#3 Julho - Agosto 2006 Portugal 3,00 EUR
Propriedade Invade Strategies, Lda. Nif: 506 779 980 Largo de Santos, 1, 2º Esq.º - Sala C 1200-808 Lisboa Tel: (+351) 210 155 584 info@invadestrategies.com Publicidade Zézé Adão da Fonseca ads@invadestrategies.com Marketing Bruno Ribeiro dos Reis mkt@invadestrategies.com Comunicação Eduardo Storino rp@invadestrategies.com
Colaboradores Texto Pedro Caria Mark Fisher Pedro Gonçalves aka Boldfinger Kalaf Miguel Moore José António Moura / Flur Pedro Santos / Flur Luís Silva Mário Rui Vieira Fotografia
SLANG #3 ANO ZERO www.slangculture.com slangexpression.blogspot.com
Pedro Alfacinha / Flur Paulo Barata Luís Colaço Ana Gilbert Quang Le
info@slangculture.com edition@slangculture.com design@slangculture.com
Tradução
Direcção Geral Zézé Adão da Fonseca Direcção Editorial Miguel Pedreira Edição Nuno Carvalho Direcção de Arte Luís Cruz Paulo Arraiano Design Luís Cruz Fontes Retrárea (Luís Cruz, 2006) Univers (Adrian Frutiger, 1956)
Miguel Moore Pedro Vieira de Moura Periodicidade Bimestral Tiragem 20.000 exemplares Pré-impressão Pré&Press Impressão Heska Portuguesa Distribuição Logista Portugal Depósito legal Nº 219681/04, registo no ICS n.º 124578
EDITORIAL p. 010 COLABORADORES p. 012 MERDA Alexandre Estrela p. 014-019 UMA ALIANÇA ESTRATÉGICA /// a strategic alliance Nuno Carvalho p. 020-023 MANUEL MOTA José António Moura / Pedro Santos / Pedro Alfacinha p. 024-031 VISUAL STREET PERFORMANCE Nuno Carvalho / Luís Colaço p. 032-043 BURAKA SOM SISTEMA Pedro Gonçalves / Kalaf / Ana Gilbert p. 044-055 ARTE SUAVE Luís Colaço p. 056-065 PASTE IT UP! Miguel Moore / Paulo Barata p. 066-073 NIGEL COOKE Mark Fisher p. 074-079 UM ANO MAIS LONGO Nuno Carvalho / Paulo Barata p. 080-087 ELEPHANT’S DREAM Pedro Caria p. 088-089 LISBOA UPGRADED Luís Silva p. 090 PASTE UPS Miguel Moore p. 092-093 CORPORATE REBELS Miguel Moore p. 094-095
capa tags de RESH
Numa parede, sucessivas camadas de cartazes tornaram instável um dos edifícios da cidade. Reconhecido o perigo, construiu-se de cima a baixo uma estrutura de andaimes para o manter de pé, enquanto o seu interior era desocupado. Depois o edifício foi selado, portas e janelas, com tijolo e cimento, e à estrutura acrescentou-se uma série de tapumes de metal pintados de branco. Quem lá morava e não tinha outro sítio para onde ir, foi realojado nuns pavilhões pré-fabricados de uma escola desactivada. Para muitos foi um regresso à escola. Ao segundo dia já os tapumes tinham deixado de ser brancos. À noite, as paredes interiores do edifício eram pintadas por visitantes fugazes (ou não). Não pareceu tratar-se de um esforço organizado, simplesmente aconteceu. Quando já não havia parede por pintar, pintaram por cima, vezes sem conta, chão e tecto inclusivamente. E assim o interior de cada divisão ia diminuindo a um ritmo imperceptível. No interior dos pavilhões foram-se construindo paredes de tijolo, revestidas de cimento, estucadas, depois pintadas ou forradas com papel, que multiplicavam os espaços enquanto os tornavam mais pequenos. Chãos, tectos e até telhados interiores. No telhado dos pavilhões instalaram-se antenas, construíram-se chaminés, pombais e pisos superiores. No antigo recreio traçaram-se acessos por entre quintais, garagens, anexos e arrecadações, que iam surgindo aleatoriamente. A velha vedação foi reforçada, e no seu perímetro a vida em sociedade começou a ser regulada por leis próprias, estabelecidas à medida das necessidades de cada um. Por causa da tinta o ar foi-se alterando até que uma atmosfera distinta confinou o edifício, isolando-o ainda mais. Alguns visitantes (ou novos habitantes?) morreram. Outros desenvolveram resistências, alguns evoluíram até terem sistemas respiratórios adaptados àquele meio, até um ponto em que começaram a incompatibilizar-se com o exterior. No telhado cresceram ervas daninhas, que se tornaram árvores, que não eram verdes. Não foi de um momento para o outro que tudo isto aconteceu, passaram-se vários dias, até anos. Mas um dia a cidade decretou o seu fim e, num único dia, edifício e pavilhões foram arrasados para novas construções. Os habitantes dos pavilhões foram realojados em casas dispersas pela cidade, forçados a viver de outra maneira. Dos habitantes do edifício não se sabe notícia, nem sequer se sabe se lá vivia alguém realmente.
SLANG /// editorial /// 010
LUÍS COLAÇO
Local e data de nascimento? Lisboa, 15.07.73. Cidade onde vives e cidade onde trabalhas? Vivo em Almada, trabalho em Lisboa. Cidade de sonho? Almada. Cidade fantasma? Lisboa. Spray ou suor? Spray. Verão na cidade? Viva a Caparica! ... não sei se posso, mas tenho de agradecer à Máquina de Estados, sobretudo ao Pedro Caria. VISUAL STREET PERFORMANCE p. ??? ARTE SUAVE p. ???
MARK FISHER
Local e data de nascimento? 1968, Leicester. Cidade onde vives e cidade onde trabalhas? South London. Cidade de sonho? Florença. Cidade fantasma? Dunwich, Suffolk. Nas paredes da tua sala? Alice com um porco nos braços numa ilustração de Tenniel. Verão na cidade? Não, no País de Gales e em Suffolk. http://k-punk.abstractdynamics.org NIGEL COOKE p. ???
ANA GILBERT
Local e data de nascimento? Porto, 11 de Julho 1978. Cidade onde vives e cidade onde trabalhas? Lisboa, sou freelancer. Cidade de sonho? Bruxelas. Cidade fantasma? Reiquejavique. Danças ou ficas a ver? Danço. Verão na cidade? Porque não? www.myspace.com/anagilbert KUDURO/NEWKUDURO p. ???
PEDRO GONÇALVES
Local e data de nascimento? Lisboa, 26 de Setembro de 1972 Cidade onde vives e cidade onde trabalhas? Lisboa. Agora trabalho em casa para publicações como a Slang, a Mondo Bizarre e entidades diversas que parecem apreciar o que faço. Cidade de sonho? Das que conheço, Londres e Amsterdão. Das que não conheço e provavelmente nunca irei conhecer, Kingston. Cidade fantasma? Lisboa. Preferes um cu mole ou duro? O produto em si não é determinante. O que o envolve e o que dele se faz é que são factores importantes. Verão na cidade? Preferencialmente, a trabalhar. O crowd indesejado diminui substancialmente, a vida é mais fácil e o lazer não provoca bichas. Perdão, filas. http://1poucomouco.blogspot.com KUDURO/NEWKUDURO p. ???
MIGUEL MOORE
Local e data de nascimento? 1973... o resto prefiro não divulgar, é a minha faceta de bicho do mato! Cidade onde vives e cidade onde trabalhas? De Lisboa para o resto do mundo; do resto do mundo para Lisboa. Cidade de sonho? Sydney, Austrália. Cidade fantasma? Jacarta, Indonésia. O que fazer aos prédios abandonados? Ocupação e arte selvagem. Verão na cidade? Mergulhos nos repuxos municipais. PASTE IT UP! p. ???
SLANG /// colaboradores /// 012
SLANG /// merda /// 015
SLANG /// merda /// 017
O LIVRO O bairro de Benfica desenvolve-se em torno de uma longa estrada, a mais extensa da cidade de Lisboa. Este bairro periférico, onde cresci e namorei, é considerado um dos primeiros dormitórios de Lisboa, servindo de modelo para bairros satélite da cidade da Amadora: Damaia, Pontinha… É sobretudo mais um bairro feio e incaracterístico, um canal de saída ou entrada na cidade. É neste canal que desde a década de 80 a palavra merda aparece exaustivamente pintada nas paredes. De 20 em 20 metros, numa consistência e rigor formal impressionantes, merda emerge como marca territorial, existencial, num trajecto que se adivinha muitas vezes percorrido. Este desabafo constante, escrito numa má caligrafia e num tom presente, encontra-se longe da carga política das palavras de ordem e dos apelos ao voto do passado; longe da depuração formal narcísica dos tags do presente. Merda emerge atemporal de uma forma metódica, serial, em sintonia com a monotonia do bairro para onde foi projectada. Ao percorrer o trilho do autor, que ainda desconheço, recolhendo/fotografando as 160 marcas da sua passagem, fui retratando autonomicamente Benfica. Na mira do Merda o bairro desenrola-se a um ritmo cinzento num permanente déja-vu. O livro Merda resulta desta recolha exaustiva, é um livro que se centra única e exclusivamente na palavra merda relegando Benfica para um plano anódino. Visto como um flip-book, ou seja, a uma velocidade de leitura média de 12 páginas por segundo, a palavra merda, meticulosamente centrada na página, lê-se animada e vibrante, suspensa numa paisagem periférica. ///
Merda. Aneaunidmatte, 2006.
Texto de Alexandre Estrela
SLANG /// merda /// 019
Entrevista de Nuno Carvalho Tradução de Miguel Moore Imagens cortesia de ANP Quarterly
A STRATEGIC ALLIANCE
ENTREVISTA COM BRENDAN FOWLER, UM DOS TRÊS EDITORES DA ANP QUARTERLY, UMA REVISTA GRATUITA JÁ NO SEU QUARTO NÚMERO, PUBLICADA E TOTALMENTE FINANCIADA PELA MARCA DE ROUPA RVCA. Para além de seres um dos editores, quais são as tuas responsabilidades na ANP? Nós os três (eu, o Ed Templeton e o Aaron Rose), juntamente com o Casey Holland (o nosso director de arte) lidamos mais ou menos com tudo o que se prende com a coordenação… motivo pelo qual as coisas por vezes se tornam caóticas ou se atrasam… há incrivelmente muito mais para fazer, para além de criar a revista propriamente dita… pode tornar-se caótico. A RVCA é um género de situação família/colmeia fantástica e toda a gente adora a revista e todos contribuem tanto quando podem, mas na verdade acabam por deixar a maior parte das coisas para nós resolvermos, porque temos ideias específicas sobre como devem ser… e porque também já têm mais com que se entreter! Todos eles são pessoas muito atarefadas.
Quais são os objectivos da ANP Quarterly? A ideia foi criar uma revista que foque, num sentido mais alargado, arte e comunidade; criar uma revista que eduque e informe de forma aberta e sem estar sujeita às restrições sociais e financeiras que afligem muitas publicações hoje em dia, e que acabam mais por contribuir para a eterna repetição da “mesma coisa de sempre”. O nosso objectivo não é focar actualidades ou as “estrelas do momento”, mas antes destacar pessoas e fenómenos que merecem reconhecimento e exposição, independentemente do seu lugar no tempo. Portanto tempo quanto conseguirmos, esta revista manter-se-á totalmente gratuita e livre de publicidade. Não estamos sujeitos a ninguém, salvo as nossas consciências, incluindo a RVCA. A ANP Quarterly será distribuída globalmente através de galerias, livrarias, lojas de roupa, de discos e outros estabelecimentos.
Como é que consegues trabalhar com os outros dois editores, o Ed Templeton e o Aaron Rose? O Aaron e o Ed são dois dos meus amigos mais chegados, e há anos que trabalhamos os três juntos em imensas coisas. O Aaron recrutou-me como seu adjunto na Alleged Gallery, há já cerca de sete anos. E quando a galeria acabou continuámos a trabalhar em inúmeros projectos. Creio que a exposição do Ed na Alleged no início dos anos 90 terá sido a sua primeira de sempre, por isso o Ed e o Aaron já trabalham juntos há ainda mais tempo. No geral, trabalhar com amigos pode ser duro, mas temos uma incrível dose de respeito uns pelos outros, assim como um grande historial de trabalho em conjunto.
Sentem que estão a apoiar uma certa cena artística restrita? Não, de modo algum. Um dos pontos-chave desta revista é o de ir além de quem se espera que nós falemos. O objectivo é criar algo que seja mesmo inspirador, por isso tentamos apenas ser totalmente honestos em relação ao que nos entusiasma e, como tal, o que entendemos que deva ser abordado no modesto espaço que temos para dar. Obviamente que, vindo todos de um background artístico, temos os nossos historiais e não lhes estamos a virar as costas, mas o mundo é enorme e há por aí tanta coisa. O que estamos a trazer para a frente são sobretudo os nossos amplos sentidos de cromice cultural.
INTERVIEW WITH BRENDAN FOWLER, ONE OF THE THREE EDITORS OF ANP QUARTERLY, A FREE MAGAZINE ALREADY IN ITS FOURTH ISSUE, PUBLISHED AND FULLY SPONSORED BY THE CLOTHING COMPANY RVCA. Besides being one of the editors, what are your responsibilities in ANP? All three of us (myself, Ed Templeton and Aaron Rose) and Casey Holland (our art director) deal with pretty much everything coordination wise... which is why things get hectic or behind sometimes... there is so incredibly much to do aside from creating the actual magazine... it can get hectic. RVCA is a beautiful family/hive sort of situation and everyone loves the magazine and helps it as much as they can, but they really leave most things to us to deal with because we have specific ideas about how they should happen... and because they have enough on their plates as well! A lot of busy people. How do you manage to work with the other two editors, Ed Templeton and Aaron Rose? Aaron and Ed are two of my absolute closest friends in the world and we have all three worked together on various things foryears now. Aaron took me on as his second-in-command at Alleged Gallery almost seven years ago now. And once the gallery stopped we kept working together on tons of projects. I think that Ed’s show at Alleged in the early nineties was his first art show ever, so Ed and Aaron have been working together even longer. In general, working with friends can be rough, but we have incredible amounts of respect for each other and really heavy work histories together.
