Irene, aos 23 anos de idade 2
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Às beneméritas apóstolas do Catecismo em todos os Estados do Brasil, oferece e dedica esta biografia duma exímia e admirável catequista brasileira. O AUTOR
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ALMA DE LUZ Irmã do Salvador, no sofrimento, Ria-se sempre, na tribulação... E era tão grande o seu contentamento, No princípio e no fim da Comunhão! E Jesus era o seu doce alimento. Veio ao mundo, de certo, p'ra ser boa... Alma feita de luz e de piedade, Legou tudo o que tinha à caridade; E, ao receber dos anjos a coroa, Na pátria além, na santa eternidade, Terá seu prêmio a imagem da bondade, E su'alma cantando aos astros voa.
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NOTAS PRÉVIAS A expressão “santa” ou outras equivalentes, que empregamos nestas páginas e em prospetos avulsos, para designar o caracter de Irene, devem ser entendidas de conformidade com o espírito da igreja, a cujas decisões nos sujeitamos incondicionalmente. As seguintes notas biográficas baseiam-se sobre documentos originais deixados por Irene – máxime os 10 volumes do seu “Diário de Amor” documentos postos gentilmente ao nosso alcance pela família da extinta. Item, cartas do seu último diretor espiritual, bem como diversos apontamentos particulares de antigas companheiras de Irene e de pessoas da sua família. Nos pensamentos e colóquios de Irene, contidos nas seguintes páginas, foram conscienciosamente respeitados os originais. Modificamos apenas a ortografia e uma ou outra construção gramatical; por via de regra, a fraseologia de Irene é correta, chegando, por vezes, a ser elegante e poética. Pessoas que se recordarem de episódios da vida de Irene, dignos de serem publicados, queiram comunicá-los, devidamente especificados à “Cruzada da Boa Imprensa” - Caixa Postal 3.371 – Rio de Janeiro.
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1. ROMANCE OU VIDA DE SANTA? Vicejam nas plagas tropicais do Brasil umas flores agrestes que, de tão singelas e pequeninas, escapam à atenção dos homens da ciência e à classificação dos profissionais; não figuram em nenhum tratado de Botânica; não se encontram prensadas em nenhum herbário, nem mesmo são cultivadas nas tépidas estufas da Europa, essas florzinhas anônimas. Só as conhece o rude sertanejo, identificado com a Natureza virgem, aquele herói incógnito que Euclides da Cunha tão admiravelmente fotografou na sua obra imortal. É duma dessas florzinhas silvestres, leitor amigo, que falam as páginas do livrinho que tens entre as mãos – história de uma modesta florzinha humana, bem nossa, bem brasileira. * *
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“Irene” não é romance nem vida de santa. É simplesmente a história ultrasingela de uma menina brasileira, duma jovem cearense, que viveu três decênios à sombra dos carnaubais, trabalhando e orando, sofrendo e sorrindo, cantando e conversando ingenuamente com o seu “querido Jesus”, por entre o silêncio nostálgico do sertão e o discreto marulhar das águas do Atlântico. “Irene” narra as humildes grandezas duma donzela dos nossos dias que, na espontânea naturalidade da sua grande alma, sacrificou os seus amores de moça ao amor dum bando de crianças pobres, esfarrapadas, analfabetas, famintas do pão de cada dia e sedentas do “Deus desconhecido”... “Irene” é a silenciosa epopéia dum coração feminino que, por entre lágrimas e sorrisos, renunciou à fundação do seu larzinho querido, afim de poder ser mãe a centenas de alminhas órfãs e dar-lhes aquilo que uma sorte adversa lhes negara. É o drama duma alma cheia de idealismo que, como ela mesma diz no seu “Diário”, “sacrificou a sua mocidade, os gozos do mundo, e escolheu o isolamento do coração por amor de Jesus”. Com esta breve notícia poderíamos encerrar a biografia de Irene. Entretanto, força é que digamos mais um pouco dessa jovem cearense de olhos clarividentes, que sempre pareciam contemplar alguma luminosa realidade para além dos horizontes atingidos pelos outros mortais. O que aí vai não é suficiente para saciar os leitores ávidos de sensações – mas é talvez demais para a modéstia da biografada, que, qual Verônica, escolhia sempre as penumbras do incógnito e o silêncio do esquecimento para praticar os seus heroísmos anônimos. Irene não viveu por entre as paredes protetoras dum convento. Passou a 7
existência bem à beira da estrada, dessa prosaica e profana estrada de cada dia, exposta a todas as intempéries, batida de todos os ventos, empoeirada pelas areias do deserto, flagelada pelas tempestades do mundo. E, no entanto, conservou a sua alma sempre esse fulgor divino que todos admiram em silêncio, mas que ninguém compreende nem define. É fácil, relativamente, ascender às culminâncias da espiritualidade por entre os muros defensores dum claustro, auxiliado pela disciplina benéfica do regulamento, amparado pela suave sugestão do silêncio, revigorado pela meditação quotidiana; mas exige sobre-humano heroísmo levar uma vida intensamente espiritual em plena sociedade, nas ruas e nos salões, no lar e na escola, por entre as seduções dos homens e no meio das brilhantes misérias dos escravos dos sentidos. Irene passou a sua breve existência como Maria Santíssima, como Salomé, como Marta e Maria, como Madalena, como Verônica, como tantas outras discípulas do Nazareno, que não abandonaram o mundo para servir a Deus. É humano viver para a sociedade e esquecer-se de Deus. É belo abandonar a sociedade e viver para Deus. É heróico viver em plena sociedade e ser todo de Deus, afim de erguer os homens à altura da Divindade. Irene soube realizar em sua vida este estranho paradoxo: ser toda de Deus e toda do próximo. O seu “reino”, embora estivesse no mundo, não era deste mundo. Toda serafim do amor de Deus – e toda querubim da caridade humana. Toda mística – e toda apostólica. Toda contemplativa – e toda ativa. Toda introspectiva – e toda social. Toda Maria – e toda Marta. Irene é bem a “santa Teresinha” e a “Maggy” do Brasil – contemplativa como aquela, como esta dinâmica. Essa jovem cearense, aureolada duma risonha espiritualidade, sentia-se tão bem no meio da algazarra dum bando de crianças como na sugestiva penumbra da capelinha do Santíssimo. Só o Tabernáculo lhe tornava suportável a sociedade – e só a caridade social justificava o seu amor a Jesus-Hóstia. Lecionava dactilografia na “Escola Remington Oficial”; batia as fazendas e os arredores do Aracati e Fortaleza, à procura de alminhas infantis – mas o seu coração ardia sempre ao lado da lâmpada do Sacrário... Irene, pode-se dizer, passou pelo mundo incompreendida, como um ser de outro planeta, como um espírito de outros mundos menos imundos que o nosso. Sempre com um abismo de martírios dentro da alma – e sempre com uma primavera de sorrisos à flor dos lábios. A exemplo de Santa Teresinha do Menino Jesus, não abria mão do Evangelho. Era-lhe o inseparável complemento da Eucaristia. O Cristo histórico do Evangelho e o Cristo eucarístico do Sacrário – eis os dois pólos 8
sobre os quais girava toda a espiritualidade dessa alma privilegiada. A Eucaristia vivificando as páginas do Evangelho – e o Evangelho esclarecendo o silêncio do Tabernáculo. Receber o corpo de Cristo à Mesa Sagrada e beber o espírito de Cristo nas páginas bíblicas – eis o que Irene considerava vida cristã completa, profunda, feliz. *
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Não se pode propriamente escrever uma biografia de Irene. Vai através de toda a sua vida um grande mistério. Atraída por duas forças antagônicas, oscilava a sua alma, incerta, até que, nos últimos anos, encontrou sossego definitivo, experimentando em si mesma a profunda verdade deste suspiro metafísico de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para vós, Senhor, e irrequieto está o nosso coração até que descanse em vós”... *
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Irene usava sempre aliança de noiva – e, no entanto, nunca foi noiva, por mais numerosos que fossem os seus pretendentes. Porque? para despistar os rapazes?... Vai um quê de graça e beleza nas árduas renúncias dessa jovem... Certo dia, na “Escola Remington”, que ela fundara e dirigia com grande competência, um estudante, vendo o anel no dedo de Irene, perguntou-lhe ingenuamente: – D. Irene, o seu noivo mora aqui? – Mora, sim – respondeu ela, sorrindo. – E como é que eu nunca o vi? – Oh! o sr. não conhece meu noivo? ele não sai do meu lado... E mostrou-lhe, com ares de mistério, a aliança, que levava gravadas as palavras: “Jesus Cristo”. – Ah! - disse o rapaz – eu logo pensei... Só mesmo Este... * *
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Passava a jovem, um dia, pelas ruas de Fortaleza, quando viu, numa altura, um lindo bungalow a branquejar no meio de espessa ramaria e com uns ares tão alvissareiros, que Irene parou por uns momentos, embebida na contemplação daquele sonho de fadas – e duas lágrimas indiscretas lhe rolaram pelas faces... Não revelou a ninguém o motivo dessa subitânea emoção, mas foi à igreja, ajoelhou à penumbra da capelinha do Santíssimo e fez a Jesus esta singela 9
confidência: “Meu querido Jesus. Passei hoje pela rua tal e vi uma linda casinha – e chorei... Tu sabes porque... Podia ser minha...” Era o larzinho de um dos ex-pretendentes de Irene, cujo amor ela sacrificara por causa daquele bando de crianças maltrapilhas que tinham tanta sede de Jesus e não contavam senão com ela para as conduzir ao divino amigo de infância. São encantadoras certas páginas do seu “Diário de Amor”1, onde ela se entretém com Jesus e lhe fala das “nossas crianças”. Certo domingo, aparece-lhe em casa um dos seus pretendentes mais pertinazes. Queria que Irene ficasse conversando com ele. A jovem escusou-se delicadamente, porque, nessa tarde, tinha que atender a umas aulas de Catecismo, no fundo das caatingas e mangueiras do litoral. Agastou-se o rapaz e fez acerbas recriminações à mãe sobre o gênio esquisito da filha. Irene, depois de terminar o Catecismo, vai ter com Jesus e lhe diz: “Imagina, meu querido Jesus, hoje esteve em nossa casa fulano e queria conversar comigo sobre casamento. Ele é muito bom rapaz, bem colocado, piedoso e simpático; mas que seria das nossas crianças, Jesus, se eu fosse dele?”... Irene, depois de vencido o seu período de mundanismo, tornou-se uma dessas almas peregrinas para as quais o mundo do espírito é mais real e palpável que o mundo da matéria. Realizou dentro do seu Eu uma completa inversão de valores: o espiritual é tudo, ao passo que o material não passa duma sombra vaga e sem importância, “um punhado de lixo”, como diria o apóstolo Paulo. Conversava com Jesus, tratando-o sempre por tu, com a mesma naturalidade como se fala com um amigo visivelmente presente. Se Irene não tivesse levado uma vida tão intensamente apostólica e não fosse triturada no lagar de acerbos sofrimentos, teria talvez a sua ascese degenerado em sentimentalismo estéril, ou até numa espécie de erotismo ascético, como acontece a tantas almas femininas. Irene, felizmente, nunca chegou a esses piedosos excessos. Não obstante a grande familiaridade com que trata a Jesus, não se esquece jamais de que ele é nosso Senhor e Soberano, ao qual compete infinito respeito. Os trabalhos e as dores preservaram-na dessas funestas aberrações sentimentais. * *
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Agora sabes, leitor amigo, se este livro é um romance ou uma vida de santa.
1 “Diário de Amor” são 10 volumesinhos, de umas 200 páginas cada um, escritos à mão, que encerram as confidências íntimas de Irene com Jesus-Hóstia. Escreveu-as nos últimos anos da sua vida. Não se destinavam ao público, esses livrinhos; mas o seu diretor espiritual, ao qual Irene os entregou pouco antes da morta, confiou-mos para conhecer o espírito dessa jovem e extrair deles o que possa ser de proveito para outras almas.
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2. QUEM ERA IRENE? Investigar a genealogia, esmiuçar os dados biográficos duma pessoa é sempre tarefa ingrata e amesquinha, não raro, a grandeza real do biografado. A parte externa, o ambiente histórico duma personalidade humana é para seu verdadeiro Eu o que os andaimes são para um edifício. Não atingem o valor interno da pessoa. Entretanto, força é que bosquejemos ligeiramente a história da nossa heroína.
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Irene Costa Lima Valente, abriu os olhos à luz da vida na cidade de Aracati, litoral do Ceará, no dia 8 de Maio de 1906. Foram seus pais Alfredo Gurgel de Lima Valente e Maria Costa Lima Valente. Não consta que o seu nascimento tenha sido assinalado de fenômenos preternaturais, como se lê nas crônicas de certos servos de Deus. Ninguém enxergou misteriosos clarões sobre a casa paterna. Nenhum enxame de abelhas se lembrou de construir na mãozinha da recém-nascida um doce favo de mel. Nem Irene recusava o alimento em dia de sexta-feira ou sábado, em honra da paixão de Cristo ou da Virgem Santíssima. Nada disso aconteceu. A nossa nenezinha chorava e ria, comia e esperneava como todas as demais filhas d'Eva, nessa quadra inerme da sua existência. * *
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Quarenta dias depois do seu nascimento físico – no dia 18 de junho – resolveram os pais e padrinhos levar a pequena à igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, da mesma cidade, para que recebesse aquela vida nova da qual o divino Mestre deu tão profunda instrução ao doutor da lei, Nicodemos, naquele memorável colóquio noturno em Jerusalém: “Quem não nascer de novo pela água e pelo Espírito Santo não pode entrar no reino de Deus”... Foi oficiante no ato do batismo Mons. João Luís Santiago, Vigário de São Bernardo das Russas, que nessa ocasião se encontrava em Aracati. *
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Decorreu a infância de Irene como a da maior parte das crianças. Passava 11
todos os anos alguns meses no sítio “São José”, propriedade de seu avô materno. No dia 26 de Dezembro de 1913 passaram seus pais a residir na fazenda do “Cajueiro”. Nessa época já tinha Irene dois irmãozinhos: Laís e Alfredo. Mas, antes de continuarmos a falar em Irene, convém que demos um giro pela magnífica fazenda do “Cajueiro”. Propriedade dos antepassados da família Costa Valente, pertence hoje aos pais de Irene. Situada à margem do Jaguaribe, perto do antigo Fortim, dista de Aracati uns 15 quilômetros e oferece uma vista deslumbrante sobre o mar. Uma estrada de automóvel atravessa grande parte do terreno, passando por uma extensa ponte de carnaúba. É a conhecida “ponte de Canavieira”. Em quadra de inverno rigoroso, tornam-se intransitáveis os caminhos, e viaja-se então de canoa ou jangada pelo rio Jaguaribe. Numa das fotografias deste livro (fl. 33) aparece Irene, já moça, em pé numa canoa, empunhando o pesado remo, disposta a lutar com as águas barrentas que, numa das grandes “cheias” do inverno, se arrojam impetuosamente às ondas do Atlântico. O “Cajueiro” era, e é ainda hoje uma verde solidão, sítio, fazenda e casa de campo, possuindo vasto carnaubal, como também um terreno próprio para salinas. A casa é grande, antiga, do tipo daquelas confortáveis vivendas rústicas de outrora, quando a espontânea liberdade do homem ainda não se cultivara ao ponto de se engaiolar na civilizada estreiteza dum palacete, bungalow ou apartamento de dois metros. Localizada entre o rio e os morros, estava a casa da fazenda toda cercada de mangueiras, cajueiros, sapotizeiros, coqueiros, etc. Mais além, verdejava uma extensa plantação de cana de açúcar, com o tradicional engenho à entrada. Pertencem à propriedade cinco ilhas, situadas na foz do Jaguaribe. Chamamse: Ilha Grande, Mosqueiro, Emas, Molungú e Caldeireiro. Fica esta última completamente isolada, ao passo que as outras se ligam por pontes à terra firme. Todas as ilhas oferecem ótimo terreno para plantação, sobretudo para verduras, hortaliças, etc. As ilhas Grande e Caldeireiro são destinadas à criação de gado. O “Cajueiro” e arredores veio tornar-se um dos cenários das silenciosas proezas apostólicas e humanitárias de Irene. * *
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Em 1913, aos 7 anos de idade, começou a menina a penetrar pela porta do abc nos mistérios da literatura. Não frequentava escola, nesse tempo, mas estudava em casa, com a mãe. Afirmam os que nesse tempo a conheceram que Irene era uma criança muito sensata, obediente e cumpridora dos seus pequenos 12
deveres. Gostava imenso da vida do campo. Era amiga da natureza, das aves, das flores, dos bichinhos. Nunca, nos anos posteriores, foi esta predileção pelo ambiente rural suplantada pelo gosto da vida citadina. Irene andava sempre alegre e bem humorada, embora gozasse de saúde precária. Propensa para as coisas espirituais – e onde se viu cearense que o não fosse? - encontrava singular satisfação em acompanhar os atos religiosos, sobretudo a solenidade do mês de Maio, que se celebrava com grande fervor na fazenda do “Cajueiro”. * *
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No dia 24 de Fevereiro de 1920, com quase 13 anos de idade, fez a sua primeira Comunhão, na capela do Fortim, em companhia de seus dois irmãos, Laís e Alfredo. Foi a mãe que os preparou para esse ato solene, precedido de um Retiro Espiritual de três dias, pregado por Mons. Bruno Figueiredo, Vigário de Aracati, que para lá fora com este fim. Entretanto, não se pode afirmar que a vida eucarística de Irene date desta época. A sua alma, parece, dormia ainda para as grandes realidades do “Deus em nós”. Só daí a cinco anos é que devia despertar definitivamente do seu semiconsciente letargo – letargo do qual muitas moças não despertam nem à hora da morte... * *
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Em Janeiro de 1921, com 14 anos, veio Irene para Fortaleza em companhia de sua irmã Laís, afim de se matricularem no “Colégio Imaculada Conceição”, dos Irmãos de São Vicente de Paulo. Laís internou-se, ao passo que Irene, devido ao seu estado de saúde, ficou residindo em casa de seu avô paterno, Pompeu Ferreira da Costa Lima. Passados alguns meses, voltou para a fazenda do “Cajueiro”, onde continuou os seus estudos. Tinha então mais dois irmãos: Marisa e Dario. Em fins de 1922 passaram seus pais a residir na cidade de Aracati, e Irene começou a lecionar como professora particular em casa de D. Francisca Clotilde. Contava 15 anos. Era moça. E, como todas as moças, começou a frequentar a sociedade, em companhia de seus pais e de sua irmã Laís, quando esta vinha passar as férias em casa. Por esse tempo, teve Irene o seu primeiro romance, que parece ter empolgado com bastante veemência a alma sensível da jovem. Novos mundos descortinaram-se-lhe aos olhos... Horizontes ignotos abriam os seus mistérios... 13
Não tardou, porém, a entrar em conflito com seus pais, por causa desse namoro. E a resistência de Irene acabou, finalmente, em desistência... Teve ainda nos anos subsequentes diversos amores, alguns deles bem de molde a levá-la ao paraíso da felicidade, humanamente falando. Não parece, todavia, ter pensado seriamente em casar. Uma voz misteriosa lhe dizia que o seu “lar” seria diferente dos lares que suas companheiras iam fundando, cheias de otimismo e de fagueiras esperanças... Já nesse tempo, começou Irene a sentir, embora vagamente, a existência de dois mundos dentro de si, duas forças antagônicas que se digladiavam nesse silencioso campo de batalha e fariam do resto da sua vida um drama de estranha beleza e enigmática incompreensibilidade... Toda alma humana é um microcosmo, um universo por si, um mundo original, uma obra inédita, um cosmos mais vasto e misterioso do que as incomensuráveis regiões que se espraiam para além dos espaços sidéreos da vialactea... Não existem duas almas inteiramente iguais, e por isso é impossível que uma compreenda cabalmente a outra. As obras de Deus são todas originais inéditos. Deus não fabrica mercadorias em série como os homens. Não faz cópias ou duplicatas. A sua inteligência é assaz poderosa para conceber sempre novos modelos numa variedade infinita; e o seu poder é bastante grande para realizar de modo original e único as suas idéias. Neste mesmo ano começou Irene a ser um enigma para a sociedade e até para pessoas da sua família. Eram os prelúdios da futura espiritualidade. Os prelúdios, porque não se pode dizer que Irene fosse propriamente espiritual, embora acompanhasse, como a maior parte das jovens católicas, os atos cultuais, frequentasse os Sacramentos, assistisse à Missa e fizesse o seu Retiro anual. Todos esses atos externos não excluem necessariamente a rotina e superficialidade religiosa a que muitas pessoas chamam “religião”. Pode-se acompanhar externamente esse “catolicismo”, e não possuir a alma do Cristianismo. A milhares de “católicos” - por mais paradoxal que isso pareça – a religiosidade dificulta a prática da Religião... Só no dia e na hora em que a alma vive o seu encontro pessoal com Deus é que principia propriamente a sua vida espiritual. O homem que ainda não viveu e sofreu a sua “hora de Damasco” ignora o que seja religião, por mais numerosos que sejam os livros piedosos que tenha lido. Para Irene não tinha soado ainda a hora bendita do seu “encontro pessoal com Deus”. * *
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No ano 1925, sentindo-se melhor, veio para Fortaleza, onde passou três anos, residindo em casa de sua avó paterna e aperfeiçoando os estudos. 14
Ensinava de graça as primeiras letras a numerosas crianças pobres. Gostava muito de dar aulas de Catecismo. Filha da “terra da luz”, parecia predestinada a espargir por toda a parte abundância de luzes intelectuais e espirituais. Era também muito hábil em trabalhos manuais e lavores artísticos: bordados, pinturas, croché. Confeccionava todos os anos grande número de vestidinhos para crianças pobres. Pelo Natal armava lindos presépios e achava imenso prazer em oferecer uma farta mesa de doces e presentinhos aos garotos que não figuravam na lista de visitas de Papai Noel. Já nesse tempo se acentuava a nefrite crônica, que, daí por diante, nunca mais abandonaria o corpo de Irene. Data de 1925 a alvorada espiritual dessa alma – e principia também neste mesmo ano o seu Calvário de cada dia. Parece que vigora uma secreta relação entre a espiritualidade e a dor. Paulo de Tarso, mal chega a conhecer a Cristo e abrasar-se do seu amor, tem de ouvir logo essas palavras: “Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer por meu nome”... O homem que pouco pensa e pouco ama – pouco sofre. O sofrimento cresce na razão direta da compreensão e do amor das coisas de Deus. Contudo, é um sofrimento suave e mil vezes mais digno do homem do que todos os prazeres do mundo. É uma doce amargura – uma amarga doçura... “Ano Santo” é o título que a Igreja deu ao ano jubilar de 1925 – e Irene o apelida de “ano santo” em virtude da sua conversão da matéria para o espírito. Só Deus sabe o que, nesse ano, se passou na alma da jovem. O seu “Diário” reflete um quê dessa primeira etapa da sua espiritualidade, mas não nos diz tanto quanto desejaríamos saber. Até então costumava Irene vestir com vaidade, e, não raro, com falta de decência cristã. Gostava de saias curtas, grandes decotes, ausência de mangas, etc. Monsenhor Liberato, seu tio, chamou-lhe um dia a atenção para essas inconveniências; mas a sua “maneira estrompa” (expressão de Irene) irritou a mocinha em vez de corrigi-la; só o amor, como ela dizia à sua amiga Celita Gurgel1, é que era capaz de a converter. 1 Historiando a vida de Irene Valente, não podemos deixar de dizer duas palavras da sua mais íntima amiga e inseparável companheira – Celita Gurgel, que tantas vezes aparece nas páginas deste livro. A exemplo de Irene, sacrificou também Celita a sua saúde e mocidade, o seu tempo e os seus recursos, à grande causa do apostolado da infância. Foi Celita que, em fins de 1937, me acompanhou à casa da mãe de Irene (o pai já faleceu), em Fortaleza, à rua Senador Pompeu. Acompanhou-me, mas quase em silêncio. De luto permanente pela morte de amiga, caminhava ao meu lado, ensimesmada, abstrata, como se nada mais a prendesse a este mundo. Falei longamente com a mãe de Irene e com uma irmã dela. D. Maria, senhora distintíssima, calma e espiritual como Irene, pode considerar-se feliz por ter dado ao Ceará, ao Brasil e ao céu uma filha como essa. A ela e à heróica Celita, os mais efusivos parabéns e sinceros agradecimentos do autor deste livro.
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Mas ainda no mesmo ano, no dizer de Celita, Irene “sepultou os seus defeitos”. Dera-se o “encontro pessoal” entre Deus e a alma de Irene... O resto é mistério... Não se modificou, com essa mudança interna, a vida externa da jovem. Apenas começou a enxergar todas as coisas sub specie aeternitatis, como dizem os ascetas. Propensa aos trabalhos literários, como é, geralmente, o nordestino, intensificou ainda mais os seus estudos. Teve um ótimo professor de português na pessoa do Dr. Antônio Augusto, ao qual, como ela diz, “deve todo o seu saber”. Irene era muito benquista na melhor sociedade de Fortaleza. Tinha numerosas amiguinhas, graças a seu gênio alegre e divertido. A sua jornada ascensional, das planícies da humana mediocridade para as montanhas de Deus, em nada lhe prejudicou a natural jovialidade. *
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Por algum tempo, no primeiro fervor da espiritualidade, pensou em abandonar a sociedade e entrar para o claustro. Em Guaramiranga, onde esteve alguns dias a passeio, têm as Irmãs Franciscanas um convento, no qual uma prima de Irene fazia o noviciado. Aquela vida tranquila e contemplativa afigurava-se-lhe o céu na terra. Quem contempla de longe uma roseira florida não lhe enxerga senão a magnificência das flores, e nada percebe dos agudos espinhos que andam ocultos por entre as belezas... Muita jovem encanta-se pelo ramalhete de rosas brancas e vermelhas que a santinha de Lisieux aperta ao coração – e muitas se esquecem de que no meio das flores negreja um crucifixo de ares dolentes... Entretanto, não foi por medo das dificuldades inerentes à vida claustral que Irene deixou de tomar o véu de freira. Deus conduziu-a insensivelmente por outros caminhos. Queria-a como apóstola em pleno mundo, como Verônica a meio caminho do Calvário. “Verônica” era precisamente o nome que Irene escolhera dantemão para o caso de professar na vida religiosa. Achava lindo este nome: Irmã Verônica. Vai também nisto um delicado simbolismo da sua alma: a Verônica do Evangelho – ou antes da via-sacra – é a personificação da caridade ativa, humilde, despretensiosa, que só quer prestar benefícios sem se deliciar nos elogios do mundo. A caridade, quando genuína, é, por assim dizer, anônima, como anônima é aquela grande e corajosa benfeitora do divino Mártir, à meia altura do Gólgota; “Verônica” é apenas um apelido que lhe deram, ao passo que o nome próprio dessa mulher nos é desconhecido. Era, pois, este o ideal de Irene: a caridade ativa, humilde, anônima.
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Em 1927, com 20 anos, regressou para Aracati, a que ela chamava “terra do exílio”. Lecionava aulas particulares - “Escola Santa Irene”, como a crismou. Fundou em Aracati a “Escola Remington Oficial”, onde conferiu diploma de dactilógrafa a numerosas alunas. A “festa da formatura” era sempre uma grande solenidade. (Veja-se a fotografia na fl. 72). Passava as férias em Fortaleza, e em dezembro de 1932 veio morar em casa duma sua tia, na capital, donde não mais voltou.
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3. O CARÁTER E OS IDEAIS DE IRENE É costume entre as moças do Ceará organizarem questionários – ou, se quiserem, testes – sobre certos pontos de interesse e apresentar às suas amigas esses formulários para as competentes respostas. Entre os manuscritos deixados por Irene, encontram-se nada menos de três desses questionários. Um é de 1924, outro de 1931, e o terceiro de 1932. Em muitos pontos coincidem esses documentos, divergindo em outros. Representam os referidos testes preciosos subsídios para caraterizar a índole e as aspirações da sua autora. Vamos transcrever, na íntegra, o primeiro desses formulários, datado de 7 de agosto de 1924, quando Irene tinha 17 anos, último ano da sua “vida profana”: “Qual a tua divisa? Ser simples. A tua paixão dominante? O mar.1 O teu sonho de felicidade? A felicidade dos meus. Qual seria a tua maior desventura? Ver alguém infeliz por minha causa. O que quiseras ser? Imortal nos corações dos amigos. Como quiseras viver? Sendo útil a todos. Como quiseras morrer? Em estado de graça. A tua ocupação favorita? Ler. A tua principal qualidade? A discrição. O teu principal defeito? Não saber dissimular. O que mais detestas? A falsidade. O que mais te entristece? As despedidas. O que te falta? Atualmente nada.2 O país onde quiseras viver?^Este, que é meu. És feliz? A felicidade é uma quimera. És sincera? Penso que já tenho dado provas disto. Tens amigos? Tenho. A qualidade que preferes no homem? O caráter a par da delicadeza. A qualidade que preferes na mulher? A meiguice e a bondade. O tipo masculino que mais te agrada? Moreno claro, olhos e cabelos negros. O tipo feminino que mais te agrada? Esbelto e louro. Os olhos que mais aprecias? Negros e ternos. Os erros que merecem a tua indulgência? Os do coração. Quais são os heróis que mais admiras? A vítima do dever. Qual festa que te fez saudades? O pique-nique de 16 de dezembro de 1923. O amor existe? “Perfeito” - só na flor.3 Que pensas do flirt? Ridículo. 1 “Paixão dominante”, em linguagem ascética, quer dizer, o defeito principal; Irene, porém, a toma no sentido de: entusiasmo mais forte. 2 E, no entanto, estava ela quase sempre adoentada e acabava de sofrer a sua primeira decepção amorosa. 3 Engenhoso jogo de palavras sobre o “amor-perfeito”, uma das flores da sua predileção.
