Huberto Rohden - Novos Rumos para a Educação

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HUBERTO ROHDEN

NOVOS RUMOS PARA A EDUCAÇÃO UNIVERSALISMO


ADVERTÊNCIA

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.


PREFÁCIO DO EDITOR PARA A QUARTA EDIÇÃO

No início do primeiro capítulo deste livro, o autor faz esta corajosa afirmação: “O problema máximo da época é, sem dúvida, o da educação da infância, da juventude – e também de adultos”. Embora esse dramático brado de alerta tenha sido proferido há quase quatro décadas, o problema ainda não foi solucionado. Embora tenha havido significativos avanços, o problema da educação, em todos os seus níveis, continua aguardando solução. Este é um dos motivos que nos levaram a relançar Novos Rumos para a Educação – O caso de uma ideologia decrépita – Alvorada de uma filosofia dinâmica –, de autoria do filósofo e educador, professor Huberto Rohden. Há vários anos esgotada, a editora tem recebido cobrança editorial, por muitos daqueles que tiveram, de uma ou de outra maneira, contato com esta poderosa mensagem educacional. Atendendo a pedido de educadores, pedagogos, professores de todos os graus, críticos e leitores, estamos relançando, em 4- edição, esta pequena obra-prima da literatura pedagógica. A origem da obra é uma série de conferências que o autor deu em 1958, no auditório do Ministério da Educação, do Rio de Janeiro, sobre Educação e Cosmocracia Mundial. Rohden não apresenta um programa de educação construído nos modelos tradicionais. Seu enfoque é mais dirigido à educação individual do ser humano. Sua abordagem está centrada no conceito de autoconhecimento e autorealização. Ele faz esta advertência: “Este livro trata de assuntos um tanto remotos e ignotos – focaliza um novo tipo de educação e um novo regime social. É, pois, óbvio que não se trata de um livro de leitura fácil e rápida, mas sim de um estudo que exige compreensão e penetração”. Novos Rumos para a Educação é obra gêmea de outro livro de Rohden – Educação do Homem Integral, escrito em 1972, e publicado, em várias edições, por esta editora. Huberto Rohden, como filósofo e educador, com larga experiência educacional em universidades internacionais e brasileiras, conhecia profundamente o


problema da educação mundial. Aliás, toda a sua obra como escritor e mestre espiritual está voltada para a educação do ser humano. No final deste livro, como texto complementar, publicamos a última entrevista pública que o professor Huberto Rohden concedeu ao jornalista José Ítalo Stelle, e posteriormente impressa na revista Visão de 9 de fevereiro de 1981, cujo assunto e título – Educação da Consciência – são altamente convergentes com a mensagem deste livro. O Editor.


PERSPECTIVAS

Durante o ano de 1958 realizei uma série de conferências, no auditório do Ministério da Educação, do Rio de Janeiro, sobre o tema “Novos Rumos para a Educação”. No ano subsequente discorri largamente, no mesmo local, sobre o problema “Cosmocracia Mundial”. Fiz ver, nessas duas séries de elucidações ético-filosóficas, que o Brasil, como o mundo em geral, se acha na linha divisória entre duas eras evolutivas de grandes consequências, e que os mentores das futuras gerações devem preparar-se devidamente para a missão de orientarem com segurança os homens de amanhã. Essa nova forma de democracia – que costumo denominar “cosmocracia” – não será o produto de uma revolução externa, mas sim de uma evolução interna; não serão as armas, mas as almas que decidirão sobre os novos rumos que o Brasil e a humanidade vão tomar. Necessitamos não de uma nova ciência social, mas sim de uma nova consciência individual, que projete os seus efeitos sobre o plano da sociedade. É matematicamente impossível que a sociedade seja melhor do que a soma total dos indivíduos que a compõem, porque aquela não é senão o composto destes componentes. É uma utopia pueril querer reformar a sociedade sem regenerar os indivíduos. A nova forma de democracia que está para vir, a cosmocracia, é impossível sem um novo conceito de educação. Mas é precisamente aqui que surge o grande problema... Como realizar essa nova educação? Será suficiente elaborar e promulgar um novo programa educacional – feito, possivelmente, por uma comissão de técnicos nomeada ad hoc? Programa com tantos artigos e tantos parágrafos? Será suficiente dotar a sociedade de novo estatuto jurídico, social, moral? Muitos dentre nós julgam, de fato, que o mal esteja na deficiência de estatutos e programas, e que, se estes fossem melhorados, teríamos um Brasil melhor, um mundo mais feliz. Longe de querermos negar a necessidade de melhores programas e técnicas educacionais, confessamos explicitamente que disto temos urgente necessidade... Negamos, todavia, e com toda a veemência, que isto resolva o problema central. O melhor dos programas não funciona quando entregue a um


homem, ou a um grupo de homens, que não sejam internamente bons, profundamente verdadeiros, realmente “desegoficados” e genuinamente crísticos. A sociedade será tão boa ou tão má como os melhores ou piores indivíduos que a constituírem. Ser bom não que dizer possuir um verniz de honestidade legal ou uma reputação cívica imaculada. É possível que um homem seja um cidadão 100% honesto, perante a lei, e, apesar disto, 0% bom, perante Deus e a consciência. Ser internamente mau e externamente bom são coisas perfeitamente compatíveis em face da nossa decantada “civilização cristã ocidental”. De intimis non curat praetor, diziam os antigos romanos – com as coisas internas não se preocupa o magistrado. Quando um funcionário público cumpre as obrigações do seu ofício, é ele considerado honesto, quer dizer, legal e juridicamente inatacável – mas é possível que seja humanamente mau. O foro externo não coincide, necessariamente, com o foro interno. A lei cogita daquele – mas a educação tem que ver com este. E é aqui que se bifurcam os caminhos entre simples instrução e verdadeira educação. O que, hoje em dia, se chama educação é, quase sempre, mera instrução. A instrução se refere aos objetos. A educação visa o sujeito. É, certamente, necessário que o homem seja instruído – mas não é suficiente. Para ser instruído, basta colher certa soma de conhecimentos exatos sobre diversos objetos que o homem possui ou procura possuir – mas, para ser educado, é necessário que, dentro de seu próprio sujeito, realize as qualidades que perfazem o seu verdadeiro Eu. A ciência – escreve Einstein, no seu livro Aus meinen spaeten Jahren – descobre os fatos objetivos da natureza (das was ist, aquilo que é) – mas a filosofia realiza valores dentro do próprio homem (das was sein soll, aquilo que deve ser). O descobrimento de fatos externos torna o homem erudito – mas a realização de valores internos torna o homem bom, e o homem realmente bom é um homem feliz. Descobrir fatos fora de nós é instrução – realizar valores dentro de nós é educação. É chegado o tempo para darmos à educação um caráter genuinamente humano, realizando valores ou qualidades dentro do próprio homem.


Não basta conhecermos objetos, por mais necessário que isto seja – é necessário que realizemos valores internos, despertando potências dormentes nas profundezas da natureza humana. *** Embora, à primeira vista, essa distinção entre objetos e sujeito pareça simples jogo de palavras, ela marca, na realidade, a linha divisória entre dois mundos, entre o mundo horizontal do ter e o mundo vertical do ser; entre aquilo que o homem tem ou pode ter, fora de si – e aquilo que o homem é ou deve ser, dentro de si. Todos os meus cursos de Filosofia Universal e Filosofia do Evangelho, aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro, e alhures, bem como quase todos os meus livros giram, direta ou indiretamente, em torno desse momentoso problema do “ser” e do “ter”, daquilo que o homem é ou deve ser, e daquilo que o homem apenas tem ou deseja ter. O homem comum só se interessa pelo “ter”, pelas quantidades – ao passo que o homem mais avançado se entusiasma pelo “ser”, pelas qualidades. Pode-se mesmo afirmar que tanto mais educado e culto é um homem quanto mais faz prevalecer, em sua vida, o mundo qualitativo do “ser” sobre o mundo quantitativo do “ter”. O verdadeiro educador deve ser um homem altamente “realizado”; deve ter realizado em si os seus mais profundos valores humanos; só assim poderá servir de guia e mentor a outros, não tanto pelo que diz ou faz, mas sobretudo pelo que é. Deve ser plenamente educado, para que possa educar. Ser educado não que dizer apenas ter bons modos sociais; quer dizer (como insinua a própria etimologia da palavra) que o bom educador deve ter despertado em si os verdadeiros valores da natureza humana. “Educar” vem do verbo latino educare, derivado de educere, que quer dizer “eduzir”, conduzir para fora, ou seja, despertar no homem aqueles elementos positivos que nele se achavam dormentes, como sejam, verdade, justiça, amor benevolência, solidariedade, etc. O educador é um “edutor”, alguém que “eduz” do seu educando o que nele dormita de melhor e mais puro. Educar não é injetar, impingir, mas sim eduzir e desenvolver o que já existe na alma do educando, assim como a luz solar desperta e desenvolve na semente a planta que nela existe potencialmente. Mas, como poderia alguém despertar em outrem os bons elementos, se no despertador não estivessem esses elementos, plenamente despertados? Para que alguém possa “eduzir” o que há de bom em seu educando, deve ele mesmo achar-se firmemente consolidado nesse plano do bem, ao qual quer elevar seu pupilo. Quem tenta “empurrar” em vez de “atrair” não é educador, não “eduz”, porque ele mesmo não está “eduzido”, fora do abismo. Só um “eduzido” pode “eduzir” os outros. Por isto, o educador deve ir na vanguarda do


ser bom, e não ficar na retaguarda do ser mau, tentando empurrar o seu educando para a vanguarda das alturas, onde ele mesmo não está. Em última análise, todo esse problema educacional se resume numa questão de verdade integral e de absoluta sinceridade que o educador deve ter para consigo mesmo; quem não é 100% aquilo que ele diz aos outros não pode ser educador; não pode “eduzir”, conduzir para fora da zona negativa do mal, porque ele mesmo não se acha fora dessa zona. Ser educador equivale a um tremendo desafio para ser integralmente verdadeiro e honesto consigo mesmo. Quem não está disposto a aceitar esse desafio para uma veracidade integral e absoluta, não se exponha a essa perigosa e gloriosa aventura de querer educar os outros. De maneira que o problema da educação culmina, logicamente, no problema central da auto-realização do homem. Para que alguém seja um verdadeiro educador não basta estudar essa psicologia periférica e superficial que vem exposta na maior parte dos nossos compêndios – é necessário que desça à psicologia abismal de seu próprio Eu, aos mais profundos abismos da sua centralidade, entrando em contato direto com o alicerce cósmico da sua natureza humana, daquilo que ele “é”, e não apenas daquilo que ele “tem”. A educação total exige a realização do homem integral. Mas quem nos dará esses homens integrais? Não há governo no mundo que possa criar ou decretar – é necessário que o indivíduo desenvolva dentro de si mesmo esse homem integral. E isto é possível, felizmente, porque dentro de cada um de nós existe algo maior e melhor do que aquilo que existe fora de nós. O homem é muito mais aquilo que pode vir a ser e deseja ser do que aquilo que é no plano histórico da sua vida. O homem é a sua permanente e silenciosa atitude interna, e não os seus ruidosos atos externos e transitórios. O homem é a sua eterna potencialidade, e não apenas a sua atualidade temporal. Homem, procura ser no teu externo existir aquilo que és no seu interno ser! Homem, existencializa humanamente a tua divina essência – e serás ótimo educador, por seres plenamente educado!


ADVERTÊNCIA E ORIENTAÇÃO

Este livro trata de assuntos um tanto remotos e ignotos – focaliza um novo tipo de educação e um novo regime social. É, pois, óbvio que não se trata de um livro de leitura fácil e rápida, mas sim de um estudo que exige compreensão e penetração. Por isto, nos vimos obrigados a repetir, de modos vários, certos problemas centrais da vida, para que lentamente calem e se infiltrem na alma do leitor. O homem de paladar doentio exige cada dia iguarias novas e esquisitas – ao passo que ao homem de saúde normal apetecem-lhe, durante anos e decênios, os mesmos manjares cotidianos, com pouca variação, porque ele come para viver, e não vive para comer. Esperamos que os nossos leitores possuam saúde normal e não se aborreçam com o fato de encontrarem repetidos, em diversos capítulos deste livro, pensamentos similares, cuja assimilação eficiente só é possível deste modo. Escusado é dizermos que não consideramos o conteúdo destas páginas como a última palavra sobre o assunto nem é intenção nossa dizer algo de inédito e definitivo. Apontamos tão-somente a direção certa, à guisa daquelas setas nas encruzilhadas dos caminhos, para que o viandante saiba em que direção deve ir; se parasse diante da seta falharia o sentido da mesma. Julgamos certa a direção geral indicada, e deixamos a outros a elaboração de programas técnicos pormenorizados sobre o magno problema de uma nova educação individual e de um novo regime social. Em última análise, tanto este como aquela dependem da evolução interna do homem – e essa evolução é algo tão misterioso e imponderável que não pode ser, propriamente, objeto de um livro, mas sim o fruto de uma experiência interna, silenciosa e anônima. Se algum leitor achar certos capítulos deste livro traumatizantes e demolidores, convença-se de que só destruímos para construir algo melhor. Em vez de se insurgir contra o autor, pondere, calma e serenamente, os prós e os contras, a fim de conhecer a verdade – “a verdade libertadora”.