What are the aims of ANP Quarterly? The idea was to make a magazine that will focus on a broader sense of art and community; to make a magazine that will educate and inform openly and without the social or financial restrictions that plague many publications today and contribute more often than not to the “same old thing” again and again. Our goal is not to focus on current events or “who’s hot” but rather to bring forward people and phenomena that deserve acknowledgement and coverage regardless of their place in time. For as long as we can make it happen, this magazine will be completely free and without advertising. We are beholden to nobody, save our own conscience, RVCA included. ANP Quarterly will be distributed around the world through galleries, bookstores, clothing and record shops, and other venues. Do you feel you are supporting a certain restricted art scene? No, not at all. A huge point of this magazine is to reach past who you would expect us to talk about. The goal is to make something that is really inspiring, and so we just try to be really honest about what excites us and therefore what we think should be discussed in the modest amount of space we have to give. Obviously, since all of us come from art backgrounds we have histories and we are not turning on them, but the world is huge and there is so much out there. The main things we are bringing to the table are our broad senses of cultural nerdness.
SLANG /// uma aliança estratégica /// 021
Sentem-se confortáveis com algum tipo de classificação? Não muito. Talvez “Revista de arte gratuita”.
Do you feel comfortable with any kind of classification? Not really. Maybe “Free art magazine.”
Qual é a relação entre a ANP e a RVCA? O P.M. Tenore, da RVCA, disse: “quero fazer uma revista de arte gratuita, e quero que sejam vocês os três a fazê-la.” A revista não faz dinheiro nenhum, não tem publicidade e é gratuita, por isso sem a RVCA não existiria. A RVCA financia totalmente a revista e a sua única marca presente é literalmente a divisa extremamente subtil na capa (VA), e um logo e o reconhecimento na ficha editorial. Foi absolutamente insistente no facto de que a revista não parecesse de todo pirosa ou identificada com marcas, e deu-nos total liberdade e autonomia para fazermos o que quiséssemos. É mesmo incrível. Ele é tão entusiasmado e mesmo um visionário… e meio apanhado.
What is the relationship between ANP and RVCA? P.M. Tenore from RVCA said, “I want to make a free art magazine, and I want you three to make it.” The magazine makes no money at all, there are no ads and it is free, so it wouldn’t exist without RVCA. RVCA completely funds the magazine and literally the only branding is their very subtle chevron logo on the front (VA) and a logo and credit on the credits page. He was really adamant that the magazine not feel corny or branded at all, and he has completely given us total freedom and autonomy to make what we want. It is really incredible. He is so passionate and such a visionary and a nut.
Como é que a ANP contribui para os produtos da RVCA? Às vezes alguns dos artistas que trabalham para a RVCA acabam por aparecer na revista, mas deve-se sempre a uma coincidência. Acontece que acabamos por gostar de muitas das mesmas coisas, por isso é que trabalhamos juntos, mas nunca houve um caso do género, “hey, há uma nova t-shirt que vai sair, escrevam um artigo…”. Idealmente a revista estaria disponível em todos os sítios onde se vendem produtos RVCA, mas devido a vários factores situacionais específicos isso nem sequer é possível. Qual é o input da parte do Pat Tenore e do Conan Haynes [os proprietários da RVCA]? É, por incrível que pareça, não interferir. Eles acabam por viabilizar, encorajar e apoiar, sem quaisquer contrapartidas. Consultamos sempre o Pat, mas tudo acaba sempre por se resumir a um: “hey, vocês é que são os editores, vocês é que sabem.” O Pat e o Conan são pessoas fantásticas, verdadeiramente visionários e tão caridosos, talvez um pouco apanhados. A RVCA ainda não é uma grande empresa, e no entanto eles andam a canalizar uma enorme quantidade de dinheiro para uma revista que nem sequer se liga directamente à RVCA, e tudo apenas para instilar entusiasmo e fazer vibrar as pessoas. O seu input principal surge na forma de abraços, palmadinhas, grandes sorrisos e “bons trabalhos” nos corredores do edifício da RVCA. ///
How does ANP contribute to RVCA products? Sometimes artists who do work with RVCA find their way into the magazine, but it is always coincidence. We happen to like a lot of the same stuff, which is why we work together, but there has never been an example of “hey, they have a shirt coming out, write an article...”. Ideally the magazine would be available everywhere that RVCA products are sold, but due to various specific situational factors that isn’t even possible. What is the input by Pat Tenore and Conan Hayes? It is so incredibly hands off. They pretty much enable, encourage and support it without any strings attached. We run things by Pat but it always comes down to “hey, you guys are the editors, it’s your call.” Pat and Conan are incredible people, truly visionary and so charitable, maybe a little nuts. RVCA is still not a huge company, and yet they are dumping an exorbitant amount of money into a free magazine that doesn’t even directly link to RVCA, and all just for the sake of making people amped and excited. Their primary input comes in the form of hugs, pounds, wide grins, waves and “good jobs” in the hallways of RVCA building. ///
http://rvcaanp.com/ www.rvcaclothing.com
Ed Templeton Cairo Foster, Spanky, Leo Romero, Ethan Fowler. Fotografia de Quang Le Mickey Avalon RVCAshow Kevin “Spanky” Long
SLANG /// uma aliança estratégica /// 023
Entrevistado por José António Moura e Pedro Santos / Flur Fotografias de Pedro Alfacinha
A SOLO Em 1991 ouvimos uma cassete gravada ao vivo na cisterna da ESBAL. Som péssimo, capa feita à mão e um nome encontrado pela mera junção casual de letras: Vcorux Aeia. Algures entre o industrial “concreto” (Einstürzende Neubauten?) e a música improvisada (enfim, com toda a liberdade que o termo implica), a música na cassete mostrava Manuel Mota (n. 1970) à procura de um som que pudesse ser seu. Muito longe ainda do discurso pessoal na guitarra que se lhe reconhece hoje, mas certamente o ponto de partida para um percurso claramente assente na depuração. Enquanto vencedor da Bolsa Ernesto de Sousa em 1995, Mota beneficiou de uma estadia em Nova Iorque, onde pôde perceber os parâmetros do meio musical em que se inseria. A energia extra trazida na volta resultou, por exemplo, na criação da editora Headlights, mas dez anos mais tarde afasta-se voluntariamente de qualquer meio musical para fazer avançar a sua própria música. Falámos com Manuel Mota no dia seguinte a um dos seus raros concertos a solo, no festival Where’s The Love (ZDB, Lisboa, 19.05.2006).
SLANG /// manuel mota /// 025
Tivemos a sorte de assistir a um concerto teu ontem à noite, não tens tocado muito sozinho... Tenho tocado fora, mas aqui em Lisboa já não tocava sozinho há dois ou três anos. Como é que decides se tocas sozinho ou com alguém? É uma necessidade que parte de ti, são convites? Sinto necessidade das duas coisas. Mas mesmo tecnicamente preciso de tocar sozinho porque muitas vezes em grupo há cedências, outra maneira de compôr em que não é necessária tanta densidade... Quando recebes um convite para integrar um grupo num determinado concerto, pensas se o teu som se vai adequar aos músicos com quem vais tocar, ou aceitas o desafio sem pensar muito? Até há bem pouco tempo aceitava quase tudo pela experiência, tendo muitas vezes a certeza de que o resultado não iria ser muito consistente, se calhar várias direcções em simultâneo... Mas às vezes aceitava ou a título pessoal, por conhecer as pessoas, ou pela experiência que achava que poderia enriquecer a minha vida. Por outro lado pensava que o resultado poderia não ser tão bom e, às tantas, será que era legítimo estar a apresentar ao vivo uma experiência com fortes probabilidades de sair falhada? Nestes anos todos de experiências conseguiste identificar claramente a companhia perfeita para ti enquanto músico? Instrumentos... um tipo de sonoridade que te seja mais natural quando trabalhas em colaboração? Instrumentos que venham da escola do jazz, acho eu. Gosto imenso de tocar com trompete, não sei se devido ao facto de ter tocado imenso com o Sei Miguel. Sinto-me muito confortável a tocar com a Margarida [Garcia], por exemplo, se calhar por termos tido tantos anos de trabalho muito regular. O que tenho na cabeça, o que gostaria de apresentar, com ela costuma aparecer. As tuas preferências resultam então da tua experiência e não de decisões antecipadas, “gostaria muito de tocar com aquele instrumento”, “com aquele músico”... Sim, já me aconteceu. Exemplos? Joe McPhee! Por outro lado, apesar de gostar de trabalhar em grupo, neste momento estou um bocadinho cansado de meios musicais... Mesmo sozinho tens de estar num meio musical. Mas quando digo sozinho é quase em casa, como no início. Não tanto furar, arranjar concertos, ir tocar ao estrangeiro... estou um bocadinho cansado. Estou com saudades de voltar ao início. Mas no início andavas à procura de qualquer coisa, a elaborar a tua técnica, à procura do teu discurso. Agora não é assim... Ou ainda achas que sentes necessidade de... Praticar... Progredir? Sinto. Muito. Desde o momento em que houve uma mudança na forma de tocar – drones, mais minimalista – agora estou a tocar sons mais tradicionais... Houve uma mudança em 96, de uma fase para a outra. Desde o momento em que comecei a tocar guitarra mais tradicionalmente, tenho vindo a encontrar sempre, até hoje, pontos para melhorar, ideias para desenvolver, muito mais do que antigamente em que estava a ver-me a chegar a um beco sem saída: já não tocava, deixava os sons acontecerem, era quase mais científico, conceptual. Quando começaste a tocar pensaste na guitarra como um instrumento de mil possibilidades ou apenas no uso
tradicional que uma guitarra tem? Comecei pelo uso tradicional, mas como auto-didacta. O rock? Não tocando rock, mas tive durante uns meses aulas na Diapasão, quando tinha 16 ou 17 anos. Mas, para ti, a imagem da guitarra estava conotada com o rock? Foi isso que te fez pegar na guitarra? Sim, acho que nessa altura praticamente só ouvia rock, tinha começado a ouvir algumas coisas de jazz e algumas coisas mais experimentais que um amigo me mostrou. Nunca aprendi a tocar uma canção, nenhum tema de rock, nada disso. Soube uns acordes de blues e uma escala em que podia solar com os discos, e era o que gostava mais de fazer quando aprendi. Punha um disco e ia solando com aquilo. Mas logo nessa altura comecei a ter acesso a outras músicas. Nunca tive uma ideia muito concreta do que iria fazer, acho que se foi construindo tudo quase instintivamente. Tens algum mapa mental para a guitarra enquanto espaço físico? Tens zonas de actuação preferidas na guitarra ou encara-la sempre como território virgem? Quando começo a achar que estou com vícios, um dos exercícios que faço é tentar abandoná-los. Isso pode acontecer durante um concerto? Pode acontecer. Por um motivo ou por outro posso estar desconcentrado e estou a pensar noutra coisa e a tocar ao mesmo tempo. Isso é péssimo. Normalmente acontece quando toco muito, se estiver a tocar menos acabo por estar mais concentrado. Tens alguma forma, antes dos concertos, de chegares mais próximo da concentração ideal? Nos momentos antes prefiro não estar a assistir a outros concertos, especialmente se for uma coisa muito distante daquilo que vou fazer. E durante um concerto já alguma vez te desconcentraste por culpa do público? Ah não, acho que nunca tive problemas por causa do público. A tua música, pelo menos no registo a que pudemos assistir ontem, exige algum respeito para se poder disfrutar como deve ser. É feita de pequenos pormenores, muitas pausas. Eu, como performer, vá lá, consigo lidar bem com o ruído exterior, isso não me afecta muito. Consigo jogar com isso, consigo estar concentrado, desde que não seja muito... Aceitas isso na tua música, consegues desligar... Aceito. Acho que é mais exigente para o público. Não me agrada que isso aconteça mais pela forma como o público depois vai receber a música. Não vou tocar pior por causa disso, mas acho que o público não vai conseguir ter o mesmo nível de concentração. Como é que tens encarado os diferentes públicos um pouco por todo o lado onde tens tocado? O grau de respeito, a atenção, como é que tens notado essas variações? Eu toquei sempre em situações meio especializadas, em eventos onde só há este estilo de música ou parecido, não me lembro de me sentir assim deslocado... Ah, lembro-me de uma má experiência com o público, no Porto. Fui tocar a solo, o Oren Ambarchi estava cá, íamos fazer dois solos. Mas pronto, a começar pelo cartaz que estava à porta, foi tudo mau. Dizia Guitar Jam, Oren Ambarchi estava mal escrito, depois afinal havia aulas de tango à hora a que devia ser o concerto, depois o concerto tinha de ser mais tarde, afinal ninguém sabia que ia haver concerto, por isso não havia quase público e o público que havia era... Não era tanto a questão de ser barulhento, não era público, estavam