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Que dizes do beijo? A mais doce carícia. Que dizes do ciúme? É um estado doentio da alma. Devemos perdoar? Perdoar, sim, esquecer, nunca. Pensas em casar? Não há tempo para isso.1 Os teus escritores prediletos? Os que fazem pensar. Os teus poetas prediletos? Os que tocam o coração. A tua poesia predileta? “O Palhaço”. O instrumento que preferes? O violino. As flores que preferes? As que têm perfume. A cor que preferes? O branco. O esporte que mais te atrai? Observar as maravilhas da natureza.2 Que dizes da dança? Um bom exercício. O animal que preferes? Os pássaros cantores. A tua maior preocupação? Cumprir o meu dever. O teu passatempo favorito? Relembrar o passado. *
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O teste de 1931, isto é, o sexto ano após a sua compreensão espiritual, difere em muitos pontos do anterior e revela interessantes faces do caráter de Irene, sobretudo nos campos centrais da vida, onde se ferem as batalhas decisivas entre o indivíduo e a personalidade. O tipo feminino da sua predileção continua invariavelmente, como em 1924, com um quezinho de sabor ariano: “esbelta e loura”, enquanto o tipo masculino passou, de “moreno claro, olhos e cabelos negros”, para - “nenhum”... O seu sonho de felicidade, que em 1924 era “a felicidade dos meus”, cristalizou-se nesta frase digna duma Teresa d'Avila: “renunciar a tudo serenamente”. “Serenamente” - é bem notável este advérbio! Ao quesito: “qual o teu apelido?” deu ela esta encantadora resposta: “Nazarena”. Com efeito, já nesse tempo vivia Irene mais em Nazaré, naquela humilde oficina do divino adolescente, do que nas plagas do Ceará. É uma das mais tristes verdades que as nossas moças de hoje – e fossem apenas elas! ignoram, por via de regra, os fatos íntimos do Evangelho, a vida de Jesus Cristo. Irene é uma feliz exceção da regra. Faz lembrar Santa Teresinha do Menino Jesus, que não passava um dia sem ler ao menos uma página do sagrado Evangelho. Ninguém sabia como Irene contar as cenas maravilhosas de Belém, de Nazaré, de Cafarnaum, do Genesaré, do Calvário. É neste conhecimento profundo dos livros sagrados que está o segredo das suas catequeses, que eram escutadas com avidez pelas crianças e pelos adultos. Irene vivia identificada como a vida de Nosso Senhor, e por isso podia dar aos outros da abundância da sua própria riqueza interior. Não podemos transmitir aos nossos semelhantes 1 Uma das frases que mais caracterizam o espírito de Irene. 2 Outra resposta bem de Irene.
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senão aquilo que possuímos vitalmente. Assim como a mãe não transmite ao filho as qualidades superficialmente adquiridas – porque estas não têm base nas células germinais – senão somente aquilo que é da sua íntima natureza humana e feminina, assim também, na geração espiritual, não podemos dar aos nossos filhos espirituais senão aquilo que é real e intimamente nosso. Não basta que uma verdade religiosa seja pensada ou estudada; para poder ser comunicada, tem de ser vivida e sofrida. Só o que eu vivi e sofri é o que está no centro do meu Ser; o resto fica na periferia. É necessário que as verdades espirituais nos penetrem a alma, mergulhem nas profundezas do nosso Eu, se abismem no oceano da nossa psique pessoal, que vivam a nossa vida, que padeçam as nossas mágoas, que solucem os nossos desenganos, que rejubilem com as nossas alegrias, que amem com o nosso coração, que vibrem com os nossos nervos, que estremeçam em as nossas angústias; - numa palavra, é mister que as aéreas e longínquas realidades do espírito se encarnem dentro de nós e se personalizem em o nosso Eu. Os grandes heróis da vida religiosa, os homens de projeção secular, viviam e sofriam as suas espiritualidades, e, uma vez firmados nesse “ponto de Arquimedes”, situado fora do mundo material, movimentavam universos e criavam maravilhas de grandeza e sublimidade. Por esse tempo, começou Irene a viver e sofrer a sua fé – e foi precisamente por isto que ela se tornou uma exímia catequista – por ser uma perfeita “nazarena”.1 * *
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Outra pergunta desse segundo questionário: “Como te desejarias chamar?” Resposta: “Irmã Verônica”. Como dissemos, Irene andava com a idéia de professar na congregação das Irmãs Franciscanas de Guaramiranga, e já escolhera, para este caso, o lindo nome “Verônica”. Queria, a exemplo daquela heroína do Calvário, enxugar a face de Cristo, do Cristo padecente através dos séculos na pessoa de tantos sofredores do corpo e ainda mais sofredores do espírito... Bem compreendera Irene o sentido daquelas palavras: “O que fizerdes ao menos dos meus irmãos, a mim é que o fareis”. Mesmo sem o nome de “Verônica”, desempenhou mil vezes o papel de Verônica do Gólgota, aliviando nos seus Calvários a tantos irmãos de Jesus Cristo, prestes a desfalecer sob o peso da sua cruz... 1 Já se achava no prelo este livro sobre a heróica apóstola do Ceará, quando das plagas nordestinas nos veio a alvissareira notícia de que o governo do Ceará baixara um decreto oficializando a leitura do Evangelho nos estabelecimentos de ensino. Ceará docet! Não nos furtamos ao pensamento de que Irene, essa grande amiga e assídua leitora do Evangelho, lá das regiões da Verdade e da Vida, esteja patrocinando a causa de Jesus Cristo na “terra da luz”. Deixaria ela de ser apóstola do Evangelho no céu, quando o foi tão ardentemente na terra?...
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“Como quiseras morrer?” “Unida a Jesus e nos braços de Maria”. A tua verdadeira vocação?” “Isto deve ficar em segredo”. “Que pensas do flirt?” Em 1924 respondera simplesmente: “Ridículo”. Agora, em 1931, escreve: “É uma prova de pouco juízo”. De vez em quando vem uma sentença profundamente filosófica. À pergunta: “Que é a vida?” dá Irene esta resposta de sabor platônico e espírito pascalino: “É um bordado do qual nós vemos somente o avesso”. Irene era mestra em bordados artísticos. Vê-se por esta sentença que, enquanto os seus dedos manejavam a agulha e a linha, não lhe ficava inativo o espírito, descobrindo maravilhosos simbolismos onde outras jovens nada percebem. “Que é o amor?” “É uma asa que nos leva até Deus”. “O amor existe?” “Sim, tão certo como existe Deus”. Por estas duas respostas se conclui que Irene, nesses cinco ou seis anos, andara às voltas com os livros sagrados e lera nas Epístolas de São João esta frase tão bela quão verdadeira: “Deus é amor”. Em 1924, interrogada se o amor existia, respondera, com ares de pessimista desiludida: “perfeito – só na flor”. Naquele tempo não conhecia outro amor senão esse pobre sentimento humano que muda com a idade, os humores do sangue e as disposições dos nervos; agora, porém, lhe despontou aos olhos um novo universo de luz: o amor espiritual, o amor eterno, o amor de Deus. “Que dizes da dança?” Da primeira vez achara-a “um bom exercício”, ao passo que agora prefere responder: “Não digo nada, mas não gosto dela”. “Qual a tua opinião sobre a moda?” “Preocupa-me pouco esta senhora”. É bem o humorismo e o gênio alegre de Irene. “Como achas mais suave viver?” “Servindo e amando a Deus”. Eis a Irene espiritual e apostólica! “És feliz?” Que distância enorme entre o doloroso suspiro schopenhaueriano de 1924: “a felicidade é uma quimera”, e a jubilosa afirmação cristã de 1932: “sou mais feliz do que mereço, graças a Deus”! A maior desventura do homem, dentro do âmbito da vontade de Deus, é sempre maior felicidade do que o máximo prazer fora dessa vontade – disto se convencera Irene nos últimos anos, e por isso é que vivia sempre tão alegre no meio dos seus sofrimentos e das incompreensões dos seus. “Pensas em casar?” Daquela vez dera a jovem cearense uma resposta evasiva a esse quesito: “não há tempo para isso”, ao passo que agora vem com uma repulsa categórica: “não, Deus me livre de tal coisa!” É que, entrementes, lera e meditara o capítulo VII da primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios e penetrara no sentido profundo das palavras: “Quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, um conselho como quem merece confiança, por ser agraciado do Senhor. Entendo que, por causa da presente tribulação, é bom elas ficarem assim (virgens)... A mulher não casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor e procuram ser santas de corpo e alma; ao passo que a casada pensa nas coisas do mundo e 23
procura agradar ao marido. Digo isto para o vosso bem, porque me interesso pelos bons costumes e por uma desimpedida entrega ao Senhor”. * *
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O psicólogo não pode deixar de reconhecer, pelo cotejo dessas duas autocaracterizações, os rastos de uma incessante evolução em linha ascendente. A acendrada espiritualidade de Irene do último decênio de sua vida é o fruto maduro de um contínuo esforço e uma decidida educação de si mesma. O santo não nasce – forma-se. *
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Num terceiro questionário, de 20-7-1932, lemos estas frases, que projetam luz abundante sobre o caráter e os ideais de sua autora. “Qual a tua paixão dominante?” “A Eucaristia”. Vai enorme distância do “mar” (resposta de 1924) à “Eucaristia”. A panteística enamorada da Natureza tornou-se a cristianíssima adoradora do Deus do Universo, encerrado pelo próprio amor na migalha infinita da Hóstia... A partir daí, o “Diário de Amor” de Irene vem repleto de transcrições e paráfrases dos livros: “Alma Eucarística”, “Albores Divinos” e “Poesia de Jesus”1, obras pelas quais ela costumava fazer as suas leituras e meditações quotidianas. À pergunta sobre a sua “ocupação favorita”, ela não dá mais, como anos antes, esta resposta tão esteticamente humana: “ler”, mas, sim, a resposta genuinamente apostólica: “ensinar o Catecismo”. À interrogação romântica: “quais os olhos que mais aprecias?” dá uma resposta igualmente romântica: “os que sabem falar”. “Quais os músicos que preferes?” O leitor civilizado espera, naturalmente, ouvir palavras de alta cultura, como Beethoven, Carlos Gomes ou Chopin. Irene, porém, prefere aos músicos humanos os cantores de Deus, respondendo: “Os pássaros do campo”. “Qual o esporte que mais te atrai?” “Passeios à praia”. As obras de Deus, as maravilhas da natureza, os trabalhos dos homens – é nesta sucessão que Irene classifica os valores da vida, à luz da razão e da fé. E não tinha razão?
1 Obras do P. Huberto Rohden. Nos últimos tempos andava Irene à procura do livro intitulado “Jesus Nazareno”; morreu, porém, sem o teor encontrado em Fortaleza. “Irene gostava muito dos livros do Padre Rohden, cujos pensamentos tanto concordavam com as ânsias do seu espírito”. (P. Tiago, diretor espiritual de Irene).
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4. NOS RASTOS DE DIANA Contempla, prezado leitor, a fotografia da fl. 61. No fundo, uma esplêndida mangueira; à direita, uma senhora; de cada lado, um garoto com chapelão de palha; ao meio, uma creoulinha sentada ao pé – de quem? Ao pé duma jovem com um enorme chapéu de palha à cabeça e empunhando uma respeitável espingarda de caça. Não é que a sua atitude, a arma e o chapéu de aba levantada na frente fazem lembrar o famoso “Lampeão” de temerosa memória? E se eu dissesse agora aos meus leitores que essa arrojada caçadora é a nossa espiritualíssima Irene, ninguém me daria fé. Pois, a verdade é esta. Havia na fazenda do “Cajueiro” e nos arredores de Aracati extensas matas e descampados, que formavam o eldorado de toda a espécie de caça. Antes que amadurassem as áureas espigas dos milharais, enormes bandos de gárrulos papagaios costumavam pilhar as fartas roças do litoral cearense. Gordas capivaras atravessavam o rio Jaguaribe e estabeleciam nas plantações do sr. Costa Valente e vizinhos o regime do mais completo comunismo, segundo o princípio adotado no mundo zoológico: Tudo o que é teu é meu. De vez em quando, emergia das águas barrentas do grande rio a cabeça lisa duma lontra sagaz, à espreita duma galinácea que, por ventura, descansasse, incauta, à sombra do espesso canavial – e era uma vez uma galinha... Mas ai desses intrusos se andasse por aí a gentil discípula de Diana!... Irene conhecia-lhes todas as manhas e artimanhas... Gostava de caçar e chegou a ser ótima atiradora. Defendia assim de muitos inimigos traiçoeiros a fazenda paterna. É possível que essas propensões cinegéticas roubem à jovem cearense as simpatias de não poucos leitores – ou melhor, de certas almas ultra-sentimentais que desmaiam ao verem uma gota de sangue e revelam-se legítimos hindus na sua mórbida zoofilia, a qual consideram como a quintessência da virtude e caridade. Deus criou para utilidade dos homens as plantas e os animais. Pode o homem servir-se deles a bel-prazer. Não deve, certamente, matar só pelo gosto perverso de matar, e muito menos maltratar algum animal. Mas pode eliminá-lo quando o aconselham os interesses honestos da sua vida e prosperidade. Usar – sem abusar. Irene, por mais delicados que fossem os seus sentimentos e por mais apurada a sua caridade, teria sido incapaz de levar nos braços e amimar como uma criança um cachorrinho de luxo. Vestir de seda e veludo um animal, comprar para ele finais iguarias, mandar-lhe fazer uma caminha de madeira do Pará com imbutidos artísticos, e, para cúmulo de aberração sentimental, fazerlhe um cemitério próprio e levantar-lhe um monumento de mármore, a exemplo do que fazem certas damas excêntricas da moderna sociedade – disto 25
seria incapaz a alma natural de Irene. Encontrasse, porém, nos seus caminhos uma criança pobre, um garotinho abandonado, um doente coberto de chagas – logo lhe despertava na alma o mais vivo interesse e a mais ativa solicitude por esses seus irmãos em Cristo. Respeitar os animais e as plantas – é justo e nobre. Amar, porém, só podemos a um ser racional. A zoofilia de certas damas da nossa sociedade supõe uma psique profundamente adulterada, um sentimento desviado dos trilhos naturais duma sadia e sensata racionalidade. Nos últimos anos da sua vida, gastava Irene regularmente quase todo o seu ordenado de professora com a aquisição de roupinhas para crianças pobres. Era duma liberalidade que faz lembrar a largueza de espírito de Maggy Lekeux, essa donzela admirável que fez mais pela solução da questão social na Bélgica e no resto do mundo do que centenas de legisladores e milhares de sociólogos. Irene, depois daquele seu “encontro pessoal com Deus”, vestia com extrema simplicidade. Desfez-se de quase todas as suas jóias, em benefício das crianças pobres e de obras pias. Assistia à Missa diariamente, comungava, e costumava à tarde fazer a sua visita ao Santíssimo. E, no entanto, essa jovem de alta espiritualidade sabia ser ao mesmo tempo essa simpática discípula de Diana, essa gentil caçadora a romper impetuosa pelas matas do nordeste e jogar-se, possivelmente, às águas do Jaguaribe para atravessá-lo a nado. Vede-lhe a atitude característica: segurando a espingarda com ambas as mãos, espia pela ramaria da mangueira, donde ouve partir um ruído – os caçadores costumam ter o ouvido muito apurado. Daí a momentos, ecoa pelo silêncio do pomar o estampido de uma aguda detonação – e aos pés da intrépida Diana tomba o alado intrujão que, certamente, não contava com a destreza daquela piedosa Filha de Maria e inteligente diretora da “Escola Remington Oficial”...
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5. TEM A PALAVRA IRENE Já é tempo de darmos a palavra à nossa heroína. Ela, é certo, falará em toda a segunda parte deste livro; mas convém que diga, desde já, algumas daquelas coisas suaves e espirituais que, dia a dia, confidenciava com o seu “querido Jesus”. Há um grande inconveniente em publicar diários íntimos, confidências espirituais e, sobretudo, solilóquios eucarísticos, como estes. Apanhar uma dessas lindas borboletas das nossas florestas – borboletas que mais parecem sonhos e sopros do que seres materiais – é o mesmo que roubar-lhes grande parte dos seus encantos, destruir-lhes o tenuíssimo pó das asas velatíneas e reduzir assim essa etérea poesia ao prosaísmo dum objeto de museu. Toda e qualquer virtude, quando exibida em público, mesmo com a melhor das intenções, perde 50% da sua natural beleza e do seu envolvente fascínio. O simples fato de ser dito em voz alta, ou até estampado grosseiramente em letra de forma (que horror!), aquilo que, quando muito, devia ser segregado à meiavoz, constitui uma verdadeira profanação, quase um sacrilégio... O “Diário de Amor”, de Irene, não foi escrito com o pensamento na publicidade. Se não fosse com o intuito honesto e apostólico de dar proveito a uma ou outra alma, jamais me atreveria eu a expor em praça pública o que essa jovem cantou e gemeu discretamente à luz vermelha da lâmpada do Santíssimo e no silêncio do seu gabinete de estudos. Perdoa-me, portanto, Irene, e lá das celestes alturas, onde, como espero, contemplas o meu humilde trabalho, fala às almas que, porventura, lerem estas tuas intimidades eucarísticas. *
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Tenho diante de mim um dos volumes do “Diário de Amor”, em cuja primeira página se acha colada uma linda estampa em sépia, representando o Sagrado Coração de Jesus, e debaixo dele, do punho de Irene, as palavras: “Meu Jesus, eu sou tua e de mais ninguém”. Depois duma sugestiva poesia e uma fervorosa consagração do novo ano, escreve Irene, com data de 1º de janeiro de 1931, quinta-feira: “Jesus, neste primeiro dia do ano, todos se cumprimentam e desejam uns aos outros toda a sorte de felicidade. E a ti, Jesus, ninguém se lembra de desejar nada. A única pessoa, talvez, que se lembrava de te desejar felicidades já não vive nesta terra. 27
Quero eu te consolar pelo esquecimento destes teus amigos e te desejo um Ano Novo repleto de felicidade. Em que consiste a tua felicidade? Em receber as homenagens dos teus servos e o amor dos teus amigos? Pois bem, Jesus, eu faço votos para que neste ano recebas muitas homenagens e atos de amor. Faço votos para que se batizem muitos pagãos e convertam muitos infiéis, se regeneram muitos pecadores e se consagrem a ti muitos corações, e se povoem os conventos. Faço votos para que se calem os blasfemadores, para que cessem as injúrias e os ultrajes da Rússia, para que apareçam vocações e haja sacerdotes cheios de zelo que te consolem o coração. São estes, neste primeiro dia do ano, os votos do coração amigo da tua serva”. Logo na alvorada deste ano de 1931, trava Irene conhecimento com a dor. Cai de cama com forte gripe e tosse. No dia 5-1-31 escreve: “Ó Jesus, quanto é triste um dia sem te receber! Que sofrimento para o meu coração que anseia por ti!... É o primeiro dia deste ano que vou passar com saudades de ti; e quantos dias iguais a este não serei obrigada a passar, meu Jesus!... Quanto me custa passar sem ti!... De todas as dores que trazem consigo os resfriamentos, a pior de se suportar é a tua ausência. Como poderei sair para a tua casa, ó Jesus, se estou doente? Depois, sempre que saio, apanho chuva, e ela me faz tanto mal!... Se a chuva não fosse tão necessária, eu te pediria que a não mandasses. Mas, Jesus, se eu não fui pessoalmente te receber, fui espiritualmente; aceita a minha boa vontade e dá-me a paz, aquela paz que os anjos prometeram no dia do teu nascimento, aos homens de boa vontade”. No dia 6-1, festa dos Santos Reis, continua Irene a sua ingênua tagarelice com Jesus, como se fizesse parte da comitiva dos magos e estivesse de joelhos diante do Menino em Belém: “Jesus, hoje, dia santo, não me foi possível ir à Missa. Um dia santo sem Missa! Que tristeza! Mas tu quiseste assim, não foi, Jesus? Porque mandaste tanta chuva? Resigno-me, porque sei que é a tua vontade. E, já que não pude ir te visitar como os Reis magos o fizeram, fiz a minha visita espiritual a ti, loura criancinha, que vieste ao mundo para a minha salvação. Nada tendo para te ofertar, nem ouro, nem incenso, nem mirra, eu te ofereci, meu Jesus, o meu sofrimento, as minhas dores, os meus suspiros, as palpitações do meu coração, que te pertence... E tu os aceitaste, ó Jesus, estou bem certa disto, peço-te que não abandones a tua amiguinha, que não a deixes muitos dias sem te receber; pois ela contigo pode tudo, mas sem ti não pode nada.
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7-1 – noite - quarta-feira Meu Jesus, eu sou toda tua, e demais ninguém. Como eu te amo, Jesus! Hoje tive a felicidade de te receber. Como és bom! Não mandaste cuva para que eu pudesse visitar-te, não foi, Jesus? Estavas com saudade de mim? Eu tive tantas saudades de ti! Eu, Jesus, é natural que tenha saudade de ti; porém, teres saudades de mim, não será presunção minha? Não é, já sei, Jesus! Embora tenhas aos teus pés as tuas queridas amigas, não te esqueces de mim, a mais indigna, aquela que mais te fez sofrer, a quem muitas vezes perdoaste, mais benefícios fizeste. Os abismos se atraem, meu Jesus: o abismo da minha miséria atrai o abismo da tua misericórdia.1 Viste como te provei o meu amor, Jesus? Fui, hoje à tarde, te visitar. E tu, que conheces tudo, devias ter visto o estado em que me achava. Cansada de andar, exausta de tossir, o corpo feito em suor, os pés doridos; mas fui a ti, fui te visitar e encontrei nisto grande consolação. Não, não poderia deixar de ir, meu Jesus!” Todos os pensamentos de Irene giram perenemente em torno do Tabernáculo, qual enxame de abelhas em volta duma flor. Acordando, em plena noite, vem-lhe logo, instintivamente, a lembrança de Jesus-Hóstia: 9-1 – sexta-feira “À noite, quando acordo tossindo e que não posso dormir, o meu principal pensamento és tu, Jesus. Esta noite, quando o relógio da Sé bateu meia-noite, o meu espírito foi te visitar e te encontrou tão sozinho, naquela igreja tão deserta e tão escura, tendo por companhia a franca luz da lâmpada. Onde estavam, meu Jesus, todas aquelas virgens que, à tarde, te fazem tão fiel e amorosa companhia? Dormiam – e tu estavas só!... Velando por nós... pensando em nós!... Francamente, Jesus, tive pena de ti, e te agradeci o teres ficado prisioneiro por nosso amor. 10-1-31 – sábado Meu Jesus, estou pior. A minha natureza quis se revoltar, tive vontade de chorar; mas, ao pensamento de que era esta a tua vontade, eu me acalmei. Não, Jesus, não me revolto. Mas até quando sofrerei esta doença? Os santos não pediam alívio para as suas dores – e eu quero ser santa, meu Jesus, mas falta-me a coragem. Jesus, sinto-me tão fraca, tão cansada. Esta dor de garganta é horrível!... Não a queres trocar pela tosse? Eu te agradeceria tanto! Tem piedade de mim, Jesus!... Se tivesse comungado hoje, estaria mais forte. Não me abandones, Jesus meu! 1 Linda paráfrase e aplicação das palavras da Sagrada Escritura: abyssus abyssum invocat.
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11-1-31 – domingo Jesus, como passei mal esta noite! Não tiveste pena de mim? Quase não dormi... nem podia também pensar em ti. Era tão grande o sofrimento... Mas, Jesus, parece que fiquei um pouco queixosa contigo, por não teres feito a troca. Que fraqueza esta minha, não é, Jesus? Tenho tantas faltas a expiar, e aborreço-me quando me envias o sofrimento que me serviria para isto”. Recordando o que escrevera naquele questionário, dando o “mar” como a sua “paixão dominante”, Irene pergunta a Jesus se aquilo não era tolice. 13-1-31 – terça-feira “Estive me lembrando, Jesus, de que sempre respondo nos livros de confidências que a minha paixão dominante é o mar. Não será isto um disparate, meu Jesus? Que fez o mar para merecer o meu amor? Não, Jesus, gosto do mar, mas não direi outra vez que ele é a minha paixão dominante. A minha paixão dominante agora será Aquele que fez o mar, para satisfação dos meus olhos”. * *
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Irene possui o dom singular de tornar concretas e intuitivas as coisas espirituais, tão vagas e metafísicas aos nossos sentidos. No dia 16 de janeiro, quando, de certo, ainda estava armado o presépio do Natal, ela comunga, e depois discorre deliciosamente assim: “Meu Jesus, que fervorosa Comunhão fiz hoje!...Agora que estás no meu coração, que nele entraste como uma criancinha de poucos dias, eu te ofereço este coração transformado num bercinho macio. Não, Jesus, não será meu coração uma manjedoura fétida de palhas ásperas para magoar o teu inocente corpinho. Minha Mãe, o teu filhinho está no meu coração, que hoje é seu berço. Vem velar o seu sono. Não me deixes ser má, para não molestar o teu filhinho, para não fazê-lo chorar. 17-1-31 – sábado Ontem, meu Jesus, eu te prometi um berço macio; mas estou certa que encontraste neste berço dois espinhosinhos que te fizeram sofrer. Um foi não ter eu rezado o terço com atenção; e o outro, a minha visita da tarde, que deixei de fazer-te. Jesus, por uma visita a uma amiga faltei à tua. Mas consola-te, Jesus, pois tu sabes que tu és o preferido. Não fui porque me descuidei, e anoiteceu. Hoje, Jesus, eu serei uma flor, um lírio, que a tua Mãe te ofereceu para brincar. Não afastes de ti a tua flor, Jesus, aconchega-te sobre o coração, não a 30
desprezes, pois que te foi oferecida por tua Mãe. Não tenhas medo, a tua flor não terá espinhos que te piquem os dedinhos, verás... Ó Jesus, ensina-me a ser lírio”. *
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No dia imediato, prosseguindo nos seus simbolismos, escreve: “Hoje, meu Jesus, quando vieste a mim na Comunhão, eu te ofereci o meu coração transformado num pombinho branco. Esta avezinha é muito inquieta, meu Jesus; por isto é preciso que tenhas o máximo cuidado. Segura, ó Jesus, o teu pombinho branco, não o deixes voar à toa, não o deixes pousas nas criaturas. Por muito tempo, ele voou de criatura em criatura; agora é teu, pousou em ti, no seu Criador, onde quer ter o seu ninho. Aperta-o sobre o teu coraçãozinho e faze-o adormecer ao calor do teu amor. Nada receies, Jesus meu, o teu pombinho será doce e amoroso. Ontem, a tua flor não te picou, meu Jesus, embora tenha tido suas distrações na visita e no terço; foram todas involuntárias. E os esforços feitos para estar com atenção não te agradaram, Jesus?”
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Seguindo com os olhos as brancas nuvens de incenso que se evolam das brasas ardentes do turíbulo, durante a benção do Santíssimo, Irene suspira por ser um turíbulo assim, cheio de ardor e que faça subir o incenso odorífero da adoração. No dia 19-1 escreve no seu “Diário de Amor”: “Jesus, meu coração é hoje um turíbulo, do qual deve subir para ti uma nuvem de incenso, e este incenso será uma contínua adoração e um contínuo agradecimento. Vieste a mim, Jesus, eu te acolhi com amor, mas continuo tão distraída... Penso em tanta tolice no momento da Missa... Isto me contraria muito. A Missa é uma renovação da tua paixão e morte. E, estando eu tão distraída, que triste figura faço no teu sacrifício? Quão longe estou de imitar tua santa Mãe, Madalena e São João! Nem mesmo posso fazer parte daquele segundo grupo que, não tendo coragem de se aproximar, olhava de longe. As piedosas pessoas deste grupo tinham em ti os seus olhos, pensamentos e corações, enquanto eu a muitas Missas assisto como assiste o defunto colocado na igreja para a Missa de corpo presente. Só tu, Jesus, poderás dar jeito a isto”. *
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Berço, flor, pombinha, turíbulo – tudo isto quer Irene ser para Jesus. E que mais? No dia 20 de janeiro, festa de São Sebastião, escreve: “Queres saber, meu Jesus, o que serei hoje? A Hóstia, a branca Hóstia de frumento. Hóstia, quer dizer, vítima. Pois aqui tens, Jesus, a tua vitimazinha. Ela, meu Jesus, quer cooperar contigo para a salvação dos pecadores. Hoje estou um pouco adoentada e não pude ir te receber; mas sinto, Jesus, que tu estás em meu coração, que vieste a mim na comunhão espiritual. Sinto-me um pouco resfriada, e a garganta está doendo; mas não posso me queixar, pois que sou Hóstia, sou vítima, e uma vítima não se queixa. Abandono-me às tuas mãos, ó meu bem-amado Jesus. Agradeço-te, meu Jesus, a felicidade e a paz que me concedeste ontem, depois da confissão – que boa confissão fiz eu! 21-1-31 – quarta-feira Meu Jesus, hoje escolhi ser uma lampadazinha para estar sempre diante do teu tabernáculo. Quero, meu Jesus, que ela seja sempre brilhante para edificação do meu próximo e para atestar a tua presença. Faze que no meu porte, no meu rosto, nos meus olhos, conheçam que sou das tuas, assim como conheceram que São Pedro era teu companheiro. 34
Como és bom, Jesus: eu ontem me ofereci como vítima e pensei que me mandasses uma gripe, e, no entanto, hoje estou boa. Assim é melhor, Jesus, porque posso te receber e visitar, como fiz hoje. 22-1-31 – quinta-feira Jesus, Santa Teresinha, na sua simplicidade infantil, se oferecia a ti como se fosse uma bola, para te distrair. E ela queria ser tua, entregar-se às tuas mãos, como se fosse uma bola. Pois bem, Jesus, eu hoje imitei Santa Teresinha: fui hoje a tua bola, uma pequenina bola, um brinquedo da tua infância. Mas, Jesus, desde ontem estou tão triste que quase não posso pensar em ti. Ocupa-me o pensamento a infelicidade acontecida àquela família... Jesus, tem pena! Só tu poderás confortar em certas infelicidades, consolar certas dores e estancar certas lágrimas... 23-1-31 – sexta-feira Sabes, Jesus, o que serei hoje? o que será o meu coração? Um jardim. Neste jardim te hospedei hoje. Nele podes estar à vontade, pois que é um jardim fechado onde não deixarei entrar importunadores. Só entrarei eu, de vez em quando, para conversar contigo... Passeia sem receio neste jardim. Não encontrarás animais ferozes que te persigam – os pecados mortais, que não quero abrigar em meu coração; nem deixarei entrar os animais selvagens dos pecados veniais, porque sei que também te assustam. Toma, pois, conta deste jardim. Aí encontrarás as rosas do meu amor; pois eu te amo, e amo o meu próximo por teu amor. Encontrarás também lírios, porque, sabendo que tu és Aquele que se apascenta entre os lírios, procuro tornar-me, dia a dia, mais pura, para te ser agradável. Poderás também descobrir algumas violetasinhas, meu Jesus, pois esforço-me por ser humilde, embora, de vez em quando, não saiba receber com paciência uma censura feita a mim ou à minha família... Se descobrires alguma erva malfazeja, arranca-a, ó Jesus. Sê tu o jardineiro deste jardinzinho. Quando te cansares, deita-te na relva, à sombra das árvores; mas não queiras sair, para que sempre eu te possa encontrar e fazer-te os meus pedidos. Agradeço-te o consolo que vais dando àquela família. Ouviste o meu pedido. Acho mesmo impossível, Jesus, que deixes de me atender, a mim, tua esposazinha, que por ti sacrificou a sua mocidade, seu coração, os gozos, embora fugazes, deste mundo; que escolheu o isolamento do coração por teu amor”. *
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Por esse tempo, deu Irene um passeio a Mecejana, e, depois duma dolorosa provação, derrama no coração de Jesus as suas mágoas, escrevendo no dia 25-131, domingo: 35
“Hoje, meu Jesus, fiz como Santa Teresinha, a qual, estando doente, viu um cacho de uvas, saboreou-o e, depois, se ofereceu a ti como se ela fosse um cacho de uvas para te dar prazer – foi o que fiz. Na Comunhão eu me ofereci a ti e quis ficar ao teu dispor, sem desejos e sem vontade própria, como se realmente fosse um cacho de uvas. E tu, meu Jesus querido, esmagaste este cacho de uvas, porque querias o vinho, o vinho generoso da tua última ceia. O sofrimento de hoje comprimiu o meu coração como se comprimem as uvas para lhes extrair o vinho. Mas, se das uvas sai o vinho que pode ser mudado em teu sangue divino, de um coração esmagado pelo sofrimento sai a resignação à tua vontade e o abandono às tuas santas mãos, o que te é muito agradável, não é, Jesus?” *
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No dia seguinte, ainda sob a pressão da mesma dor, continua o seu holocausto voluntário, confidenciando: “Hoje eu me ofereço a ti, Jesus, como uma espiga de trigo. Se quiseres, podes triturar este trigo para transformá-lo numa hóstia; e debaixo da pesada mó da provação tornar-me-ei apta a ser a hóstia oferecida em holocausto para atrair as suas bençãos sobre a minha família e amigos, sobre a minha congregação e seu diretor”. Fazem estas palavras lembrar aquel'outras, tão parecidas, que o heróico bispo Santo Inácio de Antióquia escreveu, em vésperas do martírio, aos seus diocesanos: “Sou trigo do Cristo; é necessário que seja triturado pelos dentes dos leões afim de dar em resultado um pão agradável a Deus”. Irene, provavelmente, nunca leu essa epístola, de princípios do segundo século do Cristianismo; mas vigora uma misteriosa afinidade espiritual entre as almas genuinamente cristãs; quanto mais se elevam a Deus, mais se aproximam uma da outra, porque todas as linhas terrestres convergem para o vértice da celeste pirâmide, onde está Jesus Cristo, autor e consumador da nossa perfeição. Em vésperas de embarcar para Aracati, “terra de exílio”, ela escreve palavras cheias de dor e saudade: “Ó Jesus, é este o último dia que passo aqui. Amanhã, pela madrugada, tenho de partir. Deixarei esta terra de que tanto gosto, deixarei a minha congregação... Mas, Jesus, é preciso que eu sofra para me tornar agradável a ti. Hoje, quando vieste ao meu coração, eu me ofereci a ti como se fosse um pouco de incenso. O incenso precisa ser queimado para subir em olorosa fumaça e te ser agradável; assim, Jesus, eu preciso sofrer para me purificar cada vez mais e merecer o teu amor. Meu Jesus, protege-me nesta viagem e, naquela terra de exílio, defende-me contra as ciladas do demônio e faze que o meu sofrimento deste ano – o qual 36
ignoro, mas aceito resignada, porque sei que vem das tuas divinas mãos – me seja meritório e me ajude na difícil estrada da santificação”. * *
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Em Aracati, começa Irene a sofrer com o doloroso exílio, não tanto corporal como espiritual, porque lhe faltam as costumadas práticas religiosas em comunidade. Procura, todavia, consolar-se com o pensamento de que também Jesus é um exilado, e, portanto, seu companheiro de suplício. 29-1-31 – quinta-feira “Que tristeza sinto quando chego aqui e não encontro ninguém da minha família! Que isolamento, meu Jesus! Sinto ainda mais as agruras do exílio, porque, Jesus, longe da minha congregação, sou uma exilada; mas tu, Jesus, não estás também exilado nesta terra, por meu amor? a tua pátria não é o céu? Pois bem, Jesus: amor por amor – serei uma exilada de amor, para te fazer companhia. Ontem, devido à viagem, não me foi possível pegar neste caderninho; mas isto não quer dizer que não tenha pensado em ti. 30-1-31 – sexta-feira Hoje, meu Jesus, eu te recebi em meu coração; mas, não sei porque, estava sem fervor. Jesus, tem pena de mim! vê quanto meu custa este exílio e concedeme o fervor para suavizá-lo. Dá-me forças. Jesus! Serei hoje, Jesus, o pássaro solitário; pois vivo tão sozinha, neste sobrado tão grande”. “Pássaro solitário no teto” é a expressão com que o profeta Davi, em transes de profunda depressão psíquica, designa o estado de sua alma. Irene, de encontro à maior parte das outras jovens, mesmo piedosas, conhece admiravelmente essas expressões e imagens bíblicas, quer do Antigo quer do Novo Testamento, prova de que não se contentava com algum devocionário açucarado, mas procurava beber na própria fonte da revelação divina as águas da vida eterna. Já deve o leitor ter reparado como Irene é engenhosa em estabelecer paralelos entre a sua vida e a de Jesus; por toda a parte encontra pontos de contato, semelhanças, analogias – e estes pontos de contato são outros tantos canais por onde lhe derivam as energias espirituais que a sustentam no meio das suas tribulações. Basta-lhe saber: Meu querido Jesus sofreu o mesmo ou coisa pior – e está suavizada toda a amargura. O amor suaviza todas as dores. Não se trata dum simples “ato de amor”, recitado pelas páginas dum manual de orações, mas do amor profundamente vivido e sofrido – e este amor é onipotente.
