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L.A. Tckeskiss
O Materialismo Histórico em 14 lições
Edições Nova Cultura 2ª edição 2018
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www.novacultura.info/selo O selo Edições Nova Cultura foi criado em julho de 2015, por iniciativa dos militantes da UNIÃO RECONSTRUÇÃO COMUNISTA, com o objetivo de promover e divulgar o marxismo-leninismo. TCKESKISS, L.A.; O Materialismo Histórico em 14 lições. 2ª Edição. 2018.
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[...] “O materialismo aceita, de um modo geral, que o ser real objetivo (a matéria) é independente da consciência, das sensações, da experiência... A consciência... não é senão o reflexo do ser, no melhor dos casos um reflexo aproximadamente exato (completo, de uma precisão ideal)”. V. I. LENIN
ÍNDICE Apresentação ........................................................................................ 11
Introdução ............................................................................................ 13 Preleção Introdutiva ............................................................................. 17 O MATERIALISMO HISTÓRICO EM 14 LIÇÕES
Lição I Fenômenos Sociais e Acontecimentos Históricos ............................... 23 Lição II A Hierarquia das Ciências ..................................................................... 30 Lição III A Teoria Organicista da Sociologia ...................................................... 36 Lição IV Os Conceitos Básicos do Idealismo e Materialismo ............................ 42 Lição V O Materialismo francês e a Filosofia Crítica de Kant ........................... 46 Lição VI A Filosofia pós Kant, Fichte, Hegel e Feuerbach .................................. 53 Lição VII Os Fundamentos do Materialismo Histórico ....................................... 57
Lição VIII O Papel e a Influência da Técnica na Evolução da Sociedade ............. 61 Lição IX A Estrutura da Sociedade e a Divisão de Classes ................................. 68 Lição X A Luta de Classes como força propulsora da História e a formação da Psicologia de Classe ............................................................................. 76 Lição XI Liberdade e Determinismo: Atividade Social e Causalidade ................ 86 Lição XII Direito e Arte do ponto de vista materialista ....................................... 95 Lição XIII A Religião do ponto de vista materialista ........................................... 102 Lição XIV As grandes personalidades na História .............................................. 110
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Apresentação O selo Edições Nova Cultura, criado pela União Reconstrução Comunista, apresenta mais uma obra que tem como objetivo a divulgação do marxismo-leninismo, desta vez do ponto de vista sociológico e filosófico. Desta vez, publicamos a obra “O Materialismo Histórico em 14 lições”, composto por uma série de aulas proferidas pelo professor L. A. Tckeskiss, na Universidade Comunista para as minorias nacionais do Ocidente, no ano letivo de 1921-1922. O formato segue um método que se tornou bastante comum na União Soviética para a divulgação do marxismo, a confecção de compêndios sobre temas fundamentais para a formação massiva dos trabalhadores e intelectuais das repúblicas soviéticas. Nesse sentido, este material constitui uma útil e rica introdução as questões do materialismo histórico, desde sua gênese e a sua consolidação ante as abordagens idealistas de Kant, Fichte, Hegel e Feuerbach, sua concepção como ciência, seus fundamentos e sua abordagem à diversos aspectos da sociedade burguesa. Como o próprio autor ressalta, todas as questões acerca do materialismo não são desenvolvidas em sua plenitude, pois seria necessário outro formato, por isto se mantém esta formatação, para preservar o caráter de curso introdutório e didático sobre o tema. Desta forma, torna-se importante a leitura deste livro a todos os interessados em estudar e apreender os fundamentos básico do socialismo científico desenvolvido pelos grandes mestres Karl Marx e Friedrich Engels, assim como ter um
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panorama deste processo de uma verdadeira revolução no conhecimento humano. Como apontara Stalin em seu célebre trabalho sobre o tema, “o materialismo dialético é a concepção filosófica do Partido marxista-leninista. Chama-se materialismo dialético, porque o seu modo de abordar os fenômenos da natureza, seu método de estudar esses fenômenos e de concebê-los, é dialético, e sua interpretação dos fenômenos da natureza, seu modo de focalizá-los, sua teoria, é materialista”. E ainda, “o materialismo histórico é a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao estudo da vida social, aos fenômenos da vida da sociedade, ao estudo desta e de sua história”. Desta maneira, podemos oferecemos ao público brasileiro mais esta obra introdutória sobre o materialismo histórico, para que possamos seguir nossa tarefa de divulgação do marxismo-leninismo e da teoria científica do proletariado. UNIÃO RECONSTRUÇÃO COMUNISTA
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Introdução O livro sobre o materialismo histórico que ora apresentamos ao público é formado por uma série de preleções proferidas na Universidade Comunista para as minorias nacionais do Ocidente, no ano letivo de 1921-1922. Nestes últimos anos, a literatura russa enriqueceu-se com uma série de compêndios sobre o materialismo histórico, o que facilita imensamente a tarefa do professor. O materialismo histórico foi entre nós introduzido como matéria de cursos, e por essa razão já conta com um programa elaborado e aceito. Durante o curso a que nos referimos ainda não havia compêndios sobre a matéria. O autor teve, portanto que elaborar um programa um tanto diferente do atualmente aceito, mas que oferece, entretanto, algum interesse. O mesmo acontece com a apreciação de alguns fatos. Não será, portanto, demais apontar ligeiramente os pontos essenciais, que distinguem o nosso trabalho. O materialismo histórico é ao mesmo tempo uma filosofia materialista da história e também uma sociologia materialista. Desvenda as leis estáticas da vida social e as leis dinâmicas do desenvolvimento social. O seu método é o científico-materialista. Funda-se sobre bases já determinadas nas ciências naturais e antropológicas e forma os alicerces da história e da vida social como ciências positivas. Esses conceitos são o fundo deste curso e determinam o seu desenvolvimento lógico. O curso pode ser dividido em quatro partes. A primeira, a metodologia, compreende uma preleção introdutiva sobre o
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objeto do materialismo histórico, subdividida em Quatro lições. A 1ª destas lições explica o objeto da sociologia e da história; a 2ª a posição da sociologia e da história na escala das ciências (dificuldades em organizar a ciência da vida social e da história); a 3ª as várias teorias sociológicas e a crítica da teoria organicista (spenceriana). A segunda parte, a filosófica, compreende Três lições: Materialismo e idealismo e suas relações com a ciência, o materialismo do século XVIII e a filosofia crítica e seu papel na ciência; o idealismo de Hegel e a formação do novo materialismo científico (dialético). A terceira parte, a sociológica, compreende quatro lições. A 1ª) os fundamentos do materialismo histórico; a 2ª) o papel e a ação da técnica no desenvolvimento da sociedade; a 3ª) a estrutura da sociedade e a divisão em classes; a 4ª) a luta das classes como força motriz da história na formação da psicologia das classes. A quarta parte compreende quatro lições, destinadas a mostrar como o materialismo histórico investiga e explica certas questões filosóficas de um lado, e por outro, como explica complicados fenômenos sociais, cientificamente, empregando o método materialista. A 1ª lição estuda a questão da liberdade e da necessidade (determinismo); a 2ª, o direito do Estado e a arte, do ponto de vista materialista; a 3ª, a religião do ponto de vista materialista (científico); a 4ª, o papel das grandes personalidades e de acasos importantes na história, sempre do mesmo ponto de vista. O curso tem o caráter didático. As preleções não foram taquigrafadas. Foram apontadas por dois camaradas, alunos do curso, Portnoi e Liberman, que só anotaram as linhas gerais. Esses apontamentos serviram como matéria prima que só foi trabalhada pelo autor, mas não transformada. Isso se
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sente no estilo e em alguns enunciados. Se todas as questões abordadas nesse curso fossem suficientemente desenvolvidas, o nosso trabalho exigiria não uma brochura, porém, inúmeros volumes, mas então perderia o caráter de curso. As preleções contem poucas citações das obras dos mestres marxistas. O autor julgou que só viriam aumentar o texto. O curso todo não é senão um ensaio de transmitir, de uma forma sistemática e logicamente concatenada, ensinamentos de Marx e Engels. Em algumas passagens o autor aborda a questão, empregando um método de exposição diferente do usado normalmente, diferindo também sua interpretação; terá sido original sem, contudo, alterar o aspecto geral da matéria. Em um curso são permitidas repetições e liberdades estilísticas. Aproveito a oportunidade para externar meus agradecimentos aos camaradas Portoin e Liberman que, com seu devotamento, contribuíram para a publicação deste curso.
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Preleção introdutiva Que é o materialismo histórico? O materialismo histórico é parte da concepção geral marxista. O que é o marxismo e que lugar ocupa o materialismo histórico na ciência social e particularmente no marxismo? Cada época social tem sua concepção da vida que surge da ciência e da filosofia dominantes em dada sociedade e que representam interesses e pontos de vista das classes dominantes. Assim, a concepção da vida na antiguidade era diferente do que na época da escravidão; a concepção burguesa é diferente da feudal e do mesmo modo a concepção proletária distingue-se radicalmente da burguesa. O marxismo é a concepção, isto é, o modo de encarar a vida, do ponto de vista do proletariado e que permite esboçar a concepção que terá a sociedade a qual está destinada a criar. Tal concepção surgiu algumas décadas antes de Marx e com Marx ainda não se completou. Afirmar o contrário seria estar fundamentalmente em contradição com as bases do materialismo histórico. Marx e Engels apenas indicaram as linhas gerais, segundo as quais a concepção proletária deve se desenvolver e, quanto mais se desenvolve o proletariado, tanto mais deve se desenvolver sua concepção acerca da vida. O materialismo histórico, parte do marxismo, estuda as leis da vida social e a tendência do seu desenvolvimento. A sociedade humana surgiu, por um lado, de agregados inferiores e por outro, sendo composta de indivíduos isolados: or-
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ganismo, cujo desenvolvimento está subordinado a determinadas leis químicas e biológicas, que por sua vez, estão ligadas a fenômenos físicos e, assim, à natureza em geral. Concretamente, nada existe na natureza que esteja isolado, que seja independente, que não tenha relação com alguma outra coisa. O materialismo histórico está, portanto, estreitamente ligado ao determinismo e à moderna ciência natural. Não se ocupa com o estudo das leis gerais da natureza; forma, apenas, do resultado de todas as ciências sua base concreta, e emprega o método científico para o estudo da vida social e seu desenvolvimento. O materialismo histórico é, portanto, uma ciência cujo objeto é o estudo dos fenômenos sociais. Com relação a estes fenômenos o materialismo histórico não se preocupa com pormenores, estabelece somente as leis gerais básicas e as tendências do desenvolvimento da sociedade. Tomando-se, por exemplo, os fenômenos sociais, tais como o direito, a moral, a religião (que são, aliás, mais antigos do que a própria ciência social, e que, no entanto, até Marx não tinham sido cientificamente estudados), nota-se que não são os pormenores desses fenômenos que formam o objeto do estudo histórico-materialista. Este, somente estabelece cientificamente seu conteúdo e as leis do seu desenvolvimento. Alguns fatos ou pretensas ciências sociais foram por Marx e Engels analisados e estudados: são aspectos da história, da economia política, e as tendências do sistema capitalista. Outros foram investigados por seus discípulos, particularmente por Lenin, que melhor compreendeu e desenvolveu a escola proletário-marxista.
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À pergunta sobre qual é o objeto do materialismo histórico, devemos responder que o materialismo histórico estuda os fenômenos sociais e a história. À segunda pergunta sobre como este as estuda, a resposta é: do ponto de vista marxista. O materialismo, que anteriormente era apenas uma escola filosófica, torna-se, além disso, uma filosofia da história. O materialismo histórico estuda, portanto cientificamente as sociedades e a história. O que significa, contudo, estudar cientificamente uma coisa, e qual é em geral, a finalidade de uma ciência? O que é a história? Pode esta construir uma ciência? A finalidade da ciência é descobrir e estudar as leis segundo as quais se apresentam os fenômenos. Para isso deve a ciência descrever e determinar, antes de mais nada, os fenômenos que se propõe estudar. A ciência deve, portanto, buscar as causas dos fenômenos dados e, com isto, também as relações entre aquelas e estes. Ao aquecer a água até determinado grau, obtemos vapor. Temos aqui dois fenômenos; um como consequência do outro. Existe, portanto, entre estes uma relação constante. Constatada tal relação entre dois fenômenos, obtemos uma lei empírica. O conjunto das leis constitui a ciência. A finalidade de cada ciência é encontrar a relação constante entre determinados fenômenos, para a previsão dos mesmos, porque saber quer dizer prever e só poderemos prever conhecendo as relações constantes entre os fenômenos, as leis (causas e efeitos). Está claro que nem todos conhecimentos já alcançaram o verdadeiro grau científico, pois muitos fenômenos da natureza e da vida ainda não foram estudados cientificamente. Dizemos, portanto, que conhecimentos em geral estão ainda imperfeitos e incompletos; sua finalidade é, entretanto,
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o aperfeiçoamento, isto é, não deixar na natureza, nem na vida um só fenômeno que não seja cientificamente estudado. O materialismo histórico, dizíamos, tem a missão de estudar cientificamente e pelo método materialista, a história e a sociedade (dois conceitos intimamente ligados entre si). Não é, entretanto, a ciência da sociedade em si; indica somente o método e o processo no estudo das leis da vida social e do seu desenvolvimento. Não se deve confundir o materialismo histórico com a sociologia. Esta estuda e determina as leis estáticas e dinâmicas da sociedade, enquanto que o materialismo histórico indica somente o meio pelo qual se descobrem estas leis. Surge aqui uma questão: se cada ciência deve determinar as relações constantes entre fenômenos dados, estes fenômenos devem se repetir. Mas a história é somente uma substituição de fenômenos que não se repetem. Então, como pode a história ser estudada cientificamente? Tais dificuldades explicam o fato de não ter, até Marx, a história existindo com caráter científico. Existia apenas uma filosofia da história que procurava as tendências do desenvolvimento humano e o materialismo histórico saiu de alguma maneira, da filosofia da história desenvolvida por Hegel. O materialismo histórico criou uma base para a sociologia, mas não é a ciência da sociedade que, aliás, não pode substituir; por outro lado, descobriu as bases gerais do desenvolvimento social, do “progresso” humano, determinando, cientificamente o conteúdo (a razão de ser) do progresso em si. O materialismo histórico não é, contudo, a história. O materialismo histórico é o método científico e o estudo da sociologia, base científica para a novíssima filosofia da história.
O MATERIALISMO HISTÓRICO EM 14 LIÇÕES
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Lição I Fenômenos Sociais e Acontecimentos Históricos Antes de mais nada, ao iniciar a construção de uma ciência, deve-se indicar o seu objeto, determinar o seu conteúdo, distinguindo os fenômenos que nesta vão ser estudados. Deste modo, procede-se em relação a qualquer ciência e assim também deve-se proceder quanto à ciência social: a sociologia. É, contudo, muito difícil determinar o objeto da ciência social, por ser difícil determinar a divisão e distinção dos fenômenos sociais. De fato, cada fenômeno social tem que estar ligado aos esforços que forjam a sociedade, isto é, aos homens e os fenômenos sociais devem, portanto, ser o resultado da atividade humana, que, como tal está relacionado com a consciência humana. O fenômeno torna-se então psicológico. Ao mesmo tempo, o fenômeno está relacionado com todo o organismo humano que, por sua vez, está submetido a determinadas leis fisiológicas, químicas e físicas; o fenômeno social é, portanto, ao mesmo tempo, um fenômeno geral da natureza. Torna-se por isso difícil a sua definição. Isso constitui mais um motivo para a complexidade dos fenômenos sociais, isto é, o fato de constituírem estes uma série de vários e distintos momentos, dos quais é difícil distinguir o momento especificamente social, para com estes constituir o conjunto de fenômenos cuja relação se procura determinar e que é a mola da vida social. Temos por exemplo, o suicídio, como um fenômeno da vida social. O que vemos? De um lado, é um ato da vontade humana e, por conseguinte, ligada ao ser psíquico, e de outro,
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resultado de um processo físico constituído pela lesão que ocasionou a morte. Temos aqui então uma série de momentos psicológicos, físicos, químicos, fisiológicos, e também sociais; e ao analisarmos o fenômeno do suicídio, temos que deixar passar os vários momentos não sociais para que possamos nos deter somente no momento social, que constitui o objeto da nossa investigação. Os atritos e movimentos do projétil, se a morte foi produzida por uma bala, o jorrar do sangue, a destruição das células e a morte como tal, não constituem ainda o momento social e por isso não os estudaremos em nosso trabalho. Mas, o que há de social no ato de investigarmos? O ato do suicida foi executado por certos motivos que o determinaram, motivos essencialmente individuais: o homem, por exemplo, foi levado a esse gesto por uma desilusão, por pessimismo, ou porque se achava em estado anormal de consciência. Até aqui, poderá parecer que se trata de um momento psicológico puro, por nos parecerem exclusivamente individual as causas determinantes do ato. De fato, até aqui nada temos de social. Mas levemos mais adiante a nossa análise, e formulemos a seguinte pergunta: quais as causas que o levaram a desilusão, quais os motivos do seu pessimismo e, seremos forçados a responder que a causa da desilusão foi a não realização das suas esperanças na vida; porque o lugar ocupado na sociedade, isto é, sua posição social, não lhe permitiu alcançar aquilo que desejava, em uma palavra, porque as condições existentes, nas quais se encontrava, não o podiam satisfazer, e nada o prendia à vida, ao contrário, tudo o compelia ao ato que praticou. Aqui já temos alguma coisa de social.
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Quando tratamos de atos humanos, há de haver neles sempre algum sentido social. É este fundo social que teremos de destacar, investigar e analisar. Preliminarmente, devemos investigar se os atos humanos se realizam obedecendo a leis ou espontaneamente. Se obedecem a leis devemos procurar descobri-las, para se poder prever os fenômenos. Tomemos o mesmo fenômeno do suicídio. Sabemos pelas estatísticas, que em cada ano se dão um certo número de suicídios e, quanto mais desenvolvida é a sociedade, maior é o seu número. Já vemos aqui que o fenômeno do suicídio não é casual, e deve obedecer a leis, isto é, deve haver uma relação constante entre o fenômeno e as causas que o determinam. Como tal deve ser possível a sua previsão. Ora, descoberto e determinado o objeto a ser estudado em uma ciência, já se pode encetar a sua construção. Em nosso curso teremos que lidar com fenômenos sociais já destacados e nossa missão consistirá em verificar se existem determinadas leis que provocam tais fenômenos e os regulam, e se entre fenômenos sociais diversos, existem relações regulares e determinadas por leis. Tomemos o exemplo do suicídio e perguntemos: é o suicídio um fenômeno constante, cujo repetição pode ser prevista ou, ao contrário, é meramente casual? Ora, ao investigarmos este fenômeno, veremos que em sociedades de igual nível de desenvolvimento, a porcentagem anual de suicídios é a mesma e que o fenômeno, em geral, é regular. O suicídio é, portanto, um fenômeno constante, obedecendo a leis, que permitem a sua previsão; tem relações normais com outros fenômenos sociais e é provocado por estes últimos.
