal que se separa perde seu estado civil. Isso parece óbvio, mas suas consequências são mais sutis. Espera-se que o homem “caia na gandaia”. Se a mulher o faz, fica malfalada. Agora ela é “desquitada”, “divorciada”, e perdeu, de certa forma, a proteção do casamento que seu estado civil lhe concedia. Afinal, é uma mulher “liberada” (liberada para quê?!). Parece que se perde o uso dos nomes próprios dos cônjuges: o marido vira o “pai das crianças”, e a esposa se torna a “mãe dos meninos”, como que para enfatizar que a ligação entre um e outro não é mais o amor, mas, sim, os filhos. Não fossem os filhos jamais se veria a quem se jurou eterno amor. Reorganização. Aí começa a segunda tarefa nesta etapa da vida: a de se reorganizar como pessoa e como família.
Separação e Divórcio
É preciso reorganizar os horários, o dinheiro, o tempo. Que fazer ao entrar em casa e não ter ninguém esperando? Como ter paciência para contar os dias para ver os filhos? Como fazer o fim de semana passar se não há crianças para preenchê-lo? Como lidar com o convite para sair? E se ele der uma cantada? E se eu não quiser ir para cama com ela? Este é um período para perguntas sem respostas fáceis. Parece até que se voltou aos 5 anos de idade. A sobrevivência volta a ser a questão principal. Como não morrer de depressão em meio a tudo isso? O tempo é um grande aliado. Aos poucos surge a oportunidade de se conhecer de uma nova forma. Sozinha, a pessoa descobre seu próprio tamanho. Há muitas descobertas a serem feitas: sua própria companhia pode ser boa, gostosa. Voltar a ter um tempo só para si: ouvir aquela música, ler aquele livro, fazer um passeio inesperado, meditar e refletir sobre as questões corriqueiras e existenciais da vida, descobrir que estar sozinho não é uma maldição ou castigo. Poder ser uma grande bênção, se bem aproveitado. O segundo aspecto a ser reorganizado é o afetivo. Namorar ou não namorar? Como? Quando? São questões difíceis e delicadas, mas há grande emoção em ser capaz de amar de novo (esse dia chega sim!), de sentir aquelas “coisas de adolescente”, de poder “ver passarinho verde”. Lidar com isso tudo e os filhos pode ser complicado ou mais simples do que se esperava. É difícil prever, mas é uma tarefa necessária. O terceiro aspecto da reorganização diz respeito à relação com os filhos. Como vai ser sua relação com eles daqui para frente? Não se iluda, ninguém pode ser mãe e pai, mesmo que acumule as tarefas de um e de outro. A mãe que faz “coisas de pai” continua sendo mãe. Qual a relação que você quer ter com seus filhos? Qual a relação que lhe será possível manter? Os filhos precisam entender que eles não são culpados pela separação. É muito fácil às crianças tomarem para si esta culpa... por conexões mentais das mais esdrúxulas. É preciso que eles ouçam claramente que a separação é do casal, uma decisão de adultos, tomada por adultos e que eles também vão ter de viver as consequências dessa decisão.
27
28
Quando o Vínculo se Rompe
Muitas dessas questões trazem conflitos enormes, o que é normal. Se estivermos conscientes do tamanho e do nível de ambivalência e conflitos presentes nas relações, poderemos lidar com esses conflitos de uma forma mais saudável. Uma ambivalência tremendamente ignorada entre os próprios casais é a relação amor/raiva. Como compreender a raiva que se sente por alguém por quem esteve apaixonado? Como entender o amor que se sente por alguém que lhe feriu tanto? Assim como em qualquer situação de perda, perdem-se também as coisas boas, mesmo que elas atualmente tenham um peso menor. Houve um tempo bom no qual coisas boas foram compartilhadas. Parece até que se a pessoa admitir isso na hora da separação ela está traindo sua decisão ou admitindo que ainda ama o outro. Uma relação de tanto tempo não acaba em um dia. O avesso do amor não é o ódio ou a raiva... é a indiferença. Leva muito tempo para se chegar ao ponto em que a fala ou as ações do outro não mexem mais com os sentimentos. Isso é normal. A separação é a inversão de um movimento. Casa-se para estar mais próximo do outro, ter uma intimidade maior, estar junto mais tempo. A separação inverte esse movimento: agora há um afastamento, um distanciar do outro, uma perda da intimidade. Da mesma forma que levou tempo e esforço para forjar a intimidade é preciso tempo e esforço para perdê-la. Há um mecanismo de defesa que muitas vezes entra em ação nessas situações. Existe uma tendência a denegrir a imagem do outro como uma forma de autoajuda no processo de perda. Convenhamos, é muito mais fácil perder o que não presta, o que não era bom, do que admitir o tamanho real da perda. Coisas boas também se perdem. Um segundo conflito diz respeito à ambivalência dos filhos em relação aos pais. Afinal, os pais deveriam estar suprindo e fornecendo apoio, carinho, tranquilidade, segurança e um bom modelo de casamento para o bom desenvolvimento dos filhos. No entanto, tornam-se a fonte de um grande sofrimento. Ao mesmo tempo em que os filhos percebem que precisam dos pais, pois o cuidado paterno e materno ainda é muito importante, sentem uma raiva incrível, mágoas e ressentimentos dirigidos aos pais.