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É tão fácil ser santo sobre o alvo papel de um “diário”! Ter belos pensamentos e banhar a alma em sentimentos suaves, ainda não é santidade. Mas, quando, na vida real, nessa dura e prosaica vida de cada dia, procuramos sinceramente cumprir a vontade de Deus, sobretudo no sofrimento obscuro e inglório aos olhos do mundo, - então, sim, damos prova de verdadeira virtude e duma santidade que não está apenas na alvura do papel, traçada a bico de pena, mas dentro e mui dentro do nosso Eu. Irene era, de fato, uma grande cumpridora da vontade de Deus e uma heróica sofredora das suas dolorosas visitas. Ver em todas as vicissitudes da existência a mão carinhosa do Pai celeste – isto é mais que sentimentalismo poético, é heroísmo cristão.
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6. A POESIA DA NATUREZA O homem da cidade vive, geralmente, divorciado da natureza. Fábricas e escritórios, salões e repartições públicas, cafés e cassinos, praças e avenidas, clubes e campos de futebol, farras noturnas de cabaré e algazarra insípida de carnaval – eis o mundo do citadino moderno. Nesse ambiente artificial, mecanizado e animalizado, adultera-se aos poucos a alma humana, atrofiam-se-lhe os sentimentos mais delicados. Pode-se mesmo estabelecer, nas devidas proporções, esta equação: o caráter humano está na razão direta do contato com a natureza e na razão inversa da vida na sociedade. Ou, como diz a sentença lapidar de um dos grandes filósofos do paganismo: “Toda a vez que estive entre homens voltei menos homem”. Parafraseando as palavras do filósofo, poderíamos dizer: Toda a vez que estive com a natureza voltei mais natural, e, portanto, mais homem. A natureza é a grande central de energias humanas. A natureza é a boa, genuína, reta, sincera, amiga, benfazeja e estética. A natureza é o reflexo das perfeições de Deus. É o grande livro do Criador. É a mais antiga e mais intuitiva das revelações da Divindade, tanto assim que o apóstolo Paulo, na epístola aos romanos, chama “inexcusáveis” os homens que, pela contemplação da natureza, não chegaram ao conhecimento de seu autor. Se é verdade, como diz Tertuliano, que toda a alma é cristã por natureza, não é menos verdade que toda a alma é naturalmente poetisa. Para ser poeta ou poetisa não é necessário versejar ou rimar. Há muita poesia sem verso, e há muito verso sem poesia. A alma natural, dotada dum determinado potencial de receptividade psíquica, entrevê e entreouve em todos os seres a discreta beleza e harmonia da natureza: no verdejar da folhagem e no perfume das flores, na alvorada triunfal dos passarinhos e no cintilar das estrelas, no silêncio das montanhas e no marulhar das salsas águas nas areias da praia – por toda a parte vislumbra os reflexos dum poder imenso e duma grande inteligência. Todos os grandes homens da história, todos os dedicados servos de Deus eram exímios amigos da natureza, à frente deles o divino poeta da Galiléia, que passou trinta anos no seio da verdejante epopéia das montanhas, e durante os três anos da sua vida apostólica viveu identificado com as paisagens do seu torrão natal e sabia revestir a sua doutrina da mais linda roupagem das parábolas e alegorias: “O reino de Deus é semelhante a um grão de mostarda”... “Eu sou a videira, e vós sois as varas”... “Eu sou a luz do mundo...” “Contemplai as aves do céu e os lírios do campo...” Dele, do grande teólogo-poeta de Nazaré, escreve um dos nossos mais suaves bardos contemporâneos:
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“Mestre! que, na visão poética dos muros Da tua velha pátria, ainda me sorris, Por entre o louro mar dos seus trigais maduros, E das comas em flor de crianças gentis; Tu, que amavas ouvir essas harpas estranhas Que, em horas de solidão, vibra o mar galileu, E fizeste da grimpa excelsa das montanhas A tribuna em que o sol do Evangelho esplendeu; Tu, que oravas na paz dos mornos olivedos, Dormentes ao luar do teu céu oriental, E cismavas a sós, pelos desertos quedos, Entre as aves do azul e a açucena do val; Tu, que enchias de luz as almas desoladas Dos lázaros, das mães, dos filhinhos sem pai, E passaste cantando, ao longo das estradas, Este doce estribilho: amai, amai, amai! Perdoa-me, ó Rabi, se talvez indiscreta Soe nesta hora a voz do bardo sonhador; Mas, dize-me, não foste o divino Poeta Que nos trouxe do céu a poesia do amor?... Adoro-te, ó divino e pálido Poeta, Que revelaste ao mundo o evangelho do amor! Inspira-me, ó Rabi, banha-me a fronte inquieta Na harmonia imortal desse hino redentor!! (D. Aquino Correia). …................................................................................................................................... Os maiores amigos do Nazareno herdaram-lhe, com o espírito do divino amor, também a humana intimidade com a natureza. Francisco de Assis, Antônio de Pádua, José Anchieta, e tantos outros conversavam com a natureza como se vivessem em terras de “Mil e uma noites”, e, no entanto, viviam à luz meridiana da mais larga realidade. Mas esta realidade era-lhes uma poesia imensa; pois, se Deus é Verdade e Amor, Deus também é Beleza – e que outra coisa é a poesia senão Verdade, Amor e Beleza? *
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A nossa Irene foi, desde pequena, uma cultora da natureza. Não fosse o seu 40
espírito tão profundamente cristão, quem sabe se não acabaria por entre as névoas do panteísmo, adorando o Deus-Universo ou a Deusa-Natureza... O seu “Diário de Amor” está repleto desses suaves colóquios com os seres irracionais. Uma amiga surpreendeu-a, certo dia, a conversar com um besouro. Sentada num banco de bambu, na fazenda paterna, seguia Irene atentamente os trabalhos e canseiras de um garboso coleóptero ocupado em cavar um túnel ao pé dum cajueiro. Irene fez-lhe mil e mil perguntas, estimulando-o a trabalhar com afinco e perseverança, por ser esta a vontade do Criador. Consolou o reluzente cascudo quando este, exausto e como que desanimado, suspendeu a faina ingrata ao topar com uma enorme lage, obstáculo demasiadamente duro para os frágeis instrumentos do miúdo sapador. E não tinha ela razões para se enamorar da natureza? Alma dotada duma grande vibratilidade psíquica, era filha dessas plagas nordestinas que, a despeito do flagelo periódico das secas, respiram um quê de indefinível encanto, uma fascinação mágica, uma poesia irresistível, a que nenhum homem normal consegue subtrair-se inteiramente. É necessário ter cruzado os sertões do Ceará, em tempo de inverno ou de secas; é preciso ter sonhado nas brancas praias de Iracema ou Mucuripe, ter passado uma noite de fantástico luar por entre os ciciantes palmares de Aracati e nos verdes paraísos do Cariri, para sentir toda a sugestão hipnótica que essa nesga de terra brasílica exerce sobre a alma do homem... Não existe, talvez, filho do Brasil tão enamorado da sua terra como o cearense. Afugentado pela seca, regressa pressuroso, mal lhe chegue a notícia das primeiras chuvas. Tanto mais amor tem o homem ao seu torrão natal quanto mais sofre por ele e com ele. Irene, essa autêntica cearense, interrogada um dia qual a maior paixão da sua vida, respondeu logo: “O mar”. Horas e mais horas costumava ela passear pelas praias de Aracati e Iracema; muitas vezes sozinha, porque assim podia conversar mais à vontade com a natureza e o Deus da natureza. Falava com as ondas, com as espumas, com as conchinhas de mariscos, com os peixinhos, com as gaivotas, até com as enormes ossadas de cetáceos que, aqui e acolá, interrompem com a sua fantástica brancura a monotonia do vasto areal. “O mar entusiasmava-a – refere Celita Gurgel, amiga íntima de Irene. - Toda vez que o via abria os braços como se quisesse unir-se à sua beleza imensa, exclamando: lindo! lindo! E procurava relembrar os sonetos que sabia de cor para desabafar a sua grande emoção”. Quando não estava em companhia de Celita, que era com ela um coração e uma alma, preferia Irene passear sozinha. Sentava-se sobre um rochedo do litoral e, com os olhos fitos na ondeante imensidade, cismava, cismava... O homem sem mundo interior tem horror à solidão. Assim que lhe falte o barulho da sociedade, sente-se mal, como que num deserto, no vácuo. Necessita do ruído de fora para povoar a vacuidade do seu ermo interior. A ciência e técnica dos últimos anos vieram em seu auxílio, canalizando para o silêncio das vivendas solitárias, através do rádio, boa parte do ruidoso espalhafato das ruas e 41
dos salões, preservando assim o homem moderno do perigo de estar umas horas por dia consigo mesmo, a sós com sua alma... O homem, porém, que arquitetou dentro do seu Eu um mundo de idéias e ideais, gosta de ficar, de vez em quando, a sós consigo e seus pensamentos; não é misantropo, mas gosta de espairecer longas horas nesse silencioso cosmos do seu interior, mundo que é todo dele, obra sua, noite estrelada de sua alma, preludiando um universo eterno e imortal... Jesus, tão amigo da sociedade, não o era menos da noturna solidão do deserto e das montanhas, como refere o Evangelho. Se a sua vida social era povoada de grandes realidades, maior plenitude ainda revelava a solidão da sua vida íntima. Todos os verdadeiros discípulos do Nazareno são grandes amigos do silêncio, da concentração espiritual, do mundo taciturno das grandes realidades metafísicas. É na solidão que eles encontram as energias para serem apóstolos da sociedade. E que exímia apóstola não era a jovem sonhadora de Aracati!...
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7. CORAÇÃO AFETIVO E ESPÍRITO JOVIAL A alma de Irene era dotada duma intensa afetividade. Na família, porém, não encontrou desabafo para o seu potencial afetivo, e como, por outro lado, não queria entregar a um homem o seu coração, ligou-se pelos vínculos da mais estreita amizade a uma sua companheira, por nome Celita Gurgel. É bem verdade que, dia a dia, desafogava o coração nos colóquios ardentes ao pé do Sacrário e numa indefessa atividade apostólica no meio das crianças pobres – mas quem é lá tão espiritual e etéreo que, sem deixar de amar a deus sobre todas as coisas, não sinta a necessidade duma afeição humana, honestamente humana, humanamente honesta? Amizade sensível, suave, correspondência de carinhos e afetos, que só um ser humano pode dar a outro ser humano? Para uma jovem cheia de natural afetividade é quase impossível a vida espiritual sem essa parte sensível. Não faltaram, naturalmente, puritanos que malsinaram a amizade de Irene e Celita. É possível que, a princípio, se tenha ela excedido em sentimentalismos. Nos últimos anos, porém, se tornou duma pureza cristalina, sempre voltada para os ideais religiosos e sempre mantida nos seus devidos eixos pela mão invisível dessa grande e incompreendida mensageira de Deus – a Dor... O sofrimento comum uniu as almas de Irene e Celita, assim como o ardor duma fornalha une em uma só duas barras de metal fundidas ao fogo. Quem és tu, águia de sublime espiritualidade, que, de vez em quando, não sintas a necessidade de descer das cerúleas alturas do espaço metafísico e repousar uns momentos na eminência de alguma montanha? Se o próprio Cristo, segundo o testemunho do Evangelho, repousava, de quando em quando, nas castas doçuras duma sincera amizade, passando horas suaves no ambiente daquele trio de almas afetivas de Betânia – Lázaro, Marta e Maria – com que direito proibiríamos a uma alma o lenitivo duma correspondência afetiva com outra alma? Não queiramos ser mais cristãos que o próprio Cristo, nem taxemos de pecaminoso tudo o que é natural. A natureza é obra de Deus, e não do demônio. “Ocupai-vos em tudo o que é verdadeiro, digno, justo, santo, amável, atraente, virtuoso ou digno de louvor” - escreve o apóstolo Paulo aos filipenses (4,8), palavras que não foram revogadas até ao presente dia. *
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“Em julho de 1929 – escreve Celita Gurgel, a grande confidente de Irene – foi que Nosso Senhor nos afeiçoou pelo sofrimento”. Amizade simpática, essa, que brota do sofrimento de duas almas. 43
“Uma amiguinha minha – prossegue – tendo de partir para o Rio afim de ser religiosa, lembrou-se de ir à casa de Irene pedir-lhe fosse minha amiguinha e me consolasse com a sua dedicação. Nesse tempo, Irene já não era mais uma moça mundana, mas, sim, uma santinha Filha de Maria”. Certo dia, aparece toda triste e acabrunhada. Perguntada pelo motivo, explica a Celita que uma amiga íntima, à qual escrevera cartas cheias de confiança e confidências, a atraiçoara, afeiçoando-se a outra companheira, mostrando-lhe os escritos de Irene, zombando dela e ridicularizando-a diante da amiga. Irene vai à casa da ex-amiga e reclama as cartas, ao que a outra responde, por entre risadas de cinismo: “As tuas cartas? Colecionei-as num álbum”. E mostra-lhas. Irene, num ímpeto de indignação, se atira à companheira para lhe arrebatar o álbum, mas não o consegue. Desde essa decepção, só confiava Irene em amigas que com ela orassem e sofressem. Só a oração e a dor, diz, são fornalha bastante ardente para fundir em uma duas almas humanas. “A nossa amizade é filha da dor – repetia muitas vezes a Celita – enquanto sofrermos juntas, seremos amigas verdadeiras”. Durante as longas doenças de Irene, Celita não arredava pé da cabeceira de sua ama. Quando todos fugiam da enferma, com medo do contágio da gripe, Celita lá estava firme, como amiga, enfermeira e anjo tutelar. “Desde que a encontrei – escreve – conheci-a doente, quase sempre gripada; uma espirradeira terrível deixava-a exausta; pontadas agudas nos rins faziam-na erguer da cama como se fosse por uma mola; palpitações e cansaço, às vezes falta de ar”. Habituara-se Irene a apelidar Celita de “mãezinha”, porque se desentranhava por ela em desvelos e carinhos ao ponto de cair sem forças e próxima do desmaio. “Irene – diz Celita – sentia grande admiração pelas maravilhas da natureza. Olhava com meiguice a pequenez das florzinhas silvestres. Encantavam-na, sobretudo, as saudades brancas. Passando nós duas uma vez por um jardim gradeado, avistamos um canteiro de lindas saudades brancas. Ela ficou encantada e, como se fosse uma criança, segurou-se aos varões de ferro pedindo-me que a deixasse ficar ali apreciando aquela lindeza – foi a sua expressão. Satisfiz-lhe a vontade, admirando também aquelas saudades tão lindas. De repente, ela vira-se e diz para mim: Mãezinha, quando eu morrer, quero que você plante muitas saudades destas em meu túmulo, você promete? Isto foi justamente no ano da sua morte, meses antes. Senti grande tristeza. Ela, notando que eu ficara triste, abraçou-me dizendo: Perdoa, mãezinha, não quero te ver triste; eu te entristeci; perdoa. Não, não quero morrer primeiro que tu, porque não sei de que serias capaz; deves ir primeiro; sou mais forte e mais conformada. Sempre que tomávamos por assunto a morte, a separação, eu chorava, porque não queria conformar-me com a idéia de ficar sem ela. Irene então, para me afastar daqueles pensamentos tristes, me fazia rir, dizendo: Não chores, 44
mãezinha; eu não morrerei; vou ficar para semente, ou melhor, vou mudar o meu nome para Maria, porque dizem que no fim do mundo fica uma Maria – e pode ser que seja eu que fique, uma vez que você não quer me deixar e não quer que eu morra”. Dest'arte brincava com a morte. Ao ler estes e outros episódios análogos, descritos por Celita Gurgel, tive a visão suave duma outra jovem que também brincava com a morte e falava da partida para o outro mundo como outras moças falam dum pique-nique à ilha de Paquetá ou combinam uma excursão à Tijuca. Era Maria Desidéria, essa alma toda humana e toda cristã, a nossa inesquecível Maria Desidéria, com a qual eu conversava muito nos últimos anos da sua vida dolorosa, no Hospital de Caridade, de Florianópolis. Altamente tuberculosa, aparecia à sala de visitas aquela silhueta esguia e esbelta da nossa saudosa escritora, a sorridente mártir, a graciosa autora de “Montanha acima” e “Irmãzinhas”. Um dia, disse-me, com ares de grande novidade: – Sabe duma coisa, Padre Huberto? – Que é, D. Ida? 1 – Faça favor, não sou “D. Ida”, sou Maria Desidéria... – Pois bem, Maria Desidéria, que há de novo? – Daqui a dois meses vou-me embora. – Embora, para onde? – Para o outro mundo. Já tirei passaporte. Foi o Dr. Gotsmann que me deu essa boa nova. Daí a um ano, passando casualmente por Florianópolis, sub a íngreme ladeira do Hospital de Caridade. E lá me aparece Maria Desidéria, sofredora e sorridente como de costume, e me diz com aquela sua voz firme e suave: – Nosso Senhor não me quer... Há um ano que estou com as malas arrumadas, e Ele não me chama... Uns meses antes da sua morte, Maria Desidéria estendida no seu leito mais que singelo (paupérrima, nunca teve no hospital quarto próprio, vivendo e sofrendo numa alcova de cortinados, da sala comum), escreveu a lápis o epitáfio que desejava para a cruz do seu túmulo. Quem hoje visita o cemitério, no morro atrás do hospital, encontra uma campa cercada dum gradil, e à cabeceira uma cruz de ferro levando nos braços e no tronco estes dizeres: IN CHRISTO SPES MEA – MARIA DESIDÉRIA (Em Cristo minha esperança – M.D.) Povoam-me a memória estas visões de antanho quando leio as palavras com que Celita Gurgel descreve a atitude de Irene em face da morte. Será que se encontraram, nos mistérios do além, essas duas almas, a de Irene e a de Maria Desidéria? Almas tão irmãs no ideal religioso, no sofrimento e na sorridente serenidade de espírito?... 1 Ida Messeder era o seu nome verdadeiro, mas no mundo das letras todos a conhecem pelo pseudônimo de “Maria Desidéria”.
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Quem morreu a morte mística do verdadeiro cristão – porque ainda temer a morte física? Que surpresas pode ter a eternidade para quem vive no mundo sem ser do mundo?... Celita conservou-nos ainda os seguintes traços da fisionomia moral da sua grande amiga: “Irene não se preocupava com a moda, trajava com gosto e decência, mas sem chiquismo. Não queria gastar grandes importâncias com um vestido, um chapéu, etc; preferia gastar com as crianças pobres e com os vestidos dos seus numerosos neo-comungantes de cada ano. De um dos seus últimos vestidos, que a modista fez bem elegante e caro, ela não gostou; vestia-o só porque sua mãe reclamava que seus vestidos já estavam marmotosos e fora da moda; Irene vestia-o por obediência. Ela era muito mal compreendida em casa nos seus sentimentos de piedade e simplicidade. Os pais implicavam porque ela não se pintava, não se fazia elegante, etc. Ao que Irene respondia com admirável mansidão: Nosso Senhor me quer é assim; eu não gosto nada de artificial. E não guardava rancor das ofensas e indiretas que lhe faziam. Parece que não tinha amor próprio. Muitas vezes, para satisfazer os pais, apresentava-se nos salões de danças, quando preferiria ficar em casa, lendo ou palestrando”. “Meses antes de morrer” - refere uma amiga de Irene – ela contou-me, um pouco triste, mas rindo-se, talvez para eu não levar a mal o que ia dizer: Sabes, a mamãe hoje me disse ter vergonha de andar comigo na praça, porque estou muito feia e amarela. Achei isto o cúmulo, e quis ofender sua mãe com algumas indiretas; Irene, porém, abraçou-me e, apertando o meu rosto em suas mãos para me fazer olhála, disse: Tu me achas feia e amarela? E, dando um suspiro, continuou: Mais escarnecido e desprezado foi Nosso Senhor”...1 “Era grande a sua alegria – conta Celita – ao passar dias no sítio São José, no Cambeba. Fazia-se criança para melhor esquecer o mundo e gozar da felicidade que sentia longe do bulício da cidade. Deitava-se na relva a brincar com os cachorrinhos, gritava, ria, cantava modinhas, hinos sacros, fados portugueses, de que gostava imensamente. À noite, depois da ceia, deitava-se em uma rede, no alpendre, e punha-se a cantar hinos a Nossa Senhora, hinos de Comunhão, com tanta expressão que todos nós gostávamos de ouvir. Da última vez que foi preparar as crianças para a primeira Comunhão, em maio de 1936 (pois morreu em julho), cantou inúmeras vezes o Êxtase de Santa 1 Destas e de outras palavras análogas não se deve concluir que os pais tivessem tratado Irene com dureza. É coisa natural e comum que uma pessoa de espiritualidade fora da bitola geral tenha os seus caminhos próprios, não compreendidos pelos outros. Não diz, porventura, o Evangelho que a própria Mãe de Jesus não compreendeu o procedimento de seu divino Filho quando este ficou no templo de Jerusalém? Ela, que era a “sede da sabedoria”, a “rosa mística”, a “rainha de todos os santos”... A compreensão das almas superiores é sempre póstuma...
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Catarina e o cântico No céu com minha Mãe estarei. No sítio temos uma vitrola, a qual Irene gostava de ouvir, e, como eu não me atrevesse a fazê-la tocar, ela, mangando de mim, punha-se a dar corda no veio, dizendo a papai que eu tinha medo de quebrar a corda e levar um carão; mas ela nem tinha esse medo; se quebrasse, mandaria consertar. Gostava muito dos discos do Jararaca e de fados portugueses. Tinha um disco que ela não se cansava da ouvir e acompanhar com mímicas para mim, cantando: São teus olhos de esperança, Feiticeiros, cor do mar, Quem tem amor é criança, Eu sou criança só por te amar. Apreciava os discos clássicos e dançava-os, sozinha, com muita graça e simplicidade, até cansar, caindo nos meus braços. Tinha um espírito alegre e levado ao alto; não queria saber de tristeza, porque dizia: a tristeza é do demônio. Pelo carnaval, Irene não deixava de cantar e dançar ao som do rádio; bastava ouvir tocar para dar logo um ar da sua graça, inventando versos com a mãezinha (isto é, comigo) e procurando fazer-me dançar também. Isto fazia as empregadas e todos os mais rirem-se às gargalhadas e gostarem da presença de Irene”.
