Século I - A Reconstrução

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CAYO CÉSAR SANTOS

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SÉCULO I — A RECONSTRUÇÃO Categoria: Espiritualidade / Ficção / Vida cristã Copyright © 2017, Cayo César Santos

Primeira edição: Dezembro de 2017 Coordenação editorial: Natália Superbi Revisão: Lilian Rodrigues Diagramação: Bruno Menezes Capa: Angela Bacon Ilustração: Valter Gonçalves Jr.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Santos, Cayo César, 1967Século I : a reconstrução / Cayo César Santos. — Viçosa, MG : Ultimato, 2017. ISBN 978-85-7779-172-9 1. Ficção cristã I. Título. 17-11311

CDD-869.3

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção cristã : Literatura brasileira

869.3

PUBLICADO NO BRASIL COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS POR: EDITORA ULTIMATO LTDA Rua A, no 4 - Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 www.ultimato.com.br


Ă€ dona Bete, que me legou a fĂŠ. Ao seu Delson, que me ensinou a sonhar.



SUMÁRIO

Prefácio

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Apresentação

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1. Uma noite diferente

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2. Shabat

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3. Vazio

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4. Conexão de almas

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5. Corações em chamas

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6. A colisão de dois mundos

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7. Dignidade humana

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8. Efatá

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9. Claro como o luar

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10. Queres ser curado?

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11. Redefinindo Chronos

153

12. Afinal, nem todas as lágrimas são ruins

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13. Naquele primeiro dia...

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14. Emanuel

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15. A reconstrução da humanidade

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Notas

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PREFÁCIO

OS CRISTÃOS RECONHECEM que a Bíblia Sagrada é a revelação de Deus. Noutras palavras, é Deus nos revelando quem ele é, seus propósitos, caminhos, salvação e justiça, e tudo o que nos é necessário conhecer a respeito dele. Embora a Bíblia seja composta de vários livros, escritos por diversos autores, em diferentes épocas, usando vários estilos de linguagem, os cristãos sempre afirmaram que a Bíblia é a Palavra de Deus e que sua autoridade é decorrente da presença e da ação poderosa de Deus, usando pessoas, histórias e eventos para se revelar a nós. Não se trata de uma revelação impessoal. O grande milagre da Bíblia é que Deus escolheu usar a humanidade que ele mesmo criou para nos contar, por meio das experiências de um povo, Israel, sobre famílias – como a longa descendência de Abraão, Isaque e Jacó –, profetas e suas mensagens de advertência diante dos desvios espirituais e morais do povo, seus propósitos, caminhos


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e salvação. Essas ocorrências nem sempre são bonitas, mas são verdadeiras. Não são narrativas sobre heróis, mas sobre pessoas comuns, vivendo vidas ordinárias, trabalhando, amando, lutando, formando famílias e esperando pela salvação de Deus. Porém, não se trata apenas de histórias de pessoas e nações, mas também da forma como Deus participa da vida dessas pessoas e povos e se revela no meio de seus afazeres comuns. Deus se revela de forma pessoal, por meio de acontecimentos que nos envolvem e que nos fazem identificar com nossas próprias histórias, mostrando-nos o que precisamos saber para viver como homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus. Todos temos histórias pessoais e, ao mesmo tempo, participamos de outras, sejam da família à qual pertencemos, sejam da cidade ou nação em que vivemos. Sobretudo, participamos da grande história – a história de Deus e da criação. Nossas histórias pessoais, ao lado de outras que ouvimos e das quais, de alguma forma, participamos, com nossas experiências, são importantes para a nossa formação espiritual. Porém, elas, em si mesmas, não contêm toda a história. Nem mesmo as outras que ouvimos e das quais participamos, uma vez que são igualmente limitadas. Estamos envolvidos numa realidade muito maior, tanto no tempo como no espaço. Por isso, nossas histórias pessoais, com suas experiências, precisam, para fazer sentido, encontrar a grande história: a da revelação de Deus. Necessitamos ir além de nossas narrativas pessoais. Somos muito mais do que a somatória de todas as experiências vividas, do que tudo que conquistamos e do que toda a reputação e sucesso que obtivemos. Somos criação de Deus, feitos à sua imagem e semelhança. É muito fácil para o ser humano se perder em suas narrativas limitadas. A negação ou rejeição da grande história, a da revelação, nos aprisiona num mundo pequeno e nos torna vulneráveis às frustrações, angústias e desespero de um viver com horizontes limitados e sombrios. Tudo o que somos tem a ver com Deus. A realidade não se limita à minha ou à sua história. Se tentarmos