SLANG /// manuel mota /// 027
à conversa, estavam de costas, não queriam saber. Lembro-me de estar a tocar e apareceu um gato, que ficou parado à minha frente... a ouvir. E eu pensei que estava a tocar para o gato, só. Mesmo literalmente. Mas entretanto alguém tirou o gato dali, fiquei sem público... Depois o Oren Ambarchi foi tocar, aconteceu a mesma coisa, mas ele tinha uma segunda parte em que atingia volumes, dinâmicas muito mais altas, e aí as pessoas, como já não conseguiam estar a conversar, saíram. Foi mau porque íamos lá para apresentar qualquer coisa e ninguém estava minimamente interessado. Enquanto não incomodássemos eramos suportáveis. Sentimo-nos desprezados, nunca é agradável. Tens alguma noção da tua carreira em termos de Antes de Nova Iorque e Depois? No fundo essa foi a minha primeira experiência internacional e foi logo quase de choque, porque eu estava sob a tutela do Phil Niblock, que é altamente social, conhece toda a gente, pôs-me em contacto com toda a gente e toda a gente se mostrava altamente interessada no meu trabalho. Verdadeiramente interessada? Hmm, acho que não, acho que era tudo social. Mas pronto, mantive contactos desde essa altura, foi muito positivo. De repente conhecia toda a gente, todos os meios, John Zorn, Donald Miller, Borbetomagus... Queres contar um pouco do percurso que levou à ida para Nova Iorque? Já sabia da Bolsa [Ernesto de Sousa] desde o primeiro ano em que tinha acontecido, tinha ganho o [João Paulo] Feliciano. Ganhaste em que ano? 95. Eu era estudante de arquitectura e estava a fazer música ao mesmo tempo, e como aquilo era uma bolsa de arte intermédia, achei que podia contribuir. Qual era o teu desejo com a bolsa? Acho que Nova Iorque, uma experiência nova. E o que trouxeste de lá? Quando lá estava, no fim, cheguei a tentar ver se conseguiria arranjar emprego e ficar por lá. Quando cheguei cá… estava lá há quase dois meses, habituado àquele ritmo, e quando venho de avião dão-me um jornal português e eu vejo assim um vazio total de coisas a acontecer, não havia concertos, não havia nada. Depois andei aí, meio em choque, durante duas ou três semanas, ali em Benfica, num café, na esplanada, estava de férias... A olhar para o vazio... Mas no fundo acho que não trocava. Mas ao querer continuar lá estarias no fundo a querer permanecer no meio? Não, o mais importante foi viver a cidade. Não foi tanto uma experiência a nível artístico, foi só apreensão... Assisti a imensos concertos, foi mais isso. Conheceste alguém que já admiravas? Conheci o La Monte Young, por exemplo, e o David Tudor, que já estava a morrer, estava cego... John Zorn, que também foi importante. Muita gente. Toda a cena improvisada de Nova Iorque. Uma das coisas palpáveis que resultaram da tua estadia foi a criação da editora Headlights. Tem sido uma experiência positiva para ti? Sim, sim. Mas quanto ao processo, não me agrada trabalhar numa editora, não sou a melhor pessoa para fazer isso. És tu que tratas de tudo? Nisso não houve grande evolução. Os contactos para distribuição são antigos? Ainda fazes novos contactos? Tenho feito novos contactos. Não mantive, praticamente,
os contactos iniciais, porque a minha direcção mudou. De qualquer maneira continuas com a editora, abriste-a a outros músicos… Está em hibernação. Editar um disco não era tão fácil como hoje, agora há CD-Rs... Mas não é por isso que editas mais. Não, não. Por opção não me agrada editar demais. Já toco demais... O processo para o próximo tem sido meio doloroso, tenho gravado imenso em casa, depois faço escolhas, mas neste momento quero que sejam temas quase com tempo de canção, à partida serão todos muito parecidos, ou seja, é uma canção em vários takes, mais ou menos. Esse é um dos discos que quero fazer agora. O outro é uma peça longa. Mas... não gosto de estruturar no papel um tema porque quando me pergunto “porquê” acho supérfluo e então acabo por abandonar isso, acabo por tocar instintivamente. Passa-te pela cabeça reproduzir ao vivo música que já gravaste em determinado disco? Mas muitas vezes faço isso! Como não uso notas, chego por vezes a pensar em começar um concerto como um determinado disco. O modo como é utilizado o silêncio, a dinâmica. Mas determinados amplificadores ou som ou guitarra fazem-me tocar de maneira diferente. Já mudaste muitas vezes de guitarra? Estou com a mesma guitarra há sete anos. Tiveste uma fase com uma guitarra acústica... Ah, sim sim. A Dobro. Estive a batalhar durante um ano mas ela ganhou. É uma guitarra que soa bem se for tocada com muita intensidade, é muito feita para blues, não é tanto para dedilhar, e ainda por cima o meu dedilhado acaba por ser mais suave do que o das outras pessoas, eu não uso unhas nem nada nos dedos, portanto não conseguia fazer-me ouvir... Assumo a derrota. Como é o teu esforço físico quando tocas mais empolgado, quando esmagas as cordas com a mão, por exemplo. Dói? Dói às vezes quando bato na ponte, mas acho que o maior esforço, e num concerto acaba por ser o mais cansativo, é quando consegues estar concentrado durante o tempo todo. A concentração, mais do que qualquer esforço físico. Voltando ao teu diálogo com outros músicos, já trabalhaste ou consideras a hipótese de trabalhar com voz em vez de apenas com outros instrumentos? Já trabalhei com vozes há muitos anos num projecto de homenagem ao Rimbaud, de uma organização chamada Saldanha, fizeram uma coisa no Coliseu e convidaram-me para fazer a música nos interlúdios das bandas pop que lá tocavam, eu fazia os interlúdios com o Al Berto, que recitava poesia dele inspirada em Rimbaud e eu tocava em simultâneo. E a voz no mesmo registo de improvisação dos instrumentos? Não sei se isso me agrada. Tens medo que saiam palavras dali? Ah não, não, desde que eu não tenha de as assumir... Não sei, a voz a improvisar... Tipo Phil Minton, consegues-te imaginar a dialogar com ele? Consigo dialogar mais ou menos com qualquer coisa, mas não no tipo pergunta-resposta, isso não. Prefiro trabalhar em paralelo do que em interacções directas, e quando os grupos são maiores isso não é bom para a música. Com grupos grandes isso quer dizer que uma pessoa acaba por destacar um elemento do grupo para dialogar e o resto passa para outro plano. Isso normalmente acontece quando um toca um bocadinho mais alto e tu agarras-te a esse.
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Isso é recorrente no jazz... No jazz e ainda mais na música improvisada, e acho que isso acaba por estruturar os temas todos da mesma maneira: começam todos baixinho, depois gradualmente todos a tocar cada vez mais até um caos, acho eu, sem grande interesse, e quando acham que já é demais começam todos a baixar ao mesmo tempo. Acho que isso é por as pessoas não estarem concentradas no global, fazem audições de elementos do grupo e põem outros de parte. Isso até aprendi com o Sei Miguel. Tens tocado muito com ele. Desde 98 até agora. Consegues identificar o que aprendeste? Foi imenso. Quando comecei a trabalhar com ele estava farto dos drones, já não tinha nada a dizer, sentia falta de tocar guitarra outra vez. Ele assistiu a um concerto meu na Sala do Risco, em que apresentei uma primeira parte de drones e uma segunda parte a tocar, e eu já tinha falado a uma pessoa em comum que gostaria de trabalhar com ele. Acho que lhe deve ter sido dado esse recado. Um dia ou dois depois ele ligou-me a perguntar se eu estaria interessado. No primeiro dia em que nos encontrámos foi só conversa, fez-me imensas perguntas sobre o que é que eu queria... Foi quase uma entrevista de emprego. Acho que ele queria era saber como é que havia de trabalhar comigo. Eu disse-lhe que não estava interessado em usar gadgets, queria tocar com as duas mãos mais ou menos independentes, usar os dedos todos, e ele depois ajudou-me, quase que criámos a técnica, ele é muito metódico (eu sou o oposto, acho). Entrega sempre tudo escrito, inventava exercícios, e foi assim também que construí a minha maneira de tocar, com o método dele. Pelo menos sei que nunca teria sido tão rápido se não tivesse tido a ajuda dele. E ele não é guitarrista. A audição global também foi um conceito transmitido por ele... São coisas em que eu não penso, mas sendo ditas tão claramente ajudaram-me imenso. Antes de trabalhares com o Sei Miguel estavas numa fase de liberdade, e o Sei Miguel aparentemente contrariava isso. Não te assustava? Acho que se tiver parâmetros, como acontece com o Sei Miguel, às tantas sinto muito mais liberdade a tocar em peças dele com menos espaço de manobra, sinto-me muito mais livre e criativo do que se calhar em situações de música improvisada em que nada está decidido, não há quase conversa com os outros músicos. Então, quando disseste que te querias esconder e tocar sozinho em casa, é para voltar a não ter esses tais parâmetros? Não, não. Estou a utilizar esses parâmetros. Não é para mudar de direcção. Neste momento sinto-me é cansado de expectativas e prefiro sentir que ninguém me conhece. Fiquei cansado de tocar demais, fiquei cansado do meio do jazz, não me está a apetecer lidar com o meio da música improvisada. Acho que poucos são os músicos que pensam mais no próprio trabalho do que no que hão-de fazer para arranjar concertos, ou entrar em festivais, ou editar. Tenho visto pouca reflexão sobre o trabalho. E sentes que tens mais progressão a fazer, procurar outras coisas na tua música? Eu sei concretamente o que quero fazer, não é bem um momento de reflexão. Só quero ter esse espaço... Mas estou cansado daquilo tudo. Vou só tocar quando tiver alguma coisa para dizer, não tanto para alimentar o meio. Isso é aprender a dizer Não. Ainda estou no B-A BA mas já estou a conseguir. Neste momento cheguei à conclusão que não vou conseguir viver
da música fazendo aquilo em que realmente estou interessado. No fundo é assumir também uma derrota. Ainda há um ano pensei: estou a dar aulas, mas estou a prender-me, agora vou fazer a tournée pelos Estados Unidos, vou à Alemanha, França e não sei quê, por isso vou desistir das aulas, faço isto tudo e depois continuo com o mesmo ritmo. É claro que fiz isso tudo, mas não continuei com ritmo nenhum porque isso tinha resultado de convites. Não posso estar dependente de convites que não sei quando surgem. Isso parou, entretanto desisti das aulas que estava a dar... Por outro lado fez-me pensar, acho que consigo melhor trabalho, o mesmo reconhecimento ou mais se não estiver tão presente e a tocar tanto. Não necessito… Necessitaria se fosse por dinheiro, mas como os concertos não envolvem dinheiro não faz sentido, só me estou a cansar mais e a cansar as pessoas também. Como é que vai ser a tua vida, para alimentares a música da forma que queres? Vais continuar a dar aulas de Geometria Descritiva? É o teu outro lado? Não, é mesmo por necessidade. Não é um grande sacrifício, gosto de lidar com os alunos pessoalmente, aprendo com isso, mas confesso que não o faria se não fosse por necessidade. Nunca pensaste em dar aulas de música? Acho que não tenho capacidade, tinha de conceber mesmo um método e não tenho método para dar. A maneira como tenho estado a fazer as coisas não é de todo nova, acho que é o mais antiga possível. É mais tocar, uma prática de dia-a-dia mais do que um conceito académico muito racional. Não tenho nada disso, por isso é que me seria muito complicado transmitir fosse o que fosse, em música. ///
Discografia
Quartets, CD, Headlights, Lisboa 2004. Leopardo, CD, Rossbin, Itália 2003. For Your Protection Why Don’t You Just Paint Yourself Real Good Like An Indian, CD, Headlights, Lisboa 2001. I wish I’d never met you, CD, Headlights, Lisboa 1999. Environment Analysis Report, CD, AnAnAnA, Lisboa 1995.
Dorsal, c/ Ernesto Rodrigues e Gabriel Paiuk, CD, Creative Sources, Lisboa 2004. Ra Clock, Sei Miguel, CD, Headlights, Lisboa 2002. Still Alive in Bairro Alto, Sei Miguel, CD, Headlights, Lisboa 2001. Circunscrita, David Maranha, CD, Namskeio, Lausanne, 2000.
headlightsrecordings@gmail.com
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Texto de Nuno Carvalho Fotografia de Luís Colaço
ENTRE A SOMBRA E O DESAFIO DA FAMA “Imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta.” Assim começa a Alegoria da Caverna de Platão. Citá-la num artigo escrito a propósito de uma exposição de graffiti art pode parecer desapropriado, no entanto, para além da descrição da caverna servir ao espaço que recebeu, pelo segundo ano consecutivo, a Visual Street Performance, há mais em comum. Ambos os textos partem da análise de sistemas de produção de imagens e os dois lidam com a “aventura” da percepção humana. Insistir nesta coincidência significaria chegar ao fim com um resultado radicalmente diferente do pretendido: documentar a montagem de um dos mais singulares eventos de artes visuais realizados no nosso país. A proposta foi bem recebida por todos os intervenientes na exposição, o Hibashira, o Hium, o Klit, o Mar, o Ram, o Time e o Vhils, todos eles membros da Leg Crew, alguns dos mais dignos representantes da terceira geração de writers portugueses.