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O mesmo se dá com outro fenômeno, o “casamento” – relações contratuais entre dois sexos –, e mais evidentemente no fenômeno do “roubo”. Estes dois últimos são fenômenos sociais por excelência. São fenômenos constantes, provocados por causas certas, leis determinadas e podem ser, portanto, investigados cientificamente. ●●● Até aqui procuramos determinar o que seja um fenômeno social geral. Mas cada fenômeno social pode ter também, em certos casos um sentido histórico. Tomemos mais uma vez o fenômeno do suicídio, mas desta vez o suicídio de um determinado homem público (ou o furto de importantes documentos diplomáticos); tal fenômeno social pode ser transformado em um acontecimento histórico. Por quê? Porque este fenômeno pode ter eco sobre uma série de outros fenômenos. Assim, desde que um fenômeno social exerce grande influência sobre o agrupamento de outros fenômenos sociais, provoca novos fenômenos que trazem certa modificação à vida social e torna-se deste modo, ao mesmo tempo, um acontecimento histórico. Além dos fenômenos individuais com sentido social e histórico, existem igualmente fenômenos sociais de caráter coletivo, que também constituem acontecimentos históricos. Tomemos por exemplo a guerra. O fenômeno tem caráter coletivo; é desenvolvida entre coletividades distintas e, muitas vezes, exerce grande influência sobre a marcha posterior da vida social. É, portanto um acontecimento histórico. O mesmo pode se observar com o fenômeno “revolução” cujo sentido é a luta entre vários grupos sociais, graças a qual, em última análise, é modificada a forma da vida social.
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Cada acontecimento histórico e a história em geral; o desenvolvimento da sociedade humana, a cadeia dos acontecimentos históricos concatenados – devem, da mesma forma que cada fenômeno social, ser estudados cientificamente. Devemos, pois encontrar os métodos científicos para estudar os acontecimentos históricos. Mas aqui surge uma questão importante: a história, tal como era escrita antes e ainda como está sendo escrita, pode ser objeto de investigação científica? Tomemos a história, tal como foi escrita pelos historiadores há 2000 anos, a história que já se escreveu durante a Idade Média e nos tempos modernos, e a que foi escrita nos últimos tempos; qual dessas “histórias” pode servir de objeto para a ciência? A “história”, simples narração dos fatos, é mesmo anterior à formação dos caracteres escritos. A questão, porém, é indagar como foi a história escrita; o que era para os antigos historiadores o essencial nas suas investigações, e qual a história que pode servir de objeto para uma investigação científica. Por um lado, foi a história, na sua infância, adulterada e incorretamente transmitida e por outro, não transmitia os fenômenos comuns da vida humana, mas somente os acontecimentos que atraiam a atenção dos “historiadores” de então. Na história antiga havia dois fatores que deixavam seu timbre no sentido e no próprio modo de escrever a história: 1º) a narrativa de certas lendas que circulam entre o povo como fatos históricos; 2º) a atribuição dos acontecimentos históricos à vontade e influência de grandes personalidades. A história teve, portanto, o caráter biográfico dessas personalidades, entrelaçada de narrativas e louvores referentes aos seus atos.
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Nessa história não se encontram os fatos que indicam as causas desses acontecimentos, nem o papel que nestes tomaram as massas. Assim, a deturpação por motivos religiosos e a atribuição de todos os acontecimentos a atividade de certas individualidades, transformaram a história em biografia dessas personalidades, a qual pelo seu conteúdo não pode tornar-se uma ciência, pois a ciência só pode ser constituída, como já vimos, pela constatação de fatos que tenham entre si uma relação constante. Só casualmente, os historiadores gregos como Heródoto, Tucídides, Plutarco e outros, se deparam com a força, influencia, atividade e interesses das massas e começam parcialmente a descrever momentos característicos da vida social, não tirando disso, entretanto, as conclusões correspondentes. Mas, os quadros reais, descritos por eles, quer da vida social, quer da vida dos reis e chefes, dão-nos agora a possibilidade de determinar, após um estudo científico, os traços e formas mais importantes da vida de então. Tudo isto, no entanto, eram apenas descrições, “histórias” e não uma história científica. Na Idade Média não se deram grandes modificações nesse sentido. Somente após a grande Revolução Francesa, começa a cristalizar-se a história como ciência (indícios de ponto de vista científico para os acontecimentos históricos, encontramo-los até, anteriormente, em Voltaire e Montesquieu). Realmente, um acontecimento histórico tão importante como a Revolução Francesa, executou colossais reformas na vida social de então, reformas cujo conteúdo foi de tal
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forma destacados que já não foi possível atribuir tais acontecimentos a vontade de grandes personalidades ou a certas casualidades. A participação e o papel dos diversos grupos sociais na Revolução Francesa foram tão importantes, que os historiadores tiveram que considerá-los, demonstrando as relações entre os grupos e a sua atitude em face dos acontecimentos, etc. Vemos então, que a história era até certo momento, escrita de tal maneira que jamais poderia ter sido objeto de investigação científica. Somente no começo do século XIX, mais ou menos, principia-se a estudar a história cientificamente. Os acontecimentos históricos, quer de caráter individual, quer de caráter coletivo, devem também ser estudados cientificamente. Devem ser determinadas as leis que provocam esses acontecimentos e que os colocam em relações constantes com outros fenômenos sociais. Isso só se tornou possível quando os fenômenos sociais, de forma geral, tornaram-se objeto de investigação científica, quando a ciência da sociedade, sua vida e desenvolvimento podem assentar em uma base solida e concreta.
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Lição II A Hierarquia das Ciências Na lição anterior, estudamos os conceitos de fenômenos sociais e acontecimentos históricos; procuramos definilos, concretizá-los; distinguimos os momentos físicos, químicos e psicológicos que devem ser estudados pelas ciências naturais correspondentes e pela psicologia, detendo-nos somente sobre os momentos puramente sociais que devem servir de objeto à sociologia e à história. À pergunta: podem esses fenômenos servir de objeto para uma investigação cientifica rigorosa, responderemos que, não sendo produto do acaso, os fenômenos sociais puros que destacamos, mas constantes, isto é, que se repetem e estão relacionados entre si, podem, por isso ser estudados cientificamente e, por conseguinte, previstos. O mesmo acontece também com os acontecimentos históricos; vimos que, sendo esses fenômenos parte dos fenômenos sociais em geral, podem igualmente ser investigados cientificamente. Vimos ao mesmo tempo, em que consistia a dificuldade do problema da investigação cientifica dos fenômenos sociais. Há, entretanto mais uma grande dificuldade sobre a qual vamos chamar a atenção. Consiste essa dificuldade no fato de cada fenômeno social estar relacionado com a atividade humana que é, antes de tudo, a expressão da vontade. Mas o homem supõe que a revelação de sua própria vontade é um ato livre, que não está sujeito a lei alguma, e isto ocasiona uma grande dificuldade ao estudo científico do fenômeno.
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O homem selvagem, explica, por exemplo, o trovão como a revelação da vontade divina. Explica assim os fenômenos naturais do mesmo modo que os fenômenos da sua própria vida: sua atividade é o resultado de sua própria vontade; os fenômenos naturais são para ele o resultado da vontade divina. Ora, desde que se empregou semelhante método na observação dos fenômenos naturais, estes jamais puderam servir de objeto a uma investigação científica. As ciências naturais por si tiveram que percorrer longo caminho de desenvolvimento antes de chegarem a se constituir em verdadeiras ciências, e prepararem desta maneira o terreno apropriado para o surgimento da ciência social, que é por isso a mais jovem de todas as ciências. Mas há ainda uma outra dificuldade; os fenômenos sociais, conquanto desarticulados, não deixam de ser fenômenos complexos, ligados a muitos momentos estranhos, criando por sua vez mais um obstáculo à investigação científica1. É claro que somente depois que o homem aprendeu a compreender os fenômenos naturais, e após longo caminho de experiências, em que se acostumou a compreendê-los cientificamente, só então pode ele iniciar o estudo científico dos fenômenos sociais. Além disso, a atividade humana, estando como está, relacionada com a vida em geral, só pode tornar-se objeto de ciência quando se começou a investigar 1. Um tanto diferente era a situação da história: tínhamos diante de nós fatos, tais como revoluções e guerras, que já não podiam ser explicadas pela vontade exclusiva de um homem. Tentou-se a explicação pela vontade conjunta dos homens. Mas aqui surge a pergunta: porque querem todos esses homens, a mesma coisa? Temos então que procurar as causas da vontade coletiva dos homens; mas enquanto os acontecimentos se explicavam pela vontade, seja embora a vontade coletiva, ficavam estranhos à ciência e deixavam de ser passíveis de uma investigação com esse caráter.
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as leis da vida em geral. E tanto assim, que a ciência da vida – a biologia – é também uma das mais jovens no seu desenvolvimento. Qual a razão disso? É que os fenômenos da vida, tomados de modo geral, possuem formas especiais, singulares (na vida vemos os fenômenos como resultado da sua própria multiplicação), e para se explicar, até a bem pouco tempo, procurava-se uma força vital especial que fosse a causa da vida em si. Claro está, portanto, que só foi possível explicar cientificamente os fenômenos da atividade humana, quando se conseguiu explicar cientificamente os fenômenos da vida. A ciência que estuda os fenômenos sociais ocupa, por isso, a última posição na escala das ciências – na hierarquia das ciências. ●●● Observemos agora essa hierarquia. Não nos deteremos nas chamadas ciências normativas, ou formais, isto é, cujo objeto é o estudo das relações mais simples entre os fenômenos, as formas pelas quais as coisas se nos apresentam (matemática e lógica). Apenas as lembramos e passamos às ciências naturais concretas (ciências fenomenológicas). Ao iniciarmos o estudo, a própria natureza se apresenta como se constituísse dois mundos: um vivo (orgânico) e outro morto (inorgânico). Estudando o mundo “inorgânico”, encontramos fenômenos de duas espécies: físicos e químicos. E de duas espécies são também os corpos que aí vemos: 1º) os compostos de um único elemento e que não podem, portanto, ser decompostos, 2º) os que se compõe de diversos elementos e podem ser decompostos.
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As leis, a que estão submetidos todos os corpos da natureza, independentemente de sua composição (um ou vários elementos ou substancias), são estudadas pelas ciências – mecânicas e físicas. Essas leis são as mais gerais e mais simples dentre as que estudam os fenômenos (fenomenológicas ou concretas). As leis segundo as quais se operam as ligações das várias substâncias em suas diversas combinações são estudadas pela química. Essas leis não abarcam toda a natureza, mas grande parte dos fenômenos naturais estão a elas sujeitos. São menos gerais e menos simples do que as leis da mecânica e da física. É claro que todos os corpos químicos estão sujeitos às leis da mecânica, mas nem todos os corpos estão sujeitos às leis da química. Por isso mesmo, as leis da química são mais complexas do que as da mecânica e da física. É, pois, evidente que o homem aprendeu em primeiro lugar aquilo que é mais geral, mais fácil de compreender, mais simples de observar. De fato, a mecânica e a física são as ciências mais antigas, e ocupam por seu grau de complexidade o to´p na escala das ciências, seguidas pela química. Observemos agora o mundo orgânico ou vivo; aqui vemos logo, alguma coisa de novo; encontramos não somente combinações de elementos ou substâncias, como nos fenômenos que formam o objeto da química. Os fenômenos da vida representam algo mais do que simples ligações e combinações de elementos químicos. A vida é o campo das formas que se multiplicam. A multiplicação se opera pela divisão das células, que constituem ou formam células novas semelhantes aquelas de que se originaram. Assim, vemos que as leis puramente químicas não nos podem replicar os fenômenos da natureza orgânica (vida). Aqui deparamos com fenômenos revestidos de um caráter novo, e submetidos, portanto a leis
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especiais, com as quais se ocupa a biologia. Essas leis são menos gerais e mais complexas do que as da química. Não esqueçamos, porém, que os fenômenos da natureza organizada (orgânica) estão igualmente submetidos ás leis mais gerais da mecânica, da física e da química. Mas, então, além disso, submetidos a leis de um caráter especial, e são estas últimas que vão constituir o objeto da nova ciência, – a biologia2. Examinando mais detalhadamente os fenômenos orgânicos notamos que nem todos são semelhantes. Há organismos que possuem a faculdade de movimentação, outros há que não a possuem. E veremos ainda que, mesmo entre os que possuem a auto-movimentação, duas categorias se nos apresentam: em uns a auto-movimentação é provocada pela consciência (como no homem), em outros essa auto-movimentação não é provocada pela consciência, mas pelo instinto. Essas diferenças, porém, não são tão profundas que motivassem a existência de uma nova ciência para estudá-las. Com efeito, entre os organismos mais desenvolvidos sem auto-movimentação (vegetais) e os mais rudimentares com auto-movimentação (protozoários) não há quase diferença alguma. E o mesmo se observa ainda com relação aos organismos mais desenvolvidos com auto-movimentação instintiva e os mais rudimentares com auto-movimentação consciente (animais e selvagens).
2. Para explicar os fenômenos da vida criou-se uma teoria que se chamou vitalista. Esta teoria explicava de uma maneira simplista os fenômenos, atribuindo-os a uma força especial, a força vital. Esse era, aliás, o modo antigo de explicar todos os fenômenos: por uma força especial imaginada para o caso. Assim também na explicação dos complexos fenômenos da vida tal método anticientífico dominou por muito tempo.
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Todos os fenômenos da vida são fenômenos da mesma espécie; não existem leis especiais da vida para vários organismos3. Tomemos por exemplo o homem. Vemos que está sujeito: 1º) às leis da mecânica e da física (força de gravidade da terra, etc.); 2º) às leis da química (a nutrição de seu organismo se realiza em obediência as leis da química); 3º) às leis especiais da biologia (multiplicação, movimento e crescimento); 4º) às leis psico-fisiológicas (associação de ideias, conceitos, emoções, etc.). Além desses fenômenos estudados nas ciências acima referidas, surge diante de nós uma série de outros fenômenos, constantes e determinados por causas, ligados à atividade humana na vida em sociedade. Podem as leis anteriores e disciplinas científicas, explicar e investigar cientificamente a atividade humana no seu aspecto social? Não. A atividade humana nesta esfera é provocada pela necessidade de satisfazer as múltiplas e variadas exigências da natureza humana indispensáveis ao seu desenvolvimento. Essas são demasiadamente complexas. A atividade de cada indivíduo está sempre ligada à de outros e a toda a sociedade. E esta atividade é que forma a vida social. Devemos, por conseguinte, descobrir as leis da atividade humana em sociedade e que não foram estudadas nas ciências anteriores. Devemos, pois, criar uma nova ciência, – a sociologia, que é uma das últimas na hierarquia das ciências. Seu objeto serão fenômenos que não podem, como já vimos, ser explicados pelas leis das ciências anteriores. 3. Desde que a vida humana se desenvolveu em formas superiores, tentou-se determinar as leis a que estão submetidos os fenômenos da consciência e surgiu assim a psicologia. Mas, como veremos adiante, a psicologia está intimamente ligada à sociologia e forma parte desta.
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Lição III Teoria Organicista da Sociologia Na lição anterior estabelecemos a hierarquia das ciências. Mostramos por qual razão as ciências se sucediam nessa escala e frisamos, aí, os motivos pelos quais deve a sociologia ser colocada em último lugar. Na presente lição nos deteremos nas principais teorias sociológicas criadas na época de seus primeiros passos. Veremos como de um ponto de vista geral foram feitas as primeiras investigações no sentido de dar à sociologia um caráter científico, e, do ponto de vista particular do materialismo dialético, em que a colocou Marx. August Comte procurou lançar as bases da sociologia como ciência. Spencer levou mais adiante esta tentativa, que no seu desenvolvimento foi recebendo a contribuição de uma série de outros cientistas. As várias teorias mais importantes na sociologia, tomadas de um modo geral, podem ser classificadas em: 1º) as que procuram as leis gerais da sociologia na psicologia; 2º) as que veem essas leis na biologia; 3º) a teoria marxista. Ao estabelecer a hierarquia das ciências, vimos que a ciência dos organismos, isto é, da vida, é ainda uma ciência nova; que desta surgiu mais recentemente ainda a psicologia, ou melhor, a psicofisiologia, que explica até certo ponto, a atividade individual. E somente após esta é que pode-se formar a ciência denominada sociologia – a ciência da vida humana em sociedade, da atividade social humana.
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Não podemos fazer, aqui, uma ligeira exposição sequer, das teorias, submetendo-as à crítica marxista (houve cientistas, até, que procuraram as leis da vida social e as leis da natureza inorgânica nas teorias de Vico, por exemplo). É evidente que, sendo a sociologia a mais nova de todas as ciências (e nisso estão todos de acordo), as leis de caráter mais geral predominantes nas ciências anteriores, devem servir-lhe de base, mas as leis de caráter propriamente social devem ser encontradas no próprio seio da vida em sociedade. Sem nos deter nas várias teorias da sociologia anteriormente formuladas, analisaremos, contudo, antes de passarmos a Marx, uma das mais importantes – a teoria organicista, formulada por Kant, desenvolvida por Spencer e levada as suas últimas consequências por Worms, Lilienfeld e outros. Veremos como essa teoria procura e constrói as suas leis da vida social; nos deteremos no seu nítido sentido de classe. O que nos ensina essa teoria? Examina a sociedade como se esta fosse um organismo animal, e atribui todas as leis que presidem o desenvolvimento dos organismos individuais. Analisa a partir deste ponto de vista o organismo social, estuda todas suas partes componentes e respectivas funções no seio do organismo e, partindo do ponto de vista biológica, estabelece as leis estáticas do organismo social, determinando as funções de cada uma de suas partes separadamente. As relações harmônicas entre o organismo e seus diversos órgãos, constituem nesta teoria, a base tanto do organismo individual como do organismo social. Segundo esta teoria o organismo social está dividido numa série de partes-grupos, ocupando-se cada um desses grupos ou partes, de um trabalho especial. Uma se ocupa do
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comércio, outra com o trabalho físico, uma terceira com o estudo das ciências, etc. Cada uma dessas partes ou órgãos da sociedade executa o seu trabalho próprio, sua função determinada como organismos individuais. Deste modo, ocorre que existe uma perfeita correspondência entre os diversos agrupamentos da sociedade com as suas funções e os diversos órgãos do organismo individual. Assim, o Estado corresponde, por exemplo, ao sistema nervoso; os sábios ao cérebro; a classe comercial à circulação do sangue; os camponeses e operários industriais aos órgãos da nutrição; exército, polícia e a justiça – aos órgãos de proteção ou defesa. Todos esses órgãos sociais estão integrados, unidos ao organismo social, que não pode absolutamente existir em qualquer deles. Toda a atividade social se estancaria, se fosse interrompida a função agrícola ou qualquer outra das funções mais importantes. Os agrupamentos por si só, estão diferenciados entre si; cada um tem a sua função determinada e não pode executar outra. Como em todo o organismo individual, cada órgão tem a sua função, também cada agrupamento social com função própria ocupa um lugar distinto na sociedade e não pode confundir-se com outro. A mudança de forma de cada agrupamento social se opera pela multiplicação e morte de suas diferentes célulasindivíduos. Observemos agora como se desenvolve o organismo social, segundo essa teoria. Na opinião dos organistas, dá-se o desenvolvimento da sociedade – organismo social – da mesma forma que em
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todos os organismos individuais: o desenvolvimento do organismo social, se mede pelo nível de integração do organismo todo, acompanhado pela diferenciação de suas diversas partes. Quanto mais os organismos se desenvolvem, tanto mais se tornam complexos. O fenômeno de integração consiste no ajuste de todas as partes distintas ligadas e unidas em um só organismo ativo. Contudo, ao mesmo tempo, se torna mais pronunciada a diferenciação entre os diversos órgãos, isto é, cada órgão se adapta exclusivamente a determinada função. E, segundo as mesmas leis de integração e diferenciação, se opera a dinâmica do organismo social. Este se torna cada vez mais complexo e integrado; por isso, modernamente, não temos mais partes estranhas ao organismo social, mas, membros internos ajustados de um só corpo – a sociedade humana – e ao mesmo tempo muito diferenciados entre si. São essas as leis básicas da estática e da dinâmica social formuladas pela teoria organicista da sociologia. Onde estão os erros científicos desta teoria? Primeiramente, apontaremos um grande erro metodológico: ao construirmos a hierarquia das ciências, mostramos que uma ciência nova só pode ser criada quando no campo da observação surgem fenômenos novos e mais complexos, que não podem ser explicados pelas leis das ciências anteriores. Se fosse possível explicar, por exemplo, os fenômenos da vida, pelas leis puramente químicas, a biologia não poderia ter se desenvolvido como ciência à parte e independente. Permaneceria como parte da química, do mesmo modo que a ótica e a acústica constituem partes da física. Isso quer dizer que, se os fenômenos da vida social se realizam e explicam pelas mesmas leis orgânicas, como os da vida de um organismo simples (ser
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vivo), a sociologia não teria então direito de pretender uma existência à parte e independente, um lugar distinto na hierarquia das ciências. Esse é o primeiro e fundamental erro da teoria organicista em sociologia. Observamos, porém, o conteúdo social dessa teoria que é, de um lado, uma teoria do desenvolvimento em geral (pois Spencer foi o fundador da teoria da “Evolução”) e, de outro, uma formula justificativa das atuais formas de “civilização” da vida social, tendo-as como normais, determinadas e necessárias. Com efeito, essa teoria traça um perfeito paralelo entre o desenvolvimento do organismo social, tendo-as como normais, determinadas e necessárias. Com efeito, essa teoria traça um perfeito paralelo entre o desenvolvimento do organismo social individual, desde o estado embrionário ao mais aperfeiçoado e afirma que toda a história da humanidade representa um aperfeiçoamento gradual da sociedade, uma sempre crescente integração e estabilização dos seus diversos agrupamentos ou órgãos as suas funções respectivas e ao organismo todo e, ao mesmo tempo, uma sempre crescente diferenciação entre esses diversos órgãos. Essa existência dos diversos órgãos ou agrupamentos, ou melhor, das classes na sociedade é, segundo tal teoria, uma coisa natural e cada tentativa para a modificação das formas sociais, não passará de uma loucura improfícua. O sentido social de classe, dessa teoria, ressalta a vista e não carece de comentário algum4. 4. Quanto à dinâmica da sociedade, Spencer incide no mesmo erro metodológico quanto à estática. A sociologia, oriunda da biologia, pode talvez, ser aplicada na investigação da vida e desenvolvimento dos seres inferiores. Entretanto, a sociedade humana tem aspectos inteiramente novos e peculiares que não podem ser explicados pelas leis que regem sociedades de animais inferiores.
