Huberto Rohden - Minhas Vivências na Palestina, no Egito e na Índia

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HUBERTO ROHDEN

MINHAS VIVÊNCIAS NA PALESTINA, NO EGITO E NA ÍNDIA UNIVERSALISMO


ADVERTÊNCIA

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.


PRELÚDIO

Em 1969, fui visitar três continentes do globo: Europa, Ásia, África. Por quê? Em busca da verdade? À procura de homens diferentes dos nossos? Não! Os homens são fundamentalmente os mesmos, em toda parte. Enquanto viajava pelos mundos, dava ordem aos mundos para viajarem através de mim, que me mostrassem o mesmo homem já conhecido em perspectivas várias. Nunca o homem se conhece tão bem a si mesmo como quando recebe o impacto de homens alheios. A alteridade dos outros catalisa e intensifica em nós a identidade própria. Cristaliza o nosso autoconhecimento. Alemães, suíços, gregos, israelitas, árabes, egípcios, hindus, nepaleses e outros povos que encontrei – que poderiam eles dizer-me de novo? Religiões cristãs de vários matizes, crenças hebréias e cultos maometanos, filosofias herméticas, mistérios helênicos, metafísicas brahmanes e místicas budistas; templos, igrejas, mesquitas, pagodes – nada de novo me disseram, mas tornaram mais consciente em mim aquilo que eu já era e sabia. Nesses espelhos vi o que sem espelho não poderia ver: o meu próprio semblante refletido neles, atitude de minha alma, o caráter do meu Eu individual. Europa, Ásia, África – eu viajei através de vós, externamente – mas vós viajastes através de mim, internamente. Contemplei as vossas quantidades – e vós me revelastes a minha qualidade. E alguns homens verticalizados, que em vós viveram, deixaram as suas misteriosas auras, os seus fascinantes eflúvios em vosso ambiente histórico. *** Leitor amigo. Não esperes encontrar nas seguintes páginas algo como um guia de turismo, descrições de culturas alheias, visões panorâmicas dos países e povos que visitei.


Nada disto encontrarás neste livro. Direi apenas – mais a mim do que a ti – o que pessoas e povos me disseram, mais pelo seu ser do que pelo seu dizer, enquanto viajavam através de mim. Nada direi da sua onilateral totalidade – algo direi da sua unilateral parcialidade, no setor peculiar em que eles afinarem com a frequência vibratória de minha alma. Certamente, não vi esses países e povos como eles são – mas tão-somente assim como eu sou. E se tu, ignoto leitor, tiveres outras idéias desses mesmos países e povos, reconheço as tuas idéias, embora discordantes das minhas, como igualmente verdadeiras. Diversidade de opinião não é hostilidade. Se não houvessem opiniões várias, seria este mundo uma insuportável monotonia. Se tudo fosse apenas UNO, não haveria Universo. Se tudo fosse apenas VERSO, não haveria Universo. Mas há Universo porque o Uno e o Verso, embora diferentes, não são contrários, mas harmonizados numa fascinante complementaridade: unidade na diversidade, Harmonia Cósmica. Viajei pelas diversidades de fora, para sentir mais intensamente a minha unidade de dentro – unidade na diversidade, a identidade das alteridades – o Universo em mim pelo Universo em si.


QUARENTA PAÍSES EM TORNO DE UM INSETO

Na tarde de 2 de agosto de 1969, no Aeroporto Internacional de Viracopos, em São Paulo, o jato da “Lufthansa” levantava majestoso vôo. Depois de 40 minutos, pousou no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Ao anoitecer decolou rumo nordeste. Durante 9 horas sobrevoamos o Oceano Atlântico, enquanto os passageiros dormiam tranquilamente, a uns 10.000 metros de altitude, viajando com a velocidade de 9.300 quilômetros por hora. Amanhecemos em Lisboa; os nossos relógios marcavam apenas 2 horas da noite. O sol, que vinha ao nosso encontro, roubou-nos 4 horas de sono. Eram 6 horas. Mais algumas horas e aterrissávamos em Zurique, na Suíça. Pouco depois, em Frankfurt e em Munique, na Alemanha. Nesta última cidade me associei a mais de 3.500 apicultores e cientistas, cidadãos de 40 países dos 5 continentes do globo. Os países representados eram os seguintes: Afeganistão Alemanha Argélia Argentina Austrália Áustria Bélgica Brasil Bulgária Canadá Chile


Chipre Dinamarca Espanha Finlândia França Grécia Irlanda Hungria Índia Inglaterra Irã Irlanda Israel Iugoslávia Kênia Líbano Marrocos Noruega Polônia Portugal Rodésia România Rússia Suécia Suíça Tchecoslováquia Turquia.


Por espaço de uma semana inteira, de 1 a 7 de agosto, estiveram mais de 3.000 pessoas reunidas, na vasta área da Feira de Exposições, falando, estudando, discutindo – sobre quê? Sobre um inseto! Como? Um simples inseto? Sim, sobre um pequeno himenóptero, que a ciência denomina apis mellifera. Celebrava-se o 22.° Congresso Internacional da Apicultura. Os congressistas eram apicultores ou cientistas interessados em conhecimentos mais vastos e profundos sobre esse fascinante inseto, em torno do qual se tem escrito milhares de livros em todas as línguas do mundo. O nosso Brasil estava representado por uns 15 apicultores. O que para mim havia de mais interessante não eram, propriamente, as eruditas conferências, mas sim o contato pessoal com homens de 40 países, cada um com suas experiências individuais. Conversei muito com escandinavos, russos, hindus, árabes, húngaros e alguns sul-americanos. Ofereci ao Congresso três presentes: Minha novela científico-popular sobre as abelhas, entitulada “Isis”; um vidro de mel do meu apiário perto de Jundiaí, São Paulo; e um “arranha-céu” de uns 50 cm de altura, composto de 30 andares, atravessados por um corredor central e munido de duas válvulas de ventilação, arranha-céu construído por vespas brasileiras do Estado de Goiás. *** Durante todo o Congresso não se falou na famigerada “abelha africana”, porque ela não existe na Europa. Como todos sabem, desde 1956, a adamsonii se tornou um problema sério no Brasil, e, ultimamente, em toda a América do Sul. Algumas dezenas de rainhas africanas, foram introduzidas em nosso país por um cientista, com o fim de melhorar a nossa apicultura nacional. Enquanto elas estavam controladas, tudo corria bem; mas, quando, pela imprudência de um funcionário, foram soltas e invadiram São Paulo, o Brasil, e, por fim, toda a América Meridional, alastrou-se o grande problema, uma vez que a ferocidade dessa abelha não é menor que a sua produtividade. Felizmente, hoje, mais de 20 anos depois, a abelha africana já está prestando bons serviços, suposto que o apicultor saiba entender-se com ela. A Europa, embora ligada à África através do Oriente Médio, nunca sofreu dessa invasão – por que não? Até hoje ninguém soube dar-me resposta satisfatória a essa pergunta. Nem mesmo na Ásia, tão próxima da África, existe a apis mellifera adamsonii, ao menos não em sua forma agressiva, como entre nós.


No meu livro “Isis” dei o motivo da ferocidade da abelha africana, que é apis mellifera, como a chamada européia. *** Perguntei a umas dezenas de apicultores quanto mel produzia, na média, uma colmeia, por espaço de um ano; quase nenhum apicultor colhia anualmente mais de 10 quilos de mel, por colmeia; as abelhas só trabalham durante 5 ou 6 meses, ou menos, porque, nos restantes meses não havia flores e a temperatura era imprópria. No Brasil, onde existe apicultura racional, podemos colher anualmente 20-50 quilos de mel por colmeia, e as nossas abelhas trabalham 12 meses por ano. O Brasil seria o país ideal para apicultura – e, no entanto, é insignificante a nossa produção de mel. Na Alemanha os apicultores têm de alimentar as suas abelhas durante o longo inverno e, além disto, abafar as colmeias a fim de manter calor suficiente no interior. E, no entanto, é enorme o entusiasmo e o amor com que eles se dedicam à apicultura, visando mais ao prazer do que ao lucro. Pois, não é mesmo fascinante poder saborear um produto puro e sadio que, pouco antes, eram gotinhas de néctar no cálice das flores? Geralmente, o consumidor europeu gosta de saborear o mel quando em estado cristalizado – ao passo que muito brasileiro torce o nariz quando vê mel açucarado e desconfia que seja falsificado, uma vez que tantos vendedores misturam o mel com melado de engenho, glicose, ou outros ingredientes. Conheço apicultores que fervem o seu mel afim de evitar a cristalização, destruindo assim muitos dos elementos nutritivos. Não vejo nenhuma necessidade para esse procedimento. Sou apicultor há diversos decênios e sei que é possível conservar o mel tal qual saiu dos favos, em perfeito estado de liquidez.


EM ISRAEL

Terminado o 2.º Congresso Internacional em Munique, retomei o avião e voei diretamente, em pouco mais de três horas, por sobre os Alpes e o Mar Mediterrâneo, rumo a Tel-Aviv, Estado de Israel. No longo trajeto terrestre entre o aeroporto e a cidade de Tel-Aviv a Jerusalém, encontrei-me, no táxi, com um rabino judeu, que me contemplava silencioso e pensativo. Por fim, me disse vagarosamente coisas bem estranhas sobre mim mesmo, mas que não posso consignar em letra de forma. Ia a Bang-kock, e daí ao Vietnam, a fim de participar de um congresso político de pacificação na desastrosa guerra entre Vietnam e os Estados Unidos. Não tardou que entrássemos em águas de profunda Filosofia Cósmica, atingindo, por vezes, as fímbrias da mística. E, como o rabino ia em caráter de pacificador potencial entre povos beligerantes, falei-lhe de um homem que, há quase 2.000 anos, disse: “Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus”. O meu ouvinte se abespinhou um pouco ao saber que eu considerava o Nazareno como o maior gênio espiritual da humanidade, quando ele punha Moisés acima de tudo. Mas, no fim de quase meia hora de palestra filosóficomística, parece que se convenceu tacitamente da verdade das minhas afirmações. Despediu-se de mim carinhosamente, prometendo envidar todos os esforços para aplainar os caminhos da paz entre os homens de boa vontade, de cá e de lá. Ao despedir-se de mim, em Jerusalém, perguntou se eu estaria disposto a lecionar Filosofia Cósmica na Universidade Hebraica de Jerusalém. Respondi-lhe que aceitaria o convite se algum poder competente me convidasse para esse cargo. Nada mais ouvi do rabino. Em 1969, havia apenas dois decênios que Israel, após quase 2.000 anos de dispersão pelo mundo inteiro, voltara a ser um Estado independente. E em dois decênios conseguiu Israel realizar um autêntico milagre: transformou o antigo deserto árido num magnífico pomar e em vastos campos de agricultura. Máquinas gigantescas tiravam água das profundezas do solo e lançavam chuvas artificiais à grande distância, preparando a terra para o plantio. Vastos laranjais exportam seus produtos para diversos países europeus.


Os kibutzim, ou cooperativas agrícolas, são maravilhas de organização de agricultura racional. Não encontrei um mendigo nem um desempregado em Israel; todos trabalham e têm com que viver. No tempo da genial Golda Meir o país foi cortado de estradas asfaltadas de ponta a ponta. Israel é um país cercado em parte de repúblicas árabes, que continuam na sua pobreza tradicional. Os filhos de Agar, embora tenham por ascendente o mesmo pai Abrahão, parecem não ter o espírito de iniciativa como os filhos da Sarah. Durante a minha curta permanência em Israel, meditei muito sobre o estranho enigma: por que é que os judeus, que não formam nem nunca formaram 1% (um por cento) da humanidade total, têm cerca de 50% (cinquenta por cento) dos grandes gênios em todos os ramos da cultura humana? Dizem uns que essa genialidade lhes vem dos seus terríveis sofrimentos: mais de quarto séculos escravizados pelos faraós do Egito; quase um século exilados na Assíria; quase outro século na Babilônia; desde o primeiro século da Era Cristã até pouco, errando pelo mundo inteiro, sem pátria nem lar... Se o sofrimento fosse um despertador de genialidade, porque é que os povos africanos, com milênios de sofrimento e escravização, não produziram grandes gênios, ao menos não nos tempos atuais? Temos de associar ao sofrimento outro fator: uma grande disciplina e autofidelidade. O israelita é brasileiro no Brasil, alemão na Alemanha, russo na Rússia, etc. – mas não deixa de ser judeu de alma em qualquer parte do mundo. Israel está rodeado de haréns nos países árabes, mas não existe um único harém em Israel. O espírito de família unida, a fidelidade conjugal fazem parte do caráter do judeu genuíno, tanto na antiga poligamia mosaica, como na monogamia atual. Parece que a disciplina sexual favorece a genialidade cerebral; que vigora uma secreta simbiose entre sexo e cérebro.


NOS RASTROS DO NAZARENO

Jerusalém, Belém, Nazaré, Tabor, Poço de Jacó, Betânia, Getsêmane, Gólgota – que estranhas reminiscências nos evoca cada uma destas palavras... A nossa alma associa coisas belas e beatíficas a estas palavras sagradas, que estamos habituados a ler e ouvir desde a nossa infância, no lar, na escola, na igreja, por toda a parte. Vagarosamente, meditativamente, andei saboreando e sofrendo cada um destes lugares, que, decênios atrás, descrevi no meu livro “Jesus Nazareno”, mas sem os ter visto com os olhos do corpo. Tenho a impressão de que esses lugares sagrados viajam mais através de mim do que eu através deles... E todos eles envoltos num ambiente paradoxal; pois a Terra Santa da Palestina, onde o Cristo, na forma humana de Jesus, viveu alguns decênios, não pertence aos cristãos – pertence hoje aos israelitas, que não reconhecem Jesus como o Messias prometido; e pertenceu por muitos séculos aos muçulmanos, que vêem em Jesus apenas um venerável profeta. Mas, apesar dos pesares, esses lugares estão sacralmente imantados e recebem anualmente a visita de milhares de cristãos de todos os países do globo terrestre. Há, na Palestina, numerosas igrejas cristãs, conventos, mosteiros, ermidas de discípulos do Nazareno – coptos, ortodoxos, romanos, evangélicos – não importa o nome. Em Jerusalém, fiz a via-dolorosa, desde o Pretório da flagelação até ao Calvário da crucificação, lendo ou relembrando em cada etapa o que os evangelistas nos deixaram escrito sobre esses estranhos acontecimentos, e saboreando in loco o seu eterno conteúdo. Muitos dos estágios da via sacra estão assinalados com placas ou tabuletas comemorativas: primeira queda debaixo da cruz, segunda queda, encontro com Verônica, com Simão de Cirene, etc. No princípio da via crucis está a “Casa de Verônica”. É um pequeno recinto meio subterrâneo, que recebe luz só por uma grade de ferro ao nível da rua. Dentro do recinto há uns bancos toscos fixos nas paredes. Pedi permissão às irmãs francesas, ao lado da “Casa de Verônica”, para poder fazer a minha meditação nesse recinto sagrado, que, durante quase 20 séculos, tem sido visitado por pessoas sedentas de espiritualidade.


Entrei – e não tive mais vontade de sair. As auras ou vibrações místicas deixadas por milhares de pessoas que aqui oraram e meditaram, se apoderam do visitante e o permeiam e imantizam a tal ponto que todo o mundo externo desaparece e todos os pensamentos se diluem, permanecendo tão-somente a consciência, ou seja, a alma isolada em total vacuidade do mundo material. Deixar a vida terrestre nesse recinto sagrado não seria morrer, mais viver mais intensamente em outras regiões. Com Maria e Marta e Lázaro estive em Betânia, na “Casa da Graça”... Nada vi de Lázaro, nada ouvi de Marta – só me abismei no silêncio de Maria, porque estava presente o Mestre – e que discípulo poderia falar na presença do Mestre?... Não falei – calei-me... Quem falava era ele, só ele – e minha alma ouvia em silêncio... Depois, quando o Mestre não estava mais, perguntei a Maria porque ela, Marta e Lázaro, tão amigos do Nazareno, não apareceram no Calvário nem na manhã da ressurreição, como os outros discípulos. Maria não falou; entregou-me em silêncio um rolo de pergaminho, parte dos livros sacros dos Essênios. Minha alma sintonizou com a alma de Maria, e cheguei a saber do porquê da ausência do trio de Betânia: eles, como Essênios altamente iniciados, não acreditavam em morte real. Também, como poderia haver essa coisa absurda chamada “morte”, quando a Vida está onipresente? E que lugar teria a ausência da vida (morte) na onipresença da Vida? Onde estaria a treva na plenitude da luz?... Aliás, lá estava Lázaro como prova viva da não-existência da morte. *** Um dia, a meio caminho do Mar Morto, a polícia de Israel me interceptou a passagem; tive de voltar sem ter visto as águas betuminosas desse lago estranho, a centenas de metros abaixo do nível do Mediterrâneo. É que aviões israelenses estavam bombardeando as bases árabes do outro lado do Mar Morto. A Terra Santa é, de fato, um constante campo de batalha desde a criação do Estado de Israel. Israel, ao que parece, está disposto a recuperar toda a área da antiga “terra da promissão”, que foi de seus antepassados. Esta fé religiosanacional lhe dá irresistível entusiasmo e iniciativa. Acresce que Israel luta com as armas mais modernas e eficientes e possui ótimos chefes militares, sobretudo na aeronáutica, ao passo que os países árabes são desunidos, mal dirigidos, sem disciplina, e não possuem o entusiasmo ou fanatismo espiritualnacional dos israelitas. *** Numa dessas tardes, em Jerusalém, fui acompanhar um silencioso rabino, que, de barba preta, envolto na sua austera indumentária negra e com um chapéu alto na cabeça, se dirigia ao histórico “muro das lamentações”, uma grande


muralha que se estende por detrás da mesquita de Omar, mesquita que, pouco depois da minha visita, foi incendiada. Há quase 2000 anos que os judeus, sobretudo seus chefes religiosos, fazem a sua lamentação diante deste muro. Entregaram-me um bonezinho de papel preto, que coloquei na cabeça, a fim de poder falar com Deus, no meio dos que invocam Yahveh para que mande o Messias e restabeleça as glórias de David e Salomão. Quando se vê nas ruas de Jerusalém um homem sério, silencioso, que não fala com ninguém, com duas trancinhas de cabelo encaracolado de cada lado da cabeça, então é certo que aí está um típico rabino, que vai ao muro das lamentações, para chorar e para mentalizar o Messias de Israel. Os lamentadores, os homens do lado esquerdo, as mulheres do lado direito, estão em pé, a uns dois passos da muralha, muitos com um livrinho na mão, do qual recitam textos com voz chorosa e monótona, balançando ligeiramente e tocando, de vez em quando, o muro com a cabeça. Pergunto a mim mesmo se esses brados, quase bimilenares, não seriam capazes de produzir o Messias que eles esperam... Acho possível que uma vibração constante, altamente potencializada, acabe por se materializar. Não é que Moisés materializou mentalmente o Anjo Exterminador, que matou os primogênitos dos egípcios?... *** Em Nazaré fui visitar a casa de Maria, onde “o Verbo se fez carne”. Com estranheza ouvi que a anunciação referida por Lucas se deu numa espécie de gruta ou porão da casa, onde Maria estava em meditação (talvez em êxtase ou samadhi), de no meio de sacos de cereais e outros mantimentos. Por cima dessa gruta há um painel representado a visita do anjo Gabriel à Virgem. Pela primeira vez vi o anjo representado sem asas; é a figura de um jovem humano, de mãos erguidas, em atitude de dar algo a alguém. Do outro lado está Maria, com as mãos baixas e palmas voltadas para cima, em estado de receber aquilo que o jovem lhe dá. Entre o jovem doador e a jovem receptora paira o símbolo radiante do Espírito Santo, o “poder do alto”, como que uma ponte de luz entre o doador e a recebedora. Contemplei longamente esse símbolo místico e lembrei-me do capítulo do meu livro “Setas na Encruzilhada”, onde fiz ver que José é o pai metafísico de Jesus. Mateus e Lucas negam explicitamente a paternidade física de José, mas o fato de traçarem longas genealogias dos ascendentes de Jesus – Mateus desde Abraão, Lucas desde Adão – insinua que existe uma ligação real de paternidade entre José e Jesus; do contrário, essas genealogias não teriam sentido algum. Fiz ver, no citado livro, que existe essa paternidade metafísica – real, embora não material – e em Nazaré vi, pela primeira vez, representada artisticamente, a minha concepção. O autor desse painel deve ter sido um


grande intuitivo, ao representar o Gabriel, isto é, o varão (gabri) de Deus (El) na forma de um jovem humano, e não de uma entidade angélica. Por via de regra, como explanei no citado livro, e melhor ainda no livro “A Nova Humanidade”, a concepção comum se faz via espermatozoide-óvulo; mas, em casos excepcionais, é ela possível via verbo-óvulo. O radical de “verbo” e de “vibração” é o mesmo. Certa vibração, astral ou espiritual, pode causar fecundação, mesmo que na zona do consciente não haja eco desse acontecimento. *** Há um grande contraste entre a bela Galiléia e a árida Judéia. Tomei um banho gostoso no lago de Tiberíades [1], chamado também o “mar da Galiléia”. E bem merece o nome de mar; dificilmente se vislumbra o outro litoral, da tão largo que é. Nunca vi tanto peixe como neste lago. Sendo que o nosso restaurante, onde nos serviram o “peixe de São Pedro”, ficava à beira do lago, jogávamos restos de comida às águas – e logo enorme cardume de peixes se precipitava sobre o alimento. Devia mesmo ser gostoso ser pescador, como foram muitos dos discípulos de Jesus. -------------[1] Este belo lago, em cujos arredores se passou em grande parte a atividade pública de Jesus, fica 212 m abaixo do nível do Mediterrâneo; mede 165 km2 de superfície, 21 km de comprimento, 13 km de largura e 49 m de profundidade em alguns lugares.