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8. AUSTERIDADE E CARIDADE Quem visse Irene em Cambeba, quem a conhecesse apenas através das suas brincadeiras, comédia e bailados, dificilmente adivinharia na alma dessa jovem um elevado potencial espiritualista, um espírito de ascese austera que, já nesse tempo, formava o ponto característico da sua personalidade. Austeridade sem aspereza. Ascese sem pedantismo. Espiritualidade sem intolerância. Já dissemos que Irene gastava o seu ordenado de professora em benefício dos pobres e das crianças; que lecionava de graça para grande número de analfabetos ou semi-analfabetos; que vendia as suas jóias para comprar vestidos e brindes para as crianças indigentes; que sacrificava as horas de descanso, tão necessárias ao seu organismo frágil, para confeccionar roupinhas ou procurar menores abandonados nos arredores de Aracati, Mecejana e Fortaleza. O seu misticismo eucarístico tinha um cunho de dinâmica apostolicidade. A sua aliança com o nome de Jesus Cristo não era uma simples formalidade sentimental; ela, de fato, conquistava almas para seu divino Esposo e esgotavase na ampliação do seu reinado social sobre a terra. E fazia tudo isto rindo, brincando, cantando – e até dançando... A sua imolação diária sobre a ara do sacrifício não era acompanhada das elegias fúnebres do Miserere, mas, sim, das alegres clarinadas do Aleluia ou dos acordes solenes do Te-Deum... “Servi ao Senhor na alegria do vosso coração, porque a um servidor alegre é que Deus tem amor” - estas palavras da Bíblia foram fielmente cumpridas pela risonha sofredora do Ceará. Ouçamos alguns episódios característicos narrados por uma testemunha presencial, Celita Gurgel: “Trouxeram-lhe uma vez uma pequena de 7 anos, mais ou menos, órfã e doente. A cabeça era uma ferida só, a exalar mau cheiro. As próprias empregadas da sua casa, cachimbo ao queixo a soltar fumaças, não queriam por as mãos na cabeça da pequena, com nojo. Irene, penalizada da criança, tratou de terminar as aulas mais cedo, afim de fazer o tratamento da doente antes do almoço, não ligando ficar com o estômago revoltado de ver as feridas pustulentas. Lavou-as com asseptol, depois untou-as com uma pomada. E repetia todos os dias o curativo. Com pouco tempo, a garotinha ficou boa. Na nossa catequese do Cambeba, Irene cortava as unhas e os cabelos das crianças e mandava-as tomar banho, dando-lhes sabão e toalha para se esfregarem. Fazia questão de assistir às crianças pobres. Arranjava-lhes purgante de vermífugo, que mandava vir do Centro de Saúde. Entretinha-se e distraía-as com 48
brinquedos e gestos engraçados, e assim as fazia tomarem o óleo com facilidade. Gostava de entrar nas choupanas dos pobres, para melhor avaliar a pobreza de Jesus e agradecer com mais fervor o conforto que Deus lhe concedia”. * *
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Quem alguma vez leu o livro encantador “Maggy”, e cotejar com ele os heroísmos caritativos de Irene, encontrará uma surpreendente semelhança entre a jovem belga e a simpática brasileira. Ambas professoras, ambas de família abastada, e ambas duma espiritualidade dinâmica cheia de luz, de amor, de envolvente simpatia. É que a caridade é internacional, e a virtude é tão universal como o cristianismo, como a própria humanidade. Onde quer que exista o genuíno espírito de Cristo aí cantam belezas espirituais. Irene, filha de família abastada, professora, hábil dactilógrafa, diretora da “Escola Remington Oficial”, não tinha, certamente, necessidade de se dedicar aos humildes misteres domésticos, tanto mais que renunciara ao pensamento de fundar família. E, no entanto, foi estudar e exercer arte culinária e todos os demais trabalhos caseiros – porque? Em parte para poder melhor servir a seus semelhantes, em parte, e sobretudo, porque, Filha de Maria, queria conhecer de ciência própria os trabalhos domésticos que Maria Santíssima exercera durante longos anos na casinha humilde de Nazaré, no Egito, por toda a parte. Quantas moças de hoje se julgam dispensadas de conhecer praticamente como se tempera uma feijoada ou se remenda um vestido, e outros misteres de dona de casa! Mesmo filhas de famílias pobres e que não estão em condições de pagar empregada... Sabem bater sofrivelmente as teclas dum piano, fazer rendas, croché, bordados, pinturas, conhecem um pouco de literatura francesa – e pronto! Julgam-se habilitadas para enfrentar as lutas da vida... Mas, principalmente no terreno espiritual, que enorme diferença entre o feitio moral dessa sorridente apóstola do Catecismo, dessa heróica enfermeira da miséria anônima – e milhares de jovens que, dia e noite, enchem as avenidas e os salões, para exibir as “últimas conquistas da moda”, para ouvir os galanteios banais dos rapazes ou apreciar o estafado chavão das paixões humanas nas telas dos cinemas!... Umas e outras se dizem católicas, mas, aos olhos de Deus, o catolicismo de umas deve ser tão diverso do das outras como a noite difere do dia ou uma árvore de Natal ornada de ocas frutinhas de celulóide difere duma planta viva carregada de frutos que brotaram do seu interior... *
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“No ano de 1934 – conta Celita – terrível sezão assolou Cambeba. 49
Estávamos passando lá uma temporada, quando soubemos que um preto velho, morador, se achava muito doente da tal sezão com a família. Irene ficou logo muito aflita, porque o pobre velho morria sem confissão. E, rompendo terra quente e sol ardente, à 1 hora da tarde fomos visitar os enfermos. Encontramos todos prostrados, a velha, duas filhas e uma neta. Além da doença, era a fome, a sede, porque nenhum deles podia se levantar para buscar um pouco d'água, e comida não havia mais. O velho, deitado em uma rede suja a rastejar o chão, mal falava. Irene mandou logo que eu voltasse para avisar ao papai e mandar chamar o Vigário de Mecejana para dar ao velhinho a Extrema-Unção; arranjar com a mãe uma rede para o doente, vela e crucifixo; café e comida para o resto do pessoal, que estavam famintos. O Vigário confessou-os, ministrou-lhes os Sacramentos. Três dias depois, o velho morre, e uns dias mais segue-o a velhinha. Irene sentiu muito não ter assistido ao velho quando morria, porque eu me achava doente de sezão também”. * *
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“Todas as crianças da catequese do Cambeba – continua Celita – gostavam muito de Irene. Para todas tinha ela paciência e carinho. Quando as repreendia por se comportarem mal, era com mansidão para não as desgostar. Achava interessante quando num grupo de crianças havia dois, três nomes iguais; conforme o físico da criança, ela punha um apelido, que as fazia rirem-se: Raimunda comprida... Raimunda redonda... Manoel caboré (este tinha uns olhos muito grandes...)1 Manoel bochudo … Mariazinha... Nenhum se zangava com o apelido; todos achavam graça, porque queriam bem a Irene. Irene gostava das crianças e sabia fazer-se pequena com os pequeninos. Tinha um grande espírito de sacrifício. Apesar de doente, mortificava-se, fazia novenas de penitências, alcançando sempre a graça que pedia. Tinha a mania de escrever a palavra sacrifício; bastava ter um lápis à mão, nem precisava de papel, porque escrevia na palma da mão. Rezava muito, tanto de dia como de noite. Fez com Jesus um contrato no sentido de que o sono também fosse aceito como oração. Depois de mudar de roupa, sentava-se na cama ou ajoelhava ao pé dela, cruzadas as mãos sobre o peito e cabeça baixa, fazia fervorosa Comunhão espiritual. Depois beijava o crucifixo e a medalha de Filha de Maria. Jamais se separava do seu crucifixo; dia e noite conservava-o sobre o coração. Segurou-o entre as mãos até expirar, imprimiu-lhe o último beijo... 1 Caboré, ou caburé, é o nome popular da “scops decussata”, coruja do Brasil tropical, munida de orelhas e com os olhos muito abertos e redondos. Vê-se por este apelido o espírito de observação da jovem cearense e amiga da natureza.
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Também não tirava do dedo a sua aliança de noiva de Cristo. Irene usava sempre esse anel, que levava gravado o nome: Jesus Cristo. Algumas pessoas tomavam essa aliança por um noivado mundano. Este símbolo facilitava a Irene o trabalho de afugentar certos pretendentes, alguns deles bem apaixonados. Contra um deles, mais ousado, viu-se obrigada a usar de toda a sua energia, reforçada pela sombrinha, com a qual investiu contra o maluco, como me contou sorrindo. Certo dia, na Escola Remington, que ela dirigia, um rapaz estudante notou aquela aliança no dedo de Irene, mas, não a vendo nunca com noivo, ousou perguntar: D. Irene, o seu noivo mora aqui? Mora, sim – respondeu a jovem. E como é que eu nunca o vi aqui? - tornou o rapaz. Ao que Irene, sorrindo misteriosamente, respondeu: Oh! pois o meu noivo não sai de perto de mim; o senhor não o conhece? Dizendo isto, apresentou-lhe o lindo anel. O estudante tomou-o e leu: Jesus Cristo. E acrescentou: Eu logo vi que só mesmo podia ser Este...
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9. OS RETRATOS DE IRENE Seria trabalho interessante estudar a evolução espiritual de Irene pelos numerosos retratos do seu álbum. Emprestou-me a mãe algumas dessas fotografias, e convido os leitores – ou antes, as leitoras – a estudarmos o itinerário psíquico de Irene à luz da sua fisionomia, das atitudes e da indumentária. O retrato na fl. 21, propriamente, não faz parte da nossa galeria, porque aquela criança de 3 aos é somente o germe da Irene que nos interessa. Naquele tempo vegetava apenas a parte física, mas dormia ainda a alma da jovem cearense, da cristã, da heroína da caridade, da grande amiga de Jesus-Hóstia. Em 1925 vivia Irene ainda, como a maior parte das suas companheiras, nas cidades e nos campos, essas jovens que se dizem católicas, mas cuja vida se move nas planícies rasteiras das banalidades sociais, do flirt, dos bailes, dos cinemas, dos passeios pelas avenidas, nas praias, pensando em romances, namoros, beleza física e outras vacuidades. Contemplemos o retrato de Irene na fl. 22: vestido decotado e sem mangas, e, o que é bem mais sintomático, ela mesma com um semblante inexpressivo, vulgar, de moça sem idéias nem ideais, sem introspeção nem vida superior. O retrato da fl. 33 não permite um estudo mais acurado; não aparecem as feições de Irene. Em pé, na proa duma respeitável embarcação, atravessa o rio Jaguaribe, por ocasião duma enchente; com uma larga fita segurando o cabelo, para poder trabalhar à vontade, empunha o pesado remo, disposta a lutar contra os elementos, assim como, mais tarde, enfrentaria intrépida as invisíveis potências de Satanás. No próximo ano, aos 20 anos de idade (fl. 32), aparece em trajo mais decente, espécie de uniforme, mas ainda sem expressão nem alma no semblante, fisionomia neutra, rosto de moça que ainda não adivinhou, para além do oceano da vida material, a estupenda América das grandezas de Deus. Também, como descobrir esses mundos incógnitos, se ela não tinha a coragem de se afastar das praias seguras e fagueiras das suas comodidades de cada dia?... Para descobrir a América das realidades espirituais é necessário ter alma de Colombo e, a despeito de toda a prudência dos homens sensatamente rotineiros, atirar-se ao infinito, arriscar o “salto mortal” para o incógnito e lançar-se, com divina audácia e temeridade, para além do horizonte das nossas experiências pessoais. A fé supõe sempre um “salto mortal” para essas misteriosas regiões, que aos profanos parecem um vácuo, mas onde os iniciados encontram a plenitude de todas as realidades. A fé é a academia dos espíritos fortes e audazes – a incredulidade é um asilo de inválidos para almas aleijadas... Em 1929 (retrato do frontispício), temos Irene, sentada num rico sofá, com 52
a fisionomia levemente sonhadora de quem já viveu e sofreu boa parte da vida. Veste com simplicidade e apuro, calça sapatinhos de salto alto, gosta da basta cabeleira a invadir-lhe brejeiramente o rosto – mas digam-se as leitoras se nessa fotografia não está Irene com ares mais expressivos e menos vulgares do que na da fl. 22. No grupo da fl. 33, vemos a nossa florzinha do nordeste (a da esquerda, toda de branco) de joelhos, num pique-nique, no meio duma dezena de legítimas filhas da “terra de Iracema”, prazenteiras umas, pensativas outras. A mais filosófica das cismadoras é, sem dúvida, a nossa Irene. Esqueceu-se até do seu saboroso copo de açaí, que algumas das outras ostentam na mão. Em que pensará Irene? nos bandos de crianças pobres que não têm pique-nique? na solidão sacramental de seu “querido Jesus”? na dolorosa incompreensão dos seus? nas belezas do mar?... Que dizer do retrato na fl. 22? não é que reaparece a gentil caçadora de a princípio? Enorme chapelão de palha de carnaúba, trajo de esporte – falta apenas a espingarda. Sentadas e reclinadas numa verde rampa da fazenda do “Cajueiro”, gozam estas jovens a paz imensa da natureza de Deus. Sentem-se felizes, mais perto do céu do que tantas companheiras suas que, no ambiente corruto dos salões e cinemas, arruínam a saúde e intoxicam a alma. Eis aí (fl. 72) um dos campos de batalha de Irene, a sua “Escola Remington Oficial”, em Aracati. Onde está a nossa amiguinha? É a moça que está mais para a direita, entre dois cavalheiros, com a mão sobre o ombro de um dos seus alunos. É a solenidade da abertura da escola. Foi nesse recinto que se passou aquele sugestivo diálogo entre Irene e o estudante sobre o “noivado espiritual”, flagrante que bem vale por uma longa e exaustiva documentação do seu caráter. No retrato da fl. 33, de 1933, aparece-nos Irene depois duma longa enfermidade, de compridas tranças e rosto magro, mas sempre meiga e atraente. O sofrimento acentuou-lhe no semblante aquele ar nostálgico que desde o ano da sua “espiritualização” começou a aureolar-lhe a fisionomia. A fotografia da fl. 62 nos apresenta Irene (a última à direita, sentada) em toda a sua elegância natural. Dizem as pessoas que de longa data a conheceram que este retrato, sem retoque algum, é a mais fiel reprodução das feições, da atitude e de todo o físico da nossa biografada. Entretanto, onde Irene aparece em toda a plenitude da sua sonhadora e espiritual feminilidade é no retrato que estampamos na capa deste livro, fotografia tirada num dos últimos anos da sua existência. Embora não possuísse traços fisionômicos de pureza clássica, era Irene um belo tipo de mulher nordestina: cabelo castanho-claro, tez moreno-clara, olhos cheios de alma, 53
sorriso franco e benévolo, que tinha o magnetismo de curar tantas almas anoitecidas de dores e desilusões... Emolduramos a cabeça de Irene numa paisagem tipicamente cearense (foto de M. Guilherme). O amanhecer, nas praias de Iracema, tem sempre um quê de estranhamente sugestivo. É o horizonte verde do mar que se vai dilatando... São os coqueiros farfalhantes que emergem da treva... São as dunas que definem a sua fantástica alvura por entre as cinzas do crepúsculo matutino... É o farol de Mucuripe que, ao longe, surge altaneiro, para dormir quando tudo está despertando, afim de poder vigiar quando todos dormem... É toda essa evocação de indefinível encantamento e magia que se sente, mas que não se pode vazar em palavras... Silenciosos, como que absortos em adoração, cruzam o branco areal grupos de homens madrugadores, conduzindo as pacientes azémolas afeitas ao duro labor... E no meio desse ambiente, ao mesmo tempo tão real e tão metafísico, a cabeça duma donzela, de cabeleira à moderna e olhar baixo, imerso numa profunda introspeção – a nossa Irene... Quantas horas terá ela passado, a sós consigo e com seu Deus, na querida solidão desta mesma praia, admirando o mar e adorando o Senhor dos mares!... A fotografia da fl. 109 não é a de Irene, muito menos que era seu o retrato na fl. 21. É apenas o invólucro material dessa grande alma, que dele se serviu durante três decênios para pensar e trabalhar, chorar e sorrir, sofrer a amar, exercer o seu grande apostolado e a sua desvelada caridade. Ainda assim, na ausência da alma, parece esse invólucro sorrir suavemente, parecem aquelas feições iluminadas pela lâmpada do Sacrário que tantas vezes espargia sobre elas o discreto rubor do seu silencioso clarão. Não é que Irene parece dormir nesse esquife? E não apelidava Jesus de “sono” a morte?... Incharam-lhe ligeiramente os lábios inertes; no mais, é a Irene de sempre, com a larga fita azul e a inseparável medalha de Filha de Maria, a sua aliança, o seu crucifixo e o seu querido terço enlaçado nos dedos frios. Brancos lírios, flor que ela tanto amava, lhe cingem a cabeça. Vale a pena viver, orar, trabalhar e sofrer alguns decênios como Irene, para ter a felicidade de morrer como ela.
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10. VIRGINDADE MATERNAL Existem numerosas jovens que têm um horror instintivo ao matrimônio. Pode essa repugnância ter base em dois fatores: um de ordem física, outro de caráter psíquico. A aversão natural ao matrimônio resulta, não raro, duma deficiência fisiológica, dum funcionamento irregular ou anormal das glândulas de secreção endócrina, ou antes endo-exócrina. Como é sabido, à luz da medicina moderna, quando não há suficiente atividade dos hormônios F, é deficiente também o senso natural da feminilidade, e, portanto, a propensão à vida sexual. Não menos numerosos que estas deficiências fisiológicas são os casos de anormalidade psíquica, oriunda, muitas vezes, duma falsa educação nos colégios. Educadoras mais piedosas que sensatas inoculam na alma da menina a idéia de ser a vida matrimonial algo de degradante e indigno da natureza humana, e esta idéia se aninha no cérebro da menina e produz os seus efeitos no período da puberdade. Segundo a revelação divina e o ensino da igreja, não é a vida conjugal indigna do homem – a menos que queiramos culpa o próprio Autor da natureza, o qual, antes mesmo da queda original, criou o primeiro casal “varão e mulher”, como diz a sagrada Escritura, e marcou a cada um a missão peculiar inerente à natureza dos sexos. Se a igreja põe a virgindade acima do matrimônio, nem por isso despreza est'último. A dignidade e excelência de um estado não exclui a dignidade e excelência de outro. Será que, pelo fato de apreciar mais o ouro que a prata, eu declaro a prata sem valor? Segundo as letras sagradas é o estado de virgindade, considerado em si mesmo, mais perfeito do que o estado matrimonial – o que, todavia, não quer dizer que a pessoa, por levar vida virginal, seja por isso mesmo mais perfeita que uma pessoa casada. Não se trata de pessoas – trata-se de estados de vida. Ora, é intuitivo que o estado virginal oferece maios abundância de meios de santificação do que a vida em matrimônio, como o apóstolo Paulo expõe tão luminosamente na primeira epístola aos coríntios. Com a expressão “estado de virgindade” não entendemos o simples fato histórico de alguém não ser casado ou não gozar dos prazeres sexuais; mas entendemos a voluntária e espontânea renúncia à vida conjugal “por amor ao reino do céu”, como diz Jesus Cristo. Este motivo é essencial. Não basta renunciar ao casamento por motivos naturais – seja pela repugnância natural baseada em deficiência fisiológica ou educação errada, seja por motivos de comodismo, autonomia, independência, ou até por especulações de ordem econômica e financeira. Podem todas essas pessoas viver em perfeita continência sexual, mas não fazem, por isso mesmo, parte daquela gloriosa 55
falange a que se referem em termos tão sublimes o divino Mestre, o apóstolo Paulo e o Vidente de Patmos no seu Apocalipse. Todas elas – para usar de terminologia técnica – professam virgindade material, mas não virgindade formal. A igreja, quando exalta a virgindade, entende sempre a virgindade em sentido formal, ou seja inspirada em motivos sobrenaturais. Por via de regra, não são as donzelas física ou psiquicamente imperfeitas as que mais se prestam para a virgindade formal. Quanto mais completa e normal for uma moça nas suas funções orgânicas e na sua vida psíquica, quanto mais pronunciado e definido o seu caráter feminino e o seu Eu sexual – tanto mais perfeita e valiosa será também, nas devidas condições, a sua virgindade formal. As santas virgens que mais se salientaram nos trabalhos pela glória de Deus e bem do próximo eram naturezas completas, jovens normais, mulheres duma ardente e, por vezes, apaixonada feminilidade. Uma donzela de acentuada propensão para a fundação dum lar dá, geralmente, mais esperança de prestar grandes coisas no estado de voluntária virgindade, abraçado por amor de Deus, do que outra de instintiva aversão ao estado matrimonial. Aquela é como que uma impetuosa torrente nas montanhas, de elevado potencial energético – ao passo que esta se assemelha a um lago na planície, cujas águas estagnadas não podem ser aproveitadas por falta de nível e potencialidade. A graça supõe a natureza. Uma natureza perfeita e normal é mais favorável para as maravilhas da ordem sobrenatural do que um estado de deficiências naturais. Irene não era indiferente às coisas da natureza. Teve as suas paixões, os seus amores, os seus romances. Pensou muitos anos na fundação de seu larzinho. Chorou ao ver o lindo bungalow de um de seus ex-pretendentes, que fundara o seu paraíso terrestre com uma companheira dela. Se Irene, num dos “testes” acima referidos, se mostra avessa à idéia do casamento, é porque já nesse tempo prevalecera em sua alma outro ideal superior: o da voluntária e forma virgindade por amor ao reino do céu, como ela menciona tantas vezes nos seus colóquios eucarísticos: “Eu sou tua, Jesus, e de mais ninguém”... “Que seria das nossas crianças, meu Jesus, se eu casasse com fulano?”... “Ajuda-me, Jesus, a formar para ti estes pequeninos corações (referindo-se às suas alunas), a abrasar no teu amor as suas almas, filhas místicas da nossa mística união; pois muitas destas crianças foram por mim preparadas para te receber pela primeira vez”... A vida conjugal, é certo, teria sido mais suave e calma para Irene do que essa irrequieta odisséia do seu apostolado nos arredores de Fortaleza e Aracati. A pacífica tranquilidade dum lar bem constituído, a carinhosa solicitude dum esposo teriam, talvez, robustecido o seu organismo, que, mal se refazia de longa enfermidade, era logo submetido à “prova de fogo” no campo dos exaustivos 56
labores apostólicos e caritativos. Irene, apenas convalescente, não tinha contemplações para a fragilidade do seu corpo e os imperativos da sua saúde, quando se tratava do bem-estar físico e espiritual das crianças abandonadas. Morreu vítima do seu apostolado e da sua imensa caridade. No Antigo Testamento podia a mulher, mesmo intensamente espiritual, sentir-se plenamente feliz no matrimônio. Com o advento de Cristo, porém, entrou na alma feminina um novo elemento, elemento imponderável e indefinível, que não deixa sossegar certas almas dotadas duma extraordinária receptividade espiritual – ia quase dizendo, duma sobrehumana clarividência psíquica. Ao lado do “pólo norte” da família apareceu um novo “centro magnético”, que lança certas almas numa irrequieta oscilação, numa estranha insatisfação consigo mesmas, enquanto não se identifiquem com as poderosas correntes que irradiam desse centro invisível. Para a donzela israelita, casar e ser mãe era o supremo ideal, não apenas humano, mas também religioso; porque toda a genuína hebréia ansiava por se ver ligada ao Messias vindouro pelos vínculos do sangue, pelos liames naturais da genealogia. Por isso, era a esterilidade considerada em Israel como um castigo de Deus; o casal sem filhos era excluído da grande torrente vital, que, um dia, lançaria o Messias às praias da história. Depois do advento de Cristo desmaiou esse ideal antigo. E no dia em que o Nazareno disse: “Quem é minha mãe? Aquele que ouve a palavra de Deus e a põe por obra, esse me é mãe, irmão e irmã” - nesse dia despontou para a donzela cristã um novo ideal de maternidade: a fecunda maternidade espiritual. Desde então, renuncia a jovem cristã ao matrimônio pelo mesmo motivo pelo qual as suas companheiras hebréias casavam: por amor ao Messias, ao Emanuel, ao “Deus conosco”. Desde então, milhares de donzelas celebram os seus esponsais com o espírito de Cristo e constroem o seu lar sobre os alicerces da virgindade e com as pedras do sacrifício voluntário. Tornam-se mães de numerosos filhos de Deus, que sem elas não nasceriam para a vida sobrenatural ou não desenvolveriam normalmente essa vida se lhes faltasse a carinhosa solicitude de sua mãe espiritual. Renunciam à pequena família natural – e recebem a grande família espiritual. Não é fácil explicar aos inscientes e não-iniciados o quê, o porquê e o como dessa nova mentalidade e atitude criada pelo espírito do Cristianismo. Há no subconsciente humano certas realidades que a consciência vígil não vale atingir e compreender. Existem almas dotadas de um tão elevado potencial ético, duma quase hiper-estesia espiritual, que ao raciocínio vulgar e à corriqueira prudência humana parecem estultas e absurdas certas atitudes dessas heroínas e mártires da sua intuição superior. É a “estultícia da cruz” de que fala o apóstolo Paulo. Mas, continua ele, “o que há de estulto da parte de Deus é mais sábio que a sabedoria dos homens”. É sempre perigoso ser gênio – quer na ordem inteletual, quer na ordem 57
moral – porque o grosso da humanidade rasteja na planície rotineira da mediocridade e considera como absurdo o ridículo tudo quanto se eleve acima desse nível. Os espíritos superiores pagam sempre com o ostracismo e a solidão o crime de não serem da turba-multa dos medíocres, autômatos e inconscientes, amigos das “portas abertas” e dos “trilhos alinhados”, incapazes de procurar o seu caminho... Quem não sentir em si a coragem e autonomia necessária para suportar a incompreensão dos amigos e o degredo da sociedade, evite ter opinião pessoal, diga sempre “sim” quando os outros dizem “sim”, e “não” quando os outros dizem “não”; dest'arte não entrará em conflito com ninguém, e esse eterno indivíduo será dispensado do trabalho de evoluir em personalidade... Irene nunca foi compreendida na sua vida de renúncia e voluntária imolação. “Sacrifiquei a minha mocidade – diz ela a Jesus – sacrifiquei o meu amor e escolhi o isolamento do coração, por amor de ti”... Afora Jesus, talvez ninguém tenha sabido avaliar a grandeza deste sacrifício. Celita procurava compreendê-lo – mas quando foi que uma alma compreendeu outra alma? Podemos dar aos outros conta dos nossos atos nitidamente conscientes – mas não conseguimos quase nunca justificar perante o mundo certas atitudes oriundas duma intuição mais ou menos incônscia. Sabemos e estamos convencidos de que é honesta e razoável a nossa atitude, mas faltam-nos os elementos para demonstrar racionalmente aos outros a verdade das nossas convicções e o acerto dos nossos atos. E isto nos é fonte de acerbas dores... Só nos resta então prosseguir na solitária jornada através do deserto da incompreensão e consolar-nos com o nosso companheiro de sofrimento; porque vamos de mãos dadas com o homem de Nazaré, que nunca foi cabalmente compreendido por pessoa alguma do mundo...
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11. PORQUE ESCREVIA IRENE O SEU DIÁRIO? Tenho diante de mim, sobre a mesa, uma dezena de livrinhos, todos eles cheios de da letra clara e firma de Irene – a sua coleção do “Diário de Amor”, ou, como ela diz uma vez, o seu “Diário de dissabor”. Porque escrevia Irene esses diários? Para publicar? Nunca! Escrevia por necessidade interior, porque escrever era conversar com Jesus de um modo mais íntimo, mais concreto, mais definido do que o simples colóquio oral. Quem nunca experimentou em si mesmo o salutar desafogo e alívio que nos dá a expressão concreta, em forma de escrita, dos nossos pensamentos mais íntimos e das nossas mágoas mais secretas, não compreenderá o porquê do “Diário de Amor”. Lançar sobre a silenciosa alvura do confidente papiráceo o que nos vai na alma, derramar sobre ele o mar negro das nossas dores mais nossas, dizer ao mutismo do papel tudo que nos angustia e comove, alegra e encanta – representa para a pobre alma o que para uma máquina representa uma válvula de segurança. Deu ocasião ao “Diário” de Irene a leitura de uns lindos artigos de Maria Desidéria – a nossa saudosa Maria Desidéria, que ela nunca viu, mas que parecia irmã gêmea da alma idealista e sofredora da jovem cearense. Na tarde do dia 10 de agosto de 1934 lança Irene às páginas do seu “Diário de Amor” estas palavras de indefinível encanto: “Jesus meu... Cai a tarde silenciosamente... A noite vai estendendo sobre a terra um tênue véu cinzento... O meu coração sente-se sufocado de tristeza, de saudade, de isolamento... debate-se, procurando um ponto de apoio... procura o seu norte... numa ansiedade doida!... Encontra logo – oh! sim! ele se volta para ti, e sossega, repousa, enfim!... Então, não podendo ir te visitar – pois não me sinto bem – procuro o meu querido diário, e converso contigo longamente, silenciosamente... Jesus, este meu diário é uma oração, é uma meditação, é tudo quanto tenho de melhor!... É o meu confidente, o meu melhor amigo, porque é o resumo de tudo quanto faço para ti, de todas as palavrinhas doces que me lembro de te dizer... E, quando eu morrer, em que mãos vão cair os meus caderninhos cheios de tantas coisas íntimas e queridas? Em que mãos profanas irão eles parar?1 Para 1 Se Irene tivesse sabido que, por uma estranha disposição da divina Providência, os seus “queridos caderninhos” iam parar nas mesmas mãos que escreveram “Alma Eucarística”, “Poesia de Jesus”, “Albores Divinos”, e outros livros que ela lia e meditava diariamente e pelos quais agradecia a Nosso Senhor – que diria ela dessa inesperada coincidência? Eu, que apenas uma única vez vi Irene, por ocasião dumas conferências que fiz em Fortaleza, ter eu de historiar-lhe a vida e as virtudes – quanto mistério, quanto enigma!...
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servir de que, Jesus? Talvez de troça, de zombarias, de escândalo?... Ah! Que este povo do mundo é muito maldoso!... Penso eu reuni-los e mandá-los ao meu diretor espiritual, para que os leia e conheça alguma coisa do que nunca lhe disse, e ele, que os queime ou os guarde, conforme lhe aprouver. Será o testemunho de gratidão pela sua caridade e solicitude para comigo”. * *
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Depois de falar no infortúnio de uma amiga e pedir a Jesus por ela, rompe da alma ardente de Irene este suspiro, que em sinceridade e amor se equipara aos arroubos místicos das maiores santas do Cristianismo: “Quero viver, Jesus, para trabalhar por ti. Mas, se hei de viver para me esquecer de ti, para te desprezar e ofender – oh! Leva-me logo, enquanto sou tua, enquanto ainda te amo!”... * *
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No dia 21 de outubro de 1932, depois de uma Comunhão especialmente fervorosa, escreve: “Que felizes foram estes momentos! Conversar contigo, dizer-te os meus projetos, participar-te as minhas alegrias e tristezas – é o que mais me consola e conforta, neste desterro em que vivo e em que ficarei até o dia que me quiseres dar a alegria da mudança... E, para melhor conversar contigo, levo sempre o meu diário na bagagem”. *
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Com o correr dos anos, essas confidências por escrito se haviam tornado para Irene uma doce necessidade, ao ponto de escrever, com data de 26-3-1936: “Meu Jesus, não quero mais por de lado este querido diário: ele é como que a respiração da minha pobre alma; prende-me muito a ti”... *
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Não temas, pois, Irene. Os teus diários não servirão de “troça”, de “zombaria”, nem de “escândalo” a ninguém; e a milhares de conterrâneas e patrícias tuas serão estas confidências eucarísticas um estímulo para também conhecerem melhor, amarem mais intensamente e servirem com mais gosto a Jesus, que é o caminho, a verdade e a vida... 60
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12. PARA O ALTO! Não valeria a pena ler os diários de Irene e historiar-lhe a vida, se essa vida, ao menos nos últimos anos, não fosse uma viagem das trevas à luz, uma evolução em sentido ascensional, uma heróica escalada de cume em cume. Temse a impressão de estar numa oficina de escultor: do bloco amorfo arrancado ao seio das montanhas vai emergindo aos poucos, à força de inúmeras marteladas, a linda estátua de um anjo, dum santo. Depois, o paciente labor de cinzel, do esmeril, do buril – e ei-la em toda a sua perfeição, a formosa efígie! Assim foi o divino Artista plasmando, através dos anos, sob os golpes da adversidade e dos martírios íntimos, a alma de Irene: o bloco informe do indivíduo transforma-se paulatinamente na estupenda maravilha da personalidade. São tantos os indivíduos – e tão poucas as personalidades... Encontrar nos caminhos da nossa vida uma verdadeira personalidade humana é uma sorte, um acontecimento de inaudita felicidade. A experiência amplia os horizontes da vida humana. A meditação eleva o espírito do homem. A dor aprofunda a nossa alma. Sem largueza, altura e profundidade não há personalidade perfeita. Irene aprendeu muito na escola da experiência, cursou a academia da meditação, formou-se na universidade do sofrimento – e aparece como perfeita e autêntica personalidade, coisa tão rara nos dias de hoje, caracterizados pela prepotência brutal do indivíduo. No dia 9 de agosto de 1934, escreve Irene: “Jesus querido. Venho de assistir à saída do enterro da Andrelina. Não fui acompanhá-la ao cemitério, temendo aqui chegar atrasada. Ontem, quando eu acabava de te escrever, ela morria. Tão ligeiro de morre! A morte é motivo para uma profunda meditação... Comunguei hoje por Andrelina e em sua intenção ouvi três Missas. Depois fui mais uma vez à sua casa, àquela casa que ela preparou com tanto gosto e na qual esperava ainda viver tantos anos. Já havia muita gente enchendo a pequena arca. Entrei pelo quarto contíguo e fui até perto do seu caixão. Ajoelhei-me, mais uma vez rezei por ela e fiquei a olhá-la, assim de branco, deitada no esquife tão estreito, coberta de dálias. Pobre Andrelina! Tão alegre, tão cheia de vida! A que está reduzida!... Trabalhou tanto, cansou-se tanto – e, de tudo que possuía, uma só coisa levou... Um pequeno crucifixo de madeira preta, de onde pendia a efígie do teu corpo sagrado, já oxidada pelo tempo... Olhei as suas mãos, aquelas pobres mãos roxas e entrelaçadas, que tanto se cansaram em escrever algarismos no caixa da Pasteur1. Pobre Andrelina! Quanto 1 A extinta fora empregada na Farmácia Pasteur, em Fortaleza, onde também Irene trabalhou algum tempo.