Prefácio

conhecer a nós mesmos fora dessa realidade maior e transcendente nos perderemos. É por isso que o apóstolo Paulo afirma que “nele (Deus) vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Entrar e participar da grande história de Deus é a experiência essencial e fundamental do ser humano. A grande beleza e mistério da revelação é que Deus entra e participa da nossa. Jesus Cristo é Deus encarnado. É Deus que se faz homem, habita no mundo dos homens, anda pelas mesmas estradas, come a mesma comida, conversa usando a mesma linguagem, experimenta e vive os mesmos dramas. Ou seja, é Deus participando da nossa vida para que nós possamos conhecer e participar da sua grande história. Este livro é sobre histórias pessoais e a grande história e como elas se cruzam. O narrador-personagem é Samuel. Ao longo da narrativa, Samuel – personagem ficcional como vários outros no livro – ouve atentamente as narrativas sobre Jesus, contadas por diferentes pessoas que ele encontra pelo caminho, cujas experiências pessoais foram completamente transformadas pela grande história de Deus. Ele absorve atentamente cada detalhe, ouve com atenção cada narrativa e, como num grande quebra-cabeça, segue reunindo as peças, encaixando-as cada uma no seu lugar e, lentamente, o grande quadro vai se tornando claro e esplêndido. Em vez de permanecer fechado em sua pequena história, ele deixa que outras histórias entrem na sua e encontra significado não apenas para si, mas também para tudo o que viu e ouviu. O autor nos conduz a vários encontros de Samuel em torno do grande evento da revelação de Deus: a crucificação de Cristo. Não foi fácil para ele, como também para os outros personagens, conectar esse evento sombrio com suas histórias e anseios. Certamente, nós também encontramos dificuldades de encaixar um evento tão dramático como a morte de Jesus Cristo na cruz do Calvário com as nossas histórias. Se foi difícil para Samuel, que viveu naquele tempo e naquela cultura, quanto mais o será para mim e você, que vivemos num tempo e cultura tão diferentes.

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No entanto, quando ouvimos atentamente as histórias da revelação de Deus, como o casal de discípulos de Jesus, a caminho de Emaús, ouviu naquele domingo, acontece conosco o mesmo que ocorreu com eles e com Samuel. Este livro conta uma velha história. A habilidade do autor em nos conduzir pelos caminhos da Palestina do primeiro século, descrevendo a geografia, os hábitos, as tradições e, particularmente, reconstruindo as narrativas usando a riqueza da imaginação, é o que nos permite entrar e participar dessa história que mudou toda a história. Nossa mente é treinada a pensar técnica e racionalmente, buscando ideias e conceitos, mas não somos treinados a pensar usando a imaginação e assim sermos levados a um mundo distante do nosso e ao mesmo tempo tão próximo. Um mundo de hábitos e tradições tão diferentes do nosso, mas ao mesmo tempo tão parecido. Nossas histórias pessoais são únicas, mas, quando entram em contato com a de outras pessoas, percebemos que buscamos as mesmas coisas, comungamos das mesmas dúvidas e sofremos com as mesmas frustrações. O ponto central de tudo é um evento sombrio. O lugar de convergência de todas as histórias é uma cruz e nela, o crucificado. Ao ler esta velha história você será surpreendido com a forma como ela lança luz sobre nossas histórias, às vezes sombrias. Somente uma grande história é capaz de dar sentido às nossas histórias pessoais. Ricardo Barbosa de Sousa Brasília, 30 de setembro de 2017


APRESENTAÇÃO

MUITA COISA ACONTECEU na vida de Samuel nos poucos meses que se passaram desde o dia em que fora salvo de uma condição próxima à morte, após ser vítima de um assalto na estrada que leva a Jericó. Na hospedaria do velho Baltazar, recuperando-se de seus ferimentos, o jovem judeu do primeiro século ouviu falar, pela primeira vez, por meio de Semer, o samaritano bondoso que o salvara, acerca de um rabino nazareno que ensinava com a sabedoria dos grandes profetas e praticava sinais e maravilhas, os quais faziam com que muitos imaginassem ser ele o esperado Messias de Israel. Instigado por esses relatos, Samuel partiu em busca de encontrá-lo. Para tanto, bateu à porta de Zaqueu, o publicano de pequena estatura que carregara no peito o enorme peso da solidão; de Lia, a samaritana que trilhara caminhos tortuosos na ânsia de conhecer o verdadeiro amor; de Miriã, a mulher que levara, por dezoito anos, uma vida de dor