Para lembrança levei umas pedras lisas e roliças do fundo do lago de Jesus e de seus primeiros discípulos. *** Atravessando a Samaria, cheguei ao histórico poço de Jacó, onde Jesus pediu água à samaritana e lhe falou da “água viva”. Bem dizia a samaritana que “o poço é fundo”, pois tem nada menos de 45 metros. Relembrando o episódio do Evangelho, lancei o balde, preso a uma corda, às águas e bebi da mesma água que Jesus bebeu, há quase vinte séculos. E levei comigo uma garrafa dessa água, que é de sabor muito agradável. Não longe daí fica o Tabor, com o seu cume arredondado, onde o Mestre se transfigurou, entre Moisés e Elias. Fiz uma longa meditação, ou melhor, sintonização crística, e quase tive vontade de dizer com Pedro: “Que bom que é estarmos aqui!” Quando o Mestre desceu do Tabor, refere o Evangelho, encontrou ao sopé do monte muito povo e nove dos seus discípulos, tentando expulsar um vampiro obsessor, que maltratava um menino; mas não conseguiram nada. Jesus, em face de tamanha falta de fé, rompeu nestas palavras estranhas: “Ó geração


incrédula e perversa! Até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei?”... São palavras de quem caiu do céu para dentro do inferno. Toda a vez que o homem regressa do mundo divino do êxtase da luz e recai ao mundo humano das trevas, tem vontade de repetir estas palavras do Mestre. Depois duma hora de intensa sintonização espiritual, a gente, no princípio, não compreende mais o mundo dos homens – desses homens que se têm em conta de muito sensatos. A que vem toda essa palhaçada, essa ridícula comédia? Por que essa louca correria de norte ao sul, de leste a oeste? Por que toda essa desenfreada caça a dinheiro e prazeres? Por que toda essa gritaria de energúmenos civilizados? Por que sempre ganhar e gastar – para depois morrer, no marco zero? Que sentido tem a vida desses sonhadores de sonhos e caçadores de sombras? “Até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei?”... O homem regressando dos céus de Deus para os infernos dos homens e dos demônios, se sente desambientado, estranho nesta terra. *** No monte das bem-aventuranças, no dia 15-8-1969. Aqui sobre uma destas verdes colinas de Kurun Hattin, não longe do lago da Galiléia, foi promulgada, há quase vinte séculos, a Carta Magna do Reino de Deus sobre a face da terra, o chamado Sermão da Montanha. Dele disse Mahatma Gandhi: “Se todos os livros sacros da humanidade se perdessem e se salvasse tão-somente o Sermão da Montanha, nada estaria perdido”. Nele viu o libertador da Índia confirmado o seu conceito de ahimsa (nãoviolência) e sua satyagraha (apego à verdade) – e com estas duas armas secretas libertou Gandhi o seu país, sem derramar uma gota de sangue, fato único na história da humanidade. Armas secretas? Não! Alma em lugar de arma. O ego humano considera a arma como símbolo de força – mas o Eu divino no homem sabe que arma é sinal de fraqueza, e alma é sinônimo de força. Sentei-me sobre uma pedra, abri o Novo Testamento, Evangelho segundo Mateus, e li vagarosamente, para mim mesmo: “Bem-aventurados os pobres pelo espírito – porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os tristes – porque eles serão consolados.


Bem-aventurados os mansos – porque eles possuirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede da justiça – porque eles serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos – porque eles alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração – porque eles verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores – porque eles serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça – porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem e perseguirem e caluniosamente disserem de vós todo o mal, por minha causa – alegrai-vos e exultai, porque grande é a vossa recompensa nos céus.” Fechei o livro, fechei os olhos, eclipsei o pensamento – e fiquei somente com a alma aberta e consciente... E ouvi no silêncio de minha alma o silêncio de Deus... Vi o Mestre sentado sobre uma das colinas de Kurun Hattin... Ao redor dele seus discípulos... Mais além, pelas fraldas das colinas, a variegada multidão dos outros ouvintes, “vindos da Galiléia, da Decápole e de Jerusalém”... Havia no ar matutino um quê de indizível sacralidade, como se fosse a madrugada virgem do mundo, aljofrada ainda do orvalho do Gênesis – fiat lux... Abismei-me em profunda meditação... Quando voltei a mim, olhei em derredor – mas o Mestre não estava mais. Desci das colinas e fui seguindo rumo ao litoral florido do lago de Tiberíades. Cheguei a Mágdala (Migdála, dizem eles lá). À beira do caminho passei por um monumento rústico, em forma de torre; disseram-me que ali estivera a casa de Maria Magdalena, essa ardente discípula do Nazareno, a quem foram perdoados os seus muitos pecados porque muito amou... *** Ainda nesse mesmo dia, 15-8-1969, sentei-me sobre as ruínas da sinagoga de Cafarnaum, lendo o capítulo 6 do Evangelho de João, sobre “o pão vivo que desceu do céu”. Da sinagoga do tempo de Jesus restam poucas colunas redondas, uma em pé, outras no chão. Ao lado das ruínas há uma igreja nova.


Não há no Evangelho passagem mais enigmática do que este capítulo 6 do Evangelho de João. As igrejas dogmáticas entendem que Jesus prometeu, e mais tarde, na santa ceia, realizou um processo misterioso, que os teólogos chamam “transubstanciação”. As igrejas evangélicas, em geral, acham que se trata apenas de um belo simbolismo, mas que não houve nenhuma transformação do pão e do vinho no corpo e sangue de Jesus. Entretanto, as palavras do Nazareno não favorecem nem esta nem aquela opinião. “As palavras que vos digo são espírito e são vida – a carne de nada vale”. “Isto vos é pedra de tropeço? E que direis quando virdes o Filho do Homem subir aonde estava antes? Estas últimas palavras dão a chave para a solução do mistério. Os ouvintes entendiam por “corpo” ou “carne” uma matéria física, uma facticidade material de carne, sangue, osso, nervos, epiderme, etc.; Jesus, porém, não entendia por “corpo” e “sangue” essas materialidades, mas sim a realidade do seu corpo, que não é material. Não existe nenhum corpo material, nem corpo astral, nem corpo etérico – só existe o corpo real. Ninguém pode ver e tanger o corpo real, que não é objeto de percepção sensorial, nem mesmo de análise intelectual – o corpo real é objeto de intuição espiritual. O que, no dia da ascensão, subiu às alturas, até se subtrair à visão dos expectadores, era o corpo real de Jesus, que aos olhos de seus discípulos parecia ser material. Segundo a nossa ciência nuclear de hoje não existe matéria como matéria, nem existem os 92 elementos da química – existe tão-somente a Luz Cósmica, absolutamente invisível e intangível. Esta Luz é a única realidade física, ao passo que os elementos são apenas manifestações parciais, facticidades transitórias dessa única realidade permanente. Todas as coisas do Universo são lucigênitas, e todas podem ser lucificadas. Jesus, em Cafarnaum, faz ver aos cépticos que a realidade do pão será transformada na realidade do seu corpo – mas a materialidade (facticidade) do pão não será transformada na materialidade (facticidade) do seu corpo. Há uma transubstanciação real, mas não uma transubstanciação material. Aliás, que efeito produziu nos discípulos do Nazareno a ingestão do pão e do vinho consagrados? Se efeito houve, foi totalmente negativo: Judas, assim que deglutiu o bocado de pão, consumou a planejada traição, e depois se suicidou [2]. Pedro nega três vezes seu mestre. E todos, à exceção de um só, fugiram covardemente, no momento do perigo – belos neo-comungantes... Tristes neosacerdotes... -------------[2] O texto grego não diz que Judas se “enforcou”, mas sim que se “precipitou”, isto é, lançou-se de um penhasco ao abismo, onde, diz o texto, “arrebentou ao meio e se difundiram todas as suas vísceras”. Como se explicaria isto se se tivesse enforcado?


Só mais tarde, no Pentecostes, é que eles comungaram em espírito e em verdade, não a materialidade de Jesus, mas a realidade do Cristo... “As palavras que vos digo são espírito e são vida”... Somente em nossos dias, em que a física se torna cada vez mais metafísica, é possível criar uma base para a compreensão das palavras que Jesus proferiu na sinagoga de Cafarnaum. Estes e outros pensamentos me invadiram, quando estava sentado sobre as ruínas da sinagoga de Cafarnaum, onde o maior dos metafísicos-místicos proferiu verdades tais que uma humanidade de experiência primária não pôde ainda compreender. Somente na Universidade Cósmica do Cristo serão devidamente compreendidas estas grandes revelações. Falar é bom – calar é melhor. Pensar é necessário – intuir é suficiente. Enquanto o homem é apenas ego-pensante está soletrando o abc na escola primária da sua pobre personalidade. Só quando for cosmo-pensado é que ingressa na Universidade da sua individualidade espiritual. E quando, um dia, depois de ser ego-pensante e cosmo-pensado, for cosmo-pensante, então compreenderá plenamente o que o Cristo quis dizer com as misteriosas palavras sobre o “pão vivo que desceu do céu”.


PALMILHANDO A ESTRADA JERUSALÉM-EMAÚS

Num desses dias, em Jerusalém, fiz do passado o presente, e revivi o que foi vivido 20 séculos atrás. Era o ano 33, dia 9 de abril, primeiro dia da semana pelas 4 horas da tarde. Dois homens vinham de Jerusalém e se dirigiam rumo oeste, em demanda duma aldeia por nome Emaús, distante da capital uns 12 quilômetros. Era na tarde da primeira Páscoa – mas na alma desses dois era ainda Quaresma, luto e tristeza. Havia uns três anos que os dois tinham vindo de Emaús a Jerusalém. Cheios de entusiasmo e expectativa, tinham seguido a trajetória de um profeta que viera de Nazaré da Galiléia. Esse homem falava como nunca ninguém falara, focalizando sempre “o reino de Deus”, que, como ele dizia, estava dentro de cada homem como tesouro oculto e devia ser manifestado. Os dois não faziam parte do círculo íntimo dos doze companheiros permanentes do profeta nazareno, mas eram do numero dos 70 que, frequentemente escutavam a estranha mensagem do Galileu. Mas agora, três anos depois... Agora, lá se fora o sonho dourado deles, que acabara em lúgubre pesadelo e tremenda decepção... O grande profeta fôra morto, condenado ao ignominioso suplício da crucificação, por exigência dos chefes espirituais da sinagoga de Israel, que consideravam o Nazareno como falso Messias... Pela manhã desse terceiro dia após a morte do profeta restava ainda um tênue vislumbre de esperança aos dois, porque ele prometera “ressuscitar”; e eles haviam esperado, entre esperanças e dúvidas, esse incrível acontecimento. Mas agora ia terminar o terceiro dia – e nada de ressurreição. Apagou-se na alma dos dois a derradeira centelha de fé e de esperança no Nazareno; mas o seu amor sobrevivia ao naufrágio universal... Sim, os dois continuavam a amar o estranho profeta, e nunca deixariam de amá-lo. Com a alma cheia de amor e vazia de fé e esperança, regressavam eles a seus lares. Apressadamente deixavam Jerusalém, cenário de tantas esperanças e de tanto desespero.


Já iam a meio caminho entre Jerusalém e Emaús, conversando em voz baixa sobre os últimos acontecimentos relacionados com o profeta de Nazaré. Nisto ouviram passos de alguém que vinha de trás e seguia o mesmo caminho. Calaram-se os dois e retardaram o passo, para deixar passar de largo o viandante e continuarem depois a ruminar os seus dolorosos cismares. Quando estamos com a alma em chaga viva, sofridos de nós mesmos, não gostamos de falar com estranhos, não queremos saber de ninguém que possa profanar o sacrário do nosso sofrimento. Queremos solidão e silêncio... Mas o estranho que vinha de trás, em vez de passar adiante, como os dois esperavam, também retardou o passo e emparelhou com eles. E sem mais nem menos tentou invadir o santuário das dolências deles, perguntando: – Que conversas são essas que entretendes entre vós? E por que andais tão tristes? Os dois não responderam. Estavam intimamente revoltados com essa semcerimônia do desconhecido. Mas, como este insistisse com perguntas e queria saber o porquê das suas tristezas, um dos dois, por nome Cleófas, quebrou o silêncio, perguntando: – Como? Será que tu és o único forasteiro em Jerusalém e ignoras o que lá aconteceu? – Que foi que aconteceu? – perguntou o estranho. Os dois se viram obrigados a lhe dar explicação; do contrário, nunca mais se veriam livres dele. – Aquilo, de Jesus de Nazaré – respondeu Lucas, ladeando a questão, sem vontade de entrar em pormenores. “Aquilo” é uma palavrinha neutra, inofensiva, eufemística: mas está em lugar de algo muito amargo e doloroso. Está em lugar de “a morte trágica do profeta de Nazaré”. Quando estamos assim, intimamente chagados, evitamos instintivamente pôr o dedo na ferida aberta, mencionando diretamente o motivo da nossa tristeza; preferimos usar de circunlóquios vagos que não reabram a chaga... “Aquilo de Jesus de Nazaré”... Depois de longa pausa e em face da expectativa do estranho, Lucas se anima finalmente a dizer mais explicitamente: – Ele era um grande profeta, poderoso em palavras e em obras, perante Deus e todo o povo...


É esta a primeira e mais concisa biografia que temos de Jesus: era um profeta, um arauto de Deus; tudo que dizia e fazia revelava poder; e isto perante todo o povo... Mas o estranho insiste em querer saber mais a respeito desse Jesus de Nazaré. Ao que Cleófas resolve narrar com mais detalhes a tragédia do Gólgota. Mas o que ele diz, segundo o texto evangélico, é um verdadeiro cipoal de anacolutos, fragmentos de frases, reticências e lacunas, que são um retrato fiel do estado psíquico em que se encontrava o narrador. Quando estamos assim, interiormente abalados, pensamos e sentimos tão intensamente que, não raro, nos esquecemos de verbalizar o que sentimos – como se os outros pudessem ver e ouvir os nossos pensamentos não exteriorizados... – Mas – prosseguiu o narrador – os nossos magistrados e sacerdotes entregaram o Nazareno à pena de morte. Calou-se. Aqui deve ter vindo uma longa pausa, durante a qual os três andavam em silêncio pela estrada Jerusalém-Emaús, enquanto as sombras dos escuros e esguios ciprestes que margeavam o caminho alongavam cada vez mais as suas sombras, contribuindo para a melancolia geral. – Nós esperávamos – prosseguiu Lucas – que ele fosse o libertador de Israel... Nova pausa e reticência. – Mas, agora já é o terceiro dia... Não percebem que nada disto dá sentido lógico para uma pessoa não devidamente enfronhada no assunto. O narrador omite diversos fatos intermediários, sem os quais o resto não tem sentido. Deveria ter explicado ao desconhecido que o Nazareno prometera ressuscitar ao terceiro dia, e que isto não acontecera. Tudo isto é omitido, mas intensamente pensado – e sofrido. – É verdade – interveio o outro, também sem estabelecer concatenação entre sequência dos acontecimentos. – Algumas mulheres do nosso meio foram ao sepulcro, de madrugada, e disseram ter visto uns anjos, que diziam que ele vivia; mas a ele mesmo não viram... Pouco a pouco, como se vê, os dois peregrinos falam com mais desembaraço e fervor, desabafando a sua mágoa perante um ouvinte atento e interessado. As cinzas que cobriam ligeiramente a brasa viva do seu amor é soprada por estas palavras, e a fagulha está para romper em vívida chama... É tão dolorosamente suave recordar momentos felizes... O estranho já lhes era menos estranho... Quem participa das nossas mágoas não é mais um estranho.


De repente, o desconhecido parou diante deles e os fez parar também; encarou-os bem de frente e disse: – Ó homens sem critério e tardos de coração!... Os dois estremeceram como se fossem arrancados subitamente de um sono. Que atrevido, esse desconhecido! Em vez de lhes dar condolências pelos seus sofrimentos, os censura asperamente, taxando-os de homens sem critério e vagarosos de coração, para compreenderem tudo que os profetas tinha dito do Nazareno. – Não devia então o Cristo sofrer tudo isto e assim entrar na sua glória? Com este repentino trovão acabaram os dois de despertar totalmente. Sentiam em si algo como um renascer de esperanças... Algo como se a plantinha murcha de sua alma erguesse a cabecinha ao cair de um orvalho refrigerante... Como? O Nazareno devia sofrer tudo que sofreu? E tudo isto fora predito?... O fato de ter sido morto não era então um argumento contra a sua missão divina, mas antes uma prova a favor?... Se Moisés e os profetas predisseram tudo isto, ainda há esperanças... Não está tudo perdido... Em meditativo silêncio andaram os dois saboreando o ressurgimento das suas esperanças... Nisto chegou o trio a uma bifurcação do caminho. O estranho fez menção de enveredar por um atalho, despedindo-se dos dois. Estes, porém, o seguraram pelo braço e o puxaram para seu caminho, dizendo: – Fica conosco, porque o dia declinou e já vai anoitecendo... No princípio não o queriam ver em sua companhia; mas agora não querem mais ficar sem ele. Quando alguém nos consola em nossas mágoas e nos dá novas esperanças, é amigo querido. Esperavam passar boa parte da noite com ele, falando do profeta de Nazaré. O estranho não pôde senão aceitar o convite feito com tamanha veemência. E foi com eles a Emaús. Já era noite, quando lá chegaram. Em assa de Cleófas tomaram frugal refeição, na varanda. O estranho foi convidado para ocupar a cabeceira da mesa, e, na qualidade de hóspede querido, lhe competia “partir o pão” e distribui-lo aos companheiros. Neste momento, abriram-se-lhes os olhos da alma e eles o reconheceram como sendo o próprio Jesus, redivivo... E, neste mesmo momento, ele desapareceu.


Os dois se entreolharam, estupefatos, e disseram: Não nos ardia o coração no peito, quando nos falava dos profetas?... Mas, os nossos olhos estavam tolhidos... Ainda nesta mesma noite, os dois regressaram a Jerusalém. Não levaram duas horas, como antes; mas voltaram de corrida, empolgados pela alegria e pelo entusiasmo. Chegados a Jerusalém, se dirigiram imediatamente ao Cenáculo, onde os demais discípulos do Nazareno estavam reunidos, e bradaram: – Vimos o Senhor, e eles nos disse isto e isto... – Nós também o vimos aqui! – exclamaram os outros. E fundiram-se duas grandes alegrias – nessa tarde da primeira Páscoa da cristandade... No dia 9 de abril do ano 33... *** Relembrei meditativamente tudo isto no dia 14 de agosto de 1969. Os meus olhos físicos não viram o Nazareno nem os dois discípulos dele, quando a Quaresma se lhes convertera subitamente em Páscoa. Mas eu vi os três, e os vejo ainda, quando se dissipam as barreiras fictícias de tempo e espaço... No século passado, uma vidente na Alemanha, Ana Catarina Emmerich, acompanhava Jesus em todos os seus caminhos, sem sair da sua terra. Ainda há poucos anos, outra vidente, Teresa Neumann, de Konnersreuth, presenciava periodicamente todos os acontecimentos da vida, morte e ressurreição do divino Mestre. Quando a nossa consciência ultrapassa o véu ilusório das facticidades, e entra na luz verdadeira da Realidade, nada é passado e futuro – tudo é presente; tudo é aqui e agora. Não foi há quase 2000 anos, em terras longínquas, que se deram estes episódios; é aqui e agora que eles estão acontecendo... Quando sairemos deste mundo de facticidades ilusórias? Quando entraremos no mundo da Realidade verdadeira? Entrar? Não! Já estramos neste mundo – mas estamos nele inconscientemente. Quando conscientizarmos a Realidade, que agora nos é


inconsciente, então haverá um novo céu e uma nova terra, e o reino de Deus será proclamado sobre a face da terra...


POR ENTRE OS ROCHEDOS DO LÍBANO

Em Beirute fomos convidados por um eremita a passarmos com ele um dia em seu ashram – que não existe. O que existe naquelas montanhas secas e rochosas, perto de Beirute, são umas pedras enormes, formando cavernas naturais, abrigos rústicos, onde um eremita idoso, Mikhail Naimy costuma passar longos períodos de silêncio e solidão. Por entre esses rochedos escreveu ele o livro enigmático “Mirdad”, ultimamente publicado em português. Ali conversava ele com Khalil Gibran, autor de livros misteriosos como “O profeta”, “O Filho do Homem”, e outros. Combinamos – ele, eu e mais um companheiro de viagem – passarmos 12 horas completas nessa selvática Tebaida. Infelizmente, no dia marcado para o nosso Retiro, Naimy se viu impedido de nos acompanhar, porque tinha de ir ao encontro de uma pessoa de sua parentela. “Deixa os mortos enterrar os seus mortos”, pensava eu comigo; mas ele não pensava assim... Entretanto, teve a gentileza de nos mandar levar, ao amanhecer, até à boca das cavernas, e lá nos deixou, prometendo vir buscar-nos ao anoitecer. Meu companheiro e eu subimos a pé, lentamente, cautelosamente, através de um mundo de espinhos e abrolhos, saltando de pedra em pedra, até atingirmos a zona dos grandes rochedos, alguns dos quais formavam espécie de casas que ofereciam suficiente abrigo contra o sol e a chuva. Chuvas, aliás, não há nessa zona, a não ser durante certos meses do ano. Cada um de nós levava consigo uma garrafa d’água, pão e uvas. Cada um escolheu a sua caverna e separamo-nos para o resto do dia. Ficamos 12 horas a sós conosco mesmos e com Deus, em pé, sentados ou deitados, na mais profunda solidão, interrompida apenas pelo chiar de umas cigarras e os pios de uns passarinhos. Construímos, em São Paulo, um ashram. Fizemos o possível para dar conforto, sem confortismo. Mas, mesmo o conforto que proporcionamos aos que quiserem fazer o seu Retiro, coletivo ou individual, me dá sempre um tal ou qual remorso de consciência. Na antiga Tebaida do Egito, nos desertos da Palestina, nas florestas da Índia, nas cavernas do Himalaia, não havia 1% do conforto que nós estamos dando em nossos lugares de Retiro Espiritual.