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8 de Maio, primeiro dia de montagem da Visual Street Performance [VSP]. Já pouco falta para a meia-noite quando o Hium e o Klit descarregam de uma carrinha de caixa aberta alugada, uns móveis em acrílico transparente resgatados de um armazém de mobiliário a abater, para o interior do Espaço Interpress, em pleno Bairro Alto, uma oficina gráfica desactivada, convertida em salas de ensaio e espaço de exposições. Lá dentro já estão andaimes, painéis brancos de madeira, caixotes de cartão, no meio de muitas outras coisas, algumas delas restos da exposição anterior. Os outros não tardam a chegar e, em menos de nada, começam a trabalhar. Distribuem os materiais por vários locais e passam à montagem do andaime, sem precisarem de muita conversa. A organização parece improvisada no momento, mas é eficaz. Não passam mais de quinze minutos e o andaime já cobre uma parede com mais de doze metros de largura e alcança uns seis metros de altura. O próximo passo é pintá-la, criando um fundo uniforme que receberá os primeiros esboços de um mural colectivo. Todos fazem alguma coisa em prol do conjunto. O Hium assume as funções de assessor de imprensa. Qual é o objectivo desta exposição? A ideia é mostrarmos a nossa cena toda, tudo o que fazemos, desde os tags aos throw-ups, os stickers, os stencils, as telas, até ao wall-of-fame. Todos nós queríamos fazer uma exposição assim. A nossa primeira exposição, [1/4 de Graff, na Antiga Fábrica da Mundet, Seixal, em 2001], foi muito tradicional. Chegámos lá e pendurámos as telas, e as pessoas viram o nosso trabalho só assim. Mas nós queríamos uma cena mais real, uma cena mesmo de rua. Queríamos continuar a mostrar as telas, mas com o resto do nosso trabalho, pintar mesmo o espaço, construir uma cena a partir do nada. Depois encontrámos este espaço mesmo ideal… A organização da ocupação do espaço é pré-definida? Iá, discutimos isso entre todos um tempo antes.
Como é que financiaram o projecto? Arranjámos alguns apoios, patrocinadores. O que é que vos deram? Dinheiro e artigos para personalizar, para além da hipótese de desenvolvermos algumas parcerias. Parcerias? Como por exemplo? Por exemplo um dos sponsors comprometeu-se em distribuir internacionalmente o livro que vamos editar sobre as duas edições da VSP. Deu para cobrir as despesas? Deu para pagar o espaço, o aluguer do equipamento de som, o electricista, as viagens dos writers estrangeiros… Quem são os writers convidados? O Sague, um puto espanhol de 17 anos que pinta bué, com alta técnica. O Sye, outro espanhol, da Extra Large Crew, que é um gajo que agora está aí nas cenas todas, já tem uma lata da Montana com o nome dele e tudo. E o Ponk que é um amigo nosso inglês. Todos eles participam no wall-of-fame, cada sexta-feira um deles vai estar a pintar enquanto um DJ põe som. Qual é a finalidade dos expositores em acrílico? Expôr os ténis, os bonecos e as malas que vamos personalizar e os nossos produtos. Vão estar à venda? Sim, porque fazem parte da cena que nós queremos mostrar aqui. Para além dos produtos personalizados, temos uma t-shirt da VSP e quatro de nós – eu, o Klit, o Hibashira e o Mar – têm t-shirts próprias. Eu e o Klit ainda temos uma edição de pins: dois de cada um de nós e um da VSP. 12 de Maio, quinto dia de montagem. O Mar sobe e desce o andaime que lhe permite atacar a grande parede onde, mais tarde, todos pintarão o wall-of-fame que preside ao resto da exposição. É ele que desenha as sete personagens que, caricaturalmente, representam cada um dos intervenientes e que manipulam os seus próprios nomes, como se de marionetas se tratassem. O conceito é simples, mas eficaz. Uma das características principais do trabalho que se apresenta nesta exposição reside exactamente na capacidade
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de manipulação e de adaptação gráfica de uma identidade imaginária, seja ela representada por um nome (por exemplo, a letras vintage do Time), uma personagem (por exemplo, a lata de spray estilizada do Ram) ou um ambiente (as paisagens urbanas do Vhils). Uma palete de madeira serve de plataforma improvisada para o Hibashira conseguir alcançar uma parede branca sobre um vão de escada, onde já é visível o contorno feito a marcador de mais uma das suas imaginárias cidades futuristas. Parece igual a tantas outras que já criou, mas no entanto, como o próprio faz questão de frisar, todas elas são diferentes. Não só porque procura uma infinidade de formas e de combinações possíveis, mas porque a integração do erro no resultado final é uma constante, “queria que isto fosse uma antena parabólica, mas acabou por ser um edifício com uma forma um bocado estranha.” O Hium prepara um espaço – “Podia ser a minha sala.” – onde vai pendurar uma série de telas pintadas por ele. Neste momento está a terminar uma que pinta com spray através de stencils cortados a partir de fotografias de edifícios banais, tiradas num levantamento que ele próprio realizou na cidade onde vive. Noutra tela pintada com stencils, auto-representa-se a aplicar com trincha uma camada de tinta sobre um fundo de pernas de frango estilizadas, um dos símbolos que adoptou para disseminar a sua filiação ao Leg Crew. 15 de Maio, sétimo dia de montagem. O trabalho prossegue a bom ritmo, já se podem ver secções bastante avançadas ou mesmo quase terminadas. É o caso da ampla secção do Klit, duas paredes cobertas por um piece predominantemente verde serve de base para uma série de trabalhos de casa, que exibem uma enorme perícia e um domínio de uma série
de técnicas aplicadas sobre vários tipos de suportes: papel, telas, louças e um par de espelhos com molduras barrocas, para além dos ténis e dos toys personalizados. O barroco é talvez o estilo que melhor caracteriza o seu traço, minucioso e rebuscado, que concretiza sempre o mesmo elemento, um rebento que cresce como um bonsai nas mãos de um mestre japonês, assumindo as mais diversas formas. Ao lado, sobre um fundo cor-de-rosa, ganham forma um boneco e as letras do Time. Porque é que adoptaste o nome Time? Por nada de especial. Gostei das letras que formam a palavra, e tu para encontrares o teu estilo tens de estar à vontade com as letras que escolhes. E também porque gosto que seja um nome que se perceba… Só por isto, não tenho conceito nenhum, não existe nenhuma relação com o tempo. Mas por acaso o teu trabalho parece muito vinculado a um tempo preciso, aos anos 80. É o estilo que eu mais gosto, o dos finais dos anos 80 e princípio dos anos 90. Admiro muito o estilo do Mode 2, do Can2, do Sin, do próprio T-Kid… Ele sempre vem cá? Sim, acho que sim. O ano passado foi muito bom ter estado cá a Martha Cooper… acho que ela própria gostou bastante, pelo menos disse que o lançamento do livro Hip-hop Files aqui tinha sido a melhor cena. Veio bué pessoal vê-la, isto estava cheio. Achas que existe alguma distinção entre grafitti art e street art? Não. Acho que a grafffiti art abrange tudo. Lembra-te que antigamente eles diziam: “Para seres king tens de fazer tudo.” Ou seja tens de fazer comboios, tens de fazer bombing, walls-of-fame, isso tudo. Mas nessa altura eles não faziam autocolantes, nem cartazes. Para mim, quem hoje faz street art tem uma filiação no graffiti que não pode negar. Uns chamam-lhe evolução outros dizem que estão noutra cena, ou porque
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se cansaram de fazer coisas ilegais e de fugir da bófia, ou porque se cansaram de usar sprays e querem experimentar outros materiais. Mas a essência mantém-se… Sim. É sempre intervenção no espaço público para dar a conhecer o trabalho de alguém. Como é que encaras esta exposição? Vejo este espaço como uma continuação da rua ou, melhor ainda, como uma combinação entre a casa e a rua. Tens o graff na parede e tens na tela, juntas tudo num mesmo espaço. Todos vocês pertencem ao Leg Crew, mas nem todos os membros do crew participam na exposição… Os que não estão aqui estão mais orientados para a rua e não têm tanto a cena de pintarem as telas ou de usarem as outras cenas ou de recorrerem ao computador. Quase todos dos que aqui estão fizeram um curso de design gráfico, por isso temos uma base em comum que influencia o nosso trabalho, não trocamos entre nós só fotografias de coisas que fazemos na rua, mas também desenhos vectoriais ou cenas feitas no Photoshop. Sobre uma parede, um armário de ferramentas, alguns tubos e uma série de placas de cartão, projecta-se uma luz intensa. Aparece a imagem, uma árvore cheia de ramos e sem folhas e duas figuras humanas, que podem bem ter o seu tamanho real. É o Vhils que se prepara para a tarefa faraónica de a passar
para a parede, primeiro desenhando o contorno com um marcador e depois enchendo-o a pincel. Consegues identificar uma diferença entre o trabalho que fazes na rua e o que trazes pensado para aqui? Na rua sentes necessidade de pintares com o teu nome, dentro de uma galeria isso já não faz tanto sentido. Encaras a exposição como uma coisa à parte? Eu na rua tenho utilizado stencils e cartazes. Na rua não posso trabalhar como estou a trabalhar aqui, mas entre as duas existe uma ligação gráfica. O teu nome não está muito presente… Não me preocupo muito com isso. Nem aqui, nem na rua. Isso é uma forma de te afastares do graffiti clássico? Não, acho que não, porque continuo a pintar comboios, a fazer bombing. É isso o que eu mais gosto de fazer, tags e throw-ups. Mas sinto que, se fizer isso dentro de uma galeria, estou a gritar para o vazio – as pessoas ainda não compreendem. Talvez daqui a uns anos. Sentes alguma diferença em relação ao ano passado? Sim, a disposição dos trabalhos está diferente… Não, para ti, individualmente… Na altura o que eu estava a fazer não tinha nada a ver com isto, acho que mudei bastante e a minha participação reflecte isso. Mas noto que isso aconteceu mais ou menos com todos.
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O Ram remeteu a quase totalidade do seu trabalho à zona mais sombria da exposição, na qual disseminou uma série de mobiliário e objectos, aparentemente resgatados de uma fábrica antiga. Por entre o pequeno caos controlado surge o seu avatar, uma lata de spray estilizada até à sua essência gráfica, que tanto parece humana como nos remete para um imaginário extra-terrestre. Como é que encaras esta exposição? Foi uma forma que nós adoptámos de mostrar às pessoas algum do bom graffiti que se faz em Portugal, tentando que olhem para ele de outra maneira e que o compreendam. Para nós é uma curte, gostamos muito deste espaço e queremos continuar. Achas que funciona como um todo? Acho que sim. Cada um tem o seu estilo e o que tu podes ver aqui é uma fusão desses estilos que passam a funcionar como um conjunto, sem perderem a sua identidade. Acho que consegues identificar duas linhas que mexem muito com problemas sociais, e depois tens linhas focadas no estilo e no desenvolvimento das letras, ou seja, em questões gráficas. São linhas que resultam de posturas diferentes em relação ao graffiti. Por exemplo, eu podia ter estado três dias a personalizar os ténis, a desenhar, mas fui buscar uma das formas mais básicas do graffiti que é o fogo – toda a gente já escreveu o nome com um isqueiro, seja debaixo da mesa da escola ou no interior do comboio – e com ele marquei a superfície de couro. Qual é tua opinião sobre este lado da exposição, a customização de produtos? Somos um bocado forçados… Não é bem forçados, mas temos de fazê-lo como contrapartida pelos patrocínios. Sentes isso como uma obrigação? Sinto que podíamos estar mais focados em muito mais coisas do que estar a pintar produtos comerciais. Vês isso em todo o lado e já não traz nada de novo, e sinto que nos últimos dois anos perdeu-se muito no graff – e não só no graff, mas também no design – por causa dessa cena, que não passa de uma competição, instigada pelas marcas, e de uma moda.
18 de Maio, noite da inauguração. Já passa da hora marcada quando a pequena porta de ferro, que dá acesso ao amplo espaço de exposição, abre ao público. Tal como durante a montagem continua a ouvir-se música, mas agora ao sabor do DJ de serviço. Os visitantes circulam por um espaço limpo e arrumado, todas as paredes estão pintadas e bem iluminadas. Ou seja, o espaço está radicalmente diferente do que estava há dez dias atrás. Os responsáveis pela mudança, exaustos, assumem o papel de anfitriões. A VSP pode ser entendida como uma demonstração de uma forma de produção e disseminação de imagens, assumidamente comprometida com aquelas que poderão ser as orientações da graffiti art (ou street art) internacional e conscientemente sujeita às regras da visibilidade na sociedade contemporânea – no seu website pode ler-se “Out for fame” numa tatuagem. É assim que estes artistas vão construindo o seu próprio espaço – apoiados numa capacidade de iniciativa eficaz, numa enorme força de vontade e num rigor técnico crescente –, tanto enquanto indivíduos como enquanto colectivo. No interior desta caverna as sombras dos objectos originadas pela entrada de luz, que a atravessa de um lado ao outro, não são negras nem são básicas. Nem aqueles que são, por ora, os seus habitantes estão agrilhoados com o olhar imobilizado. Pelo contrário, são eles próprios que manipulam as sombras à sua maneira, dando-lhes as cores e as formas que pretendem.///
Visual Street Performance Espaço Interpress (Bairro Alto), de 18 de Maio a 3 de Junho, 2006 www.visualstreetperformance.com
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E DURO, E DURO, E DURO…
Texto de Pedro Gonçalves aka Boldfinger Ao som de Diplo, Favela Strikes Back (Hollertronix, 2005); Cocteau Twins, Lullabies to Violaine (4AD, 2006); Spank Rock, YoYoYoYoYo (Big Dada, 2006) Fotografias de Ana Gilbert Legendas de Kalaf
Sexta para sábado, 19 para 20 de Maio, cerca das três da manhã Há dias em que determinadas coincidências fazem ponderar, ainda que por escassos instantes, sobre a existência de uma qualquer força cósmica/espiritual que organiza cruzamentos entre pessoas. Numa tarde de sexta-feira de Maio, sabendo que iria poucos dias depois entrevistar o Buraka Som Sistema, sento-me em frente a um browser e faço uma pesquisa no Google pelo nome do colectivo. Aparece então, de pronto, a indicação do albergue do Buraka Som Sistema no MySpace e aí, por sua vez, deparo-me com o facto de que, no serão desse mesmíssimo dia, o Clube Mercado, na Rua das Taipas, receberia a segunda actuação mensal deste pioneiro projecto de exploração do universo do kuduro. Nem foi tarde nem foi cedo. Seriam, portanto, umas três da manhã e das colunas do Mercado saíam beats digitais a puxar pelos graves, apontamentos electrónicos a esticar os agudos e a prestação de três MCs tão diferentes como presentemente dedicados à difusão, em Lisboa, daquilo que diariamente se vai fazendo em Luanda em matéria de música assumida e ostensivamente hedonista. No Clube Mercado estão muito mais pessoas brancas do que pretas. Isso surpreende-me sobremaneira, mais ainda quando recordo 26 anos a viver junto de bairros como o 6 de Maio e a Cova da Moura, ali mesmo juntinho à Damaia. Ora se o kuduro é de inspiração angolana e é conhecida a mobilidade em massa da comunidade africana para locais de prazer nocturno com música a condizer com as raízes, que coisa
estranha se passava ali? De onde saíam, inclusivamente, alguns grupos de betos engomados que ali aterravam? Hoje a explicação parece-me relativamente simples: além do engano que por vezes se dá quando se escolhe um espaço para passar umas horas, o Buraka Som Sistema faz aquilo que mais ninguém faz: tornar acessível a ouvidos, digamos, “ocidentalizados” um som que na sua génese é sobretudo uma dança frenética, vagamente erótica e muito ligada à maravilhosa negritude do tom de pele. O que há, portanto, é uma data de curiosos, mais um número apreciável de freaks que está já perfeitamente convertido a esta forma de queimar calorias de forma muito pouco onerosa. Surpreendentemente, dos mais improváveis corpos saem as mais inspiradas manobras de dança. No formato “ao vivo”, o Buraka Som Sistema tem em Lil’John e Riot (ambos da Cooltrain Crew) os manipuladores dos discos e em Kalaf (Spaceboys, 1-Uik Project, etc. etc. etc.), Conductor (Conjunto Ngonguenha, entre numerosas outras colaborações) e Petty (ilustre adolescente desconhecida com o diabo no corpo e na voz) os MCs que colocam as palavras de ordem em seu sítio, em jeito de hooks e word-ups também comuns a outros géneros. O que ali se passa é, basicamente, kuduro. Mesmo que haja quem lhe chame nu-kuduro, kuduro digital ou kuduro progressivo. E o calor, que em Lisboa já não é pequeno na ocasião, atinge naquela cave níveis absolutamente lânguidos.