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e humilhação; do mendigo Bartimeu, cujos olhos estiveram, outrora, presos pela escuridão. Trilhando as empoeiradas estradas da Judeia e da Galileia, ele se deparou com essas e outras pessoas que foram alcançadas pelo amor e pela graça do profeta galileu. Gente cuja história passou a ser marcada pela leveza do perdão, pela grandeza e profundidade do amor que acolhe, pela alegria de poder cantar com o rosto voltado para os céus e pelo espanto de contemplar a luz, a beleza e a redenção. Século I – A Reconstrução pode ser lido de maneira independente, embora seja uma continuação da narrativa contida na obra Século I – O Resgate, onde apresento, de forma romanceada, por meio de personagens bíblicos ou idealizados a partir de pesquisas históricas sobre os habitantes típicos daquela região, a experiência do curioso e insistente jovem Samuel. De modo surpreendente e especial, ele vai conhecendo, sem perceber, o impressionante Jesus de Nazaré. O privilégio de ouvir depoimentos tão variados e o impacto arrasador do trágico final de sua trajetória geram em Samuel o desejo de perseverar em busca de respostas, motivando-o a investigar os fatos relacionados à vida e morte daquele a quem tanto almejou conhecer. Agora, prosseguindo nessa jornada, novos encontros terminam por fazê-lo enxergar uma história que transcende as histórias que conheceu e que revela o projeto eterno do Criador de reconstruir a sua criação. Cayo César Santos Primavera de 2017


1 UMA NOITE DIFERENTE

LENTAMENTE ABRO MEUS OLHOS que estiveram fechados por um par de minutos e, bem devagar, torna-se quase possível vislumbrar o contraste opaco entre a escuridão do céu sobre a campina sombreada e a distante e frágil luz de poucas estrelas que se atrevem a romper a negritude da noite. De fato, devo confessar, não estava dormindo, embora devesse fazê-lo, sob as ordens de meu pai. A teimosa vigília, por certo, era representativa de minha rebeldia infantil e da insatisfação por ter sido obrigado a estar no campo, justamente naquela noite, em que a cidade parecia oferecer muito mais diversão do que a já conhecida rotina do cuidado com as ovelhas. Assim, apenas fingia dormir, deitado em posição supina e com olhos semicerrados. Ao ouvir uma movimentação vinda em minha direção, fecho os olhos para não ser flagrado em minha encenação. Estirado no chão, sinto pés que esbarram em minha


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perna e passos apressados roçam meu ventre, ainda voltado para cima. Antes que possa abrir os olhos, sinto a mão calejada de meu pai e sua voz, que diz: – Vamos, Zara,1 acorde, venha ver o que está acontecendo! Estávamos nas campinas aos arredores da vila, onde os pastores levavam suas ovelhas ao final do dia. Na história dos judeus, aquele era um lugar muito importante. Tratava-se da mesma região onde Rute e Noemi resolveram voltar à terra de Israel, após as mortes dos filhos de Noemi, entre eles o marido de Rute. Era, de fato, o cenário onde Rute, uma estrangeira, proferira sua grande declaração de fé e pertencimento ao povo judeu, ao prometer que seguiria Noemi onde quer que ela fosse e que o Deus de sua sogra seria o seu Deus eternamente. Depois daquele pacto famoso entre nora e sogra, a história iria desaguar no casamento de Rute com Boaz e, de sua descendência, nasceria o grande rei Davi, seu neto. De um salto súbito levantei-me, animado com o tom de excitação do chamado. Apressei-me a fitar o céu, na direção que me era apontada. Era uma noite diferente, difícil de explicar. O som parecia ter se dissipado ou fugido para os confins da terra. Quase nada se ouvia por ali, apenas o cicio suave de uma brisa refrescante que soprava do oriente. Embora fosse difícil desvendar o que estava acontecendo, ao fixar o olhar, comecei a suspeitar que algo de estranho ocorria com as estrelas e experimentei forte sensação de que já não eram tão poucas. Não, definitivamente, os pontos luminosos multiplicaram-se no céu. E, ainda mais intrigante, pareciam continuar a crescer. Mirando o céu, fui surpreendido por uma percepção ainda mais assustadora: elas estavam se movendo em nossa direção! A essa altura, o assombrado e trêmulo grupo de pastores observava aquele estranho fenômeno luminoso. A eles eu já havia me juntado, quando, repentinamente, sentimos o abalo de um som intenso que ecoou sobre a campina. Diante de tamanho