Separação e Divórcio
Por que os filhos têm que pagar pelas dificuldades dos pais? São perguntas nem sempre verbalizadas. Em geral, passam apenas pelos sentimentos. Os filhos podem passar a viver como se houvesse uma grande traição em que seus pais são culpados por traírem sua confiança. Desses conflitos e desapontamentos, facilmente se passa a padrões disfuncionais de comportamento. Fazer aliança com um dos pais. Quer essa proposta venha de um dos pais, quer venha do próprio filho, todos saem perdendo. Quando termina uma relação, um dos cônjuges não está completamente certo e o outro completamente errado, ainda que grande esforço seja feito para comprovar isso. Um deles pode ter desistido da relação, não quer mais investir nela. Falta aos filhos objetividade para fazer qualquer tipo de avaliação. À medida que os pais apresentam mensagens do tipo “se você ficar com ele, está dizendo que não me ama...” colocam os filhos em uma situação terrível. É claro que os filhos amam os pais. Não pararam de amar nenhum dos dois somente porque eles resolveram se separar. Os filhos querem ser leais para com os dois, mas percebem que os dois se puseram em campos opostos. Difícil mesmo é quando veem que, ao agradar um, desagradam ao outro. Às vezes é mais fácil optar por uma convivência com apenas um dos dois como um meio de diminuir o desgaste constante. Mas, em geral, os filhos que perdem a convivência com um dos pais por essa razão, mais tarde acabam se arrependendo. Separação não é guerra armada, ou pelo menos não deveria ser. Não há partidos a serem tomados. Os pais é que estão empreendendo a separação, não os filhos. Fica para os filhos a tarefa de suportar as consequências das decisões de seus pais. Usar os filhos contra o cônjuge. Como os filhos são muito importantes para os dois, privar um cônjuge de seus filhos é uma arma poderosa. Infelizmente, outra vez, quem sai perdendo são os próprios filhos à medida que percebem que estão sendo usados por um (ou pelos dois) como se fossem peças de um imenso jogo de xadrez. Filho é gente, tem sentimentos e vontade própria que precisam ser respeitados. Não use seu filho como uma arma!
29
30
Quando o Vínculo se Rompe
Casar-se rapidamente logo depois da separação. Em geral, há muito prejuízo para todos nessa opção. O cônjuge não tem tempo para elaborar sua perda e sua situação anterior. Um outro aspecto desta armadilha é a tentativa de pôr um fim a um sofrimento tão grande, usando-se um novo amor para consegui-lo. Só que o sofrimento precisa primeiro ser vivido, não evitado. Se não for bem digerido, ele aparece depois de forma muito mais prejudicial. Outros se casam para não cair na “prostituição” ou “vida livre”. É comum ter muitas dúvidas e dificuldades em relação à sua sexualidade, principalmente depois de uma separação. Quantas vezes surgem as perguntas: Não foi o fator sexual uma das causas da própria separação? Será que não fui homem suficiente para ela? Será que não sou boa de cama e por isso não consegui prendê-lo? É comum também que, depois de uma separação, as pessoas tenham algumas experiências sexuais com outros parceiros até como uma forma de anular a dúvida. Não creio que essa seja uma solução bíblica e muitas vezes ela traz consequências dolorosas. Ter algumas experiências sexuais com essas motivações não implica necessariamente que a pessoa esteja entrando numa vida dissoluta. Às vezes, é uma tentativa de se equilibrar e viver algo novo em meio a muita dificuldade. Desse comportamento até a prostituição há um bom pedaço de chão. No entanto, alguns se casam rapidamente como uma forma de “frear” essa tendência, que em geral se esgota em pouco tempo. Dizem que é “melhor casar do que viver abrasado” e se casam na primeira oportunidade de pôr fim a seu “abrasamento”. Pouco depois se arrependem. Essa jamais foi uma boa motivação para o casamento feliz. O fogo passa e o casamento se desfaz. Ter uma vida sexual livre. Liberar-se sexualmente como forma de se proteger de relacionamentos mais íntimos ou duradouros pode se tornar uma armadilha. Parece paradoxal que uma relação sexual tida como a forma mais íntima de comunicação de um casal possa ser considerada justamente o oposto. Mas em nossa geração isso acontece. É comum que as pessoas se procurem para um “programa”. Conversam, se divertem, vão para a cama... e no outro dia repetem o mesmo com outras pessoas. Desta forma, o