PRIMEIRA PARTE

EDUCAÇÃO INDIVIDUAL


EDUCAÇÃO – PROBLEMA VITAL DA ATUALIDADE

O problema máximo da época é, sem dúvida, o da educação da infância, da juventude – e também dos adultos. É alarmante o vertiginoso aumento da criminalidade, sobretudo entre jovens de 14 a 18 anos. As autoridades estão desorientadas. O povo vive num ambiente de terrorismo permanente. Cogita-se introduzir na legislação brasileira a pena de morte, a fim de coibir ou diminuir essa onda de delinquência. Acreditam muitos que punir o criminoso seja medida eficaz para opor um dique à perversidade dos delinquentes potenciais. Por mais necessárias que sejam certas medidas punitivas e repressivas, de ordem legal e policial, é erro gravíssimo supor que essas medidas possam produzir mudança ponderável no plano da criminalidade. Em última análise, esses expedientes legais e policiais, embora necessários, são uma repressão de sintomas externos do mal, e não uma cura da raiz interna do mesmo; atingem os efeitos, mas não a causa da criminalidade. Quem reprime apenas sintomas, e não cura a raiz do mal, é charlatão, e não médico. É de candente necessidade que tratemos seriamente da cura da raiz do mal – e, nesse setor, quase nada se está fazendo. Os supostos remédios de que lançamos mão primam por sua ineficiência e seu obsoletismo. Possivelmente, esses remédios tenham sido eficazes em séculos idos, na Idade Média, no seio de uma humanidade diferente da nossa; mas, em nossos dias, são quase totalmente ineficientes, porque a nossa humanidade não está vivendo no século XIII. Os últimos séculos modificaram profundamente a estrutura mental e moral do homem. A humanidade saiu da sua infância, e, em grande parte, também começa a ultrapassar sua adolescência, para entrar na idade madura. O que era bom e ótimo para séculos passados, prova-se nulo ou fraco para o século XX. É justo que uma criança cumpra cegamente a ordem de seus pais, sem compreender o porquê dessas ordens; tem de fechar os olhos e obedecer, na certeza de que seus pais sabem o que seja melhor para o verdadeiro bem do filho. De fato, a humanidade Ocidental viveu, longos séculos nesse clima de infância mental e moral, tanto no plano civil como religioso; de olhos fechados, aceitava e acatava qualquer ordem de cima, fosse da autoridade civil, fosse da


hierarquia religiosa. Não culpamos esses tempos. A infância é um período natural e necessário para a vida de cada homem, como também da humanidade. Mas infância não significa infantalismo. Aquela é um estado natural e sadio; este seria um fenômeno desnatural e mórbido. Com o ocaso da Idade Média e a alvorada da Renascença, a humanidade cristã do Ocidente, ou pelo menos a sua parte pensante, deixou a infância e entrou na adolescência. E não pode voltar atrás. Por outro lado, também não pode parar nesse plano de intelectualismo, próprio da adolescência. Ninguém pode devolver às suas nascentes o Amazonas, nem ninguém pode opor-lhe um dique no seu vasto estuário. As suas massas líquidas têm de desaguar no oceano. As leis da evolução são inexoráveis. Não dependem de nós. A humanidade de ontem foi boa por ignorância, a humanidade de hoje é má por inteligência – a humanidade de amanhã tem de ser boa por sapiência. Da ignorância à sapiência vai um caminho longuíssimo, margeado de precipícios, eriçado de empecilhos – e nós estamos trilhando este caminho. Muitos suspiram, saudosos, pelos “bons tempos” da fé medieval e acham que a solução está no regresso a essa infância da humanidade. Outros apregoam a intensificação da ciência e da técnica, por meio do intelecto, e esperam melhores dias das nossas conquistas científicas, rumo aos átomos ou rumo aos astros. Entretanto, a solução definitiva dos nossos mais dolorosos problemas não está neste nem naquele plano. Temos de ultrapassar tanto a ignorância infantil de ontem como a inteligência juvenil de hoje e entrar na zona da sapiência do homem maduro de amanhã. Mas esse “amanhã” pode ser iniciado hoje mesmo. O infante de ontem e o adolescente de hoje são o homem maduro de amanhã. Por isto, necessitamos de novos rumos para a nossa educação, que está marcando passo em terrenos que não correspondem às necessidades do homem de hoje e de amanhã.


A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO LEIGA E DA EDUCAÇÃO RELIGIOSA

Temos no Brasil dois tipos de educação: leiga e religiosa. Ambos falharam ou estão falhando. A primeira é superficial; a segunda tem caráter póstumo. No setor da educação leiga, ou cívica, ministrada nos estabelecimentos públicos, inculca-se ao educando a necessidade de ser honesto, de não mentir, não matar, não roubar, não defraudar, etc., porque há uma lei que proíbe tais coisas; o transgressor será punido com cadeia ou multa. Espera-se que o educando seja honesto e bom para não transgredir a lei civil e sofrer suas sanções. Ora, quem não vê que semelhante sanção é totalmente ineficiente? Eficiente, talvez, para alguns atrasados e menos inteligentes, porém ineficiente para os mais adiantados e perspicazes. Quem comete um crime imperfeito sofrerá as consequências legais e policiais da sua transgressão – mas quem for assaz inteligente para cometer um crime perfeito, esse não corre perigo de ser preso ou multado. Temos vasta literatura e numerosas películas cinematográficas que ensinam aos jovens, e aos adultos também, a arte de cometerem crimes perfeitos. Nas exibições públicas, é verdade, há censura prévia, em virtude da qual o transgressor da lei tem de acabar punido para que a lei saia triunfante e soberana. Mas os candidatos à delinquência sentem maiores simpatias pelo criminoso punido do que pelas autoridades que punem, e lamentam secretamente que o herói não tenha sido assaz inteligente e jeitoso para burlar a lei, e resolvem ser mais astutos do que os seus heróis cinematográficos, cometendo crime perfeito. Não há lei humana, por mais bem elaborada, que possa manter dentro das suas malhas um criminoso inteligente. Pode um homem ser um cidadão legalmente honesto, honestíssimo – e ser ao mesmo tempo uma ruína moral. Pode ser uma negação total no plano ético e , não obstante, ocupar altos postos públicos, com imaculada decência legal. Na realidade, a perfeita lisura legal é compatível com a absoluta ausência de ética. Pode um homem ser 100% “civilizado” e 0 % “educado”, porque a civilização se refere a seu comportamento legal, externo, e a educação a seu caráter moral interno. *** De resto, que é que pretende a chamada educação leiga ou cívica?


Pretende, antes de tudo, colocar nas mãos do educando a ferramenta necessária para vencer na vida, para conquistar posição social e econômica, para acumular a maior quantidade possível de “matéria morta”, mesmo explorando seus semelhantes, contanto que essa exploração seja praticada dentro do âmbito da lei – e isto é possível em vasta escala. Um cidadão perfeitamente legalizado pode ser um homem nada moralizado; como, porém, a moralização é a verdadeira educação, pode um cidadão 100% legal ser um homem 100% amoral. A amoralidade, porém, é o prelúdio para a imoralidade, isto é, para a criminalidade. Quer dizer que a chamada educação leiga ou cívica não é educação alguma; é apenas um processo de instrução horizontal, um sistema de aparelhamento que visa o mundo dos objetos fora do educando, e nada tem que ver com o mundo do sujeito dentro dele. A verdadeira educação, porém, tem por fim plasmar o caráter do educando, torná-lo melhor como ser humano, e não apenas mais hábil como conquistador de objetos impessoais em torno dele. Pode a instrução adestrar o homem na velha política e diplomacia de acumular “matéria morta” ao redor de si – mas a educação ensina ao homem a nobre filosofia de criar valores vivos dentro dele mesmo. No seu livro Aus meinem spaeten Jahren, como já mencionamos, diz o grande matemático Albert Einstein que a ciência ensina ao homem a descobrir os fatos reais da natureza objetiva (das was ist, aquilo que é), mas que a filosofia lhe ensina a criar valores subjetivos dentro de si mesmo (das was seira soll, aquilo que deve ser). A ciência, descobrindo fatos, torna o homem erudito, mas a filosofia, realizando valores, torna o homem bom e feliz. A instrução é científica e desenvolve a inteligência do homem – a educação é sapiente e molda a alma do homem. Nenhum homem deixa de ser mau por ser inteligente, mas todo homem diminui a sua maldade na razão direta que aumenta a sua sapiência, porque sapiência é bondade e espiritualidade. O velho slogan de que “abrir uma escola é fechar uma cadeia” é peça de museu. Está desmentido pelos fatos. Quase todos os grandes criminosos da história da humanidade eram homens inteligentes, alguns deles de grande erudição – o que não os impediu de serem grandes malfeitores. Se “escola” fosse sinônimo de “educação”, nada teríamos que objetar; mas, por via de regra, não é o que acontece. Ensinar a alguém o ABC e a tabuada não é o mesmo que educá-lo. A verdadeira educação opera numa dimensão totalmente diferente do plano da simples instrução. *** Até aqui devem os educadores leigos estar insatisfeitos comigo, e satisfeitos os educadores religiosos. Infelizmente, não estou em condições de manter nesses últimos a satisfação que até aqui experimentavam. Nos institutos educacionais


particulares existe a educação religiosa, orientada por esta ou aquela igreja ou grupo espiritual. Seria de esperar que pelo menos esse tipo de educação fosse mais eficiente e desse a seus adeptos base mais sólida de ética individual e social. Entretanto, as estatísticas oficiais dos países não acusam a menor diferença, quanto à criminalidade, entre os delinquentes leigos e os delinquentes religiosos. Prova isto que a educação religiosa, ou melhor eclesiástica, não afeta a vida ética do homem, é algo justaposto à vida, como elemento estranho e heterogêneo, e não organicamente entrelaçado com a vida, como algo homogêneo à mesma. Há, naturalmente, exceções individuais, sobretudo naquelas pessoas que ultrapassaram a simples crença dogmática e entraram na zona da experiência íntima de Deus e da sua própria alma. Mas os grupos religiosos como tais não provam que a educação religiosa, como ela está sendo ministrada oficialmente, tenha exercido impacto ponderável sobre a vida ética dos que pertencem a esses grupos. Salvo honrosas exceções, a religião organizada, em seu setor oficial, não visa à vida presente do homem, aqui na terra, mas tem que ver com uma vida futura, em outras regiões do universo. Ela é, por assim dizer, além-nista e futurista. Ela é, visceralmente, póstuma. Os seus argumentos giram em torno do céu e inferno, palavras clássicas com que as teologias entendem determinados lugares, futuros e distantes, que o homem só descobrirá depois da morte. Os que na terra forem bons serão premiados no céu, e os que forem maus serão punidos no inferno. Aparentemente, deveriam esses argumentos moralizar o homem, aqui na terra, afastá-lo do mal e aproximá-lo do bem – e, de fato, assim acontecia em tempos antigos. Se o homem do século XX ainda tivesse em si aquela fé ingênua dos seus antepassados do século XIII, exerceriam esses argumentos de céu e inferno plena influência sobre a vida ética do homem, porque ninguém gosta de sofrer, e todos querem gozar. Mas em nossos tempos, esses argumentos, um dia eficientes, são ineficientes, pelo menos para a elite pensante da humanidade. Segundo os teólogos, céu e inferno são lugares que não existem na vida e no mundo presente, mas sim em outras partes do universo e serão descobertos após a morte. Quer dizer que, na vida presente, aqui na terra, tem o homem de ser bom por causa de algo que lhe vai acontecer, daqui a 20, 40, 60, anos, em regiões ignotas e distantes, de cuja localização ninguém pode ter certeza. O apelo dos teólogos para essa sanção póstuma não exerce influência decisiva sobre o homem moderno em geral. Somente os mais atrasados ou os que têm proibição de pensar livremente, ainda se impressionam com esses argumentos; os mais adiantados e emancipados não são por eles atingidos.


E isto por razões muito óbvias; uns não creem na existência real de céu e inferno, como lugares geográficos ou astronômicos, uma vez que a ciência provou, e vai provar cada vez mais, que não existe, em recanto algum do cosmos, um lugar onde Deus esteja sentado em seu trono, rodeado de seus anjos e santos – nem existe, debaixo ou dentro da terra, uma fogueira onde o diabo com seus demônios e condenados estejam residindo. Outros, que talvez creiam ainda em céu e inferno, acham que é muito cedo para se preocuparem com isto. Um jovem pecador de 20 anos espera viver pelo menos mais 40 anos, e depois disto, em idade avançada, começará a pensar em como evitar o inferno e entrar no céu. E isto não lhe será difícil; as teologias e igrejas lhe garantem que um ato de conversão – seja pela confissão ou extrema-unção, seja pela fé no sangue do Cristo Redentor – cancelará todas as suas maldades pretéritas. E assim, calcula o pecador, entrará ele no céu de Deus, depois de ter gozado aqui todos os céus dos homens; espera lograr a Deus do mesmo modo que sempre logrou os homens... As igrejas organizadas envidam ingentes esforços para manter os seus filhos dentro do seu sistema teológico medieval, proibindo-lhes qualquer liberdade de pensamento, que os emanciparia da igreja. Umas exigem aceitação incondicional de uma autoridade eclesiástica infalível, lugar-tenente de Deus; outros impõe a seus filhos a crença em um livro infalível, mensagem direta de Deus à humanidade. Os que, graças ao sacrifício da lógica, conseguem uma sujeição incondicional a uma autoridade externa, viva ou morta, humana ou papirácea, têm a vantagem de possuir pelo menos uma norma certa para a vida ética, para si e seus rebanhos. Mas esses crentes de olhos fechados vão rareando cada vez mais, ao passo que os crentes de olhos abertos (que são os sapientes) se tornam cada vez mais numerosos, graças a Deus. Infelizmente, muitos daqueles crentes de olhos fechados que não conseguem tornar-se crentes de olhos abertos, acabam por engrossar a turbamulta dos descrentes, também de olhos fechados. Não podemos construir o edifício da educação das futuras gerações sobre a areia movediça de uma teologia medieval, cujo corpo persiste, mas cuja alma morreu. Temos de dar-lhes uma educação construída sobre a rocha viva de uma filosofia racional, perfeitamente lógica, e de acordo com o estado atual da evolução humana. Céu e inferno existem, mas não como lugares, fora de nós, como veremos mais tarde. Não é necessário que rejeitemos essa fé quase duas vezes milenar; trata-se de compreender melhor o conteúdo dessa mesma fé do que o compreenderam os nossos antepassados.