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susto voltamos abruptamente nossas cabeças para o chão. Atônitos, constatamos que surgira, completamente do nada, a figura de um enorme e cintilante indivíduo que lembrava, porém definitivamente não era, um ser humano. Tomado pelo medo, o grupo inteiro emudeceu. Um frio gélido percorreu todos os ossos de meu corpo infantil, subindo pelas minhas costas e, com um calafrio indisfarçável, chacoalhei da cabeça aos pés. Como quem faz uma súplica, sem proferir qualquer som, eu dirigia o meu olhar para o meu pai. Todos estavam aterrorizados. As ovelhas, agitadas, baliam ao nosso redor. Percebi, a seguir, que o som que explodira voltava a retumbar, qual a voz de um trovão, mas, desta vez, era possível entender o que era dito e a mensagem continha, exatamente, tudo o que aquele amedrontado grupo de pastores precisava ouvir naquelas circunstâncias: – Não tenham medo! – dizia o ser iluminado. – Não tenham medo! E continuou a falar: – Estou aqui para lhes dar a melhor notícia que alguém poderia trazer! Boas novas que há muito tempo são esperadas por todo o povo! Boas notícias que vão gerar alegria nos corações: É que hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador esperado! O Messias prometido, o Cristo tão aguardado! E, enquanto todos, pasmos, olhávamos para o ser, por certo celestial, centenas e centenas de outras criaturas a ele se juntavam e, como um enorme e magnífico coral, entoavam um hino maravilhosamente belo. Na minha mente infantil não pairava qualquer dúvida de que aquelas criaturas eram as próprias estrelas que, minutos atrás, haviam sido acompanhadas por nossos olhos em seu movimento de aproximação da terra. A melodia que cantavam nos envolvia de uma maneira arrebatadora e, desta forma, enlevados pela música estupenda, nossos ouvidos compreendiam, extasiados, cada uma das palavras proferidas na canção: – Glória a Deus nas maiores alturas! O ser, que já reputávamos tratar-se de um anjo do Senhor, continuava a nos explicar que o sinal que nos daria a certeza de

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ser seu anúncio verdadeiro consistiria em encontrarmos uma pequenina criança envolta em faixas humildes, deitada em uma manjedoura. E o coral celestial continuava a cantar: – Que até os confins da terra haja paz! Paz para todo homem e toda mulher a quem Deus quer muito bem. Homens e mulheres de boa vontade! Atordoado, com curiosos pensamentos sobre como encontrar tal criança, notei que as ofuscantes criaturas desapareceram do campo. Voltando o olhar para cima, pude vê-las nos deixando, em direção ao céu. O silêncio que se seguiu contrastava de tal maneira com a melodia que enchera os céus que por um breve momento cogitei ter apenas sonhado. Todavia, o balido das ovelhas e agitação de todos mostrou-me que tudo havia sido muito real, não um devaneio de criança. Eu mal compreendia o que aqueles homens, todos de pé, falavam ao mesmo tempo. Até que discerni, do burburinho, a voz de meu pai, que, falando mais alto e claro do que os demais, disse: – Vocês estão entendendo o que aconteceu aqui? Recebemos um anúncio vindo dos céus, do próprio Deus, e este anúncio é a revelação de que as profecias mais antigas, a promessa mais aguardada, enfim, está sendo cumprida! Será mesmo, meus irmãos, que recebemos tamanha graça e alegria? E os olhos de meu pai estavam cheios d’água, embora sua boca se abrisse num sorriso do tamanho do próprio céu. Mesma reação tinham os outros pastores, que, irmanados por grande admiração, passaram a discutir se deviam ir até Belém, conforme o comando do anjo. Dispuseram-se à descida. Junto com eles, um menino deslumbrado, por volta de seus nove anos de idade, seguia em procissão. Quando digo descida, refiro-me ao vale que se dispõe pelos cerca de três quilômetros que separam os campos dos pastores de Efrata, nossa pequena vila histórica. Da planície, onde estávamos, seguimos pelo vale de considerável vegetação, que