Os rochedos do Líbano, onde passamos um dia, me pareciam ser o único lugar digno para entrar em comunhão com Deus. Não havia o menor vestígio de civilização humana. Nenhum turista jamais profanara esses santuários da natureza. As auras eram virgens e puríssimas, como no dia do Gênesis. O silêncio e a solidão são poderosos catalizadores espirituais. São também fatores catárticos, que purificam todas as impurezas do nosso ego. O ego vive no barulho e do barulho – e morre no silêncio. Quando falta ao homem-ego o seu querido barulho diário, começa ele a agonizar lentamente, e, se não encontra zonas barulhentas, acaba por morrer, afogado no Oceano Pacifico do silêncio, como peixe fora da água, como ave fora do ar... E, depois da morte do ego, nasce o Eu divino, que ama o silêncio como o próprio Deus, que é eterno e infinito Silêncio. Nos meus livros “Escalando o Himalaia” e “A Voz do Silêncio”, escrevi diversos capítulos sobre o silêncio. Goldsmith, no seu livro “A Arte de Curar pelo Espírito”, menciona o silêncio como fator predisponente para curar enfermidades de toda espécie. Parece que existe até uma silêncio-terapia. Não se trata, naturalmente, do simples fato objetivo do silêncio, mas duma atitude subjetiva de silenciosidade. Trata-se do silêncio-presença, e não do silêncioausência. Do silêncio-plenitude, e não do silêncio-vacuidade. Anos atrás, quando eu fazia as minhas viagens semanais São Paulo-Rio, de ônibus, a fim de dar aulas nessa última cidade, assisti uma vez, de ônibus, à conversa de um casalzinho, do outro lado do estreito corredor, falando 7 horas e tanto, do início ao fim da longa jornada, falando, falando sem dizer nada. Falar me parece ser uma espécie de febre cerebral, ou uma comichão bucal; quanto mais a gente se coça mais coceira dá. Falar é o melhor modo para não ter pensamentos, ou, pelo menos, para não deixar crescer e desenvolver um único pensamento decente. Quem muito fala pouco pensa. É como se alguém passasse constantemente a enxada pelo chão, raspando, raspando, e cortando qualquer plantinha que, porventura, quisesse brotar. Nada terá tempo para brotar e crescer. Falar afugenta o pensamento. Pensar afugenta a intuição. Só quem não fala nem pensa, mas se conserva plenamente vígil, esse receberá intuição, inspiração, revelação. As grandes inspirações são filhas do silêncio verbal e mental. Compreendo porque Einstein andava quase sempre silencioso, e evitava quanto possível fazer e receber visitas.


Quando o homem se habitua ao silêncio auscultativo, entra ele na “comunhão dos santos” e verifica que o Universo todo é um deserto povoado, uma vacuidade sonora... Perguntaram ao grande Heráclito de Éfeso o que ele aprendera em tantos decênios de filosofia; respondeu: “Aprendi a falar comigo mesmo”. Isto é, falar sem palavras, em espírito e em verdade. Por vezes, tenho de passar pelas ruas desta ruidosa Paulicéia, acompanhado de pessoas das minhas relações. Uma dessas pessoas, quando eu não falo durante um ou dois minutos, pergunta-me se estou zangado; se passo cinco minutos em silêncio, pergunta se estou doente, e está disposta para me levar ao médico. É esta a estranha filosofia do homem-ego: para ele, falar é saúde, calar é doença. Deus, que é infinito silêncio deve, estar mesmo muito doente. A arte da calar dinamicamente é tão grande que nenhum homem-ego a aprende. Quem nunca mergulhou profundamente no silêncio-plenitude só pode falar vacuidades, talvez brilhantes vacuidades, como bolhas de sabão. *** Um dia, no Sítio Nirvana, estava eu plantando umas estacas de astrapéias e outros arbustos de flores melíferas, para o nosso apiário. Estava bem sozinho, e cosmo-pensado. E eis que uma voz de dentro me disse, em grande silêncio: Quando o homem fala, Deus se cala. Quando o homem se cala, Deus fala. E repetiu muitas vezes estas palavras sem som, enquanto eu continuava a trabalhar. O melhor tempo para ouvir a voz cósmica é quando faço algum trabalho físico que não exige muito pensamento; assim, o campo está livre para a invasão do além – do grande além de dentro. Por fim, a voz perguntou: Que é ser calado? Eu quis responder, por conta do meu ego, que estar calado é não falar, nem pensar, nem querer nada; é fazer esse tríplice silêncio, como tenho dito nos meus livros e nas minhas aulas de filosofia univérsica. Mas a voz inaudível me antecipou a resposta, com uma nova pergunta, também sem som:


Sabes o que é o calado de um navio? O calado de um navio? respondi, sem falar. O calado de um navio é a medida do seu afundamento na água; quanto mais carregado está o navio, mais calado tem, mais afunda na água... Por algum tempo, mergulhei num grande vácuo... Depois a voz cósmica, falando de dentro e sem som, me fez ver que calar quer dizer afundar-se no Infinito, no Eterno, no imenso Oceano da Realidade, na Divindade. Só quando o homem está assim, afundado em Deus, é que ele está realmente calado. E, para que o homem tenha esse calado de profundeza, deve ele estar devidamente carregado de espiritualidade. O homem nãoespiritual é superficial, sem calado suficiente, flutuando e boiando na superfície das coisas ilusórias do ego... Assim dizia a voz silenciosa de dentro. E assim minha alma ouviu em silêncio, quando cosmo-pensada. Depois comecei a pensar, por minha conta, coisas como estas: Isto calou fundo... os soldados avançaram de baioneta calada... E verifiquei que calar que dizer abaixar, aprofundar. E perguntei a mim mesmo: Onde foram os portugueses buscar esta palavra: calar? Quando em latim não existe, mas é tacere? E lembrei-me de outras palavras portuguesas que não vêm do latim, como nada, que em sânscrito quer dizer Infinito; e desmaiar, que quer dizer perder a noção da maya, palavra sânscrita para natureza. E lembrei-me dos livros sacros, que dizem: Cala-te – e saberás que eu sou Deus... E mergulhei nas profundezas do Oceano Pacífico da Divindade, unindo o meu silêncio humano ao silêncio de Deus... *** Ao entardecer, saímos das nossas cavernas rochosas e descemos a rampa do morro, ao caminho, onde, em breve, apareceu o carro, que nos ia levar de volta a Bikfaia, parte montanhosa de Beirute, onde estávamos hospedados. Sentíamo-nos tão leves, tão puros, tão etéreos, e não tínhamos o menor desejo de deixar o nosso divino nirvana, para voltarmos ao humano sansara.


NOS TÚMULOS DOS FARAÓS

A impressão que tive ao sobrevoarmos o delta do Nilo rumo ao Cairo, foi desoladora. O Egito me parecia um imenso deserto de areia e de pedras, entremeados de alguns bosques de tamareiras. Perto da capital se estende o deserto de Gizeh, onde três grandes pirâmides emergem do areal, guardadas pela enigmática esfinge, que com olhos vácuos, plenos de eternidade, contempla os desertos em derredor. Ninguém sabe dizer ao certo o que significam esses gigantescos monumentos de pedra. Quando, por quem e por que foram construídas as pirâmides? A mais alta mede quase 150 metros. E por que essas câmaras mortuárias em seu interior? E esses corredores, estreitos e escuros, que dão para as câmaras? Nessas câmaras jaziam, outrora, as múmias, que se acham agora no museu do Cairo, e alhures. As câmaras parecem irradiar, até hoje, algo equidistante de matéria e de espírito. Será que existe uma radioatividade astral? Pedi a meu companheiro que me deixasse sozinho numa dessas câmaras mortuárias, a fim de auscultar, através de 4.000 anos, algo da presença dos que aqui viveram e morreram. Se tempo e espaço fossem coisas reais, seria absurdo essa tentativa; mas nós sabemos que a Realidade é toda aqui e agora, embora as facticidades sejam distanciadas por tempo e espaço. Quem consegue conscientizar devidamente a Realidade, transforma em propínqua simultaneidade as mais longínquas sucessividades. Assim como, numa roda girante, todas as periferias sucessivas são simultâneas no centro imóvel do eixo, assim estão o passado e o futuro atomizados no eterno e imóvel presente. Todos os Versos estão presentes no Uno do Universo. Não é necessário ver, ouvir, tanger, pensar – basta intuir e ser cosmo-pensado – e tudo que aconteceu milênios atrás está acontecendo aqui e agora. Estava eu com vontade de passar uma noite, sozinho, numa dessas câmaras mortuárias das pirâmides, como fez Paul Brunton; mas não sabia se estava devidamente encouraçado com armas espirituais para resistir à possível ofensiva do mundo astral, que parece ser extremamente denso nesses recintos milenares.


Essas câmaras parecem saturadas de energia astral, ou que outro nome tenha. O silêncio profundo e prolongado potencializa grandemente a nossa sensibilidade. Quando todos os ruídos externos – materiais, mentais e emocionais – morrem, então o silêncio começa a falar. E do seio do silêncio nasce uma voz cuja plenitude plenifica a nossa vacuidade. Se o homem cultivasse devidamente essa arte suprema do silêncio dinâmico, do silênciopresença, chegaria a saber de coisas que nem pensamentos nem palavras lhe podem revelar... Os antigos egípcios sabiam, certamente, que o corpo astral dos seus reis permanecia ao redor do corpo material e podia, um dia, servir de ponte para a revivificação dele. Em princípios do nosso século, uma expedição britânica, após decênios de trabalhos infrutíferos, conseguiu localizar o túmulo do jovem faraó Tut-AnkHamon, filho de Akhenaton I e Nefertiti. Foi encontrado no Vale dos Reis, perto de Luxor, cidade distante, Nilo acima. Tut-Ank-Hamon, embora filho de um casal monoteísta, foi educado pelos sacerdotes politeístas de Hamon; mas, em sua adolescência, começava a manifestar pendores monoteístas – e os poderosos politeístas de Hamon o envenenaram, entre 18 e 19 anos de idade e mandaram enterrá-lo onde ninguém pudesse descobrir-lhe o cadáver. Os cientistas britânicos que descobriram a múmia procuraram verificar a causa mortis do faraó. Constataram o sinal de uma picada de inseto na face da múmia, que se acha agora no museu do Cairo, onde a contemplei demoradamente. Pouco depois, diversos dos membros da expedição morreram misteriosamente, e na face de cada um deles havia o mesmo vestígio de uma picada de inseto. Será que os sacerdotes magos de Hamon criaram um inseto astral que deu ferroada mortífera a Tut-Ank-Hamon? E será possível que, cerca de 3.500 anos mais tarde, esse mesmo veneno astral ainda tenha produzido efeito nos que fizeram surgir à luz do dia um cadáver que, na intenção dos politeístas, devia ficar em eternas trevas de total esquecimento? Entrei no vasto recinto subterrâneo onde o corpo de Tut-Ank-Hamon repousou três milênios e meio. O efeito do veneno dos sacerdotes politeístas parece agora extinto. Quem lê com atenção a descrição da “Arca da Aliança” de Moisés, no livro do Êxodo, acaba por se convencer de que esse santuário portátil era uma pilha elétrica, construída segundo todos os requisitos da ciência, com pólos positivos e negativos. Os egípcios sabiam algo da eletricidade, embora não soubessem utilizá-la ainda tecnicamente. Nem ignoravam radioatividade, de que se serviam para proteger os corpos de seus reis.


Diante das três grandes pirâmides de Keops, Mykerinos e Chefren há um gigantesco palco ao ar livre. Algumas vezes por semana se representa nesse local o teatro “Som e Luz” espécie de drama histórico, falado alternadamente em árabe, inglês, francês e alemão, entre 20 e 22 horas. Assisti à exibição em alemão. Os atores e as atrizes são todos invisíveis. Só se lhes ouve a voz, das profundezas da noite estrelada em pleno deserto, voz ampliada por potentes alto-falantes, enquanto gigantescos holofotes projetam luz em diversas cores sobre as pirâmides e a esfinge. Quem fala são os faraós, as pirâmides, a esfinge, o próprio deserto, as trevas da noite e as águas do Nilo, que contam a epopéia de um povo estranho e único na face da terra. Há quem atribua a origem das pirâmides e da esfinge aos Atlantes, em épocas pré-históricas. A lendária Atlantis, ou Atlântida, sumiu, mas ao norte da África ficou o monte Atlas, e entre a Europa-África e a América se estende o Oceano Atlântico, reminiscência, talvez, de um continente desaparecido. No Cairo comprei efígies metálicas de Tut-Ank-Hamon e da linda Nefertiti; em Luxor adquiri um busto, em basalto preto, de Hat-shep-sut, talvez a misteriosa “filha do faraó”, que, segundo a Bíblia, foi a mãe adotiva de Moisés, mas, segundo uma mensagem psicografada, foi a mãe verdadeira do grande legislador de Israel. O Egito está repleto de reminiscências de Hat-shep-sut. Existem até as ruínas de um tempo construído por ordem dela. É emocionante a lenda que envolve o nome dessa princesa. Escultora, ia ela, de vez em quando, ao atelier de Itamar, jovem escultor hebreu. E, enamorada das esculturas do escravo hebreu, acabou por se enamorar também do fascinante escultor. Mas, como princesa egípcia, não podia jamais pensar em casar com um escravo. O príncipe egípcio que, segundo as leis da corte, devia ser o futuro marido de Hat-shep-sut, suspeitou das simpatias da jovem para com Itamar, e matou o hebreu. Tempos depois, a princesa deu à luz um filho dela com Itamar; camuflou jeitosamente a origem da criança escondendo-a nos canaviais do Nilo e, encontrando-a “casualmente”, numa manhã em que tomava o seu banho de natação no grande rio. Levou-a para casa, educou-a no palácio real, “em toda a sabedoria dos egípcios”, e lhe deu o nome “Moshe” (Moisés ou Moshe), que quer dizer “filho” [3]. O sufixo “moses” ou “mes” aparece no nome de diversos faraós, e significa “filho”. Seria incompreensível que a princesa tivesse educado e instruído com tanto carinho um escravo hebreu que não fosse seu próprio filho. Aos 40 anos, segundo a lenda, chegou Moisés a saber que era filho verdadeiro da princesa, a qual, na hora da morte, lhe desvendou o segredo. Moisés quis saber quem era seu pai. E, ouvindo que seu pai hebreu fora assassinado por um príncipe egípcio, jurou vingança ao Egito inteiro. Matou um feitor egípcio, e teve de fugir do país. Foi para as


estepes da longínqua Arábia, onde passou 40 anos, como pastor dos rebanhos do sheik Jetro, com cuja filha mais velha se casou. Durante esse longo período aperfeiçoou-se na magia egípcia, que aprendera de sua mãe, e aos 80 anos “ainda em plena juventude”, teve ordem divina de regressar ao Egito e libertar o seu povo da escravidão. Lançou nove pragas, que foram neutralizadas pelos magos do faraó; mas na décima praga, a morte dos primogênitos, não encontrou rival entre os seus conterrâneos, e libertou o povo hebreu, conduzindo-o, por mais 40 anos, rumo à Terra da Promissão. Nas alturas do monte Nebo, fronteira a Canaan, Moisés desaparece misteriosamente, aos 120 anos, “ainda em plena juventude”. Morreu? Desmaterializou-se? Astralizou-se? Ninguém sabe de que são capazes esses magos. Cerca de 1.500 anos mais tarde, reaparece nas alturas do Tabor, ao lado de Jesus transfigurado – Moisés em corpo real, embora não-material, falando com Jesus “sobre a morte próxima dele”. Mas que quer dizer “morte” para homens dessa natureza?... -------------[3] Provavelmente, Moisés não era filho material, embora real, da princesa egípcia, concebido astralmente, por indução vital, como expliquei no meu livro “A Nova Humanidade”. Esse mistério de teleconcepção astral vai por todas as antigas literaturas; sempre de novo aparecem virgens-mães. Essa concepção astral daria ao filho um corpo perfeito, isento de doenças e morte compulsória, como era o corpo de Moisés, de Jesus e de alguns outros representantes da nova humanidade. Consta por mensagens esotéricas que o pai de Moisés era um escultor hebreu por nome Itamar, que, na ausência material dele, atuou sobre a princesa, iniciando a formação do corpo de Moisés. Mas, como esta tele-concepção astral não era compreensível aos profanos da corte do faraó, constou que ela havia adotado um pequeno hebreu exposto entre os canaviais do Nilo. Se Moisés tivesse sido apenas filho adotivo da princesa egípcia, e não filho real, seria inexplicável o carinho com que ela, durante 40 anos, o educa e instrui em toda a sabedoria dos egípcios.

*** Quem contempla esses milhões de gigantescos blocos de pedra – uma das pirâmides tem três milhões desses blocos – que os nossos mais modernos guindastes não conseguiriam suspender; e quem examina a precisão com que eles foram colocados uns sobre os outros, sem deixar o menor interstício – pergunta a si mesmo: Como conseguiram os egípcios transportar e suspender esses blocos enormes? Sei que há diversas hipóteses, mas nenhuma delas satisfaz. Foram encontradas inscrições hieroglíficas contendo fórmulas mágicas sobre a “desponderação” da matéria, bem como sobre a desintegração molecular da mesma. Parece que os sacerdotes e magos do Egito conheciam o efeito de certos sons que neutralizavam a gravidade da matéria e dissolviam a sua coesão molecular. Os iniciados nesses mistérios aplicavam essa vibração a um bloco de matéria, e este perdia a sua gravidade, podendo ser suspendido às


alturas até por uma criança. Depois dessa “desponderação”, a matéria se “responderava” voltando a seu peso normal. Josué, sucessor de Moisés, herdara do grande mago esse segredo. Segundo a Bíblia, fez desmoronar as muralhas da fortaleza de Jericó, produzindo certas vibrações aéreas por meio de instrumentos musicais, que culminaram na música do “hino do jubileu”, e reduziram a simples areia as muralhas da fortaleza. Que sabemos nós desses segredos da natureza e desse poder mental do homem?


YOGA E OS EREMITAS CRISTÃOS

Quando se fala em yoga e yoguis, logo se pensa na Índia. E, no entanto, o Ocidente teve séculos de grandes yoguis – sobretudo na Tebaida do Egito. Visitei as cidades e ruínas de Luxor e Karnak, e a aldeia de Abu, Nilo acima, e rememorei os tempos gloriosos em que todas as regiões circunvizinhas eram habitadas por eremitas cristãos. Viviam em silêncio e solidão nas cavernas dos desertos da Tebaida, não longe de Tebas, capital do Egito Superior. Haviam desertado da corrupção do Império Romano, irremediavelmente votado ao extermínio, e viviam a sós com Deus e sua alma, preparando-se para uma vida futura. Tomavam a sério, ao pé-da-letra, as palavras do divino Mestre: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo”. Todos eles praticavam a mística – talvez o misticismo – que, desde tempos antigos, prevalecia na Índia, no Tibete, sobretudo nas montanhas do Himalaia, povoadas de mahatmas, maharishis e yoguis de toda a espécie. Esses superhomens, quer da Ásia, quer da África, procuravam realizar o seu Eu espiritual, esquecidos quase totalmente do seu ego humano. Se eram desertores e escapistas da vida terrestre, não deixavam de ser homens de imensa boa vontade. Quando, hoje em dia, falamos de místicos e ascetas, muita gente torce o nariz, com ares se superioridade, como se já tivessem superado esses períodos de “fanatismo”, como muitos chamam o entusiasmo espiritual. Muitos dos nossos profanos se julgam homens cósmicos; acham que não abusam dos bens terrenos, e por isto não os precisam recusar, mas já sabem usá-los corretamente. Quando ouço essas tiradas dos supostos homens cósmicos, logo desconfio da sua cosmicidade, e uma voz me segreda “eles são os mais profanos dos profanos, mas ignoram a sua própria profanidade, e acham que já ultrapassaram a mística”. Eu, por mim, conheço um único homem realmente cósmico, que havia ultrapassado tanto o plano dos profanos como o dos místicos, pelo menos nos últimos anos de sua vida terrestre. Mesmo João Batista era ainda do número dos místicos e ascetas. Quem nunca passou pela mística não pode ser cósmico – e onde estão os nossos místicos, os ascetas, os campeões da renúncia? Albert Schweitzer escreveu: “O Cristianismo é uma afirmação do mundo – que passou pela negação do mundo”.


Mahatma Gandhi disse: “Homem, renuncia ao mundo, entrega-o a Deus – e depois recebe-o de volta, purificado, das mãos de Deus”. E o próprio Cristo disse a seus seguidores: “Quem quiser ganhar a sua vida perde-la-á – mas quem perder a sua vida por minha causa, ganha-la-á”. Todos os mestres espirituais da humanidade insistem na necessidade da mística, da ascese; se algum deles atingiu as alturas da vivência cósmica, atingiu-as através da experiência mística e ascética. Despossuir-se de tudo – para o poder possuir; morrer – para viver corretamente; não ter nada – para ser tudo... é este o caminho que todos os mestres da humanidade ensinam. Mas os nossos liberais de hoje se julgam tão superiores a todos os mestres que falam com desprezo desses “atrasados” que ainda não sabem usar sem abusar, e por isto têm de recusar. Pobres analfabetos da espiritualidade! Ignoram a sua própria ignorância – e se julgam sábios... Consideram sua doença como saúde – e zombam dos convalescentes... Perlustrei esses lugares sagrados, agora desertos, e relembrei os nomes de tanto eremitas e cenobitas, aliás uns poucos desses muitos que ali viviam, mas quase todos desconhecidos à posteridade. Aqui meditava fulano... Ali vivia sicrano em perpétua contemplação de Deus... Mais além, se mortificava beltrano... Mais tarde, alguns desses eremitas solitários se reuniram em grupos, e surgiram os primeiros cenobitas, que viviam em mosteiros e comunidades. Escreveram-se muitos livros em torno da vida de alguns desses santos desertores; mas, como quase todos eles viviam no anonimato, pouco sabemos deles. Calavam-se diante dos homens e só falavam com Deus. O silêncio é a linguagem de Deus e dos homens espirituais – o barulho é a dos egos profanos. Os trapistas de hoje são um eco desses eremitas silenciosos da Tebaida. Um deles, Thomas Merton, ultimamente se tornou célebre sem querer, porque escreveu livros maravilhosos, que correm mundo, alguns deles até vertidos em português. Infelizmente, morreu em plena atividade, vítima de um acidente, na Índia, onde visitava uns yoguis hindus e fazia meditação com eles. De algum desses eremitas da Tebaida se contam coisas estranhas, se não historicamente verdadeiras, certamente verdadeiras como característica espiritual deles. Um dia, o eremita A. disse ao eremita B., seu vizinho: – Sabes, irmão, que lá fora há guerra?