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Spencer, como “evolucionista” que era, prediz também o desenvolvimento futuro da sociedade. Mas, segundo sua opinião, a sociedade se desenvolve no sentido de uma especialização cada vez maior do trabalho, para uma integração e estabilização cada vez maiores das suas funções. O conteúdo de classe nesta perspectiva é ainda mais acentuado5. Como deve então ser construída a ciência da sociedade? De um lado, não devem ser praticados erros de método na investigação. A vida da sociedade se realiza segundo as leis que lhe são próprias, leis que se distinguem das biológicas, como estas se distinguem das leis da química. Umas leis não contradizem as outras; pelo contrário, estão entre si em perfeita harmonia; mas as de caráter geral não podem explicar a diversidade e complexidade da vida social e de seu desenvolvimento. Por outro lado, deve-se encontrar o caráter especificamente social nos fenômenos que emanam da atividade humana e, destarte, descobrir as leis sociais, as estáticas e as dinâmicas. Somente deste modo foi que se construiu a sociologia marxista.
5. O publicista russo Mikailowsky, criticando esta teoria do “progresso” de Spencer, mostra, muito acertadamente, que não leva em consideração o homem vivente, nem seus sentimentos de felicidade, alegria, bem-estar, etc.
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Lição IV Os Conceitos Básicos do Idealismo e Materialismo Afirmamos, numa das nossas lições anteriores, que a sociologia marxista é materialista, bem como a sua correspondente filosofia da história. E por isso recebe o nome de materialismo histórico. Em que consiste a parte materialista do materialismo histórico? Materialismo histórico e materialismo filosófico, não são a mesma coisa. É possível ser-se materialista em filosofia e idealista em história. Mas o materialismo histórico está intimamente ligado ao materialismo filosófico e deste extrai sua seiva histórica. Para compreender o materialismo histórico deve-se, portanto, ter uma compreensão geral do materialismo filosófico. O materialismo, em geral, se contrapõe ao idealismo; não se pode realmente compreender o materialismo sem conhecer o seu oposto – o idealismo. Para se responder à pergunta, sobre o que vêm a ser materialismo e idealismo, não colocaremos a questão metafisicamente, do seguinte modo: “qual é a primeira causa de tudo o que existe, a matéria ou o espírito?”, se há princípio e fim em tudo o que existe. Formularemos a questão de forma diferente. No mundo em existência que concebemos, sentimos primeiramente a nossa própria existência que se compõe em certo sentido de duas partes: 1º) vemos a nós mesmos como um corpo: nosso corpo material; 2º) sentimos a nós mesmos como elemento de manifestações internas: pensar, sentir, saber. São esses os dois momentos principais que cada “eu” sente em sua própria existência. Por isso, ao construirmos uma escola filosófica, temos diante de
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nós dois caminhos a seguir: 1º) a escola materialista afirmando que em tudo o que existe está a matéria, o corpo; que tudo na natureza é objeto da percepção dos nossos sentidos e que o pensamento humano é o resultado da matéria – o pensar é atributo da matéria, como todos os outros, ou 2º), a escola idealista que diz sentirmos primeiramente a existência das nossas emoções, dos nossos pensamentos e que o corpo – a matéria existe tão somente porque o “eu”, o nosso pensamento concebe. A pedra, por exemplo, que não se concebe a si própria, não tem existência. Percebemos um fenômeno com nossos órgãos, o vemos com nossos olhos, mas o ato em si de ver, o fato como tal, não é material, não pode ser visto, nem tocado. Esta escola toma como base o espírito, o pensamento. A matéria é tomada como um acidente ou como corporificação do espírito. A que pode conduzir e a que nos levaram o materialismo e o idealismo em seu desenvolvimento histórico? Desde que verificamos ser o corpo, a matéria, o objetivo, o que realmente existe, devemos estudá-lo antes de tudo, conhecer suas prioridades e só assim é que poderemos conhecer o mundo. O materialismo tornou-se assim um propulsor do desenvolvimento das ciências, graças ao fato de construir as suas concepções sobre a matéria6. Os idealistas, ao contrário, diziam que se devia antes de tudo investigar as manifestações internas, o espírito, o fator básico de tudo que existe; que se pode apresentar até sob a forma de matéria. Mas o espírito é algo que não se pode apreender, que não se pode investigar. O espírito, como tal, 6. Até mesmo os materialistas, que admitem ter sido a matéria criada originariamente por uma força sobrenatural, pensavam ter sido criada desde logo com certas propriedades, as quais lhe deram durante seu desenvolvimento a força de um fator criador independente.
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não pode estar sujeito a força alguma e, pelo seu conteúdo, somente pode ser explicado espiritualmente ou divinamente. O desenvolvimento histórico dessas duas doutrinas deu-se de tal forma, que o materialismo cresceu e se desenvolveu ao lado da ciência, ao passo que o idealismo estava quase sempre ligado à religião, ou se entretinha com a metafísica especulativa, divagando sempre nas esferas da metafísica e da teologia. O materialismo filosófico encontrou em seu percurso uma série de dificuldades. Porque como escola teve muitos defeitos. Enquanto, por exemplo, o materialismo afirmava que a base de tudo o que existe é a matéria e procurava estudá-la profundamente, foi um grande auxiliar do desenvolvimento das ciências, mas desde que via na matéria um elemento imutável, de formas definitivas e eternas, tropeçava, com tal ponto de vista, em um entrave à verdadeira concepção da natureza. Ao materialismo dessa época, era incompreensível o ponto de vista da evolução, de desenvolvimento, ou, em outros termos, o conceito de um processo. O idealismo, ao contrário, tinha neste ponto uma vantagem sobre aquele. Reconhecendo que tudo é espírito, isto é, algo que não podemos ver, cujo conteúdo não podemos apreender, algo que existe e não existe ao mesmo tempo, que cria sempre novas formas, o idealismo, com esta concepção, não podia ser estático, tinha, pois, tendências a chegar à ideia de evolução. O idealismo tentava compreender não só o que existe, mas também o que vem a existir, não só o que é, mas também o que vem a ser. Segundo seu conteúdo, o idealismo tinha forçosamente de chegar à ideia de desenvolvimento, de evolução e de processo; delas no percurso do desenvolvimento da filosofia, devia-se forçosamente chegar a uma síntese entre os elementos
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fortes do materialismo e dos elementos sólidos do idealismo. O idealismo tinha seu defeito peculiar, que era o de não se basear na matéria, sobre o que existe, e procurar apenas as leis gerais do pensamento humano. Ele construía sobre si mesmo, estava longe da experiência. O materialismo, ao contrário, estava intimamente ligado ao que existe, com a natureza e com experiência. Mas a natureza e a experiência, eram compreendidas estaticamente, como algo que existisse sempre com a mesma forma, eternamente. As ideias de criação e de influência de um fenômeno sobre o outro, eram-lhe estranhas. O materialismo não possuía asas que lhe permitissem voar e não podia penetrar o íntimo da natureza. O idealismo, ao contrário, procurava encontrar e penetrar o íntimo da natureza, mas achava-se suspenso no ar, sem base para se apoiar. No transcurso do seu desenvolvimento, essas duas escolas se reuniram em certa medida e formaram uma nova filosofia científica, o materialismo moderno, que encerra em si um ponto de vista monista, unitário, visto que reúne em uma única concepção, espírito e corpo.
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Lição V O Materialismo francês e a Filosofia Crítica de Kant Caracterizamos a diferença entre o idealismo e o materialismo em sua formação e desenvolvimento histórico. Apontamos seus defeitos e virtudes; vimos aonde ambos podiam levar e onde chegaram. Agora nos deteremos no desenvolvimento do materialismo e idealismo nos últimos tempos: no materialismo do século XVIII e no idealismo da filosofia crítica de Kant. Os materialistas do século XVIII, que já estavam mais ligados à ciência progressista e tinham atrás de si mais experiências que os materialistas das gerações passadas, se detinham mais no estudo das leis da natureza, e a ideia de que tudo obedece a leis começou a dominar na filosofia materialista. As ciências naturais tinham então alcançado certo grau no seu desenvolvimento, e o materialismo já possuía alguma coisa em que se basear. Uma vez determinado que todos os fenômenos naturais se realizam obedecendo determinadas leis, o materialismo chegou à conclusão de que o homem e suas atividades devem também ser o resultado de outras tantas leis naturais. Partindo desse princípio, o materialismo francês do século XVIII criticou asperamente a concepção teológica do mundo, e provocou deste modo uma séria revolução nas ideias das camadas mais intelectuais da sociedade; tornou-se a filosofia da nova classe, a burguesia, que lutava para arrancar o poder das mãos da classe feudal, sendo esta apoiada pelo clero, ambas as quais perturbavam o desenvolvimento da ciência.
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Firmada assim a ideia, ou princípio do determinismo (obediência às leis), o materialismo procurou estabelecer as mesmas bases para a vida social, à semelhança do que observará nos fenômenos naturais. Para materialistas como Helvetius e Diderot, por exemplo, a ideia de necessidade histórica já era evidente. Para eles devia ser formulada uma outra questão: seria possível modificar as formas sociais existentes? Poderemos encontrar os meios de melhorar a vida? O materialismo que, como vimos, chegou ao ponto de vista do determinismo, era, no entanto, ainda um materialismo naturista. Os materialistas franceses tomando a natureza e seus fenômenos como necessidade, entendiam que as leis, segundo as quais se operam os fenômenos, devem ser eternas, como a própria natureza. Do mesmo modo, no que concerne à sociedade humana, entendiam que a vida deve aí realizar-se segundo leis internas e imutáveis, por suporem imutáveis e eternas as relações entre os fenômenos aí observados. Quais eram, contudo, essas leis, não sabiam. A história nos mostra que na vida social sempre se operam transformações. Mas onde está a causa das transformações e mudanças? E ainda mais: as formas existentes da vida social, não são por certo as que se desejariam; a sociedade não pode, nem deve ficar tal como está; deve ser modificada! No entanto, foi a questão formulada deste modo: como se pode e se deve modificá-la? Para isso foram dadas duas soluções: a primeira, diz: sendo o homem de natureza boa e aspirando sempre o bem, o desvio do bem caminho, não é senão o resultado de ter-se o homem afastado de seu estado natural (Rousseau), tornando-se “civilizado”. Deve-se, portanto, fazer voltar o homem àquele estado natural, para se eliminar essa má organização. A segunda, afirma: a sociedade
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humana evolui; portanto, o estado de coisas pode ser mudado. Mas como? Pela educação. A sociedade humana é composta de indivíduos e, querendo, pode-se mudar toda a sociedade. Deve-se, para tal, educar os indivíduos. O materialismo colocou-se, em tais condições, em um ponto de vista puramente utopista. Ignorando as leis do desenvolvimento da sociedade, teve que se conservar nessa atitude. O historiador da Restauração fez um certo progresso nesse sentido. Tendo atrás de si a tempestuosa Revolução Francesa, chegou à questão da atuação das condições externas, a questão do meio, da qual depende a atividade humana. Mas partindo do ponto de vista de que as variações do meio dependem da natureza humana ou das opiniões humanas, recaiu o historiador em um círculo vicioso. Chegando assim à questão do meio, não puderam, todavia, explicar as variações que se operam na sociedade. ●●● Lancemos agora um rápido golpe de vista sobre a filosofia dos últimos tempos e passemos em seguida a Kant. O idealismo teve na história da filosofia muitas formas: os filósofos mais importantes até o século XIX, como Descartes, Spinoza e Leibniz são considerados idealistas; o seu idealismo, porém, já está de certa forma libertado da teologia. Na realidade, os três colaboraram bastante na fundação da ciência moderna. Descartes foi o primeiro, que na moderna filosofia apontou o determinismo matematicamente exato na natureza. O panteísmo de Spinoza está muito próximo do materialismo científico da nossa época. A natureza e Deus são para ele sinônimos; o pensamento e a matéria são atributos da
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mesma substância: Deus ou a natureza. No campo das matemáticas e da ciência do espírito humano (psicologia), Leibniz deu um grande passo para a frente. Em uma direção bem diversa seguiram os filósofos ingleses do século XVII e XVIII. Tomaram por base do nosso saber a experiência. A experiência é o resultado dos nossos sentidos; estes são, por conseguinte, a base do nosso saber; deste modo chegaram ao sensualismo, que está naturalmente mais próximo ao materialismo. Mas, por outro lado, sendo os sentidos a única base do nosso saber, conhecemos então, somente aquilo que nossos sentidos nos fornecem. Desta forma chegamos ao fenomenalismo (isto é, sabemos ou conhecemos apenas os fenômenos, aquilo que apreendemos com nossos sentidos, mas não aquilo que é em si e por si). Mas aí nasce a questão da relação entre a apreensão das coisas e as próprias coisas. Forma-se o terreno para o ceticismo (duvidar do nosso próprio conhecimento). Assim a filosofia inglesa no seu desenvolvimento, chegou ao ceticismo de Hume, isto é, a dúvida na possibilidade e na certeza da ciência. Aqui é que começa a filosofia crítica de Kant. De um lado, diz Kant, existe a natureza objetiva (externa), e, de outro, existe o pensamento humano (o espírito), que investiga a natureza. Pergunta: qual a relação existente entre a natureza e aquele que a estuda; como se manifesta essa relação? Como se realiza a relação entre o “ser” da natureza e o “consciente”: o saber, o conhecer? E responde – a natureza nós a conhecemos: 1º) graças aos nossos sentidos, com os quais percebemos os fenômenos, as coisas e os objetos, os sentidos, no entanto, só nos fornecem matéria prima; 2º) esta matéria prima que conseguimos, graças à percepção dos nossos sentidos, é elaborada, construída e organizada pelo espírito humano. Na verdade – continua – percebemos a natureza por
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que a sentimos; mas, quando a investigamos, fazemos aqui outro trabalho: o do espírito. Para estudarmos uma coisa devemos observá-la, reunir certas partes, destacar outras, abstrair, etc. Resumindo: o nosso espírito deve desenvolver uma atividade sem a qual o fenômeno não pode ser estudado, isto é, conhecido. Sendo assim, nos apresenta uma nova questão (independente da hegemonia do espírito ou da matéria) sobre as relações entre o “consciente” e o “ser”. Essa questão deve, em certo sentido, ser explicada; não podemos negar o fato de que a natureza, isto é, a totalidade dos fenômenos, os objetos, são percebidos por nossos sentidos, por nosso espírito. Temos por isso a natureza como nos apresenta e é para nós, isto é, como a sentimos. Mas, surge então uma pergunta: como é realmente a natureza em si e por si mesma? Em outros termos: o que percebemos da natureza e o que a ela adicionamos ou levamos de nós pelos sentidos? Kant chegou assim a investigar toda a atividade do espírito humano no processo do conhecimento, do saber, da apreensão dos fenômenos e das coisas, para determinar qual o papel exercido pelo espírito no conhecimento. Kant destaca, de um lado, as formas de nossa imaginação, e de outro, as categorias do nosso espírito. Há duas formas principais na percepção das coisas, em nosso pensamento: 1º) o espaço, o lugar: tudo o que percebemos deve forçosamente ocupar um lugar; 2º) o tempo: tudo tem que acontecer em determinado momento. Essas duas formas apriorísticas (que existe no espírito antes da sensação) do nosso espírito, são condições preexistentes a cada experiência 7 . Diz ainda Kant – não podemos imaginar qualquer 7. Devemos observar que o grande desenvolvimento da psicofisiologia nos deu a possibilidade de analisar as duas formas principais (de Kant) e de encontrar os seus elementos componentes. Também se podem tomá-los como
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coisa fora do espaço e do tempo. O espaço e o tempo não são por nós tomados dos fenômenos das coisas; são por nós introduzidos nos fenômenos e nas coisas. Não existem fora do nosso espírito. Para imaginarmos uma coisa deve o nosso espírito colocá-la nessas duas formas gerais. Não nos deteremos sobre as várias categorias do pensamento estabelecidas por Kant. Tomaremos apenas a mais importante: a categoria da causalidade. Sendo o espaço e o tempo formas gerais apriorísticas da nossa imaginação, assim também, é a causalidade uma categoria geral, apriorística, do nosso pensamento. Em nosso pensamento, nada pode realizar-se sem uma causa. Para um fenômeno se realizar, deve haver uma causa que determine. Tomamos todos os fenômenos como um encadeamento de causas e efeitos, uma cadeia, cujo princípio não podemos encontrar. Segundo Kant, a causalidade não é resultado da nossa experiência; é uma categoria geral e necessária do nosso pensamento; está em nós, em nosso espírito, antes de cada experiência, fomos nós que a introduzimos na experiência. As relações entre o “saber” e o “ser”, são, desta forma, as seguintes: o “ser” é um caos, o “saber” é um caos formado por nosso espírito. O “ser”, é a “coisa em si”, é o número que, como tal, não podemos conhecer. O “saber” é a coisa como se apresenta: o fenômeno. Devemos pôr de lado a “coisa em si”, e ocupar-nos somente com a coisa, como se apresenta. O criticismo de Kant deu, não há dúvida, um grande impulso à ciência. Kant determinou as condições da investigação científica, do “saber”, apontando o caminho certo que
resultado da experiência, não obstante sua generalização. No que concerne ao seu caráter absoluto, dele não há mais vestígio após as novas descobertas determinadas pela teoria de Einstein.
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a ciência deveria seguir. Por outro lado, deu uma nova orientação à filosofia. No lugar da metafísica, colocou ele a gnosiologia, o estudo das condições e limites do nosso saber, e que representou então um grande passo. Kant foi, no entanto, no fundo, um idealista. A natureza é tal, porque assim a percebemos, diz ele. A natureza é para nós o resultado do nosso saber, da nossa organização espiritual, da nossa percepção. A natureza, que temos diante de nós é, assim, a natureza do nosso espírito. Porque este a apreendeu pela organização do caos, através das formas de espaço e tempo e pela categoria da causalidade.