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contrasta com a região desértica típica do caminho de cerca de dez quilômetros entre Jerusalém e Belém, para subir novamente em direção à pequena montanha onde está fixada a vila, cercada em sua circunferência pelo muro encravado por habitações, pequenas hospedagens e estábulos para animais. Durante todo o percurso, certo ar solene envolvia o semblante de todos. Porém, ao mesmo tempo, sorrisos, exclamações e cânticos, entoados baixinho, podiam ser ouvidos. A noite seguia iluminada de maneira meio sobrenatural. O brilho reluzente de uma estrela incomum – que os olhos atentos e experientes de pastores como o meu pai podiam ver e jurar tratar-se de uma inovação na tela negra do céu da Judeia – parecia nos guiar a cada passo, além de manter em nossos corações o calor das emoções trazidas pelas hostes celestiais. Três quartos de hora depois avistamos, iluminada pela pálida luz de tochas improvisadas, uma pequena espécie de gruta, geralmente utilizada como estrebaria para animais domésticos. Olhando-se fixamente para dentro do local, era possível discernir um discreto movimento de alguém que caminhava em direção ao vulto que parecia ser de uma jovem mulher. Aproximando-nos um pouco mais, observamos que ela se debruçava sobre uma rústica manjedoura de pedra, forrada com palha e tecidos. Dentro da manjedoura, maravilha das maravilhas, repousava uma criança recém-nascida, também envolvida em panos limpos. A cena correspondia de maneira exata à descrição do grande ser iluminado: “Envolto em panos e deitado numa manjedoura, na cidade de Davi, uma criança acharás!”. O sinal que nos fora revelado ali estava, diante de nossos incrédulos olhos, radiante como o sol que brilha sobre o pináculo do templo em Jerusalém, para que nenhum de nós pudesse duvidar: o sinal inconfundível, dado na noite estranhamente marcada por eventos inimagináveis, enquanto nos arredores da tumultuada vila da Casa do Pão inúmeros visitantes se movimentavam, em razão do recenseamento determinado pelo

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império invasor; o sinal absurdo, a princípio questionável, que apontava o nascimento de um rei prometido, em circunstâncias incrivelmente humildes, sem posses ou bens, sem palácio e sem súditos, sem lugar para nascer; o sinal que se revelara exato, verdadeiro, aos olhos humildes e esperançosos de um grupo de pastores, até então esquecidos pela história, que podiam, agora, divisar o glorioso cumprimento da promessa tão antiga e tão aguardada: a chegada do Salvador de Israel!

O Redentor

À medida que nos aproximamos do local, vimos que o vulto era de um homem que, com certo espanto no olhar, nos observava, sem nada dizer. A mulher também já podia nos ver e, igualmente calada, tocou a cabeça da criança, com a delicadeza das mães, enquanto fixamente observava a chegada do nosso grupo. Um senso irresistível de reverência encheu o coração dos homens que se aproximavam – igualmente encheu o meu coração infantil. Mesmo criança, meus ouvidos já haviam escutado, centenas de


Uma noite diferente

vezes, pelos lábios piedosos de meus pais as grandes histórias do nosso povo sobre como o Senhor Deus havia nos libertado do cativeiro do grande Faraó egípcio e nos conduzido pelo deserto até a Terra Prometida. Também sabia dos atos de rebeldia que nosso povo perpetrara contra Yahweh e como havíamos sido conduzidos ao exílio como resultado de nossa desobediência. E, certamente, eu ouvia constantemente sobre a promessa de redenção de Israel, pela vinda do Messias. Compreendia, assim, como era profundo o significado de tudo quanto ouvira, vira e presenciara até aquele momento, naquela estranha noite de Belém. Como o meu, todos os corações que se encontravam naquela pequena estrebaria estavam repletos, assim como o próprio ambiente daquele local, de uma convicção solene, arrebatadora e inegável de que testemunhávamos um evento de proporções imensuráveis. O redentor chegava ao nosso meio e, enfim, podíamos abraçar a esperança de que seríamos libertos dos nossos opressores. Já não nos era possível permanecer de pé! Pusemo-nos de joelhos diante do menino-rei. A cena, ao que parece, gerou grande perplexidade ao jovem casal que aparentava não compreender completamente tudo o que acontecia. A mãe, com um olhar sereno e grato, parecia guardar todos os eventos em seu coração. O pai, enfim, tomou coragem e nos indagou sob quais circunstâncias chegamos ali. Mais uma vez, meu pai foi o primeiro a dirigir-se ao homem, que se identificara como José, da cidade de Nazaré, e respondeu às suas indagações: – Perdoe-nos, senhor José. Realmente precisamos esclarecer o motivo que nos traz aqui e, ainda, como se deu nossa chegada a este lugar. Assentindo com um movimento de cabeça, o nobre pai da criança mostrou-se atento ao relato de meu pai, que expôs todas as circunstâncias espetaculares que nos conduziram até aquele momento excepcional. Calado, José apenas virou-se em direção à sua esposa. Ela, por sua vez, ouvindo a tudo, parecia nem respirar. Apenas acariciava a pequena cabeça de seu filho e, às vezes, olhava para

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