O autor destas linhas crê mais firmemente na realidade do céu e inferno do que talvez a maior parte de seus leitores. Crê, não apenas dogmática e teologicamente, mas sabe experiencialmente que há céu e há inferno, não como lugares astronômicos, mas como estados da alma e atitudes da consciência. E sobre esta profunda experiência podemos erguer o edifício sólido de uma nova educação.


A DELINQUÊNCIA JUVENIL, FRUTO DE UMA FALSA EDUCAÇÃO

Consta, pela estatística oficial, que, nos Estados Unidos, são cometidos anualmente (1958), 2.500.000 crimes que chegam ao conhecimento das autoridades. Cada 12 segundos se comete, nesse país, um crime. Desde que o leitor iniciou a leitura deste capítulo já foram perpetrados diversos crimes, e, quando o terminar, o número atingirá a diversas centenas. Entre nós, no Brasil, também é alarmante a crescente onda de criminalidade, sobretudo entre jovens de 14 a 18 anos. O mesmo acontece em diverso outros países, sobretudo aquém do Atlântico. A Suíça celebrou, há pouco, o 25- aniversário do último homicídio cometido, nesse país, por um de seus cidadãos. Entre nós nem podemos celebrar o “diário”, muito menos o “aniversário” do último crime de morte. Cada dia os jornais estão repletos de notícias de crimes de toda espécie – e o que a imprensa registra não corresponde sequer a 10% do que realmente aconteceu nessas 24 horas. Também não consta que haja qualquer diferença, no tocante à delinquência, entre pessoas pertencentes a um grupo religioso e outras sem religião determinada. Da mesma forma, não se pode responsabilizar esta ou aquela forma de governo, nem esta ou aquela raça pela maior ou menor criminalidade; nem procede a recente alegação de que o fato de existir pena de morte num país diminua os crimes. Na Inglaterra e nos Estados Unidos há pena de morte, são povos da mesma raça – e o fato é que o coeficiente da criminalidade é notavelmente menor entre os ingleses do que entre os americanos. Forma de governo, forma de religião, raça – nada disto é decisivo. Decisivo é um determinado espírito de educação que dê ao homem elevada ideia do valor da vida humana, e, em geral, dos deveres do indivíduo em face da coletividade. *** Tenho diante de mim o livro Daemon-Stadt (Cidade-Demônio) do Dr. Kurt Gauger, médico, psiquiatra e filósofo germânico, obra em que o autor, à luz de abundantes fatos recentes, estuda o alarmante problema da criminalidade juvenil, e até infantil, na Alemanha e em outros países, no período que seguiu às duas guerras mundiais. Chega à conclusão de que a presente geração,


produto de gerações anteriores e herdeira de ideologias funestas, perdeu a noção da responsabilidade ética, porque perdeu a noção de ser parte integrante do grande TODO, seja o TODO imediato da humanidade, seja o TODO longínquo do Universo como tal. Uma criança de 12 anos mata seu pai com um tiro de revólver; interrogada pelo motivo do crime, responde cinicamente: “Matei porque quis”. Não tem o menor remorso do seu ato, diz, porque toda pessoa tem o direito de fazer aquilo que acha interessante. Em última análise, quem perde a visão de um TODO maior de quem ele faz parte e que tem de respeitar, perde necessariamente a noção da ética, da obrigação, do dever moral, porque a noção da ética se baseia na consciência de que eu sou parte de um TODO, e que esta parte tem certas obrigações naturais e indeclináveis para com o TODO, que tem direitos reais sobre mim. Como se vê, o problema da criminalidade afeta o problema da ética, e este radica no problema da metafísica, a questão da íntima natureza humana. “Que é o homem? de onde vem? para onde vai? por que está aqui na terra?” – não é possível dar base sólida à ética sem responder, satisfatoriamente, a essas perguntas fundamentais da vida. Necessitamos, não só de professores eruditos para instruir os seus alunos – necessitamos, sobretudo, de mestres de caráter que, com a sua própria vida e vivência, deem a seus discípulos o exemplo da dignidade do homem. No citado livro Daemon-Stadt, págs. 122-124, reproduz o Dr. Kurt Gauger a impressionante carta de um jovem delinquente que, à sombra da penitenciária, escreve uma espécie de exame de consciência para os “homens honestos” do mundo. Diz o jovem delinquente: “Por que vós sois fracos no bem, por isto nos destes o nome de fortes no mal – e com isto condenais uma geração contra a qual pecastes – porque sois fracos. Nós vos concedemos dois decênios para nos fazerdes fortes – fortes no amor, fortes na boa vontade – vós, porém, nos fizestes fortes no mal, porque sois fracos no bem. Não nos indicastes caminho algum que tivesse sentido, porque vós mesmos ignorais esse caminho e vos descuidastes de procurá-lo – porque sois fracos. Vosso vacilante „não‟ assumia atitude incerta diante das coisas proibidas; nós demos uns gritos – e vós retirastes o vosso „não‟ e dissestes „sim‟, a fim de poupardes os vossos nervos fracos. E a isto chamastes „amor‟. Porque sois fracos, por isto comprastes de nós o vosso sossego. – Quando nós éramos pequenos, nos dáveis dinheiro para irmos ao cinema ou comprarmos sorvete; com isto prestastes um serviço não a nós, mas sim à vossa comodidade – porque sois fracos. Fracos no amor, fracos na paciência, fracos na esperança, fracos na fé.


Nós somos fortes no mau – mas as nossas almas têm apenas metade da nossa idade. Nós fazemos barulho para que não tenhamos de chorar por todas aquelas coisas que deixastes de nos ensinar. Sabemos ler e contar; sabemos quantos estamos há nesta ou naquela flor, sabemos como vivem as raposas e conhecemos as estrutura de um pé de capim – aprendemos a ficar quietos nos bancos de escola e apontar o dedo, a fim de contarmos coisas sobre raposas e rosas silvestres – mas não nos ensinastes como enfrentarmos a vida. Estaríamos até dispostos a crer em Deus, num Deus infinitamente forte que tudo compreendesse e de nós esperasse que fôssemos bons – mas não nos mostrastes um só homem que fosse bom pelo fato de crer em Deus. Ganhastes muito dinheiro com serviços religiosos e murmurastes orações segundo a velha rotina. Sr. Policial põe de parte o teu cassetete e tua pistola! Dize-nos antes o que nos interessa saber: é verdade que amas a ordem pública a que serves? ou não será que amas o direito que tens ao teu ordenado e à tua aposentadoria? Sr. Ministro! Mostra-nos se é forte como homem! quantas obras boas praticas tu, como cristão, às ocultas? Será que nós não somos as caricaturas da vossa existência toda feita de mentiras? Nós somos desordeiros públicos e fazemos muito barulho – vós, porém, lutais às ocultas, um contra o outro; estrangulai-vos comercialmente e armais intrigas para conquistardes posições mais rendosas. Em vez de nos ameaçardes com bastões de borracha, colocai-nos face a face com homens de verdade, que nos mostrem qual é o caminho certo, não com palavras, mas com a sua vida. Mas ai! que vós sois fracos no bem! os que são fortes no bem vão para a mata virgem e curam os negros da África – porque eles vos desprezam, assim como nós vos desprezamos. Porque vós sois fracos no bem – e nós somos fracos no mal. Mamãe, vamos rezar! porque esses homens fracos estão armados de pistolas! Como invalidar esse tremendo exame de consciência que um criminoso institui com os „homens honestos‟ da sociedade, os que são „fracos no bem‟? Certamente não com velhas teorias papiráceas, mas com uma nova realidade vital...”


O FLAGELO DO PARASITISMO E SUA CURA

É de conhecimento público, universalmente admitido e provado com inúmeros fatos que, sobretudo nos últimos cinquenta anos, o Brasil degenerou no país clássico do funcionamento parasitário. Centenas de milhares de pessoas vivem à custa dos impostos do povo, sem prestarem ao país os serviços correspondentes aos seus vencimentos. É uma clamorosa injustiça, uma roubalheira impune e, não raro, favorecida pelas autoridades públicas. Conheço pessoas que têm cinco empregos públicos bem remunerados, mas não comparecem a nenhum deles; outros se dão ao “trabalho” de “assinar o ponto”, depois vão passear ou trabalhar em outra parte, e retiram, no fim do mês, as importâncias correspondentes a serviços não prestados, explorando a boa-fé do povo que lhes paga com seus impostos. É só aparecer numa cidade um funcionário público de alto coturno e logo enxameiam os parasitos, parentes, amigos, afilhados, os partidários políticos, as amantes, e cada um deles é nomeado para um cargo, muitas vezes inexistente; o principal é que conste no papel, uma vez que estamos na época da papirocracia onipotente. Esse cancro do parasitismo explorador é, hoje em dia, considerado, quase universalmente, como situação normal e inevitável. Conforme o Diário de São Paulo de 22-8-1958, o presidente Juscelino Kubitschek declarou à imprensa: “Não é possível governar de uma cidade (Rio de Janeiro) onde residem 220 mil dos 300 mil servidores federais do Brasil todo. Três quartas partes desses funcionários vegetam na capital atual, atrapalhando, e nada mais, a administração central. Quem nada faz estorva. Além do mais, contou o chefe da Nação que os presidentes dos Institutos de Previdência podem mais do que o da República. Criam cargos, nomeiam quem entendem, e nem são obrigados a publicar as nomeações no Diário Oficial. Penso com os meus botões em mais de uma barbaridade do estapafúrdio calamitoso regime, que desgraçou a nação durante quinze anos e mais cinco”. Se três quartas partes dos 300 mil funcionários federais apenas vegetam, sem fazer nada, estorvando ainda a administração, então temos, só no funcionalismo federal, 23,5 mil parasitos ou ladrões que são mensalmente pagos com os impostos do povo, cometendo assim clamorosa injustiça, durante anos e decênios.


E que dizer de outras categorias de funcionários que não funcionam? A ideia calamitosa de que os impostos do povo têm por finalidade precípua a manutenção de um exército de funcionários que apenas “vegetam e nada fazem”, passou a fazer parte integrante da nossa política e diplomacia pseudo democrática. Se o povo soubesse o que se passa por detrás dos bastidores e como são malbaratados os dinheiros tão arduamente ganhos por ele, e se tivesse meios para prevalecer contra os responsáveis por esses crimes, ensanguentaria o país com uma guerra civil... Excusado é dizer que não incluímos nessa censura os funcionários honestos e corretos, que, felizmente, ainda existem no Brasil, embora em minoria – 25% entre os funcionários federais, segundo a declaração do Sr. Juscelino Kubitschek. Mas não é calamitoso que 75% sejam ladrões e exploradores das economias do povo?... *** Essa praga do parasitismo não pode ser erradicada eficientemente por nenhuma medida legislativa ou coercitiva, embora essas medidas sejam necessárias para evitar maiores males. O grande mal está na falência das consciências. A desenfreada adoração do “deus-dinheiro” derrotou todas as considerações de ordem moral. Bom é aquilo que dá dinheiro; ótimo é aquilo que dá rios de dinheiro sem trabalho algum – é esta infeliz mentalidade que tomou conta do país. Enquanto o homem não passar por uma profunda reforma interior, as reformas externas, embora necessárias, são precárias e ineficientes. A reforma interior, porém, supõe algo que não está em nossos códigos nem se leciona nas Faculdades de Direito. Supõe um conhecimento de si mesmo e uma inexorável fidelidade a esse Eu superior e divino do homem, porque esse EU divino no homem, o seu Cristo interno, exige imperiosamente equivalência entre a remuneração pecuniária e o serviço prestado. Quem recebe um ordenado mensal e não presta ao povo e ao país o serviço correspondente a essa importância, é ladrão, é explorador, é réu de uma injustiça, seja qual for o seu posto – presidente, governador, prefeito, juiz, senador, deputado, vereador, professor, ou simples funcionário de uma autarquia ou varredor de ruas. Mesmo no caso que o direito humano absolva esse réu, perante a justiça do universo continua ele culpado. Ora, cada injustiça cometida é uma degradação do individuo que a comete, quer a lei humana a aprove, quer desaprove. O indivíduo que comete injustiça vai perdendo parcela do seu valor, acabando, dentro de alguns anos ou decênios, em completa falência moral, embora se tenha talvez enriquecido, materialmente, com o produto dos seus roubos. Naturalmente, se esse ladrão é