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Kalaf aqui como hype man. Enchufada massive em busca do beat mais eficaz e do groove mais abrangente para unir o mundo tanto nos planos geográficos e artístico, como no plano espiritual. Se esta energia faz sentido em Luanda o mesmo pode suceder em Lisboa ou em Tóquio.
Conductor aka Cubano. Produtor, MC, hype man e outros mambos. Elemento fundamental na construção lírica do BSS. Os que ouviram a Ngonghenha e gostaram da mistura “farinha musseque com água ou whisky”, dependendo dos gostos de cada um, podem contar aqui com o mesmo sentido de humor e arrojo na sua abordagem musical.
Lil’John e Riot a cozinhar o mambo. A soltar efeitos para levar o massivo ao espaço. Uma vez ao vivo os temas ganham outro sentido. Todos os excessos são aqui permitidos. A regra é quebrar todas as regras, para que se entenda, de uma vez por todas, que Lisboa é a maior fonte de inspiração.
Sexta, 2 de Junho, cerca das quatro da tarde Não estou na Buraca. Estou em Campo de Ourique, bairro lisboeta há muito conhecido pela sua produtividade em matéria musical urbana. É aí que se situa a Enchufada, de que Lil’John e Kalaf têm vindo a ocupar-se nos últimos tempos. Além de funcionar como editora, na Enchufada é já possível encontrar um mini-escritório e um estúdio dividido entre régie e sala de gravação. Kalaf e Lil’John já por ali andam, como todos os dias, e à medida que vão desfilando nos monitores do estúdio os temas do próximo álbum do 1-Uik Project, com edição aprazada lá para Setembro, vão também chegando Riot e Conductor. A ocasião serve ainda, não apenas para ouvir aquilo que está já feito para o primeiro EP do Buraka Som Sistema (que inclui temas como Yah!, Wababa, Com Respeito e Sem Makas), como, para delícia e aprendizagem do repórter, fabricar no momento uma compilação com alguns temas representativos do kuduro que vem sendo feito em Angola e no qual, à falta de representantes portugueses do género, o colectivo se vai inspirando. Dizem, sem reservas, que todas as semanas conseguem ouvir produções cada vez mais evoluídas, ao mesmo tempo que vão explorando os universos de gente como Dog Murras, DJ SL, DJ Baby T e Sebem. Sebem que, curiosamente, é o autor de Felicidade, que há não muitos anos foi praticamente apresentado por Hélder, o Rei do Kuduro, como uma produção própria, é-me então contado. A opinião sobre esse fenómeno monárquico do kuduro é, de resto, consensual entre os meus interlocutores: fez mal ao género. Tenho a certeza de que muitos desconfiariam já desse facto. Nos temas, ainda a precisar de mistura, trabalhados para o EP de estreia, o Buraka Som Sistema faz por “organizar” aquilo que ao vivo é exponencialmente mais caótico, espontâneo e permeável às surpresas momentâneas. A ideia é, então, criar linhas rítmicas acopladas a melodias simples e electrónicas sobre as quais se espraiam as palavras de ordem e de prazer debitadas em boa parte por Petty e adornadas pelo tom masculino de Kalaf e Conductor. O EP é, por assim dizer, uma espécie de teste público para ver o que dali pode vir num futuro mais ou menos próximo, conforme a reacção de quem o escutar. É que não deixa de sentir-se no ar a dúvida: resultará em estúdio aquilo que tão bem resulta em palco? O estúdio! Aqui o kuduro original é fundido com o que de mais urgente e estimulante a dance music nos consegue oferecer. Não há regras… Se não uma muito simples: tem de ser boa música, que nos faça correr para o clube e partilhar com aquela audiência louca.
A génese do Buraka Som Sistema pode, de acordo com Lil’John, identificar-se no final do Verão de 2005, numa viagem a um lendário ícone da cidade de Lisboa: a Feira da Praça de Espanha. “Fui eu, o Kalaf e o Rui (Riot). Andávamos a falar disso já há algum tempo e houve um dia em que decidimos lá ir e comprar umas três compilações de kuduro. Comprámos uma chamada Angola em Festa, uma do MC ou DJ Costeleta e outra coisa qualquer. A primeira coisa que fizemos foi fecharmo-nos, eu e o Rui, a ouvir os beats
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O kuduro, sem os seus movimentos de dança intensos e libertinos, provavelmente não teria o mesmo impacto. Falamos de um género que tem a função principal de nos fazer dançar imediatamente. Não sabe dançar? Inventa! É assim nos guetos de Angola, de norte a sul, bem como em qualquer club ou festa familiar onde este género se manifesta.
e a fazer como que re-edits dos sons. Uma coisa que achámos engraçada, e nós não percebemos muito de notas de música, foi o facto de haver sons que estavam fora de tom com as vozes e o resto. Por exemplo, havia casos em que, por cima de um instrumental, o que estava a acontecer era uns a passar o microfone aos outros. Quase que se ouvia o microfone a passar de mãos. Mesmo os próprios refrões aparecem na música numa altura qualquer. É fixe, mas numa versão mais ocidentalizada das coisas não faz muito sentido. Essas sempre me pareceram barreiras para que o kuduro fosse uma música passível de ser ouvida por muito mais pessoas”, explica o DJ e produtor. A cirurgia aplicada aos sons originais foi, em boa parte, motivada por duas noites que então a Enchufada tinha agendadas, uma para o Lux, em Lisboa, e outra para a Casa da Música, no Porto. A Casa da Música foi a madrinha do Buraka Som Sistema: durante a actuação, “e no Porto nunca se vêem muitos blacks” (Lil’John), começaram a difundir a mensagem de que aquele era o som da Damaia, da Buraca, da Reboleira. Pouco tempo depois, Conductor junta-se à missão e traz consigo “a MC sensação do kuduro lisboeta”, Petty. Nasce então Yah!, um dos temas a incluir no citado primeiro EP do colectivo. Se tanto ao vivo como em disco há na facção masculina do Buraka Som Sistema o lado mais cerebral que define as coordenadas da música, é na adolescente Petty que se encontra a ligação com os prazeres imediatos da dança, que sempre faz falta. Conductor explica a “contratação milionária”: “A Petty é sobrinha da minha namorada. Apareceu lá em casa e vi que tinha muito power. Tudo o que ouve, decora e canta. E muitas vezes tem mais power do que o artista original. Achei que não podia ficar em casa trancada. Primeiro pu-la a gravar umas cenas de rap. Ela estava um bocado de pé atrás em relação ao kuduro, porque ainda é visto como música dos subúrbios. Há um bocado aquela divisão: o semba é música da city, o kuduro é música do gueto. Mas quando viu a motivação e o apoio das pessoas ficou mentalizada para isto”. Antes disso, também Conductor havia recebido um convite de Kalaf para dar uma mãozinha ao Buraka Som Sistema. A motivação de Kalaf teve, em boa parte, origem na banda-sonora desse Verão, precisamente o Conjunto Ngonguenha. “Achámos que era necessário o contributo de alguém que não tivesse uma ideia tão formatada sobre a dance music, alguém que chegasse com ideias frescas sobre o que estávamos a fazer. Como no Conjunto Ngonguenha o Conductor conseguiu mesclar de forma fantástica o hip hop com certos elementos da música angolana, era a pessoa certa. Quando falei com ele, perguntei-lhe quais eram os MCs à sua volta com energia e vontade de entrar numa coisa destas. Disse logo: a Petty”, recorda. No momento estão já “na lista de espera” outros MCs para fazer outras coisas com o Buraka Som Sistema. Um deles é o rapper Tekilla.
O público. Embora ainda seja cedo para se desenhar um perfil do público que frequenta as nossas sessões, não deixa de ser interessante observar a libertação dos tabus e a vontade de transcender o corpo. … O ritual BSS... Nas semanas seguintes, sempre que nos cruzamos com os que experienciaram o kuduro progressivo, há sempre uma troca de olhares e sorrisos cúmplices.
Reparem nos sorrisos marotos de Riot e Lil’John enquanto Petty debita as suas rimas. Sabíamos que o kuduro tem tudo para incendiar qualquer pista de dança, mas quando se está realmente numa, às vezes torna-se difícil acreditar que realmente tudo é possível.
Antes de se ligar o gravador, repórter e interlocutores estiveram longos minutos a discutir as designações já aventadas para a música do Buraka Som Sistema. Olhando para um flyer relativo ao Popular Soundclash, que decorreu em Lisboa na noite de St.º António, lia-se “nu-kuduro” e em boa verdade nenhum dos presentes encontrava a lógica da definição, mesmo que um ou outro fosse mais condescendente com a velha questão da rotulagem. Repesco o assunto, agora para registo em fita. Conductor é o primeiro a chegar-se à frente: “A minha descrição é uma mistura de kuduro com música electrónica. O kuduro em Angola tem-se desenvolvido nos últimos três anos, tem chegado aos samples, e acredito
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A febre, a adoração da musa, ou simplesmente o massivo em transe!
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Mercado Club. A falta de pudor é geral. Todos se entregam a essa orgia musical de uma forma desinibida. Embora o público feminino seja mais reservado, é uma questão de tempo até vermos os soutiens no ar!
O sorriso de Petty não engana. Quem passou o mic para as mão dessa candengue? Palavras de ordem e outras asneiras são atiradas ao ar para o deleite do público.
Petty prepara-se para demonstrar alguns passos de kuduro, dando também as boas vindas aos que não estiveram na primeira noite do BSS. Há uma aura religiosa ou é só impressão minha?!
“Na pista Petty é quem comanda do Balezão a Mianga”... Temos hit? Yah! Este tema cai no dance floor, a casa vai ao rubro, gritos e t-shirts para o chão...
que tem uma grande margem de progressão até ser um estilo sólido. Por isso nu-kuduro é demasiado forte”. Depois vem Lil’John: “Uma jornalista do Público chamou a isto kuduro progressivo”. Riot: “O pessoal achou piada porque faz a ligação com o house progressivo e com tudo o que soa um bocadinho diferente, mesmo que não tenha progressão nenhuma. Identificamo-nos todos com o nome kuduro progressivo porque o estilo original ainda está em constante progressão. Todos os dias saem beats diferentes”. Kalaf, o mais intransigente de todos quando a conversa ainda era informal, prefere aqui calar-se em aparente concordância. Quando se fala de um dos mais prolíferos criadores angolanos do estilo, Dog Murras, recorda-se que o que actualmente faz é misturar elementos da música angolana numa base dançante e electrónica. Chama-lhe kazukuta. “Tem que ser por aí, uma definição qualquer completamente nova”, diz Lil’John. Imediatamente vamos do “psichichiri” ao “brokenduro”. A forma como um determinado meio português se tem entregue às festas protagonizadas pelo Buraka Som Sistema é, para estes músicos, o resultado da tal fusão do kuduro original com elementos musicais que todos eles assimilam, do house ao drum’n’bass. É essa aproximação a uma realidade “ocidentalizada” e, mais concretamente, portuguesa que faz com que, por exemplo, nas sessões da Cooltrain Crew, as reacções mais efusivas surjam ao som de remisturas feitas para gente como os Taxi, os Blind Zero ou os Blasted Mechanism. É assim que o Buraka Som Sistema olha para a disseminação da sua música, mesmo havendo dúvidas sobre a viabilidade da dita nos espaços africanos mais “tradicionais”. Porque em relação ao kuduro propriamente dito não há pruridos, como verbaliza Conductor: “O kuduro é o género de música africana que põe mais gente na pista. Na noite africana há muito o vestir a rigor e o não-me-toques, mas quando entra o Comboio (um dos temas-emblema do kuduro angolano) é a loucura”. Kalaf acrescenta: “Essa é a beleza da música pop, a capacidade de juntar pessoas em torno de uma bandeira só, que é a nossa música. Estamos a falar do mundo lusófono. Todos nós temos um passado em África e todos nós temos um passado na Europa, que para nós é Portugal. O Booty La La (dos Bugz in the Attic) bate em Londres. Aqui bate a Felicidade, o Comboio ou o Yah!, que acabámos de produzir. Discute-se muito se a música portuguesa consegue apelar às massas, e é também por isso que fazemos o que fazemos”.