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Lição VI A Filosofia pós Kant: Fichte, Hegel e Feuerbach Na presente lição, tocaremos ligeiramente no desenvolvimento do idealismo alemão e na formação do materialismo dialético. O desenvolvimento das ideias na filosofia, após Kant, tomou duas direções: por um lado, com Fichte, tomando o caráter de um idealismo subjetivo, que foi levado à conclusão lógica até o solipsismo (afirmação de que só existe o “eu” e seu mundo interno) e, por outro, com Hegel, transformandose em um idealismo objetivo, na filosofia da Ideia Absoluta. Na verdade, a filosofia da “coisa em si” de Kant, nada pode explicar. E assim como o próprio Kant, em sua Crítica da Razão Prática, tentou penetrar a “coisa em si” e descobrir seu segredo, os filósofos seus continuadores colocaram o dualismo de Kant de lado e voltaram-se para o idealismo puro, filtrado pelo criticismo. A filosofia de Hegel deu um grande passo com o fato de estudar o espírito, de um modo geral: a Ideia Absoluta, aproximando-se muito, por este meio, da ideia de evolução. Em sua dialética desvendou Hegel certas leis da evolução, que até então não haviam sido descobertas. Reconhecia-se então, apenas o fato da mutabilidade dos fenômenos, mas não se conheciam as leis de sua evolução. Não se compreendia o papel das contradições na evolução da natureza, do homem e da sociedade. Investigando a Ideia Absoluta e sua evolução, descobriu Hegel, que ao analisarmos bem um conceito nota-
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mos que este conceito guarda em si o princípio de sua negação – sua contradição –, e assim esse conceito se desenvolve em direção ao seu oposto. Este conceito da contradição é transportado ao fenômeno, quando queremos estudá-lo e compreendê-lo. Tomando, por exemplo, o conceito de “ser” ou existência, para determiná-lo, devemos contrapor-lhe o “não ser”. Em “ser” já deve estar, portanto, contido também o “não ser”, por ele compreendido. O oposto dos dois será porem o “vir a ser”, que contem em si, de um lado, o ser, no sentido de que o “vir a ser” indica que “será”, e por outro lado, o “não ser”, porquanto ainda não o é. Assim entendia Hegel a marcha da evolução, na forma de tese, antítese e síntese. A que nos levou essa fórmula, o assim chamado método dialético? Levou-nos ao seguinte: investigando-se cada fenômeno como evolução da ideia, deve-se estudá-lo não só em seu “ser”, mas também em seu “não ser”, em seu “vir a ser”, em suas novas formas, isto quer dizer também que os fenômenos na natureza evoluem, segundo as leis da dialética. Os fenômenos sociais também devem ser observados segundo esse critério. O próprio Hegel explica a queda da Lacedemônia pelas suas contradições, isto é, sua lei da transformação da quantidade em qualidade, deu um golpe de morte no evolucionismo vulgar e criou uma base científica para a teoria dos “saltos” na natureza e na sociedade. Sua filosofia, porém, estava de cabeça para baixo. A realidade, segundo ele, não é mais que a sombra da ideia; não é a natureza, a vida, que se desenvolve, mas sim, as ideias. A filosofia em tais condições deveria ser posta sobre os pés. E isso foi o que fizeram os discípulos de Hegel. Primeiramente com Feuerbach, o materialismo tentou mais uma vez ocupar o lugar de destaque na filosofia. O ma-
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terialismo de Feuerbach é, entretanto, antropológico. A matéria, segundo ele, é o organismo humano; a ideia, a propriedade desse organismo, isto é, o pensamento, o cérebro. O pensar é reflexo da vida do homem, seus sofrimentos, suas alegrias, seus receios e suas esperanças. A Ideia Absoluta de Hegel transforma-se assim em uma ideia humana. De abstrata, torna-se concreta. Entretanto, para Feuerbach, o próprio homem era abstrato e independente de espaço e de tempo. Quer a ideia, quer a matéria foram para Feuerbach humanizadas. Entretanto, o homem mesmo, não foi por ele concretizado, nem historicamente compreendido. Seu materialismo não sai dos limites da filosofia naturista, não se estende pela história da humanidade. No materialismo de Feuerbach não se descobre também a dialética de Hegel. A grande tarefa, de fazer penetrar no materialismo, o espírito dialético de Hegel e estendê-lo também à história da humanidade e à vida social, somente a puderam realizar Marx e Engels. Devemos apontar outros méritos da filosofia idealista alemã. Esta esclareceu a questão da contradição entre a liberdade e a necessidade na vida social. Se a ideia de determinismo (não há efeito sem causa), de necessidade lógica, tomou aos poucos um lugar nas ciências naturais, a questão foi muito mais difícil nas ciências sociais. Aqui tropeçou-se, por um lado, com a questão da liberdade e, por outro, na de fatalidade. Sabemos que a questão de necessidade e liberdade foi formulada pelos materialistas franceses. Mas estes caiam em um círculo vicioso. A atividade humana é, segundo eles, o resultado do meio e o meio o resultado das opiniões. O meio se transforma graças às modificações que se operam nas opiniões. Tomando por base as opiniões, a atividade do homem é livre; tomando, porém, por base o meio, essa atividade deve,
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então, ser uma necessidade, isto é, determinada pelo meio. Uma das tarefas mais difíceis era, pois, a união de dois conceitos: necessidade e liberdade. A necessidade (a determinação por causas) e a liberdade (atividade livre) não devem opor-se. Ao contrário, uma deve ser complemento da outra. O socialismo, por exemplo, é determinado, ele deve chegar; porém, somente virá, pela atividade humana; contém, portanto, a liberdade (atividade humana). A atividade humana, a liberdade, está necessariamente contida na determinação histórica8. Como, contudo, se formou da tese e da antítese do materialismo francês e do idealismo de Hegel, a síntese, o materialismo dialético? Nos materialistas anteriores, o meio era a reunião de todas as opiniões existentes na sociedade. E mesmo quando deparavam com interesses materiais, consideravam igualmente a luta entre esses interesses como o resultado das opiniões. Ficaram sendo, portanto, idealistas, no sentido de compreender e explicar a história. Não descobriram a matéria da vida social. Essa matéria, isto é, essa realidade, foi descoberta pelo materialismo histórico. Foi este que deu ao meio um sentido próprio.
8. Tocamos aqui, somente de passagem, a questão da liberdade e determinismo na vida social. Mais detalhadamente, examinaremos a questão em uma das lições seguintes.
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Lição VII Os Fundamentos do Materialismo Histórico Vimos na última preleção como os materialistas e historiadores franceses não puderam definir o que é o “meio”. Tentemos analisar o meio. O que vemos nele? Vemos diante de nós homens que mantém relações entre si, e perguntamos: qual será a causa principal dessas relações e em que consiste este entrelaçamento de relações ente os homens? Devemos tomar aqui o sentido mais elementar da vida social e talvez encontremos aí a matéria de sua evolução. Para existir, deve o homem desempenhar uma certa atividade em relação à natureza exterior. Deve adaptar-se à natureza para poder viver e não ser por esta aniquilado. E essa adaptação se realiza graças à atividade do homem. Mas somente na adaptação não poderemos encontrar o conteúdo, o característico da vida social humana. Uma adaptação à natureza encontramos também nos seres inferiores. Na simples adaptação há, portanto, pouco de humano, menos ainda de social. Que é então o que distingue a adaptação humana à natureza? Em primeiro lugar, a forma social. Essa adaptação se realiza não de forma individual; o homem se adapta à natureza, socialmente. Duas formas da atividade humana estão ligadas à sua adaptação à natureza: 1º) uma atividade que serve diretamente à satisfação das necessidades de sua existência (nutrição, reprodução). Para satisfazer suas necessidades desta natureza precisa o homem exercer certa atividade (por exemplo, comer, beber, respirar, manter relações sexuais, etc.), mas essas atividades são provocadas diretamente pelas
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próprias necessidades de momento; 2º) há uma outra atividade que serve indiretamente a satisfação das necessidades (cozinhar para comer, retirar água para beber, colher frutas para comer, etc.). A atividade do homem na primeira forma, serve-lhe para satisfazer diretamente suas necessidades, só pode ser útil ao indivíduo que exerce essa atividade (não se pode comer por outros). A atividade da segunda forma (satisfazer indiretamente suas necessidades) pode ser também útil a outros (pode-se colher frutas para outros, pode-se trazer água não só para si, como também para que outros bebam). Essa atividade do homem, que serve diretamente a satisfazer suas necessidades, tem uma característica especial, que consiste na possibilidade de se tornar social. A essa atividade, em geral, denominamos: trabalho. Analisemos mais detidamente o que acabamos de referir. Trabalho, isto é, não só atividade direta, mas também indireta, notamos também em certa proporção, nos seres inferiores. O que, pois, distingue o trabalho humano do trabalho dos seres inferiores? Tentou-se definir o homem como o animal racional (homo sapiens); mas, sendo a razão no homem, o resultado de um desenvolvimento muito adiantado, não pode servir de característica para a definição do homem. Certa é a definição dada por Franklin: “o homem é um ser que faz e usa instrumentos”. O trabalho de fazer e usar instrumentos é sempre uma atividade indireta. Mais ainda, esse trabalho é uma condição necessária ao desenvolvimento do próprio trabalho. Nos seres inferiores, essa atividade não desempenha, por isso, grande papel. Não têm as possibilidades de se desenvolver. No homem, ao contrário, a atividade, o trabalho, começa a desempenhar o papel mais importante em sua vida. O instru-
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mento é, portanto, o momento principal que distingue a atividade do homem, seu trabalho, de todos os outros seres vivos. A matéria, isto é, a base concreta da sociedade, consistirá, portanto, no trabalho para satisfazer as necessidades humanas, nas quais o instrumento, como meio de adaptação à natureza, desempenhará o papel principal. A totalidade dos instrumentos que o homem cria no processo de sua adaptação à natureza é chamada técnica. A técnica pode também ser chamada de meio artificial. O homem se adapta ao meio natural criando um meio artificial. No meio artificial esta corporificada a matéria da vida social. Vejamos agora como se opera o desenvolvimento da sociedade humana. Os seres inferiores que se adaptam à natureza pelos seus órgãos naturais, estão em certo sentido, limitados pela constituição desses mesmos órgãos, pelo seu estado fisiológico. O seu desenvolvimento opera lentamente levando milhares de anos para apresentar pequenas modificações, aumentando muito pouco suas qualidades de adaptação. Os instrumentos, que podem ser considerados como órgãos artificiais, têm a grande virtude de terem um desenvolvimento quase ilimitado. Em todo caso, os instrumentos se tornam quase independentes do organismo humano e são de possibilidades quase ilimitadas, como as forças da natureza. A criação de instrumentos mais aperfeiçoados depende da correspondente exploração da natureza, cujas riquezas são inesgotáveis. Podemos ver, portanto, qual o papel que deviam e podiam exercer os instrumentos na história da humanidade. Os instrumentos tornam possível a exploração da natureza com menos dispêndio de energias, conseguindo deste modo resultados mais favoráveis e assim permitindo ao homem adaptar-se cada vez mais ao meio.
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A história nos mostra que com o desenvolvimento do homem, este adquire cada vez mais necessidades e novas qualidades. Surge então a questão: qual a origem dessas novas necessidades e dessas novas qualidades? Onde devam ser procuradas as causas do seu surgimento? Bem entendido, as causas do aparecimento dessas novas necessidades cada vez mais diversas não podem ser encontradas no próprio homem, mas sim fora dele, isto é, na influência exercida sobre ele pela natureza que o circunda, pelo meio. A própria natureza, muda, porém, muito lentamente. Se a evolução do homem dependesse só da mutação do meio natural, no qual se encontra, essa evolução seria tão lenta que se tornaria quase imperceptível. Nas primeiras etapas do desenvolvimento humano notamos quão lentamente se opera essa evolução. O meio natural age pouco sobre o desenvolvimento das necessidades do homem, sobre o aperfeiçoamento de suas habilidades, sobre a mudança da sua natureza. A causa, por conseguinte, só pode ser encontrada no meio artificial, que cresce vertiginosamente. A causa do desenvolvimento humano deve, pois, estar na adaptação do homem ao meio natural, na atividade indireta do homem que é o trabalho, na criação de instrumentos que é a técnica, no meio artificial que cresce e se expande sem limites. Estabelecemos, portanto, que o trabalho e a técnica formam a base da vida social e da evolução humana.
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Lição VIII O Papel e a Influência da Técnica na Evolução da Sociedade Na lição anterior mostramos o meio artificial que o homem cria no processo de sua adaptação à natureza. O conteúdo, isto é, a definição do meio encontramo-lo na técnica (meio artificial), que é a matéria ou base concreta da vida social. Devemos observar agora qual o valor da técnica em relação à sociedade. Qual o papel de seu desenvolvimento na vida da sociedade e quais as relações entre os homens, no processo da criação dos instrumentos. Mas antes, nos deteremos em determinados fenômenos ideológicos como a linguagem, por exemplo, que é uma condição pré-estabelecida para o surgimento da ciência da qual depende a técnica e seu desenvolvimento e que é um dos meios mais importantes e condição preliminar de quaisquer relações entre os homens; veremos então, se estes fenômenos importantes que exercem um papel tão preponderante na evolução da sociedade, não são como tais, o resultado da evolução da técnica, isto é, dos instrumentos de trabalho. Sabemos que a origem da linguagem está relacionada com o trabalho (trabalho segundo a definição dada na lição anterior); a linguagem segundo ensina a moderna ciência das línguas (teoria de Noiré) surgiu no processo do trabalho, das exclamações e vozes do trabalho, etc. O desenvolvimento da linguagem pode dar-se devido ao processo de generalização e abstração dos conceitos (são estes os fundamentos da origem e formação dos idiomas). O processo, porém, está intimamente ligado com o trabalho de criar instrumentos, porque
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este trabalho é um trabalho indireto, no qual o homem não vê imediatamente o fruto de sua atividade, mas como parte distinta, desempenha papel preponderante. O homem, nos primeiros tempos, não diferenciava a natureza circundante de si próprio. Ele não via nesta um objeto e em si um sujeito destacado. Foi necessário, para isso, um longo caminho de abstração e distinção entre si e o mundo exterior; um processo de atividade multiforme, para serem criados no homem esses dois conceitos abstratos de sujeito e objeto. E nesse processo os instrumentos deviam ter desempenhado um grande papel. Os instrumentos, que servem ao homem para agir sobre a natureza, são na realidade colocados entre esta e aquele. São arrancados da natureza para sobre esta agirem. Os instrumentos são assim, um elo entre o homem e a natureza. E devido a isso o homem é capaz de formar o conceito de “si” e do mundo exterior. Vemos, portanto que até a gênese, a raiz de conceito tão elementar, somos também obrigados a procurar nos instrumentos, na técnica. E quando o homem já pode ter um conceito do “si” e do “não eu”, também pode formar o conceito de outras coisas distintas e assim tornou-se possível o continuo desenvolvimento da linguagem. A linguagem agiu, por sua vez, sobre o processo do pensar. Esta quase obrigou o homem a desenvolver o processo de generalizar e abstrair, a formar conceitos gerais (seria impossível ao homem dar nomes distintos a todos os fenômenos da natureza). Aqui, contudo, devemos deter-nos em um outro ponto: a linguagem, a grafia e a ciência, só podem desenvolver-se vivendo o homem em sociedade. Se não fosse assim, o homem não precisaria expressar seus desejos. E não se desen-
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volveriam então nem a linguagem, nem a grafia, nem a ciência. Vemos, portanto, que os dois momentos, a técnica e a vida em sociedade desempenham o papel principal na evolução humana. Isoladamente, nenhum dos dois fatores pode existir; a técnica se desenvolve pela divisão do trabalho e paralelamente ao desenvolvimento da ciência. Porém, esses dois momentos, quer a divisão do trabalho, quer a ciência, somente podem existir e se desenvolver na sociedade; por sua vez, uma vida social sem o desenvolvimento da técnica é impossível. Quando falarmos das formas da técnica como base da sociedade, temos por um lado coisas puramente materiais relacionadas com as leis físicas, químicas e outras leis da matéria; por outro lado, desde que essas formas estão sujeitas à sociedade, dependem da própria sociedade, das relações entabuladas pelos homens entre si, no processo do trabalho. Quando, na lição anterior, estabelecemos que um fenômeno social deve conter em si algo novo, além dos caracteres físicos, químicos e biológicos anexos, não apontamos então esse novo caráter de que se acha acrescido dito fenômeno. Agora, contudo, já podemos encontrar o conteúdo desse novo aspecto ou caráter. Esse caráter específico, isto é, o conteúdo do fenômeno social consiste em que, como tal, deve ser a consequência das relações entre os homens que se formam no processo da atividade indireta, para a satisfação das necessidades humanas, no trabalho social. O homem vivendo em sociedade, trabalha (atividade indireta) para satisfazer suas múltiplas necessidades. No processo desse trabalho, realizado em sociedade, os homens são levados a manter certas relações uns com os outros. Essas
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relações entabuladas pelos homens, durante o trabalho (atividade indireta, que por sua natureza pode tornar-se social), formam o conteúdo ou característico dos fenômenos sociais9. Uma vez que desejamos conhecer as leis da sociedade humana e de sua evolução (estática e dinâmica), devemos estudar seu caráter próprio, a técnica; não sua forma geral, física e morta, mecânica, etc., mas em sua forma viva, em seu conteúdo e papel social. Na base da técnica, nascem certas relações de produção, que por sua vez provocam várias, multiformes e complexas relações sociais. Todos os outros fenômenos sociais nascem destas ultimas relações. Podemos expressar o mesmo pensamento em outras palavras e formular por outro modo a ideia principal do materialismo histórico. Resumindo: o homem, para viver, para existir, deve adaptar-se à natureza; agir sobre ela e adaptá-la a si mesmo. No processo de adaptação à natureza, forma o homem um meio artificial. Esse meio artificial é que forma a base da sociedade humana e de sua evolução. O meio artificial é por si mesmo uma coisa material (é composto de elementos da natureza material), mas está impregnado da atividade humana e como tal se torna a base da vida social. O fundamento sobre o qual se constrói toda a vida social é, portanto, a atividade social do homem, isto é, o trabalho humano e as relações entabuladas entre os homens no processo dessa atividade. A essas relações chamamos relações econômicas e delas é que nascem todas as outras relações. Tomando por exemplo uma sociedade desenvolvida ve-
9. A atividade indireta foi no início, social. A primeira forma de relações sociais foi a primeira colaboração, tornando-se mais tarde mais complexa. Surge, então, a divisão do trabalho e a vida social.