– Guerra? – replicou o outro. – Que é isto? – Bem... – retrucou o primeiro – guerra... guerra... é uma coisa muita feia, que não se deve fazer. – Mas, afinal de contas, que é guerra? – Não sei explicar... Mas vamos brincar de guerra, para compreenderes o que é. Olha aqui, eu tenho um livro; tu não tens livro algum. Eu digo: Este livro é meu! Tu respondes: Não! Este livro é meu! Eu grito: Este livro é meu! Assim começa a guerra. Vamos brincar de guerra: Este livro é meu!... –? – Responde! – Responder, o quê?... – Grita: Este livro é meu! – Como? Se este livro é teu, então não é meu... – Ora, ora... Tu não tens vocação para guerra... Já acabaste com a guerra antes de começar... Os homens lá fora não fazem assim. Brigam sem fim, por causa de coisas que não são nem de um nem de outro. – É verdade, nós não temos jeito para guerra... – Também não temos nada por que brigar... – Paciência... Não podemos sequer brincar de guerra... De Santo Antão da Tebaida se conta o seguinte: Um dia, alguém de fora lhe ofereceu um lindo cacho de uvas. O eremita ascético namorou a uva, cheiroua, mas não comeu um baguinho sequer. Aliás, esses homens passavam dias inteiros sem comer nada. Alguns só comiam uma vez por semana. Eram todos vegetarianos absolutos. Achavam que a atividade estomacal não era bem compatível com a atividade espiritual. Mahatma Gandhi, em nossos dias, parece ter pensado do mesmo modo. Orava e jejuava, e por isto conseguia tudo pelo poder da alma, sem o poder das armas. Mas, os profanos e analfabetos da Verdade acham que poder é arma: canhão, metralhadoras, bomba atômica – assim pensam e assim agem precisamente porque são analfabetos nas coisas da alma. Quem não conhece a alma tem de usar arma – quem conhece a alma não usa arma. E, ainda por cima, muitos dos que são formados na insipiência das armas e ignoram a sapiência da alma, têm a sacrílega audácia de se dizerem discípulos do Cristo... Mas, voltemos a Santo Antão, que recebeu um lindo cacho de uvas e o mandou a um eremita vizinho, na outra caverna. Diz a história que, ao


entardecer desse dia, o cacho de uvas, depois de fazer o rodízio todo pela vasta Tebaida, voltou a Santo Antão, intato. Nenhum dos monges quis deliciarse com a sua ingestão, com medo de favorecer algo como gula, de que todos os egos são devotados amigos. Santo Antão ergueu as mãos ao céu e disse: Graças a Deus, que ainda há verdadeiros monges na face da terra... *** Se o homem praticasse concentração mental, ou até contemplação espiritual, verificaria que o maior poder reside precisamente no mundo mental e espiritual. Mas esse poder só se revela aos poucos, após longos períodos de focalização intensamente consciente. Há homens entre nós que conseguem fazer uma hora de focalização consciente, ou cosmo-consciente; outros, uns poucos, se mantém por um dia, ou até por alguns dias, nesse ambiente da potência cósmica, imaterial. Mas tudo isto não passa de abc de escola primária. Os grandes universitários do verdadeiro poder espiritual, do poder creador, permanecem na zona desse poder durante 30 a 40 dias consecutivos. E, para intensificar essa concentração, se abstêm, total ou quase totalmente, de alimentação, porque sabem que a atividade estomacal perturba a focalização espiritual. Moisés, Elias, Jesus, com 40 dias e noites de silêncio e solidão, no alto de montanhas ou no fundo de desertos, faziam jorrar de dentro de sua alma fontes de poderes tais que eclipsavam todas as forças físicas. Antigamente, não havia locais especiais para exercer essa concentração mental-espiritual; os eremitas e yoguis se recolhiam a qualquer deserto, montanha ou floresta; não necessitavam de cama nem cozinha, não tinham luz artificial nem água encanada. Quando o poder do espírito é máximo, as necessidades materiais são mínimas. Nos últimos tempos, a elite da humanidade voltou a sentir a necessidade de Tebaidas, Sinais, Himalaias, desertos, solidões; porém dotados de algum conforto, embora sem confortismo. Estamos oferecendo a esta humanidade algumas Tebaidas e alguns Himalaias razoavelmente confortáveis. Não podemos crear homens idôneos; só podemos criar ambientes convidativos. A idoneidade vem de outra região, vem do livre-arbítrio de cada um. Nem o melhor lugar garante concentração ao homem comodista, incapaz de esforço pessoal. A tendência da maior parte dos homens chamados “espiritualistas” é de simples turismo devocional. Muitas Tebaidas e os Himalaias de hoje degeneraram em clubes esportivos e centros sociais. Outros substituíram o magno problema da auto-realização por atividades filantrópicas, vestindo os nus e enchendo estômagos vazios, deslembrados do que o Mestre disse:


“Pobres sempre os tendes convosco, e lhes podeis fazer bem quando quiserdes – a mim, porém, nem sempre me tendes”. Em face disto, tivemos de elaborar rigoroso regimento interno para os nossos ashrams. Ashram, Tebaida, Himalaia, Sinai, não são apenas lugares de Retiro Espiritual, retirados da vida social urbana; devem ser verdadeiras metánoias, palavra usada pelo texto grego do Evangelho para “transmentalização”: um modo de pensar e viver para além da mente da personalidade egocêntrica. Metánoia é conversão. Quando o homem está, por assim dizer, de costas voltadas para a suprema Realidade (Deus), e de rosto voltado para as coisas do mundo; está “avertido”; mas, quando dá meia volta, voltando o rosto conscientemente para a Realidade, então é um “convertido”. Passou da ilusão para a verdade. Não é “remendo novo em roupa velha”, como todo ego virtuoso continua a ser; o convertido despojou-se do homem velho, revestiu-se do homem novo e fez-se totalmente “nova creatura em Cristo”. *** É deveras estranho, e mesmo trágico, que o lugar do antigo Egito onde esteve, durante séculos, a Tebaida cristã, não se encontre um vestígio do seu glorioso passado. Os Himalaias continuam a ser o el-dorado dos yoguis – mas a Tebaida deixou de ser espiritual. Os atuais habitantes são árabes, muçulmanos, maometanos, geralmente indolentes, só interessados nas coisas mais rasteiras do velho ego. Pouco sabem de meditação. Perderam até a magia mental de seus antepassados. Dinheiro, sexo e divertimentos – e nada mais, como a maioria dos chamados cristãos do ocidente. Parece que a lei do menor esforço impera tão despoticamente no plano mental como no mundo material. O grosso da humanidade, em qualquer continente, que apenas tornar mais agradável a vida do velho ego; pouquíssimos procuram superar a horizontal por uma vertical. Impera o continuísmo comodista – quando nascerá um novo início? Quando surgirá uma nova vivência em lugar da vida velha? Regressei das regiões da antiga Tebaida cristã mais do que nunca convencido da imperiosa necessidade duma intensa interiorização do homem – mesmo em proveito da verdadeira felicidade aqui na terra. Toda a Física, para ser agradável, necessita de um fundo de Metafísica. O gozo físico, sem um fundo de espírito metafísico, acaba, cedo ou tarde, no seu contrário – num tédio insuportável...


MINHA DECEPÇÃO EM ARUNÁCHALA

Do Cairo voei, durante a noite, para Bombay, uma das grandes cidades da Índia Ocidental. Daí, cruzando toda a Índia, para Madras, no litoral oriental. Madras – por quê? Nada me interessava essa velha cidade indiana, onde os portugueses, do tempo de Vasco da Gama, deixaram tantos vestígios. O que muitíssimo me interessava era um lugarejo que não figura em nenhum mapa geográfico da Índia – Arunáchala. Felizmente, levava eu na mala um exemplar da revista “The Mountain Path”, publicada em Tiruvannamalai, cidadezinha não longe de Arunáchala. Muitos brasileiros conhecem este nome, que se tornou quase sagrado, porque em Arunáchala viveu, nesses últimos decênios, um dos maiores iniciados da Índia moderna – Bhagavan Ramana, chamado geralmente Maharishi, ou Maharshi, quer dizer, o “Grande Vidente”. Dois escritores contemporâneos, Mouni Sadhu e Paul Brunton, tornaram conhecido no mundo inteiro esse grande místico. Sobretudo o livro de Mouni Sadhu “Dias de Grande Paz”, escrito em inglês e traduzido em diversas línguas, inclusive em português, imortalizou esse grande iluminado. [4] -------------[4] A recente edição deste livro é da Editora PENSAMENTO, de São Paulo, edição revista e anotada por Huberto Rohden. Consideramos este livro, “Dias de Grande Paz”, como um dos melhores canais para auto-conhecimento e auto-realização, tanto mais porque reflete as experiências imediatas de um discípulo do grande iniciado.

Estranhamente, em Madras ninguém sabia da existência de Ramana Maharshi, nem do lugarejo onde ele viveu mais de meio século. “Santo de casa não faz milagre.” Finalmente, consegui saber que existia uma linha de ônibus para Tiruvannamalai (que os nativos pronunciam Trimalei, ou coisa parecida). E lá vou eu, durante diversas horas fatigantes, num ônibus primitivo, que me deixou em Tiruvannamalai. Ali aluguei uma carrocinha de duas rodas puxada por um cavalinho magro, e consegui chegar a Arunáchala. Excetuando o ashram e algumas casas vizinhas, Arunáchala tem aspecto de uma favela, com casas de barro coberta de sapé ou folha de palmeira. Consta de uma única rua


comprida, sujíssima e cheia de mendigos, como quase todas as cidades da Índia. Era intenção minha ficar aqui alguns dias, na esperança de fazer um Retiro Espiritual com alguns dos mestres, que cuidava encontrar. Mas Ramana Maharshi tinha morrido havia quase dois decênios, e seus supostos discípulos não davam impressão de espiritualidade. Ao meio-dia tomei o meu almoço numa sala ladrilhada, sentado no chão, diante duma folha de bananeira, sobre a qual o servente jogou um punhado de arroz que arrancou com a mão de uma panela; jogou-o com tanta força que parte espirrou para os lados e foi cair ao redor do prato, no chão poeirento; mas o servente teve a habilidade de catar o arroz disperso e recolocá-lo na folha de bananeira, que me servia de prato. Depois veio outro servente com uma panela de feijão; com uma concha tirou do conteúdo e deitou sobre o arroz; depois disto, coroando tudo, um grande punhado de pimenta malagueta. Misturei tudo com os dedos – não há vestígio de talheres – e tentei introduzir na boca essa substância meio líquida. Operação difícil para o homem ocidental! Olhei para meus comensais hindus e verifiquei que eles faziam dos quatro dedos uma espécie de colher e assim conseguiam introduzir na boca o alimento, sem muito derramamento. Aliás, também não havia perigo de eles sujarem a roupa, porque a maior parte só veste uma tanga primitiva ou um calção. Alguns deles usam uma espécie de camisola além da tanga. Fiquei com a boca em fogo, com a sobrecarga de pimenta vermelha. Pedi água para apagar o incêndio e veio uma caneca de latão com água morna; pois não existe geladeira no ashram e a Índia é um país tropical. O meu companheiro brasileiro se portou heroicamente, engolindo – embora com esforço e caretas – o seu almoço. Esperávamos algumas frutas para a sobremesa, mas nada disto apareceu. Felizmente, eu trazia na mala algumas bananas, que salvaram a situação. Ao anoitecer nos mostraram a casa dos hóspedes. Havia no quarto uma velha cama de madeira com um colchão de capim meio podre e um lençol que, pelo aspecto, já devia ter tido uso frequente por longa data. Joguei fora o lençol e me deitei sobre o colchão esfarelado. Meu companheiro se deitou no chão e dormimos – tanto quanto as aranhas, baratas e mosquitos o permitiram. Numa dependência da casa havia um cômodo com uma espécie de fossa no chão, uma lata com água e uma caneca, para tomar banho. Como não havia toalha, enxuguei-me com uma peça da minha roupa interna, usando outra como fronha; pois não ousava deitar a cabaça diretamente sobre o capim podre.


Esqueci-me de dizer que, ao anoitecer, assistira ao cântico dos Vedas, com flores e incenso. Este ritual se repete cada manhã e cada noite. Fiz o possível para me concentrar, mas nada consegui. Dois macacos travessos, durante todo esse culto religioso, faziam as suas acrobacias no santuário, trepando pelas cortinas, pulando sobre o altar etc. À direita e à esquerda do altar havia estátuas de pedra representando vacas e elefantes. Durante o ritual foram engrinaldados esses animais sagrados, incensados e besuntados de ghee (manteiga derretida). Na manhã seguinte, fui visitar a casinha ocupada, por algum tempo, por Mouni Sadhu, o autor do livro “Dias de Grande Paz”; vi também a de Paul Brunton, que, por algum tempo, foi discípulo imediato de Ramana Maharshi. Entretanto, a minha decepção e dissabores foram compensados pela longa meditação que fiz, juntamente com meu colega, na salinha reservada onde o santo fazia as suas concentrações, ou melhor, a sua sintonização cósmica. Sentado no chão – pois não havia móveis – defronte ao canapé, perto do grande retrato do místico, abismei-me no oceano do Infinito. Mergulhei totalmente nesse mar invisível... Senti-me empolgado pelos misteriosos fluidos que, mesmo agora, quase dois decênios depois da partida de Maharshi, ainda estão no ar e fluem de todos os objetos – do soalho, das paredes, do teto – e se apoderam das pessoas sintonizadas por essas auras... Mas, nesse mesmo dia tive mais uma grande decepção e consolidei-me na velha convicção de que a maior tragédia para um grande mestre é o fato de ter discípulos após a morte. Levaram-me ao quartinho onde o grande Vidente tinha dado o último suspiro – ou, como dizem eles, onde entrou no mahasamadhi. Lá estavam livros e manuscritos dele. Na parede havia um nicho, com algumas bananas, pedaços de coco e outras frutas. Em face da minha estranheza e pergunta, explicaram-me que esses alimentos lá estavam, e eram constantemente renovados, porque a alma dele poderia ter vontade de se alimentar... Coitado do Mestre tão mal compreendido por seus chamados discípulos!... Quero crer, todavia, que haja outros discípulos de Ramana Maharshi, mesmo em Arunáchala, que estivessem mais sintonizados com o espírito dele. Nesse mesmo dia me encontrei com Arthur Osborne e sua esposa, ingleses, editores da mencionada revista “The Mountain Path”, que um amigo me manda regularmente de Arunáchala e cujo conteúdo é um retrato fiel do santo. No mesmo dia deixei Arunáchala e regressei para Madras. Tomei o avião da “Indian Airlines” e voei para Calcutá, capital do Estado de Bengal. Daí por diante viajei sozinho, porque meu companheiro, decepcionado, se separou de mim.


Viajar sozinho por essas regiões desconhecidas pode parecer triste a muita gente social. Eu, porém, me sentia muito bem. Parece mesmo que sou essencialmente eremita solitário que a vida na sociedade é apenas um mal necessário. Quando estou desacompanhado me sinto em ótima companhia, mas em sintonia com a alma do Universo.


COM OS YOGUIS DE SEVAYATAN

Levava comigo uma carta do meu antigo guru indiano, de Washington, Swami Premananda, endereçada a Swami Satyananda, chefe do ashram de Sevayatan, no Bengal ocidental. Em Calcutá, capital desse Estado, tomei o trem, que, em algumas horas, me deixou na estação ferroviária de Ihargram. Mas, daí para Sevayatan não havia condução regular, a não ser uns veículos particulares que eu nunca vira: umas grandes bicicletas – aliás monociclos – ligados a uma pequena carruagem com dois assentos. O ciclista montava nessa roda e pedalava valentemente, movendo o veículo. Assim cheguei, dentro de meia hora, através de vastas planícies, a uma espécie de fazenda, que o povo denominava The School (a escola). Lá chegando, indaguei por Swami Satyananda e fui levado a uma casinha modesta, em cujo interior encontrei um homem de uns 80 anos, sentado sobre uma cama simples, pois estava doente e se sentia muito fraco. Seu corpo era de cor cera e tão magro que me parecia transparente. Entreguei-lhe a carta de Swami Premananda e ele me tratou com extrema bondade, uma bondade simples e benfazeja, embora sempre com aquela serena longinquidade que é própria de homens que já vivem no mundo da pura espiritualidade e se ocupam com este mundo apenas por conveniência para seus semelhantes. Não há nenhuma necessidade que esses homens falem ou façam alguma coisa – o seu simples e poderoso ser vale mil vezes mais do que qualquer dizer ou fazer. Pode a gente ficar na presença deles indefinidamente e sentir-se bem e cada vez melhor, esquecendo-se de todas as facticidades das circunstâncias e só consciente da realidade da substância. Conversamos longamente em absoluto silêncio... Silêncio é algo como música... Não atua pelo que diz, mas sim pelo que é... A música é uma linguagem internacional, como o silêncio... Fiquei quase cinco dias nesse ashram, onde residiam numerosos monges, yoguis, swamis, alguns dos quais também eram professores de escolas secundárias e colégios do governo, na redondeza. Deram-me um quarto próprio, com cama e mesa e outros móveis, quase à moda ocidental. Não cheguei a saber como os monges vivem entre si. Será que comem e dormem no chão, como em Arunáchala? Aqui há um conforto razoável, sem confortismo nem confortite, que são a desgraça de muita gente do mundo ocidental. Falo


de experiência própria. Quando, há anos, loteei o meu antigo sítio, em São Paulo, e convidei alunos da ALVORADA para fazerem os seus bangalôs, para residência rural ou fim-de-semana, tive enorme decepção. Quase todos resolveram transportar para o campo um pedacinho da cidade, com todas as suas misérias civilizadas – rádio, televisão, jornais, revistas, visitas tagarelas e todas as consagradas sujeiras da nossa cidade. Quase todos eles são hoje sitiados em vez de sitiantes, sitiados, em permanente “estado de sítio”... E, pior de tudo, adoram esse estado de sítio, essa idolatrada tirania do confortismo mórbido e da confortite mortífera... Nada disto encontrei em Sevayatan. Encontrei um conforto razoável, equidistante do desconforto de Arunáchala e do confortismo de muita gente ocidental. Todas as grandes nações da história morreram de confortite... Toda manhã, Swami Satyananda, sentado na cama, e eu num tamborete, ao pé dele, fazíamos longa meditação. Ele, de olhos imóveis, largamente abertos, fazia lembrar a esfinge do Egito... Parecia uma estátua de mármore, sem respiração perceptível. Creio que a alma ou Eu dele não estava mais lá; só o invólucro corpóreo estava presente, vazio, sem um sinal de vida... Só depois de muito tempo a realidade espiritual do Swami regressava de regiões longínquas e reanimava aquela roupagem inerte. Ah! se esses homens pudessem falar das suas experiências cósmicas!... Mas... aqui o calar vale mais do que o falar... Ditos indizíveis não podem ser ditos... O que se pode dizer, ou mesmo pensar, não é a verdade... É como um fogo pintado numa tela, que não é fogo vivo... O mais perfeito fogo pintado não ilumina nem aquece... Durante prolongado samadhi de Swami Satyananda, todo o recinto se enchia de um estranho magnetismo, que envolvia e permeava tudo. Eu não sentia mais meu próprio corpo nem o tamborete em que estava sentado. Tinha a impressão de flutuar livremente no espaço, desmaterializado, astralizado, todo centrado na minha consciência Eu, alheio a todos as ilusões do ego periférico. Num dos últimos capítulos do meu livro “Entre Dois Mundos”, com o título “Nos Mistérios do LSD”, tentei descrever as experiências produzidas pelo ácido lisérgico. Mas o que experimentei em Sevayatan, na presença de Swami Satyananda em samadhi, era bem diferente, por ser uma vivência natural e não uma técnica artificialmente provocada por umas gotinhas de injeção material. Somente quando o yogui regressava das suas longínquas viagens cósmicas e reocupava o invólucro do seu corpo material, é que cessava o ambiente imantado do cubículo, e eu tornava a ter consciência do meu corpo. Mas no meu consciente superior continuava a luz e forças captadas durante o samadhi do iniciado, projetando ondas benéficas sobre minha vida. Posso afirmar que entre um samadhi artificialmente provocado e um samadhi real e natural medeia a mesma distância que há entre um fogo pintado numa tela e um fogo


real; com o melhor dos fogos artificiais não se pode iluminar e aquecer coisa alguma, ao passo que o menor dos fogos naturais irradia luz e calor. Aldous Huxley, no seu livro “Às Portas da Percepção – Céu e Inferno” faz ver esta enorme diferença entre o samadhi natural e o pseudo-samadhi artificial. É enorme a auto-decepção do êxtase artificial. J. W. Hauer, no livro monumental “Der Yoga”, faz ver que para a experiência do Eu central não conduz nenhum caminho psico-técnico. E Einstein adverte que “do mundo dos fatos não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores, porque estes vêm de outra região”. Não sei até que ponto a minha alma acompanhava a alma do yogui, nessas fantásticas jornadas cósmicas... O certo é que a presença do mestre auxiliava grandemente o desprendimento do meu espírito – a “graça do mestre”, como diz Mouni Sadhu –, deve ser essa evanescente aura ou vibração peculiar que irradia de um ser humano altamente realizado, se difunde pelo ambiente e funciona como um poderoso catalizador para as pessoas que se encontram no âmbito dessa irradiação e tenham suficiente receptividade para captar essa onda invisível. Um homem desses vale mais para a redenção do mundo do que legiões de eruditos não-realizados. Isto me faz lembrar as palavras de Mahatma Gandhi: Quando um único homem chega à plenitude do amor, neutraliza o ódio de muitos milhões. Essa comparação com emissor e receptor de ondas eletrônicas, que tenho usado nos meus livros e nas minhas aulas, é talvez o melhor símile ilustrativo, sobretudo na era eletrônica em que vivemos. A estação emissora do Infinito está sempre funcionando, lançando ao espaço músicas de vida, saúde e felicidade – mas o nosso receptor humano nem sempre está devidamente sintonizado para captar essa música. Sofremos e somos infelizes por causa da nossa falta de sintonização... Cada dia, pelas 20 horas, havia uma reunião de culto, numa sala espaçosa do ashram. Cantavam-se hinos sacros, liam-se os Vedas e a Bhagavad Gita. Na primeira noite fui apresentado por Swami Satyananda, que a custo se arrastara até lá, e fui convidado a falar sobre as minhas experiências pessoais, no mundo da suprema Realidade. Falei cerca de meia hora sobre o Golden Lotus Temple, em Washington, o templo do lótus de ouro, fundado há diversos decênios por Swami Premananda, filho de Sevayatan e fundador do ashram local. A mãezinha dele, de 80 anos, estava presente, e vivia me pedindo notícias do filho, ausente há uns 30 anos. Tive pena da mãe do meu antigo guru, que chorava de saudades; mas eu nada pude fazer por ela, porque ela não entendia uma palavra de inglês, e eu nada sei da língua dela. Ela não tinha idéia da distância entre o Brasil e os Estados Unidos, e pensava que eu tivesse vindo diretamente de Washington e para lá voltaria e me encontraria com seu querido filho, que nunca mais voltara a Índia.