analfabeto em matéria de conhecimento próprio e auto-realização, será impossível fazer-lhe compreender o seu triste estado; se tornou milionário à custa do suor do povo, quem lhe provará que é um desgraçado? Entretanto, essa impossibilidade de provar-lhe esse fato e colocar-lhe diante dos olhos o autêntico retrato da sua fealdade não invalida o fato dessa sua fealdade. Esse homem vai acumulando dentro de si um karma cada vez maior, um débito moral que tem de ser neutralizado, consoante a inexorável justiça da Constituição Cósmica. Mas a neutralização desse débito acumulado em 10, 20, 50 anos de abusos acarretará sofrimentos inevitáveis, seja no mundo presente, seja em existências futuras. Ninguém sairá do cárcere enquanto não houver pago o último vintém, segundo as palavras do maior dos mestres da humanidade. A Constituição Cósmica é um fato, e não uma fantasia. Ninguém pode derrubar o Himalaia com a cabeça! ninguém pode prevaricar impunemente contra as leis eternas da verdade e da justiça!... O funcionário parasito e explorador só tem um caminho para se redimir: ser consciencioso e prestar ao povo os serviços pelos quais é pago, e restituir-lhe o produto dos roubos anteriores, conforme o exemplo de um grande explorador de que nos fala o Evangelho, Zaqueu de Jericó, que, reconhecendo o seu triste estado, declarou ao Nazareno: “Se defraudei alguém, restituo quatro vezes mais, e, ainda por cima, dou aos pobres metade da minha fortuna”. E disse o divino Mestre a esse ex-explorador: “Hoje entrou a salvação nesta casa!” *** Os livros sacros de todos os povos apelidam de “insensato” ou “tolo” o homem injusto e pecador – e não têm eles razão? Não é tolice e insensatez entrar em conflito com as leis eternas? onerar-se de enormes desvantagens remotas por causa de umas pequenas vantagens imediatas? A mentira, a fraude, a injustiça, qualquer pecado ou crime, proporcionam, quase sempre, determinada vantagem imediata, e é precisamente por causa dessa vantagem que o delinquente pratica o mal. Se o pecador, burlando a lei eterna e auferindo daí certa vantagem imediata, pudesse passar impune para sempre, definitivamente; se, depois de embolsar o fruto do seu roubo, nenhum mal lhe acontecesse, nenhum sofrimento o aguardasse, por parte de um Supremo Tribunal extra-humano – então – seria ótimo negócio ser mau, injusto, desonesto, explorador, ganhar muito sem trabalhar nada. Mas, queiramos ou não queiramos, o universo é um “cosmos”, um sistema de ordem e harmonia, e não um “caos” de desordem e confusão. A Constituição Cósmica do Universo exige imperiosamente a prática da Verdade, da Justiça, do Amor, da Solidariedade, da Honestidade. Pode, certamente, a criatura livre violar essa lei, mas as consequências dessa infração se voltam infalivelmente contra o infrator, em forma de sofrimento de qualquer espécie. O sofrimento é o eco


automático a qualquer violação da lei cósmica. E ninguém sabe quantos anos, decênios ou séculos correspondem a cada violação. O certo é que essa dolorosa sanção existe – tão certo como é certo que o Universo é um Cosmos. Ora, é evidente estupidez provocar enormes sofrimentos, embora talvez remotos, para gozar de uma pequena vantagem imediata. E, por outro lado, é real sabedoria renunciar a uma vantagem de momento e, assim, não provocar sofrimento futuros. Ninguém pode fugir à lei férrea de causa e efeito; uma vez posta a causa, segue-se o efeito com inelutável necessidade. O universo se reequilibra automaticamente – mas esse reequilíbrio é doloroso para o delinquente. Não seria melhor não tentar desequilibrar o equilíbrio da justiça cósmica? O educador deve fazer ver a seu educando esse fato, o qual, admitindo ou não, continua a vigorar. Ser bom, justo, honesto, verdadeiro, é, não raro, doloroso, na vida presente, por causa do falso ambiente geral da vida humana, criado por nossa pseudocivilização. Mas, em qualquer hipótese, ser bom, justo, honesto, verdadeiro, é, em última análise, ser feliz, embora essa felicidade íntima seja, por ora, circundada de sofrimentos. Fundamentalmente, ser bom é ser feliz, e ser mau é ser infeliz. Podemos enganar os homens – mas ninguém pode enganar a lei eterna e sua própria consciência. Só quem aplaina a seu educando os caminhos para essa compreensão da verdade suprema é que o glorioso nome de educador.


BASES PARA UMA NOVA EDUCAÇÃO

Verificamos que tanto a educação leiga como religiosa se revelaram ineficientes para dar ao homem do presente século uma base sólida da vida ética. Ambos esses tipos educacionais apelam para motivos externos, situados fora do homem, para darem ao seu sistema ético uma sanção eficaz. Em tempos idos, exerciam esses motivos externos – lei, polícia, céu, inferno – impacto suficiente sobre o caráter humano, e ainda em nossos dias têm eles certa eficácia sobre pessoas de pouca anatomia intelectual e espiritual. Mas, para a elite da humanidade, deixaram esses argumentos de oferecer base suficiente à vida ética. A verdade em si é absoluta, não há dúvida, mas o modo como o homem a apreende é relativo – e é precisamente esse relativismo em face da verdade absoluta que decide sobre a sua maior ou menor eficácia na vida, porquanto “o conhecido está no cognoscente segundo o modo do cognoscente”. E, com isto, enfrentamos um problema aparentemente insolúvel; vemo-nos como que à beira de um abismo fatal. Que outro motivo poderia o homem ter para ser bom e deixar de ser mau? Se não tem que temer os castigos dos homens nem de Deus, por que não praticar o mal, quando o mal dá, quase sempre, uma vantagem imediata, ao passo que a prática do bem acarreta, não raro, desvantagens imediatas? Confessamos que a nossa situação é difícil, não por causa de si mesma, mas por causa do ambiente em que a humanidade, sobretudo a humanidade cristã do Ocidente, vive e foi educada, há quase dois milênios. Neutralizar uma ideologia multissecular – quem o ousaria tentar?... Com que substituiríamos os motivos tradicionais, externos, que davam ao homem de ontem certa segurança e estabilidade? Se o homem deixa de sentir o impacto dos velhos argumentos, que novo argumento lhe podemos oferecer? O ponto de referência, a norma central para a nova educação deve ser algo interno, algo dentro do próprio homem. Temos de passar da transcendência para a imanência educacional – e é precisamente aqui que começa a grande escuridão... Que ponto de referência, que novo centro de gravitação é esse?


É a dignidade, o valor intrínseco do próprio homem; o homem deve, livre e espontaneamente, evitar o mal e praticar o bem, não por causa de um punidor fora dele – humano ou divino –, mas para não ofender a sua própria pureza e santidade, para não profanar a sua nobreza e sacralidade, para não desvalorizar o seu grande e imenso valor humano. O homem deve ter de si mesmo uma reverência e um respeito tão grande que prefira sofrer qualquer injustiça da parte de outros a cometer uma injustiça ele mesmo – e por isto não por motivos de ética dualista e tradicional, mas por causa dessa misteriosa metafísica e mística centralizadas no mais profundo reduto da sua própria natureza humana. Mas, para que o homem possa ter de si tão grande ideia, deve ele ter noção exata e nítida da sua verdadeira natureza – e é precisamente aqui que começa a grande dificuldade! A noção que quase todos nós temos de nós mesmos, e que nos foi incutida desde a infância, é tão infeliz que, logo de início, parece frustrar qualquer tentativa de modificação radical. Foi-nos dito, e redito, pelas mais poderosas organizações que navegam sob a bandeira do cristianismo, que somos essencialmente maus, pecadores desde o nascimento, mesmo desde o momento da nossa concepção. Tão profundamente arraigada na consciência cristã do Ocidente se acha essa idéia de que em pecado fomos concebidos, em pecado nascemos e pecadores somos por nossa íntima natureza humana – que o fato de ter aparecido sobre a face da terra uma pessoa de “imaculada concepção” mereceu as honras de um dogma religioso de vasta repercussão. Dizer a um cristão ocidental que também ele foi concebido sem pecado, que todos os seres humanos entraram na existência puros como a luz – isto é considerado como abominável heresia e blasfêmia, porque as teologias de quase vinte séculos são contrárias a essa verdade. Outros, menos dogmáticos, estariam dispostos a aceitar essa verdade da imaculada conceição de todos os homens se, no parecer deles, semelhante ideologia não alimentasse e hipertrofiasse perigosamente o egoísmo e a presunção do homem, como eles dizem. Felizmente, temos a nosso favor o maior mestre espiritual da humanidade, que proclama explicitamente a pureza natural de todo homem, que não conhece nenhum pecado herdado, mas tão-somente pecados cometidos pelo próprio homem adulto. Quanto ao receio de que essa ideologia favoreça o orgulho do homem, veremos mais tarde de que essa ideia é filha da ilusão e de uma deplorável falta de conhecimento da verdadeira natureza do homem.


Uma coisa é certa: que nenhuma educação eficiente é possível enquanto o homem viver na convicção de que ele é um ser essencialmente mau e que só pode ser feito bom por obra e mercê de terceiros. Pedimos ao leitor que preste atenção, muita atenção, ao tremendo ilogismo que vai neste conceito: eu sou essencialmente mau e pecador, em virtude da minha íntima natureza humana; sendo isso verdade, como poderei deixar de ser mau? Só deixando de ser o que sou e tornando-me o que não sou. Devo deixar de ser verdadeiro homem – que é intrinsecamente mau – e tornar-me um ser totalmente diferente do que sou por natureza; isto é, tenho de me desnaturar a fim de poder ser bom. De maneira que o meu subsequente homem bom, que serei, não é idêntico ao primitivo homem mau, que sou; esse homem bom não é o mesmo que foi concebido e nasceu como sendo eu; pois esse primitivo eu, essencialmente mau, deixou de existir, cedendo o lugar a um outro eu, que é bom. Quer dizer que me tornei bom à custa de uma radical abolição, ou total apostasia, do meu verdadeiro eu. Tive de me falsificar 100% a fim de poder ser bom, pois o meu primitivo eu era 100% mau, e 100% de maldade nunca poderá converter-se em 100% de bondade. Quer dizer que esse subsequente eu bom é um pseudo-eu, e somente graças a esse “pseudo” (palavra grega para “mentira”) é que eu sou bom; a mentira a mim mesmo me fez bom; a infidelidade à minha própria natureza humana fez com que eu me tornasse um homem bom. Se eu ficasse fiel a mim mesmo, seria mau; mas, como cometi infidelidade contra mim mesmo, consegui tornar-me bom. Que admira que, em face de tão monstruosa falta de lógica e de bom senso, o homem espiritual seja considerado por muitos como um pseudo-homem, um homem desnatural, um homem falsificado? E que admira que muitos prefiram ser “naturalmente maus” a serem “desnaturalmente bons”? Felizmente, esse ilogismo é apenas da teologia de certos cristãos, e não do Evangelho do Cristo; à luz do Evangelho pode o homem ser “naturalmente bom”, e, se não o for, é “desnaturalmente mau”. O maior mestre da humanidade não conhece espiritualidade anti-humana nem humanidade antiespiritual; para ele, o homem plenamente humano é plenamente espiritual, bom, divino; e, se o homem não é espiritual, bom, divino, é porque não é suficientemente humano e natural. O “filho do homem” é o “filho de Deus”. Sobre a base estritamente unitária do Evangelho do Cristo, é possível erigir o edifício da nova educação – mas sobre a base dualista das nossa teologias eclesiásticas não é possível construir algo de sólido. Fora da lógica não há salvação, porque a lógica é o próprio Deus, ele, o divino “Lógos”, como diz o quarto Evangelho. Felizmente, não é verdade que o homem seja essencialmente mau. A sua maldade é periférica, a sua bondade é central. E, precisamente por ser periférica, a maldade do homem é amplamente conhecida, ao passo que a sua


bondade, por ser central, é ainda profundamente desconhecida. O elemento bom no homem é como a energia nuclear recatada no âmago do átomo e que exige grande esforço para ser extraída e manifestada. Aliás, todos os grandes mestres espirituais da humanidade reconhecem a intrínseca bondade do homem. *** Aqui é que enfrentamos uma das mais importantes distinções da verdadeira filosofia perene, o conceito do potencial e do atual. O homem é potencialmente bom, embora possa ser atualmente mau. A potencialidade do seu ser é a sua íntima natureza. Todo homem é muito mais aquilo que é potencialmente do que aquilo que é atualmente. Todo homem é antes a sua atitude permanente do que os seus atos intermitentes. Uma semente é potencialmente a planta que dela vai brotar, embora não seja ainda atualmente essa planta. A verdadeira natureza de uma semente de palmeira é a palmeira que dela nascerá. A “natura” é a coisa “na(sci)tura”, isto é, aquela coisa que vai nascer. A potencialidade é, pois, a íntima natureza de um ser, a sua verdadeira natura ou natureza. A íntima natureza do homem não é o seu corpo, revelado pelos sentidos, nem é o intelecto, manifestado pelos pensamentos; a íntima natureza do homem é a sua razão (alma), que se revela pela intuição espiritual, porque essa razão é a suprema potencialidade do homem, aquilo que ele é intrinsecamente, embora não o tenha revelado ainda extrinsecamente. Sendo, pois, que a razão intuitiva, ou alma, é a própria essência do homem, e essa essência é boa, pura, divina, segue-se que a íntima natureza do homem é boa, que o homem é essencialmente bom, porque a alma humana é Deus no homem, “o reino de Deus no homem” (Jesus), “o espírito de Deus que habita no homem” (São Paulo), “participação da natureza divina” (São Pedro), “a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo” (São João Evangelista), “a alma humana é crística por sua própria natureza” (Tertuliano), “a voz silenciosa” (Gandhi), “a luz interna” (os místicos). Razão, alma, consciência, espírito, voz, luz de dentro – todas essas palavras significam a mesma realidade, o último e mais profundo centro do homem, em torno do qual giram todas as periferias da sua vida externa. Essa essência central do homem é idêntica à essência do próprio Universo. A alma humana (razão, consciência) é o ponto de contato em que o microcosmo individual se encontra com o macrocosmo universal; e a lei que rege este rege também aquele – lei de absoluta e incondicional solidariedade.


Quando o homem individual permite que a mesma lei que rege o Universo fora dele seja vitoriosa também no Universo dentro dele, então o homem é bom. Ser bom é sintonizar o grande Além-de-dentro pela harmonia do grande Alémde-fora. O homem bom é essencialmente um homem cósmico. O homem é bom quando estabelece e mantém perfeita sintonia entre o seu modo de ser e agir e o espírito da Constituição Cósmica, entre a sua consciência individual e a Consciência Universal, entre a sua alma humana e a alma do Cosmos. A verdadeira ética (agir) é o reflexo fiel da mística (ser). O homem bom age de conformidade com o que ele é; é fiel a si mesmo. O homem mau age de um modo diferente daquilo que ele é, é infiel a si mesmo, porque nunca descobriu a sua natureza divina. O homem bom essencializa a sua existência. A sua essência é divina, a sua existência é humana. Esse homem diviniza a sua humanidade. Faz a sua existência humana à imagem e semelhança da sua essência divina. Poderá um homem desses ser egoísta? vaidoso? orgulhoso? Se o que nele há de bom e puro é da essência divina, e não da existência humana, como poderia o homem orgulhar-se de algo que é de Deus? Orgulhar-se de elementos da existência humana é pecado. Orgulhar-se do espírito da essência divina é redenção. O pecado vem da ignorância – a redenção vem da sapiência. “Homem! conhece-te a ti mesmo – e serás bom!” “Sede perfeitos – assim como perfeito é vosso Pai que está nos céus.”