Separação e Divórcio
sexo acaba por impedir o desenvolvimento de relacionamentos mais próximos, mais íntimos, relacionamentos de amizade, de compartilhamento, que poderiam levar a uma relação mais duradoura, um outro casamento... Esse compromisso é o que a pessoa mais teme. Inconscientemente, a pessoa arma uma forma de não se vincular a mais ninguém para não sofrer de novo o que passou na separação. Assim, jamais será ferida. Tampouco será feliz. Vejamos agora alguns delineamentos terapêuticos e profiláticos para a questão. É claro que a grande vantagem terapêutica relativa ao divórcio é o fortalecimento dos laços conjugais de forma a evitar separações. O ministério de Eirene1 tem desenvolvido todo um programa de enriquecimento matrimonial que visa justamente isto: ajudar os casais a serem mais felizes e saudáveis nas suas relações uns com os outros e, consequentemente, com seus filhos. No entanto, nem sempre é possível evitar a separação. O que fazer nesse caso? Uma das primeiras sugestões é viver intensamente tudo o que estiver ligado à experiência de separação. A Bíblia fala que não devemos estranhar o sofrimento, pelo contrário, devemos nos regozijar nele (1 Pe 4.12-13). Moffat, na sua versão, diz que devemos “abraçar o sofrimento” já que ele desenvolve nosso caráter. Que coisa difícil! Mas sábia! Somente indo fundo na nossa dor é possível esgotá-la e cicatrizar as marcas que ela nos deixa. Leva tempo e requer coragem, mas é o caminho da saúde. Dê tempo ao tempo. Há poucas situações em que o tempo realmente ajuda a melhorar. Dar tempo ao processo de luto é uma delas. Não exija de si mesmo coisas que você ainda não está pronto para enfrentar. Às vezes, passam alguns meses e os amigos e familiares começam a pensar que já é hora de “deixar isso pra lá e dar a volta por cima”. Mas a recuperação emocional de um divórico leva anos, uma média de um a dois anos pelo menos. Tenha paciência com você mesmo. Haverá dias melhores e dias piores, mas, com o tempo, aqueles serão mais numerosos que estes.
1
Eirene do Brasil: Caixa Postal 900-80001-970 Curitiba, PR.
31
32
Quando o Vínculo se Rompe
Não se assuste com a recaída. Algumas vezes, depois de um tempo bom, voltam lembranças, desejos, recordações. Isso também é normal. Não precisa ficar “curtindo a fossa”. Permita-se um tempinho para viver o que está aparecendo e tranquilize-se. Isso passa logo. Finalmente, a separação pode ser uma experiência de crescimento. Não é das formas mais agradáveis de amadurecer. A separação, uma vez que já tenha se tornado um fato na vida de uma pessoa, pode ser utilizada como um meio de crescimento e saúde, não de tormenta e patologia. Por isso, é importante que se viva o luto nessa época. Sofrer não é o fim do mundo, mesmo que possa parecer assim. Jesus aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu (Hb 5.8). E Ele mesmo afirmou que neste mundo passaríamos por aflições (Jo 5.8). Ter uma perspectiva de crescimento, de aproveitar o que há de bom nessas experiências e uma visão do que elas podem desenvolver em seu caráter é melhor do que revoltar-se e rebelar-se contra algo razoavelmente inevitável. Todos sofrem de uma forma ou de outra. Portanto, a separação pode ser a grande crise que nos faz crescer em uma nova direção, abrindo novos horizontes e nos possibilitando novas conquistas de vida. Nota: Publicado originalmente na série Separação e divórcio, pelo Conselho Latino-americano de Igrejas (1992).