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mos que o trabalho aí é representado por um processo largamente ramificado; e investigando sua evolução devemos tomar o trabalho em sua totalidade e em suas variadas formas. Compreende-se que, quando desejamos conhecer um fenômeno social complexo, devemos tomar em consideração todas as diferentes relações existentes na sociedade. Só então poderemos compreender, por exemplo, uma revolução que se opera no momento em que forças produtivas ultrapassam as relações ou formas sociais existentes se levarmos em conta a totalidade das diferentes relações existentes na sociedade, e que se acham já desligadas do processo da produção10. Observamos agora e vejamos como nasce a sociedade como tal, com todas suas formas, isto é, procuremos mostrar de um modo concreto como a evolução da técnica determina todos esses fenômenos sociais e formas varias da vida social e como as modifica. Até aqui observamos as coisas de modo geral. Estabelecemos a ligação entre a técnica e as relações econômicas. 10. Os “críticos” de Marx ridicularizaram a teoria do materialismo histórico, mostrando seu paradoxo, no sentido de que fenômenos tais como filosofia, moral, arte e ciência, são explicados por simples interesses materiais. Um tal modo de entender Marx, nada revela senão a ignorância e incapacidade em compreender o marxismo. Marx não diz que os referidos fenômenos são explicados exclusivamente pelos interesses econômicos; diz apenas que a base desses fenômenos, sua origem, em última análise, e as causas de sua evolução, deve ser procurada na evolução da técnica e das relações sociais que se criam no processo de trabalho. Sua evolução não é determinada exclusivamente pelos interesses econômicos; somente se diz que seu conteúdo e sua forma são causados pelos fatores acima referidos. Querendo esclarecer e compreender o porquê do surgimento e da realização de tal ou qual fenômeno, devemos antes de mais nada travar conhecimento com os interesses materiais dos homens e com o estado da técnica antes do aparecimento do fenômeno e analisando as relações econômicas e sociais devidas a esses interesses e ao desenvolvimento da técnica e somente então é que poderemos compreender porque surgiu ou se realizou este ou aquele fenômeno na sociedade e na vida social.
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Agora devemos concretizar e mostrar como a estrutura da sociedade, isto é, a súmula das relações que nascem entre os homens no processo do trabalho (relações de produção), depende do meio artificial; 1º) que as várias partes da sociedade e as formas que adquire têm como sua causa básica a parte material da sociedade que é o meio natural, (estática); 2º) que a dinâmica da sociedade, a mudança de sua estrutura também depende da evolução e da modificação do meio artificial. Em uma palavra, devemos encarar o estudo do materialismo histórico, como uma sociologia11. Tratemos de penetrar as formas da sociedade primitiva. Qual a estrutura que vem de fato nessa sociedade? Como está construída? Desde que não há nela uma técnica desenvolvida e por isso sobra de produtos, não há lugar para a formação de classes ou camadas sociais. A sociedade de então abrange um pequeno número de indivíduos e se existe certa divisão é baseada somente sobre motivos fisiológicos. Existem por exemplo, crianças ou mulheres grávidas, ou velhos que não trabalham, etc. Uma tal divisão não nos pode dar senão uma estrutura social elementar, como também elementar é a sua técnica. Tomando a técnica numa fase altamente desenvolvida da evolução social, a moderna sociedade de hoje, por exemplo, notamos a estrutura bastante complexa da sociedade. E não só no sentido de existirem muitas classes (a sociedade
11. Não obstante a escassez de literatura que tenha tratado dos fenômenos da vida social, como filosofia, direito, arte e religião, do ponto de vista materialista, podemos, no entanto, apontar o método certo e como proceder a sua investigação (compreende-se que por falta de tempo somente poderemos traçar as linhas gerais da evolução da sociedade detendo-nos sobre a atual sociedade mais desenvolvida, analisaremos e explicaremos os fenômenos do nosso ponto de vista).
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feudal continha mais camadas ou grupos sociais), mas na organização da própria sociedade, nas funções de seus órgãos, nas suas relações e ramificações, notamos como e até onde cresce a sociedade atual. A complexa e aguda divisão do trabalho em milhares de partes, devendo manter entre si certas relações, exige relações sociais fortes e estáveis, com certos direitos, leis e regulamentações, aparelhos administrativos e defesa, etc.; a técnica altamente desenvolvida faz surgir uma estrutura complexa da sociedade e determina seu conteúdo.
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Lição IX A Estrutura da Sociedade e a Divisão de Classes No final da lição passada apontamos a influência da técnica na estrutura social da sociedade, e chegamos à conclusão de que com o desenvolvimento da técnica modifica-se a estrutura da sociedade. Sabemos que o estado da técnica determina sempre a divisão social do trabalho. Na sociedade primitiva a divisão social do trabalho é muito rudimentar, se expressa, na divisão em duas espécies de funções: a organizadora ou dirigente, e a executiva. Mais tarde forma-se uma divisão do trabalho cada vez mais desmembrada e complexa, no grau mais alto do desenvolvimento da técnica, que vemos moderna sociedade capitalista, a divisão do trabalho mais se alastra, tornase complexa, se desarticula e sua estrutura fica também em todos seus detalhes muito complexa. Temos famílias, classes, grupos, camadas, agrupamentos nas próprias classes, várias sociedades, partidos, etc. A sociedade pode ser comparada a um edifício que tem alicerces, base, com suas partes principais e sobre si a superestrutura, os andares, com o edifício inteiro. Se quisermos compreender e explicar a estrutura da sociedade e também as suas partes principais, teremos antes de mais nada de destacar a base da sociedade, seus alicerces, e só então, depois de estudada esta, explicaremos as outras partes do edifício social, toda a construção social. Em que consiste o alicerce, isto é, a base da sociedade? Analisando anteriormente essa questão, mostramos em uma concatenação de ideias que a base fundamental da vida social
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é o trabalho social, que por sua vez está estreitamente ligado à técnica. Falando do trabalho como fator social, como base da vida social, não nos interessa a face física ou técnica do trabalho, mas sua face social, isto é, as relações que surgem entre os homens no trabalho durante a elaboração de produtos e durante sua distribuição. A base da vida social é, portanto, sua economia. Observando na sociedade certos agrupamentos ligados à família que, como esta desempenham grande papel na visa social, surge então a seguinte pergunta: como se entrelaçam as várias relações de família com as relações econômicas? Não dependerão uma das outras? Ao estudar a família historicamente, veremos que as relações de família não se mantêm sempre estacionarias, no mesmo lugar, elas evoluem; onde, pois se deve procurar as causas dessas modificações? Sendo certo que as relações sexuais das quais derivam todas as outras relações de família não mudam, de maneira geral, está claro que não são estas que determinam aquelas variações. Devem ser procuradas em outra parte. Sabemos, porém, que a família é ao mesmo tempo um entrelaçamento de relações de caráter econômico e fisiológico. Suas formas mudam, se desenvolvem de acordo com o desenvolvimento da técnica e das relações econômicas que por esse meio se elaboram12. 12. Que a família é mais que uma união fisiológica, prova-o o fato de encontrarmos também entre os seres inferiores relações fisiológicas; não obstante não se nota aí vida familiar definida como entre os homens em geral, e mudança das formas da família em particular. É, portanto, um erro supor que a família é somente a expressão de relações fisiológicas. Para ser possível uma vida social, deve naturalmente existir o homem como tal. Dá-se por isso a união fisiológica dos dois sexos para a procriação que ocupa assim um dos mais importantes papeis na perpetuação da espécie humana. Contudo, a forma que se elabora como consequência da união, a família, dependeu sem-
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Tomemos por exemplo as relações de pais e filhos, de homens e mulheres, irmãos e irmãs, etc. Nas sociedades de seres inferiores, essas relações mantêm-se sempre as mesmas e não se modificam. Como relações fisiológicas não podem estas determinar a vida da família, somente na sociedade humana em seu desenvolvimento, tais relações assumem variadas formas, perdendo seu caráter puramente fisiológico, e tornam-se complexas devido às relações econômicas existentes e integradas na sociedade13. Nem relações sexuais, nem as de parentesco, podem servir de base para a anatomia da sociedade humana. Em que consiste, pois, a estrutura da sociedade? Consiste na sua divisão em certos grupos econômicos, que se encontram não somente em simples relações de cooperação, mas também em relações opostas de luta. Sabemos que quanto mais as relações se tornam complexas, passando de simples cooperação a complexa divisão de trabalho, tanto mais evidentes começam a surgir em cena pre da situação econômica da sociedade. Com efeito, além das relações sexuais e das relações que se formam como consequência de vários trabalhos, não notamos nas épocas primitivas outras relações entre os homens. O conteúdo e a forma das relações sexuais permanecem, porém, mais ou menos os mesmos, ao mesmo tempo em que as formas de cooperação modificam-se rapidamente e se desenvolvem juntamente com a técnica. É claro, portanto, que essas modificações na técnica, na forma da cooperação social, provocam por si as modificações correspondentes na família, porquanto é esta alguma coisa mais do que um simples convívio sexual. 13. As relações entre pais e filhos na sociedade humana, modificam-se constantemente. Nos tempos em que os homens viviam da caça, frequentemente matavam-se os velhos porque não tinham utilidade alguma e porque havia falta de viveres. Com a evolução posterior, porém, quando a sua experiência se tornou necessária eles são mais respeitados e havendo maior abundância de viveres são alimentados, não obstante nada produzirem. Vemos, portanto, que essas relações são diversas em diversas épocas. O mesmo se dá em relação a pais e filhos. As relações entre eles dependem de várias causas que estão fora dos laços de parentesco de sangue.
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determinados grupos econômicos que mantém lutas entre si. Essas relações de luta entre os vários grupos econômicos em oposição dão à sociedade um caráter especial, determinam a feição da sua estrutura; logo, a estrutura da sociedade nasce, isto é, tem as suas raízes na base econômica. A divisão em classes, que se formam no início devido à divisão do trabalho, se desenvolve cada vez mais como o próprio desenvolvimento da divisão do trabalho. E essa estrutura econômica da sociedade, consistindo na divisão em vários grupos, com diferentes interesses econômicos, lutando oculta ou abertamente entre si, desempenha o papel preponderante no desenvolvimento contínuo da sociedade. Tomando a sociedade no início do seu desenvolvimento devemos constatar que a força impulsora, era então constituída pelas várias necessidades econômicas, que obrigavam os homens a lutar contra a natureza. A multiplicação que devido às formas primitivas de produção levou à superpopulação obrigava frequentemente os homens a alargarem a sua luta contra a natureza; o resultado disso foi a evolução do trabalho. Começa aqui a esboçar-se um novo fator que desempenha um grande papel na evolução da sociedade. Esse novo fator foi a técnica: o meio artificial, que é formado pelo homem em sua luta implacável pela existência, para a satisfação das suas necessidades vitais. Uma das condições preliminares para o desenvolvimento da técnica foi o desenvolvimento da sociedade; mas quando a sociedade cresce, formase nela, devido à evolução da técnica, a divisão em grupos e em diferentes camadas econômicas, com interesses opostos, mantendo-se em constante relação de luta. Nasce assim e se desenvolve mais esse novo fator agindo por sua vez no desenvolvimento posterior da sociedade, determinando a sua
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estrutura com as mutações gradativas da mesma, a luta de classes. Devemos lembrar que na sociedade devido à luta geral pela existência dá-se também a concorrência entre os indivíduos isolados. Isso, contudo, é um fenômeno geral da natureza viva e falando-se de luta na sociedade, subentendemos uma luta de caráter e sentido social. À qual, só pode corresponder a luta de classes14. Os “sociólogos” burgueses acham que, na história, outras duas formas de luta entre grupos, desempenharam o papel preponderante: primeiro, as lutas de raças e segundo, as lutas nacionais. Procuram demonstrar que a luta de classes desempenha papel menos importante do que as lutas nacionais e que a marcha da história é determinada não pelas condições econômicas, mas por fatores muito diversos. Porém, basta analisarmos as duas formas de lutas acima referidas, para vermos que seu conteúdo não é independente e que é determinado pelas condições econômicas em que se encontram as raças ou nações em luta. A base, sobre a qual nasce a luta nacional ou racial é também, sempre econômica. Historicamente surgiu a luta de raças, (mascarando a luta econômica), antes da luta de classes, porque esta se origina nas sociedades diferenciadas, ao passo que a luta de raças e até mesmo a luta nacional não exigem uma divisão de trabalho social desenvolvida. E quando no cenário histórico surge a luta de classes esta não exclui a luta de raças ou
14. Que, na evolução social, desempenha essa luta papel importante, já o afirmavam muitos sociólogos, especialmente Gumplovitch; adotando-se o ponto de vista marxista, usamos outros métodos no desvendar o papel da luta social. Estudando-o, veremos que também não se desenvolve independentemente, mas em combinação com o desenvolvimento da técnica.
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nacional, mas complica-as. A luta de classes assume, às vezes, a forma de luta racional ou nacional, porque para a burguesia é necessário e útil encobrir a aguda luta de classes com o véu nacional ou racial. Analisemos as lutas nacionais e de raças e veremos como essas lutas não são senão manifestações ou variações veladas da luta econômica ou de classes. Tomemos primeiramente as lutas de raças. Aqui podemos e devemos antes de mais nada constatar que na história não se verifica uma luta constante entre as raças. Quais raças existentes em geral? Devido à diversidade do meio geográfico, formaram-se três raças principais: negra, amarela e branca. Nos tempos primitivos não se observam lutas entre essas raças15. Agora observemos em certa medida uma luta entre brancos e negros, nos Estados Unidos. Será uma luta característica de raças? Ninguém o dirá. Todos deverão reconhecer que essa luta tem um caráter econômico, em consequência de terem sido os negros libertados da escravidão há pouco e se tornarem por isso uma vítima indefesa da exploração capitalista16.
15. Devemos notar que o antissemitismo, que traz a cor da luta de raças (luta contra a raça semita), é por seu conteúdo uma luta econômica mal disfarçada, entre diversos grupos de uma mesma classe, ou um meio de desviar a consciência de classe do proletariado e das massas populares oprimidas, para enfraquecer a luta de classes. O antissemitismo é necessariamente reacionário, mesmo quando toma o caráter de um movimento das camadas oprimidas, porque desvia da luta de classes. 16. Fato digno de ser observado é que negros capitalistas convivem muito bem com brancos capitalistas e cultos. E ainda, que negros proletários vivem pacificamente com proletários brancos; não é de estranhar. Portanto, a ideia de que o conteúdo da luta de raças é puramente econômico, não necessita de comentários.
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Analisaremos agora a luta nacional que é um fenômeno muito mais frequente e que em nossos dias observamos ainda em grande escala e em variadas formas. Aqui devemos notar: primeiro, se essa luta nacional, como tal, é uma força propulsora na história; segundo, em que consiste em geral o conteúdo da luta nacional. Façamos resumidamente uma digressão na história e nos detenhamos no ponto de formação direta das nações. Ao tomarmos a sociedade primitiva na forma de comunidades, clãs, tribos, notamos desde logo, que cada tribo não é formada por muitos indivíduos, ligados entre si por laços de sangue: e que as demais tribos são consideradas como forças exteriores da natureza, com as quais é necessário por vezes, lutar, como contra animais. Mas, pela união de várias tribos (frequentemente consanguíneas), devido às necessidades econômicas de defesa é que se formaram as nações. Como cresceu a nação? Antes de tudo, devido ao desenvolvimento da técnica da sociedade, até quando a luta pela existência obriga certas tribos a se unirem a outras. Em que consistia, porém, a luta entre as tribos? Lutavam de fato apenas porque representavam tribos diferentes? Não. A luta era puramente econômica. Os israelitas lutavam contra os filisteus não como duas tribos e sim como dois organismos regionais, com interesses econômicos antagônicos, onde cada qual procurava escravizar o outro, ou conseguir dele certo tributo. As guerras entre as nações tiveram fins puramente econômicos e representaram uma tendência a expansão; o território tornara-se pequeno para a nação e tinha necessidade de se expandir. Tal nação lutou contra tal nação, porquanto uma via na outra um melhor objeto de exploração e mais uma presa fácil para suas ambições.
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Porquanto, as nações surgiram na evolução da história juntamente com a evolução do trabalho e da técnica. Surgem primeiramente sobre a base de laços de sangue, uniões de família. Sobre a mesma base, formaram-se posteriormente o clã, a tribo e a nação. Mas a causa dessas uniões e sua evolução foi provocada somente por motivos econômicos, e o conteúdo das lutas entre elas não é nacional, isto é, não consiste em duas tribos, com língua e psicologia diversas, lutarem somente por isso. Por conseguinte, seria extremamente falso, se disséssemos que a luta nacional é uma força propulsora na história; é certo, que a luta nacional é por vezes a expressão da luta de classes (luta econômica) que é, a realidade, a força propulsora da história. Podemos assim determinar, que a estrutura da sociedade é a divisão de classes, que surge durante o processo da divisão do trabalho e se desenvolve com a evolução da técnica. A luta econômica se dá sobre a base da divisão de classes, da divisão em grupos sociais distintos, com interesses econômicos opostos.
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Lição X A Luta de Classes como força propulsora da História e a formação da Psicologia de Classe Na lição anterior vimos como estrutura da sociedade, a divisão em classes, é resultante da divisão social do trabalho e consequência das relações de produção numa dada sociedade. As relações em que assentam as classes em oposição se expressam sob forma de luta, em relação de luta. As outras formas de luta na sociedade como as lutas de raças, a luta nacional, nascem da luta econômica entre as classes. A diferença entre luta nacional e luta econômica consiste somente no fato das lutas internacionais representarem, a princípio, uma luta contra forças externas; somente com sua evolução toma um nítido caráter de luta de classes. Quando a burguesia de uma nação (já dividida em classes) não pode mais satisfazer-se com a exploração do proletário nacional, procura então estender seu domínio sobre outros povos atrasados ou concorrentes. O caráter externo de luta entre nações depende do estado das forças produtivas das mesmas. Assim por exemplo a luta entre a Inglaterra e a China, como luta entre um país desenvolvido e outro atrasado (no sentido econômico), traz mais abertamente o caráter de luta feroz entre o mais forte e o mais fraco, ao passo de que a luta entre a Alemanha e a França – luta entre países igualmente desenvolvidos – é disfarçada, trazendo o caráter de luta entre duas “civilizações” diferentes, onde uma é apresentada como justa e “civilizada” e a outra como bárbara. As formas de luta, de fato, são diversas, mas seu conteúdo é sempre o mesmo.
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Na história da evolução social, na história da luta de classes, notamos que a classe oprimida evolui sempre juntamente com a evolução das forças produtivas. Coube sempre a esta o papel de força propulsora do progresso e de todo o bem-estar da humanidade. Com efeito, vejamos em que consistem as forças produtivas e como as classes estão ligadas a estas. Falando das forças produtivas da sociedade devemos tomar em consideração os três seguintes tipos: 1ª) as forças da natureza, como a terra, os montes, os rios, os minerais, etc.; 2ª) o meio artificial, a união do trabalho humano com as forças da natureza em intima ligação (instrumentos); 3ª) a força do trabalho, totalidade do trabalho humano na sociedade. Esses três tipos estão intimamente ligados ente si. São imprescindíveis à existência e evolução da sociedade humana, que necessita do meio natural, do meio artificial e da força do trabalho humano. Tentai aniquilar uma só dessas três forças e a sociedade inteira perecerá. Analisada separadamente cada um desses tipos de forças, notamos que, quanto à natureza, é um fator constante, que sem a intervenção do homem, por si só, muito pouco se modifica. Certamente operam-se na natureza acontecimentos como inundações, erupções vulcânicas, erosões, terremotos, etc., mas, de modo geral, a natureza permanece ou se apresenta sempre com o mesmo aspecto, e sua ação sobre o homem, é por isso também mais ou menos a mesma. As mutações na natureza (no clima, no mundo dos seres inferiores, dos vegetais, na flora e na fauna) opera muito lentamente em relação à história da humanidade e por isso não podem ser levadas em consideração. O meio artificial, a técnica, ao contrário, se modifica, evolui e passo a passo com esta desenvolve também a força
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do trabalho a qual está ligada, e é determinada pela técnica em desenvolvimento. Quanto mais se desenvolve a técnica, tanto mais diferenciado se torna o trabalho, dividido socialmente, e ao mesmo tempo a sociedade é igualmente dividida em classes e grupos com interesses econômicos antagônicos. A primeira forma de divisão do trabalho aparece no terreno da distinção entre o trabalho dirigente e o de execução. Essa divisão traz consigo, desde logo, desigualdades entre os membros da sociedade. Desigualdades que se acentuam ao ser criado o instituto da propriedade privada e cria mais tarde o “domínio” dos “dirigentes” e a opressão exercida sobre os executores. Vamos agora observar a evolução das forças produtivas em relação à divisão de classes. Ao estudar a história do desenvolvimento econômico notamos que a classe dirigente desempenhou durante algum tempo um papel positivo na vida social e em certo sentido uma função produtiva, indispensável. Na fase posterior da evolução, deixa ela, porém, de ter tal papel, para se converter em elemento parasitário cuja existência deixa de ser útil à sociedade. Quanto à classe executora, isto é, a classe produtora, se estagna sob a pressão das classes dirigentes, sem poder desenvolver-se, a sociedade toda degenera então, ou é dominada por outra sociedade que explora, deixando assim aquela de ser independente. Mas isso não se dá quando a classe dirigente deixa de desempenhar o seu papel positivo. Esse fato não acarreta a queda da sociedade toda, porque devido ao desenvolvimento das forças produtivas nasce outra força dirigente; os executores destacam a si próprios um novo grupo de dirigentes que assume papel organizador na sociedade e dá assim oportunidade às forças produtivas de continuarem a se desenvolver.