ENTRE LÚCIFER E LÓGOS

Vimos que, para iniciar novos rumos para a educação, é indispensável que o educador tenha noção exata da natureza humana, saiba distinguir as periferias existenciais do educando, do centro essencial do mesmo; e, acima de tudo, requer-se que o educador, além de versado na teoria, também viva praticamente essa verdade. Não é possível realizar uma educação eficiente sem ter uma visão unitária do homem. O ser humano é uma unidade harmoniosa, mas que, na sua superfície, aparece, quase sempre, desarmonizada. Quem é que estabelece divergência e infidelidade entre o interno ser e o externo agir do homem, frustrando assim a grande obra da educação? Esta pergunta nos põe no início da grande encruzilhada, onde se bifurcam os caminhos da velha teologia eclesiástica e da nova filosofia cósmica. Nova? Não, essa filosofia cósmica é a filosofia perene de todos os séculos e milênios, tão antiga como a própria humanidade; mas essa filosofia é privilégio de uns poucos iniciados, ao passo que a turbamulta dos profanos segue os dogmas de uma teologia dualista e dispersiva, que não permite uma educação eficiente e racional. O que a velha teologia consegue é impor-se ao homem, assim como o ditador se impõe a seus súditos. A verdadeira educação, porém, não é nem pode ser um regime ditatorial; e cada vez menos é possível considerar o educando um autômato cujo único dever seja cumprir ordens emanadas de uma autoridade suprema, externa. O homem de hoje não quer apenas cumprir ordens, quer saber das últimas razões por que deve fazer isto e deixar de fazer aquilo. Não quer agir em virtude de uma compulsão externa, mas sim em virtude de uma compreensão interna. A divisão usual do homem é entre corpo e alma. A palavra corpo é tomada como idêntica à matéria, e sobre o vocábulo alma existem tantas sentenças quantas cabeças. É doutrina quase geral que é a alma que peca (uns chegam ao absurdo de atribuir pecabilidade até ao corpo); acham que é a alma que se torna má e antidivina, e que, se não se converter, vai ser eternamente condenada ao sofrimento. E o ilogismo culmina no absurdo de que, um dia, o próprio corpo, esse corpo-matéria, ressuscitará e participará do eterno sofrimento da alma, e que Deus, esse Deus-Amor, se deliciará eternamente com os sofrimentos de milhões e milhões de filhos seus.


Há, nessa concepção, tantos erros quantas palavras. Excusado é dizer que sobre alicerce tão incerto não se pode erigir uma educação sólida que resista ao impacto de um pensamento racional e espiritual. A verdade é que nem o corpo nem a alma pecam. Quem peca no homem é o seu intelecto, o seu lúcifer, a sua serpente, e não a sua alma, que é o “espírito de Deus que habita no homem”. O intelecto, ou inteligência, revela-se pelo ego, ou pessoa (persona) do homem. Esse ego-persona é o homem físico-mental-emocional. A razão ou alma manifesta-se pelo EU, que é o indivíduo ou a individualidade humana. As palavras latinas “persona” e “indivíduo” dizem admiravelmente o que significam. “Persona”, em latim, quer dizer “máscara”. A “persona” (de per e sonare, soar ou falar através) era a máscara que, no tempo do império romano, usavam os atores no palco e através de cuja boca aberta falavam. Por detrás dessa “persona” estava o “indivíduo”, ou seja, o homem que desempenhava o papel representado pela máscara. “Indivíduo” quer dizer “indiviso”, não-dividido, não-separado. A individualidade do homem é aquilo que o faz um ser indivisível em si mesmo (em grego, átomos) e também indivisível ou inseparável do grande Todo, da Alma do Universo. Por ser indivíduo, o homem é um ser estritamente uno e unitário, e por isto mesmo parte integrante do Universo. O homem não está separado do grande Todo, nem é idêntico a esse TODO, mas é dele distinto. O dualista separa o homem do grande Todo; o panteísta o identifica com ele; mas o verdadeiro universalista (que modernamente, segundo o filosofo germânico Krause, se chama pan-en-teíta) sabe que o homem não pode jamais estar separado do grande TODO, nem pode ser idêntico a ele. A separação equivaleria a um suicídio violento, uma vez que nenhum efeito pode subsistir sem a causa-prima; a identificação seria uma espécie de suave eutanásia, em que o finito se diluiria totalmente no Infinito, nirvanizando o seu existir individual no Ser Universal. Tanto nesta como naquela hipótese, o indivíduo humano deixaria de existir como indivíduo, aniquilando-se, ou no Nada ou no TODO. O que une o homem ao TODO é a sua essência, que é a própria essência do TODO; o que distingue o homem do TODO é a sua existência. Se o homem fosse apenas essência universal (divina) seria ele o próprio Deus, o Universal; se fosse apenas existência individual (humana), sem nenhum fundo de essência universal, seria um puríssimo Nada, o Irreal, o Vácuo, porque nenhuma existência individual tem realidade em si mesma, se não estiver unida à essência universal. Assim, por analogia, um indivíduo vivo não seria vivo se


não estivesse unido à Vida Universal. A única razão por que uma existência é viva é porque participa da essência da Vida Universal. A essência universal é o Real; as existências individuais são os realizados. O profano e insipiente considera os objetos existentes como sendo reais, autoreais, reais em si mesmos; mas a realidade do mundo objetivo não tem caráter autônomo, senão apenas heterônomo; os objetos não possuem realidade absoluta, original, senão apenas realidade relativa, derivada, assim como a nossa terra possui luz emprestada pelo sol, ou assim como uma figura refletida no espelho possui realidade derivada do objeto, em sentido oposto, e se reflete no espelho. Nenhum objeto existencial é auto-real, todos são alo-reais, ou realizados. Afirmar que os objetos sejam irreais, puros nadas e simples ilusões, como afirmam certos sistemas metafísicos, antigos e modernos, é falta de lógica; os objetos não são reais nem irreais – são realizados, isto é, possuem uma realidade derivada, heterônoma, assim como reflexos num espelho, que desaparecem no mesmo instante em que a coisa refletente deixa de se refletir. Donde se segue que nenhum indivíduo pode existir por um instante sequer, se não estiver unido ao Universal da essência. A inteligência humana, porém, em virtude da sua relativa imperfeição, cria a ilusão de poder existir independentemente do Ser Absoluto; pode mesmo desejar essa existência autônoma, ou pseudo-autônoma, porque a inteligência é uma faculdade visceralmente separatista ou egocêntrica; julga possível estabelecer um reino à parte e ser soberana autônoma nesse reino. A inteligência é, por sua natureza, centrífuga, rebelde, dispersiva, vivendo na ilusão de poder existir e agir separada da Essência Cósmica – como se uma onda do mar pudesse existir sem o mar, como se a luz colorida pudesse existir sem a luz incolor que lhe deu origem e dá continuação. A inteligência é profundamente “narcisista”, auto-adorante – e é precisamente nessa tendência “narcisista” que se baseia a ideia do pecado. Quem peca no homem é a inteligência, revelada pelo ego, ou persona. Pecado não é possível sem ilusão, e a ilusão nasce da ignorância. Sendo que a inteligência é semiignorante e semiciente, espécie de penumbra ou sem luz, é-lhe possível criar e manter essa atitude separatista, embora a separação real seja impossível sem o aniquilamento. Objetivamente, todo o indivíduo está unido ao Universal; mas subjetivamente pode o indivíduo sentir-se separado do Universal, que é o grande TODO, ou Deus. Essa tendência separatista da inteligência relativamente ao TODO Universal revela-se, cotidianamente, no pendor separatista do ego intelectual com relação aos outros egos, seus semelhantes. Uma vez que o ego julga poder separar-se de Deus, e até opor-se a ele, julga-se também autorizado a separar-


se dos homens, ou opor-se aos mesmos. Separatismo na vertical gera separatismo na horizontal. Falta de senso místico cria falta de senso ético. Quem não se sente harmonizado com o grande TODO, não sente harmonia entre si e as outras partes desse TODO. Perdido o senso de união com as partes relativas, que são os outros seres humanos, e até os seres infrahumanos da natureza. A apostasia da mística vertical produz, cedo ou tarde, a apostasia da ética horizontal. Ou, na linguagem do mestre de Nazaré, quem não ama a Deus com toda a alma, com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças, também não pode amar o próximo como a si mesmo, porque ninguém pode fazer o “segundo” sem fazer o “primeiro”. Por isto, é profundamente ilusório todo e qualquer sistema de educação que tente ser puramente social ou ético, prescindindo do elemento místico. A princípio, todo educador tem a impressão de que educação nada tenha que ver com metafísica e mística, que parecem ser ocupação abstrata e longínqua, sem nexo real com a vida humana de cada dia. Enquanto o educador alimentar essa ilusão, não tem base real e sólida para uma educação eficiente. O educador de hoje tem de ser um filósofo, um metafísico, um místico... Para que o educador possa dizer, com segurança, 10% aos outros, deve ele possuir em si mesmo 100% de sabedoria experiencial. Tem de saber muito para poder dizer pouco. Tem de ter em si um grande capital de reserva experiencial (90%) para que possa pôr em circulação uma pequena parcela do mesmo (10%). Só quem sabe muito, por experiência íntima, é que pode falar com poder e autoridade, e dizer devidamente o pouco que a prudência lhe permita dizer. O que o educador diz deve ser como que um transbordamento espontâneo daquilo que ele é. O “ser” é a fonte e base do “dizer”.


ESSENCIALIZANDO A EXISTÊNCIA

Quase todo o Ocidente vive na ideia de que filosofia tenha que ver com o mundo em derredor. Há pouco, quis assistir a um congresso de filosofia reunido numa das nossas grandes capitais; mas não fui, porque verifiquei pelo programa publicado que, nesse congresso de filosofia, se trataria de tudo – menos de filosofia. A filosofia tem por objeto o homem, e não o mundo. Também a religião focaliza o homem, mas fá-lo de outro modo que a filosofia, porque manda que o homem creia numa realidade invisível, a fim de ter a experiência da mesma após-morte; lida, pois, com argumentos póstumos. A verdadeira filosofia, porém, trata do homem total, no espaço, do homemrazão, do homem-intelecto e do homem-corpo, do homem aqui na terra e em qualquer outro ambiente do universo. O céu ou o inferno do homem podem ser criados agora e aqui mesmo, e são produtos do próprio homem, e não creações de Deus. Todo homem bom cria o seu céu agora e aqui, como também para sempre e por toda parte. Todo homem, como já dissemos, é bom em virtude de sua essência divina (o EU), que também se chama alma, consciência ou razão intuitiva. Mas essa essência divina da alma, essa “luz do mundo” pode ser ofuscada pela existência humana (o ego). Quer dizer que o homem essencialmente bom pode ser existencialmente mau – como também pode ser existencialmente bom. O grande erro de muitos teólogos está em confundirem o homem existencialmente mau com o homem essencialmente mau, aduzindo até palavras de Jesus para comprovar o seu erro: “Vós, que sois maus...” O divino Mestre fala, nessa ocasião, de homens adultos que, pelo abuso da sua liberdade, se haviam feito existencialmente maus, e não de homens essencialmente maus, que ele ignora totalmente. Toda a verdadeira educação consiste em que o homem faça a sua existência à imagem e semelhança da sua essência; que essencialize a sua existência; que verticalize as suas horizontalidades; que divinize a sua humanidade; que faça o seu externo agir tão bom e puro como é o seu interno ser. Deve o homem fazer a sua vivência ética tão boa como é a sua experiência mística.


