Um milagre chamado Grace

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1 O pai de Lila a chamava de teimosa, mas ela preferia ver pelo lado positivo e dizer que era determinada. Hoje, só uma pessoa determinada sairia de casa e enfrentaria a tempestade. O céu estava cinza-chum bo; a chuva vertia em camadas. O apresentador do noticiário local disse que o vento havia virado árvores e derrubado barcos ancorados na baía de São Francisco. Esperando na porta de seu prédio, Lila agarrou seu guarda-chuva e se preparou para se molhar. Ela não iria trabalhar hoje, pensou. Podia ficar aconchegada debaixo do cobertor, tomando chá matinal e ouvindo a chuva bater levemente nas janelas. Ela podia escapar por oito longas horas do escritório de relações públicas Weatherby e Associados, o último lugar em que jamais pensara ou quisera trabalhar. No entanto, revendo sua decisão, Lila afugentou esses pensamentos tentadores. Ela não podia voltar para a cama. Não enquanto estivesse morando em um apartamento que ela chamava de Solar das Baratas. Não enquanto vivesse à base de atum e feijão da quitanda barata e poupasse cada centavo nos últimos seis meses para virar uma artista em tempo integral. Desde que rompeu

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com seu ex-namorado, Reed, em cuja casa havia morado nos últimos cinco anos, ela teve que colocar as finanças em ordem e preparar sua próxima exposição de arte. Desbravar uma tempestade não era nada comparado a pegar um pincel e fazer seu trabalho de verdade. Na escala de importância de Lila, tomar chuva era um ratinho chiando, e pintar, um elefante trombeteando. Sua melhor amiga, Cristina, parou sua perua Volvo na calçada em frente à porta. Ela insistiu em levar Lila para o trabalho, para que não tivesse que ir de bicicleta, na chuva. Lila saiu do prédio e abriu o guarda-chuva. Com o vento amarrotando seu poncho de flanela e jogando seu cabelo sobre a boca, ela esparrinhou chuva sobre os degraus. Quando chegou na calçada, já havia água dentro de seu mocassim tamanho quarenta e um ensopando os dedos do pé. Uma van passou roncando, deixando uma trilha de fumaça de exaustor. Um vento frio da baía bateu em seu rosto. Ela tremeu. “Que bom que conseguiu chegar. Ninguém deveria estar dirigindo esta manhã”, disse Lila ao abrir a porta. “Desculpe não ter conseguido chegar mais cedo. Teve um acidente na ponte Golden Gate.” Cristina jogou sua bolsa no banco de trás para dar espaço para Lila.

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Ela entrou no carro, colocou sua mochila sobre os pés e pôs o cinto de segurança. Enquanto ajeitava a franja molhada para fora da testa, disse “acho que está na hora de construir uma arca.” Os olhos italianos escuros de Cristina brilhavam quando ela ria. “Estamos atrasadas.” Ela acelerou rua abaixo. Para chegar ao prédio Crockett, onde ela e Lila trabalhavam em andares diferentes, ela virou à esquerda na rua Geary e atravessou um sinal amarelo. “Eu tenho uma surpresa”, disse. “Olhe dentro de minha bolsa e pegue o envelope de papel pardo no bolso lateral.” “Eu sei qual é a surpresa.” Cristina fazia o mesmo jogo com Lila há dezoito anos. Relutante, ela buscou o envelope no banco de trás e o colocou no colo. “Abra”, Cristina insistiu. “Eu fiz um pôster novo.” “Não preciso ver. O que é desta vez? Um poodle? Um labrador?” Era outra armadilha. Cristina ia ficar atazanando até que ela adotasse um cachorro. “O nome dela é Grace. Ela é a melhor de todos. A mais preciosa do mundo.” Cristina ligou as luzes internas do carro para Lila ver o pôster melhor. Como sempre, no topo estava escrito em letras vermelhas e garrafais “Preciso de um lar!!!”. Porém, o que precisava de um lar, dessa vez, não era nada de mais precioso, e sim um golden retriever que parecia o mais triste do mundo.