Nesta primeira conferência contei aos 30 ou 40 ouvintes o que era o ashram de Washington e como eu tinha sido discípulo e, mais tarde, colaborador de Swami Premananda, fundador do ashram de Sevayatan. Numa das noites seguintes falei sobre os nossos centros de auto-realização, mantidas pela “Alvorada”, no Brasil. Creio que para muitos dos meus ouvintes foi alta novidade saberem que nós, aqui no Brasil, possuímos santuários de meditação e auto-realização. Estranharam um tanto quando lhes disse que os nossos ashrams não tinham caráter residencial, como os da Índia, mas são lugares onde pessoas idôneas se retiram temporariamente com o fim de carregarem a sua bateria espiritual, e depois voltam ao meio do mundo, para seus afazeres profissionais, mantendo, porém, firme a orientação espiritual colhida no silêncio e na meditação. Na última noite fui convidado por alguns dos professores para lhes falar de “Filosofia Cósmica” ou, como prefiro dizer, “Univérsica”, que eu mencionara nas palestras anteriores. Atendi ao convite e expus longamente o que os leitores dos meus livros e alunos dos meus cursos já conhecem. Quando, nesta última conferência, afirmei que Matemática, Metafísica e Mística são, no fundo, a mesma coisa, verifiquei grande estranheza e talvez ceticismo no semblante de alguns ouvintes. Mas quando citei diversas palavras de Einstein em meu abono, creio que todos se convenceram da verdade do meu asserto, por sinal que alguns me pediram meu endereço no Brasil para ulteriores informações sobre “Filosofia Univérsica”. Infelizmente, não lhes posso mandar nenhum dos meus livros, porque a única língua estrangeira que eles entendem é o inglês. É, aliás, doloroso verificar, na Europa, na Ásia e na África, que o português é totalmente ignorado; um livro escrito em nossa língua é um livro morto-nato para o resto do mundo. Inglês, francês, alemão, espanhol, italiano – são portas mais ou menos abertas para outra gente, mas o português é invariavelmente porta fechada. E, no entanto, há mais de 100 milhões de pessoas no mundo que falam o português. Por que é que somos tão desconhecidos e ignorados?... Em Sevayatan estranhei uma coisa, aliás geral na Índia: que o ashram se achasse praticamente no meio do mato, isto é, numa capoeira desordenamente heterogênea, quase sem vestígio de cultura, nos arredores, sem um pouco de jardim, nem de horta, nem de pomar. Da nossa divisa: “Realiza a mística de Deus, pela ética dos homens, na estética da natureza” falta, na Índia, a última palavra. Eles tratam da mística e da ética, mas se esquecem da estética da natureza. Voltei de Sevayatan para Calcutá com um mundo de cogitações em estado de incubação...


NO SILÊNCIO DAS NEVES DO HIMALAIA

De regresso a Calcutá, tirei passagem na Royal Nepal Airlines e levantamos vôo rumo norte em demanda das mais altas montanhas do globo terrestre. Aterrissamos em Kathamandu, capital do reino do Nepal, situado nos primeiros contrafortes da imensa cordilheira, a uns 2.000 metros de altitude. Nepal é um país maravilhoso, entre a Índia, a China e o Tibete, feito de montanhas e rios, cachoeiras e magníficas florestas. No dia seguinte, por meio duma empresa de turismo do governo, aluguei um táxi e durante quase o dia inteiro fomos subindo, em vastos ziguezagues, rumo a um dos pontos mais pitorescos, nessa fascinante cordilheira dos Himalaias, uma das poucas nesgas de terra ainda não profanadas pela civilização. Chegamos ao “Everest Point”, em Daman, a uns 3.000 metros de altitude. Não havia turistas, graças a Deus. Eu era o único visitante, pois estávamos fora de estação. Deram-me um silencioso bangalô em plena mata, com uma lâmpada e querosene. Perto havia um pequeno restaurante, em forma de gigantesco cogumelo (não era da bomba atômica!), em cujo refeitório redondo, cheio de janelas de vidro, fui tomando as minhas refeições. Passei apenas uma noite e quase dois dias nesse mundo de Deus, longe dos homens, cercado de montanhas cobertas de neves eternas. Para o leste se erguia o cume do Sagarmatha, que os nossos atlas chamam Everest, com mais de 8.000 metros de altitude. A fim de presenciar o nascer do sol, que nasce do lado direito do gigante, levantei-me antes das 5 horas, e, das 5 às 6 estive saboreando o grandioso espetáculo do sol nascente, no seio desse imenso anfiteatro de campos de neve e picos gelados, produzindo as mais variadas cores e cambiantes, sempre em mudança – azul, dourado, violáceo – conforme a incidência dos raios solares. Eu não tinha câmara fotográfica para fixar esses deslumbramentos, durante essa hora solene; mas minha alma fotografou, em cosmocolor, os estupendos panoramas do Himalaia... Se eu, algum dia, voltar à Ásia, irei diretamente ao Himalaia, não para um dia e uma noite, mas para lá ficar semanas ou meses. Aqui tudo é grandioso e inaudito, e é necessário dar tempo à alma para realizar um processo de osmose e lenta infiltração. Não adianta ver, é necessário sentir, viver e vivenciar o que o silêncio de Deus diz ao silêncio do Eu... Keyserling, no seu livro “Reisetagebuch eines Philosophen”, diz que o Himalaia emite estranha radiação magnética, que nos torna fáceis o pensamento e a


experiência mística. É talvez esta a razão porque, através de séculos e milênios, tantos maharishis e mahatmas procuram essas alturas para facilitarem a sua sintonização com o mundo divino. Como Keyserling, nem eu tive a sorte de encontrar, visivelmente, um desses super-homens, que, possivelmente, existem ainda em alguma região ignota do Himalaia. Mas, para se encontrar com esses seres, requer-se que o peregrino esteja devidamente afinado pela mesma frequência espiritual; do contrário, eles o despistam, sem que ele o perceba, como descrevi no meu livro “Cosmorama”. Esses silenciosos e anônimos mahatmas sabem o que acontece a grandes distâncias e emitem ondas tais que teleguiam os passos dos idôneos, e desteleguiam os não-idôneos. Aliás, será que um discípulo realmente idôneo necessita de um mestre visível, externo? Não disse o maior dos mestres: “Um só é o vosso guia, um só é o vosso mestre, um só é o vosso pai – o Cristo”? E, quando o homem é Cristoguiado, necessitará ainda de outro guia ou mestre?... Tive de descer dessas maravilhosas alturas e regressar ao repugnante caos da civilização do homem-ego. Verdade é que, interiormente, continuei habitando nos Himalaias, repetindo mentalmente o que escrevi no meu livro “Escalando o Himalaia” – o meu invisível Himalaia de dentro... Persiste, porém, o perigo de o homem querer estabelecer-se e estabilizar-se em alguma esplanada do Himalaia, armar aí sua tenda, como Pedro no Tabor, esquecendo-se do supremo zênite do Sagarmatha, o seu Everest divino, não raro envolto em nuvens. Na excursão rumo ao Sagarmatha visível tive uma sorte única. Embora fosse fora de estação e todos me tivessem prevenido que os picos do Himalaia estariam envoltos em espessas nuvens e neblinas, gênios benignos me favoreceram: na manhã da minha contemplação, não havia uma nuvem nem neblina no horizonte, e por espaço de quase meia hora, não havia uma nuvem nem neblina no horizonte, e por espaço de quase meia hora pude contemplar, com diáfana nitidez, os gigantes gelados. Parecia uma solene liturgia feita de neve, gelo e luz... Parecia a própria alma do Universo que me falava através desse trovejante silêncio... Ó Sagarmatha! Ó Everest! Como anseio por ver o meu corpo sepultado nas tuas neves puríssimas!... Como suspiro por sentir a minha alma flutuando por cima das tuas excelsas alturas, rumo ao Infinito... *** É deveras estranho... Quando estou totalmente só, como agora, nesta imensa solidão de montanhas e neves, então é que me sinto realmente livre, indizivelmente feliz.


Quando estou em sociedade, mesmo na melhor das sociedades, sinto dolorosamente as minhas limitações. Sinto-me encarcerado, cercado de fronteiras por todos os lados. A Natureza não me dá este sentimento de prisão. O inconsciente não me limita. Somente a humanidade consciente cria em mim essa angustiante consciência de prisioneiro. A presença de outros seres humanos funciona como grades de gaiola. A avezinha de minha alma esvoaça desesperadamente e bate com a cabeça contra as grades, da direita e da esquerda, encima e embaixo... Sinto que estou num cárcere tri-dimensional, feito das barras de ferro de tempo, espaço e causalidade... O que sinto e saboreio aqui nos Himalaias, experimento também, até certo ponto, quando estou a bordo dum transatlântico, em pleno mar: a imensa vastidão produz um senso benéfico de solitude... Viajar dia e noite entre o Infinito do mar e o Infinito do céu – que inefável sensação de vacuidadeplenitude, de ausência-presença!... Que inefável libertação de todas as barreiras da Finitude... Compreendo cada vez mais porque Deus é eterno Silêncio; é que ele é a infinita Presença-Plenitude... Quem saboreou uma única vez, por um momento sequer, esta delícia da solitude não pode mais viver do bagaço dos ruidosos prazeres em que os inexperientes procuram a sua felicidade. Ó solitude!... Ó beatitude!... Nunca mais serei feliz sem vós... E, se deixardes de me envolver, nunca mais deixeis de me permear... Estareis sempre dentro de mim, ainda que eu esteja fora de vós... Levar-vos-ei, qual santuário portátil, ao meio de todos os ruídos... E vossa presença em mim me tornará suportável a vossa ausência fora de mim... Ó solitária beatitude!... Ó beatífica solicitude!... Inebriado do vosso divino Nirvana, suportarei todos os humanos Sansaras... A ausência do Himalaia de fora nunca destruirá a presença do meu Himalaia de dentro...


A tua soledade ĂŠ a minha liberdade...


SOLILÓQUIOS COM A ALMA DO HIMALAIA

(À vista do Sagarmatha)

Himalaia eterno... Excelso zênite do Sagarmatha... Ponto culminante do globo terráqueo... Aqui estou no teu seio, Envolto e permeado de profundo silêncio... Em absoluta solitude... Morri para todos os ruídos humanos, Nasci para teu silêncio divino... Fala-me, Himalaia, Porque eu me calo... Calo-me verbalmente, Mentalmente... Emocionalmente... Espiritualmente... Ausculto a voz do teu silêncio... Revela a tua plenitude À minha vacuidade... Enche com tua presença A minha ausência... As tuas alturas,


Os meus abismos, Corta com tua verticalidade Todas as minhas horizontalidades... Como me sinto pequeno Em face da tua grandeza... Como me sinto impuro À luz da tua pureza... Ó Himalaia, tu és a única nesga da Terra Jamais profanada pelo homem. Tu és o único sacrário virgem Jamais violado por ser humano... Em ti vibram ainda As auras puríssimas Da madrugada do Gênesis... As tuas selvas dormentes Estão ainda aljofradas Do orvalho sagrado Do primeiro Fiat creador... Anterior a todos os tempos... E eu sinto ainda o magnetismo Que envolve e permeia Teu solo, tuas águas, Os teus montes e vales... Em teu seio divino Eu sou todo cosmo-pensado, Cosmo-vivido, Cosmo-agido...


Nada mais sei de mim mesmo. Deixei de existir, Desnasci de todas as minhas nascenças... Tua alma cósmica Eclipsou todas as minhas egoidades... ............................................................................................................................... Ah! se eu pudesse deixar aqui O meu invólucro corpóreo! Se eu pudesse terminar aqui e agora A minha vida terrestre, E iniciar A minha vivência celeste!... Alma divina do Himalaia, Dissolve-me em ti! Suga com teu Espírito O meu espírito!... Desegofica-me, Cosmifica-me!... Em teu seio viveram e vivem Os super-homens, Os mahatmas, Os maharishis, Que sabem e saboreiam no silêncio O que os profanos ignoram nos ruídos... Ninguém lhes conhece os nomes, Ninguém lhes escreve a vida, Ninguém lhes ergue estátua


Em praça pública... Eles são os grandes anônimos, Os inomináveis, Esses ignotos redentores da humanidade... Eu vos saúdo, estações emissoras, Que irradiais energias cósmicas Por todas as latitudes e longitudes, Por todas as altitudes e profundidades Do Universo sideral e humano! Vós, eremitas anônimos do Himalaia, Vós sois os pólos positivos da humanidade, Que contrabalançam os pólos negativos Do mundo das maldades e dos males... Vós é que neutralizais com vosso centripetismo O caótico centrifuguismo dos profanos... ............................................................................................................................... Mestres anônimos do Himalaia, Onde vos ocultais? Não ouvis o meu clamor? Não sentis as minhas angústias? Eu, tão perto – e tão longe de vós... Minha física propinquidade É minha metafísica longinquidade... Tão perto de mim como a rocha em que me sento, Tão longe de mim como o pico nevado do Sagarmatha... ............................................................................................................................... Himalaia eterno!


Dentro em breve deixarei O teu sagrado nirvana, E regressarei ao profano sansara Ao mundo imundo dos mundanos, Mas levarei comigo a tua alma, As tuas auras divinas. Nunca mais estarei sem ti, Por mais longe que estejas de mim...


NA CIDADE SAGRADA DO GANGES

Da divina pureza do Himalaia caí diretamente às humanas imundícies de Benares... Benares é a cidade sagrada da Índia, é Roma, é Meca. Mas esta cidade não existe. Na Índia se chama oficialmente Varanasi. Alguns lhe chamam, à inglesa, Banaras. De todas as cidades da Índia que visitei é esta a mais suja e caótica, física e espiritualmente. Em todas as cidades deste país, é imensa a miséria e a mendicidade – mas aqui essas coisas atingem o zênite. Apenas, apareça alguém com cara de estrangeiro, e logo se forma atrás dele uma fila de mendigos, que o acompanham de rua em rua, pedindo, exigindo, gritando... E, se ele tiver a imprudência de distribuir moedas, está perdido; logo a fila duplica. Alguns se agarram ao transeunte insistindo em receber algo para prolongar a sua miséria. De noite a de manhã cedo não se pode passar pelas calçadas das ruas, sem passar por cima de cadáveres vivos, homens e crianças dormentes. Mesmo pelo leito das ruas é difícil passar, seja a pé, seja de carro, porque há filas de vacas ruminando calmamente e olhando filosoficamente para os bípedes humanos, como se dissessem: Que vêm vocês intrusos fazer aqui? Nós somos os donos desta cidade e deste mundo... Ninguém mexe com as vacas sagradas, ninguém lhes dá um pontapé, ninguém as manda levantarem-se – todos, pedestres e motoristas, respeitam religiosamente os animais, que enchem de excremento as ruas, e ninguém faz limpeza. Não há policiamento, a não serem os dirigentes do trânsito. Cada um tem o direito de fazer o que acha bom. O hindu é um homem imensamente pacífico, escandalosamente passivo. Isto é, da sua íntima natureza, há milênios. A ahimsa (não-violência) de Gandhi não parece ser para o hindu um imperativo categórico, mas um postulado da sua própria natureza. Durante todo o tempo que andei pela Índia, de norte a sul, de leste a oeste, não ouvi um só palavrão, não presenciei uma briga, não ouvi uma descompostura; também não vi um bêbado, não vi ninguém que fumasse – se aparece um bêbado ou um fumante é estrangeiro; item, se aparece um homem gordo, barrigudo, não é hindu. Da mesma forma não vi homem nem mulher de dentes cariados ou desfalcados; todos, a despeito da sua miséria e pobreza, ostentam dentaduras maravilhosas. E, no entanto, quase ninguém usa pasta dental fabricada; o que


se vende em todas as ruas são dois preservativos naturais: um pauzinho chamado neeme (nime), e uma trouxinha de folhas de betel. O primeiro é uma haste verde, da espessura de um lápis ou dum dedo, que a gente corta em pedacinhos e vai mastigando até ficar mole e dar uma espuma branca, como de sabão; neutraliza os ácidos corrosivos do esmalte, protege os dentes tornando-os brancos como marfim. Por fim, esse pauzinho vira escovinha, que então serve para escovar os dentes. Lembro-me de ter visto esse mesmo dentifrício natural em Dakar, na África. O outro, o betel, é um pouco mais complicado: são umas folhinhas macias, como de alface, em que o vendedor, na calçada da rua, deita uns pozinhos e uma gosma como de lesma, dobra tudo e entrega-o ao comprador para mastigar e depois cuspir. Devido a essa goma repugnante, não experimentei o betel, mas, pelo que consta, é de grande eficácia. Ao longo das calçadas mandou o governo da Índia instalar torneiras públicas, porque muitas famílias não têm água em casa. Quem sai de manhã, vê sentado debaixo de cada torneira um homem (nunca vi mulher), ensaboando o corpo todo, semi-nu, e deixando correr a água sobre si. No fundo deve haver poço, cisterna, porque, geralmente, alguém aciona uma bomba manual. Sendo que a maior parte dos homens usa apenas uma tanga ou calção, é fácil esta limpeza na rua. Depois se deitam ao sol sobre a calçada, encarregando o sol tropical de enxugar o corpo. Assim é fácil viver economicamente. Quem se contenta com esse miniconforto vive feliz na Índia. Nada de roupas complicadas, nada de sapatos caros, nada de chapéus e outras tiranias da civilização. As mulheres andam quase todas de sari multicor, que vai do pescoço até aos pés; quando andam, sempre de sandálias, jogam a parte inferior do sari para frente, com os pés, com muito jeito. A mulher hindu não vive em pé de igualdade com o homem; sente-se inferior em tudo, como vi sobretudo no asram de Sevayatan, onde as esposas dos professores não assistiam à nossa reunião, em casa de um deles; apenas saudavam o hóspede, e logo se retiravam para a cozinha. Aliás, poucas delas, ao que parece, entendem o inglês, única língua em que eu podia comunicar-me com os indianos. Em país algum do mundo vi tanta mania de enfeites como no mundo feminino da Índia. Todas as mulheres, moças e meninas, usam brincos nas orelhas; muitas também usam chapinhas de metal branco ou amarelo da cada lado do nariz; perguntei como é que prendiam esses enfeites, e disseram-me que mandavam perfurar as paredes laterais do nariz para prendê-los. Muitas usam três e até cinco enfeites na volta sup-erior da orelha. Anéis nos dedos das mãos é uso geral; algumas mulheres usam anéis também nos dedos dos pés.


Braceletes nos pulsos é comum; braceletes no tornozelo, só os vi poucas vezes. Raras vezes a mulher indiana não ocidentalizada corta o cabelo; usa geralmente cabelo comprido descendo pelas costas, em uma ou duas tranças. Não visitei nenhuma fazenda de criação do bicho da seda; mas, a julgar pela enorme quantidade de tecidos de seda, deve haver na Índia muita sericultura. *** Mas, voltemos ao nosso ponto de partida, a cidade sagrada de Varanasi. Sendo que ela é banhada pelo Ganges, cujas nascentes se acham nas misteriosas alturas do Himalaia, todo indiano devoto acha ser seu dever de consciência tomar banho ritual no Ganga, como eles dizem. Já que eu estava em Varanasi, não pude deixar de mergulhar no rio sagrado. Se é verdade que o Ganges lava os pecados da gente, devia ter havido, nesse tempo, muitos banhos de pecadores, porque o rio estava terrivelmente sujo (também chovera muito nos últimos dias). Se alguém ficou sujo fui eu, e tive de tomar um chuveiro de água limpa, logo depois. Nas margens do Ganges há os célebres ghats ou escadinhas, sempre repletos de devotos banhistas de todas as partes da Índia. Não há cabines para a gente se despir e vestir, porque todo mundo anda vestido-despido. É a vantagem dessa civilização simplificada: toma-se banho com a mesma indumentária com que se anda na rua. Eu não pude gozar dessa vantagem, porque estava apenas semi-orientalizado. Tive de procurar uma cabine, que, com muito custo, achei: quatro paredes de tábua, sem porta, e com tanto barro mole no chão que não consegui despir-me sem me atolar; fui procurar umas pedras na vizinhança e, firmado nelas, consegui, com muita acrobacia, tirar e pôr a roupa sem me sujar. Não há cemitérios na Índia, a não ser de estrangeiros; os nativos têm os seus crematórios, onde os cadáveres são reduzidos a cinzas, e estas, quando possível, jogadas no Ganges, onde certamente participam da sacralidade dessas águas e facilitam a próxima reencarnação. Mahatma Gandhi lutou a vida inteira contra o infeliz sistema de castas, sobretudo a favor dos sem-casta, dos párias ou intocáveis. Para dar exemplo, transferiu a sua residência ao meio dos intocáveis, e convidou para empregada uma jovem pária, coisa inaudita entre os brâmanes e outras super-castas. Entretanto, o pária não se sente na Índia como se sentiria num país ocidental. Está satisfeito com a sua condição de inferioridade e sofrimento; pois vive na firme convicção de que sofre agora para pagar débitos do passado – e por que


não seria bom pagar suas dívidas? Não é melhor pagar os débitos agora do que deixá-los para uma futura reencarnação? Querer ajudar e beneficiar um desses sofredores é interpretado quase como um malefício. Ninguém pode pagar por mim o que eu devo; ninguém pode sofrer males por minhas maldades – eu mesmo, e só eu é que posso pagar os meus débitos, e o pagamento se faz por meio de sofrimento. Portanto, é bom sofrer. Não se vê, na Índia, nenhuma revolta contra o destino, contra a sorte; tudo faz parte de um grande plano cósmico. Nem tampouco se vê revolta dos pobres contra os ricos, exceto quando essa mentalidade inconformista veio de algum país estrangeiro. Ao voltar do ashram de Sevayatan para Calcutá, tive de esperar mais de uma hora na estação ferroviária, porque havia uma passeata comunista da juventude indiana, e o nosso táxi não podia romper a fila quilométrica, formada por milhares e milhares de pessoas, todas empunhando a bandeira vermelha com foice e martelo. Mas não houve brigas, desordens, mortes – nada. O hindu é incrivelmente passivo, tanto para o bem como para o mal. Mahatma Gandhi, Vinoba Bhave e outros homens de dinâmica atividade não representam essa Índia passiva dos últimos 150 anos de dominação estrangeira. Indira Gandhi, filha do falecido presidente Nehru, fez ver, num dos seus discursos, que um século e meio de jugo estrangeiro reduziu a Índia a um estado de estoicismo negativo e de inércia que não é a mentalidade da Índia autêntica. Em tempos antigos, a Índia já revelou grande dinamismo. A própria filosofia da Índia manda “trabalhar intensamente”, como diz a Bhagavad Gita. Não proclama simples karman (agir), nem akarman (não agir), mas sim naiskarman (reto agir). O mal está não está no agir, nem o bem está no nãoagir, mas sim num agir inspirado numa atitude interna correta. Neste ponto, a filosofia cósmica da Índia coincide com o espírito do Evangelho do Cristo.