O principal é que o homem creia em si mesmo, que seja fiel a si mesmo. É necessário, antes de tudo, que o homem tenha a firme convicção de que há nele um elemento bom, puro, divino, sobre o qual ele possa – e pode – assentar os alicerces do seu edifício ético. Nenhum arquiteto sensato constrói um edifício sobre pântano ou areia movediça. Infelizmente, repetimos, a nossa teologia ocidental nega ao educando, e também ao educador, esse fundamento firme, porque ensina, há séculos, que o homem é essencialmente mau, pecador, negativo, antes mesmo de nascer. Confunde o ego periférico do homem com o seu EU central, cometendo o mesmo erro que Tomas Hobbes e outros filósofos empíricos costumam cometer, afirmando que o homem é egoísta por natureza, e egoísta sempre será; que ninguém o pode “desegoficar”; que todo o chamado “altruísta” não passa de um egoísta disfarçado, de um detestável hipócrita, e que os governos têm a única função de manter o inextirpável egoísmo dos indivíduos dentro de certos limites toleráveis, para que possa haver uma relativa paz social. Quem, como esses filósofos, identifica a íntima natureza humana com o seu ego periférico – físico-mental-emocional – não pode, naturalmente, admitir que haja no homem algo realmente bom, puro e divino. Nós, porém, sabemos, de acordo com todos os grandes mestres da humanidade, que o homem, na sua íntima essência é bom, uma vez que a íntima essência dele é “ a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo”, e brilha em todo ser que sai das mãos do Criador. “A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a prenderam” – a luz da essência divina brilha em todas as trevas das existências humanas, e também infra-humanas; mas nenhuma dessa trevas das existências criadas consegue “prender”, ofuscar, extinguir a luz da essência divina que nelas está. Se o homem fosse essencialmente mau, não haveria nenhuma possibilidade de o tornar realmente bom – nem mesmo o mais divino e poderoso dos redentores o poderia redimir da sua intrínseca maldade e conferir-lhe bondade real, porque essa “redenção” ou “conversão” equivaleria a uma verdadeira e total destruição do próprio ser humano, substituindo a sua “essência má” por uma “essência boa”. Ora, à luz da psicologia do Ocidente, da filosofia do Oriente, e à luz do próprio Evangelho de Jesus Cristo, não há nenhuma substituição do homem mau pelo homem bom; há uma conversão do homem existencialmente mau no homem existencialmente bom, e este processo de conversão é possível unicamente sobre a base do homem essencialmente bom; porquanto, ninguém se pode tornar explicitamente o que não é implicitamente, nenhuma semente se pode tornar atualmente uma palmeira se potencialmente ela não é palmeira; nenhuma semente se pode tornar atualmente viva se ela não é potencialmente viva. A transição do estado potencial (implícito) para o estado atual (explícito)


não é uma transição do não-ser para o ser, mas é a transição de um estado de ser imanifesto para um estado de ser manifesto; não é uma criação ex nihilo, mas uma revelação de algo, de algo que já existia encoberto, e agora passou a ser descoberto. Se o homem pode tornar-se manifestamente bom é prova de que ele, antes dessa manifestação, já era ocultamente bom. Ninguém se torna o que não é! O homem existencialmente bom realiza o feito máximo da sua vida, permeando a sua vivência humana com a sua essência divina, assim como uma luz interna permeia totalmente de si um límpido cristal colocado diante dela. Se colocarmos uma luz por detrás duma parede opaca, haverá sombra do lado oposto – é o símbolo do homem existencialmente mau que não deixou penetrar-se pela luz da essência divina que nele está; a sua opacidade é o seu grande pecado, porque ele podia fazer com que essa opacidade profana fosse transparência sagrada. “A luz verdadeira ilumina a todo homem que vem a este mundo – e os que recebem essa luz se tornam filhos de Deus”. A luz divina está em todo homem, mas nem todos a “recebem”, nem todos se tornam receptivos, nem todos fazem-na permear-na e penetrar a sua vida, e por isto ficam na sombra da sua culpável maldade. Os nossos teólogos eclesiásticos negam a realidade da luz divina no homem – e isto a despeito das declarações reiteradas e explícitas do divino Mestre e dos seus grandes discípulos. “Vós sois a luz do mundo”, declara Jesus, depois de haver afirmado “Eu sou a luz do mundo”. Declara que seus discípulos são, na sua essência, a mesma luz divina que ele é. E João Evangelista declara que essa “luz verdadeira”, do divino Lógos (o Verbo) ilumina a todo e qualquer homem que vem a este mundo. Se não reside no homem nenhum elemento bom, não pode haver verdadeira educação, porque “educação”, repetimos, quer dizer “edução”. Educar é eduzir, isto é, conduzir para fora. Só se pode eduzir o que está dentro. Na opinião dos teólogos ocidentais, há indução em vez de edução; o elemento bom deve ser induzido, introduzido, injetado ou impingido ao homem, de fora para dentro, como algo externo e alheio à sua natureza, como um aditamento posterior ou uma substituição. Neste caso, o homem educado se torna bom graças a uma infidelidade a si mesmo; despoja-se do que é dele e recebe o que não é dele, porque, nessa suposição, o elemento bom não existe nele, mas vem-lhe de fora, de uma fonte alheia e heterogênea. Assim, como já foi dito, a educação (ou antes, inducação) seria uma adulteração do educando; o homem falsificado é que seria o homem bom. *** Acham os defensores do homem essencialmente mau que, se admitirmos o homem essencialmente bom, criamos nele um complexo de orgulho ou autocomplacência, fazendo dele um enfatuado egocentrista, um pelagiano ou


um homem que espera redenção de si mesmo, auto-redenção, em vez de teoredenção ou cristo-redenção. Cuidado com essa confusão de idéias! Cuidado com essa falsa lógica! Que é auto-redenção? Pode ser uma de duas coisas: ou redenção pelo EGO HUMANO, isto é, pela persona do ego físico-mental-emocional – ou pode ser redenção do homem pelo EU DIVINO nele, por seu Cristo interno, pelo espírito de Deus que nele habita, redenção por sua alma crística. Neste último caso, auto-redenção é teoredenção, cristo-redenção. E é precisamente nesse sentido que entendemos auto-redenção, a redenção do homem pelo elemento divino nele existente, embora em estado dormente e embrionário. Despertar no homem esse elemento divino é redimi-lo e é educá-lo. É este o único caminho certo para uma verdadeira educação: despertar, desenvolver e eduzir do homem essa luz e essa força divina até que ela penetre todas as trevas do ego humano. É visceralmente falsa e funesta a psicologia e pedagogia que procuram dar ao educando uma ideia baixa de si mesmo, um auto desprezo, na intenção de o levar à humildade e ao desejo de ser remido por Deus. Humildade não é desprezo de si mesmo. Humildade é a verdade sobre si mesmo. Redenção de fora é impossível quando por dentro não existe um elemento redimível. Com o melhor adubo do mundo o calor solar mais propício não se pode fazer brotar uma semente se dentro dela não existe um princípio vital. Só se pode vitalizar o que é vivo. Ninguém pode criar vida, só podemos despertar a vida já existente em estado de dormência. Quem não supõe bondade dormente no educando não o pode tornar bom, porque ninguém se torna explicitamente o que não é implicitamente. “Se o olho não fosse solar”, diz Goethe, “jamais poderia contemplar o sol”. Da mesma forma, se a alma humana não fosse crística por sua natureza, ninguém o poderia cristificar; se ela não fosse divina por natureza, jamais poderia ser divinizada; se ela não fosse espiritualmente viva, ninguém a poderia vitalizar em espírito; se a alma não tivesse dentro de si um princípio de santidade, ninguém a poderia santificar. Educar é, pois, eduzir de dentro do educando e desenvolver uma bondade, um ser-bom, que nele existe, embora ainda em estado latente e embrionário. Dizer que esse despertamento da bondade dormente no ser humano favorece o orgulho dele é não saber distinguir o ego periférico (persona, intelecto) e o EU central (indivíduo, razão) do homem. A alma não pode ser orgulhosa, egoísta, porque ela é Deus no homem; só o lúcifer do intelecto é que é susceptível de orgulho, egoísmo e qualquer outro pecado. Quem ultrapassa o


seu ego personal ultrapassa a sua pecabilidade e entra na zona da impecabilidade. “As obras que eu faço não sou eu (meu ego humano) que as faço, mas é o Pai (meu EU divino) que as faz em mim” (jesus). Quando Pedro curou aquele paralítico à porta do templo de Jerusalém, como referem os Atos dos Apóstolos, o povo o encarava, estupefato; o apóstolo, porém, longe de atribuir a seu ego humano esse prodígio, fez ver ao povo que o autor dessa cura era o espírito do Cristo que dele se servira como simples veículo. Quem sente orgulho ou vanglória em face de algum ato bom prova que ainda vive na ignorância de si mesmo, que ainda não é bom, mas apenas faz o bem. O maior dos ateus pode fazer o bem, apesar de não ser bom; pode fazer um bem material com o que tem, mas não um bem espiritual com o que é. É, pois, necessário que o educador conheça, antes de tudo, a si mesmo, a fim de poder contribuir para dar a seu educando a verdadeira noção do mesmo. Para ser bom educador, é necessário que o homem seja “educado”, isto é, que tenha “eduzido” de si mesmo o elemento bom que em todos existe.


A SABEDORIA DOS GRANDES EDUCADORES

Escreve o insigne Albert Schweitzer que nossa teologia cristã criou uma espécie de soro que, uma vez injetado ao homem, o imuniza contra o espírito do Cristo; de tão saturado de cristianismo (do “nosso” cristianismo), julga supérfluo o Cristo. Mahatma Gandhi fez idênticas experiências com os missionários cristãos que tentavam convertê-lo ao nosso cristianismo; a todos eles respondia o grande líder político e espiritual da Índia: “Aceito integralmente o Cristo e seu Evangelho, mas não aceito vosso cristianismo”. Sobretudo no setor educacional se verifica essa substituição do Cristo pelo cristianismo, do Evangelho pela teologia. O Evangelho do Cristo, vivido em sua verdade e pureza, oferece a melhor base para a educação. Antes de tudo, revela Jesus uma profunda reverência pela natureza humana. Para ele, não existe criança concebida em pecado; todo homem é essencialmente bom e puro, a princípio; só mais tarde se torna mau pelo abuso da sua liberdade. Não encontramos nas páginas do Evangelho uma única palavra de Jesus que justifique a ideia teológica do “pecado original”. Essa ideologia nasceu fora do Evangelho e foi, mais tarde, introduzida nele pelos teólogos cristãos. Já aparece nos últimos quatro séculos do Antigo Testamento, no seio da sinagoga de Israel decadente. Pelo ano 400 antes da era cristã, faleceu Malaquias, o último dos profetas de Israel, e nos quatro séculos subsequentes os sacerdotes hebreus tomaram a direção espiritual do povo. Mas a orientação sacerdotal era visceralmente legalista; segundo eles, a salvação vinha da aceitação e aplicação de certas fórmulas rituais; era a letra da lei que salvava o homem, e não o seu espírito. Durante esse período de decadência surgiu na sinagoga a doutrina de que o homem é mau e pecador por natureza e que só a lei o pode libertar do pecado. Foi divinizada a Lei, e, para que a Lei tivesse o máximo de prestígio e poder, foi o homem reduzido ao mínimo, declarado pecador em virtude de sua própria natureza; e assim o nadir da natureza humana elevava ao zênite a força da Lei. Mais tarde, no início da era cristã, foi a Lei substituída pelo Cristo, mas o paralelismo continuou: para que o Cristo tivesse o máximo de valor, foi o


homem reduzido ao mínimo do desvalor – surgiu a paradoxal ideologia teológica do “homem pecador”, a teoria do “pecado original”. Jesus não aceita essa doutrina. Para ele, o reino de Deus está dentro do homem, e só dentro é que ele pode vir e manifestar-se na vida humana. “O reino de Deus não vem com observâncias (externas, rituais), nem se pode dizer: ei-lo aqui! ei-lo acolá! – o reino de Deus está dentro de vós”. Com estas palavras categóricas reafirma o Nazareno a verdade antiquíssima, mas no seu templo obliterada, de que o homem é remido pelo elemento divino que nele existe em virtude da sua própria natureza. Bem cedo, porém, já no primeiro século, penetrou no corpo do cristianismo primitivo o elemento judaico sobre a essencial pecaminosidade do homem, fato que se explica pela circunstância de terem os primeiros líderes da igreja cristã vindo do judaísmo, introduzindo inconscientemente no cristianismo nascente certas ideologias da sinagoga. A ideia da essencial maldade do homem deu ao cristianismo primevo, e posterior, um colorido dualista e pessimista, influindo profundamente no conceito do processo da redenção. Jesus, porém, não sucumbiu a essa ideologia, razão porque incompatibilizou com os chefes da sinagoga ao ponto de o levarem à cruz.

se

Um dia, refere o Evangelho, estavam os discípulos do Nazareno discutindo sobre quem deles era o maior no reino de Deus; e cada um deles fazia valer os seus pretensos títulos e direitos a essa primazia. Ao que o Mestre chamou uma criança, colocou-a no meio dos litigantes ambiciosos e disse-lhes: “Se não vos converterdes e tornardes como esta criança, não entrareis no reino dos céus”. É evidente que Jesus considera essa criança como habitante do reino de Deus; pois seria absurdo supor que ele propusesse um modelo impuro aos impuros. Essa criança, porém, não fora “purificada” por nenhum rito legal ou sacramental, que não existia; era pura assim como nascera e fora concebida; nunca tivera impureza alguma. Exige Jesus que seus discípulos, feitos impuros por culpa própria, se tornem puros por esforço próprio, assim como aquela criança era pura por sua própria natureza. Em outra ocasião ameaça Jesus com terrível castigo àqueles que levarem a pecado um daqueles pequeninos que creem nele, porque os seus anjos contemplam sem cessar a face do Pai dos céus. Ora, nenhuma dessas crianças hebréias “cria” em Jesus mediante ato consciente de fé; ninguém o conhecia; o Nazareno era para elas apenas um bom rabi judeu, e nada mais. O “crer” dessas crianças não era um ato, mas uma atitude interna, um modo de ser em harmonia com Deus – o que prova que essas almas eram boas e puras, e não pecadoras e inimigas de Deus. Também seria absurdo supor que os anjos de Deus tanto se desvanecessem pela proteção de um bando de


pequenos pecadores. E como podiam os pecadores adultos levar ao pecado essa crianças se elas já estivessem em pecado?.. Por esta mesma razão também não mandou Jesus batizar crianças, e o próprio João só batizava adultos. O batismo de João, a que Jesus alude, só visava pecados pessoais, e não algum pecado original que os batizandos tivessem herdado de seus antepassados, como a teologia de hoje ensina. Sobre esta base positiva do Evangelho de jesus Cristo é possível erguer o edifício de uma educação sólida – ao passo que a teologia eclesiástica corrente, quer desta, quer daquela igreja, é totalmente inapta para oferecer base conveniente. O descalabro da nossa educação tem suas raízes em séculos anteriores. Aqui no Brasil começou em 1500, mas em outras partes começou muito mais cedo, talvez em 313, quando, pelo edito de Milão, o imperador pseudo cristão, Constantino Magno, deu início à substituição do Evangelho do Cristo pela teologia dos cristãos. Se não voltarmos decididamente ao espírito crístico do Evangelho, não teremos base eficiente para uma nova educação. Teremos a coragem de realizar tão arrojada aventura? E teremos do nosso lado as autoridades públicas, que em geral, não se interessam pela qualidade do cristianismo, mas sim pela quantidade dos eleitores que lhes garantam poder e prestígio social e político? Necessitamos de um pugilo de heróis para realizar o grande ideal de uma nova educação.