Os olhos lúgubres de Grace fixavam Lila e imploravam uma tigela de ração e um abraço reconfortante. A testa de Grace estava franzida, como se estivesse preocupada, e ela estava tão magricela que suas costelas se sobressaíam como um telhado ondulado. Cristina obviamente amarrara uma bandana vermelha em volta do pescoço de Grace para dar um ar alegre e festivo, mas não funcionou. Qualquer um podia ver que esse cachorro tinha passado por maus bocados. Seu hodômetro registrava muitos quilômetros. Ela parecia tão desgastada quanto uma bola de tênis sem feltro. Era provavelmente por causa disso que o homem ao seu lado, na foto, parecia protetor. Lila não pôde ver sua expressão porque ele olhava para baixo, na direção de Grace; mas sua linguagem corporal dizia que ele a protegia do perigo. Ele abraçava suas costas com seu braço robusto, puxando-a para perto, sua mão segurando o peitoral. A suavidade de sua camisa de lã xadrez deve tê-la reconfortado. Ela parecia pequena, aninhada em seu ombro largo. Se Lila estivesse procurando um relacionamento — e, depois de Reed, ela decididamente não estava — também não teria problema em se aninhar naqueles ombros. Pareciam dizer: “Vou protegê-la e aquecê-la.” Ela perguntou: “Quem é o cara?”.

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“Adam Spencer. Meu amigo do parque de cães. Não estou procurando um abrigo para ele. Estou preocupada é com Grace.” “Não precisa se preocupar. Você sempre acha alguém para seus cães.” “Por que você não a adota?” Lá vamos nós. A pergunta inevitável. Lila tinha perdido a conta de quantas vezes Cristina já havia perguntado isso. “Vocês até combinam. As duas são loiras arruivadas. Pessoas matariam para ter seus cachos”, continuou Cristina. “Ela poderia protegêla.” “Eu não preciso de proteção.” “Fazer companhia, então.” “Como sei que ela não vai me atacar?” “Você tem que superar o que aconteceu há vinte e cinco anos. Tem que perdoar e ir em frente.” “Sem chance. Tenho medo de cachorros. Não consigo evitar meus sentimentos.” Toda vez que Lila via um cão — especialmente se fosse grande e desajeitado — ela pensava apenas nos caninos; seu coração disparava como se tentasse sair do peito e correr rua abaixo. Sua mente sempre voltava para o vira-lata preto e marrom que ela encontrara no verão após a quarta série, recostado como um grande alce na frente do supermercado. Sendo, na época, uma fanática por

cães, Lila inclinou-se para afagá-lo, como fazia com todos os cachorros que encontrava. Ela esperava que ele lhe desse um sorriso bobo e batesse a cauda na calçada. Talvez babasse nela, mas ela não se importaria. Contudo, ele abriu os olhos repentinamente, levantou-se num pulo e meteu a cara na dela. Ao rosnar, ela sentiu seu bafo azedo e se encolheu, afastando-se dos caninos amarelos. Ele voou para cima e enterrou os dentes na mesma mão que ela estendeu para acariciá-lo. Lila tinha cicatrizes para provar que cães não eram confiáveis. Se ela tivesse criado o mundo, não haveria um único bigode de cachorro nele. “Se Grace fosse um gato, eu a adotaria”, disse Lila. “Na verdade, não consigo arcar com um animal de estimação agora.” “Você adoraria ter um cão se desse uma chance. Grace nunca a machucaria.” Cristina deu um suspiro exasperado enquanto passava por um caminhão da FedEx. “Não vou desistir enquanto você não arranjar um cachorro. Você não sabe o que está perdendo...” “Trégua?” Lila deu um tapinha no braço de Cristina, como quem diz amo você, mas supere isso. “Ok, ok.” Cristina parou em um sinal vermelho. À frente do carro, um homem sem guarda-chuva, com uma boina molhada e uma jaqueta escolar,

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atravessava o cruzamento empurrando um carrinho de supermercado. Ao seu lado, com uma coleira de corda, andava um cão preto, do tamanho de um lobo, encharcado. O coração de Lila apertou, pronto para entrar no modo aterrorizado — até se lembrar de que o teto e o para-brisa da Volvo a separavam do vil oponente. “Coitado daquele homem. Ele não tem um guarda-chuva”, ela disse. “Coitado daquele cão. Ele está molhado também.” “Ahn...” Para mudar o assunto, Lila voltou a falar da tempestade. “Voltando à arca. Onde você acha que conseguiríamos arranjar madeira?” Armada com quatro cartazes de cachorro, os quais havia aceitado pregar em banheiros, Lila precipitou-se na recepção do escritório Weatherby, vinte minutos atrasada. Era um lugar amplamente iluminado, alegre, no qual a empolgação com trabalho em equipe era praticamente palpável no ar. As fotos de natureza nas paredes faziam alusão às montanhas que seriam escaladas para resolver as coisas para os clientes, e os rios pareciam fluir em direção à fama e fortuna. A promessa de sucesso em relações públicas estava praticamente costurada no estofado do sofá azul-royal.