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lá sofreu, em mais de dez anos de trabalhos!... Os seus olhos, tão vivos, tinham um véu cinzento... Os seus lábios não mais sorriam, estavam apertados como que num rictus de dor... Ah Jesus! Um dia eu estarei também assim vestida, e num carro coberto de coroas serei levada para dormir à sombra dos ciprestes... Também eu terei que deixar um dia tudo que me cerca – e quem sabe? Talvez que venha bem próximo esse dia!... Jesus, prepara-me desde já, que eu olhe a morte como uma amiga que me conduzirá a ti, que me levará a gozar do teu belo céu... Agradeço-te, Jesus, o me haveres feito sair da Pasteur algum tempo antes de morrer, para que eu, na calma, possa viver bem unida contigo e preparar-me para o grande encontro. Disseram-me que a Andrelina não queria morrer. Ah Jesus! Ela, embora muito boa e carinhosa, não tinha tempo para se preparar para a morte, que julgava tão longe, e, ao vê-la chegar assim de repente, espantou-se. Quem não teme a morte?... Isto é da nossa natureza. Repugna-nos acabarmo-nos, desfazermo-nos; mas de ti recebemos quantas graças, nesta hora suprema! Tive um pouco de remorsos, porque não a visitei sempre e não lhe falei muitas vezes nesta passagem dolorosa, dizendo-lhe o que aprendi de Maria Desidéria. Mas como podia falar de morrer a uma criatura tão cheia de vida como Andrelina? Parecia um disparate! Chegaram os empregados da Pasteur, os seus patrões, os seus colegas, as suas colegas. Umas, que eu sei, não gostavam dela, olharam-na friamente e saíram para conversar mais adiante. Quantos remorsos não deve ter despertado em alguns a morte de Andrelina! Tanto a fizeram sofrer... tanto a fizeram chorar... …................................................................................................................................... Enfim, partiu o carro mortuário, desapareceu de nossos olhos, e a esta hora repousa Andrelina em sete palmos de chão, que é tudo que o mundo nos pode dar... Agora, Jesus, recomendo-se aquela alma, que tanto sofreu, que tanto lutou, para ser boa, para se conservar pura, tanto suportou... Sei alguma coisa daquela vida de lutas, mas tu, que és Deus, tu, que és Pai e que és onisciente, deves saber muito mais. Perdoa-lhes as fraquezas, ó Jesus, e dá-lhe o repouso na tua glória, já que ela não o teve neste mundo”...
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Entretanto, apesar de ter o espírito todo voltado para as coisas do além, Irene não se esquecia das duras realidades do aquém, quando se tratava de abrir no presente um caminho para o futuro. O misticismo contemplativo de Irene 64
não lhe anquilosava o dinamismo dum apostolado ativo; pelo contrário, era justamente naquele misticismo nostálgico que ela hauria as energias necessárias para potencializar o seu espírito apostólico. Oferece-se a Jesus como “pescadora de almas”, e com tanta graça e simpatia que o “divino Piloto”, como lhe chama, deve ter sorrido benevolamente a essa tagarelice da sua ardente discípula. Escreve no seu diário, com data de 21-10-1932: “Tu só tens tudo. O mundo nada tem... Ouvi hoje, na Missa, estes dois versinhos de um canto de Comunhão, e fiquei meditando neles, meu Jesus. Sim, que pode o mundo me dar? Beleza? Já começa a tirar a que me havia dado. Também não sinto tristeza por isso, visto que olhas somente a beleza da alma, e a minha agora se acha mais formosa do que no tempo em que eu era bonita. Glórias? honras? que é isto? Um pouco de fumaças que, graças a ti, não me tentam... Riqueza? Também não a ambiciono; pois, embora seja muito bom ter todo o conforto e ter com que socorrer os irmãos mais necessitados, também ela não nos garante a felicidade, ao passo que a pobreza abraçada por teu amor nos enche o coração de doçura. Que pode, pois, me dar este mundo? Prazeres? Ah! os prazeres mundanos... Como nos custam caro depois!... E tu, Jesus – oh! dás tudo quanto necessitamos, cuidas de nós com mais ternura que a mais solícita das mães, amas-nos como um Esposo que dá a liberdade e a vida pela esposa. Meu Jesus querido, sinto-me feliz, muito feliz, por te haver dedicado todo o meu amor, confiado o cuidado do meu corpo e da minha alma; rejubilo-me por descansar no porto seguro do teu Coração adorável!” Em seguida, começa a discorrer com original ingenuidade sobre o pensamento: Jesus é o piloto da barquinha, e ela é uma pescadora, que, sob as ordens e diretivas do Mestre, sai à pesca de almas para o reino de Deus. Considera os mundanos como “náufragos a bracejar contra as ondas procelosas do século”, ao passo que ela se sente tão segura e feliz dentro da barquinha de Cristo. E prossegue: “Não quero ser presunçosa, Jesus meu, mas tu vês o meu coração, conheces que não me julgo digna de tal honra; porém, sinto-me protegida de ti. Quisera meu doce Amigo, ver nesta barquinha todos os que amo. Que pena me faz ver fora dela tantos dos meus!... Aqueles que te amam, mas não se entregam totalmente a ti, como eu ora faço, estes, pobrezinhos, são verdadeiros náufragos a bracejar sozinhos, sem o grito sincero e confiante de S. Pedro: Salva-me, Senhor, que me afogo! Jesus, eles não dizem, mas eu digo por eles, eu me lanço a teus pés e te suplico: Jesus, meu Amigo, meu Esposo! não deixes fora desta barquinha aqueles que me são caros... Tem piedade deles... Salva-os, que se 65
afogam, na sua própria presunção, no indiferentismo, no desejo louco de granjear a estima e a felicidade neste mundo... Vamos ambos pescá-los, queres, Jesus? Será uma nova pesca milagrosa... Eu te obedecerei como os apóstolos, e tu me ajudarás. Todos os meus sacrifícios, todos os meus esforços, trabalhos, cansaços e dores, tudo eu te ofereço; são as malhas da rede misteriosa, com a qual contamos pescá-los, não é?... Estou pronta, Jesus, pronta para a pescaria!... E à hora que determinares lançarei as redes ao mar, seja numa radiosa manhã com o sol a brilhar, seja em noite escura, cheia de tempestades e dores”... Vai nestas palavras joviais um quê do brio e do arrojo daquele impávido aventureiro de Cristo que, ao tombar às portas de Damasco, fulminado pela graça divina, pergunta ao invisível soberano: “Que queres, Senhor, que eu faça?” Assim também se mostra a antiga caçadora da fazenda do “Cajueiro” disposta e pronta a lançar a sua jangada mar em fora, afrontar as vagas, desafiar as tormentas, envolver-se nas trevas da noite e lançar a vasta rede do seu doloroso apostolado afim de apanhar grande número de almas para seu divino Amigo e Rei. “Vamos, Jesus? estou pronta para a pescaria!”... Ah! se muitas das nossas piedosas jovens e Filhas de Maria tivessem esta jubilosa iniciativa de Irene!... Bem depressa emudeceriam essas mil e uma escusas e esses pretextos sem conta nem medida que elas inventam para não saírem “à pescaria das almas”... Hoje é muito quente, amanhã é muito frio; ora se acham com dor de cabeça, ora têm de visitar uma amiga, etc., etc. Vem, intrépida pescadora cearense, vem inspirar às tuas companheiras e patrícias de todos os Estados do Brasil um pouco da tua coragem e do teu sorridente otimismo apostólico! Tu, por ti só, equivalias a um batalhão da Ação Católica, porque nada querias para ti, mas tudo para teu Jesus e seus irmãos... Conclui Irene: “Não desanimarei. A barquinha é o teu coração. Tu mesmo és o piloto. Eu sou apenas uma pequena pescadora de almas. Para isto quero trabalhar a vida inteira, meu querido Mestre...”
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13. A ESPOSA DAS DORES Têm-se escrito livros sem conta sobre o sofrimento – livros profundamente filosóficos, livros repletos de cintilante poesia, livros quase tão sublimes como a alvorada da primeira Páscoa em Jerusalém. Mas, quem escreve sobre o problema da dor são, por via de regra, homens de boa saúde, fartamente instalados na vida e rodeados de todo o conforto da civilização. Entretanto, viver cristãmente uma única hora de sofrimento real vale mais que encher dez volumes sobre as belezas e os méritos de uma dor não vivida nem sofrida. “O cristão – disse Pascal – só é cristão no leito das dores”. Por entre as trevas do sofrimento é que se descobre quem é estrela fixa, com luz própria – e quem é apenas planeta, com reflexos emprestados... Em face da dor dividem-se os espíritos, como já dizia o velho Simeão, no templo de Jerusalém: “Este (Jesus) é posto como alvo de contradição, para que se manifestem os pensamentos que muitos ocultam em seus corações – ruína para muitos e ressurreição para muitos, em Israel”... Em face da dor decide-se quem é cristão genuíno e quem é apenas pagão envernizado de cristianismo. Distinguem-se, em face da dor, três categorias de homens: os que se revoltam contra a dor, os que são aniquilados pela dor, e os que se regeneram e santificam pela dor. Revoltar-se contra o sofrimento, é sinal de incompreensão. Cair aniquilado pelo sofrimento, é prova de fraqueza. Espiritualizar-se pelo sofrimento, é a mais poderosa afirmação da personalidade. Revolta-se ou desmaia em face da dor o indivíduo – canta vitória a personalidade humana. Todas as pessoas que saíram do cadinho do martírio regeneradas, santificadas, sagradas, são almas grandes, serenas, tolerantes, felizes; irradiam uma como atmosfera de confiança, de paz, de envolvente simpatia; parecem dotadas de um estranho carisma que atrai, fascina, encanta a todos os que se aproximam desses heróis do sofrimento. Irene, a princípio, fazia parte dos revoltados, e quase dos aniquilados. Mais tarde, porém, após a sua “conversão”, ingressou na academia dos grandes compreendedores do sofrimento, dos sofredores serenos, calmos, resignados, felizes, subindo às alturas pelos degraus das dores e mágoas, considerando o sofrimento como um mensageiro de Deus, vestido de crepe, mas com o sorriso da esperança nos lábios e o fulgor da imortalidade nos olhos... Para Irene foi a vida uma verdadeira via-sacra, como ela mesma afirma (251-35): “A minha vida é uma via crucis”. Percorreu todas as estações do Calvário, 67
desde o pretório de Pilatos até ao topo do Gólgota, até o silencioso jardim de José de Arimatéia, sofrendo, sofrendo, sofrendo... E Irene não estranha essa via crucis; acha muito natural que a esposa acompanhe o divino Esposo, não só até ao Cenáculo, mas até ao Gólgota... Para escrever bem sobre o sofrimento, basta possuir determinado grau de inteligência e cultura – mas para sofrer bem é necessário trazer dentro da alma uma grande reserva de heroísmo e um elevado potencial de espiritualidade. Irene, depois de se identificar com o Mártir do Gólgota, já não se contentava com os sofrimentos que Deus lhe mandava através da fragilidade do seu corpo e das circunstâncias adversas, mas procurava, ela mesma, novas dores, porque dest'arte se sentia mais unida ao “varão das dores” e menos indigna de viver a seu lado. Embora dispensada do jejum e da abstinência eclesiásticos, guardava-os sempre com todo o rigor, inventando ainda novas mortificações durante os meses de maio, junho, novembro e outros, em que tinha as suas intenções peculiares. O que a penalizava não eram os seus sofrimentos físicos, considerados em si mesmos, mas era a circunstância de perder a Missa e a Comunhão, “o que é muito pior – dizia – do que sofrer no corpo, porque assim se me enfraquece a alma”. “Meu Jesus – escreve em outra ocasião – olha, eu não sou tão pobre, tenho alguma coisa para te oferecer: um coração para te amar e um corpo para sofrer – não achas que é grande riqueza?... E prossegue: “As minhas lágrimas são sinal de fraqueza, a exteriorização do sofrimento, mas não significam revolta”. Quem sabe abandonar-se inteiramente à vontade de Deus, mesmo no mais atroz dos martírios, dá provas duma grande perfeição espiritual. No dia 9 de maio de 1932 lançou Irene no seu diário esta magnífica profissão de fé e amor na divina Providência: “Ó Jesus, como é bom tudo esperar e tudo receber de ti! Se me mandas alegrias, felicidades, prazeres, és o Amigo fiel, o Esposo muito amante, que presenteias tua esposa querida. Se me envias tristezas, dores, desgostos, és o Pai justiceiro e bom que castiga as minhas faltas e procura com as minhas lágrimas de arrependimento e resignação fazer uma coroa de pedras preciosas no céu. Ó Jesus, como é bom te pertencer! Como é doce ser protegido por ti! Eu te amo, ó meu Querido! meu Amor, meu doce Amigo, meu Redentor!... Irene sentia uma instintiva repugnância em manifestar aos outros o seu sofrimento - “tenho o pudor do sofrimento”, diz com muito acerto (30-4-32). Tanto mais desafogava com Jesus as suas grandes e pequenas mágoas. E, afinal de contas, é ele o único homem diante do qual podemos, sem acanhamento, chorar e gemer, sermos inteiramente nós mesmos, derramar todas as nossas misérias e fraquezas, sem medo de nos vermos por ele incompreendidos, escarnecidos ou repudiados. 68
Irene sofria indizivelmente com a separação das suas amigas, sobretudo de Celita. Quando esta partiu para Fortaleza e deixou a amiga sozinha em Aracati, passou Irene por um transe de sofrimentos horríveis... “Acostumei-me com a guerra – escreve, recordando Jó no meio das suas dores – ó Jesus, eu sei que sem guerra não alcançarei vitória. Julgo que uma vida sem lutar é uma vida inútil. Que achas, meu Jesus? Quando não me envias lutas, é porque me achas muito fraca para lutar?” Grande amiga e admiradora de Maria Desidéria – a qual nunca viu – lia tudo o que saía da pena privilegiada desta sua irmã espiritual. Com data de 15 de junho de 1932, encontramos no “Diário de Amor” estas sugestivas reflexões: “Ontem li um artigo de Maria Desidéria: Poesia em Prosa, de que muito gostei. Que lindo artigo, meu Jesus! Nela nos convida a autora a sermos santos. Diz que a santidade é a felicidade nas coisas pequeninas. Oh! são precisamente estas, meu Jesus, as que muitas vezes mais me custam... Ela diz que a vida dos santos é escrita em poesia, mas que já foi escrita em prosa por eles mesmos, e numa prosa bem igualzinha à nossa, bem semelhante à dos nossos dias. Mas eles sabem aproveitar as ocasiões que nós, sem cautela, deixamos escapar. Achei original a comparação que fez da vida dos santos com a escrita dos cegos, que é gravada de um lado para ser lida do outro lado do papel. Ó Jesus, ela tem razão, e deste modo vai se santificando. Eu também quer ser fiel nas pequeninas coisas, para o ser também nas grandes. É preciso, Jesus, que eu me santifique antes que te disponhas a me chamar às contas. Às vezes penso que não terei por muito tempo estes belos artigos de Maria Desidéria, e que breve a chamarás par ao lugar que lhe tens preparado, a ela, que há tantos anos vive para cumprir o seu dever, uniforme e monótono, farto de arestas que a magoam, como diz; a ela, que tanto bem proporciona às almas e aos corações, escrevendo estes artigos, que não são mais que uma conversa contigo, mas que não são insulsas e sem graça com as minhas. Mas, Jesus, quem pode adivinhar os teus desígnios? quem sabe se não me chamarás primeiro? Não são um prenúncio de que não passo bem, estas terríveis dores nos rins, que me vão cingindo como dum cinto de ferro de dentes pontiagudos? Jesus, não me lastimo por causa destas dores físicas, por causa da minha doença, oh não! Algumas vezes pensei com tristeza que ela era um empecilho à minha entrada no convento; mas que ia ver eu lá? Guardar para ti o meu amor, o meu coração? Guardá-lo-ei onde quiseres, no mundo como no claustro, à mesa de trabalho como no leito de dor, entre os meus alunos, as minhas pequeninas cruzes, como longe deles, encerrada numa cela... Sou feliz, porque tenho o que te oferecer, as minhas dores. Oh! como elas, dores físicas e dores morais, cólicas renais ou saudades acerbas, me tornam melhor e me preparam para morrer!” Já nesse tempo, pode-se dizer, estava Irene atingido o cume da montanha 69
santa. Quem torna o seu amor independente de espaço e tempo, de celas e paredes claustrais, de cargo e profissão, de saúde e moléstia, de alegrias e dores, independente e sobranceiro a todas as contingências materiais – pode tranquilamente incorporar-se ao pugilo das Marias e Martas, das Madalenas e Salomés, das Susanas e Verônicas e demais discípulas que amavam o Nazareno e o serviam com prazer onde quer que o encontrassem. Neste ano, 1932, contava Irene 26 anos de idade, quadra em que a maior parte das suas companheiras cristãs nem começou ainda a escalada da montanha da perfeição espiritual. Faltavam-lhe quatro anos para terminar a jornada. Neste mesmo ano, ia Maria Desidéria, sua grande e desconhecida irmã, encerra a sua peregrinação terrestre e aguardar, no paraíso, como esperamos, a chegada da sua simpática e ignora admiradora das plagas nordestinas... Encontraram-se estas duas almas, invisivelmente, no topo sanguinolento do Gólgota – e não se encontrariam nas luminosas alturas do Tabor? Esposas das dores de Cristo – e companheiras da sua glória... * *
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Irene teve momentos na sua via crucis em que, como ela diz, lhe dava uma vontade imensa de jogar fora a sua cruz, de revoltar-se e fugir do Calvário das dores para as planícies do gozo. Passou os últimos anos em Fortaleza, afim de estar mais em contato com a vida religiosa, que sempre foi intensa na capital do Ceará; mas, para ficar, humilhou-se e aceitou um emprego vulgar na farmácia Pasteur. Perdeu o emprego e receava ter de voltar para a “terra do exílio” (Aracati). Num desses dias de profunda depressão moral, escreve: “Oh! de quanta paciência, de quanto heroísmo vou precisar para suportar a vida, que se me afigura cruz pesadíssima!... Doente, fraca, faltam-me as forças para procurar um passeio ou uma visita, alguma distração... Longe de mamãe, que sei estar doente, longe da Celitazinha, que é meu arrimo, mas que deveres imperiosos afastaram de mim... Sem uma amiguinha que me venha visitar e alentar – não posso me julgar feliz... E tudo isto nada seria, Jesus, se eu tivesse ao menos ficado satisfeita com a minha confissão de ontem, ou se na Comunhão de hoje, quando vieste ao meu coração, me tivesses dado algum alento, algum consolo... Mas nada... Vieste com uma frieza glacial, e eu, pobre e mísera, doente, retalho humano, que poderia te oferecer senão a minha boa vontade?... Se eu não te amasse, ó Jesus, não teria feito o grande sacrifício de sair ontem para me reconciliar, e hoje para te receber. E nada disto pareces notar... fechas os ouvidos às minhas súplicas... e pareces me abandonar assim como, há dezenove séculos, o teu divino Pai te deixou no jardim das Oliveiras... Mas eu sinto, ó Jesus, que não me abandonaste ainda, e que tudo isto é uma 70
prova pela qual queres que eu passe... Jesus, depois dos sofrimentos e das provações, dá-me um pouco de felicidade e bem-estar, peço-te...” *
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Por este tempo, sofreu a vida espiritual de Irene um hiato ou colapso, que durou pouco. Parecia arrependida da subida às alturas, parecia estar com saudades das “cebolas e carnes do Egito”... Cansada de sofrer, sem arrimo de parte alguma, imersa na lúgubre monotonia das suas aspirações metafísicas, como lhe parecia, foi buscar um sugestivo romance à estante de sua tia e com ele procurou narcotizar a sua pobre alma exausta de sofrimento. É ela mesma que descreve a sua temporária deserção dos caminhos do Gólgota: “Como certas mulheres que tomam ópio ou despejam Rodo no champagne para se esquecer, assim fui eu à estante da tia Anginha procurar um romance, e escolhi o de título sugestivo, para também me esquecer – esquecer de que, Jesus? De que não sou feliz!... Não te ofendas, ó meu Amigo”... Depois deste colapso, depois deste acesso de revolta contra o sofrimento, episódio que faz evocar a atitude de um dos grandes sofredores da Antiga Aliança – torna a esposa das dores a subir ao Calvário, porque o amor ao divino Esposo já lançara raízes demasiado profundas em sua alma; ela não conseguia mais separar-se dele, e preferia ser crucificada com Jesus a folgar sem ele... *
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Trabalhar por Deus é belo – mas quantas vezes não entra nos trabalhos apostólicos o veneno sutil do amor próprio, o gozo da própria excelência, um discreto e pérfido egoísmo espiritual? Sofrer, porém, só se pode por amor. Onde principia o sofrimento aí acaba o egoísmo, expira a vaidade, termina a sensualidade, extingue-se a derradeira centelha do amor próprio. Adeus, vaidade humana!... O sofrimento cristão é a prova de fogo do verdadeiro amor. “O cristão só é integralmente cristão no leito das dores”...
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14. A “MARIPOSA DE DEUS” Os dois últimos volumes do “Diário de Amor”, que vão do dia 1º de janeiro de 1936 até pouco antes da morte de Irene, julho do mesmo ano, revelam tamanha beleza e espiritualidade que mereceriam ser transcritos na íntegra, se o comportassem os limites deste opúsculo. Tem o leitor a impressão de vislumbrar através daquelas páginas tão singelas e íntimas uns como fulgores da claridade do além. Uma suave luz matinal ilumina todos os sofrimentos de Irene... Cessam as queixas... Intensificam-se os anseios da união mística... No frontispício do último volume, que principia com o mês de abril, colou Irene uma linda estampa representando a cabeça de Cristo sofredor, coroado de espinhos, numa atitude de infinita resignação, e debaixo da estampa as singelas palavras “Meu Diário”. Sobre a capa deste volumezinho, cuja segunda metade ficou em branco, colou uma das mais belas estampas que já vi do encontro de Jesus com os discípulos de Emaús, que também sofriam amargamente por amor ao Nazareno. Estas duas imagens simbolizam admiravelmente as disposições da alma de Irene neste último semestre da sua vida: um amor doloroso sustentado por uma fé inabalável. Irene não temia a morte. Sentia, sim, esse horror instintivo que todo o ser humano, sem excetuar o próprio Homem-Deus, sente na perspectiva do desenlace final; mas faltava a esse horror o seu mais doloroso aguilhão, a consciência do pecado. Não que Irene se julgasse isenta de culpa, não; inúmeras vezes se refere às suas fraquezas; mas a sua confiança no sangue redentor de Cristo era maior que a consciência da sua indignidade. Os diários de Irene estão repletos de alusões e meditações sobre a morte. Fala com a morte, chama-a “amiga”, “libertadora”, “mensageira de Deus”. Ainda na véspera do seu trânsito, disse ela a Celita: “Não tenho medo de morrer, porque meu juiz é meu Amigo e Esposo; ele viu tudo o que fiz por ele”... Quem lê atentamente os diários de Irene não pode admitir que a sua mocidade corresse toda inocente. Deve ter havido sombras bem escuras, antes da sua conversão... Mas, a exemplo de Madalena, uma vez discípula de Jesus, ela se esquece das sombras do passado pelos divinos fulgores do presente. É ilimitada a sua confiança na bondade e misericórdia do divino Mestre. Um ano antes do seu passamento disse a Jesus: “Meu doce Jesus. Conversemos um pouquinho enquanto não chega aquele feliz momento em que nos devemos encontrar, em que gozarei das delícias de que gozam os anjos – estar diante de ti... 74
Quero esperar a morte como uma bela amiga que me conduzirá a ti, quero esperá-la com os transportes com que espero a minha hora de adoração. E então eu te verei faze a face, e tu, Jesus, que tens sido tão bom, tão amigo, tão ternamente carinhoso, não me farás medo, antes tomar-me-ás em teus braços, sobre o teu doce coração, e me apresentarás ao Pai. Junto a ti, amparada por ti, revestida dos teus méritos, que poderei temer?! Jesus, eu não tenho medo de ti. Quem será tão estúpido que tenha receio de seu melhor amigo? receio de uma mãe cheia de indulgência? Eu te amo, meu Jesus, e quero morrer de amor por ti. Uma só coisa me entristece, é não poder receber-te todos os dias. Fico doente nos dias em que me levanto mais cedo. Hoje estou me sentindo mal, enfraquecida, desanimada... O corpo está pesado, como que morto; o coração, somente o coração vela, palpita e vive. Vive, porque vives, meu Jesus!” Servindo-se das palavras de São Francisco de Assis, apelida de “irmão jumento” o seu corpo; irmão jumento não obedece à alma, fica doente, fraco, impossibilitado de levar a alma aos pés de Jesus-Hóstia. Em outra ocasião escreve: “Como Santo Antônio, já não amo esta cavalgadura em que minha alma caminha para a pátria. Servir-me-ei dela para chegar a ti, para atravessar este deserto inóspito, que é o mundo, e, uma vez chegada às portas da Jerusalém celeste, de que me servirá ela?” No dia 26-7-1935 se compraz numa longa meditação sobre a morte, dizendo: “Jesus querido. Quero meditar um pouquinho sobre a morte, mas bem pertinho de ti, unida contigo; do contrário, não teria coragem. Morrer! tenho de morrer, Jesus. Quando? como? onde? de que forma? Tu não me dizes nada, apenas sei que vou morrer – e nada mais. Estive por tantas vezes bem pertinho da morte, e voltei novamente à vida – para que? Só tu o sabes. Mas espera, Jesus, eu também o sei: quiseste me fazer assistir à grande festa da adoração perpétua, e vais me dando tempo para reparar tanta maldade passada. Aqui me tens, Jesus, sou como a lâmpada, vou consumindo na adoração a minha mocidade, o meu vigor, a minha vida, enfim – dedico tudo ao teu serviço... Mas um dia chegará em que deverei morrer. O corpo já não terá força para se transportar aos pés do teu altar, e apenas o meu espírito poderá continuar as costumadas visitas. Depois, o meu rosto tornar-se-á mais branco, os meus olhos não enxergarão as coisas da terra, e o meu espírito, desprendendo-se, irá direito para ti. O meu corpo terá flores e água benta, depois descerá a uma vala do cemitério – e ninguém mais se lembrará de mim... Somente, quando alguém notar a minha falta, dirá: morreu! E eu, Jesus, onde estarei então? para onde irei? para o céu? para o inferno? Para o inferno, eu? porque, Jesus? é possível? Não, não creio! Pelos meus merecimentos, não mereço o céu; mas, Jesus, para o inferno, creio que não me mandarás. É verdade que fui muito má, mas hoje, Jesus, amo75
te e tenho caminhado para ti. Não creio que me mandes para o inferno, depois de tantas solicitudes, depois de me haveres tirado do pecado e despertado no coração o teu amor, depois da minha consagração, depois de tanto amor... Meu Jesus, antes morrer agora do que viver mais tempo para perder o céu; antes sofrer todos os martírios do que ser feliz longe de ti!... Que digo? quem poderá ser feliz longe da fonte da felicidade eterna?” * *
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Do meio dessas suaves meditações ecoa de vez em quando um angustioso brado de socorro. Reaparece, subitamente, qual relâmpago, aquela força sinistra que, em anos pretéritos, empolgara o coração de Irene e lhe acendera no sangue aquela luta ingente que fazia de todo o seu ser um fragoroso campo de batalha. Ainda alguns meses antes da sua morte, armou-se na alma da jovem uma dessas horrorosas tempestades provocadas pelo olhar de alguém. Irene deixounos dessa luta os seguintes vestígios nas páginas do seu diário: “Tenho ímpetos de gritar bem alto como os apóstolos, na tempestade do lago de Genesaré: “Senhor, acode-me, que pereço!”... Sim, Jesus, é necessário que acordes e que amaines este temporal bem mais perigoso, que com estranho furor sopra em minha alma e me perturba... Ah, Jesus! quanto sou fraca! a minha fragilidade é imensa... E é por isto que te peço socorro, a ti, meu Deus forte e invencível, a ti, meu Esposo solícito, que jamais me abandonas... Com uma delicadeza extrema, tens evitado certos encontros, que me seriam desastrosos, certas coisas, que me seriam uma derrota... Mas hoje, Jesus, quiseste experimentar as minhas forças? Consentiste num encontro... e aqueles olhos que buscavam os meus... aqueles olhos cheios de uma força estranha... de um desejo mal contido... aqueles olhos que acordam em mim um mundo de coisas adormecidas... fizeram-me mal!... Ó Jesus, mais do que nunca, nestes momentos assim, em que me vejo tão exposta, em que a malícia humana passa bem perto de mim, eu me apego a ti e digo-te: Jesus, sou tua, defende-me, protege-me! Não, Jesus, não quero pertencer às criaturas, o seu convívio deixa-nos sempre no coração uma desolação... um vácuo imenso, que só o teu amor imenso como o oceano poderá encher... Evita, ó Jesus, estes encontros, que se me podem tornar perigosos, estes encontros que nos fazem mal, porque ele certamente há de sofrer, e talvez – quem sabe? peque por minha causa... E como seria doloroso para mim ser ocasião de pecado, embora involuntariamente! concorrer para que te ofendam, quando daria de bom grado a minha vida para que jamais te ofendessem!... Tem piedade de nós, ó Jesus, e, peço-te, toca aquele coração tão bom, tão cheio de afeto, e toma-o para ti.... Esta amizade que ele me dedica, eu t'a ofereço, a ti, que és único digno de ser amado. Agora, faze o resto, Jesus, e, se para isto precisares de mais algum sacrifício meu, aqui me tens. 76
Este primeiro afeto profano, que por algum tempo ocupou o lugar em que floresce hoje o teu amor, eu o sacrifico a ti, meu Senhor e meu Deus, a quem somente quero pertencer...” Costumam os mundanos e as mundanas coonestar a sua covardia moral com palavras como estas: “Fulana, sim, é piedosa, porque é água morna, porque não tem paixões, porque não conhece o mundo, porque nunca sentiu ferver o sangue nas veias”, etc. Ignoram muitas vezes, esses profanos, que os heróis e as heroínas da espiritualidade, antes de atingirem o elevado cume da serenidade interior e da paz da consciência, passaram por um inferno de tentações, de lutas, de dores, de renúncias, de inomináveis sacrifícios à sensualidade, ao orgulho, ao egoísmo; ignoram ou se esquecem de que a linha divisória entre a vida mundana e a vida religiosa desses mártires é um campo de batalha semeado de cadáveres e ruínas – as ossadas de tantos ídolos queridos, e os escombros de tantos castelos encantados, que eles tiveram de demolir para chegar à cidade santa de Deus e à sua perfeição interior... Deveras, “o reino do céu é alvo de violência...” Irene não se santificou brincando. Conhecia o mundo tão bem como as suas companheiras. Sabia quanta coisa linda e sedutora pode o mundo oferecer a uma jovem de família abastada, a uma moça inteligente, prendada e com um paraíso de amor a cantar-lhe no coração... Renunciou a tudo isto, consciente, voluntária, heroicamente. Dias depois, escreve: “Hoje voltei a passear na praia; gosto tanto do mar, e do meu coração elevase um hino de agradecimento e de louvor ao supremo Autor daquela maravilha. Felizmente, que não tive nenhum encontro desagradável; ouviste o meu pedido, obrigada, Jesus. Não me quiseste mandar para o convento, onde eu poderia estar mais bem guardada. Tens, pois, a obrigação de velar por mim. Põe o meu coração dentro de um cofre e não deixes que o roubem”. “Quando me falam na morte, no terrível juízo que a segue, eu digo sempre: Não tenho medo; o Juiz é muito meu amigo, havemos de nos entender muito bem”... Depois duma queda, mais ou menos grave, dirige a Jesus esta ardente súplica: “Vem, Jesus, peço-te, vem ensinar-me a te dar reparação. Vem ver a devastação do meu pobre jardim espiritual, vem! Nele entrou por um momento uma besta fera, que tudo arrasou; mas tu és o divino Jardineiro, vem. Prepara o terreno que foi calcado, escavado, e deita de novo a boa semente, ó meu querido Semeador; traze do teu belo céu umas pequeninas mudas de lírios, rosas e violetas, e cuida do meu pobre jardim devastado; tem piedade de mim!”