NO MUSEU DE MAHATMA GANDHI EM NOVA DELHI

A última grande cidade da Índia que visitei foi Delhi, ou Nova Delhi, como nós estamos acostumados a dizer; pois há também uma Velha Delhi. É uma cidade bastante limpa, quase ocidental. Espaçosas ruas e avenidas, bem arborizadas. Enorme comércio de artigos de seda e objetos de luxo, lembrando Paris, Roma, Frankfurt. Cidade cheia de magos e faquires, sempre dispostos a divertir os numerosos visitantes estrangeiros com suas habilidades. Logo no primeiro dia, dei com um homem de turbante hindu, que me declarou: I am a swami (eu sou um swami). E perguntou-me se eu gostaria de saber algo sobre o meu futuro. À minha resposta afirmativa, abriu uma pequena agenda e disse: Ponha aqui dois dólares, e eu lhe direi o seu futuro. Dei-lhe alguns níqueis, e respondi: – Antes de me revelar o meu futuro, diga-me algo sobre o meu passado. Em que dia e mês nasci? – Eu lhe direi, se puser aqui dois dólares. – Diga a data do meu nascimento; se acertar, eu lhe darei os dois dólares. Mas o tal swami não me atendeu, e não recebeu o dinheiro. Só podia profetizar em face do dinheiro. Desistiu da profecia. Passou a outro terreno: – Diga o nome de uma flor. – Rosa. Ele desdobrou um pedacinho de papel embrulhado, e lá estava o nome “rosa”. – Diga o nome de uma fruta. – Maçã. Ele desdobrou outro papelzinho, desta vez entregue por mim, e lá estava a palavra “apple” (maçã). Adivinhava o meu pensamento? Sentia a minha vibração?


Que respondam os eruditos da parapsicologia. Há tal coisa como transmissão de pensamento? Pode um cérebro receptor captar vibrações lançadas por um cérebro emissor? Se a nossa ciência e técnica produzem aparelhos eletrônicos de emissão e recepção, por que não poderia a natureza fazer o que o homem faz? Mas, por que o tal swami não captou a emissão cerebral sobre a data do meu nascimento?... *** Num dos arrabaldes mais belos de Nova Delhi existe o maravilhoso Museu Mahatma Gandhi, onde se conserva tudo que tenha qualquer relação com a pessoa do grande libertador da Índia. Logo na entrada defronta o visitante com um gigantesco painel mural representando o caminho do céu: é uma larga faixa luminosa que se projeta às alturas; e nesta faixa de luz andam três homens: Buda, Jesus e Gandhi. Buda à frente, com as mãos erguidas à luz, que irradia de cima; atrás dele Jesus, com as mãos apoiadas nos ombros de Buda; atrás de Jesus, Gandhi, com as mãos nos ombros de Jesus. Assim, esses três grandes mestres espirituais da humanidade mostram o caminho do céu a todos, indo eles mesmos à frente com sua própria vida e vivência. Quem concebeu este quadro já devia estar liberto de todos os sectarismos que ainda escravizam tantas religiões. Aliás, não há sectarismos dogmáticos na Índia; a filosofia hindu aceita todo e qualquer caminho ou credo, porque está convencida de que há tantos métodos quantos homens, mas que há uma única meta, como uno é o próprio Deus. Outro quadro do mesmo museu representa um vasto campo de batalha, cheio de canhões e metralhadoras, apontando todos para o mesmo alvo – e esse alvo é um homenzinho esquelético, careca, vestido de uma tanga – Mahatma Gandhi. E no fundo do quadro se lê: O poder da não-violência. Na entrada do museu há um balcão, onde são dados ou vendidos livros sobre Gandhi, em diversas línguas. Adquiri algumas dessas publicações, inclusive um livrinho com 100 pensamentos de Gandhi em sânscrito e em inglês. [5] Item o magnífico albúm comemorativo do centenário do nascimento de Gandhi, 2 de outubro de 1969, publicado sob os auspícios do governo da Índia. É a melhor e mais autêntica biografia ilustrada sobre o grande místico dinâmico da Índia. Impressionante é sobretudo a página que representa a declaração da independência da Índia, realizada à meia-noite de 14 a 15 de agosto de 1947, em Nova Delhi. Reproduz parte do discurso oficial de Mr. Mountbatten, último governador britânico da Índia:


“Estamos aqui para declarar a independência da Índia; mas o arquiteto dessa independência está ausente; está, todavia, presente no coração de cada um de nós.” E onde estava Gandhi nessa noite memorável? Andava longe, do outro lado da Índia, construindo casas para os pobres e tentando pacificar o Paquistão. Só mais tarde chegou a saber da declaração da independência nacional de seu país, pela qual trabalhara e sofrera mais de meio século. -------------[5] Traduzi e publiquei este livrinho, com o título “Assim dizia Mahatma Gandhi”.


TAJ MAHAL – UM SONHO EM MÁRMORE

Poucas horas distante de Nova Delhi fica Agra com o famoso Taj Mahal, talvez a mais perfeita obra de arquitetura e escultura da Índia. Quem visita a Índia e não viu esse “sonho em mármore”, perdeu grande parte da sua viajem. Que é o Taj Mahal? É um mausoléu que um chefe muçulmano, séculos atrás, mandou erigir, em plena natureza, à memória de sua esposa mais querida, que ele chamava a “jóia do palácio” (Taj Mahal). Esse sheik era casado, mas, quando, certo dia, numa viajem ao sul do país, viu uma jovem de 19 anos, a tal ponto se apaixonou por ela – ou melhor, tão intensamente a amou – que a tomou por sua segunda esposa. E durante 20 anos conviveu com ela. Aos 39 anos era ela mãe de 14 filhos – e morreu de parto com o último. Antes de expirar, pediu ao marido que nunca mais amasse outra mulher e perpetuasse o seu amor num monumento de beleza. O esposo prometeu as duas coisas, mas cumpriu apenas a segunda; pois, após a morte da esposa dileta casou mais duas vezes. Mas nunca nenhuma outra mulher ocupou o coração dele como aquela que ele chamava Taj Mahal, a jóia do palácio, que era também a jóia do seu coração. Chamou um insigne artista da Turquia, que, em 22 anos, ergueu esse sonho de beleza e de amor, todo revestido de mármore alvíssimo. Quem contempla o monumento à distância tem a impressão de estar diante de uma delicada filigrana branca, espécie de rendilhado de seda – tão delicados e perfeitos são os entalhes e as perfurações de mármore. Centenas de figuras de plantas, aves e insetos se acham embutidas no mármore, incrustações de pedras semipreciosas, verdes, azuis, vermelhas, topázio. No subsolo, sob a cúpula principal, jazem os restos mortais da amada rainha. Por cima da cripta, ao nível do solo, se ergue artístico mausoléu cravejado de preciosidade e de ouro. Do lado de fora, nos quatro cantos da extensa plataforma em que assenta o mausoléu, se erguem quatro esguios minaretes, como os árabes costumam usar nas suas mesquitas, dando ao todo um aspecto de encantadora simetria e sorridente estética.


Taj Mahal se espelha graciosamente num lago, margeado de escuros ciprestes e elegantes tuias, cujas agulhas negras contrastam admiravelmente com alvura do mármore. Quem observa o Taj Mahal ao nascer do sol tem a impressão de que é feito todo de um material ligeiramente dourado. Ao meio-dia prevalece a tonalidade da alvura brilhante. Ao pôr-do-sol tudo aparece envolto num suave esplendor rosado ou violáceo, conforme a incidência da luz do ocaso e o reflexo das nuvens. Apesar de tanto amor e tanta beleza, a vida do chefe muçulmano não foi feliz. Passou os últimos anos à sombra duma fortaleza próxima, aprisionado por um filho, usurpador do trono, e morreu nesse cárcere. Mausoléu como Taj Mahal nunca poderia ser realizado por um hindu monista, mas somente por um monoteísta dualista, como são os discípulos de Maomé: O hindu não crê com suficiente firmeza na realidade da morte para perpetuar a memória de um defunto com tamanho aparato. Todas as religiões dualistas, crentes num Deus distante, enxergam um profundo abismo entre a vida e a morte, ou melhor, entre os vivos e os mortos. Para o monista, vida e morte não são coisas contrárias, mas complementares; são apenas o anverso e o reverso da mesma medalha, o dia e a noite de uma e a mesma existência. Se cristianismo ocidental fosse monista, como a filosofia oriental e o Evangelho, não teríamos nos cemitérios esse luxo que temos.


A SERENIDADE DO HINDU

Uma das experiências mais estranhas para o ocidental que visita a Índia é a imperturbável serenidade do hindu. Ele não se altera com coisa alguma. Essa serenidade não é uma indiferença passiva, mas uma atitude ativa de equilíbrio. Quando o turista nega uma esmola ao pedinte, este não se ofende, não se irrita, não o xinga nem roga pragas, como entre nós; retira-se, sereno e calmo, e tenta outra oportunidade. Quando o hindu nada tem que comer hoje, consola-se com o dia de amanhã. Quando o hindu pobre passa diante do palacete de um ricaço, não o inveja, nem pensa na injustiça da sorte ou da sociedade; acha que as leis cósmicas são justas, e ele mereceu ser pobre, assim como o outro mereceu ser rico. O que cada um semear, isto ele colherá. Quando o hindu sofre, cala-se, na certeza de que é bom sofrer, no presente, para não ter de repetir a fastidiosa rotina do sansara de nascer, viver, morrer e renascer sempre de novo, aqui na terra, e poder entrar no nirvana da quietação eterna. O hindu não considera a reencarnação como regra geral da evolução, mas vê na reencarnação uma exceção, uma auto-punição de alguém que falhou à vida terrestre e se auto-condenou a repetir o curso da vida mal vivida. As leis cósmicas são justas e não perdoam ninguém, não há prêmio nem castigo, há somente a lei inexorável de causa e efeito, que ninguém pode mudar. Também não há tal coisa como perdão, no sentido teológico, Deus não perdoa a ninguém, no sentido de o dispensar do cumprimento da lei, que seria uma injustiça. Cedo ou tarde, o homem tem de cumprir a lei inexorável. Deus é a própria lei, no dizer de Einstein. A imperturbável serenidade do hindu, como se vê, não é uma espécie de virtude ou virtuosismo, é antes uma atitude de retitude e sabedoria inconsciente. O hindu vive mais no cosmo-consciente do que no ego-consciente. A sua atitude é comparável ao recipiente côncavo, em que param e se acumulam as águas transcendentais, ao passo que o ego-consciente do


ocidental se parece mais com o convexo de que escorrem as chuvas sem parar. Que vive mais no cosmo-consciente (que é o inconsciente do ego, segundo Jung) não necessita de provas analíticas para ter certeza da realidade do mundo invisível, que, para ele, é intuitivamente evidente – como, para o ocidental, é evidente o mundo material. E é precisamente esta a diferença entre ato e atitude; o ato é ego-consciente, a atitude é cosmo-consciente, e por isto pode ser ego-inconsciente. Também os verdadeiros místicos do ocidente vivem nessa permanente serenidade, nessa atitude de equilíbrio dinâmico, porque não são atingidos pelos opostos positivos e negativos, que atormentam a vida do homem profano, do homem das ilusões do ego-consciente. A verdadeira serenidade nada tem a ver com indiferença ou apatia. O homem autenticamente sereno pode interessar-se dinamicamente por todas as coisas do mundo externo; mas ele paira acima das antíteses das periferias, na excelsa estratosfera da grande síntese, do sim e do não, entre gozo e sofrimento, entre simpatia e antipatia, no nirvana da felicidade perene nascida da consciência e vivência da verdade libertadora. A serenidade que, no hindu, é uma espécie de hereditariedade inconsciente, pode ser, no homem místico e cósmico, uma auto-realização plenamente vitoriosa, segundo a filosofia de Goethe: “O que herdaste dos teus pais, adquire-o para o possuíres.”


NA MÍSTICA PENUMBRA DAS CATACUMBAS

A etapa final da minha viagem por três continentes se passou em Roma, onde fiquei alguns dias antes de tomar o jato da “Alitália”, que ia cruzar a África e o Oceano Atlântico, em vôo noturno direto, em 11 horas, Roma – Rio. O que sempre me fascina na “cidade das sete colinas” não são, em primeiro lugar, os seus edifícios monumentais, as suas obras-primas de pintura e escultura, mas sim as misteriosas galerias subterrâneas onde nossos irmãos em Cristo viveram durante três séculos, perseguidos, trucidados, mas profundamente felizes e gloriosos. As catacumbas de São Calisto têm mais de 20 km de extensão, e foram sempre as minhas prediletas. Disseram-me que há no subsolo de Roma 52 catacumbas, entre maiores e menores, sendo algumas de 5 andares sobrepostos; mas o último subsolo é praticamente inacessível, porque está quase sempre cheio de água. Guiado por um dos peritos, que nos foi designado pelos padres Salesianos que residem à entrada destas catacumbas, no meio dum esplêndido jardim, perambulamos, meditativamente, parte do primeiro plano desses estreitos subterrâneos. De vez em quando, os corredores se alargam e formam salas, onde os discípulos do Nazareno faziam as suas reuniões litúrgicas, oravam e cantavam hinos de amor e alegria. Aliás, tem-se a impressão de que, na penumbra desses cemitérios subterrâneos, só reinava paz e alegria, embora os cristãos não tivessem certeza de um único dia de vida. A vida verdadeira deles não era do corpo mortal, mas do espírito imortal. Viviam num céu subterrâneo. Ainda ardia em sua alma aquele fogo que o divino Mestre viera trazer do céu à terra, e que ninguém podia extinguir. A permanente insegurança da vida terrestre parecia funcionar até como combustível para alimentar a chama da vida celeste. Não havia ainda nenhuma organização eclesiástica, como surgira mais tarde; em vez disto, imperava o poder da experiência crística direta e genuína; o fogo de Pentecostes continuava a arder no coração de cada um. A lei romana proibia que alguém fosse preso ou morto em lugar sagrado, como eram templos e cemitérios – e as catacumbas eram tanto isto como aquilo – o que não impedia que, de vez em quando, essa lei fosse desrespeitada e os lugares sagrados fossem invadidos por profanos e inimigos. Os cristãos eram equiparados a traidores da pátria, porque se recusavam a tomar parte nas cerimônias religiosas e nos sacrifícios ritualistas que o Império


Romano relacionava estreitamente com a segurança nacional. A segurança da pátria dependia grandemente do favor dos deuses. Por motivos de consciência, os discípulos do Nazareno se abstinham das cerimônias politeístas – e eram perseguidos e massacrados como criminosos e cidadãos desleais. As gigantescas ruínas do Coliseu (Colosseum) são, por assim dizer, um epílogo das catacumbas. Antes do Cristianismo era o Coliseu uma espécie de estádio ou ginásio de divertimentos públicos. Na vasta arena, circundada por muitos milhares de assentos em anfiteatro, lutavam homens com feras, como hoje nas touradas da Espanha; lutavam também homens com homens, os gladiadores, condenados à morte, para gáudio da plebe dos palácios e das ruas. O instinto sanguinário do homem, por vezes surpreso temporariamente, surge sempre de novo. Quando surgiu o Cristianismo, os divertimentos públicos do Coliseu assumiram aspecto novo: os discípulos do Cristo, considerados traidores, eram lançados aos leões e aos tigres. Cecília Metella, jovem a abastada patrícia romana, era então conhecida como uma das mais influentes protetoras dos cristãos. Foi degolada pela nuca, mas a parte da garganta não se desprendeu do tronco. Foi encontrada nesse estado, como um escultor a representou maravilhosamente em mármore branco; Cecília mostra com os dedos inertes “um” e “três”, que os cristãos interpretaram como uma profissão de fé no Deus uno e trino. A entrada à catacumba de São Calisto fica na antiga propriedade de Cecília Metella, hoje padroeira da música sacra. É fácil entrar e permanecer indefinidamente em meditação transcendental, digamos, em sintonização cósmica, na mística penumbra das catacumbas, porque nelas persistem poderosas auras espirituais, ecos de milhares de vibrações irradiadas por almas de alta voltagem espiritual, durante diversos séculos. Fazem lembrar as irradiações do Himalaia. Esse fator “aura”, ou que outro nome tenha, nunca foi devidamente explicado nem considerado, em nossas reuniões espirituais. Também, como se poderia analisar algo tão intangível e alusivo com esses fluidos metafísicos?... Os inexperientes acham que se trata de simples crendice ou auto-sugestão. Poucos sabem, porque não saborearam, que auras são realidades, tão reais como ondas elétricas ou eletrônicas, mas de uma frequência vibratória mil vezes mais sutil e poderosa. Uns decênios atrás, quem teria acreditado em eletrônica? Que alguém pudesse ouvir em São Paulo ou no Rio de Janeiro a voz de um amigo que falasse em Tóquio ou Washington? Que pudesse até ver na pequena tela do seu televisor, em plena noite, o rosto de uma pessoa distante?


A parapsicologia dos últimos tempos já trata “cientificamente” de transmissão de pensamentos, telepatia, clarividência e outros fenômenos que, ainda há pouco, pertenciam ao domínio da crendice popular ou da superstição. “E Jesus, vendo os pensamentos deles, disse...” frases como esta foram escritas há quase dois mil anos – mas quem sabe o que estas palavras querem dizer realmente? Como se podem ver pensamentos? Hoje em dia, depois de Einstein e outros magos da ciência e sapiência, muitos estão começando a se convencer de que tanto mais real é algo quanrto menos material. O real é hoje inversamente proporcional ao material. A maéria é menos real que a energia, e esta é menos real que a luz; e a própria luz visível é menos real que a luz invisível, a luz cósmica. E que há para além da luz cósmica, invisível? Um grande cientista dos nossos dias, James Jeans, escreveu: “Outrora, o Universo nos parecia como uma grande máquina, hoje parece ser um grande pensamento”. E, se chegarmos a provar que a base da luz é o pensamento, o “lógos” dos antigos gregos e egípcios (Hermes Trismegistos, Heráclito, e outros), que estará para além do pensamento-lógos? O espírito, o pneuma? A ciência se está movendo cada vez mais da física para a metafísica, do material para o imaterial, das facticidades fictícias para a realidade verdadeira. Auras espirituais são irradiações sutis de pessoas que atingiram elevado grau de consciência da Realidade Cósmica, que se aproximaram do grande e invisível “Uno”, que age em todos os visíveis “Verso” do Universo. Esse “Uno” no homem se chama alma, o verdadeiro Eu; e o “Verso" no homem são as coisas do seu ego, físico, mental e emocional. Quando o “Uno”, o Eu central, atinge intensa consciência de si mesmo, quando a Realidade inconsciente no homem se realiza conscientemente, pelo autoconhecimento, então esta vibração de alta voltagem permeia, pouco a pouco, as periferias do ego, e, através desse ego personal, se comunica também aos objetos impersonais do ambiente. E então esses objetos do ambiente são impregnados ou imantados dessas mesmas vibrações do Eu central. Os canais recebem da fonte. E os objetos, assim imantados, onerados da radioatividade do Eu, irradiam algo do seu magnetismo e facilitam o despertamento do outro Eu dormente. Um ímã comunica magnetismo transitório a um pedaço de ferro comum; e comunica magnetismo permanente a um aço de alta têmpera. “Imam” é a palavra árabe para “fiel”, ou “diretor espiritual” (guru, rabi). O ferro comum tem pouca fidelidade ao ímã; o aço possui alta fidelidade ao ímã. Uma alma humana de elevada receptividade reage às irradiações do Cristo, e, se for de elevada têmpera, lhe será fiel em caráter permanente; será imantada, cristificada.


Lugares sagrados são creações de almas sacras. E as almas receptivas percebem a sacralidade dos lugares sacralizados pelas alma sacras. Se eu afinar o meu aparelho receptor de rádio pela mesma frequência vibratória da estação emissora, recebo exatamente a mensagem irradiada por esta. A mensagem está sempre no ar; mas só estará no meu rádio se eu sintonizar pela onda certa, se tiver “fides”, fidelidade. “Quando o discípulo (receptor) está pronto, então o mestre (emissor) aparece.” “O homem é salvo pela graça (emissor) mediante fé (receptor).” A receptividade é condição para que a causa possa agir. Um ambiente propício, espiritualmente imantado, não garante necessariamente a imantação, o efeito espiritual. Pode até acontecer o contrário, intensificar o polo oposto, como aconteceu no cenáculo da “santa ceia” com Judas Iscariotes. O recipiente já deve possuir certa recipiência para poder ser afetado pela atuação da aura espiritual. E é aqui que entra esse fator incalculável, que é o livre arbítrio, que não conhece concatenação determinista, mas que é como um elo incausado e incausante, um único elo isolado, auto-determinante, e não alo-determinado. “Muitos são os vocados – poucos os evocados...” Muitos são os que estão dentro do âmbito das auras emitidas por uma fonte espiritual – poucos são os que reagem a essa irradiação, conscientizando a sua presença. Se a simples presença objetiva de Deus curasse males e maldades, não haveria males nem maldades na terra, porque a presença divina é contínua, no tempo e no espaço. Mas o que cura males e maldades é tão-somente a conscientização subjetiva dessa presença, e essa conscientização é obra do livre-arbítrio, que não conhece porquê nem para quê – é o poder de ser causa própria, autodeterminante. O ambiente das catacumbas é um convite silencioso, não-obrigatório, para que o livre-arbítrio possa querer espontaneamente o que antes não queria. O homem – escreveu Schopenhauer, e Einstein o cita com respeito – pode fazer tudo o que ele quer; mas nem sempre pode querer tudo o que quisera querer. Por vezes, lhe falta o poder para o querer. Não lhe falta esse poder potencial, mas falta-lhe a atualização, o despertamento desse poder, que o poria em condições de querer... Certo ambiente facilita grandemente o despertamento desse poder dormente...