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Devido à evolução da sociedade, criam-se, às vezes, condições tais, que são verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento das classes produtoras ou executoras e não tendo possibilidades de continuar o seu desenvolvimento, são condenadas a degenerar e a perecer. E, neste caso, a sociedade inteira estará condenada a desaparecer. Um, tal momento encontramos na história das sociedades construídas na base de escravidão. Os escravos eram elementos produtores. Criouse, porém, uma situação tal, que a forma de produção escravocrata já não podia permitir o desenvolvimento das forças produtoras e então essa sociedade teve que desaparecer ou degenerar. A sociedade feudal foi uma sociedade de organização feudal da agricultura e os senhores feudais desempenharam até certo ponto o necessário papel da atividade social. Mais tarde, porém, quanto mais prossegue o desenvolvimento de novas forças produtivas na própria sociedade feudal, não agrícolas, mas industriais, tanto mais começam os elementos dirigentes da nova indústria, a burguesia, a lutar contra a anterior organização feudal da produção agrícola. E vencem, porquanto a evolução das forças produtivas e, especialmente da técnica e da indústria, já se acha bastante entravada, pela regulamentação feudal e o pelo sistema senhorial da administração tributária. O mesmo também se dá com o sistema capitalista. As condições burguesas na produção e nos transportes, as relações de propriedade burguesas, em uma palavra, a sociedade burguesa moderna, que criou, como por um condão mágico, tais meios de produção e transporte, assemelha-se ao mágico que já não pode sozinho dominar as forças provocadas com seus próprios passes. A história da indústria e do comercio dos últimos tempos pode resumidamente ser considerada
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como abalo17, como uma revolução das modernas forças produtivas contra as atuais relações de produção, contra as atuais relações de propriedade que são, ao mesmo tempo, as condições devidas da burguesia e de sua dominação. E isso, porque as condições dominantes na produção impedem o crescimento impetuoso das forças produtivas que já ultrapassaram as formas ou relações econômicas ainda existentes. A burguesia já não serve à sociedade; não só deixou de organizar a produção e de dirigir o seu progresso, mas, ao contrário, tornou-se mesmo um entrave a organização e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. E desde o momento em que essas forças produtivas tentam vencer e destruir esses entraves, imediatamente a burguesia faz grande alarme dentro da sociedade burguesa, gritando que ameaçam a destruição da própria sociedade, quando na verdade, só é ameaçada a propriedade burguesa. Marx disse: “a arma com a qual a burguesia venceu o feudalismo é agora também aplicada contra ela própria; mas a burguesia não somente forjou a arma que agora lhe dará a morte, como também criou os homens que empunharão essas armas –criou a moderna classe proletária – o operariado”. ●●● Até aqui descrevemos a parte mecânica da luta de classes que só pode ser concluída com o estudo da produção. Essa luta parece ter um caráter puramente “mecânico”. Tratamos da burguesia e do proletariado somente como dirigentes e produtores e não como duas classes com interesses 17. Crises mundiais no comércio e na indústria; guerras imperialistas e revoluções; milhões de desocupados; queimas de produtos, etc.
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econômicos antagônicos. Essa é a parte mecânica do processo da luta de classes. Tomamos por base a evolução das forças produtivas e vimos como a própria força do trabalho é que provoca a divisão em classes, desempenha papel preponderante no desenvolvimento da sociedade. Primeiramente, temos dirigentes e executores, sendo ambos úteis à sociedade e por isso com iguais direitos. Mais tarde surgem as primeiras lutas entre dirigentes que vivem já da exploração dos produtores. Tornaram-se parasitas, não correspondendo mais à marcha da evolução das forças produtivas da sociedade, isto é, dos executores, os explorados, que aspiram a sua libertação e que já podem destacar de si novos organizadores da produção com novas funções e novas tarefas. Estes novos dirigentes, por sua vez, se tornarão depois inúteis à sociedade, convertendo-se em obstáculos à evolução das forças produtivas e começará uma nova luta contra estes, e assim por diante. A sociedade, porém, não é uma máquina que tem a tarefa de desenvolver a técnica, e tampouco a técnica não se desenvolve por si só. A sociedade se compõe de homens que têm certas necessidades materiais e espirituais, certas aspirações humanas, que vivem e lutam; compõe-se de homens com certa consciência que com a evolução da sociedade se torna cada vez mais complexa. Devemos, portanto, considerar o conteúdo humano e interno da luta de classes; compreender a luta de classes em toda a sua complexidade e analisar as várias formas assumidas. Quando analisamos a sociedade e a observamos concretamente, constatamos então que é composta primeiramente de indivíduos, e que cada indivíduo não é uma parte mecânica da sociedade, sem vida própria, A sociedade é um complexo de indivíduos onde cada um tem certa consciência, existindo, por isso, de si e por si, como unidade na sociedade.
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A produção e a técnica são criadas pelos indivíduos. A vida do indivíduo pode ser mais ou menos complexa pode ter um conteúdo rico ou pobre; o indivíduo, porém, permanece como tal. Esse fato não deve por nós ser silenciado, nem negado. Claro é para todos que a produção somente pode ser criada pela atividade humana, pelos atos dos indivíduos na sociedade. O que nos interessa é saber qual o papel de cada indivíduo na produção e como é determinada a atividade do homem, dos indivíduos na sociedade. Formulemos, porém, outra questão: vimos que com o desenvolvimento da técnica crescem as necessidades, quer materiais, quer espirituais dos indivíduos. As formas que essas necessidades assumem são sociais porquanto são produzidas pela sociedade, sua satisfação, contudo, está ligada ao indivíduo. Pergunta-se: qual a relação existente entre a atividade individual, a satisfação individual das necessidades e a atividade social, que é resultado da atividade individual? Qual a expressão da sociedade, formada por um conjunto de indivíduos? A atividade individual tem sua primeira expressão no trabalho (satisfação indireta das necessidades), o qual assume o caráter de cooperação. E esse trabalho é a expressão de uma forma simples de atividade. Mais tarde, essa atividade assume uma forma muito complexa por já estar ligada a consciência, às ideias, etc. De que forma aparece essa última, isto é a forma complexa da atividade individual? Não podemos dizer que o espírito humano se desenvolva independentemente (por si só). A evolução deve, pois, realizar-se como resultado de choques entre o homem e a natureza externa, à qual está obrigado a se adaptar. A causa do desenvolvimento humano não está nele próprio, mas fora dele, na natureza a qual deve
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se adaptar. O homem, contudo, só se adapta à natureza pelo meio artificial, como já vimos, criado com a técnica. A forma de adaptação da sociedade primitiva era igual para todos, porque todos seus membros se encontravam em igualdade de condições. Um indivíduo da sociedade primitiva não se distinguia de outro porque a diferenciação entre eles era quase nula; por isso não havia lugar para o individualismo. Nessa época, o fenômeno individual, embora existisse, desempenha, todavia, o menor papel. Quando, porém, a sociedade evolui e surge a divisão do trabalho, aparecem então as possibilidades de grupos e indivíduos se destacarem. Já desde o início, os dirigentes e os executores não se acham em igualdade de condições. Forma-se certa desigualdade nas condições de vida, nasce a propriedade e com esta a possibilidade de exploração. A forma de adaptação já não é igual nos dois grupos principais formados então na sociedade. Esses dois grupos têm interesses diversos e opostos na maioria das vezes. São aspirações e exigências diferentes, são psicologias de classes diversas. Notamos, portanto, que a diferenciação de psicologia nasce no terreno da diferenciação de classes e traz o caráter destas. Com o posterior desenvolvimento da técnica e da divisão do trabalho surgem além dessas duas psicologias coletivas também certas distinções na própria psicologia de cada classe, formando-se assim terreno para a evolução da individualidade; porque as distinções que nascem naturalmente em cada indivíduo adquirem, devido as múltiplas formas do trabalho a possibilidade de se desenvolverem e desempenharem, deste modo, um certo papel na sociedade. Quanto mais atrasada é a sociedade em seu desenvolvimento econômico, tanto menos são as possibilidades dos
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indivíduos se destacarem e tanto mais se assemelha essa sociedade a um rebanho. Ao contrário, quanto mais se desenvolve a sociedade, tanto mais oportunidade se oferece ao desenvolvimento do indivíduo, tanto mais se sente intimamente livre. A causa principal que desempenha aqui o papel preponderante, e isso devemos acentuar, são as formas de adaptação à natureza, são as várias condições da vida em que se encontra o homem. Daí se originam antes de tudo as psicologias de classes (interesses de classes, exigências e aspirações) e depois nestas várias diferenciações psicológicas (psicologias de grupos e de indivíduos destacadamente). O fenômeno principal que deixa sua marca sobre a psicologia geral é a forma de adaptação à natureza e as condições nas quais vive determinada classe ou grupo. Somente dessa forma e por meio desses fatores é que se origina a psicologia de classe. O fato de pertencer a esta ou aquela classe já deixa sua marca sobre a psicologia deste ou daquele indivíduo. O fenômeno das classes desempenha o principal papel na evolução da psicologia. Se as formas gerais do trabalho e da adaptação à vida determinam em geral o conteúdo da psicologia, é claro então que vários indivíduos que se acham em condições idênticas de trabalho e de adaptação à vida, terão as mesmas exigências e as mesmas necessidades e a generalidade destas vencerá as exigências e necessidades de caráter individual, que desempenham então um papel secundário. Não podemos deixar de tomar em consideração a existência do indivíduo como tal, sendo um fato que não podemos negar, mas desde que esse indivíduo pertence a certa classe, isto é, a determinado grupo, que vive nas mesmas condições de adaptação à natureza, os interesses dos indivíduos estão sob a hegemonia dos interesses do seu grupo ou classe, da psicologia de classe que desempenha o papel preponderante na sociedade.
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A causa principal em certo período na evolução da vida da sociedade será, portanto, a luta de classes como a luta dos explorados contra os exploradores, como luta para o aniquilamento da exploração. Sendo a exploração possível, principalmente devido ao fato de estar os meios de produção nas mãos de um pequeno grupo (classe capitalista) e não nas mãos dos produtores, a luta toma por isso a forma de luta pela socialização dos meios de produção, pelo comunismo. Aqui, contudo, devemos deter-nos sobre mais um fenômeno, para compreender o mecanismo da evolução social. O indivíduo sente-se consciente e livre, cada ato seu é a revelação da sua vontade livre. Falando, porém, da sociedade que se desenvolve segundo leis determinadas, cumpre-nos negar a liberdade de cada indivíduo. Mais ainda, a vida da sociedade como vimos antes, se compõe da atividade social, isto é, da atividade de todos os indivíduos; mas, sendo a atividade de cada indivíduo o resultado de sua livre vontade, acontece que a vida da sociedade é baseada sobre a liberdade. Tropeçamos assim de novo, em uma dificuldade a qual, contudo, devemos vencer. Ou estabelecemos que a vida da sociedade se dá segundo certas leis e então teremos que negar a atividade livre; e negando a atividade livre cumpre negar a atividade consciente, ou ao afirmar a atividade livre do homem, teremos que perguntar: como pode um conjunto de atos livres tornar-se uma necessidade (determinismo)? Ora, já que vimos que a vida da sociedade está sujeita às leis determinadas (determinismo), e deste modo, voltamos novamente à questão de liberdade e necessidade (determinismo) na vida social, que o materialismo anterior a Marx não conseguia explicar.
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Lição XI Liberdade e Determinismo: Atividade Social e Causalidade Como se transforma a liberdade da atividade individual em determinismo social? A bola rolando, se tivesse noção do ato de rolar, pensaria que rola por sua própria vontade. Liberdade e livre arbítrio. A barreira e a fresta pela qual passa a corrente. Como imaginaria a correnteza o seu atravessar se tivesse consciência deste ato. O arbítrio e os motivos. A luta entre os motivos. O motivo mais forte e a escolha. O caráter, a educação, as condições são que determinam a escolha. O determinismo dos atos humanos. Como podem prever os atos. Como se podem saber os motivos? As causas principais da atividade humana. As divisões em classes e grupos e seus distintos e as vezes opostos interesses. Os interesses determinam os atos e os motivos. A sociedade e os interesses dos camponeses e dos senhores feudais. A sociedade burguesa, os interesses dos operários e capitalistas. A generalidade dos interesses/motivos e a semelhança com os atos dos indivíduos. A psicologia do homem é determinada pelo trabalho em todas as suas formas, as condições gerais de vida. Psicologia geral dos camponeses. Nuances psicológicas internas. As psicologias internas. A psicologia da classe operária e dos distintos grupos internos. Conhecendo a psicologia os interesses de uma classe, podemos predizer os atos dos indivíduos que formam essa classe. O determinismo e resultado da atividade “livre”. Determinismo social e fatalismo. O determinismo social é uma arma da atividade humana; os atos livres são transformados em determinismo social.
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Detivemo-nos na última lição na questão da liberdade e determinismo. O indivíduo, não obstante a dependência de sua psicologia de classe ou grupo, sente-se como homem livre, que tudo faz por sua própria vontade. E apesar disso, a vida da sociedade que é a soma dos indivíduos se realiza segundo certas leis determinadas. Surge, portanto, a seguinte questão: como se podem harmonizar liberdade e determinismo, segundo o qual se operam os fenômenos sociais. Tentaremos gradualmente responder à pergunta formulada. Existe o homem com sua atividade que brota de sua vontade? Assim pelo menos, explica ele suas ações. De onde vem tal sentimento de livre arbítrio, e como encaixá-lo no determinismo e na causalidade social? Se formularmos deste modo a questão poderemos achar a gênese da causalidade e do determinismo social. Tomemos, por exemplo, uma bola à qual se deu um impulso e que começa a rolar. Imaginemos que a bola ficou rolando, ficou consciente do seu ato de rolar, sem saber para que foi impulsionada. Ela explicaria o seu rolar pela sua vontade livre. O mesmo se dá com a vontade livre do homem. O homem está consciente do ato que realiza, mas desconhece as causas que provocaram ou determinaram o ato. Assim responderam à questão, Hobbes, Spinoza, Leibniz. A resposta, porém, não é completa: se a questão fosse apenas da consciência do ato, talvez fosse muito fácil solucionar. Mas se a questão da liberdade e determinismo, foi tão palpitante para os gênios filosóficos do passado e ainda até hoje não foi, para todos, solucionada, isto quer dizer que existe algo mais, a espera de uma solução. A bola rola e pode esta gritar bem alto que rola por sua própria vontade, mas é obrigada a rolar sem poder parar. Mas outra coisa se dá com o homem. Este ao praticar um ato pode
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perguntar a si próprio: devo ou não praticar este ato? Já aqui existe um momento de escolha. A atividade do indivíduo é dessa forma, dependente de sua escolha. O homem ao praticar um ato está às vezes diante de um dilema, pode fazer de um ou de outro modo. Esse fato de escolher é que não pode ser negado, nem evitado. Devido a este momento de escolha torna-se a questão da vontade livre mais fácil de resolver. Continuemos porem a análise. Quando surge a pergunta: fazer ou não fazer, há naturalmente motivos para o sim ou para o não. Esse conflito de motivos termina pela vitória de um destes, que determina a vontade do homem. Assim é que esse fato se dá realmente na vida. Tomemos por exemplo uma corrente de água, contra a qual se constrói uma barreira que detém a corrente. A água tem por hábito correr e faz pressão contra a barreira. Na barreira, casualmente havia alguns pontos fracos, e finalmente a água irrompe por uma fresta que foi aberta. Imaginemos que, de repente a corrente de água se torna consciente não só do trabalho (ação) de correr (como aconteceu com a bola), mas também das aspirações de vencer a barreira. Encontrando o obstáculo desta, e forçando os pontos fracos, está a água diante do problema de encontrar a saída (satisfação de seu desejo ou aspiração) que ela própria pode escolher. A corrente de água, que fora dotada de certa consciência, encontrará na barreira um entrave, um obstáculo de um lado e por outro há uma vontade, uma aspiração de vencer tal obstáculo. A corrente de água quer continuar sua obra de correr, não obstante o obstáculo encontrado. Trava-se aqui uma luta entre a corrente consciente com a vontade de correr e a barreira. A fresta feita na barreira deixou passar a água. A corrente forçou a barreira toda, procurando saída em todos os pontos fracos que quis arrombar, mas só conseguiu passar pela fresta que
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havia arrombado. Aqui tivemos o momento da consciência e o livre arbítrio. A atividade humana é determinada por vários motivos. A força geral da inércia é a barreira. Os motivos da atividade são quase representados pela corrente que impele o homem à atividade. A fresta pela qual irrompe é este ou outros motivos que vencem. Uma vez que a corrente forçou todos os pontos e apenas irrompeu pelo mais fraco ou no ponto onde a corrente é mais impetuosa, temos aqui uma certa escolha, livre arbítrio, quando todo o processo é iluminado pela consciência. Na realidade a irrupção é determinada ou pela fraqueza da barreira ou pela força da corrente em determinado ponto. O momento de vitória de um motivo sobre outro depende de uma série de causas e a “vontade livre” desempenha aqui papel de somenos importância. Por exemplo: se tomamos um esfomeado, que passa diante de uma vitrine de comestíveis, ocorrerá nele uma luta dos motivos da fome com os das ideias de justiça: que não se deve desejar o alheio e do simples medo de furtar, porque será preso e punido, etc. O resultado dessa luta dependerá em certo sentido do caráter do homem, da sua educação, das condições de momento, etc. Em uns, os assim chamados conceitos morais serão mais fortes, devido a sua educação, conceitos enraizados, etc., em outros o medo do castigo é que determinará sua atividade, vencendo portanto, outros motivos. Se colocarmos esse homem em uma posição tal que seu ato possa passar despercebidos para todos, o instinto da fome será mais forte que o do medo e vencerá o primeiro motivo. Em um terceiro pode sempre vencer o motivo da fome e roubará sem conflito interior. Ve-