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À medida que Irene se vai aproximando do termo final – e ela tem um pressentimento nítido desse termo – tornam-se cada vez mais ardentes, mais místicos, mais profundamente belos os seus pensamentos. Encontram-se nas páginas singelas do seu diário, sobretudo nos últimos volumes, trechos de tão fascinante poesia e sobrenatural fulgor que poderiam figurar com toda a honra nos livros de uma das santas Teresas, de Santa Catarina de Sena, de Elisabeth Leseur, ou de alguma outra dessas almas sublimes no vasto firmamento da Igreja. No dia 3 de junho, justamente um mês antes da sua morte, lançou Irene ao papel estas confidências com o divino Esposo: “Eu sei que o meu coração trabalha aceleradamente, e com ânsia de louco se aproxima do fim, como se desejasse gastar o mais breve possível as últimas forças, e por isto desisto de fazer as visitas, por enquanto, mas não tenho pena de gastar contigo estas últimas energias; até, meu Amigo, as reservo para ti... Sofre, Jesus, sofro física e moralmente... Procuro encobrir o meu sofrimento para não molestar os outros. Além disto, que valem para os sadios, para os que têm alegria de viver, que valem as dores e a morte daquelas que nasceram para vítimas? É a lei da natureza, é o destino, dizem, e eu repito baixinho: É a vontade de Deus – são as carícias do meu Esposo... Meu Jesus, reconheço que ainda tenho muito que sofrer, e sei que mereço muito mais sofrimentos ainda... Ainda hoje, cheguei tão cansada e triste à novena que, ajoelhando-me diante de ti, deixei pender a cabeça nas mãos e depus a teus pés o meu pesado fardo de dores e angústias, receios e misérias... E, como uma pessoa que joga ao chão um feixe de lenha, respirei mais desafogadamente e senti um alívio... E então eu te disse: Que seria de mim, meu Jesus, se não existisses?... se eu não tivesse o teu bom coração compassivo para receber o meu pobre coração sofredor? Aqui venho trazer-te as minhas dores e aflições... estou em tuas mãos... consola-me... E foi então, meu Jesus, que conheci o cumprimento desta tua promessa: Vinde a mim, todos os que estais tristes e sobrecarregados, e eu vos aliviarei! Sim, meu doce Amigo, aliviaste o meu coração como ninguém o poderia fazer”... “Depus a teus pés o meu pesado fardo de dores e angústias, receios e misérias” - é esta a linguagem duma alma que deixou no cadinho do sofrimento todas as humanas escórias e, ouro de lei, cristalizou o seu ser num completo e absoluto abandono às mãos de Deus... E, sempre com a mesma linguagem de extática beleza, prossegue: “Tu és imutável, mas as tuas criaturas variam tanto... Seguro-me a ti, como a hera se apega ao muro, para não cair... Jamais, ó Jesus, me deixes afastar de ti!... segura-me!... 79
Continua, meu Amigo, como uma grande luz a atrair a minha pobre alma! Quero que ela, como a mariposa, jamais se afaste de ti, e cada vez mais se aproxime, até se queimar nas ardentes chamas do teu puro amor...” Já se compararam algumas almas místicas a uma hera a enlaçar a sua humana fragilidade à imortal fortaleza de Deus; mas não me consta que alguma dessas grandes apaixonadas da Divindade tivesse manifestado o desejo de ser uma mariposa a esvoaçar em derredor do foco divino e acabar por se precipitar nesse oceano de luz e inefável beatitude... Esta linda imagem só podia brotar dos lábios duma santa brasileira, duma alma contemplativa que, nas noites tépidas dos trópicos nordestinos, entretecesse de excelsas meditações o jogo noturno dos seresinhos alados em derredor duma lâmpada de casa de fazenda... Ó santa poetisa do Ceará, nós, que só agora chegamos a conhecer o brilho do teu espírito e a formosura de tua alma, nós te enviamos cá de baixo as nossas homenagens póstumas... Desde as margens do Guaíba até as florestas do Amazonas, desde os brancos areais do litoral até as plagas áridas do sertão – nós te invocamos como nossa grande amiga e intercessora perante a “luz do mundo”, em cujas divinas profundezas submergiste, pequenina mariposa de Deus...
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15. RUMO AO ALÉM Na razão direta que se vão extinguindo as energias físicas de Irene, atingem as suas potências espirituais uma crescente expansão e intensidade. Estamos já no ano do seu desenlace final. As almas dotadas duma grande sensibilidade psíquica adivinham ou pressentem, no subconsciente, esse desfecho próximo. “Meu Jesus, hoje não fui boa – e como estou triste!... a minha pobre alma enfraqueceu... Estava enferma, bem o vias... Como as irmãs de Lázaro, eu te disse: Senhor, aquela que amas está doente. Menos paciente e mais indiscreta do que elas, apelei para ti e responsabilizeite pela minha perseverança... Um dia, procurando saber, num livro de sortes, qual seria o dia mais feliz da minha vida, obtive esta resposta: O teu nascimento foi a aurora de um belo dia – e o dia da tua morte será a aurora dum dia sem fim. Confiante espero que assim seja. E é por isto que, quando me falam da morte e no terrível juízo que se lhe segue, digo sempre: Não tenho medo. O juiz é muito meu amigo; havemos de nos entender bem”. Irene, a despeito dos maiores esforços, cai de vez em quando em faltas, que ela, lá na sua estranha clarividência e delicada ética, deplora logo como graves infidelidades ao divino Esposo e pelas quais se impõe a si mesma as mais duras penitências. No dia 9 de fevereiro do mesmo ano faz a Jesus esta confidência: “Meditei hoje sobre o possesso de Gerasa. Curaste-o, meu Jesus, e deste episódio soube o P. Huberto Rohden (“Alma Eucarística”) tirar tão belos conselhos. Ó Jesus, sinto-me feliz ao ver o teu poder sobre o demônio, o nosso mais terrível inimigo, e sinto o coração estalar de dor ao me lembrar que, há poucos dias, dei ouvidos ao tentador, preferi os seus conselhos às tuas exortações. Eu te vi, meu Jesus, tão aflito a avisar-me da aproximação do abismo, e de livre vontade desviei os olhos dos teus, para poder fazer a vontade ao inimigo... Mas, como não te cansas de ser bom, recebeste-me nos braços, como a mais carinhosa das mães faz ao filhinho que acabou de cair... Tornaste-te logo enfermeiro de minha pobre alma doente e a curaste – eu t'o agradeço...” Em outra ocasião lhe sobrevêm quinze dias de horrorosa desolação interior, quinze dias de trevas. Mas nem por isso deixe Irene de parte as suas meditações e os seus colóquios de cada dia, que são, como ela diz, uma “longa e profunda respiração da alma”. “Não quis que minha alma deixasse de respirar longa e profundamente, e por isto tratei, logo cedo, de vir fazer a minha meditação: Tempestade no lago. Ó Jesus, lança os teus olhos sobre o grande mar das misérias deste mundo. Vê 81
quantos estão aqui se afogando nas ondas empoladas de ceticismo, da descrença, nas águas turvas do sensualismo e do vício... Poucos, ó Jesus, bem poucos são os que têm fé e sabem andar sobre estas ondas revoltas. Quero sempre ter os olhos fitos em ti. O teu divino coração é o meu farol, e, guiada por ti, ó meu querido Jesus, chegarei à pátria feliz das minhas saudades”. A doença impede-a de comungar. Mas ela se sacia, passando o dia todo em fervorosa comunhão espiritual. Está convencida de que o ardente amor duma alma pode muito bem suprir as espécies eucarísticas e pô-la em contato com Jesus. “É preciso que eu venha conversar um pouco contigo. Estas nossas palestras acendem no meu coração o fogo do teu amor... E eu ando tão fria... Já faz uma semana que não te recebo. O meu coração está vazio. A minha alma, faminta... Ó Jesus, as chuvas têm sido copiosas, e minha saúde é tão pouca para afrontar o mau tempo... Mas há também outro motivo. E tu, que conheces o mais profundo do meu coração, deves sabê-lo: é o desânimo, a falta de generosidade para contigo, que és tão bom e generoso... Ah, Jesus! é triste, mas é verdade, o meu amor ainda é muito fraco, muito sem calor... Como um vencedor que derrota o inimigo, e também se retira da praça, assim deixaste vazio o meu coração, e eu não terei sossego e não conhecerei felicidade enquanto não voltares, meu doce Amado. Volta! Este exílio é tão duro, tão penoso sem ti... Sei que mereço o teu desprezo. Mas, peço-te, fecha os olhos às minhas misérias, olha somente para a tua misericórdia..” No dia 20 de fevereiro, institui Irene uma meditação tão profunda e íntima sobre a pobreza de Jesus, que se sente tomada de remorso em face do conforto de que goza, e escreve: “E eu, Jesus, que sou tua discípula, que te amo e quero te imitar, tenho um bom quarto, uma cama, um travesseiro onde repousar a cabeça, e outros móveis, conforto demais para quem se considera tua discípula – tua esposa – não sei se não te faço injúria qualificando-me assim...” “Como o botão do girassol se vira para o nascente, assim o meu coração volta-se para o Sacrário, a te procurar, meu querido Sol! Já começo a sentir os raios aquecedores da tua luz, a aclarar a estrada da minha vida. Sobe, meu querido Sol, sobe e deixa que a minha alma mergulhe completamente na tua doce luz!” Uma e muitas vezes volta Irene a este belo pensamento, desejosa de “tomar um banho de luz” nos raios matutinos do divino Astro. Quanto mais ardente se tornam os seus arroubos místicos, tanto mais bela e poética a sua linguagem. A indiferença dos homens para com Jesus lhe é um enigma e uma fonte de acerbas dores, dores que, por vezes, se manifestam em palavras de santa 82
indignação e candente sarcasmo, como no seguinte trecho (23-2-36): “Hoje, durante a elevação, naquele momento solene em que, suspenso entre o céu e a terra, te oferecia ao Pai, em expiação das nossas faltas, muitos homens permaneceram em pé. Porque fizeram isto, Jesus? Desejava saber o que te seria mais agradável, a sua presença tão pouco recolhida, ou a sua completa ausência. Porque não se ajoelharam eles? seria orgulho? seria para mostrar que não te reconhecem como seu Deus e Senhor? seria preguiça? ou ainda vaidade? Talvez que fosse para não desalinhar as calças... Ficam tão deselegantes as calças desalinhadas... Ó Jesus, quanta futilidade e mesquinhez da parte dos homens! quanta bondade e generosidade do teu coração! Por isto, Jesus, fiquei ajoelhada, profundamente mergulhada na adoração da tua divindade ultrajada... Procurei com a minha adoração e o meu amor reparar a falta de respeito dos meus irmãos”. Na medida que vai crescendo na alma de Irene a confiança em Jesus, cresce também a desconfiança nas próprias forças e nos méritos pessoais. “Hoje (27-2-36) meditei sobre a figueira estéril. Serei eu uma árvore estéril, própria para o fogo? Ninguém é bom juiz em causa própria, eu sei, mas, a meu ver, não sou completamente estéril. Procuro produzir frutos, sim, tenho produzido alguns; agora não sei se te agradam os meus frutos; não posso prová-los; é privilégio teu, ó Jesus. Fica indecisa, sem saber se serão doces ou azedos, se não são bichados. Há frutos que por fora são lindos e que no interior causam nojo; só os que vão prová-los é que lhes conhecem o valor. Jesus, meu Jesus, vem cultivar a minha pobre alma; vem regá-la com o teu sangue redentor; deixa cair sobre ela as torrentes das tuas graças – e os frutos serão bons e minha alma não merecerá ser cortada e lançada ao fogo...” Lendo o livro “Sob o olhar de Jesus”, o capítulo que trata da voz de Jesus, Irene discorre consigo mesma: “A tua voz, ó Jesus, é precisa apanhá-la como os rádios apanham as ondas sonoras – assim apanha o nosso coração a tua voz. Nem todos os rádios são bons, nem todos apanham as músicas do estrangeiro – do mesmo modo, nem todos os corações estão aptos para receber esta voz suavíssima que sai do Sacrário. Como sou feliz por ter aprendido a falar contigo, por ter aprendido a receber a tua voz!” No dia 13 de março achava-se no Cambeba, na fazenda “São José”, propriedade dos pais de Celita, onde havia muitas pessoas necessitadas de instrução religiosa. A “pequena pescadora de almas” lá foi lançar as vastas redes do seu apostolado, a ver se conduzia alguns “peixinhos” ao reino de Cristo. Desta vez, é verdade, ela se apresenta como operária no meio dum extenso trigal. E recorda-se das palavras do divino Mestre sobre a vastidão da seara e a escassez dos operários: 83
“Meu Jesus e Bem Amado. Eis-me no Cambeba a trabalhar na tua seara. Bem o disseste, meu Amigo: a messe é grande, mas os operários são poucos. E depois, Jesus, os teus caminhos são tão difíceis... Ah! Quanto custa lutar com tanta gente mal educada, sem conhecimento e sem amor de Deus!... Esforço-me por lançar a boa semente naquelas almas, mas ah! bem como na história do semeador, há poucas almas dispostas a recebê-la. Os pequeninos ainda escutam e aprendem alguma coisa; os grandes – faz dó... Os seus corações são rochedos brutos e duros, onde não há probabilidade de medrar a semente da boa palavra. Há no catecismo moças sem termo, cujo coração é deserto árido, ou terreno inculto, cheio de espinhos. Ó Jesus, como fico triste ao ver se aproximar o dia em que vais entrar naqueles corações tão ruins – tenho pena de ti, Jesus... Mas bem vês os meus esforços; por teu amor, procuro chegar até aqueles corações, verdadeiros campos de urzes, e procuro preparar neles um lugar menos agreste para ti. E saio cansada, a fala sumida, o coração sangrando – e nada consigo... Jesus, tu, que fazes tão grandes milagres, ajuda-me a desbravar aquelas matas de árvores malfazejas! sem o teu auxílio nada alcançarei...Já disse a estas crianças que, como São João Batista saiu pelo mundo a avisar que estavas próximo de aparecer e que era preciso fazer penitência, assim vinha eu avisá-las de que tu, meu Jesus, estavas perto de vir, e que eu vinha preparar o teu caminho até os seus corações, que era preciso deixar os maus hábitos e fazer boas ações e sacrifícios, que seriam flores a enfeitar a casa do coração, onde devias entrar... Jesus, sou a tua precursora!...” Exausta de fadigas, esgotada de labores apostólicos passados no meio de crianças e adultos do Cambeba, regressa a infatigável bandeirante de Cristo para Fortaleza – e sente a reação do sobrehumano esforço. Cai de cama. E do fundo do leito de dores suspira pela união eucarística, centro da sua vida espiritual. 21-3-36 – sábado, 5 horas da tarde: “Jesus, meu Amor! Não posso ir visitar-te, nesta hora saudosa, em que a penumbra envolve o teu Sacrário, e as almas amantes, qual revoada de pombas chegando ao pombal, se aproximam de ti, acercando-se do teu Tabernáculo. Estou gripada, Jesus, tem piedade de mim! Se tu quiseres, ficarei logo curada. Tenho tanto que fazer, preciso trabalhar para os nossos pobres...” Daí a cinco dias, medita sobre a cena do lava-pés, e logo faz aplicação à sua vida: “Jesus, que eu aprenda de ti esta bela lição. Que não veja humilhação num trabalho mais grosseiro; que aprenda a servir com caridade a meus irmãos. Se me deixei enamorar da beleza do filho do carpinteiro, se o meu Amado foi um pobre operário de Nazaré, com que razão pretendo eu ser alguma coisa? Ó Jesus, a soberba só nos traz dissabores, a humildade é que nos dá a verdadeira paz”. Era costume de Irene combinar com Jesus os seus métodos pedagógicos. Queria quanto possível adaptar-se ao modo de ensinar do divino Mestre, fazendo compreender através de parábolas e alegorias as sublimes verdades do 84
reino de Deus. Antes de tudo, porém, se esforçava por ser ela mesma uma imagem viva de Jesus. “Meu Jesus – escreve – a teu exemplo, procuro ser caridosa e indulgente para com os meus pequenos do catecismo. Suporto-lhes as traquinices, costurolhes as roupas, dou-lhes de bebe, forneço-lhes a água que aplaca a sede temporal e também a água viva que jorra para a vida eterna, que é a tua palavra... Jesus, dá unção às minhas palavras para que possam fazer algum bem àquelas pobres criaturas. Olha, Jesus, assim como mandas dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, ensinar os ignorantes, mandas castigar também os que erram. Por isto, não te zangarás, se às vezes repreendo severamente os mal comportados e prendo os que não querem aprender. Muitas vezes a brandura e conselhos carinhosos não adiantam, sabes isto, e é assim que eu uso de todas as armas, mas viso somente a tua maior glória”. * *
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Irene, como boa patriota, era também eleitora, possuía o seu título; correu às urnas três vezes, como indica o título eleitoral, nas seguintes datas: em 3 de maio de 1933, em 14 de abril de 1934 e em 29 de março de 1936, três meses antes da sua morte. (Cf. seu Título Eleitoral). Mas aborrecia profundamente a política e, se não fosse por motivos superiores, não teria dado jamais o seu voto a ninguém. Quando da “Liga Eleitoral Católica”, votou por motivos de consciência, e deixou escritas as seguintes palavras: “Estas eleições me aborrecem! A minha família pede votos para um partido, e como católica devo votar noutro; não quero mentir nem faltar a um nem a outro – e fico num embaraço, aborreço-me... Acho que os católicos não deviam se meter nisto; e porque me põem nesta perplexidade tenho ímpetos de dizer: Deixem-me em paz! Mas por ti, meu Jesus, estou disposta a todos os sacrifícios. *
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De tão identificada com o mundo sobrenatural, acha cada vez mais absurdo e insuportável o mundo da matéria e dos sentidos: “Ando um tanto desgostosa da vida, meu Jesus, achando tão difícil dirigir-me bem neste mundo, tão atravancado de maldades... O mundo é um eterno cinema, a buscar e a prender a nossa atenção. Os seus encantos, embora efêmeros, nos cativam, os seus engodos mais palpáveis aguçam-nos os sentidos... E, no meio desta balbúrdia e algazarra, deste eterno circo, a tua voz, os teus ensinamentos perdem-se como a doce voz do órgão, assemelham-se à débil luz duma estrela em noite de tempestade”... 85
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16. VIVENDO COM CRISTO E SUA IGREJA Irene quase não fala em “movimento litúrgico”, como é de praxe entre as moças piedosas de hoje; mas a sua vida era um reflexo nítido do espírito litúrgico da igreja. Ela vivia o ano eclesiástico, rejubilava com o nascimento de Jesus, vivia com ele na solidão de Nazaré, no exílio do Egito, acompanhava-o passo a passo na sua vida pública, sofria com ele no Getsemane e no Gólgota, entoava aleluias de intensa alegria na manhã da sua ressurreição, despedia-se dele no dia da ascensão, nem se esquecia de lhe entregar lembranças e presentes para os santos do paraíso. Embora não tivesse, como certos santos, as chagas visíveis de Cristo, Irene acompanhava com tanta intensidade a paixão do Salvador que nesse tempo mudava de aspecto e parecia mesmo uma crucificada. No dia 31-3-36 lançou nas páginas do seu diário estas palavras: “Há durante o ano duas expectativas bem diferentes, uma alegre, outra dolorosa, e ambas são ocasionadas por ti, meu Jesus. Haverá por aí quem, na véspera do teu Natal, no decorrer do dia, e mais ainda ao aproximar-se a noite, não tenha no coração um sentimento estranho e feliz, uma doce expectativa? Espera o nosso coração um grande acontecimento; parece que vai ser renovada a face da terra... E à meia-noite, quando os sinos alegremente anunciam ao mundo o teu nascimento, qual o coração, por mais duro que seja, que não exulte de prazer? Quais os olhos que não se marejem de lágrimas? Assim também, meu Jesus, na quinta-feira santa, sentimos que qualquer coisa de importante se vai passar. Ah, Jesus! é a grande ceia, a instituição do Sacramento de amor, é a tua agonia, a tua morte dolorosíssima...” * *
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Diz Santo Inácio de Loiola no livrinho dos Exercícios Espirituais que o homem deve fazer-se indiferente a tudo e esperar com serenidade o que Deus disponha a seu respeito; deve estimar tanto a pobreza como a riqueza, a doença como a saúde, os desprezos como as honras; a única norma para os seus atos deve ser a vontade de Deus, a maior glória do seu Soberano e o bem das almas. Esta ascese, tão antiga como o Cristianismo, condensada no espírito do exfidalgo de Loiola durante a sua longa solidão na gruta de Manresa, orientava em todas as circunstâncias a alma da ardente cearense de Aracati. “Meu Jesus – escreve Irene, numa das poucas horas de lazer que lhe dava o apostolado do Catecismo – quero imitar-te a caridade, e por isto me compadeço daqueles pobres ignorantes e esfarrapados da Mecejana 1. Sei que me canso, mas é pelo 1 A fazenda do Cambeba fica perto da cidade de Mecejana.
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teu amor, e não abandonarei aquela missão que me confiaste. Tendo posto a mão no arado, não olharei para trás; avançarei, confiada em ti, que és o dono do campo. Aquele trabalho dá-me ocasião para praticar muitas virtudes: a caridade, a paciência, a benignidade, a longanimidade, a humilhação, e tantas outras. Ah, Jesus! aquele campo é fértil, bem o sei... Meu Jesus, não me incomodo que me desprezem, que me odeiem por amor de ti. Sinto prazer por saber que o mundo não me gosta, é porque eu te amo, meu Jesus, é porque sou tua, porque me escolheste do mundo. Eu vos escolhi do mundo – disseste aos apóstolos – por isso é que o mundo vos odeia... Quero somente o teu amor, ele me basta, me faz feliz. Já não sinto isolamento. Estou constantemente acompanhada por ti, és o meu companheiro de todos os momentos, tenho o céu dentro de mim”. * *
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Parece que durante a Quaresma, e sobretudo a semana santa deste seu último ano de vida, viveu Irene mais na Palestina do que no Brasil. Adoentada, passa dias inteiros em profunda meditação da paixão de Cristo; escreve, não raro, cinco, seis, sete páginas do seu diário sobre os grandes mistérios que a igreja comemora nesse período. Norteada por seu inseparável manual de meditação, “Alma Eucarística”, desenrola aos seus próprios olhos verdadeiros dramas de colorido e plasticidade sobre os últimos acontecimentos da vida mortal de Cristo. Na cena da flagelação chega a vazar a sua meditação num admirável diálogo entre Maria Santíssima, Marta e Maria, Lázaro e Madalena; est'última é chamada até pelas suas companheiras menos letradas para traduzir o latim de Pilatos... Depois, Irene se abisma a tal ponto nesse oceano de dores e opróbrios que passa estes dias completamente absorta e alheia às realidades da vida. Tinha esse dom raríssimo de revestir as verdades religiosas, aparentemente tão longínquas e vagas, da mais palpável e concreta realidade, de maneira que atuavam sobre o espírito com maior veemência do que sobre os sentidos dos profanos atuam as grosseiras realidades materiais. “Já transpôs o sol os píncaros dos montes da Palestina; já se extinguiu a doce claridade dos seus últimos raios pelas quebradas das montanhas, cedendo lugar ao suave clarão da lua cheia, que, como uma soberana, toma conta do cenário – quando te levantas da mesa, meu doce Redentor, e, de pé, rodeado pelos teus queridos, fazes a tua oração pontifical... Com os braços erguidos, os olhos ao céu, falas ao Pai que te enviou: Pai, é chegada a hora!... Meu Jesus, rezaste por mim, ah! eu sei, passaram diante de teus olhos anos e mais anos, séculos, e viste lá no vigésimo século uma criatura cumulada de benefícios, e, apesar de tudo, ingrata... E deste coração peco e enregelado fizeste a tua morada, ateaste o fogo sagrado neste coração mesquinho – e ele se abrasou por ti... 88
Por esta vil criatura ofereceste ao Pai o teu corpo para ser morto, o teu sangue para ser derramado, a tua alma para ser coberta de confusão, a tua divindade para ser vilipendiada!... Era preciso salvar esta alma – e não mediste sacrifícios”... Em vez de fatigar a alma com áridas teorias e esquemas sobre a Missa, Irene faz como os israelitas no deserto da Arábia, que toda a manhã saíam a apanhar solícitos o delicioso maná que chovia das ignotas alturas do céu. Irene imita-lhes o exemplo, apanhando, faminta, o “pão vivo que desceu do céu”. “Jesus amado – escreve no dia 4 de abril – hoje te recebi no meu coração e assisti a cinco Missas. Gosto quando vejo muitos sacerdotes celebrando. Parece então ver cair sobre a terra uma chuva de graças. Cada hóstia que se eleva, cada cálice que se levanta, é como uma fonte de bençãos a se derramar por nós. Então, para que não se perca tão precioso tesouro, corro a apanhar estas graças, como o sedento apanha a água da chuva1. Recebo as graças no cálice da minha alma e reparto-as pelas almas do purgatório, pelos pobres pecadores, pela minha família, pelos meus amigos, pela humanidade, enfim...” Na véspera da última quinta-feira santa da sua vida, abrasou-se o coração de Irene de tão intenso amor que perdeu o gosto pelas coisas da vida e passou o dia todo enlevada na doce amargura do inefável mistério do amor dolente do Redentor: “Jesus, rei e centro da minha vida! Deixa que te chame assim, pois que a minha vida emana de ti; és como o eixo ao redor do qual giram todos os meus pensamentos e afetos, todos os meus desejos e aspirações... A tua vida, meu Jesus, é o poema de amor que embalou a minha infância, é o cântico sublime que vive dentro de mim, é o hino de vitória cuja última nota soará na minha derradeira hora... Começa a tua vida com os doces e alegres hinos de Natal, e vão se passando em cânticos suaves e melancólicos os tempos do exílio, e vem a vida pública, onde o hino se torna mais forte e vibrante; vem a tua dolorosa paixão e torna o hino semelhante a soluços recalcados, ou em lamentações queixosas – mas logo vem a nota forte e alvissareira da tua gloriosa ressurreição... Por enquanto ainda tudo é triste e sombrio. Estamos na quarta-feira de trevas, a última tarde em que voltaste para Betânia. Esperavam-te os amigos, sentados no marco da estrada, e o coração da Virgem, ao te avistar, notou a tristeza em tua fisionomia; os apóstolos vinham calados, pareciam desiludidos, desapontados... E, interrogados pelas mulheres piedosas hospedadas em casa de Marta, 1 Convém não esquecer o que significam palavras destas nos lábios duma filha da “terra das secas”, onde, não raro, em um só ano morrem de fome e sede milhares de pessoas. Uma chuva, depois de um ano de seca abrasadora, é um inestimável presente do céu. Talvez nenhum outro brasileiro compreenda tão bem como o cearense o alcance de certas expressões bíblicas, sobretudo dos Salmos, quando comparam a graça de Deus como uma chuva benéfica, e o homem virtuoso a uma árvore plantada à beira da torrente...
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explicaram os apóstolos: Enterramos hoje a esperança do reino messiânico... Jesus disse ao povo que o seu reino não era deste mundo... Ficou só... Abandonaram-no todos... Ficamos nós somente fiéis...” Onde foi que Irene descobriu este pensamento original? Os apóstolos “enterraram as esperanças do reino messiânico” porque o Rabi de Nazaré declarara a todo o povo que “o seu reino não era deste mundo” - e os discípulos sonhavam, dia a dia, com o restabelecimento do reino de Israel, que era bem deste mundo?... A ardente discípula de Cristo no Ceará alegrou-se grandemente com estas palavras do divino Mestre, porque o reino com que ela sonhava havia longos anos também não era deste mundo. “Amo-te – exclama ela, numa arrojada proclamação da realeza do varão das dores – amo-te e te proclamo meu Rei e meu Deus, embora te veja chicoteado em praça pública, embora te veja coroado de espinhos e servindo de ridículo à plebe... Quanto mais desprezado e maltratado te vejo, mais se acende em meu peito a chama do teu amor. É por meu amor que sofres. Quem te pôs neste triste estado? Foram os algozes? Foram as chicotadas? Foram os príncipes dos sacerdotes? Foi Judas com a sua traição? Não, meu divino Rei, não foi nada disto, não foi ninguém, foi unicamente o amor, o teu grande, o teu imenso amor por mim!”... Representando-se ao vivo a ingratidão dos homens em face do inefável mistério da Eucaristia, Irene rompe nestas palavras de sublime audácia: “Ó Jesus! Isto é horrível! É doloroso! Deste-nos a Eucaristia, e acima de tão sublime mistério só há um – o da nossa ingratidão”... Em seguida, tece a apoteose da eterna realeza de Cristo, terminando com estas frases inspiradas: “Passam os anos, escoam-se os séculos, desaparecem os reinos da terra, dos palácios não ficará pedra sobre pedra – e o teu reino ainda estará no princípio!... Que resta de Herodes, dos Faraós, de D. João VI? Uma apagada lembrança nas páginas da história antiga – e tu, meu querido Rei dos séculos vindouros, vives ainda hoje em milhares de tronos, que são os nossos corações, e da tua vida vivemos nós todos que te amamos, que fomos conquistados com o teu sangue. Da tua vida vivem os eleitos na bem-aventurança, felizes habitantes do teu reino; da tua vida vivem as pobres almas do purgatório, cujo único anseio é unirem-se a ti. Só no inferno, Jesus querido, não se vive de ti, porque lá é o reino das trevas, é o reino de Satanás, lá se vive do ódio, não se pode viver de ti. Meu Jesus, livra-nos a todos do inferno!”