FOGO VIVO E CINZA MORTA

Palestina, Egito, Índia – três centros de cultura e espiritualidade antigos. Cinco milênios antes da era cristã já florescia na Índia uma grande cultura e uma mentalidade mística, que foi a fonte da qual outros países receberam as águas vivas da espiritualidade. A raça privilegiada dos antigos Ários (nobres), vindos do norte da Ásia, invadiu as vastas planuras dos Hindus e, além do progresso horizontal, difundiu uma ideologia intensamente vertical, inquirindo sobre o donde, o para onde e o porquê do homem e do mundo. Nasceu assim a mais antiga das filosofias de que temos conhecimento. Os Vedas, a Rig-Veda e outros documentos dão testemunho dessas cogitações metafísicas. Verdade é que, nessa época, predominava ainda, na filosofia ariana, a concepção mitológica, que personifica as forças da natureza, creando deuses e deusas. Mas a matéria-prima da filosofia cósmica que, mais tarde, se cristalizou na Bhagavad Gita e nos Upanishadas, já estava embrionariamente presente nessas mitologias primevas. Cerca de 2000 a.C. a filosofia monista da Índia se ramificou e penetrou em terras ao leste e sul do Mediterrâneo, florescendo na Pérsia e no Egito, onde assumiu caráter mais mental do que espiritual. A mística aparece então como magia. A Bíblia, cujas origens remontam à terra dos faraós, conservou-nos preciosos documentos dessa magia mental, sobretudo nas dez pragas que Moisés fulminou sobre o Egito. Esses fenômenos, que hoje chamaríamos talvez parapsíquicos, foram, em parte, neutralizados pelos magos da corte do faraó; mas a décima das pragas, a morte dos primogênitos, não encontrou rival, e teve efeito trágico. Alexandria se tornou o centro da filosofia do Egito. Daí ela irradiou para o sul da Europa, primeiramente para a Grécia, tanto européia como asiática. O caráter fundamental dessa filosofia é monista, proclamando que o Infinito está presente em todos os Finitos, e todos os Finitos estão no Infinito. Ou seja: a Essência está em todas as Existências, e as Existências estão na Essência. Ou ainda, tomando por base a palavra “Universo”: O UNO se manifesta como VERSO, e o VERSO revela parcialmente o UNO. Revela, e também vela, manifesta e também oculta – porque nunca uma existência finita (Verso) pode manifestar totalmente a essência infinita (Uno). Daí a célebre frase da Bhagavad Gita: Maya (o Finito) revela e vela Brahman (o Infinito).


Esse grandioso monismo é confundido com panteísmo pelos ignorantes e confusionistas, como consta em quase todos os tratados de filosofia ocidental. Os hebreus no Egito e, mais tarde, na Palestina, professavam o monoteísmo, mas nunca atingiram as alturas do verdadeiro monismo; havia um só Deus em Israel, podendo, porém, haver outros deuses no resto do mundo. Apareceu então, na margem oriental do Mediterrâneo, um profeta que proclamava a mais alta sabedoria monista, não em forma de especulações intelectualistas, mas em forma de aforismos soltos, como aparecem no Evangelho. O monoteísmo admite um único Deus para seu povo e seu país, e esse Deus é transcendente, ausente do mundo e presente no céu. O monoteísmo é uma concepção dualista. O monismo proclama um Deus único para o mundo inteiro; e esse Deus, embora transcendente em sua essência, é ao mesmo tempo imanente nas suas existências. Se o monismo não admitisse transcendência, mas apenas imanência, seria panteísta; se, por outro lado, só admitisse transcendência e não imanência, seria dualista, como o da sinagoga de Israel e das teologias eclesiásticas do ocidente. Mas o verdadeiro monismo, sobretudo na forma do Evangelho, é transcendente-imanente, bem expresso nas palavras de Jesus: “Eu e o Pai somos um, o Pai está em mim e eu estou no Pai – mas o Pai é maior do que eu”. Em linguagem abstrata diríamos: Eu e o Infinito somos um; O Infinito está em mim, e eu estou no Infinito – mas o Infinito é maior do que eu. Nos princípios do quarto século, o monismo do Evangelho do Cristo foi contaminado, e em parte eclipsado pelo monoteísmo da sinagoga de Israel. E até hoje o monismo do Evangelho aparece na forma do monoteísmo das nossas teologias eclesiásticas. Vivemos num Cristianismo judaico, e não num Cristiamismo crístico-evangélico. A Suma Teológica de Tomás de Aquino e as decisões oficiais do Concílio de Trento estabilizaram definitivamente o monoteísmo dualista da igreja contra o monismo evangélico do Cristo, tachando este de panteísmo. O recente Concílio Vaticano não voltou à doutrina monista do Evangelho, limitando-se a modificações secundárias, dentro do esquema tradicional do monoteísmo dualista da sinagoga de Israel e da teologia. *** Índia, Egito, Palestina – três cenários de remontada filosofia monista e de vivência mística. Mas que sabem disto os turistas dos nossos dias? Lava fria lançada por vulcões ígneos – poderá a lava morta dar idéia do fogo vivo?


Umas gotinhas de metafísica produziram esses mares de física – essas coisas físicas que os turistas profanos enxergam, mas além das quais nada percebem... Em todos esses países tive um trabalho imenso para afastar de mim os tais “guias”, oficiais ou particulares, que se oferecem obstinadamente aos visitantes para desfiarem mais uma vez o seu chavão rotineiro, que já sabem de cor e salteado. Nada sabem da alma do Taj Mahal, das pirâmides, da esfinge, do Gólgota... Vêem apenas o corpo sem alma – o cadáver... A física sem a metafísica... Eu, por mim, quero saborear o espírito dessas materialidades, a invisível realidade dessas visíveis facticidades... Quero sentir o fogo vivo que me fala através dessas cinzas mortas... E, para isto, é melhor a ausência do que a presença de guias... Mas compreendo a atitude dos turistas profanos. Vivem numa dimensão de consciência visceralmente diferente daquela em que aconteceram essas grandes coisas metafísicas, que deixaram os seus pequenos vestígios físicos. Também, como poderia um homem que nunca viu fogo ter idéia de fogo vivo só pelo aspecto de lava fria? “Do mundo dos fatos – diz Einstein – não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores; porque estes vêm de outra região.” Valor é sinônimo de realidade, qualidade – ao passo que fatos são apenas facticidades quantitativas. E todas as facticidades são factícias, isto é, fictícias, irreais. Surge então este magno problema: se os fatos não me conduzem à realidade, como atingir a realidade? A resposta que temos de dar a essa pergunta é tão desconcertante que chega a ser absurda – e estamos com vontade de repetir com Tertuliano: credo quia absurdum. A resposta é esta: nenhum homem pode atingir a realidade – mas a realidade pode atingir o homem, se ele for atingível. Ninguém pode achar a Deus – mas Deus pode achar o homem, se ele for achável. “Quando o discípulo está pronto (atingível, achável) então o mestre aparece (o atinge, o acha)”. É o que em religião se chama o mistério da “graça”. Ninguém pode causar, merecer, um dom espiritual – mas esse dom lhe pode ser dado, se o homem crear em si o ambiente propício para essa doação, se se tornar receptivo para esse recebimento. O homem nunca pode ser causa de um efeito espiritual, mas pode ser condição para que a causa possa produzir o efeito. Não posso fabricar luz solar, mas posso abrir uma janela rumo ao sol, e a minha sala será


iluminada pelo sol, porque pus uma condição favorável a essa iluminação, abrindo a janela; mas esse abrimento da janela não é a causa, senão apenas uma condição, para que a causa, o sol, possa causar o seu efeito. Nenhum homem pode invadir o reino da verdade – mas a verdade pode invadir o homem, se ele for invadível. “De mim mesmo eu nada posso fazer – é o Pai em mim que faz as obras.” Em face disto, a única atitude certa do homem em face do Infinito é a de uma silenciosa e faminta receptividade ou recipiência em face de Deus. Quando a minha ego-vacuidade for perfeita, então a Teo-plenitude plenificará a minha ego-vacuidade. Nos seres inconscientes da natureza, a infinita Plenitude sempre plenifica as vacuidades – mas no ser consciente do homem essa plenificação pela Plenitude depende da presença duma vacuidade consciente creada pelo homem. “Deus resiste aos soberbos (ego-plenos), mas dá a sua graça aos humildes (ego-vácuos)”. É contra as leis da matemática cósmica que a infinita Plenitude plenifique alguma plenitude (ou pseudo-plenitude) finita; a infinita Plenitude só pode plenificar vacuidades finitas – vacuidades inconscientes na natureza, e vacuidades conscientes no homem. Essa atitude de recipiência é geralmente creada e nutrida no silêncio e na solidão – assim como na natureza física a fêmea quase sempre procurar um lugar solitário para dar à luz a sua prole, e o gênio humano necessita de silêncio e solidão para conceber, gestar e dar à luz a sua prole mental ou espiritual. Gênios e místicos são silenciosos. E Deus é o Silêncio Infinito. Quanto mais alguém é de Deus tanto mais é do silêncio e da solidão. Silêncio e solidão são sociedade cósmica. Silêncio e solidão são a mais intensa presença da Realidade; ruído e sociedade são, quase sempre, ausência de Realidade. A silenciosa Realidade é inversamente proporcional às ruidosas facticidades. “Nunca fales, se não tiveres plena certeza que o teu falar vale mais que o teu calar.” “Muitos se arrependem de ter falado – nunca ninguém se arrependeu de ter calado.” Quase nada sabemos dos 30 anos da infância e juventude de Jesus de Nazaré. Pouquíssimo sabemos dos três anos da sua vida pública. E que aconteceu durante os 40 dias e noites da sua permanência no deserto? Aconteceu o grande silêncio, e o que acontece no silêncio só pode ser sabido pelos silenciosos – os que sabem silenciar verbalmente, mentalmente, emocionalmente... Os que ainda vivem no ruído das palavras, dos pensamentos e das emoções nada sabem da Realidade, que só fala pelo silêncio, como o próprio Deus, a Realidade Infinita.


O mal de todas as nossas igrejas e organizações espiritualistas está no fato de só saberem falar daquilo que Jesus falou – ignorando aquilo que Ele calou... Quem não aprendeu a arte suprema de calar não pode falar com plenitude, só pode tagarelar com vacuidade. O falar é uma presença material e uma ausência espiritual – o calar é uma presença espiritual, mesmo na ausência material. Só devo falar quando a plenitude espiritual do meu silêncio exige um transbordamento para dentro dos canais materiais do meu falar; sem isto, todo o meu falar é pura camuflagem e charlatanismo – espécie de cheque sem fundos, uma detestável fraude espiritual... Nunca deveríamos falar a não ser que a plenitude do nosso calar nos obrigue a isto. O falar não vale pelo falar – só vale pelo calar... Falar sem calar é corpo sem alma – cadáver... O mundo está repleto desses cadáveres falantes, alto-falantes, dessas ruidosas vacuidades, dessas deslumbrantes bolhas de sabão cheias de vacuidade. Se tão belas coisas diz o Evangelho daquilo que o Nazareno falou – quão estupendas devem ter sido as coisas que ele calou... A sua recipiência atingiu o zênite durante o seu longo silêncio. Poucos conhecem por experiência própria o mistério do silêncio. Para a maior parte, silêncio quer dizer ausência, vacuidade – quando na realidade é presença e plenitude. Todos os grandes iluminados que a humanidade conhece viveram longos períodos de silêncio absoluto... Pouco adianta que o homem viaje pelo mundo – é necessário que os mundos viajem através dele, não para o encherem de ruídos, mas para intensificarem o seu silêncio...


RETORNO AO CRISTO DO EVANGELHO

Estava eu a terminar este livro, em fins de 1969, quando encontro na minha caixa postal duas cartas, cujos remetentes eu jamais poderia suspeitar me escrevessem. Uma dessas cartas era de D. Jaime de Barros Câmara, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro; a outra, de um ilustre Monsenhor aposentado (cujo nome prefiro silenciar). Ambos me convidavam gentilmente para estar presente em Florianópolis no dia 1.° de janeiro de 1970 – para quê? Para celebrarmos o nosso jubileu de ouro de ordenação sacerdotal, que ocorreu em 1.° de janeiro de 1920. Os dois haviam sido componentes da nossa turma de neo-sacerdotes naquela data; éramos então 5, mas 2 já não estão aqui na terra dos mortais; restamos só nós três, D. Jaime Câmara, [1] aquele Monsenhor e eu. O cardeal arcebispo me convidava para seguir com ele, do Rio de Janeiro, num avião da FAB. -------------[1] Entrementes, em 1971, também este partiu.

Agradeci aos dois amigos – mas não compareci às solenidades. Estava em vésperas de uma viagem aos Estados do nordeste, a serviço do Reino de Deus – conferências, aulas, Retiro Espiritual. Prometi-lhes estar presente em espírito e em verdade, embora ausente de corpo. De resto, para que assistir à celebração de um ritualismo em cuja cristicidade não acredito, há muito tempo? O verdadeiro sacerdócio do Cristo, “segundo a ordem de Melquisedec”, nada tem que ver com cerimonias externas; é antes uma iniciação espiritual do que uma ordenação ritual – e eu tenho de ser sincero comigo mesmo. A carta daquele Monsenhor me intitulava “pioneiro”, e achava que eu havia antecipado por alguns decênios o II Concílio Vaticano, por ter afirmado certas verdades, “ilegais” naquele tempo, mas agora “legalizadas”. Hoje em dia, dizia ele, o clero já aprendeu a ser tolerante, não olhando “com olhos vesgos” os que não pensam como ele, nem considerando pecadores e ex-comungados os dissidentes da teologia oficial, mas deixando a Deus o julgamento. Os que leram os dois volumes da minha auto-biografia “Por um Ideal” sabem a que se refere esse Monsenhor: a tremenda campanha que, alguns decênios atrás, sofri por parte do clero, pelo fato de ter afirmado poderosamente a cristoredenção e calado a clero-redenção.


É deveras estranho! A minha vida toda é dividida em períodos de 25, 25, 25 anos. Aos 25 anos fui ordenado sacerdote; 25 anos mais tarde, quando tinha 50 anos de idade, pedi a minha demissão do clero (que não me foi concedida até hoje); e agora, quando acabo de fazer 75 anos, e 50 de ordenação sacerdotal, sou convidado por membros do clero e pelo próprio cardeal arcebispo, que me convida como “prezado colega” a tomar parte no jubileu de ouro sacerdotal. E um distinto Monsenhor acha que sou precursor do Concílio Vaticano II. Remontando 25 anos atrás, na data do meu jubileu de prata, lembro-me da campanha feroz de grande parte do clero brasileiro, que me chamavam “herege”, “traidor”, “apóstata”, “Judas”, “cretino”, “Satanás”; vivia eu, nessa data, no meu modestíssimo sitiozinho em Cinco Lagos, Estado do Rio de Janeiro. Não havia discursos nem bandas de música para celebrar meu jubileu de prata – mas havia os gorjeios de um sabiá na verde ramagem e o eco longínquo de uma cachoeira na vizinhança. Nessa maravilhosa solidão, sem a presença de um único ser humano que vociferasse louvores ou impropérios, registrava eu no meu diário a data de 1.° de janeiro de 1945. O meu grande amigo e permanente protetor, D. Sebastião Leme, havia falecido, e D. Jaime Câmara era seu sucessor no Rio de Janeiro – mas, para muitos, eu era um cachorro morto, um abominável herege e apóstata. Agora, 25 anos mais tarde, sou convidado como “prezado colega” por um cardeal e chamado “pioneiro do Concílio do Vaticano II” por um Monsenhor... E esse último afirma que ele fala em nome de muitos dos meus colegas, que pensam como ele. *** E agora surge a momentosa pergunta: que foi que levou a igreja romana (que se ufana de católica, ou universal) a pensar e agir em moldes menos clericais e bem mais crísticos do que decênios atrás? Temerário seria querer conhecer todos os fatores determinantes dessa grande mudança. Quero indigitar apenas um ou outro: A filosofia do oriente e a psicologia do ocidente. E isto tem que ver com o caráter deste livro. Para os que têm olhos para ver e mente para pensar, é evidente que, nesses últimos 50 anos, se operou profunda modificação no tocante à concepção da natureza humana e da realidade de Deus. A filosofia e a psicologia mais avançadas discriminam, com grande nitidez, dois elementos básicos na constituição da natureza humana, que poderíamos chamar o pólo negativo (ego) e o pólo positivo (Eu), ou seja, o componente


humano e o componente divino no homem. Os antigos teólogos só conheciam o elemento negativo do homem, razão porque o tachavam de totalmente mau, pecador; a redenção do homem só podia vir de fora dele. Alguns teólogos rotineiros de hoje continuam a bater ainda nesta tecla, que motivou tremenda dissenção no seio do Concílio Vaticano II. Carl G. Jung, no prefácio ao livro de Evans-Wentz: “O Livro Tibetano da Grande Libertação”, faz ver que um cristão eclesiástico não pode praticar yoga superior, sem remorsos de consciência, porque o princípio básico de toda yoga superior é o do auto-conhecimento e da auto-redenção, que nenhum teólogo dogmático pode aceitar sem se sentir blasfemo. Pois, o auto-conhecimento diz que a essência humana é idêntica à essência divina; ou, na linguagem do Cristo: “Eu e o Pai somos um; o Pai está em mim, e eu estou no Pai – o Pai também está em vós e vós estais no Pai”; “Vós sois deuses”; “vós sois a luz do mundo”. Estas afirmações se referem ao pólo positivo no homem, ao seu elemento divino. Jung faz ver que o cristão que queira praticar yoga superior deve, em primeiro lugar, passar da teologia medieval para o Evangelho do Cristo, e deste ponto de vista pode tranquilamente praticar yoga, sem remorsos de consciência – e proclamar o princípio de auto-redenção, que é doutrina genuinamente Cristoevangélica. Há cerca de meio século que a filosofia oriental penetrou no ocidente cristão. Muitas pessoas do clero, certamente, se imbuíram das idéias da psicologia ocidental de mãos dadas com a filosofia oriental, e se convenceram de que a doutrina da presença do Eu divino no homem está contida nitidamente na mensagem do Cristo, embora a teologia eclesiástica a tivesse ignorado. “O Pai está em vós”, “vóis sois a luz do mundo”, “o reino de Deus está dentro de vós”, “o Verbo se fez carne e fez habitáculo em nós”, “vós sois deuses” – estas e outras palavras do Nazareno e de seus primeiro discípulos são perfeitamente compatíveis com a verdadeira filosofia oriental e psicologia ocidental, e abrem a porta para o princípio da auto-redenção, que, neste caso, longe de ser egoredenção, é cristo-redenção, teo-redenção. Se agora sou considerado pioneiro e precursor do Concílio do Vaticano II, quer isto dizer que eu, e muitos outros, “dissidentes” e “hereges”, já havíamos descoberto a compatibilidade do Evangelho do Cristo com a filosofia e psicologia. “Herege”, em grego, quer dizer “selecionador”; “heresia” (hairesis) é “seleção”. Hereges eram chamados antigamente os cristão que “selecionavam” a verdade do meio dos erros, como quem seleciona grãozinhos de ouro no meio da areia; os outros, os não-hereges, encampavam cegamente tudo, verdades e erros.


Paulo de Tarso, numa das suas epístolas, manda ser “herege” ou selecionador, escrevendo: “Examinai tudo e ficai com o que é bom”. Mas, como a teologia eclesiástica não está a serviço da Verdade, e sim do poder de uma classe, não era permitido selecionar a Verdade do meio dos erros, porque isto enfraquecia o poder do clero dominante; o homem devia fechar os olhos e eclipsar o espírito e aceitar cegamente tudo quanto o clero lhe impingisse como sendo mensagem do Cristo. Daí também vinha proibição de conhecer diretamente os livros sagrados, que só podiam ser interpretados ao povo por meio do clero. Os selecionadores ou hereges eram lançados à fogueira da Inquisição, como aconteceu a muitos, e por um triz teria acontecido ao grande Galileu. Heresia equivale, quase sempre, a uma verdade inoportuna ou prematuramente proclamada. Em 1945 era ainda heresia, ou “ilegal”, como diz aquele Monsenhor, o que em 1970 é aceito como verdade, como “legal”. Eu e outros já havíamos antecipado isto, enquanto outros, ainda escravizados pelos dogmas teológicos, não enxergavam a verdade, ou, se a enxergavam, não tinham a coragem de a professar publicamente, com medo de perder o seu emprego de funcionários eclesiásticos. Agora, que o papa soltou as rédeas ao clero, muitos têm a coragem de aceitar a mensagem do Cristo. Aquele Monsenhor, afirmando que eu sou pioneiro do Concílio Vaticano II, quis certamente elogiar-me com isto. Entretanto, em muitos pontos não me considero como pioneiro. Afinal de contas, que foi que o Concílio Vaticano II modificou? Nenhum ponto essencial. Continua a aceitar os dogmas teológicos de Tomás de Aquino e do Concílio de Trento, mas não regressou ao puro e integral Evangelho do Cristo; nem jamais o fará, porque isto equivaleria a um clerocídio, seria sacrificar o poder pela Verdade – passo que o papa não dará jamais. O Concílio Vaticano II melhorou a situação em muitos pontos secundários e periféricos, mas continua a ser 90% teológico e apenas 10% cristo-evangélico. Nós, no âmbito da “Alvorada” e da Filosofia Cósmica exigimos muito mais; nós queremos reatar integralmente o fio da mensagem do Cristo, roto no quarto século, e até hoje não restabelecido à sua prístina pureza e integridade. A mensagem do Cristo não é ritual, nem intelectual, nem moral, nem altruísta, nem social, nem espiritual – ela é 100% metafísica, ontológica, realista. O Nazareno exige do homem uma nova visão de si mesmo; que ele não é o seu ego periférico, físico-mental-emocional, a sua humana persona ou personalidade; mas sim a sua divina realidade, o seu Eu, o Pai, a luz, o reino


de Deus. Não se contenta com “remendo novo em roupa velha”; o mestre exige uma “nova creatura em Cristo”. O que falta no seio do Cristianismo eclesiástico é um genuíno Pentecostes, uma invasão do Espírito Santo, do Espírito da Verdade. Enquanto o homem se identifica com seu velho ego, embora melhorado, embora moralizado, embora espiritualizado, embora virtuoso, não está plenamente na dimensão crística. Pode ser um ego de boa vontade, mas não é um Eu de sabedoria. Pode andar no caminho estreito e passar pela porta apertada – mas continua a ser “aflito e sobrecarregado” e não encontra “descanso para sua alma”. “Vinde a mim todos vós que andais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei, porque o meu jugo é suave e meu peso é leve – e então encontrareis descanso para as vossas almas” – esta é a voz do Cristo da sapiência, do Eu crístico. Quem são os que andam aflitos e sobrecarregados? Certamente não os egos de má vontade, os profanos, os pecadores, porque eles nem iniciaram ainda o caminho estreito nem passaram pela porta apertada; os sofredores aflitos e sobrecarregados são os homens virtuosos, os egos de boa vontade, os que cumprem o seu dever compulsório, no plano horizontal da virtuosidade, da moralidade, – mas não atingiram ainda a zona vertical da sabedoria, não compreendem ainda a “verdade libertadora”, e por isto não estão libertos das suas aflições e das suas sobrecargas. Carregam o jugo e o peso do seu dever, mas esse jugo não lhes é suave nem o peso lhes é leve; cumprem o seu maldito dever, mas nada sabem ainda do seu bendito querer. Todo o homem de boa vontade é vítima desse dever compulsório, mas não é arauto de um querer espontâneo. Sofre a boa vontade do seu ego, mas não goza ainda a sabedoria do seu Eu, do seu Cristo. Não entrou ainda na “alegria do seu Senhor”. Não há dúvida, os principiantes tem de andar pelo caminho estreito e passar pela porta apertada, precisamente por estarem ainda na escola primária do tu deves, e não ingressaram ainda na Universidade do eu quero. São ótimos discípulos de Moisés, mas não são ainda discípulos do Cristo. “Por Moisés foi dada a lei (tu deves) – pelo Cristo veio a verdade, veio a graça (eu quero)”. No meu livro “Metafísica do Cristianismo” procurei fazer ver que a mensagem do Cristo é puro realismo metafísico. Todo o resto pode ser fruto e consequência dessa metafísica do Mestre, mas não é a sua raiz. Agora, neste ocaso do segundo milênio, e quase na alvorada do terceiro milênio, é chegado o momento para voltarmos à mensagem genuína do Cristo.