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Lila acenou para Emily, a recepcionista, que estava para se aposentar. “Na hora do almoço trago a begônia que plantei para você”, disse Lila. Ela parou no escritório de Madeline, a redatora-chefe, cujo enjoo matinal tinha deixado sua cara pálida e cinza-esverdeada. Lila perguntou: “Você está melhor?”. Madeline sorriu. “Biscoito de água e sal para o regaste.” “Que bom! Até mais.” Com um dia cheio de trabalho pela frente, Lila tinha que começar logo. Depois de um gole no bebedouro, ela correu para seu escritório, um cubículo minúsculo com luzes fosforescentes, sem portas nem janelas. As paredes, cobertas com feltro cinza como a neblina, mal chegavam à altura de seus ombros, porque ela media um metro e oitenta. A baia tinha uma mesa de madeira falsa, uma cadeira giratória com estofamento cinza e um tapete preto com manchas em fúcsia que a deixavam tonta se ela ficasse olhando muito tempo. Para não se esquecer de sua carreira artística, para a qual havia prometido voltar, custasse o que custasse, pregou na parede sua pintura abstrata mais colorida e audaciosa, com verdes e dourados e vermelhos dançando na tela. Quando ficava entediada ou claustrofóbica em seu cubículo, buscava as cores para se consolar. Elas nunca a deixavam na mão.

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Lila colocou os fones de ouvido e ligou para a primeira pessoa da lista de três páginas que lhe fora passada: G. Roger Earling, editor do jornal Repórter de São Francisco. Enquanto telefonava, sentiu o cheiro de café, vindo da sala da direção. Os sinos do bonde da rua de baixo ressoaram, como que para encorajá-la para um dia de telefonemas comerciais. Quando o senhor Earling atendeu, Lila soltou seu lado mais tagarela. “Bom dia! Aqui é Lila Elliot do escritório de Relações Públicas Weatherby e Associados. Gostaria de saber se vocês receberam nosso pacote de imprensa sobre a incrível conferência de ergonomia do Centro Moscone.” “Não lembro”, respondeu, sem entusiasmo. Memória ruim. A desculpa de sempre. Lila manteve-se determinada. “Eu mandarei outro!” “Não precisa. Perda de tempo.” “Mas pode lhe interessar!” “Olha, uma conferência sobre ergonomia não entra em nossa pauta.” O senhor Earling soava ranzinza. O mingau matinal deve ter cozinhado demais naquela manhã, e ele estava sem leite. Lila conseguia captar essas coisas depois de três longos meses telefonando a centenas de pessoas. Ligar para editores e produtores de rádio e TV era como marchar em direção ao inimigo com uma armadura feita de renda. Você estava vulnerável, só tinha sua esperteza e sua garra para fazer o trabalho.

Para conseguir cobertura de mídia, precisava implorar e persuadir as pessoas, e frequentemente se deparava com apatia, impaciência ou rejeição. Às vezes, era difícil livrar-se dos sentimentos negativos, mas Lila sempre cerrava os dentes e continuava. “A conferência vai ser fascinante! Sério mesmo. Seus leitores vão querer saber a respeito.” Para não perder a atenção do senhor Earling, Lila desandou a falar dos produtos que seriam expostos: descascadores de batata para artríticos, cadeiras de escritório para pessoas com problemas nas costas, ferramentas de jardinagem aprovadas pela Associação Nacional dos Aposentados, teclados de computadores que previnem a tendinite... Ele balbuciou um “aargh” abafado, que soou como um tigre doente. “Tente ligar para nossa seção de negócios.” “Com quem posso falar lá?”, insistiu Lila. “Senhorita, não tenho tempo para guiá-la pela mão.” Não leve para o lado pessoal. Lila retirou a flecha do coração. “Ajudaria muito se eu soubesse o nome da pessoa certa.” Com esperanças de que o senhor Earling estivesse procurando pelo nome em uma lista de telefones, Lila se forçou a esperar no silêncio que se espalhou entre os dois como um campo de neve. Enquanto observava sua pintura, buscando