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mos de fato que se dá aqui uma luta entre dois motivos. Vencendo o mais forte. Ao homem, porém, ao realizar seu ato, parece-lhe agir segundo sua livre vontade e escolha. Esses exemplos nos esclarecem que todos os atos individuais são determinados por determinados motivos. A atividade humana, os atos do homem social, são dessa forma pré-determinados, são provocados por motivos. A necessidade histórica, isto é, a necessidade da atividade social humana é por isso chamada determinismo. Mas se todos atos são determinados por certos motivos, surge uma nova pergunta: podem ser previstos todos esses motivos, suas causas podem ser descobertas e explicadas? Aqui teremos que voltar à questão da formação da psicologia de cada indivíduo e de distintos grupos. Vimos que na primeira fase da evolução econômica o homem não representa um indivíduo independente, mas é como membro de um rebanho, psicologicamente semelhante a todos os outros indivíduos da sociedade inteira. Havia naturalmente diferenças físicas; e se mais tarde puderam em certo grau criar-se pequenas diferenciações psicológicas, só puderam evoluir com a evolução da técnica e com o aparecimento da divisão social do trabalho. Com o desenvolvimento da técnica e com o surgimento da divisão social do trabalho apareceram distintos grupos econômicos, os quais com o tempo formaram todas as diferenciações e contrastes psicológicos que mais tarde notamos na sociedade. Tomemos a sociedade humana. O que notamos aí? Vemos homens com necessidades, aspirações e paixões e certas obrigações. Certas necessidades, aspirações e paixões são comuns a todos os homens, porque não se pode imaginar, por exemplo, uma sociedade que não necessite de meios de sub-
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sistência, de meios de procriação etc. Queremos prever a atividade do homem com exatidão, podemos dizer sem receio de errar que o homem, em geral, sempre aspirará a satisfazer suas necessidades vitais e por isso desenvolverá seus meios de luta contra a natureza, desenvolverá o trabalho e a atividade social. Mas como e de que modo satisfazem os homens suas necessidades? Aqui já não há mais generalidade. Na sociedade feudal, por exemplo, a maioria da sociedade é de camponeses; os camponeses como tais terão em qualquer tempo o mesmo modo de adaptação à natureza, por conseguinte, os mesmos modos de satisfazer suas necessidades. Todos os camponeses terão mais ou menos os mesmos interesses (pequenos traços característicos, não tem aqui importância alguma). A classe camponesa inteira representará um todo, uma unidade, com certos e determinados interesses, pelos quais poderá ser predeterminada a atividade de cada camponês (aspiração de se libertar do jugo feudal, livre locomoção, conseguir uma propriedade em terras, etc.). Tomando a classe feudal como tal, poderemos segundo seus interesses mais ou menos singulares também predizer a aspiração e atividade de cada senhor feudal (aumentar o seu domínio sobre as terras, ocupar um lugar superior na hierarquia do poder, limitar o mais que for possível o poder do rei, escravizar na mesma medida todos os camponeses, etc.). Tomando a sociedade contemporânea, também poderemos fazer o mesmo. Conhecendo os interesses de cada classe e até mesmo de cada grupo, não é, portanto, difícil predizer e determinar suas aspirações e suas atividades, bem como a dos indivíduos a ela pertencentes. A classe operária como um todo, porquanto todos os operários se encontram em condições iguais, no sentido de que todos são obrigados a vender o seu trabalho, terá
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interesses gerais cuja expressão consiste na aspiração de aumentar o salário e diminuir a exploração. A classe capitalista, não obstante divergências internas, também apresentara uma aspiração geral, como em tudo, determinada por interesses, que estarão diametralmente opostos aos interesses da classe operária e terá sua expressão na aspiração de diminuir o salário dos operários e aumentar a exploração. Nessa direção determinada irá também a atividade dessas classes na sociedade capitalista. Vemos, portanto, que podemos pré-determinar a direção que tomará a atividade dos vários grupos sociais. Porque conhecemos de antemão os motivos de sua atividade. Mais ainda, conhecemos as causas pelas quais os motivos são determinados, conhecemos os interesses. Vemos, portanto, que a pergunta: o que determina a psicologia?, deve ser respondida com: o trabalho em todas as suas formas, que cria finalmente as condições gerais da vida. Estando a maioria dos camponeses nas mesmas condições de trabalho terão por isso a mesma psicologia, embora entre camponeses possa haver certa diferenciação, isto é, certa parte dos camponeses começarem a viver em outras condições de trabalho, mas isso não passará de uma nuance especial na psicologia dos camponeses. O modo geral da psicologia camponesa será expresso, por exemplo, no apego à terra, sentimento de dependência da natureza, amor ao trabalho e à propriedade, conservantismo de seus costumes e limitação em seu modo de viver. O camponês diferenciado (o rico, o kulak) também estará debaixo da psicologia geral, possuindo, a par disto, uma nuance psicológica, como o desejo de aumentar suas terras, aspiração a riqueza, à exploração, etc. O mesmo se dá com a classe operária. Também terá uma psico-
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logia geral e nuances das camadas diferenciadas, como operários aristocratas, funcionários, especialistas, etc. Quanto mais constatamos, que a psicologia é determinada pelas condições de vida (trabalho) de dado indivíduo e que a generalidade da psicologia de diversos indivíduos que vivem em condições econômicas idênticas, forma a psicologia de classe, mais podemos prever a atividade desta ou daquela classe e na maioria dos casos a atividade individual de seus membros. Assim, vemos como a questão da liberdade e determinismo é resolvida graças a termos achado os motivos da atividade humana, e a chave da previsão desses motivos. E também, porque conhecemos as causas dos motivos, a fonte de onde emanaram. Não falamos aqui, por isso da atividade individual como tal, mas da necessidade, segundo a qual a maioria de uma classe deve manifestar sua atividade, e por isso podemos prever e adaptar a atividade de uma classe às suas necessidades. Está claro que a necessidade histórica não exclui a “livre” atividade humana, mas, ao contrário, é o resultado dessa atividade “livre”. É nisso que consiste a grande diferença entre o determinismo na natureza e o determinismo na vida social e na história. O determinismo na natureza consiste em que vários fenômenos resultantes de leis naturais (movimento dos planetas, estações do ano, eclipses solares, etc.) devem realizar-se na natureza. A ciência os pode prever, indicar o tempo em que se darão, mas o homem não tem no desenvolvimento deles nenhuma participação. Se o que se passa na vida social fosse um determinismo do mesmo caráter, o determinismo social se transformaria em fatalismo. Entre o determinismo social e natural há, pois, uma grande diferença. Essa diferença
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consiste em que na natureza tudo se realiza fora de nossa influência e atividade, enquanto que o determinismo social se dá graças à nossa atividade. As leis do determinismo social são, por isso, também as leis da atividade humana. O determinismo social implica a atividade humana como um dos seus elementos necessários. Excluindo esse elemento não haverá determinismo histórico. Se excluirmos, por exemplo, o proletariado combativo da sociedade capitalista, não haverá então determinismo histórico do socialismo. Está claro que o proletariado não surgiu do nada – é consequência determinada pelo desenvolvimento da técnica –, mas esta última também é revelação da atividade humana. Todo o determinismo social consiste na atividade humana; seu material é um tecido de atividades humanas. A atividade, porém, é determinada, porque, devido as condições econômicas objetivas, os motivos da atividade são também determinados; as próprias condições econômicas são também o resultado do estado da técnica, da atividade humana condensada. As leis da evolução social são expressões das leis da atividade humana. Podendo prever os atos humanos, isto é, a atividade social, podemos também estabelecer a marcha da evolução social e agir no sentido em que se deve realizar.
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Lição XII Direito e Arte do ponto de vista materialista Nas lições anteriores esclarecemos os fundamentos do materialismo histórico. Agora, tentaremos apontar como se devem explicar fenômenos sociais complexos, pelo método materialista. Tomaremos por isso dois fenômenos sociais diversos, pertencentes ambos à superestrutura da sociedade, diferindo, porém, quanto ao seu conteúdo. Tomaremos o direito por um lado, e a arte por outro, e tentaremos explicá-los segundo o método materialista. As ligações existentes entre o direito, que é uma relação social, e as relações de produção dominantes na sociedade, são evidentes. Estabelecemos, por isso, apenas a dependência entre aquelas e estas, para apontar como agem umas sobre as outras. A arte parece estar completamente desligada das relações de produção. Devemos, portanto, ver como pode a arte ser explicada materialmente. Sendo o Estado uma organização da classe dominante, cujo fim é fortalecer e santificar seu poder fica evidente que o direito de Estado (direito público) tem suas raízes nas relações de classe, existentes na sociedade. Sua dependência das relações de produção e por sua vez da evolução das forças produtivas é manifesta. Um pouco mais complexa é a ligação entre o direito civil e as relações de produção. Explicaremos, portanto, esta questão de modo concreto. Tomemos um exemplo concreto do direito: o direito de sucessão, e o analisemos. Vejamos primeiramente se as formas de sucessão foram sempre as mesmas e se o conceito de sucessão é inato no homem, se brota espontaneamente de seu ser, isto é, se o direito de sucessão nasce de um conceito
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interno que o homem possui de que seu filho é a continuação da sua existência, do seu “eu” (o ponto de vista de direito natural). Neste caso, se o direito de sucessão tivesse crescido sobre esta base, seria um fenômeno que sempre existiu e que deve existir sempre. Ou então, se o conceito de sucessão é um conceito histórico, isto é, surgido em determinada época e sem ligação com a ideia de continuação da existência dos pais pelos filhos. Neste caso, se o direito de sucessão é um fenômeno histórico, naturalmente não existiu sempre e nem existirá para sempre. Se admitirmos que o conceito de sucessão é inato, isto é, que está ligado à natureza do homem, como poderíamos explicar a diferença entre o direito do primogênito e o dos demais filhos, entre filhos e filhas, ou entre herdar bens móveis e imóveis? Explicar as variações do direito de sucessão pelas leis internas do espírito humano (a princípio, esse espírito julgava que somente filhos ou primogênitos podiam herdar; mais tarde chegou a admitir que também filhas podem herdar), seria uma pura fantasia. O espírito humano deveria então ser tão multiforme como as próprias formas do direito de sucessão, entre os vários povos e as várias épocas de sua vida cultural, devendo mudar constantemente sua forma de existência. Deve-se procurar então uma solução, para compreender o fenômeno do direito de sucessão e suas modificações. Em primeiro lugar, é evidente que o direito de sucessão está intimamente ligado ao direito de propriedade, porque o conteúdo daquele nasce deste último. O instituto da propriedade surge em uma determinada época da evolução da técnica. Passo a passo, com o desenvolvimento das formas de propriedade, se desenvolve também o direito de sucessão, com todas as suas modalidades. Se havia, por exemplo, pouca terra, foi-se obrigado a limitar o direito de sucessão de todos
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os filhos, para não desperdiçar a terra. As mulheres que desempenhavam papel de submissão, sem independência, dependentes do seu marido, não gozavam, por isso, do direito de sucessão. Na sociedade feudal, quando o senhor feudal era uma espécie de rei em seus domínios, devia ser destacado o primogênito como sucessor principal, e se formou assim todo um sistema de sucessão e uma escala de sucessores. Cada determinada forma de propriedade tinha sua forma estabelecida de sucessão. Na sociedade burguesa, podendo a propriedade ser representada em dinheiro, em riqueza fluente, sem ligação com a produção, já assume o direito de sucessão outra forma diferente da sociedade feudal. Portanto: o direito de sucessão é, antes de tudo, dependente do direito de propriedade que é como já sabemos, por sua vez, dependente da evolução da técnica e das relações de produção, que se estabelecem na sociedade. É este o método do materialismo histórico ao observar os múltiplos fenômenos da sociedade. Deve-se ver primeiramente se o fenômeno é constante, eterno, e ver de que é que depende e o que determina sua própria dependência. O mesmo acontece quando às outras formas de direito e a todo o direito civil e criminal. Mais difícil será explicar as relações entre a arte e a evolução das forças produtivas. Deveremos aqui distinguir primeiramente o lado material da arte e seu conteúdo. As relações entre o lado material da arte e a técnica são evidentes: tomando, por exemplo, a música, notamos que somente pode existir e se desenvolver sua riqueza e múltiplas formas com a existência e evolução da técnica (instrumentos), porque para a música são necessários instrumentos musicais; isto quer dizer, em outras palavras, que a própria arte exige também certa técnica. Esta se constrói também sobre o trabalho indireto e sobre a divisão social do trabalho; a forma de trabalho que é
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aplicada na criação da arte, não obstante ter por finalidade a satisfação das necessidades estéticas do homem, não está em contradição com o trabalho da satisfação das necessidades vitais, porque paralelamente com o desenvolvimento das necessidades vitais também surgem as necessidades estéticas. A questão, porém, é: em que consiste o conteúdo da arte e de que depende? A arte em geral é certa expressão dos sentimentos humanos – manifestações, aspirações, expressão que deve ser corporificada em certa forma harmônica (forma estética)18. Esta expressão harmônica – pode tomar a forma de sons, palavras, linhas ou cores – é a arte. Qual é a causa que determina essas expressões harmônicas? É claro que essas estão em primeiro lugar ligadas às manifestações e aspirações dos próprios homens. A arte está deste modo íntima e profundamente liga à vida, se assim não fosse, não expressaria as manifestações e as aspirações dos homens. Em uma sociedade mais desenvolvida terão lugar sentimentos e aspirações diferentes dos de uma sociedade atrasada. Os sentimentos e as aspirações de uma classe oprimida não são os de uma classe dominante; e desde que a sociedade deve ser observada como um todo formado de grupos e classes, com psicologias diversas e, consequentemente, com aspirações e sentimentos distintos, o artista somente transmite os sentimentos e aspirações dos que lhe estão mais próximos, com os quais está ligado e convive ou, em outros termos: dos do seu grupo ou sua classe, É pois, claro que, em diferentes 18. Aqui não nos deteremos na gênese da arte em sua relação com o trabalho. Também não iremos falar do papel dos jogos na origem e desenvolvimento da arte. Isso nos tomaria muito tempo. Queremos somente estabelecer aqui a ligação entre a arte e as relações sociais e deste modo sua dependência da evolução das forças produtivas e das relações de produção.
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épocas, o conteúdo da arte se modifica de acordo com as mudanças e as alterações das sensações e do papel de vários grupos sociais. Há, porém, outro fenômeno importante que também deve ser acentuado. A arte só pode ser criada em uma sociedade que se acha em certo grau de evolução do trabalho indireto e da divisão social do trabalho. Os próprios artistas a princípio não poderão sair do meio daqueles que trabalham sempre para satisfazer suas necessidades vitais; os artistas por isso são recrutados nas camadas sociais que dispõe de mais tempo sendo mais livres e mais despreocupados. Assim, expressarão antes das manifestações, sentimentos e aspirações daqueles entre os quais se encontram e com os quais convivem e sentem, isto é, da sua camada social. A arte, por esta razão, será naturalmente por seu conteúdo uma arte de classe. Além disso, a arte servirá não só como expressão harmônica de sentimentos dados na evolução da humanidade, como também poderá fortalecer certas formas da vida social ou para sua modificação, ou ainda, para sua substituição. O conteúdo e caráter da arte ainda mais se ligará aos interesses e exigências da classe que mais se destaca, servindo como meio de fortalecer as posições e as condições sociais em que se encontra. De uma arte inconsciente de classe ou, em outros termos, da arte de certa classe, se transforma pela evolução posterior, em consciente arte de classe, isto é, em uma arte que serve aos interesses de determinada classe. Dado que a arte é uma forma de expressões harmônicas, terá sempre essa feição, porque sem o elemento de harmonia nunca haverá arte, mas o conteúdo da arte corresponderá, de um lado, ao estado geral da sociedade dada e, de outro, será ditado pelas condições e aspirações da classe que a destaca.
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●●● Na primeira fase da evolução humana, na sociedade em que já se destacam chefes, mas onde ainda não há grupos bem diferenciados nem luta, teremos aí uma arte que apresenta ainda, em certo sentido, caráter popular (a Ilíada de Homero e as lendas em geral). Essa arte, cantará os atos heroicos dos chefes amados (dirigentes) e também da massa, entre os quais ainda não existia o abismo entre ricos e pobres (na Rússia foram as biliné, lendas que descrevem atos heroicos das massas). Em uma fase posterior da divisão do trabalho, já teremos uma arte de classes dirigentes, que cantará sua vida, lutas e aspirações e que idealizará em certo sentido a ordem existente em dada sociedade. Mas, ao mesmo tempo, já se pode encontrar em estado embrionário um começo de arte nas classes oprimidas. Essa arte não pode comparar à arte dominante pelo seu conteúdo harmônico, mas já é um reflexo da vida e luta das classes oprimidas (sátiras sobre as classes dominantes, etc.). Na evolução posterior da sociedade começa a classe dirigente a degenerar, a esfacelar-se; torna-se um elemento parasitário e a arte dos oprimidos começa a se evidenciar e fortalecer-se com elementos novos. Nessa nova arte encontramos sátiras ásperas sobre as formas caducas e manifestação de certa simpatia com a nova ordem (operamos aqui no campo literário da arte, por ser mais fácil ilustrar certos momentos). Devemos notar que lentamente se dá certa evolução no conteúdo dos próprios sentimentos harmônicos. Os sentimentos harmônicos não são constantes, eternos. Nem sempre e em toda parte são sentimentos harmônicos os mesmos
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(gostos estéticos). Os sentimentos dependem do estado geral da cultura da sociedade dada, com suas imaginações. Mas a princípio, é difícil encontrar o conteúdo social da própria estética. Deve-se analisar, aqui, a arte por épocas. Em época de decadência, degeneração e crepúsculo, são os sentimentos harmônicos reflexo de abatimento moral, pessimismos, melancolias, ascetismo, etc. Em época de renascimento, são contrários aos da época de decadência: exprimem a aspiração de combates e lutas, de gritos de conquista e entusiasmo, etc. Em época de declínio, encontramos a decadência e o romantismo. No que concerne ao conteúdo da arte, a própria descrição e não a sua forma harmônica (estética), está mais intimamente ligada à época dada da evolução social e à classe ou grupo que representa19. Podemos, portanto, estabelecer que a arte, refletindo a vida, as aspirações e as ideias de certa classe, tem sua existência completamente ligada a técnica e em sua forma e conteúdo depende do desenvolvimento das relações sociais e deste modo também da evolução das forças produtivas. Entre a arte e as forças produtivas é necessário passar por uma gradação completa de várias fases: forças produtivas, relações de produção, relações sociais, manifestações psicológicas e sua expressão harmônica então, chegaremos à arte.