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Ao mesmo tempo que assumem claramente estar ainda à procura da sua identidade suprema, os elementos do Buraka Som Sistema têm o feedback de pelo menos dois DJs que passaram já Yah! em noites londrinas com assinalável sucesso popular. “O factor que importa é haver elementos que esses DJs nunca ouviram. Quando ouvem o Buraka Som Sistema, além de haver um beat que podem usar na pista de dança, tentam identificar as coisas. “Tem um bocadinho de… Tem um bocadinho de quê?”. Vão ao Google e tentam perceber o que é. Não vou estar com falsas modéstias, esse foi um dos factores importantes que gerou isto tudo: descobrir uma cena massiva que estava a ser feita em Luanda e que pode ser tão nova aqui como no Japão”, afirma Lil’John. Kalaf remata: “O mundo é tão pequeno que, se houver uma bomba em Lisboa, ela vai ouvir-se na Conchichina”. Sobre aproximações e comparações a géneros como o baile funk, o reggaeton ou o grime, entendemo-nos facilmente: as semelhanças estão no facto de serem músicas de periferia e de usarem meios relativamente rudimentares por falta de soluções melhores. Nada de confusões, portanto. Agora é a vez do kuduro. Progressivo, talvez. E, por ora, em Portugal esse está nas mãos do Buraka Som Sistema. Ali em Campo de Ourique. ///
www.myspace.com/burakasomsistema www.enchufada.com
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Uma sessão de treino de Jiu Jitsu Brasileiro, ou Gracie Jiu Jitsu, fotografada por Luís Colaço.
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Equipe Sandro Bala: http://sandrobala.no.sapo.pt Federação Portuguesa de Jiu Jitsu Brasileiro: http://fpjjb.com Confederação Brasileira de Jiu Jitsu: www.cbjj.com.br All Japan Ju-Jitsu International Federation: www.ajjif.org
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Texto de Miguel Moore Fotografias de Paulo Barata
COLAGENS URBANAS EM MULTIDÃO
Nos últimos anos, de entre os fenómenos de reapropriação estética do espaço público, a prática de colagens tem ganho um especial lugar de destaque. Nas ruas de lisboa, a slang foi seguir uma pequena multidão em plena prática.
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É uma das primeiras noites de calor do ano. Em Lisboa, depois de um chuvoso início de Abril, o tempo parece ter finalmente aberto uma trégua. São cerca das 23h45, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, ao Carmo. Enquanto o Sleep se estica sobre o vão de entrada de uma loja que se encontra desocupada, à altura de um primeiro andar, há cerca de vinte outras pessoas que aguardam e olham do outro lado da rua. A montra do piso térreo já quase desapareceu por baixo da multiplicidade de colagens que os outros lá deixaram – monstros, personagens e trabalhos gráficos de múltiplos formatos e feitios. Lá em cima, o Sleep prepara a superfície lisa do vidro e cola uma das suas pinturas em papel de cenário – um grande e simpático monstro laranja e violeta que parece comer um dos seus iconográficos polvos amarelos. A subida para a plataforma foi a custo, o Ataca e o Pensamiento Libre já o tinham conseguido, mas o tamanho, a escala e o impacto que o trabalho do Sleep provoca em quem já colou os seus e observa do outro lado da rua é contagiante. Há inúmeras máquinas fotográficas a disparar, uma câmara que regista em vídeo, mandam-se bocas e risadas. Outros ocupam-se a recolher os materiais que haviam espalhado pelo passeio: cartazes e demais trabalhos gráficos em papel prontos a serem colados, são de novo enrolados; guardam-se trinchas e rolos nos baldes com cola; recolhem-se extensores e arrumam-se sacos e mochilas. A azáfama que se instalou desde que o grupo alí chegara não podia ter sido maior. Parece um circo de rua, e desta forma, para as restantes pessoas que passam, olham e comentam a acção, nem parece ser uma actividade ilegal.
as suas dificuldades. Mas o entusiasmo é grande, e ninguém parece preocupado. Curiosamente ninguém aparenta vir de Lisboa. O Misha e o Pensamiento Libre têm raízes anglo-saxónicas. O Ataca e a Miss Lettuce residem na Holanda. Apenas a Lola e a Phyusis encontram-se a estudar e a viver na cidade, mas ao fim-de-semana regressam aos respectivos locais de origem. São a excepção. O resto vive sobretudo nos arredores, na linha do Estoril, Almada e Setúbal. Esta última cidade tem apresentado nos últimos anos uma das maiores e mais intensas produções no campo da chamada Street Art em Portugal. Oito dos nossos companheiros nesta noite vêm de lá. Quando se quer causar o maior impacto possível, Lisboa continua a ser o ponto de referência. O ecletismo deste grupo também é grande. A maioria das idades ronda os vinte e poucos anos, mas há veteranos de 31, 32 e 35 anos que já intervêm na rua há mais de uma década. Há gente que se expressa em muitos meios: graffiti, pintura, stencils, autocolantes, colagens, rabiscos. Há outros que se concentram em apenas um ou outro destes médiuns. A maioria ainda estuda, mas há quem trabalhe e há quem esteja entre uma e a outra situação. Há rapazes e raparigas, homens e mulheres. Há quem desenvolva trabalho estético noutras áreas mais convencionais, e há quem se dedique à intervenção na rua. Os desdobramentos são infindáveis. Mas, tendo em conta um dos pontos-chave dos fenómenos gráficos de rua de natureza ilegal, um certo misticismo que reveste o jogo deve-se precisamente ao anonimato em que se movem os intervenientes.
Do grupo total, cerca de catorze são pessoas que intervêm nas ruas da capital regularmente: Andie; Ataca; Biuh; Escolha; Ink; Lola; Misha; Miss Lettuce; Naxa; Pause; Pensamiento Libre; Scar; Sleep; Phyusis. Junte-se a isto fotógrafo, jornalista, e alguns acompanhantes. Para uma actividade geralmente desenvolvida em pequenos grupos, o facto de nos termos organizado em multidão cria uma espécie de suporte sem reservas e parece acabar por instilar uma autoridade que não possuímos. Parece de facto uma excursão inofensiva. Havíamo-nos encontrado no Chiado uma boa meia hora antes, entre atrasos e desistências, pessoas que esperavam ao lado e não se haviam reconhecido, telefonemas de última hora. Há pessoas que se conhecem há muito e outras que se acabaram de conhecer. Somam-se exclamações, trocam-se autocolantes e outros trabalhos, tecem-se comentários sobre este ou aquele sítio que talvez seja bom para colar. Há quem esteja entusiasmado por finalmente conhecer uma ou outra cara que está por detrás de um nome e de um trabalho que já conhecia há muito. Quando por fim nos começamos a mexer, torna-se visível o que já se previra: manobrar um grupo tão grande numa missão que em tudo costuma ser do mais apagado possível apresenta
Como herdeiro directo da escola do graffiti clássico nascido em Nova Iorque, o fenómeno da Street Art acabou por seguir tendencialmente as suas linhas directrizes. Como a ideia de tentar alcançar a maior exposição, visibilidade e reconhecimento possível no meio urbano, a oposição, aproveitamento e subversão dos sistemas de comunicação pública, a difusão prolífera e massificada da identidade individual traduzida de forma iconográfica. O Wheatpasting, como é conhecido em inglês o fenómeno das colagens, é uma actividade com raízes antigas. A afixação de cartazes, enquanto veículo promotor de um determinado conteúdo, é uma actividade que data da invenção do papel, explorada sobretudo a partir da invenção dos meios mecânicos de reprodução no século XIX, que catalizaram o seu uso para a propaganda, a publicidade e o protesto. No século XX tornou-se um meio ideal para a expressão de protesto de cariz político, aperfeiçoado nos períodos quentes das décadas de 60 e 70. Em meados dos anos 80, sobretudo em Paris aquando da explosão do fenómeno de arte de rua, seria reconvertido como suporte de expressão estética ilegal. Popularizado a partir dos anos 90 por nomes
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como os writers americanos Cost e Revs, e o propagandista iconográfico Obey, instalou-se confortavelmente no meio do fenómeno de apropriação estética urbana que tem fervilhado nos últimos anos. As suas características permitem desenvolver trabalhos de pequenas ou grandes dimensões em casa, pintados ou impressos, que são facilmente espalhados pelas paredes do espaço urbano, contornando assim os problemas de falta de tempo e demais factores de risco que acompanham as actividades ilegais desta natureza. Com um balde de cola, uma trincha ou rolo, uns cartazes debaixo do braço e uma certa dose de destreza torna-se uma actividade acessível. Descendo a Rua do Carmo em direcção aos Restauradores, onde o Naxa se lembra de ter visto um sítio potencial (a montra de um espaço desocupado, anteriormente pertença de um banco), a pequena multidão deambula em grupos. Há quem esteja de marcador na mão e vá semeando rabiscos, bonecos e tags pelas estruturas urbanas. Outros espalham autocolantes, saltando alto ou esticando-se para os deixar acima da linha de alcance dos transeuntes. Na rua 1.º de Dezembro deparamos com outra montra vazia de uma loja desocupada. Não hesitamos. A superfície de vidro é perfeita para a colagem de papel, e como na sua maioria se encontram livres de cartazes ou graffiti acabam por ser preferidos em relação às paredes. Levanta-se alguma discussão sobre se será ou não legítimo colar este tipo de trabalhos por cima de alguns tags que se encontram rabiscados no vidro, na perspectiva de que os estarão a abafar. As opiniões parecem divididas. Os mais novos parecem oferecer mais resistência, argumentando o respeito para com writers muito conhecidos. Os mais velhos parecem ver as coisas de outra forma e trazem ao de cima os conceitos de sobreposição herdados do graffiti clássico: um trabalho maior e mais complexo terá sempre legitimidade de se sobrepor a outro menos elaborado. Nesta lógica pode-se mandar um bombing por cima de um tag, ou um piece por cima de um bombing sem consequências e sem intenção de desrespeito para com o outro writer. Na perspectiva destes últimos a colagem de um cartaz por cima de um tag obedece perfeitamente a esta lógica. Mais à frente, nos restauradores, a acção leva tempo demais. A descontracção dos intervenientes e a dimensão do grupo acaba por chamar a atenção de uma patrulha da PSP que decide intervir. Parte das pessoas que já tinham terminado a sua colagem já se afastou do local, mas sobram alguns que são questionados. Com alguma conversa tudo se resolve, talvez devido à natureza aparentemente mais inofensiva e passível de ser entendida num contexto mais comum,
do que uma intervenção como o graffiti. Mas tudo depende das circunstâncias. O resultado da intervenção foi, no entanto, notório. A montra foi transformada em espaço expositivo. Há trabalhos pintados directamente sobre papel, outros desenhados com marcadores, outros ainda que são digitalizados e impressos em grande formato, e alguns que são impressos com pormenores posteriormente pintados por cima. Todos eles apresentam em comum o desenvolvimento de um ícone ou de uma personagem usado como símbolo de identidade própria, permitindo uma rápida leitura e familiaridade visual: o boneco do Escolha, pintado à mão sobre papel; as bonecas da Phyusis, também trabalhadas e pintadas à mão; os monstros do Ataca e da Miss Lettuce junto com as suas intervenções libertárias, trabalhados digitalmente e impressos em grande formato; os desenhos autobiográficos em marcador sobre papel de cenário do Pensamiento Libre ou as suas intervenções mais políticas impressas artesanalmente; os ratos iconográficos do Biuh pintados sobre papel A3; os polvos estilizados do Sleep, desenhados e pintados a pincel em folhas grandes; os símbolos do Pause trabalhados a computador e impressos em casa; o trabalho iconográfico e pessoal da Lola, com imagens trabalhadas digitalmente e impressas; o ubíquo cão tigrado do Misha, impresso em grande formato; a voadora Mary Poppins impressa pela Miss Lettuce; o boneco com cicatriz do Scar; o galo do Naxa, a abelha maia do Ink; as borboletas da Andie. Todos interagem com os transeuntes, todos reclamam o espaço público como arena de emoções e interacção comunicacional. Enquanto seguimos noite fora pelas ruas do Chiado, Bairro Alto e zonas circundantes, entrando em cafés para encher os baldes com água e fazer mais cola, esquivando-nos da polícia aqui e ali, as acções vão-se multiplicando. Entre algum cansaço que se vai instalando e pessoas que vão deixando o grupo e voltando para casa, há ainda tempo para mais uma ou outra colagem, mais um caixote de lixo puxado a servir de apoio para se chegar mais alto, mais demonstrações de escalada em janelas gradeadas e conversas com estrangeiros que perguntam o que fazemos. Há tempo para comentar outros trabalhos e intervenções antigas que vamos encontrando, de quem está ou não presente, de quem fez por fixar uma imagem que reclama o seu espaço no padronizado meio urbano. Já de madrugada, com a cola a dar de si, os termómetros ainda marcam 15º C e os almeidas já lavam as ruas. É tempo de arrumar as coisas no carro e seguir viagem. Amanhã há que acordar cedo, para ir fotografar e avaliar os danos semeados pela passagem da excursão. ///
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Ghost on the Happy Trail, 2003. �leo sobre tela. 183 x 366 cm. Copyright Nigel Cooke. Cortesia Stuart Shave Modern Art, Londres
Texto de Mark Fisher Tradução de Pedro Vieira de Moura
A MELHOR FORMA DE DESCREVER O TEMA DA PINTURA DE NIGEL COOKE, DE QUEM RECENTEMENTE SE APRESENTOU UM PEQUENO NÚMERO DE OBRAS, NA SUA EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL A PORTRAIT OF EVERYTHING [UM RETRATO DE TUDO] NA SOUTH LONDON GALLERY, É TALVEZ DIZER QUE SE TRATA DE “DECADÊNCIA ONTOLÓGICA”. THE THEME OF NIGEL COOKE’S PAINTINGS, A SMALL NUMBER OF WHICH WERE RECENTLY EXHIBITED IN HIS SHOW, A PORTRAIT OF EVERYTHING, AT THE SOUTH LONDON GALLERY, MIGHT BEST BE DESCRIBED AS ONTOLOGICAL ROT.