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apoio moral, ela ouviu vozes altas no corredor. Um cara estava gritando, e uma mulher parecia tentar acalmá-lo. Era um comportamento estranho no escritório Weatherby. Lila levantou-se e olhou pela porta aberta. Como não viu ninguém, sentou-se novamente. “Ok”, disse o senhor Earling. “Aqui vai um nome. Ligue para Charles Saunders.” A voz da mulher ficou mais alta, mais aguda. Era Emily. “Por favor, por favor.” Parecia que ela estava implorando. O homem gritou palavras confusas que Lila não conseguia entender. Emily gritou: “Não. Meu Deus… Não faça isso!” Lila pulou da cadeira para socorrer a amiga. Assim que Lila arrancou seu fone e o jogou na mesa, uma explosão, como um balão explodindo, porém mais alto, estourou na área da recepção. Depois, silêncio. Lila piscou e tentou entender a origem do barulho — mas logo vieram mais explosões, uma após a outra, chocantes demais para a compreensão. Algo horrível estava acontecendo; mas ela não entendia o que era. Com certeza ninguém estouraria fogos de artifício no escritório. Quando os gritos começaram a vir do canto do corredor, Lila paralisou. Aquilo que ouvia devia ser

tiros. Mais tiros estrondearam e assobiaram, como se estivessem ricocheteando nas esquadrias de metal. Vidros estilhaçaram. Tantas pessoas estavam gritando ao mesmo tempo que ela não conseguia distinguir nenhuma em particular. Alguém gritou: “Tranquem as portas!”. Lila se afastou de seu cubículo sem porta. Sentiu o cheiro de fumaça, e seu estômago parecia engolir chumbo. Com os joelhos bambos, ela pegou o telefone, mas suas mãos tremiam muito para ligar para a emergência. Para evitar tombar no chão, ela se apoiou na cadeira. Será que deveria se jogar debaixo da mesa? Ela não caberia. Correr até o almoxarifado? Seria um alvo fácil no corredor. Se esconder atrás da cadeira? Era um escudo pequeno demais. Sua gola rolê vermelha era chamativa para balas. Mais gritos e tiros. Baques e batidas de brigas no corredor. Enquanto passadas ressoavam do lado de fora de seu cubículo, ela concentrou sua vontade e se forçou a dar três passos até a parede adjacente à porta. Tremendo, se agachou, dobrou as pernas próximas ao peito e tentou desaparecer. Um homem agigantou-se em sua porta. Sem olhar para cima, Lila ouviu sua respiração cortada e enlouquecida. Sua sombra titubeou no chão e sua agitação a contagiou, fazendo-a tremer ainda mais. Seu coração parecia socar seu peito.

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Ela se abaixou ainda mais, mas sentiu seu olhar sobre ela. Levantou o olhar dos sapatos sociais pretos até o terno esportivo e o rosto contorcido de Yuri Makov, o zelador do Weatherby, que semana passada apenas recolheu seu lixo e sorriu para ela. “Você não!” ela gritou. Duas gotículas de suor grudavam na testa dele, e veias pulsavam em suas têmporas. Os lábios quebradiços, e um pequeno Band-Aid redondo, cor da pele, estava grudado em seu queixo trêmulo. A cada respiração, seu peito expandia, e a sacola de bordo pendurada em seu ombro batia contra seu quadril. Tudo nele tremia — menos os olhos, que a perfuravam. Gritando em russo, ele jogou os ombros para trás e apontou o cano de seu revólver compacto em sua direção. Puxou a arma de volta para si e bateu contra a coxa. Levantou a arma na altura da cintura e segurou com as duas mãos, a pele em volta dos olhos parecendo relaxar como se se lembrasse de algo. Em seguida, com olhos resolutos, apontou a arma de novo para ela e enlaçou o gatilho com o dedo. “Yuri, o que você está fazendo?! Não atire!!” Ela levantou-se, para implorar melhor. Ele gritou palavras que ela não entendia. “Por favor... Por favor, não faça isso… Por favor, por favor.”

Assim que Lila pulou atrás de sua cadeira de escritório, o fogo selou um buraco em seu peito. A força a lançou, rodopiando, contra o armário da sala. Ao cair, sua cabeça bateu em um metal, e ela mordeu a língua. A mão varreu a mesa e jogou os pôsteres de Grace ao chão. Lila tombou no chão e arfou por ar. Um tiro estrondou no corredor. Por favor, não me deixe morrer. Seu lado esquerdo sentia como se estivesse queimando viva. Enquanto fechava os olhos, a mente ficou nublada. Foi envolta por um lençol de gelo, rolando, subindo e descendo em um território distante, escuro.

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