19. Tchernichevski tentou explicar a estética em geral do ponto de vista materialista, em certo sentido. Escreveu uma dissertação sobre estética na qual demonstrou que o conceito do “belo” depende das condições de vida (o conceito de uma moça bonita não é o mesmo na aldeia ou na cidade, na Rússia ou em Paris). O conteúdo de beleza depende da sociedade em geral e da classe em particular. O mesmo se dá em relação à música e à escultura
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Lição XIII A Religião do ponto de vista materialista Em nossa lição não nos ocuparemos com questões sobre a história da religião e as causas das diversas formas de religiões existentes entre os povos primitivos. Tentaremos explicar a gênese, o conteúdo social e o papel que a religião desempenhou na história da humanidade. A religião é, por um lado, o resultado da necessidade que teve o homem de compreender e conhecer os fenômenos da natureza, dos quais dependia inteiramente, por outro lado, da sua inexperiência e incapacidade em compreendê-los. A influência do homem primitivo, pouco desenvolvido e inexperiente, sobre a natureza foi muito limitada – o homem só conhecia a natureza externa pela sua influência sobre ele. O homem primitivo sentia a cada passo sua submissão ao mundo exterior, aos fenômenos do meio em que estava. A princípio procurou meios de dominá-los, submetê-los a si. Nasceu então a necessidade de conhecer o mundo circundante e compreendê-lo. E não fazendo distinção entre ele próprio e os outros fenômenos da natureza, humaniza então a natureza, como diz Feuerbach (animismo). Sendo as relações sociais de então muito estreitas, limitadas aos ramos de parentesco de sangue, procurou o homem por meio dessas relações, explicar os fenômenos da natureza. As faces “más” da natureza, as apreciava como ruins para ele e os mesmos meios que empregava para evitar o lado mau nas relações com outros homens, empregava também para com os “maus” elementos da natureza. E quando na sociedade surgiu a diferenciação de seus membros, quando a
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divisão social do trabalho tornou possível a certos membros o se destacarem, ocuparem lugar saliente, começarem a dominar – foi então, que o homem primitivo começou a “divinizar” os fenômenos importantes da natureza, submetendo-se a estes. Todos os fenômenos impressionantes tornaram-se para ele revelação de grandes forças “dominadoras”, como “Deuses”. E cada fenômeno importante que atrai sua atenção, o explica por uma força boa ou má, segundo sua significação para ele. Desse modo agrupou os fenômenos naturais em deuses grandes, bons e maus, etc. Nessa tentativa de explicar a natureza e seus fenômenos é que está a gênese da religião e da ciência. Dessas explicações começa a nascer a concepção do mundo, do homem primitivo. A princípio, a religião abrange no círculo de sua influência todos os fenômenos da natureza. Com a evolução da sociedade começaram a destacar-se diversos fenômenos, e alguns colocam-se até em oposição a esta, tornando-se seus adversários e provocando sua destruição. Este fenômeno é que deve ser analisado mais profundamente. Quando o homem começou a interessar-se por certo fenômeno, começou ele desde então a observá-lo, atribuindoo a uma certa força que está acima do homem e que o domina. Como o homem primitivo era muito fraco na luta contra a natureza, considerava quase todos os fenômenos como forças superiores, divinas, que agem sobre ele e sobre as quais não sabe como agir. Nisso já há uma contradição entre a religião e a ciência na primeira época do desenvolvimento da religião. Com efeito, desde que determinado fenômeno atrai a atenção do homem, tem que investigá-lo mas, por outro lado, atribuindo a causa desse fenômeno a uma força divina superior, se opõe com isso ao estudo do dado fenômeno, impedindo desse modo os primeiros passos da ciência, porque a ciência exige
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a investigação do fenômeno, isto é, achar a ligação do fenômeno dado com outros fenômenos; mas, se a causa do fenômeno é atribuída a uma força divina, desaparece com isso a possibilidade de que esteja ligado a outros fenômenos ou causas. Temos, portanto, aqui dois momentos: 1º) o momento de observar e estudar os fenômenos, 2º) o momento de explicá-los, que impede a investigação. Na evolução posterior da religião, sai por completo da sua competência o primeiro momento, ficando somente nesta, o segundo, isto é, o momento de explicar os fenômenos, o que já não podia levar a nenhum progresso, mas, pelo contrário, impedi-lo. Esta contradição desenvolvia-se cada vez mais no decurso do desenvolvimento da ideologia: a observação e o conhecimento (na fase da experiência), avançam em direção à ciência, e a explicação, em direção a religião. Temos aqui a marcha da evolução, segundo a tríade de Hegel. A tese, isto é, a explicação dos fenômenos, atribuindo-os a forças sobrenaturais, sobre as quais o homem não pode agir; a antítese, isto é a observação, o conhecimento, e na base da experiência, investigação dos fenômenos, submetendo-os a si, ou aproveitando-os para os interesses da humanidade; a síntese, isto é, uma nova espécie de explicação dos fenômenos que não os atribui mais a forças sobrenaturais, mas que se baseia na explicação científica e na experiência. O elemento da fé existe na síntese, porque, por isso mesmo que se baseia na ciência, acredita que esta deverá abranger com o tempo, no círculo das suas explicações, todos os fenômenos do mundo, orgânicos e inorgânicos, e dominá-los. Uma tal fé é um elemento positivo no progresso da ciência. Mas a ideologia não se desenvolvia de modo tão simples, onde a tríade se apresentasse tão facilmente. Uma coisa,
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como uma ideologia acha-se, em seu desenvolvimento, intimamente ligada às relações sociais e torna-se dependente delas. Se assim não fosse, somente como no seu início, tentativa de acumular experiências e explicar os fenômenos, e se evoluísse somente segundo essa lógica, haveria já centenas de anos que a religião teria sido substituída pela ciência. Assim, porém, não aconteceu e nem poderia ter acontecido. A religião, em seu desenvolvimento, desligou-se de seu conteúdo lógico, colocando-se a serviço desta ou daquela classe, ou camadas, em suas lutas pelo poder e domínio. Diferentes campos da religião começam a desligar-se e destacar-se dela, desenvolvendo-se segundo sua própria marcha. Mas a parte principal e mais influente, ligou-se a este ou aquele domínio de classe. Ao estudar a história da religião, nota-se, de um lado, a formação de certos ramos que se desligam aos poucos da religião e formam a base da ciência e, por outro lado, observase que a parte explicativa da religião permanece. A “religião”, no sentido atual da palavra, se acha ligada à correspondente organização social, a Igreja, colocando-se a serviço das classes dominantes, como meio de escravização e de obscurantismo. Vimos que a religião em seu início foi uma tentativa de explicar o incompreensível que circundava o homem primitivo. Essa explicação atribuía aos fenômenos naturais as relações reinantes na convivência dos homens. Na sociedade, o homem podia evitar certos atos prejudiciais a ele pelo suborno do chefe supremo, por exemplo, o patriarca. Esse fato o homem transportou aos fenômenos da natureza, no sentido de poder evitar também as más ações da natureza, subornando os deuses. A religião é, assim, não só uma imagem, uma fé, um estado psicológico do homem, como também se
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torna causa da atividade do homem, em se subordinar à natureza. Cada religião devia ter, portanto, um culto. A religião primitiva não era uma crença abstrata, esta exigia atos e atividade. O culto em diferentes épocas podia adotar formas diferentes, o seu conteúdo, porém, era sempre a divinização de certas forças, que exigem, segundo a imaginação humana, certa atividade humana que se expressa em trazer sacrifícios, preces, ao Deus dominante, para facilitar a vida do homem, e conseguir coisas que lhe eram necessárias. A finalidade do culto é submeter a si as forças naturais que agem sobre o homem. É por isso que as forças naturais não existiam para o homem primitivo como unidade, mas como forças distintas; esforçou-se por subordinar cada fenômeno isoladamente, para adaptar-se a eles e explorá-los. O conteúdo da religião, o culto, pode por isso ser considerado, do ponto de vista biossociológico, como uma suposta adaptação do homem à natureza, que naturalmente nenhum resultado prático trazia. É evidente que quanto mais experiências o homem acumula, mais deixa de explicar teologicamente os fenômenos. Começa a interpretar cientificamente os fenômenos, e começa o processo histórico de se destacarem diversos campos, que saem do domínio da religião. Como se realiza este processo? Sabemos pela história da religião que ela esteve ligada à feitiçaria. O homem primitivo, por um lado, sofria por certos fenômenos da natureza externa, os quais atribuía a certos deuses, mas por outro lado, sentia também às vezes, dores internas, cuja origem não compreendia, porque não via sua causa na natureza e, enquanto procurava evitar os sofrimentos exteriores, subordinando a Deus, por meio de sacrifícios ou preces, procurava evitar as dores interiores por meio de ervas ou
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passes de mágicos feiticeiros. Deste modo, ficaram ligados os dois momentos. Os que acumularam mais experiências puderam auxiliar outros homens, em suas dores; tornam-se os intermediários entre o homem e as forças da natureza externa, ou dos deuses, passando a ser dirigentes e executores do culto. A atividade que está ligada ao culto se destaca do trabalho comum. O culto pode somente ser exercido por determinado grupo social. O mágico liga-se ao sacerdote e se torna o intermediário entre Deus e o homem. A religião, em seu início e até mesmo em sua evolução posterior, procura abranger todos os fenômenos da natureza. Porquanto representa o culto, reflete as relações sociais, torna-se por isso cada vez mais complexa e cresce juntamente com a evolução social e seu desenvolvimento assume uma forma especial: isso porque, fenômenos simples que podem ser observados e por isso mesmo estudados, se destacam e são estudados cientificamente. A religião deixa, por isso, de explicar certos fenômenos naturais pela vontade de Deus. Se na sociedade patriarcal a religião abrange a todos os fenômenos naturais e sociais e suas explicações são demasiadamente simplistas, é porque a vida é também simples. Ao considerarmos, porém, a atual religião, notamos que, de um lado, paralelamente com a complexidade das relações sociais, a religião também se torna cada vez mais complexa, e, por outro, se destacam da religião os fenômenos físicos, químicos e até biológicos, que se tornam objeto de estudos científicos. Na religião só permanecem os fenômenos que tem ligação com o espírito humano e os fenômenos sociais, porque a sociedade
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burguesa tem interesse na explicação religiosa (teológica) dos fenômenos sociais20. Esta é uma marcha geral do desenvolvimento da religião, que depende, de um lado, do desenvolvimento da ciência e, de outro, das relações sociais. Os dois momentos se entrelaçam intimamente, mas não se pode fundir, porque seus conteúdos são opostos. O desenvolvimento da ciência provoca a morte da religião, os interesses das classes dominantes, exigem o fortalecimento da religião para que as grandes massas continuem sob seu domínio. Mas apesar disso, uma vez que a evolução das forças produtivas exige o desenvolvimento da ciência, já a burguesia não pode impedir seu desenvolvimento, pode apenas impor-lhe certos limites, sendo-lhe impossível detê-la. Desta forma, acontece que, juntamente com o desenvolvimento da ciência, desenvolve-se a oposição à religião. A religião surgiu da necessidade de explicar a compreender os fenômenos naturais; da busca de explicação a esses fenômenos foi que se constituiu o início da ciência. Mas com o decorrer do tempo, esta última abrange cada vez mais fenômenos, e se torna por isso cada vez mais largo seu campo e estreito o campo da religião, até que chegara uma época em que não reste mais lugar para esta. Costuma-se até mesmo conscientemente confundir religiosidade com certas manifestações humanas, como êxtase e a admiração. Com esta confusão pretende-se fortalecer a religião. Do ponto de vista materialista, tal fenômeno não tem nenhuma ligação lógica. Quando o homem se coloca ante a
20. Devemos observar que ultimamente nota-se entre a burguesia uma tendência em manter as massas na ignorância, rejeitando a explicação científica até mesmo dos fenômenos naturais mais conhecidos para ligá-los à religião.
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natureza, da qual representa uma partícula ínfima, quando alcança e abrange a infinidade do universo maravilhoso, formase no seu íntimo certo êxtase e admiração. Este estado contemplativo é o resultado de que o homem pode abranger com seu espírito a grandeza, sem saber de onde vem, nem para onde vai. Tal estado de êxtase existirá, talvez, sempre; o homem sempre admirará a natureza e essa admiração crescerá mesmo com o desenvolvimento da ciência, porque esta mostra ao homem cada vez mais grandezas e infinitos da natureza e lhe dá de mais em mais possibilidades de submetê-la a si, aumentando dessa forma seu domínio. A religião, pelo contrário, está sempre ligada ao culto em várias formas. Ela se acha ligada à submissão do homem a uma força superior a ele e que por isso pode ser submetida. Uma tal crença tem por isso de provocar um sentimento de impotência e submissão do homem, e levá-lo rapidamente ao desprezo de si próprio e ao fatalismo. A religião devera por isso morrer, juntamente com a evolução da ciência e com o aniquilamento da sociedade de classes. Os dominantes do céu serão destronados juntamente com os dominantes da terra.
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Lição XIV As grandes personalidades na História Em nossa última lição analisaremos o papel das grandes personalidades e das causalidades, na história, do ponto de vista materialista. O desenvolvimento da história está ligado a certos acontecimentos históricos, nos quais certas personalidades, de um lado, e certas casualidades, por outro, desempenham geralmente papel importante. É esse papel que devemos investigar. Falando dos acontecimentos históricos que reúnem muitos indivíduos (como revoluções, guerras, etc.), não trataremos de indivíduos, mas de coletividades, e já sabemos que a psicologia individual está comprometida na psicologia coletiva. Não podemos deixar de lado o fato de grandes personalidades desempenharem às vezes papel importante nesses acontecimentos. Ainda mais: esta ou aquela personalidade pode deixar de fato sinais de si, sobre a época em que vive ou atua. Não podemos negar, por exemplo, que Marx tem na história do movimento operário um dos mais importantes papeis; que idêntica influência exerceu em seu tempo, por exemplo, Napoleão, nos acontecimentos da França e Lenin no desenvolvimento da Revolução Russa. Surge então a pergunta: em que consiste o papel dessas personalidades e como se explica sua importância e, por outro lado, se o fato, de desempenharem eles, papel importante não estará em contradição com os fundamentos do materialismo histórico. Sabemos mais, que em certos momentos sucedem, na vida da sociedade, casualmente, devido ao encontro de diversas causas,
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grandes e importantes acontecimentos. Este ou aquele intento pode, de certa maneira, imprimir certa direção ao desenvolvimento posterior da sociedade (estando alguns cientistas pesquisando os meios de conseguir alimentos artificiais, imaginemos que na Rússia, determinado cientista consiga descobrir agora esses meios; um tal acontecimento viria colocar a Revolução Russa em caminhos bem diversos e abriria a ela perspectivas completamente diferentes)21. Essa questão do papel das personalidades e casualidades na história deve ser explicada cientificamente, pois sendo impossível prever quais personalidades irão nascer e quais causalidades irão acontecer, isso que não se poderia de forma alguma, prever a marcha da evolução. Para responder com correção essa questão, deve-se analisar o fenômeno das personalidades e casualidades e ver de que elementos são formados e em que consiste sua ação na história. Vejamos a personalidade de Napoleão; por que se destacou da média de todos os homens, e em que consistia a superioridade. Napoleão foi um grande estrategista e, graças à sua vontade forte e à sua enorme energia, exerceu grande influência sobre outros homens e pode dirigi-los. Com isso ele se destacou da massa circulante. Exatamente na época em que Napoleão surgia no palco da história, a França encontrava-se em uma situação em que essa extraordinária habilidade pôde ser aproveitada (caso, por exemplo, Napoleão tivesse existido cinquenta anos antes, suas habilidades estratégicas não seriam aproveitadas e não seria um “Napoleão”). Para que seu
21. Estas lições foram dadas em 1921 na época da fome na Rússia.
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talento estratégico pudesse aparecer e ser devidamente aproveitado, Napoleão teve que viver em determinada época correspondente. Mas a época da Revolução Francesa não foi por ele criada, antes, essa o criou como tal, e Napoleão, como personalidade, é por isso um produto de sua época. Portanto: para que as grandes personalidades possam ser aproveitadas, devem antes de tudo ter nascido em uma época correspondente. Somente a Revolução Francesa que colocou no poder a burguesia comercial e industrial, com suas aspirações naturais e vitais de expansão, deu lugar a que se manifestasse o talento de Napoleão. Se não houvesse uma pessoa tão hábil como Napoleão, não haveria talvez tantas vitórias, mas a França, com as suas aspirações expansivas de então, seria tal, com ou sem Napoleão; por outro lado devido à supremacia técnica da Inglaterra na situação econômica e política internacional, a França, mesmo com Napoleão, teve, finalmente, que perder a guerra. Além disso, deve-se tomar em consideração que Napoleão recebeu certa educação, teve certas ideias, realizou certas aspirações. Tudo isso não foi tomado fora da sociedade. Ao contrário, era o resultado do estado geral da sociedade francesa daquela época. Dessa forma, acontece que Napoleão se tornou “Napoleão” devido às condições sociais da época em que vivia. A própria personalidade é em sua maior parte o resultado das relações sociais, do meio social, que são determinadas, em última análise, pelas relações de produção. O mesmo se pode dizer de Lenin, que é um dos maiores estrategistas no campo da luta de classes e que possui uma vontade férrea e uma energia inquebrantável, e cuja influência sobre as massas é colossal22. O saber de Lenin e sua 22. No presente por ter sido escrito em 1921 e Lenin ter morrido em 1924.
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estratégia deram-lhe a possibilidade de manobrar magistralmente entre diversos grupos e classes sociais, precisar o estado da luta e a combatividade de cada classe. Sua vontade férrea e sua energia inquebrantável deram-lhe a possibilidade de constituir um partido comunista tão forte e consequente como o nosso. Não foi Lenin quem criou a Revolução Russa, mas a Revolução Russa o criou. Somente alguns aspectos da revolução Russa é que trazem a marca de Lenin, e se tais traços individuais emprestam à Revolução certa fisionomia, sua marcha geral, porém, é determinada pela atividade das grandes massas operárias e camponesas. Somente os camponeses descontentes, por um lado, e a forjada combatividade do operariado por outro, e a guerra, a crise no organismo capitalista, somente esses três fatores é que puderam ter determinado a Revolução. Lenin sabia muito bem investigar o pulso da Revolução, sabia como manobrar. Em geral, porém, sua marcha é determinada pela coletividade, pelas grandes massas e seus interesses. O mesmo pode se dizer do papel de Marx no movimento operário mundial, sobre o qual em determinado sentido deixou sua marca individual. Também podemos apreciar o papel das grandes personalidades e outro ponto de vista. Sendo a história toda, resultado da atividade humana (“são os homens que fazem a história”, disse muito bem Engels), acontece que cada indivíduo desempenha um papel na história, pois que a atividade coletiva nada mais é do que a soma de atos individuais. Nesse sentido, se diz que com certo ato ou com a soma de certos atos, começa uma nova época na história. A diferença entre a atividade (atos) de uma grande personalidade e a da média dos membros da sociedade é quantitativa e não qualitativa, mas a quantidade às vezes se transforma em qualidade e os
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atos das grandes personalidades podem se tornar inícios de grandes modificações ou revoluções, que o trabalho anterior dos homens médios havia preparado. Os grandes homens estão como que impregnados da energia de atos de milhares e milhões de homens das massas que os preparam. Tirem-lhes, porém, essa energia potencial e ficam eles (os atos dos grandes homens) sem força, e perdem sua significação. Se ao invés de épocas inteiras tomarmos diferentes momentos em distintas épocas, veremos que cada momento tem sua fisionomia. Essa fisionomia é em certa medida determinada pela atividade de personalidades que se destacam mais ou menos da média dos homens. A diferença aqui está somente no âmbito, na grandeza da atividade desta ou daquela personalidade e na proporção dos resultados. O papel dos grandes homens no conjunto dos acontecimentos é, por isso, limitado aos traços e cores individuais nos acontecimentos dados, e sendo que, na história, afinal não são traços e cores individuais que desempenham o papel mais importante, mas sim o conteúdo e a própria forma dos acontecimentos, claro está que o papel de um grande homem é proporcionalmente pequeno na história. Desta forma, podemos estabelecer que, segundo o ponto de vista materialista, não é completamente afastado e negado o papel de certas grandes e até pequenas personalidades. O materialismo histórico somente esclarece em que consiste essa atividade, o que a provoca e determina. A diferença entre grandes e menores personalidades está apenas na quantidade, mas não na qualidade, porque grandes personalidades não criam condições gerais, ao contrário elas próprias (os grandes homens) são criadas pelas condições e provocadas pelos acontecimentos.
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O mesmo se deve dizer também dos importantes acontecimentos casuais. Esses desempenham papel na história, representam um acontecimento histórico somente quando o terreno social está preparado para que possam despertar as forças letárgicas e a energia potencial. Sem isso, passam despercebidos na história. O descobrimento, por exemplo, de certa lei natural, só se poderá dar quando a ciência o preparou e só pode tornar-se um fator influente no momento em que a sociedade pode e deve aproveitá-lo. O materialismo histórico traz no conjunto de suas explicações o papel e a influência de grandes personalidades e de casualidades importantes. Os grandes acontecimentos nos servem para destacar na história épocas distintas; as grandes personalidades para compreender traços individuais contidos na história. O materialismo histórico tem sua maior significação em chamar o homem à ação. Tendo encontrado as leis da evolução social, vê quais as classes que podem progredir e lhes dá a consciência, a tocha que iluminará seu caminho histórico revolucionário. Até os últimos tempos os filósofos se esforçaram para compreender o mundo; agora, porém, apresenta-se diante da filosofia o problema de reconstruir o mundo, disse Marx. No materialismo histórico Marx sintetizou a compreensão da evolução da sociedade com a vontade modificá-la e nos deu o instrumento para essa modificação. O materialismo histórico tornou-se deste modo uma filosofia e um instrumento da classe operária e revolucionária, em sua luta pela libertação e na sua tentativa de formar um mundo novo.