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Country Club, 2005-06. ”leo sobre tela. 220 x 370 cm. Copyright Nigel Cooke. Cortesia Stuart Shave Modern Art, Londres e Andrea Rosen Gallery, Nova Iorque
Pyroclastic Fever, 2003. ”leo sobre tela. 25.5 x 35.5 cm. Copyright Nigel Cooke. Cortesia Stuart Shave Modern Art, Londres
O trabalho de Cooke apresenta-nos explicitamente o que parecem ser, pelo menos, duas realidades diferentes, ambas decadentes. Os primeiros planos são usualmente ultra-naturalistas (sendo cenas retiradas de cartões de Natal as especialmente favoritas), ao passo que os fundos são desolados, tão vazios que quase se tornam desses abstractos que encontramos em Yves Tanguy. Também caracteristicamente, são desfigurados por graffiti. A que se deve este fascínio de Cooke pelo graffiti? O artista descreveu a sua tradução dos graffiti na sua pintura (na qual usa tintas a óleo para criar o mesmo efeito) como “linguagem de rua tornada mais lenta”, e há mesmo uma maneira como as suas pinturas parecem funcionar como um instrumento de captação de movimento, realizando uma transliteração das energias da música urbana para a pintura. Esta é uma pintura que sucede ao hip-hop e ao jungle, na qual as suas “arquitecturas impossíveis” estão em paralelo com as topologias bizarras inventadas pelas produções sonoras que partem do sampling. O graffiti parece fazer duas coisas ao mesmo tempo na pintura de Cooke: por um lado, exerce uma certa violência ontológica sobre a realidade representada nas pinturas ao fazer-nos centrar a nossa atenção no facto de que a pintura, afinal, não passa de uma superfície plana. Ou seja, diz-nos aquilo que já sabemos: isto não é um mundo. Mas ao mesmo tempo o graffiti constitui-se a si mesmo como uma realidade, uma pintura dentro de uma pintura (ou talvez antes uma pintura sobre uma pintura): isto é um mundo, parece frisar. O que nos leva a deduzir, imediatamente a seguir, a existência de uma outra realidade, a qual, desta feita, é invisível: a realidade do pintor de graffiti, o autor “idiota” que desfigurara o mundo representado da pintura. Estamos neste ponto perante o equivalente em pintura dos labirintos textuais criados por Beckett, Borges ou Robbe-Grillet, mas em vez de termos autores incrustados no interior dos textos, temos um pintor, uma criatura que se tornou criadora, um golem que se tornou Deus, um demiurgo ébrio que tem de conceber todo um mundo com apenas uma lata de spray na mão.
Cooke’s work explicitly presents us with what seems to be (at least) two different realities, both decaying. His foregrounds, typically, are ultra-naturalistic (Christmas card snow scenes are a particular favorite). The backgrounds, meanwhile, are desolated, empty to the point of being Tanguy-abstract. Typically, they are also defaced by graffiti. Why is Cooke so fascinated with graffiti? He has described the rendering of graffiti in his painting – he uses oil paints to create the effect – as ‘slowed down street language’, and there is a way in which his paintings function like a motion capturing device, transliterating the energies of urban music into paint. This is painting after hip hop and jungle, with the paintings’ ‘impossible architectures’ paralleling the bizarre topologies invented by sampler-based sonic productions. The graffiti in Cooke’s paintings seems to do two things at once: it does ontological violence to the represented reality of the paintings by drawing our attention to the fact that, after all, the painting is nothing more than a flat surface – it tells us what we already know: this is not a world. At the same time, the graffiti constitutes itself as a reality, a painting within a painting (or perhaps a painting over a painting): this is a world, it insists. And, immediately, we have to infer the existence of yet another reality, this time unseen – the reality of the graffiti-painter, the ‘idiot’ author who has defaced the represented world of the painting. Here we are in the painting equivalent of the textual labyrinths designed by Beckett, Borges or Robbe-Grillet, but instead of embedded authors, we have an embedded painter, a creature-turned-creator, a golem-become-god, a drunken demiurge who must conjure a world with only a spray can to hand. What kind of world does this wounded god dream up? It is a world – let us call it late capitalism – of the rejected, the dejected and the addicted. When he spoke at the Tate a few weeks ago about the relationship between his work and the Gothic, Cooke described his anthropomorphic flowers and vegetables as figures from advertising or children’s stories that have grown up and found themselves in dead-end jobs. The graffitied figures on/in the paintings – the junkie vegetables,
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Morning is Broken, 2005. ”leo sobre tela. 220 x 370 cm. Copyright Nigel Cooke. Cortesia Stuart Shave Modern Art, Londres e Andrea Rosen Gallery, Nova Iorque
Sore Eyes, 2005. ”leo sobre tela. 33.2 x 43.2 cm. Copyright Nigel Cooke. Cortesia Stuart Shave Modern Art, Londres
Que tipo de mundo poderá este deus mutilado imaginar? É um mundo – chamemo-lo capitalismo tardio –, dos rejeitados, dos dejectados, dos dependentes. Quando Cooke falou na Tate Gallery, há umas semanas, sobre a relação entre o seu trabalho e o gótico, descreveu as suas flores e vegetais antropomorfizados como figuras que se tivessem retirado da publicidade ou das histórias infantis onde nasceram e agora se encontrassem num qualquer emprego, exasperadas. As figuras grafitadas nas pinturas (os vegetais toxicodependentes, as flores fumadoras, os depressivos e famintos ossos) poderão estabelecer relações não apenas com os seus primos mais animados da publicidade mas também com os seus antepassados, a saber, os das pinturas de fadas e espíritos da época vitoriana. Afinal de contas, o que são os mitos sobre fadas senão um mundo oculto no nosso mundo? O mundo das fadas, com a sua vivacidade e os seus ínfimos pormenores, não eram mais que uma aristocracia delirante, muitas vezes cruel e exploradora, conjurada por mentes intoxicadas pela psilocibina. A droga análoga plantada no quintal de Cooke não é um fungo consumido nas esmeraldas alfombras, mas antes heroína suburbana. Os canteiros de flores transformaram-se num baldio cheio de lixo. Não vibram de Vida, fecunda e indómita, mas são habitadas por criaturas que deram um passo na direcção da animação, e depois tombaram de novo para a sua condição mineral de dependência. As suas pinturas são como que ilustrações para contos de fadas se estes fossem reescritos pelo Freud de Para Além do Princípio do Prazer. Uma imagem intemporal da Morte está agora prostrada, miserável, à nossa frente. Uma mão-cheia de ossos, patética e encapuzada. Pode tanto ser uma vítima de uma praga medieval como um miúdo numa sweatshirt com capuz a arrastar-se pelos centros comerciais. Os pintores de graffiti, dizia Baudrillard com algum entusiasmo em 1977, libertavam as paredes “da arquitectura e transformam-nas em matéria viva e social.” Nas pinturas de Cooke, bem pelo contrário, os graffiti transformam as paisagens orgânicas, viventes, em paredes. O vital-rural é agora o morto-vivo-urbano. Cooke descreveu as suas pinturas como uma “ideia falhada em representar a vida após a morte”, dizendo ainda que eram “um local de fronteira, para onde as pinturas vão para morrer, um cemitério de elefantes das imagens.” Parece que todos os mundos estão a apodrecer ao mesmo tempo. As cores estão a desaparecer. Tudo parece apagado. A manhã rompeu, e não há ninguém que a conserte. Nigel Cooke nasceu em Manchester, em 1973. Vive e trabalha em Londres. ///
the smoking flowers, the morose, hungry bones – can be related, not only to their sprightlier cousins in advertising, but to their ancestors in fairy paintings. What have fairy myths been about, after all, if not a world hidden within our world? The fairy world – vivid, hyper detailed – was a delirious aristocracy, often cruel and exploitative, dreamt up by minds intoxicated with psilocybin. The drug analogue for Cooke’s fairy gardens gone to seed would not be a fungus consumed on some greed glade but housing estate heroin. The flowerbeds have become a junkyard. They are not teeming with a fecund, incommunicable life, but populated by creatures who have taken one step towards animation, then fallen back into the mineral condition of addiction. The paintings are illustrations for fairy tales re-written by the Freud of Beyond the Pleasure Principle. A timeless image of Death lies miserable in front of us. A pathetic scowled bone. It could be a medieval plague victim or a kid in a hooded top stalking a shopping mall. Graffiti painters, Baudrillard enthused in 1977, free walls ‘from architecture and turn them again into living, social matter.’ In Cooke’s paintings, by contrast, graffiti turns living, organic landscapes into walls. The rural-vital becomes the urban-undead. Cooke described his paintings as a ‘flawed idea of representing the after-life’, saying that they were ‘a frontier site where paintings go to die, an elephant’s graveyard of images.’ It seems that all the worlds are rotting at once. The colors are fading. Everything looks washed out. Morning has broken, and there is no-one to fix it. Nigel Cooke was born in Manchester, 1973. He lives and works in London. ///
www.southlondongallery.org www.bbc.co.uk/dna/collective/A10654661
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UMA CURTA METRAGEM DE MARCO MARTINS Fotografias de Paulo Barata
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O MAIS RECENTE FILME DE MARCO MARTINS É MAIS UM EPISÓDIO DA SUA RELAÇÃO COM UMA CIDADE. DEPOIS DE ALICE, LISBOA NÃO É APENAS CENÁRIO, MAS FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA UMA FICÇÃO QUE SE DESENROLA NOS ÚLTIMOS QUATRO DIAS DO ANO CHINÊS, QUE NO NOSSO CALENDÁRIO ACABA NO DIA 27 DE JANEIRO. O AUTOR DA HISTÓRIA É TONINO GUERRA, COM ARGUMENTOS REALIZADOS POR VITTORIO DE SICA, MARCO BELLOCCHIO, FEDERICO FELLINI OU MICHELANGELO ANTONIONI, FOI RAZÃO SUFICIENTE PARA UM REGRESSO DE MARCO MARTINS AO PEQUENO FORMATO ANTES DE COMEÇAR A RODAR O SEU SEGUNDO LONGA DURAÇÃO. Consegues explicar o porquê deste projecto, neste momento da tua carreira? Depois de ter feito o Alice não queria ou não pensava em fazer uma curta metragem, porque acho que é um formato interessante para pesquisa e etc, mas não como formato final. Mas quando o Renzo Barsotti, que é o director do Festival Sete Sóis e Sete Luas, me perguntou se eu queria realizar uma curta metragem, passada em Lisboa, em que o Tonino Guerra era o argumentista, eu disse-lhe imediatamente que sim. Foi isso que me atraiu para este projecto: a oportunidade de trabalhar com alguém por quem tenho a maior admiração. Que lugar é que este filme ocupa na tua filmografia? Desde o Alice, há dois anos, que eu não filmava ficção e encarei este projecto como uma forma de experimentar coisas novas, sobretudo uma linguagem que não me é tão próxima. Tentei não ter um grande peso no guião, deixando que fosse o Tonino a estabelecer a ideia principal do filme. E ele tem um universo poético e metafórico que não é, de todo, o meu e eu decidi encarar isto como: “deixa-me cá experimentar fazer uma coisa um bocado diferente e ver o que acontece.” Até agora, os argumentos que realizaste eram da tua autoria… Sim, sim, sempre meus. E acho que seria totalmente errado tentar abordar este filme como sendo um guião meu, ainda por cima a trabalhar com alguém como o Tonino, com uma experiência e um currículo avassaladores. Trabalhar com ele levou-te a ver ou rever alguns filmes dele? Revi muita coisa do Antonioni que é de longe, de todos os realizadores com quem ele trabalhou, aquele de quem gosto mais e aquele que mais me influenciou. Sobretudo a trilogia do qual a L’Avventura faz parte – que eu acho que tem muito a ver com Um Ano Mais Longo – em que a cidade é um elemento muito importante, a forma como ela age sobre as personagens e o facto de ela própria ser encarada como uma personagem. Por isso achei muito interessante revê-los. Este novo filme, tal como o Alice, foi filmado em Lisboa… Sim. Consideras que são filmes que só poderiam ser filmados aí? Este sim, muito mais do que o Alice. Obviamente que hoje em dia não vejo o Alice a ser filmado noutro sítio, mas as questões que levanta sobre a cidade – o anonimato, a solidão, a vigilância, etc. –, são questões comuns às grandes cidades europeias. Haverá aspectos que são específicos de Lisboa, mas as questões centrais são as mesmas de outras grandes cidades. Um Dia Mais Longo é, desde a sua génese,
um filme sobre Lisboa e, por isso, acho que não se podia passar em mais nenhuma cidade. Isto apesar de Lisboa não aparecer exaustivamente, mas há um certo sentimento que perpassa todo o filme, todas as personagens, que é característico desta cidade. Trata-se de um retrato de Lisboa? Sim, sim. Um retrato feito através de vários lados da cidade. A comunidade chinesa é um desses lados? Como é que ela surge no filme? Sim. Surge através de uma das personagens do filme. E as lutas de cães? Surgem através de uma outra personagem, que a determinada altura encontra um cão ferido abandonado e decide descobrir de onde vem ele. Funcionam como um pretexto para introduzires outro lado da cidade… Sim, sem dúvida. Dedicas bastante tempo à procura dos locais para filmares? Eu considero que os décors em cinema fazem parte das personagens e, por isso, a sua importância é para mim muito evidente… para construir uma personagem é essencial que se encontre a sua casa, o seu local de trabalho, etc, dessa forma revelas logo uma grande parte da personagem. Fazes isso para cada filme, ou tens uma série de locais em carteira? Ambas as coisas. Há sítios a que eu gosto de ir frequentemente, nem que seja só para fotografar. Mas também procuro novos locais para cada filme Este filme estreou no Lisbon Village Festival, um evento dedicado à criação em suporte digital, que integrou na sua programação o primeiro festival internacional de cinema 100% digital da Europa. Para ti faz sentido fazer este tipo de distinções? Acho que ainda não existe um “Cinema Digital”, acho que é muito cedo para isso. E acho também que essa distinção tem sido invocada pelas razões erradas, como por exemplo o baixo custo. Para mim o mais importante é saber tirar partido da tecnologia para conseguir determinados resultados e, obviamente, que os resultados são muito diferentes.