OS MALES DA EDUCAÇÃO ESCATOLÓGICA

Uma das principais razões por que a nossa educação chamada religiosa se tornou eticamente ineficiente é o seu caráter escatológico, quer dizer, a falsa concepção do homem após-morte. É sobretudo neste ponto que estamos navegando em águas tipicamente medievais, quando bem poderíamos ter da vida futura concepção menos infantil e inadequada. Um dos setores da teologia eclesiástica do Ocidente, o mais conhecido entre nós, ensina que, após a morte física do homem, vai sua alma (não ele!) para um de dois lugares definitivos que existem no “outro mundo”: céu ou inferno; ou então para o purgatório, lugar provisório onde a alma deve expiar os pecados veniais, como também as penas temporais dos pecados mortais, cuja culpa e pena eterna já foram canceladas antes da morte. O outro setor da teologia eclesiástica ensina o mesmo quanto a céu e inferno, negando apenas a existência de um lugar provisório de purificação. Tomando por fundo qualquer uma dessas concepções teológicas, torna-se assás difícil a tarefa da educação. O único elemento razoável que existe nessas ideologias é o do purgatório – mas, por infelicidade, é precisamente esse fator que foi abolido pelo protestantismo, e é relegado a segundo plano pela teologia romana. Nenhuma dessas teologias se guia por um espírito de verdadeira e genuína “catolicidade”, palavra grega para “universalidade”. Neste particular, o espiritismo cristão deu um grande passo para frente, não ensinando pecado herdado de terceiros, mas pecado herdado do próprio pecador e cometido em existência anterior. Embora não consideremos o espiritismo como sendo simplesmente como idêntico ao cristianismo do Cristo (o qual, aliás, é inorganizável, porque toda organização é filha do egoísmo!), admitimos, contudo, que ele contribuiu e com preciosos elementos para a evolução espiritual do Evangelho do Cristo. A sua doutrina escatológica é bem mais aceitável e fornece melhor base educacional do que os dois tipos de cristianismo acima mencionados. Deixando de parte a tendência sectária e dogmatizante que invadiu vastas camadas do espiritismo brasileiro, achamos que esse movimento, no seu plano superior, asectário, poderá prestar notáveis serviços à cristificação do nosso tradicional cristianismo.


Nem a razão humana nem a revelação divina admitem a idéia de que o homem, com a perda de seu corpo material, entre num estado definitivo. Tanto os fatos históricos milenares como também a psicologia abismal dos nossos dias provam o contrário. A evolução do homem não termina com 50, 80 ou 100 anos de vida terrestre. Mesmo não admitindo a teoria da reencarnação material, somos obrigados a aceitar que “há muitas moradas na casa do Pai celeste”, isto é, muitos estados nos quais o ser humano possa fixar morada ou permanência temporária, na sua longa jornada rumo a Deus. E como “cada um colherá o que semeou”, é evidente que o homem colherá cada vez, na existência subsequente, o que semeou na existência antecedente. A lei básica de “causa e efeito” (karma) abrange todos os setores do universo individual. A Constituição Cósmica não permite que o homem, após-morte, perca a sua linha de continuidade com a vida presente, que deixe de haver homogeneidade entre essa fases várias de existência única. Não há “outra vida”, há uma vida única em diversas fases de evolução – assim como acontece em outros setores da natureza; a vida da borboleta é essencialmente a mesma que a vida da crisálida, da lagarta e do ovo; apenas os graus de vitalidade e as formas de manifestação dessa única vida são vários. Também a vida da planta é essencialmente idêntica à vida da semente que lhe deu origem, ou ainda da semente produzida por essa planta. Essa lei da continuidade da vida em diversas fases é de suma importância para o problema da educação. Segundo as teologias eclesiásticas, pode um homem levar 50 anos de vida em pecados e crimes, aqui na terra, e logo após a morte física estar isento de todos os efeitos dos seus atos – seja em virtude de uma absolvição sacramental, seja em consequência de um momentâneo ato de fé no sangue redentor de Jesus. Ora, é evidente que, neste caso, não existe proporção alguma entre causa e efeito, entre a gravidade da culpa, por um lado, e a função da absolvição sacramental ou da fé fiducial, por outro. E essa flagrante desproporção entre o débito e o seu cancelamento gera nos que adotam essas teologias um estado de indiferença ou leviandade relativamente ao verdadeiro caráter do pecado ou delito; pois, se tão fácil é a libertação do débito moral contraído, por que deixar de o contrair, quando, em geral, a criação desse débito da culpa se acha ligada a um gozo de maior ou menor intensidade? Se posso roubar, matar, mentir, defraudar, e gozar das vantagens imediatas desses pecados, porque não praticar esses atos e gozar das suas vantagens, se, na fração de um minuto, poderei libertar-me, mais tarde, dos efeitos ingratos que decorrem dessas causas? Se tão fácil é o rompimento dos elos da cadeia kármica dos meus atos negativos, porque ainda envidar ingentes esforços por evitar a criação dessa cadeia, resistindo à tentação de roubar, matar, mentir, defraudar, etc. ? Não me aconselha a “lei do menor esforço” escolher o mais fácil, que, neste caso, é


cometer o pecado e libertar-me das suas consequências por meio de um momentâneo ato de arrependimento posterior – tanto mais que a resistência ao mal é, não raro, tão tremendamente difícil e doloroso? Porque não corrigir o mal por um ato fácil de arrependimento, em vez de o prevenir por uma atitude difícil de não-cometimento? No plano biológico, quase todas as pessoas, sobretudo aqui no Brasil, adotam essa política de corrigir os males físicos, em vez de se guiarem pela filosofia de os evitar. Todos os meios de publicidade – imprensa, rádio, televisão – apregoam sem cessar esse charlatanismo barato do corrigir em vez de prevenir. Você está com dor de cabeça? Tome um comprimido “A”. Está com azia de estômago ou má digestão? Ingira a droga “B”! Sofre de inapetência? Vá a drogaria da esquina e compre o aperitivo “C”! É vítima de astenia sexual? Tome a injeção “D”! Não é esta a política doentia de suprimir sintomas que quase todo o mundo pratica, em vez de seguir a filosofia sadia de prevenir as causas dos males? Infelizmente, as nossas organizações religiosas cometem o mesmo charlatanismo moral ou imoral, ensinando a seus adeptos o modo de se libertarem dos efeitos dos seus pecados, em vez de lhes mostrar como evitarem as causas desses efeitos, o que seria cura do mal, e não apenas cura de sintomas do mal. Esse caráter deletério e antimoral adere, sobretudo, à prática rotineira da confissão sacramental. Suponhamos um jovem de 20 anos, tentado de cometer pecado de homossexualismo, ou pessoa casada tentada de adultério; pode ser dificílima a resistência ao pecado. Mas, se a pessoa sabe que, depois de cometido o pecado, pode libertar-se dele confessando-se rapidamente, e depois continuar a viver como se nada tivesse acontecido – quem não escolheria esse caminho mais fácil, em vez de criar dentro de si uma alta voltagem de resistência moral? Esse infeliz costume de dizermos aos pecadores que, depois de perdoado o pecado – seja pela confissão, seja por um ato de fé –, eles se tornaram tão puros como antes, esse costume, além de envolver grande mentira, é um desastre psicológico e educacional. Não é verdade que, depois de um simples ato de arrependimento, o pecado seja totalmente cancelado, como se não fora cometido. De cada ato mau permanecem resíduos venenosos nas profundezas da alma, facilitando novas quedas e colocando o pecador habitual num perigoso plano inclinado, onde futuras recaídas se tornam cada vez mais fáceis, e futuras resistências se tornam cada vez mais difíceis. A palavra “vício” vem de “vez” (vezo!); “vício” é uma atitude negativa, permanente, que resultou de muitas “vezes” de atos repetidos. Um jovem que cedeu 100 vezes ao pecado de luxúria, e 100 vezes se confessou e arrependeu desse pecado, não está puro como no princípio; está gravemente contaminado, pelo menos nas


subconscientes profundezas de seu ser; é um viciado, uma vítima passiva e quase indefesa. A verdadeira educação não está em lhe mostrar apenas como se arrepender do pecado, mas sim em lhe ministrar motivos eficientes para não recair no pecado. E que motivos seriam esses? Em última análise, já o dissemos, não podem ser motivos externos, como o medo do inferno, uma vez que esse inferno já está evitado pelo arrependimento ou confissão; o motivo real e eficiente só pode ser o respeito à sua própria dignidade, ao santuário da sua natureza humana, ao seu EU divino que, de forma alguma, deve ser profanado, porque no respeito à sacralidade desse divino EU é que reside todo o valor, toda a alegria e toda a felicidade da vida humana. Assim como, no plano biológico, a ingestão habitual de remédios diminui gradualmente a resistência interna do organismo, tornando-o cada vez mais alérgico a novos ataques mórbidos – da mesma forma é o pecador debilitado moralmente pela aplicação de paliativos externos sem uma sólida resistência interna. Se um corpo humano possuía, digamos, 10 graus de resistência ao ser atacado por algum mal, se não recebe auxílio de fora em forma de alguma droga ou injeção, vê-se obrigado a apelar para as latentes reservas internas e aumentar a sua resistência biológica de 10 a 11, a 12, a 15, a 20, a fim de fazer frente ao inimigo; mas, se recebe reforços de fora, em forma de remédio fácil, deixa de intensificar a sua resistência interna, sabedor de que vai receber auxílio de fora, assim, em vez de aumentar sua natural resistência e criar imunidade contra a crença, diminui a sua energia vital, baixando de 10 a 9, a 8, etc., consoante a frequência e rapidez com que recebe os auxílios artificiais de fora; habitua-se o corpo a obedecer à “lei do menor esforço”, esperando receber de fora o que poderia criar de dentro – e está estabelecido o perigoso e vicioso estado de alergia permanente. É exatamente este o caso, no terreno da ética e da educação, quando o homem confia em auxílios automáticos de fora, em vez de criar resistência vital de dento. E o mal da nossa educação escatológica, que induz o homem a remediar, de preferência, os efeitos de seus atos, em vez de prevenir as causas dos mesmos. Esse charlatanismo moral, ou imoral domina vastos setores do nosso sistema educacional, tanto civil como religioso. Necessitamos de médicos que nos mostrem como prevenir os males em sua própria causa profunda, e não de curandeiros que nos ensinem como corrigir ou camuflar os sintomas superficiais do mal. Quer dizer que não devemos apelar para motivos religiosos, no terreno da educação? Devemos, sim, e muito mais energicamente do que temos feito até hoje. O grande psicólogo e psiquiatra da atualidade, Carl Gustav Jung, afirma em quase todos os seus livros que no fundo de todas as curas verdadeiras está o


fator religioso, ou seja, a experiência do Infinito, do grande TODO, de algo que transcende as estreitas barreiras do pequeno ego. A estreiteza causa a doença, a largueza produz a saúde. Entretanto, não vamos confundir Religião (no singular e com inicial maiúscula) com religiões, ou formas específicas de religião, credos, dogmas, seitas, igrejas. Não raro, as religiões são as piores inimigas da Religião. Jesus era um homem profundamente religioso – mas não professava determinada forma de religião. Dois dos grandes homens do nosso século, Albert Schweitzer e Mahatma Gandhi, são, certamente, homens profundamente religiosos, mas nenhum deles é adepto de uma certa igreja ou seita. Eles têm Religião, mas não professam religiões ou credos. Se o educador consegue despertar no seu educando a corda profunda da Religião – idêntica ao que nós chamamos Filosofia Univérsica, ou Filosofia Cósmica – tem nas mãos a mais poderosa alavanca educacional, porque atingiu o último centro da natureza humana. *** Em face do exposto, há quem apele para o exemplo do “bom ladrão” na cruz, cujos pecados – culpa e pena – foram cancelados num instante – “ainda hoje estarás comigo no paraíso”; logo, há uma extinção momentânea do pecado e suas consequências. Mas convém notar que aqui se trata de uma verdadeira e radical “conversão” ou, como diz tão maravilhosamente, o texto grego, em casos análogos, uma “metanoia”, vocábulo que significa literalmente uma “transmentalização” (metánous). Quem consegue transpor a sua antiga mentalidade “ego” e entra na nova zona do “EU”, converte-se, faz do seu “homem velho” um “homem novo”, uma “nova criatura em Cristo”, um “homem cósmico”. Não se trata aqui de um simples arrependimento, mas de uma verdadeira conversão; Judas também se arrependeu, mas não se converteu. O arrependimento é algo negativo, uma detestação do mal cometido; a conversão é algo positivo, a prática sincera do bem. O ladrão na cruz, além de se arrepender, também se converteu, professando firme convicção na existência de um grandioso mundo divino: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino”. A nossa educação tradicional tem de abandonar as superfícies periféricas do homem e descer aos abismos do seu verdadeiro centro, onde brotam as fontes eternas da vida, saúde e felicidade.