HOMENS PROFANOS, MÍSTICOS E CÓSMICOS

Muitas vezes, nestas páginas, nos temos referido a experiências místicas. E, como muitos confundem mística com misticismo, convém dizer algumas palavras elucidativas. O místico se acha numa atitude peculiar entre o homem profano e o homem cósmico. O diagrama da página seguinte poderá servir para concretizar o que acabamos de dizer. N.º 1: O profano vive com o rosto voltado às coisas finitas, e com as costas voltadas ao Infinito. Nada sabe da Realidade, de tão mergulhado que está nas facticidades, que os sentidos e o intelecto lhe apresentam. Para ele, realidade são esses reflexos, as creaturas, todas as coisas empíricas e analíticas. Quando o profano é de má vontade nega ou descrê da existência duma Realidade para além dessas facticidades. Essa classe de profanos se chamam agnósticos (os que ignoram) ou ateus (os que negam). Quando o profano é de boa vontade, mais ainda sem compreensão ou sapiência, chama-se crente. Ele crê que existe algures uma Realidade, com a qual espera encontrar-se um dia, no futuro e em regiões distantes da terra. Está 180 graus voltada para os Finitos. É mundo-converso e teo-averso. N.º 2: O místico teve uma revelação da Realidade (Deus) e, de tão encantado com essa inaudita descoberta, voltou as costas aos Finitos e vive contemplando o Infinito, inebriado, em permanente lua-de-mel com a estupenda Realidade, com a qual fez as suas núpcias espirituais. A Realidade invisível lhe é tudo, as facticidades visíveis não lhe valem mais nada. A sua teo-conversão o levou a essa mundo-aversão. Deu, por assim dizer, uma volta de 180 graus, olhando para o Infinito e esquecido dos Finitos. É nesta meiavolta que consiste toda a grandeza do místico – e consiste também o limite da sua grandeza. O místico é um teo-converso e um mundo-averso. N.º 3: O homem cósmico, inicialmente, também tomou a atitude do místico, voltando as costas ao mundo de Deus a fim de encontrar o Deus do mundo, mas um Deus fora do mundo. Essa espécie de mística degenera facilmente em misticismo. Mas o que há de mais estranho e incompreensível no homem cósmico é o fato de ele ter superado essa atitude anti-finitos e pró-Infinito. Assumiu, finalmente, uma posição de 90 graus entre Deus e o mundo, porque fez a maior descoberta que um homem mortal pode fazer: descobriu o Deus do mundo no mundo de Deus, numa visão unitária, e por isto não sente mais a necessidade de voltar as costas ao mundo para ter o rosto voltado a Deus. Ele


vê Deus e o mundo simultaneamente, com um olhar único; vê em Deus a causa e vê nos mundos os efeitos dessa causa; enxerga ao mesmo tempo a Fonte e os canais, o Creador e as creaturas, a infinita Essência e todas as Existências finitas. O homem cósmico fez o grande tratado de paz no santuário de sua alma, repleta de sapiência. Ele sabe e saboreia a Realidade integral, que está em todas as facticidades parciais. Reconciliou-se com o mundo de Deus, porque se harmonizou com o Deus do mundo. A sua vida forma um ângulo reto entre Deus e o mundo, e esse ângulo reto retifica tudo.


*** Mas ai do homem que se considere cósmico prematuramente! Que julgue poder nascer para a dimensão cósmica antes de terminar a sua gestação mística! Será um deplorável aborto... Dará à luz uma prole morte... Ai do homem que ame as coisas do mundo sem ter mergulhado profundamente, diuturnamente, no amor e na adoração de Deus... Milhares de profanos se têm em conta de homens cósmicos... Nunca passaram pela mística, e por isto não podem sem perigo amar o mundo em Deus, porque nunca amaram Deus sem o mundo. Iludem-se a si mesmos, julgando poder passar diretamente do estágio 1.º para o 3.º, sem passar devidamente pelos 2.º. Não sabem que a Verdade integral é uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo. Não sabem que só pode salvar sua vida quem teve a coragem de perder sua vida... Não sabem que só pode viver gloriosamente quem teve a sinceridade de morrer espontaneamente... Quem nunca amou Deus sem o mundo não pode amar o mundo em Deus, mas amará o mundo sem Deus. Sobretudo aqui no ocidente, onde os profanos são legião, é de imperiosa necessidade que o homem tenha a suprema sinceridade de ser intensamente místico antes de passar a ser extensamente cósmico. Quem nunca aprendeu a amar o Senhor seu Deus com toda a sua alma, com toda a sua mente, com todo o seu coração e com todas as suas forças, sem se desviar desse amor e dessa adoração em espírito e em verdade – não deve ousar sair do seu sagrado nirvana para entrar no sansara profano, porque essa entrada na zona profana seria uma profanação e uma profanização. E mesmo depois de ingressar na zona da consciência cósmica, deve o homem voltar periodicamente à zona da mística solitária, a sós com Deus e sua alma, como fazia o Nazareno, passando noites inteiras na solidão do ermo e no silêncio das montanhas, em colóquio com Deus... Não se atreva a ser solidário com o mundo quem nunca foi solitário em Deus!

A fim de oferecer aos homens de boa vontade lugares apropriados para esse ingresso periódico no silêncio e na solidão, mantém a ALVORADA ashrams, casa de Retiro Espiritual, tanto coletivo como individual. Nesses lugares sagrados pode o homem carregar a sua bateria espiritual e depois utilizar essas energias no meio da sociedade. Deve o homem aprender a ser solitário em Deus a fim de poder ser, sem perigo, solidário com o mundo e com os homens.


DIRETIVAS PARA UMA MEDITAÇÃO EFICIENTE

1 – Durante a meditação não se deve “meditar”, isto é, pensar, analisar, discorrer mentalmente sobre algum assunto. 2 – Meditar corretamente é pôr-se numa atitude de receptividade tal que a Fonte do Uno (Deus) possa fluir livremente para dentro dos canais do Verso (homem). 3 – Meditar é medear, servir de intermediário entre a plenitude do Uno e a vacuidade do Verso. 4 – A vacuidade dos canais consiste na completa ausência de qualquer atividade de sentimentos, pensamentos e desejos, sobretudo de ódios e rancores. 5 – Meditar é ser 0% pensante e 100% consciente. 6 – Meditar é deixar de ser ego-pensante para poder ser cosmo-pensado. 7 – Pensar é um processo de sucessividade analítica – conscientizar é um estado de simultaneidade intuitiva. 8 – Meditar é ser tudo sem fazer nada; é o nadir do ego e o zênite do Eu. 9 – Quem medita corretamente esvazia o seu ego de todos os obstáculos e obstruções e liga o seu canal, assim esvaziado, com a plenitude da Fonte. 10 – Segundo leis cósmicas, a plenitude do Uno plenifica infalivelmente a vacuidade do Verso – e esta cosmo-plenificação é diretamente proporcional à ego-evacuação. 11 – A cosmo-plenitude não pode plenificar a ego-plenitude, porque “Deus resiste aos soberbos (ego-plenos) e dá sua graça aos humildes (ego-vácuos)”. 12 – Nenhum homem pode ser Fonte, mas todo homem pode e deve ser canal, para que as águas vivas da Fonte fluam através dele. 13 – Tanto mais cosmo-pleno ficará o canal quanto maior for a sua egovacuidade.


14 – Durante a meditação não deve homem preocupar-se com o modo de pôr em prática as suas experiências espirituais – deve ser totalmente Maria e nada Marta. 15 – Basta que seja totalmente plenificado pela plenitude cósmica – e a plenitude transbordará espontaneamente para todos os setores do ego. 16 – O “primeiro e maior de todos os mandamentos” é a experiência mística de Deus – a qual se manifestará depois pela vivência ética com todos os homens. 17 – A experiência da paternidade única de Deus se revelará na vivência da fraternidade universal dos homens. 18 – A experiência do SER se manifestará na vivência do AGIR – porquanto “as obras que eu faço não sou eu (ego) que as faço, mas é o Pai em mim (Eu) que as faz; de mim mesmo (ego) nada posso fazer”. 19 – Convém fazer a meditação na melhor hora do dia, e, possivelmente, sempre no mesmo lugar e na mesma hora. 20 – O simples fato de alguém continuar por meses e anos a sua meditação diária é a melhor prova da sua eficiência, embora não haja resultados visíveis – pode haver um longo período de incubação antes da eclosão. 21 – Meditar é “orar sempre e nunca deixar de orar”, é “andar na presença de Deus e ser perfeito”. 22 – A eficiência da meditação se revela numa paulatina e imperceptível mudança de atitude fundamental em face de todas as ocorrências da vida. 23 – Meditar é crear o hábito da presença de Deus, ter a consciência permanente de que “eu e o Pai somos um, o Pai está em mim e eu estou no Pai”. 24 – A verdadeira meditação é uma sintonização cósmica, uma afinação do receptor humano pelo Emissor divino. 25 – A meditação dá ao homem segurança e serenidade em todas as circunstâncias da vida, paz e felicidade permanentes, alegria e benevolência para com todas as creaturas de Deus. 26 – Meditação e pecado são coisas incompatíveis: o homem ou deixará de pecar – ou deixará de meditar. 27 – Quem medita corretamente adquire perfeito auto-conhecimento, que se revela em auto-realização – mística manifestada em ética. 28 – Somente o homem que se habituou a ser solitário em Deus pode, sem perigo, ser solidário com todas as creaturas de Deus.


29 – O homem habituado com a meditação proclama a soberania da sua substância divina sobre todas as tiranias das circunstâncias humanas. 30 – O homem assim auto-realizado, “escolheu a parte boa, que não lhe será tirada”. 31 – Muitos principiantes se preocupam com o problema de porem em prática a sua experiência espiritual, e nada conseguem; não sabem ainda que, quando a visão mística atinge o zênite da nitidez e intensidade, ela transborda irresistivelmente em forma de prática diária. 32 – O que, pois, importa é intensificar ao máximo a visão mística, mediante uma sintonização cada vez mais perfeita e prolongada – e a ação prática virá por si mesma, talvez sem que o ego o perceba conscientemente. 33 – Essa manifestação da mística em ética nem sempre nos é ego-consciente em forma de atos intermitentes, mas funciona cosmo-conscientemente em forma de uma nova atitude permanente em face de todas as coisas da vida diária, atitude essa que os mestres chamam “orar sempre” ou “andar na presença de Deus”.


CONCLUSÃO E SÍNTESE

Palestina, Egito, Índia – três países de cultura antiquíssima. Nesses países apareceram alguns homens que preludiaram a terceira humanidade. A primeira humanidade é a dos sentidos – infância da crença. A segunda humanidade é a da inteligência – adolescência da ciência. A terceira humanidade é a da razão – maturidade da sapiência. E, como o maior inclui o menor, a terceira humanidade é a dos sentidos e da inteligência integrados no espírito, cuja síntese se revela como razão. Razão, racionalidade, não é somente espírito, espiritualidade é o espiritual permeando o material e o mental, resultando no racional, que vive à luz da sapiência. O homem racional é o homem integral, o homem universal, o homem univérsico. O homem-razão, o homem-lógos, o homem-cristo. O homem só será perfeito e feliz quando integrar os sentidos e a inteligência na razão. Aqui na terra, foi o profeta de Nazaré que mais perfeitamente personificou o homem integral. O local da sua vida terrestre, a Palestina, parece até um símbolo da sua vivência cósmica, porquanto a Palestina é uma espécie de traço de união entre ocidente e oriente, um vínculo entre o homem materialmental e o homem espiritual. O Nazareno não foi materialista nem foi espiritualista – foi universalista, ou univérsico. Nunca desprezou as coisas dos sentidos e do intelecto – e nunca desprezou as coisas do espírito – fez sempre uma síntese entre estas e aquelas. Nuca disse que o homem só necessitava de comida, vestimenta e casa – nem disse que devia somente tratar do reino de Deus; mas insistiu em que, em primeiro lugar, tratasse do reino de Deus, das coisas espirituais, e da harmonia (justiça, ajustamento) que vigora entre o reino das coisa espirituais e das coisas materiais, e então estas lhe seriam dadas de acréscimo, sem que o homem tivesse a necessidade de se preocupar e correr freneticamente atrás destas coisas, comida, vestimenta e casa.


Se o Nazareno tivesse sido um bom materialista ocidental, teria dito a seus discípulos que só tratassem das coisas materiais, e não se interessassem pelas coisas espirituais. Se o Nazareno tivesse sido um bom espiritualista oriental, teria recomendado aos seus seguidores que se interessassem unicamente pelas coisas do espírito, e não pensassem no mundo da matéria, de maya, das ilusões da vida terrestre. Mas o Nazareno era um homem cósmico, integral, univérsico. Sabia que o reino de Deus, o mundo espiritual, é a causa e fonte das outras coisas, do mundo material-mental. Conscientizar a causa produz necessariamente os efeitos correspondentes – é esta a matemática metafísica-mística do Nazareno. Enquanto o homem só procura “as outras coisas”, como faz o materialista, é ele incompleto, e o homem incompleto é um homem infeliz. Enquanto o homem só procura o “reino de Deus” como faz o espiritualista, pode ele ser interiormente feliz, mas ainda é incompleto, porque, enquanto viver aqui na terra, está desajustado, incompatível com o ambiente da sua vivência terrestre. Nem o homem materialista nem o homem espiritualista é o homem integral, o homem plenamente realizado, o homem realmente feliz. É necessário que o homem encontre a “justiça”, o ajustamento, a harmonia, entre o “reino de Deus” e “as outras coisas” – só então será ele completo e feliz, porque não terá mais a necessidade de correr freneticamente atrás das “outras coisas” – comida, vestimenta, casa – porque estas coisas “lhe serão dadas por acréscimo”, como um corolário, como uma consequência espontânea e infalível. Uma vez posta a causa espiritual, e conscientizada a intrínseca harmonia que vigora entre o mundo espiritual e o mundo material, os efeitos materiais se seguirão necessariamente à causa espiritual – e então aparecerá o homem integral, o Deus do mundo se manifestará no mundo de Deus. Quando a magia mental do Egito e a mística espiritual da Índia convergirem na racionalidade cósmica da Palestina – então o Verbo se fará carne, cheio de graça e de verdade, e da sua plenitude todos nós receberemos. Quando o Verbo do espírito se unir intimamente à carne da matéria, então aparecerá o Cristo Cósmico, o Homem Univérsico. E o Verbo feito carne, o espírito espiritualizando a matéria, dará ao homem o poder de espiritualizar a matéria. A encarnação do Verbo provocará a ressurreição da carne – e a carne assim espiritualizada celebrará a sua ascenção aos céus. Encarnação, ressurreição e ascensão do homem cósmico, do homem crístico.


ÍNDICE

PRELÚDIO QUARENTA PAÍSES EM TORNO DE UM INSETO EM ISRAEL NOS RASTROS DO NAZARENO PALMILHANDO A ESTRADA JERUSALÉM-EMAÚS POR ENTRE OS ROCHEDOS DO LÍBANO NOS TÚMULOS DOS FARAÓS YOGA E OS EREMITAS CRISTÃOS MINHA DECEPÇÃO EM ARUNÁCHALA COM OS YOGUIS DE SEVAYATAN NO SILÊNCIO DAS NEVES DO HIMALAIA SOLILÓQUIOS COM A ALMA DO HIMALAIA NA CIDADE SAGRADA DO GANGES NO MUSEU DE MAHATMA GANDHI EM NOVA DELHI TAJ MAHAL – UM SONHO EM MÁRMORE A SERENIDADE DO HINDU NA MÍSTICA PENUMBRA DAS CATACUMBAS FOGO VIVO E CINZA MORTA RETORNO AO CRISTO DO EVANGELHO HOMENS PROFANOS, MÍSTICOS E CÓSMICOS DIRETIVAS PARA UMA MEDITAÇÃO EFICIENTE CONCLUSÃO E SÍNTESE


HUBERTO ROHDEN VIDA E OBRA

Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália). De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor. Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais várias foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto; algumas existem em braile, para institutos de cegos. Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada. De 1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística. Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos.


Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos. Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yôga por Swami Premananda, diretor hindu desse ashram. Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não tomou posse. Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, onde mantinha cursos permanentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e dirigia Casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil. Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos de yoguis na Índia. Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre autoconhecimento e auto-realização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de Auto-Realização Alvorada. Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo. Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e inspiração. À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”. Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé e trabalho, somente comparados aos dos grandes homens do século XX


RELAÇÃO DE OBRAS DO PROF. HUBERTO ROHDEN

COLEÇÃO FILOSOFIA UNIVERSAL: O PENSAMENTO FILOSÓFICO DA ANTIGUIDADE A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA O ESPÍRITO DA FILOSOFIA ORIENTAL

COLEÇÃO FILOSOFIA DO EVANGELHO: FILOSOFIA CÓSMICA DO EVANGELHO O SERMÃO DA MONTANHA ASSIM DIZIA O MESTRE O TRIUNFO DA VIDA SOBRE A MORTE O NOSSO MESTRE

COLEÇÃO FILOSOFIA DA VIDA: DE ALMA PARA ALMA ÍDOLOS OU IDEAL? ESCALANDO O HIMALAIA O CAMINHO DA FELICIDADE DEUS EM ESPÍRITO E VERDADE EM COMUNHÃO COM DEUS


COSMORAMA PORQUE SOFREMOS LÚCIFER E LÓGOS A GRANDE LIBERTAÇÃO BHAGAVAD GITA (TRADUÇÃO) SETAS PARA O INFINITO ENTRE DOIS MUNDOS MINHAS VIVÊNCIAS NA PALESTINA, EGITO E ÍNDIA FILOSOFIA DA ARTE A ARTE DE CURAR PELO ESPÍRITO. AUTOR: JOEL GOLDSMITH (TRADUÇÃO) ORIENTANDO “QUE VOS PARECE DO CRISTO?” EDUCAÇÃO DO HOMEM INTEGRAL DIAS DE GRANDE PAZ (TRADUÇÃO) O DRAMA MILENAR DO CRISTO E DO ANTICRISTO LUZES E SOMBRAS DA ALVORADA ROTEIRO CÓSMICO A METAFÍSICA DO CRISTIANISMO A VOZ DO SILÊNCIO TAO TE CHING DE LAO-TSÉ (TRADUÇÃO) SABEDORIA DAS PARÁBOLAS O QUINTO EVANGELHO SEGUNDO TOMÉ (TRADUÇÃO) A NOVA HUMANIDADE A MENSAGEM VIVA DO CRISTO (OS QUATRO EVANGELHOS TRADUÇÃO) RUMO À CONSCIÊNCIA CÓSMICA O HOMEM


ESTRATÉGIAS DE LÚCIFER O HOMEM E O UNIVERSO IMPERATIVOS DA VIDA PROFANOS E INICIADOS NOVO TESTAMENTO LAMPEJOS EVANGÉLICOS O CRISTO CÓSMICO E OS ESSÊNIOS A EXPERIÊNCIA CÓSMICA

COLEÇÃO MISTÉRIOS DA NATUREZA: MARAVILHAS DO UNIVERSO ALEGORIAS ÍSIS POR MUNDOS IGNOTOS

COLEÇÃO BIOGRAFIAS: PAULO DE TARSO AGOSTINHO POR UM IDEAL – 2 VOLS. AUTOBIOGRAFIA MAHATMA GANDHI JESUS NAZARENO EINSTEIN – O ENIGMA DO UNIVERSO PASCAL MYRIAM

COLEÇÃO OPÚSCULOS: SAÚDE E FELICIDADE PELA COSMO-MEDITAÇÃO


CATECISMO DA FILOSOFIA ASSIM DIZIA MAHATMA GANDHI (100 PENSAMENTOS) ACONTECEU ENTRE 2000 E 3000 CIÊNCIA, MILAGRE E ORAÇÃO SÃO COMPATÍVEIS? CENTROS DE AUTO-REALIZAÇÃO



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