Entrevista de Nuno Carvalho
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Texto de Pedro Caria
www.elephantsdream.org http://orange.blender.org/download http://en.wikipedia.org/wiki/Elephants_dream www.blendernation.com/2006/05/18/the-worlds-first-open-movie-released/ http://en.wikipedia.org/wiki/Wikiwiki http://en.wikipedia.org/wiki/Open_source
O PRIMEIRO FILME OPEN SOURCE
http://en.wikipedia.org/wiki/Creative_commons
Elephant’s Dream é um filme gerado por computador, lançado com direitos da Creative Commons e inteiramente feito com ferramentas open source. É mais ou menos isto o que se pode ler na introdução sobre este tema na Wikipedia e, quem souber o que é creative commons e open source, ficará com curiosidade em ver o filme. Aqui fica apenas uma pequena introdução aos creative commons e ao open source. Há várias abordagens possíveis à produção de software. A que hoje é considerada normal é ter uma equipa de programadores a fazer software, que depois é revendido o maior número de vezes possível. A programação de software é considerada um investimento e o verdadeiro negócio é vender o maior número possível de cópias. O custo real por cópia é perto de zero, ou mesmo zero, hoje em dia, em software distribuído pela Internet.Mas no início não era assim. Os computadores eram máquinas que ocupavam salas inteiras e eram programados por cientistas e engenheiros, não por yuppis gestores de empresas. Havia a mesma abertura que existe ainda hoje na ciência, onde o relevante é publicar, partilhar informação, com o intuito de alguém, noutro local qualquer, utilizar a pequena informação que produzimos para fazer melhor ou mais importante. E assim foi, durante muito tempo, na produção de software. Alguém melhorava um procedimento ou desenvolvia um programa que fazia alguma coisa útil (como enviar e-mails, por exemplo) e esse software era partilhado com o código fonte, o tal código que permite, não só, utilizar esse programa, como alterá-lo, melhorá-lo, ou corrigir bugs. Através deste processo o software evolui muito rapidamente e, mesmo com poucas pessoas a utilizá-lo, os bugs são corrigidos muito rapidamente. Cada programador novo que se junta ao projecto dá o seu contributo, por pequeno que seja, e um projecto reduzido torna-se rapidamente um projecto amplo e estável. A Internet, por exemplo, assenta em muitos softwares criados desta forma, a sua própria base está assente em open source. Isto tudo passou para segundo plano quando o lucro entrou na equação. A partilha de informação parou e, ao fim destes anos todos, usamos software caro, cheio de falhas de segurança e com bugs. O pior de tudo é que o software é fechado, ou seja, pode dar-se o caso de um programador que saiba corrigir o bug que acabou de lhe crashar o computador, não o poder fazer – não tem acesso ao código fonte, o máximo que ele pode fazer é enviar um bug report para o fabricante e esperar que ele conserte o problema. A partilha foi ressurgindo, a pouco e pouco, com programadores,
estudantes e cientistas que precisavam de ferramentas que a indústria não vê sentido (lucro) em fazer. Tinha o seu próprio ritmo, cada pessoa contribuía com a sua parte, e as coisas iam evoluindo lentamente. Mas ocorreu um boom quando o sistema operativo Linux se tornou mainstream. Hoje em dia, a parte gráfica representa uma grande fatia de um projecto open source, e o conceito começou a penetrar noutras áreas, como é o caso do design. Mas a ideia de partilhar o trabalho para que outros possam melhorá-lo é relevante para todas as áreas: os músicos aderem ao movimento partilhando samples e beats, milhares de pessoas escrevem na Wikipedia, todos os dias, partilhando efectivamente textos, muitos manuais de software são inteiramente escritos em wikiwiki, alguns livros estão a ser escritos assim. Foi numa destas partilhas que começou a surgir o script de Elephant’s Dream, tratando-se de um processo de colaboração entre várias pessoas, uma experiência de criação colectiva. Do script a ideia evoluiu até ao objectivo de se fazer o filme inteiro usando apenas ferramentas livres e, no final, em plena sintonia, o acesso ao filme é livre. Durante o processo de produção do filme, como acontece em muitos projectos open source, as ferramentas foram sendo melhoradas e coisas que não eram possíveis antes, passaram a sê-lo graças a este projecto. Assim, filmes futuros vão poder beneficiar destes melhoramentos. O objectivo da open source é ajudar as pessoas, rentabilizar o tempo e aumentar o conhecimento, é isso que acontece quando as ferramentas são entregues à comunidade. O copyright ainda existe, o filme ainda pertence a quem o fez, mas quem quiser pode ir ao site, pode escolher a versão que lhe for mais conveniente e descarregar o filme inteiro (existe mesmo uma versão HD). Mas o mais importante ainda é que quem souber como, pode melhorar o filme, ou pode estudar o projecto e aprender como se faz um filme destes. Encontrará lá muitos passos, muitas horas de trabalho que, no circuito comercial, só servem um filme. Libertando a fonte do filme, o trabalho investido pode ser reutilizado, reciclado. O filme é lançado sob a licença creative commons, que estabelece a base legal desta partilha. No mundo do software, o open source está actualmente bem estabelecido e avança a passos largos para a conquista do mundo. O creative commons ainda está em fase de teste, o seu próprio texto legal ainda está sujeito a revisões. Só o futuro dirá se os open movies vão ser uma realidade, entretanto deleite-se com este primeiro filme. ///
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Texto de Luís Silva
O Upgrade! é uma rede internacional emergente constituída por núcleos locais, autónomos, que partilham entre si o interesse pelas relações entre arte e tecnologia. A sua estrutura descentralizada e não-hierárquica garante que cada núcleo age tanto de acordo com os interesses locais como com os recursos disponíveis; e reflecte o envolvimento criativo actual com tecnologias de ponta. Enquanto que cada núcleo apresenta projectos new media, fomenta o debate informal, o diálogo e a colaboração entre artistas, o Upgrade! International funciona como uma rede global online que se reúne anualmente em diferentes cidades, permitindo que os elementos de cada núcleo se conheçam, apresentem projectos artísticos locais e programem as actividades do ano seguinte. O primeiro encontro do Upgrade! International teve lugar em Setembro de 2005, em Nova Iorque. Durante o evento esteve patente uma exposição com documentação dos projectos apresentados pelos 131 artistas que participaram localmente nos encontros de cada núcleo. Foram também realizadas diversas conferências e seminários sobre a forma como cada núcleo do Upgrade! se apresenta e interage com a comunidade, bem como sobre o potencial de uma tal rede internacional. Neste sentido, o Upgrade! Lisbon, comissariado por Luís Silva e cuja actividade teve início em Janeiro de 2006, assume-se como um encontro mensal de artistas, comissários, teóricos e público interessados nos new media, tendo como objectivos a criação de um diálogo/debate sobre a temática e estimular a colaboração no seio desta comunidade. Em cada encontro, um convidado apresenta um projecto em desenvolvimento ou já desenvolvido, um conceito, ou uma linha de investigação e debate-o com os presentes. Desde Janeiro já passaram pela Lisboa 20 Arte Contemporânea, local que alberga esta iniciativa, nomes como Patrícia Gouveia, Nuno Correia,
Susana Mendes Silva, André Sier e André Gonçalves, entre outros. Em Junho, o Upgrade! Lisbon associou-se ao Village Festival, o primeiro festival de cinema digital da Europa, tendo preparado especificamente para este evento a exposição Sound Visions, com trabalho de André Gonçalves e André Sier, dois dos artistas convidados do Upgrade! Lisbon. O Upgrade! foi iniciado por Yael Kanarek em 1999 e encontra-se presentemente sediado no Eyebeam, em Nova Iorque. Os núcleos actuais encontram-se situados em Amesterdão (Holanda), Boston (Estados Unidos), Caracas (Venezuela), Chicago (Estados Unidos), Escócia, Istambul (Turquia), Joanesburgo (África do Sul), Lisboa (Portugal), Montreal (Canadá), Munique (Alemanha), Nova Iorque (Estados Unidos), Oklahoma City (Estados Unidos), Salvador (Brasil), Seul (Coreia do Sul), Sofia (Bulgária), Tel Aviv-Jerusalém (Israel) e Vancouver (Canadá). Para conhecer um pouco melhor este projecto, os sites, tanto o do Upgrade! Lisbon como o do Upgrade! International, proporcionam toda a informação necessária, bem como um arquivo com documentação sobre os encontros realizados.
Upgrade! Lisbon: www.lisboa20.pt/upgrade Upgrade! International: www.theupgrade.net
SLANG /// lisboa upgrade /// 000
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Fotografias de Miguel Moore
SLANG /// paste up /// 093
A CONTRA CULTURA É UMA MARCA REGISTRADA Texto de Miguel Moore Ilustração de Paulo Arraiano
Plano geral: Seattle, Novembro de 1999. Uma nova vaga de protestos anti-capitalismo de dominação global faz a sua apresentação aos media e ao mundo. De um lado e do outro da barricada opõem-se facções estilizadas: protestantes por uma alternativa de gestão económica e social comunitária; classe dominante pela gestão corporativa dos recursos e riquezas. Os grupos mais radicais apontam as grandes multinacionais como alvos simbólicos da sua contestação. A destruição causa impacto. Estabelecimentos da Starbucks, McDonald’s, Nike, Fox e outras empresas de dominação mundial são atacados. Close-up: um grupo de manifestantes vandaliza a Niketown. Zoom-in: alguns destes calçam ténis da marca que atacam. A imagem seria debatida até à exaustão. Em causa: o princípio das motivações da intemperança dos manifestantes. A lógica subsequente: a vontade de aproximação aos modelos dominantes contestados, profundamente enraizados através da disseminação ideológica. A coerência apenas reside na aceitação da contra-acção como fazendo parte dos mecanismos da própria acção. No facto de a tendência anti-sistema ser um reflexo regenerativo catalizado e incentivado pelo próprio sistema. Movimentos contestatários e contra-culturais surgidos nas sociedades afluentes do pós-guerra, têm sido continuamente regenerados pelo sistema que visavam opor. Esta absorção das franjas e tendências inovadoras é característica basilar da cultura dominante nas sociedades capitalistas. A extrapolação para o princípio económico da procura e da oferta é consequência linear. No mercado aberto vale tudo. A distinção da rebeldia vende como outra distinção qualquer no ambiente competitivo do modelo dominante. E desde a década de 50 que as propostas contra-culturais têm dinamizado mais a estrutura capitalista
do que nenhum outro fenómeno social, excluindo a guerra. Hoje consome-se o anti-consumismo como as demais propostas que este parecia visar. Seguimos os Ad-makers ou os Adbusters, mas a tendência é a mesma. A necessidade de identificação individual com uma proposta colectiva que nos ofereça segurança e conforto no meio social é idêntica. A uniformização trabalha segundo a mesma lógica. Hoje é cool ser-se anti. Amanhã será anti ser-se cool. Um e outro redundam no mesmo. Na era da imagem e do ready-made, a junção destes dois é poderosa. Permite e alimenta a deriva individual na procura da identidade e aceitação. E esta não se cria, compra-se. Não é apenas a acção das multinacionais a absorverem estas tendências que possibilita esta regeneração. Ao criarem mercados paralelos desenvolvidos segundo o mesmo modelo capitalista, tais movimentos acabam por criar necessidades idênticas. E neste sentido, acabam por ser redundantemente ineficazes enquanto opositoras e alternativas ao mesmo. Em nenhuma outra subcultura isso é tão evidente como no universo do Hip Hop e, por associação, as culturas de rua – mundos alicerçados em clichés que fazem das marcas um símbolo de status reciclado não menos importante do que aqueles que aparentam opor. Quem não veste o uniforme não pertence – este é um dos princípios básicos da dinâmica sociológica. E quem produz o uniforme é quem capitaliza. A marca dos grandes garante credibilidade à identidade individual enquanto inserida no grupo alternativo, desenvolvido a partir do grupo dominante. As tendências movem-se das margens para o centro. As franjas apenas querem um pedaço do mesmo. Se for Nike ainda melhor.
SLANG /// a contra cultura ĂŠ uma marca registrada /// 095
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