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17. NOSTALGIA DO INFINITO A partir da sexta-feira santa de 1936, um mês e pouco antes do seu desenlace, sentia-se Irene tão exausta de forças que a sua vida não passava de um sopro. Ao mesmo tempo, adquiriam as suas energias espirituais um potencial estranho. E, desde a hora em que a igreja celebra a morte do Redentor, Irene não pensava mais senão em voar ao encontro do divino Esposo às regiões da luz eterna. Uma saudade imensa empolgou-lhe o coração. Apoderou-se dela a nostalgia do infinito. É com um quê de íntima satisfação que ela verifica a progressiva decadência do seu corpo; só pede a Jesus “um pouco de saúde aparente” afim de poder melhor pensar nele e amá-lo com perfeita lucidez de consciência. “Enquanto o meu pobre corpo enfraquecido e enfermo – escreve no mesmo dia – não me deixa estar de joelhos em oração, o meu espírito, mais forte, te acompanhou do Cenáculo ao Getsemane, e lá esteve te consolando na hora santa até a meia noite. Dormi depois que fiz a hora santa, mas nem por isto deixou o meu espírito de te acompanhar à casa de Anás, Caifás, ao pretório de Pilatos, ao palácio de Herodes. E quando, por volta das 9 horas do dia de hoje, o romano pusilânime lavrava a iníqua sentença da tua morte, estava também lá o meu espírito, meu doce Amado. Chorei, sim, chorei diversas vezes ao contemplar o teu sofrimento, ao ver a crueldade com que te tratavam aqueles bárbaros”. No sábado de aleluia escreve quatro páginas sobre a expectativa da ressurreição, sobre a visita da alma de Cristo ao limbo, sobre a soledade de Maria Santíssima; mas no domingo de Páscoa, dia 12 de abril, não consegue tomar nota de um só pensamento, de tão fraca que se sente. Na segunda-feira da Páscoa procura ressarcir o tempo perdido e escreve: “Meu Jesus ressuscitado, não me foi possível escrever ontem neste diário, mas o meu coração passou o dia em união contigo, gozando também da alegria da Páscoa”. Segue-se uma linda e intuitiva descrição das circunstâncias da ressurreição. Irene tem uma imaginação vivaz e, como está perfeitamente familiarizada com os livros sacros, a topografia da Palestina e a história de Israel, sabe pintar aos seus próprios olhos sugestivos painéis, verdadeiros cosmoramas dos grandes acontecimentos desses dias. Na semana da Páscoa, apesar de doente, sente-se numa disposição de íntima alegria e leveza de espírito e deseja ler alguma coisa bonita e poética sobre seu divino Esposo redivivo; pede e lê o livro “Poesia de Jesus”, e, poetisa como era, vive uns dias cheios de luz com o doce Poeta de Nazaré, “que nos trouxe do céu a poesia do amor”.
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No dia 18 de abril sente-se bastante forte para reencetar os seus trabalhos apostólicos. No Cambeba, onde os pais de sua amiga Celita Gurgel têm uma fazenda, vivem tantas almas que não fizeram ainda a sua confissão e Comunhão de Páscoa!... Irene não compreende como possa alguém celebrar a Páscoa sem se unir a Jesus ressuscitado pelo sacramento da Eucaristia. E lá vai ela, rumo ao Cambeba, falar aos homens profanos sobre os inefáveis acontecimentos da vida de Jesus. Esposa de Cristo, não pode deixar de ser apóstola. Pescadora do divino Piloto, anseia por lançar as redes e apanhar muitas almas para o reino de Deus. No dia 21 escreve: “Jesus, meu Amado. O cenário em que hoje te escrevo é bem diferente dos outros. Não me vejo rodeada de paredes, de quadros, de mesinhas e demais coisas da escola. Rodeiam-me as árvores criadas por ti. Sentada sob um frondoso sapotizeiro, escrevo com o caderno no colo, e sinto-me bem em contato com a natureza. Os meus olhos descansam, de vez em quando, sobre os diferentes tons de verde, da vegetação em redor. O cheiro forte das flores e folhas embalsama todo o ar. A brisa fresca, ciciando por entre a folhagem e balançando os pendões dos verdes canaviais, parece-nos contar segredos teus. Escondidos nas velhas mangueiras e nas laranjeiras próximas, onde têm os ninhos, cantam milhares de passarinhos de várias qualidades. Ouve-se também o alegre cacarejar das aves domésticas. E, por toda a parte, lindas flores a nos alegrar a vista, saborosas frutas pendentes dos ramos. Meu Jesus! Como é bela a natureza criada por ti, para recreio dos teus filhos! Ah! E eles não sabem agradecer ao Pai celeste, que ornou o mundo com tão preciosas galas... Em vez de o terem presente – um vasto deserto... Desde domingo estou aqui no Cambeba. Vim preparar os corações daquelas crianças que devem-te receber, daqui a poucos dias. Ontem dei aula de catecismo debaixo destes sapotizeiros, tão acolhedores. A capela está muito quente com este prolongado verão, que nos mandaste. Felizmente, as crianças se portaram bem. Meu Jesus, o tempo é tão pouco, ajuda-nos! Dá unção às minhas palavras, para que produzam algum bem. Desejava tanto fazer-te amado por aquelas crianças... Não disseste que vinhas trazer fogo à terra, e só desejavas que abrasasse? Pois, Jesus, eu procuro acender este misterioso foguinho naqueles corações, a ti compete atear a chama. No meu coração existe este fogo sagrado, que como uma vestal procuro conservar. Para isto leio a história da tua vida, medito nas tuas parábolas, e com amor desenrolo diante dos olhos dos meus pequenos a luminosa tela da tua vida, que é um primor; canto, para os seus ouvidos, a eterna e suave sinfonia da tua caridade, do teu amor... Ontem li as parábolas sobre a oração e a misericórdia de Deus; hoje li as que tratam da caridade com o próximo, que foram: o rico avarento e o pobre Lázaro, o bom samaritano e os dois devedores1. 1 Cf. P. Huberto Rohden – POESIA DE JESUS, I, II e III partes.
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Jesus, és o meu Mestre, e, como outrora preparaste os apóstolos, prepara-me agora para que eu possa também trabalhar com proveito pela tua maior glória”. No dia 27 de abril, Irene conduz à Mesa Eucarística 37 crianças por ela preparadas, com imensas fadigas e sofrimentos; pois sentia-se ainda fraca, convalescente. Mas a intrépida catequista esquece-se de si mesma quando se trata de servir a Jesus. Às cinco horas da tarde, terminada a intensa campanha, escreve: “Meu Jesus, ofereci-te hoje um presente, ofereci-te uma coroa viva de 37 corações, que, quais outras tantas pedras preciosas, procurei lapidar com todo o zelo, para ti (cf. fotografias da fl. 73). O trabalho foi ingrato – oh se foi! - tu bem o conheces... Não me faltaram espinhos, espinhos de ingratidão, espinhos de incompreensão... Não é possível contentar a todos, e a gente sai desta batalha contra o egoísmo e a soberba, com o coração a sangrar... Quantas vezes tens sofrido o que eu sofri hoje, e não encontras quem te console, como tu me consolas... Consolemo-nos mutuamente, meu Jesus”. No dia seguinte, para descansar, lança mão de um livro mais filosófico que religioso: “Maravilhas do Universo”, e, sentada à sombra amena do extenso pomar, aprofundando o espírito na investigação do invisível autor dos visíveis prodígios de ordem e harmonia da natureza, transcreve no seu diário os seguintes versos do livro: “Faz Deus do sol, dos astros catecismos, Penetra até ao fundo dos abismos, E as alturas relatam-lhe a grandeza. Deus! é o eco que em tudo soa, Deus! é o hino que o universo entoa, Deus! diz ajoelhada a natureza”... E comenta: “Meu Jesus. Achei hoje estes versos tão significativos, que os transcrevi para o meu diário. Na verdade, estando em contato com a natureza como estou agora, compreendemos que ela é um grande catecismo, aberto aos nossos olhos pelo próprio Deus, para que nele aprendamos a sua grandeza, o seu infinito saber, a sua soberana onipotência, a sua brilhante inteligência, a sua excelsa caridade, o seu imenso amor. Hoje, por exemplo, tivemos uma manhã belíssima. A chuva veio lavar as folhas, alentar os ramos murchos pela soalheira inclemente, e, quando o sol risonho e como que a medo começou a brilhar sobre a terra, houve uma estranha reverberação de luz, cada gotinha de chuva se transformou num brilhante de primeira grandeza, e as folhas molhadas espelhavam o sol. Apenas cessou o aguaceiro, as avezinhas cortaram o espaço, entoando os seus mais 93
belos trinados, e as borboletas vieram bailar em torno às alegrias1 do jardim. A natureza está constantemente a falar sobre a grandeza de Deus, do Eterno Pai, que nos criou e nos dá tão belas maravilhas para suavizar o nosso exílio”. No Cambeba, Irene não pode comungar todos os dias, não pode fazer as suas visitas a Jesus Sacramentado, e começa por isso a sentir-se como que num deserto. Se o seu espírito fosse apenas poeticamente natural, ter-se-ia embriagado nas inesgotáveis maravilhas da exuberante natureza dos trópicos; mas a alma de Irene era naturalmente cristã, naturalmente eucarística, e por isso o seu vigoroso heliotropismo não encontrou satisfação enquanto não atingisse um raio solar mais direto, mais próximo, mais ardente e sensível. No dia 2 de maio se tornam tão veementes as saudades que Irene tem da “luz do mundo”, tão veementes que suspira cheia de impaciência: “Jesus bondoso! Como os israelitas em pleno deserto da península arábica, sinto-me exausta deste jornadear através do deserto árido desta vida... Já lá vão bem longe os dias do cativeiro, em que, nas terras do Egito, me sentava junto às panelas de carne e cebolas; não lamento este tempo perdido. Sintome feliz por ter empreendido a viagem para a pátria, embora em pleno deserto da abnegação, da renúncia, do desapego. Mas há dias em que, como hoje, me sinto desalentada, enfraquecida, suspirando pela morte compassiva, que em suas asas me levará à pátria das minhas saudades... Sei o que me falta, ó Jesus! É o maná, sem o qual teriam morrido de fome os israelitas. Falta-me o doce alimento da alma, falta-me o querido companheiro de jornada, que ampara a minha fraqueza; falta-me o meu Jesus, que é a minha vida, o meu vigor... Como poderei passar ainda tantos dias sem te receber?” Vê-se em face desta alternativa: ou satisfazer as suas saudades eucarísticas e regressar para a capital – ou tolerar por mais dias ainda este tormento sagrado, ficando em Cambeba. E ela optou pela segunda disjuntiva – por que? Porque assim o pediam os interesses espirituais dos neo-comungantes e de outras almas, que ela não queria abandonar sem as confirmar no caminho encetado. Irene tinha em Cambeba, além do numeroso grupo de crianças, uma pequena escola para formação de “apóstolas”, isto é, catequistas auxiliares. Na ausência da mestra competia a essas meninas e mocinhas reunir as crianças e dar aulas de catecismo. Essas “apóstolas” não eram santas nem perfeitas; tinham as suas fraquezas, rivalidades, intrigas, o seu egoísmo, o seu amor-próprio, que por vezes ameaçavam deitar a perder a obra. Irene pede conselho e orientação ao divino Amigo, escrevendo: “Acho que devo ficar ainda um pouco, para ver se consigo alguma coisa daquelas catequistas, para reunir novo grupo, e pregar contra o interesse, a ambição e a mentira, que vieram antepor-se ao nosso caminho, matando o fruto da nossa boa vontade, frustrando os nossos bons esforços”. 1 “Alegria” é uma flor, que pende em lindos cachos vermelhos.
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Quem lê atentamente estas palavras julga ter diante de si um trecho da Epístola de São Paulo aos Gálatas... Uma jovem cearense, de saúde tão precária como a do grande Tarsense, está resolvida a iniciar uma formidável ofensiva contra Satanás, organizar uma campanha apostólica, pregar contra o interesse, a ambição e a mentira de algumas das suas discípulas ainda em princípios de espiritualidade. E prossegue, em tom dolente, mas corajoso: “Meu Jesus, quiseste dar-nos a provar algumas gotas do fel com que os mundanos te matam a sede de amor... Jesus, dá-me novas forças para que eu não enfraqueça tanto diante desta primeira derrota; não foi com fins humanos que comecei a plantar o teu amor naquele terreno ingrato; se os meus esforços nada aproveitaram, o teu bondoso olhar viu a minha boa vontade, e se, para medrar a semente, é necessário que eu sofra – aqui me tens, sou toda tua!...” * *
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Nesse período, sofreu Irene mais, muito mais, do que estas páginas deixam adivinhar. Voltou de Cambeba com a sua jovial alegria de sempre. Soube esconder as suas dores, purificando cada vez mais os sentimentos humanos desordenados. Se ela se queixa ainda de alguma frieza espiritual, é muito mais por deficiência de energias físicas do que por falta de generosidade. Sofria de corpo, porém muito mais de espírito. Deste modo se processou gradativamente a sua santificação e um desprendimento cada vez maior das criaturas. Nos anos anteriores, fala muitas vezes em “incompreensão”. Nos últimos meses, é certo, não houve quem compreendesse o estado de sua alma. E, no entanto, ela já não se queixa, na certeza de ser compreendida por seu divino Amigo... Já estamos perto da sua morte. As considerações do “diário” sobrenaturalizam-se cada vez mais, chegando por vezes a uma verdadeira sublimidade. Quase não se encontram alusões a pessoa conhecidas e amigas, como outrora. Irene vive só em Deus. Morreu para ela o mundo antes que ela morresse para o mundo... Depois dos apontamentos do dia 2 de maio, passou sete dias sem lançar uma palavra no seu diário. Foi a violenta reação do seu frágil organismo contra o excessivo esforço físico e moral empregado na preparação dos neocomungantes em Cambeba. No dia 8 de maio, seu aniversário natalício, volta a lançar ao papel algumas das suas confidências com Jesus: “Faz hoje 30 anos – quase não creio – que vim a este mundo, que ando a peregrinar neste vale de lágrimas... E, durante este longo tempo, quantos benefícios teus tenho recebido! Vivo a nadar num mar de graças e favores teus!... Em troca, que te dei, meu divino Esposo? 95
São tão poucos os meus frutos, e, ainda assim, quantos deles não serão estragados pela impaciência, pelo desânimo!... Ó meu querido Jesus, aceita os meus trabalhos e dores destes anos, recebeos em união com os teus sofrimentos. Amanhã quero entreter-me contigo, por meio deste diário; hoje já não enxergo mais”. Frustraram-se os cálculos de Irene. A fraqueza torna-se cada vez maior, e os trabalhos acumulam-se. Passam-se nada menos de 10 dias sem que ela registre uma palavra neste diário. De Cambeba vem-lhe uma notícia que a enche de intenso prazer: as catequistas que haviam desertado dos seus postos voltaram a ensinar as crianças. Dia 16 de maio: “Jesus meu. Graças a ti, as coisas se normalizam, os fuxicos se desfizeram, as catequistas que haviam abandonado o posto voltaram a ensinar... Vieram, para formar o 5º grupo, 18 crianças, selvagens algumas, outras completamente sem termos... Daquela vez, no primeiro dia, senti tão grande desânimo que quase largo o arado. Mas seria um péssimo exemplo para as apóstolas, e então seria a vitória do nosso inimigo, e não quis dar-lhe este prazer. Se ele trabalhava tanto para que se acabassem estas aulas de catecismo, certamente era porque estava sentindo algum prejuízo com elas. Uma das meninas deste último grupo foi nomeada apóstola, e já está ensinando a seis crianças”...
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18. UM MÊS DE DORES E SAUDADES Ia expirando o mês de maio e despontava o de junho, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, uma das grandes devoções de Irene. Aparecem no seu diário muitas lacunas. Ela não tem forças para escrever. Tanto mais belos e íntimos são os poucos colóquios que lançou nesse seu confidente de papel. Ainda no dia 30 de maio escreve: “Pelo meu gosto, afrontaria tudo, até a morte, para melhor te servir, meu Jesus; mas a mamãe e Celita quase me obrigam a não sair de casa, e não quero desgostá-las. Que me valem uns dias mais de vida? Eu os sacrificaria de bom grado por estar um pouco contigo e os trocaria por um pouco de amor... Não tenho pena de deixar este mundo... Irei encontrar-me contigo, já que padeci tanto neste vale de lágrimas... Continuo a sentir-me mal. Não é possível que ainda esteja longe do fim. Resigno-me, Jesus, ou antes, vou com alegria. É para ti, para os teus braços que eu vou – como não me sentiria feliz? Mas peço-te, meu único Amor, um pouco de forças e de aparente saúde nos últimos tempos, afim de que termine os meus dias bem unida contigo, recebendo-te diariamente, servindo-te com os restos das minhas forças, e o meu último olhar seja para ti, o meu último suspiro seja teu, o meu último pensamento voe para ti, a minha última palavra seja teu nome, o meu último desejo a Eucaristia...” Cumpriram-se ao pé da letra estes ardentes anelos de Irene. Ela teve a satisfação de receber a Sagrada Comunhão até o último dia da sua vida, e Jesus lhe proporcionou a grande satisfação de não perder, por um momento sequer, a lucidez do espírito, tanto assim que ainda pouco antes de expirar disse: “Eu ouço e vejo tudo que se passa”... Irene pede apenas “um pouco de forças e de saúde aparente nos últimos momentos afim de terminar os seus dias bem unida com Jesus” – palavras de alma santa, toda de Deus. E acrescenta, num como ímpeto de irreprimíveis saudades: “Faze, Jesus, que o meu último traço de vida seja um traço de ouro de amor por ti!”... Depois, olhando para a linda estampa da Virgem, suspira: “Maria, minha Mãe, nada fiz por ti neste mês; perdoa-me... vê o meu estado... Ajuda-me, e, quando estiver para morrer, recebe a tua pobre filha...” Último dia do mês de maio. Irene não quer, não pode terminar o mês de sua Mãe celeste sem receber à Mesa Sagrada o seu divino Filho. Por isso, reunindo todas as suas forças e afrontando o tempo, lá se vai à igreja. À tarde escreve: “Jesus, meu amor. Hoje estou satisfeita, fui generosa contigo, fiz um ato de audácia por teu amor. 97
Quando me levantei, estava chovendo, mas as saudades de ti eram tão fortes, e o teu apelo tão veemente, que afrontei a chuva e o frio e fui te receber. A mamãe ainda me disse que isto era loucura e que eu ia morrer. Somente tu, meu Jesus, compreendes esta loucura, pois é a chamada loucura da cruz, à qual te sujeitaste por meu amor. E porque não havia eu de fazer o mesmo para contigo? Não me deste o exemplo? A minha vida? Para que me serve ela? Não seria ganhá-la se a perdesse por teu amor? Para te receber hoje, eu estava disposta a tudo; com prazer te daria hóstia por hóstia, vida por vida, sangue por sangue... Vieste a mim, desceste ao meu coração, que se aqueceu e vibrou com a tua presença. Não, Jesus, não era mais possível um dia sem ti!... Apesar de não ter sido possível voltar à igreja para assistir à Missa, que não alcancei toda, apesar de ter passado o dia friorenta e indisposta, estou satisfeita – oh! muito satisfeita – porque estás comigo, porque te sinto no meu coração, porque fui capaz de me sacrificar por ti”. *
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Mês de junho, último da vida de Irene. Já transcrevemos algumas das lindas meditações que ela escreveu, poucas mas ardentes, nestas últimas semanas. Não se aborreça o leitor se encontrar repetidas aqui uma ou outra. As coisas belas, originais, inéditas, podem e devem ser lidas, ouvidas e saboreadas muitas vezes; e, como aqueles colóquios são deste último período, reproduziremos um ou outro ao narrarmos os derradeiros heroísmos de Irene. No dia 3 de junho escreve: “Jesus meu. Mais dois dias sem te receber. Privam-me de ti, meu Amado, a pretexto de que algumas passadas a mais me podem ser fatais, e eu fico na cama como uma preguiçosa, quando para te receber daria com prazer meus últimos alentos. Eu sei que o meu coração trabalha aceleradamente e com ânsia de louco se aproxima do fim, como se desejasse gastar o mais breve possível as últimas forças. Por isto desisto de fazer visitas, por enquanto, mas não tenho pena de gastar contigo estas últimas energias; até, meu Amigo, as reservo para ti. Não posso te receber, mas procuro viver em graças, unida contigo, sem por um momento perder a paz. Sofro, Jesus, sofro física e moralmente. Procuro encobrir o meu sofrimento para não molestar os outros”. Irene não queria que se chamasse o médico, nem outra pessoa, mesmo de casa, para lhe aliviar os sofrimentos horríveis da agonia e dos vômitos. Sofrer em silêncio, ocultamente, sem incomodar a ninguém, era esta a sua maior satisfação, porque assim, parecia-lhe, era tudo para Jesus, só para Jesus. “A natureza humana – continua – sempre fraca, treme diante da expectativa 98
sombria da dor. Mas o espírito resiste, e eu me ofereço para sofrer o que quiseres, meu Jesus, pela minha salvação e pela salvação dos que me são caros. Às vezes, fraquejo um pouco e suspiro pela morte, que me libertará de tanto sofrimento; outras, estou disposta a sofrer o que quiseres e pelo tempo que quiseres... Nestes dias tenho procurado dar glória, amor e reparação ao teu divino Coração, indo à novena desde o dia primeiro. Assim procedendo, dou também prazer à nossa boa Mãe, que se sentirá feliz pelas homenagens que presto ao Filho, e ela me perdoará a falta de fervor do mês de maio. Ainda hoje cheguei tão cansada e triste à novena que, ajoelhando-me diante de ti, deixei pender a cabeça nas mãos e depus aos teus pés o meu pesado fardo de dores e angústias, receios e misérias... E, como uma pessoa que joga ao chão um feixe de lenha, respirei mais desafogadamente e senti um alívio... E então eu te disse: Que seria de mim, meu Jesus, se não existisses?... Se eu não tivesse o teu bom coração compassivo para receber o meu pobre coração sofredor?!... Aqui venho trazer-te as minhas dores e aflições... Estou em tuas mãos... Consola-me... E foi então, meu Jesus, que conheci o cumprimento desta tua promessa: Vinde a mim, todos os que estais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei... Sim, meu doce Amigo, aliviaste o meu coração, como ninguém o poderia fazer...” No dia 5 de junho, assistiu a uma “festa de amor”, e institui a seguinte reflexão: “O amor! Como o deturpam, como o afeiam e amesquinham!... Não merecem este belo nome estes fogos fátuos que vemos atear, aqui e acolá, e cujo único fim são as criaturas. Amor é este fogo ardente e misterioso que Margarida Maria viu queimar o teu coração, meu Jesus; amor é esta chama bendita que se eleva do nosso coração e procura o teu; amor é este braseiro que tudo consome, transformando cruzes e dores, misérias e angústias, em brasas vivas de caridade, em delicioso gozo...” Assim só pode falar quem sofreu o amor e viveu a dor, quem vislumbrou, para além das trevas do Getsemane e os opróbrios do Gólgota, os luminosos cumes do Tabor... E a alma de Irene possuía esta divina clarividência... E, cada vez mais ardente e saudosa do eterno e inseparável amplexo do divino Amigo, prossegue, sofrendo e amando: Jesus, tu és imutável – mas as tuas criaturas variam tanto... Seguro-me a ti, assim como a hera se apega ao muro para não cair... Jamais, ó Jesus, me deixes afastar de ti!... segura-me!... Continua, como uma grande luz, a atrair a minha pobre alma!... Quero que ela, como a mariposa, jamais se afaste de ti e cada vez mais se 99
aproxime, até se queimar nas ardentes chamas do teu puro amor!...” Depois deste sublime arroubo místico, discorre Irene sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, frisando admiravelmente o motivo e o objeto deste culto: “Há quem não sinta atração por esta devoção. Julgam que o teu coração é frio, indiferente, morto. Amando e honrando o teu coração, meu Jesus, honro e adoro a tua sagrada humanidade; não é só o coração que vejo, vejo-te todo inteiro, porém o coração é o que mais me atrai. O nosso coração é o nosso próprio eu, é o motor, é a vida. Foi do teu sagrado coração que nos vieram os Sacramentos, que nos vêm diariamente as torrentes de graças, sem as quais não podemos vencer. É por isto, meu Jesus, que vou entronizar no meu quarto a tua querida imagem. Acho que deve ser no meu quarto, para que fiques mais pertinho de mim, e me alentes nas minhas dores; além disto, é uma prova de que pelo amor já havias sido entronizado no meu coração... Jesus querido, une-me a ti, que eu viva a tua vida, que eu te sinta sempre dentro do meu coração. Morra eu de amor por ti – já que morreste de amor por mim!”... * *
*
A primeira quinzena de junho foi para Irene uma quinzena de martírio. As dores físicas não lhe deixavam um momento de descanso. Dia e noite, o mesmo tormento atroz. Desta fornalha saiu a sua alma visivelmente mais pura, mais espiritual, mais serena, mais de Deus. O seu espírito não vivia mais na terra. Acompanhava apenas, qual sombra longínqua, as dolorosas vicissitudes do corpo. Já neste tempo, pode-se dizer, tinha começado a luta entre a vida e a morte. Irene morria aos poucos... O seu diário, se, por um lado, revela o tênue desejo de viver ainda no meio das suas amigas e parentes, por outro lado mostra uma veemente saudade de Jesus, que a chamava para as núpcias eternas. As melhoras eram aparentes, passageiras. A mãe de Irene, que viera a Fortaleza – os pais moravam em Aracati – mandou chamar o médico, no dia 14 de junho. Este achou o estado da enferma bastante grave. Entretanto, deu esperanças. Passam-se os dias sem melhora alguma. Foi nestes dias que Irene escreveu as últimas páginas do seu diário. Dia 17 de junho: “Jesus, meu doce Amado. Já faz muitos dias que não venho entreter-me contigo por meio deste pobre diário. 100
Tenho estado doente, abatida, cansada... Passei cinco dias acamada. Levantei-me domingo somente para te receber, fazendo um sacrifício inaudito. Mas o desejo de te receber era tão grande... E eu precisava tanto de ti... Reuni as minhas forças e fui te receber como Viático... Ofereci o sacrifício do meu esforço pela expiação das minhas faltas...” Grande e heróico foi, na verdade, o sacrifício que Irene fez para receber a sagrada Comunhão. Quando chegou à igreja do Carmo, caiu, exausta, sobre uma cadeira. Estava tão trêmula e pálida que sua companheira pensou que ela ia morrer na mesma hora. “Hoje sinto-me um pouco mais forte. Ainda não posso sair de casa para te receber e visitar, mas já posso conversar um pouquinho contigo, neste diário. Agora vou tratar-me com o Dr. Jurandir Picanço. Será do teu agrado, meu Jesus? Queres que ele me cure? Seria tão bom que me restituísses a saúde. Mas, bem sabes, Jesus, que neste ponto deixo à tua santa vontade. Queria a saúde para melhor te servir; se achas que com a doença te sirvo melhor – faça-se a tua vontade... Só te peço, meu Jesus, o amor – oh sim! o amor, e nada mais... Apesar do meu sofrimento e das minhas dores, estou em paz, repouso nos braços da tua divina providência... Nem a morte, que diviso tão perto, consegue amedrontar-me... Quinta-feira assisti à bela procissão de Corpus Christi. Recebi a benção na praça José de Alencar. Para chegar até lá fiz bastante esforço; por isto não te segui mais adiante”. Irene quis por força assistir à procissão. Os bondes andavam cheios, nesse dia. Não resistindo a seus generosos impulsos, foi a pé, apoiada na mãe e em Celita. No trajeto parou duas ou três vezes, com falta de ar, prosseguindo depois, com indizível esforço e sacrifício. Defronte à igreja do Patrocínio ajoelhou e chorou por largo espaço de tempo, seguindo com os olhos saudosos o Santíssimo Sacramento. Depois de o perder de vista, levantou-se e disse, com um suspiro: “Esta foi a última vez!”... Em casa continua os seus colóquios com Jesus: “Jesus, eu te amo tanto, e o meu amor mais se aviva quando te vejo descer do teu belo trono e percorrer as nossas ruas, espalhando bençãos e graças, como outrora pelas ruas de Jerusalém e pelas estradas da Palestina. Nestas procissões, Jesus, recebes muitos afetos de corações amantes, muitas adorações de almas fervorosas, mas recebes também muito desprezo da parte de homens escravos do respeito humano, que deviam rojar-se no pó, como vermes que são, e se conservam ostensivamente de pé na tua augusta presença; sentes a ingratidão de muitos, que são tocados pelos teus benefícios, e não te rendem homenagens e agradecimentos. O que menos te magoa é a ignorância de alguns. Porque é, Jesus, que nem todos sentem, na tua presença, os sentimentos que 101
invadem a minha pobre alma? O meu coração pulsa desordenadamente, os meus olhos enchem-se de lágrimas, todo o meu ser se aniquila e treme na tua presença... Quinta-feira era um dia de glória – assim o compreendo eu. Mas, não sei porque, quando passaste por mim, debaixo do pálio, rodeado de tantos homens, não me lembrei da entrada triunfal em Jerusalém, nem de tantas passagens gloriosas da tua vida; afigurou-se-me ver-te preso, amarrado, rodeado de inimigos, escoltado por soldados, atirado ao Cedron. Tu me falaste de tristeza e sofrimentos, e não de glória e alegria... E o meu pobre coração se encheu de tristeza, mas de uma tristeza suave e doce, tristeza que não faz sofrer, mas que consola e conforta”. 19-6-36 - sexta-feira “Jesus, meu Amigo. É hoje o dia consagrado ao teu coração amante e tão pouco amado. Quantos projetos havia eu feito para festejar este dia! Tudo resultou em quase nada, porque me faltou o principal, que é a Comunhão; mas espero que ainda não esteja tudo perdido e que se possa fazer hoje a entronização da tua imagem aqui no meu quarto de doente... Desejava muito ir mais tarde te fazer meia hora de adoração, mas sei que não o permitirás, embora eu esteja mais forte. Resigno-me, reconhecendo em tudo a tua santíssima vontade. A tua vontade, ó meu Amigo, será sempre a minha”. Depois da entronização, Irene continua: “Agora estás sempre aqui comigo, suavizando os meus sofrimentos, fazendo-me companhia nos dias tristes de doença, apontando-me o teu coração como o cofre onde serão guardadas, quais preciosidades, as minhas dores suportadas com paciência e amor, as minhas lágrimas, os arroubos que sobem do meu coração em busca do teu... Meu Jesus, ajuda-me a melhorar um pouco, afim de que, no domingo, eu possa ter a felicidade de ir receber-te!” Estas palavras, escritas às 3 horas da tarde do dia 19 de junho, festa do Sagrado Coração de Jesus, rematam o “Diário de Amor”; são as últimas que Irene lançou ao papel. Realizou-se, por esta parte, o seu desejo: “seja o meu último anelo o desejo da Eucaristia”... Depois disto começou a piorar tanto que, nos quinze dias que ainda teve de vida, nada mais consignou por escrito.
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19. NA PÁTRIA DAS SUAS SAUDADES Baseiam-se as seguintes notícias sobre o testemunho de pessoas que presenciaram os últimos dias de Irene, entre elas o seu último diretor espiritual P. Tiago Way e Celita Gurgel. Depois do dia 19 de junho, como foi dito, Irene não escreveu mais no seu “Diário de Amor”. A partir deste dia, festa do Sagrado Coração de Jesus, tornou-se cada vez mais grave o seu estado. No dia 26, à tarde, o médico, alarmado com o resultado do exame de sangue, resolveu proceder a uma sangria. Irene ignorava ainda a gravidade da sua moléstia. Quando lhe falaram em chamar o confessor, respondeu tranquilamente: “Não incomodem o Padre. Daqui a dois dias, estarei boa. Sábado irei confessar-me”. “Foi o anjo da guarda que mandou o confessor, na noite de 26” - disse Celita. É que nessa noite passou pela rua Senador Pompeu, onde se achava Irene, o Padre Tiago, sem que ninguém o tivesse chamado. O sacerdote ignorava a agravação da doença de Irene. Encontrou-a triste e abatida. Logo que ela viu o Padre com que, havia dias, desejava falar, ficou satisfeita. Confessou-se, e logo a sua tristeza se mudou em grande alegria e plena segurança. Foi notória a todos a tranquilidade do seu espírito. Houve uma notável mudança mesmo em seu semblante. Cheia de resignação e de calma, principiou Irene o último combate entre a vida e a morte... Passou em claro a noite de 26 a 27 de junho. Sábado, muito cedo, veio o Vigário da igreja do Carmo ministrar-lhe o Viático e a Extrema-Unção. Irene acompanhou com muita atenção e piedade todas as cerimônias com que a santa igreja prepara os doentes para a morte. Renovou, com inteira resignação, o sacrifício da sua vida. Sofria muito. Respirava com grande dificuldade. Uma tosse pertinaz, acompanhada muitas vezes de vômitos, efeito da intoxicação da uremia, não lhe dava descanso algum. À tarde começou a piorar. Passou mal a noite. Quase não falava. Sentia-se cada vez mais cansada e exausta. No dia 28, pela manhã, passou um pouco melhor. À tarde, porém, recomeçaram os acessos de tosse, os vômitos e a falta de ar. O médico fez-lhe nova sangria. * *
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Resumindo os fatos dos últimos dias, podemos dizer que, de seis em seis horas, mais ou menos, se repetiam esses horríveis ataques, durante os quais o 104
pulso parava quase por completo. Seguia-se depois um período de repouso, um sono rápido, irrequieto. A doente acordava um tanto espantada, estranhando encontrar-se ainda no meio dos vivos. Três vezes por dia recebia Irene a visita do médico. Tomava seis a oito injeções diária, alimentando-se apenas de algumas gotas de café. Várias vezes tiveram as testemunhas presenciais a impressão de que ela ia morrer no meio de um daqueles dolorosos acessos. Já na segunda-feira, dia 29, lhe puseram na mão a vela benta. Ao meio-dia, Irene despediu-se de todos, dos pais, dos amigos, dos parentes, e tudo isto sem proferir uma palavra; a extrema fraqueza não lhe permitia falar; falava por sinais e acenos; entretanto, tinha perfeita consciência dos seus atos. O sacerdote rezou com os presentes as orações dos agonizantes. O médico, conhecendo o estado de extremo esgotamento da enferma, não compreendia como resistisse ainda. Os assistentes estavam impressionados com o sofrimento de Irene. Ela, sentada na cama – quase não se deitava – descansava a cabeça nas mãos e, movendo os lábios em colóquios imperceptíveis, sofria, sofria, sofria... A sua alma repetia as belas palavras que, pouco antes, lançara no seu diário: “Cheguei tão cansada que deixei pender a cabeça nas mãos e depus a teus pés, Jesus querido, o meu pesado fardo de dores e angústias, receios e misérias”... Irene, embora consciente, era alheia a tudo que se passava em derredor; só falava com Jesus, pedindo que a viesse buscar, porque eram tamanhas as saudades que tinha do seu amplexo... Devido aos vômitos, não comungou no dia 29, festa de São Pedro e São Paulo. Nos restantes dias da sua vida teve a grande satisfação de ver atendido o pedido que, no dia 30 de maio, fizera a Jesus: “Peço-te somente um pouco de forças e aparente saúde, nos últimos tempos, afim de que termine os meus dias bem unida contigo, recebendo-te diariamente, servindo-te com os restos das minhas forças”. Desde segunda-feira, 29, não falou mais com pessoa alguma. Foi o desespero da família. Nem atendia aos visitantes; um olhar, e nada mais. Parece que era o completo desinteresse pelas coisas do mundo, desinteresse que, nesta última semana, atingiu o auge da sua intensidade. Duas pessoas apenas atraíam ainda a atenção da agonizante: o médico e o confessor. O médico, porque este retinha naquele organismo o derradeiro restinho de forças de que Irene necessitava para poder entreter-se com Jesus; o confessor, porque este lhe falava em Deus, no reino da sua glória, lhe deu novamente a absolvição dos pecados e lhe aumentava na alma a certeza da próxima união com Jesus. Este estranho desinteresse de Irene escandalizou várias pessoas, incapazes de compreender a vida íntima e o estado da padecente. Nem para suas melhores amigas teve uma palavra de conforto e despedida. Para Irene, parece, já não existia senão uma única grande realidade – Deus. Antecipava, por assim dizer, a apatia e indiferença que as almas fora do corpo mostram em face das coisas 105
deste mundo material. Vai neste silêncio um verdadeiro mistério. Pelas poucas palavras que proferiu na última semana da sua vida via-se que vivia numa contínua e quase extática união com Jesus Crucificado. Quando, à noite do dia 30, quis passar da cama para a rede, espetou o pé no preguinho que prendia o seu crucifixo à cama, e havia caído pouco antes, disse espontaneamente, sem queixa nem reflexão: “Jesus, sofrer até nos pés como tu...” Sofrer com Jesus era o seu único pensamento, ante o qual nada existia de importante. A exemplo de Jesus no Getsemane, Irene, embora completamente resignada à vontade de Deus e desejando ardentemente unir-se inseparavelmente com o divino Amigo, não era indiferente e estóica em face da morte. Se o próprio Cristo sentiu o instintivo horror da separação, se São Paulo considera a morte como “o último inimigo”, como poderia uma frágil criatura permanecer apática em face do mais trágico acontecimento da existência? No dia 2 de julho, quinta-feira, vestiu-se Irene, com extremo esforço, levantou-se do leito, ajoelhou no tapete e disse a Jesus, enquanto as lágrimas lhe corriam em fios sobre as faces pálidas: “Coração de Jesus... vem curar-me... se for da tua vontade...” A sua vontade, o seu Eu espiritual permanecia firme e inabalável no meio dessa revolta da carne e do sangue. Toda a vez que o confessor lhe perguntava, respondia Irene calma e serena: “Padre, não tenho medo da morte”... Nunca lhe faltou a confiança, nota característica da sua espiritualidade. Ainda no último dia disse: “Jesus, fui forte na vida – serei forte na morte”... Estas palavras revelam também a admirável lucidez de espírito que ela guardou até ao fim. O seu coração estava abalado, e tão grande era a falta de ar que começaram a utilizar um balão de oxigênio. Se era extremamente doloroso contemplar Irene tantos dias nessa agonia, era também sumamente edificante ver essa alma heróica lutando, sem um momento de tréguas, contra um poder mais forte, corajosa, calma, tranquila. Quinta-feira à tarde, todos os circunstantes esperavam o desenlace final. Novo exame do sangue acusou um aumento de uréia para 3,70 a dose. As injeções ficavam sem efeito. A intoxicação progredia rapidamente. Assim mesmo, passou ela a tarde um pouco mais animada. Mas à noite piorou seu estado. Quando ouviu que no dia seguinte, primeira sexta-feira de julho, ia receber a sagrada Comunhão, um fulgor subitâneo lhe iluminou o semblante. Passou rezando por espaço de longas horas. No fim disse: “Amanhã tudo muta de feições”... Sexta-feira de manhã estava cansadíssima, porém disposta a comungar. Queria, por força, levantar-se para receber de joelhos a Jesus-Hóstia. Só por obediência ficou sentada, vestida. Ela mesma compôs e arranjou o véu. Foi este o dia em que Jesus visitou pela última vez o coração ardente de sua grande discípula. 106
O sacerdote com os presentes rezaram diversas orações, entre elas o “Ato de Desagravo ao Sagrado Coração de Jesus”. Irene acompanhou tudo, sentada, imóvel, o semblante aureolado de paz e amor. Terminadas as orações, recaiu exausta nos travesseiros, fechou os olhos e parecia morta. Depois duns quinze minutos abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Passados uns instantes, respirou mais desafogadamente e perguntou: “O Padre sabe tudo o que eu sofro? Para que tudo isto?”... Procuraram consolá-la, dizendo: “Para que vá logo para o céu, fazendo o seu purgatório aqui na terra”. “É” - respondeu Irene e tornou a se abismar em silenciosa meditação. Toda esta manhã de 3 de julho foi de ininterrupta oração. Irene recitou à meia-voz, meditando, o “Magnificat”, que ela sabia perfeitamente de cor, e rezou-o todo sem auxílio de ninguém; depois, também vagarosamente e com ardente fervor, rezou o “Alma de Cristo”; depois duma ligeira pausa, repetiu o seu suspiro predileto: “Jesus, sou vossa, na vida e na morte”... Mais uns momentos, e segredou, com voz clara e inteligível: “Vamos todos mostrar o nosso amor para com Jesus, conformando-nos com a sua santa vontade... Jesus quer que eu seja o seu anjo consolador”... Irene repetiu muitas vezes estas palavras, no último dia da sua vida. Às onze horas sentou-se e disse: “Vamos fazer a hora da guarda”. Rezou, sem se deitar e sem mostrar cansaço, uma hora inteira. Ao meio-dia em ponto, ao toque dos sinos, disse em voz alta: “Suba em paz convosco a minha alma!”... E, apesar da extrema fraqueza física, achou forças para se levantar e, apoiada no irmão e na irmã, que estavam ao seu lado, estendeu os braços e exclamou radiante: “Jesus quer que eu represente a luz do crucifixo vivo”... Depois disto, recaiu na cama. Tornou a sentar-se e, fitando um determinado ponto no quarto, com o ouvido atento e os olhos em vivo fulgor, como se enxergasse ao longe algum fenômeno celeste, disse: “Uma festa no céu... Afastem, para dar passagem a um grupo de crianças...” Ainda agonizante, Irene pensa nas crianças às quais abrira as portas do céu, nas horas de Catecismo, e que ela julga virem a seu encontro para a acompanhar ao reino da eterna felicidade... E teria sido ilusão?... Muitas dessas almas infantis já estavam no além... e por que não se mostrariam gratas para com a sua grande amiga e benfeitora?... Irene permaneceu algum tempo nesta atitude extática de intensa atenção; depois murmurou: “Está terminando a festa...” Em certo momento, procurou o demônio amedrontar esta alma, tão unida a Jesus nos seus últimos momentos. Uma alusão vaga... um ligeiro movimento de medo... O sacerdote fez sobre a agonizante o sinal da cruz com água benta – e voltou a paz ao espírito de Irene... “Pronto, mamãe – disse de repente – está tudo consumado”... Foram estas as últimas palavras inteligíveis de Irene. Continuou a rezar, mas não foi possível distinguir as palavras. A voz ia-se-lhe sumindo aos poucos. Pelo 107
movimento dos lábios, porém, podia-se adivinhar que repetia sem cessar a sua jaculatória: “Jesus, que morreste de amor por mim, morra eu de amor por ti...” Às 2,30 da tarde começou o estertor, porém muito calmo, sem violência alguma. Um pouco antes das 3 horas, com a vela ardente na mão, como uma das virgens prudentes à espera do Esposo, deixou Irene este vale de lágrimas e entrou, como esperamos, na “pátria das suas saudades”... E despontou a “aurora do luminoso dia sem fim”...
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CONCLUSÃO A singela florzinha eucarística do Ceará, desde que aprendera a viver à luz da lâmpada do Santíssimo, fugia de toda a ostentação, detestava toda a celebridade e só se sentia bem na atmosfera mística da Eucaristia e no clima sadio do apostolado no meio das crianças. Entretanto – o homem põe, e Deus dispõe. Mal correu a notícia da morte de Irene, abalou-se a capital do Ceará. Milhares de pessoas, mesmo mundanas, tinham a consciente ou semi-consciente intuição de que Irene era uma alma singularmente privilegiada, diferente da maior parte das outras jovens cristãs. Muitos diziam publicamente: Ela é uma santa... Por isso, quiseram pelo menos assistir à inumação do invólucro material dessa grande alma. O enterro da humilde catequista foi deslumbrante. Mais de 50 carros acompanharam-na à ultima morada. Luxo demais para Irene, que só gostava da simplicidade. Foi sepultada no jazigo próprio, uma capela votiva, que a família tem no cemitério de Fortaleza. *
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Com isto parecia terminada a humilde epopéia apostólica de Irene. Mas, o santo, quando morre, é que começa propriamente a viver. Quis Deus que, depois da sua morte física, principiasse Irene a viver espiritualmente nas almas de milhares de brasileiros. Missas em ação de graças, favores alcançados – tudo isto começou a aparecer, logo depois, provando que a florzinha eucarística do Ceará vivia, de fato, na alma do povo. Vox populi, vox Dei... Quando então apareceu no diário católico do Ceará: “O Nordeste” uma pequena biografia da “santinha” com o título “Diário duma alma piedosa”, subiu de ponto a devoção a essa grande discípula de Cristo. E foi só então que se manifestou a admiração latente que numerosos católicos votavam a essa jovem. Muitos houve que recortaram o folhetim “O Nordeste” e fizeram daquele apanhado biográfico, entremeiado de colóquios eucarísticos, um livrinho que guardavam e guardam ainda como um tesouro.
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Um dia dissera Irene a seu diretor espiritual que, a exemplo de Santa 110
Teresinha, queria passar o seu céu na terra fazendo bem a todos. Cumpriu a palavra – e parece que vai acrescentar a segunda característica do espírito da Santinha de Lisieux: mandar do céu uma chuva de rosas. São tantos os favores e as graças que numerosas almas alcançam todos os anos – e estamos apenas no terceiro ano da sua morte – por intermédio de Irene, que, se os reuníssemos todos, resultaria um vasto jardim de rosas de todas as cores e feitios. *
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Esboçando esta ligeira biografia, não me moveu absolutamente a intenção de solicitar para Irene a honra dos altares – que diria ela a semelhante pretensão? - quis tão somente apontar ao mundo materializado dos nossos dias um exemplo autêntico, bem da nossa terra, bem do nosso espírito, exemplo do que pode uma alma cristã quando empolgada por um grande ideal. Vida sem um ideal superior não é vida – é uma derrota, uma falência. Irene, nas quase duas mil páginas do seu “Diário de Amor”, não fala uma só vez em “Ação Católica”; mas o que ela fez nos doze anos da sua vida espiritual – que foi isto senão uma intensa e indefessa Ação Católica? Ação Católica genuína é um grande amor de Deus transbordando em caridade do próximo. Muitos católicos dos nossos dias possuem da “Ação Católica” apenas o esqueleto, o arcabouço, o cadáver: uma série de noções teóricas sobre o fim próximo e remoto, sobre meios gerais e particulares, sobre essência, natureza e divisões da “Ação Católica” - mas da alma nada possuem nem percebem. A alma da “Ação Católica” não vive onde não palpita um grande espírito de apostolado, de humildade, de desinteresse, de heroísmo de mártir. Não há apostolado sem martírio... Onde estão as nossas catequistas? Não essas jovens que, por motivos de simples conveniência social, dão umas aulas de Catecismo e obrigam as crianças a decorar mecanicamente uma centena de respostas áridas – mas essas autênticas apóstolas da Doutrina Cristã que consideram a sua missão como uma vocação divina? Essas jovens repletas do espírito do divino Mestre e intimamente familiarizadas com o seu Evangelho e a sua Eucaristia? Essas jovens prontas a se sacrificarem por um ideal, a imolar forças e saúde, mocidade e vida na ara sagrada do reino de Cristo? Dispostas a conduzir aos braços do divino Amigo da infância aquelas alminhas inocentes às quais Ele prometeu o reino do céu?... Irene espera das suas companheiras em terras de Santa Cruz mais que simples atos de estéril admiração – espera o heroísmo duma fecunda imitação do seu espírito eucarístico e da sua alma apostólica.
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COM LICENÇA, IRENE... Já estava concluído este livro sobre a tua vida, trabalhos e sofrimentos; estava tudo pronto, até as orações finais e os “ecos da imprensa”. Mas, antes de entregar ao prelo as laudas dactilografadas, quis mais uma vez passar os olhos pelo que escrevera, afim de retocar uma ou outra frase. E, ao reler os capítulos e visitar em espírito a “terra da luz”, o teu misterioso nordeste – sobrevieram-me tão grandes saudades dessas plagas tropicais, que resolvi acrescentar este capítulo de evocação pessoal. Irene, agora que estás no mundo das verdades eternas, posso falar-te com a familiaridade que um irmão mais velho usa para com sua irmã – e eu tenho uns anos a mais do que terias se vivesses... Ainda que filho do extremo sul, criado na verdejante vastidão dos pampas e por entre o mar esmeraldino das coxilhas, sinto dentro de mim uma estranha atração pelas plagas do norte e nordeste da nossa terra... Foi em 1935 que, depois de transferir para a capital da República a sede da “Cruzada da Boa Imprensa”, pela vez primeira visitei o teu Estado natal – e foi também nesse ano que nós nos encontramos rapidamente, em Fortaleza, onde eu realizava uma série de conferências. Não tenho recordação nítida desse encontro fortuito, porque eu não te conhecia, e tu me conhecias apenas através das páginas de “Alma Eucarística” e alguns outros livros em que palpita um pedaço do meu Eu, livros em que minha alma vibra, chora, geme, anseia e sofre as angústias do seu Getsemane e os tormentos do seu Gólgota... Encontraram-se, talvez, os nossos olhos, mas não se encontraram as nossas almas. Só agora, quase três anos após o teu voo para as regiões do além, é que chego a conhecer a tua grande alma, Irene... Desde aquele ano de 1935 até hoje, cortei três vezes todo esse sertão do Ceará e Estados limítrofes, a serviço da causa sagrada da boa imprensa. E, a despeito do desconforto material que muitas vezes padeci no interior, máxime em período de prolongadas secas, trago a alma cheia de saudades dessa terra e desse povo admirável... Essa espontânea naturalidade do nordestino, esse espírito hospitaleiro e humanitário, esse idealismo cristão, essa sincera benevolência que tenho encontrado entre os filhos do nordeste – ah! como tudo isto encanta e faz bem a um homem cuja vida é um fragoroso campo de batalha, uma ruidosa babel de trabalhos e canseiras, diurnas e noturnas, em prol dum ideal incompreendido por muitíssimos... A “Cruzada da Boa Imprensa”, centro nacional de cultura e difusão literária, representado em centenas e centenas de cidades, desde Porto Alegre até Manaus, desde o litoral até ao fundo do sertão, tem espalhado, nos poucos anos da sua existência, com a graça de Deus, centenas de milhares de volumes de vigoroso alimento espiritual, iluminando as inteligências, acalentando os 112
corações de inumeráveis leitores. Tu mesma, Irene, nos teus diários, confessas frequentemente que és uma das grandes beneficiadas do bom livro, que das baixadas profanas do mundo te levou às serenas alturas da espiritualidade cristã... Entretanto, minha irmã, nem todos compreendem o que tu compreendias. Há entre os nossos católicos não poucos que, em vez de amigos, se constituem verdadeiros inimigos do apostolado da imprensa, seja pelo indiferentismo que lhe votam, seja pelo não cumprimento dos compromissos assumidos em face dos jornais e das casas editoras. Tu, Irene, que vives na luz da verdade integral, sabes que o apóstolo da imprensa é quase sempre a bigorna do público, e bem poderia repetir as palavras de São Paulo: “Parece-me que Deus designou a nós, apóstolos, o último lugar, como condenados à morte; porquanto nos tornamos espetáculo para o mundo, para os anjos e para os homens. Somos considerados estultos por causa de Cristo; somos tidos por fracos; somos desprezados; até a presente hora andamos com fome, sede e desnudez; somos maltratados; vivemos sem casa; afadigamo-nos com o trabalho das nossas mãos; lançam-nos maldições – e nós espargimos bençãos; perseguem-nos – e nós o sofremos; caluniam-nos – e nós consolamos; até esta hora somos considerados como o lixo do mundo e a escória da humanidade”. (1. Cr. 3,9ss) Tais coisas experimentou em si o maior bandeirante do Evangelho – e que admira que os que desejam continuar-lhe o apostolado devam participar de idênticos martírios?... Todo o homem que quiser elevar-se acima do nível da rotina comum e trabalhar por uma causa superior, há de fatalmente ser incompreendido por uns e hostilizado por outros e malsinado por aqueles que se julgam eclipsados e não toleram coisa alguma acima da sua rasteira mediocridade e covardia. A imprensa católica, pelo fato mesmo de ser apóstola, tem de ser mártir. Não há apostolado sem martírio. É este o nosso campo de batalha de todos os dias e de todas as horas... Quando então, longe das mesquinharias humanas, me abismo na convidativa solidão dos sertões do nordeste, em contato íntimo com a natureza, essa misteriosa natureza que leva nas feições tropicais um idílio de inefável poesia mesclada com os traços dolentes da sua tragédia multissecular; quando escuto o sussurro nostálgico dos carnaubais tangidos pelas tépidas brisas vespertinas; quando os meus olhos acompanham esses bandos de aves que vêm abeirar-se dos grandes açudes à procura da linfa salvadora; quando presencio a admirável espiritualidade do sertanejo que em todas as vicissitudes da sua duríssima existência divisa a vontade de Deus e vive feliz na sua evangélica simplicidade; quando por toda a parte me sinto como que “em casa”, no seio desse povo profundamente humano – quer seja nas serras do Cariri ou Baturité, quer seja nas cidades do litoral ou nos povoados do interior – então volto a cobrar alma 113
nova e torno a crer na humanidade que quase me levara ao pessimismo universal... Por isso, Irene, eu admiro a tua terra natal, onde os homens são tão humanos, as mulheres tão femininas, as famílias tão cristãs, a sociedade tão acolhedora, o espírito tão vivaz, a alma tão idealista e a natureza repleta dessa irresistível magia e envolvente sedução, que não se descreve, mas só se pode sentir no íntimo de seu ser... Irene, pelas tuas mãos benfazejas, como se fosses uma sacerdotisa, - e tu mesma te comparaste a uma vestal – eu quero oferecer ao povo do Ceará e do nordeste o preito da minha admiração e a sincera homenagem duma alma agradecida por todas as amizades e gentilezas que de teus conterrâneos tenho recebido com tanta liberalidade... Deposita, pois, vestal cristã, nos corações dos filhos da “terra da luz” estes votos dum filho dos pampas, e, lá das célicas regiões da Verdade e do Amor, vela solicitamente pelo “fogo sagrado” do idealismo, pela pátria, pela igreja, pelos destinos da “Cruzada da Boa Imprensa” e por todos os que se afadigam no campo deste apostolado.
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ORAÇÃO Senhor Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, que infundistes à vossa serva Irene um ardentíssimo amor ao mistério da vossa presença sacramental, e a fizestes exímia apóstola do vosso reino e infatigável catequista das almas infantis – suscitai entre nós, vos suplicamos, numerosas almas que, desapegadas das vaidades terrenas, bebam nas torrentes salutares da Eucaristia o espírito do verdadeiro apostolado e conduzam aos vossos braços os pequeninos aos quais prometestes o reino do céu. Assim seja. (100 dias de indulg. uma vez por dia).
Rio, 6-2-39. + Sebastião, Card. Arcebispo.
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ORAÇÃO DA CATEQUISTA BRASILEIRA Para alcançar o espírito de Irene, apóstola do Catecismo
Divino Mestre e Pastor das almas, concedei-me a graça de, a exemplo da vossa serva Irene, lutar sem olhar a ferimentos, de sacrificar-me sem esperar recompensa, de trabalhar sem descanso, de sofrer sem me queixar, de falar sem arrebatamento, de calar-me sem obstinação, de sorrir sem leviandade, de chorar sem desespero, de orar sem ostentação, de mandar sem aspereza, de obedecer sem servilismo, de castigar sem acrimonia, de ensinar sem afetação, de gozar sem excessos, de renunciar sem orgulho, de viver sem apego à vida, de morrer sem saudades do mundo – para que, depois de ter sido como ela vossa apóstola na terra, mereça ser vossa companheira no céu. Assim seja. (100 dias de indulg. uma vez por dia).
Rio, 6-2-39. + Sebastião, Card. Arcebispo.
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CÓPIA DUMA CARTA DO PADRE LUIS CHESEAUX S.J., SOBRE IRENE, CUJA ALMA ELE DIRIGIU, POR ALGUM TEMPO, NOS CAMINHOS DO SENHOR “Colégio Nóbrega (Recife), 13-12-1936. Ilmo. Sr. e Amigo Alfredo Valente e Exma. Sra. D. Maria. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Só agora venho manifestar o pesar que tive quando soube a triste notícia do falecimento da Irene. Já rezei diversas Missas por sua alma. Eu conheci bem sua filhinha em Aracati. Tenho a consolação de possuir o diário dela, que foi publicado em “O Nordeste” e que a redação me mandou. De 20 de julho a 20 de agosto não me falta nem uma folha. No fim da última página tenho também o retrato de Irene, com o rosto tão sereno e tão celestial, deitada no caixão. No meu Breviário guardo carinhosamente a fotografia de Irene, que se dignaram mandar-me. Consolai-vos, Sr. Alfredo e D. Maria; tendes um anjo protetor no céu, na pessoa de vossa querida filha. Eu a invoco também como uma alma de eleição. Ela sofreu muito, porque Nosso Senhor lhe queria um bem especial. Celita, a amiga dela, deve ter ficado inconsolável. Tomo parte na dor de todos e continuo a me lembrar, diante de Deus, de Irene e de seus saudosos pais e irmãos e irmãs. Todo seu em Cristo Jesus. P. Luis Cheseaux S.J.”
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ECOS DA IMPRENSA Mal se extinguira a jovem vida de Irene, apareceram na imprensa numerosas pessoas que, em prova e verso, externavam a sua admiração pelas extraordinárias virtudes desta alma apostólica. Dentre os muitos escolhemos os dois documentos a seguir: ALMA SANTA “Irene Costa Lima Valente, Veni de Libano, sponsa mea, vulnerasti cor meum (Cant. 4-8-9) Acabamos de ler – e com que emoção! - o diário de uma santa: Irene Costa Lima Valente. Iluminaram-se, durante um mês, as colunas de “O Nordeste”, com as límpidas fulgurações daquelas letras de acrisolada piedade e incendido amor sobrenatural. A vida de Irene Costa Lima Valente semelha a de muitos bem-aventurados da coeva e, até, da meia idade, pela largueza da abnegação e do abandono da amorável intimidade de Jesus. Atingira ela a plenitude, segundo grau, na escada grandiosa da mística, que é a paz purgativa, onde, todavia, já se divisavam, nítidos, os primeiros clarões da vida contemplativa em cujo ádito penetrou a sua moléstia. A mística é uma ciência de que tanto carece o turbilhonante século vinte. São Boaventura, Santa Catarina, S. Bernardo, Angela de Foligno, em suas obras memoráveis, descrevem os métodos da mística com uma precisão matemática. Parece que a Irene Costa Lima Valente Deus poupou aqueles horríveis momentos, em que as divinas consolações se subtraem à alma já completamente desprendida do mundo. É o que o admirável São João da Cruz chama a “noite escura”, porque os tormentos dessa prova ultrapassam as angústias das maiores tentações. Tirante uma pequena descaída, a que se alude no começo do diário, Jesus nunca faltou, com as inefáveis doçuras, compensadoras do seu amor irreprimível, a Irene Costa Lima Valente. O seu diário lembra a vida de Santa Teresa do Menino Jesus, escrita por ela própria. Ambos são um hino de amor a Deus. Estamos a ver, constantemente, em nosso meio, esplêndidas atividades a serviço da Igreja. Mas nunca supusemos que, no século, estivesse como um perfume divinal e uma benção do céu, a pedir e merecer favores, uma alma do aprumado misticismo de Irene Costa Lima Valente. É em contemplação dessas invulgares almas de eleição que a indefectível Justiça detém o seu braço vingador. É só por causa delas que Deus vai esquecendo a miséria de nós outros, que, na sua monstruosidade, é sempre menor que o valor inapreciável daquelas vidas sobrenaturalizadas. De ora em diante, a vida de Irene Costa Lima Valente, representará uma solene intimação a todos que, em nossa cidade, queiram apelidar-se filhos da Cruz. Todos, velhos e jovens, homens e mulheres – devem olhar o modelo perfeito da alma devota, porque, afinal, esta não tem idade, nem sexo. Irene Costa Lima Valente rompeu os véus que, cada vez mais densos, nos tempos atuais, encobriam a nossa pobre visão a extasiante beleza dos domínios da mística. F.O.A.”
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ELEITA DE DEUS Ao ler seu “DIÁRIO” a gente até parece Sentir que à alma descrida a FÉ se robustece! Tal foi a inspiração com que ela escreveu Esse livro imortal, tão íntimo, tão seu... Quando a dor a assaltava, heróica, ela dizia: Bendita seja a dor atroz que me escrucia! Mais sofreste, meu Deus, sublime e conformado, Por nos livrar da mancha hedionda do pecado!... E eu que Te pertenço, e eu que Te amo tanto, Tenho tal confiança em teu amor tão santo, Que, para amenizar o mal que me consome, Basta-me repetir o teu sagrado nome! Abrasado na fé que tenho em Ti, Jesus, Vou levando, feliz, a minha própria cruz! Já não vejo este mundo! O olhar do pensamento Não se afasta de Ti, Jesus, um só momento! E, quando me chegar a hora derradeira, Estarás bem juntinho à minha cabeceira, Pois tenho, dentro em mim, no altar do coração: Teu Corpo, Sangue e Alma – Eterna Salvação! Foi com todo esse amor, tão puro e extraordinário, Que ela escreveu, em vida, o seu santo “Diário”. E, hoje, lá no céu, um coro de anjos canta Hinos à nova Eleita. IRENE MORREU SANTA! IGNOTUS
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