ADORAÇÃO, SERVIÇO E SOFRIMENTO

O homem espiritualmente adulto é o único homem capaz de ser um verdadeiro educador, porque só ele é plenamente educado. Como conseguir essa adultez espiritual? Três coisas são necessárias e suficientes – adoração, serviço e sofrimento. Da parte do educador, vêm os dois primeiros elementos, que são completados pelo terceiro, que vem dos outros ou do ambiente. A adoração se dirige a Deus, o serviço visa os homens. Adoração é a mais alta forma de amor místico, que o homem alcança mediante uma intensa e diuturna meditação ou contemplação do seu centro divino, e subsequente sintonização da sua vida com essa experiência. Não raro, depois de entrar em contato com o seu centro divino, sente o homem a vontade de se isolar da sociedade humana e retirar-se a algum recanto silencioso, a sós com sua alma e com Deus. E convém mesmo que se isole, temporariamente, do mundo, a fim de intensificar a sua união com Deus. Mais tarde, porém, quando devidamente consolidado nessa mística adoração de Deus, ponha a sua experiência divina a serviço dos homens. O homem que, de fato, entrou na zona da divindade, deixa de ser água contaminável e torna-se “luz do mundo”, incontaminável; pode voltar ao meio dos profanos sem se tornar profano, conviver com os impuros sem se tornar impuro. Daí por diante, sirva, espontânea e jubilosamente, aos homens, porque esse serviço desinteressado é a melhor medicina profilática para se preservar dos perigos da mística solitária. Só pode ser solidário com os homens quem souber ser solitário com Deus. A mística solitária, quando prolongada e procurada como fim em si mesma, tem algo de inebriante e sedutor; é uma fascinante torre de marfim onde o homem antecipa o reino dos céus, como Simão Pedro no Tabor, e sente vontade de “armar aqui a sua tenda”; mas essa mesma delícia pode levar a uma perigosa infecção de luxúria espiritual. A fim de se premunir contra essa infecção e adquirir definitiva imunidade, deve o místico pôr a sua suave experiência com Deus a serviço da amarga convivência com os homens; se conseguir realizar na vida prática 10% dos 100 da sua visão mística, está de parabéns! E esses 10% de mística dinâmica que


passaram o teste da vida prática valem mais que os 100 de mística puramente estática que não passaram por essa prova de fogo. Disse-me um jovem entusiasta que iria procurar toda a espécie de sofrimentos a fim de se realizar em Cristo; respondi-lhe que era desnecessário ir em busca de sofrimentos, porque os outros homens se encarregariam disto com muito prazer. Ninguém serve impunemente! Basta que alguém sirva desinteressadamente a seus semelhantes para que estes façam cair sobre ele um dilúvio de sofrimentos, sobretudo os que forem mais beneficiados pelos serviços dele. Esse serviço voluntário e desinteressado da parte do educador, completado pelos sofrimentos por parte dos outros homens, é como o sol e a chuva de verão, que fazem brotar, florir e frutificar as plantas. Educador que não pratique a mística de uma intensa adoração de Deus e a ética de um vasto e jubiloso serviço à humanidade não cria ambiente para um sofrimento fecundo e redentor – e sem esse sofrimento à luz da adoração e do serviço não há possibilidade para uma educação eficiente, porque faltam ao educador as auras imponderáveis das quais depende, em última análise, todo o efeito da educação. Não interessa ao educando o que o educador sabe, diz ou faz – interessa unicamente o que ele é, embora o educando não tenha consciência nítida desse elemento decisivo em seu educador. O que, em última análise, prepara o ambiente na alma do educando é o “ser imponderável” da realidade central do educador, e não o “dizer ponderável” das suas aparências periféricas. Por isto, nenhum governo do mundo pode criar educadores – essa tarefa sublime está reservada à própria alma do educador. Só ele pode fazer da sua alma uma corda sonora, cujas vibrações despertem em outra alma as mesmas notas de experiência dormentes. “Ser bom” é a única possibilidade de contribuir para que outros sejam bons. Adoração!... Serviço!... Sofrimento!...


PARA EDUCAR – SER EDUCADO

O principal requisito para poder educar é ser educado. Ser educado significa, na linguagem comum, ter bons modos, boas maneiras sociais. Mas não é este o sentido real e último de ser educado; a própria filosofia o desmente. “Educar”, como já lembramos, quer dizer “eduzir”, isto é, “conduzir para fora” (exducere, educere). Eduzir o quê? Eduzir das profundezas da natureza humana algo que nela esteja contido e se ache ainda em estado latente ou dormente; despertar na alma do educando elementos positivos e bons e entregar a esses elementos o governo da vida. Pois deve o educador saber que todo ser humano é um “universo”, isto é, uma unidade (uni-) que se desdobra em diversidade (-verso). Existem na natureza humana numerosas camadas ou potencialidades, desde as mais baixas até as mais altas. Todo homem é um “microcosmo”, um pequeno cosmos, um universo em miniatura. Todo ser humano, desde o momento da sua concepção, é uma síntese condensada de toda essa epopéia multimilenar da história da humanidade que a precedeu. Dentro de cada homem ecoam as vozes de milhares e milhares de gerações humanas, e também infra-humanas, que precederam o estado atual e da sua evolução. Entretanto, seria erro gravíssimo supor que essas vozes sejam apenas brados do subconsciente animal, vegetal e mineral do seu ego físico; também os ecos do mundo superconsciente, fonte primária do subconsciente pré-histórico e do consciente histórico, repercutem débeis ou fortes, através da natureza humana. Todo homem é uma imensa mescla de luz e trevas, de elementos positivos e negativos; nele cantam os anjos das alturas e gemem os demônios das profundezas. Compete o educador eduzir e reforçar os elementos positivos e reduzir e reprimir os elementos negativos. O homem, filho da luz divina, é como o nosso planeta Terra, filho da luz solar. A superfície da nossa terra é escura e fria; mas, com cada 30 metros de profundidade, o calor aumenta por 1 grau. Na profundidade de 50 quilômetros, a terra é incandescente; a 200 quilômetros, ela é luz solar radiante, sem nenhuma consistência sólida. Por fora, o homem é corpo material, sem nenhuma consciência divina. Mas para dentro, na zona mental-emocional, há certo calor e um pouco de luz.


No centro espiritual, na alma, o homem é luz da Luz, luz divina em forma humana. Se ele consegue lucificar, pela força da luz central, a semiluz ou escuridão periféricas, terá realizado o seu grande destino, e será intensamente feliz. Na camada externa da sua natureza, todo homem é egoísta, dominado pelo instinto do egocentrismo biológico, como qualquer planta e animal (para não falar do mineral, que também é egoísta a seu modo). É a lei fundamental de todos os indivíduos, o grito da “conservação do indivíduo”, em virtude do qual toda criatura procura afirmar a sua vida individual, mesmo à custa de todas as outras vidas, se necessário for. É o egoísmo inconsciente de toda natureza infra-humana. No plano menos externo, o da inteligência, aparece esse egoísmo na forma mais nítida e violenta de um egocentrismo consciente, dominado pelo intelecto. Nessa zona calcula o homem os meios mais eficientes para afirmar a sua existência individual e dar-lhe a maior expansão e garantia possível (der Wille zur Macht, de Nietzche, a vontade do poder), que é uma potencialização da “vontade de viver” (der Wille zum Leben) de Schopenhauer. A humanidade de hoje se acha em grau avançado nesse plano do egoísmo intelectual. De vez em quando surge, do seio dessa imensa massa de egoístas mentais algum homem que se diz altruísta, e uns pouquíssimos dos que assim se apelidam são realmente altruístas, enquanto a turbamulta dos outros se contenta com hastear na fachada do edifício da sua vida a bandeira do altruísmo, e à sombra da mesma continua a cultivar o seu velho egoísmo; são os egoístas disfarçados, piores que os egoístas manifestos. Palavras como “caridade” e “filantropia” são, hoje em dia, bandeiras clássicas para camuflar vastas zonas de egoísmo. O altruísta pratica “ética”, em que ele vê o ápice da perfeição humana, ao ponto de incluir o próprio Deus no rol dos seres éticos, amigo dos seus amigos e inimigo dos seus inimigos. Para além do altruísmo ético se alarga o campo quase ignoto do misticismo espiritual. Os habitantes dessa zona ultrapassaram a concepção ética e entraram no setor propriamente espiritual. Transcenderam o plano horizontal da mente e invadiram afoitamente o universo vertical do espírito. O espiritualista místico é essencialmente transcendente e dualista; traça nítida linha divisória entre espírito e matéria, entre Deus e o homem; vê Deus como algo totaliter aliter (totalmente diferente) de tudo que há no mundo; para ele, Deus deixou de ser um super-homem, como ainda é para o ético antropomorfista. É esta a zona clássica da fé (fé em sentido teológico). Os hebreus da antiguidade, sob a chefia de Moisés, e os muçulmanos da atualidade, sob o signo do islam (que quer dizer submissão), são formas típicas desse espírito transcendente da fé num Deus distante, supremo ditador do


homem e do mundo. Também as teologias eclesiásticas do Ocidente, romana e protestante, professam o mesmo credo. Pode o homem ultrapassar essa zona do misticismo espiritual? A maior parte dos nossos místicos e espiritualistas não consegue transpor a invisível fronteira; a sua espiritualidade é algo fora do mundo; para eles, o Deus do mundo é eternamente incompatível com o mundo de Deus. De vez em quando, porém, aparece um homem, raríssimo embora, que ultrapassa a fronteira da espiritualidade mística e entra no campo da consciência cósmica, onde a longínqua transcendência do Deus ausente se funde com a propínqua imanência do Deus presente. Para esse pioneiro do Infinito no finito, do finito no Infinito, Deus é a Lei, Luz, Vida, Inteligência, Razão, Espírito, Amor, a Grande Presença; Deus é a alma de todo o Universo e de cada uma das suas unidades individuais, porque tudo penetra e permeia como a íntima e única essência de todas as coisas, sem se identificar com nenhuma delas. O homem, nessas alturas da evolução, se sente como uma onda do grande Oceano, como um raio do grande Sol, como uma vibração da grande Vida, como um pensamento do grande Pensador, como um eco da grande Voz, que é Deus, o Deus transcendente a tudo e imanente em tudo. Não se sente separado do grande TODO, nem idêntico ao grande TODO; sente-se intimamente unido, porém perfeitamente distinto desse TODO Universal. Vive em si mesmo as pulsações da Vida Cósmica, e a Alma do Universo vibra em cada átomo do seu ego individual. *** Quando o homem atinge as alturas dessa experiência cósmica, é ele realmente “educado”, porque “eduziu” das eternas profundezas da sua natureza humana o que nela havia de mais real e dinâmico. Esse homem é um “auto-realizado”, um “homem cósmico”, ou, no dizer de Paulo de Tarso, uma “nova criatura em Cristo”. E só daqui por diante é que ele pode funcionar como verdadeiro “educador” ou “edutor”. De que modo poderá ele comunicar a seus educandos a sua própria experiência cósmica? De forma alguma! Se o pudesse e fizesse, cometeria o maior contrabando do universo, um pecado anticósmico, impingindo o reino dos céus àqueles que não estão maduros para o receberem; seria o mesmo que introduzir para o interior da “sala nupcial” uma daquelas cinco virgens tolas do Evangelho que não estavam com suas lâmpadas acesas, por falta de óleo. Felizmente, não é possível semelhante transferência. O professor transfere suas ideias a seus


alunos, mas nenhum mestre espiritual pode transferir a sua experiência a seus discípulos. Para que serve, então, essa experiência cósmica do mestre? Serve para preparar um ambiente propício dentro do qual o educando possa ter a sua experiência individual. A experiência vem de dentro de cada um, assim como a planta brota da semente viva; mas essa experiência não desperta se não houver ambiente propício, assim com a semente viva não chega a brotar em planta se não houver umidade terrestre e calor solar. A tarefa do educador é, pois, a que seu nome indica, um “edutor”, um criador de ambiente favorável para seus educandos. É, porém, da íntima natureza dessa tarefa que ela só possa ser cumprida por alguém que possua dento de si o ambiente que deseja criar em seus educandos. “Da abundância do coração é que os lábios falam”. Não são as palavras do educador em si, mesmo perfeitíssimas, que preparam o ambiente na alma do educando; mas são as auras imponderáveis, os invisíveis fluidos cósmicos que acompanham as palavras – são eles os criadores do ambiente favorável na alma dos outros. Mas essas auras e esses fluidos não existem na alma do homem que não tenha experiência própria da alma do Universo. Diz o provérbio oriental “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”; também se pode inverter o ditado e afirmar que, quando o mestre está pronto, o discípulo aparece. Onde quer que haja um verdadeiro mestre aí aparecem discípulos, porque a experiência cósmica cria em torno do mestre um “campo magnético” que não conhece fronteiras, e todas as agulhas libertas de impedimentos começam a oscilar rumo ao polo magnético que algures apareça. Basta que haja alguém com suficiente experiência espiritual, e os discípulos aparecerão, mesmo que o mestre nunca os chegue a conhecer fisicamente, nem funde igreja, escola ou sociedade iniciática – o heliotropismo das almas sensíveis não está condicionado a esses primitivos veículos. Numa palavra: para que alguém possa ser um educador verdadeiro e eficiente tem de ser, ele mesmo, plenamente educado, ecoando a Voz do Infinito, refletindo a Luz do Universo em sua própria pessoa. Só um homem plenamente auto-realizado é que pode ser um verdadeiro educador.


PASSANDO DA CONSCIÊNCIA EXTERNA PARA A CONSCIÊNCIA INTERNA

As raízes do mal que o Brasil está sofrendo remontam ao ano 1500, entre nós, e aos inícios do século IV, na Europa. O mal está no fato de quererem os educadores do povo manter, em plena Era Atômica, um sistema ético e pedagógico flagrantemente inadequado para os tempos atuais. Querem manter, como ponto de referência, uma espécie de “consciência externa”, heterônoma, baseada numa instituição hierárquica ou num livro. Obedecer a essa instituição ou a esse livro é considerado bom, desobedecer é tachado de mau. Essa consciência exocrática, representada por uma hierarquia ou por um livro, tinha a sua eficiência em tempos idos, quando a humanidade cristã via nessa instituição ou nas páginas desse livro o eco da vontade de Deus, isto é, verdade absoluta, sagrada, infalível. Deus falara à humanidade através de um locutor plenipotenciário ou através de um livro infalível, em cujas páginas falavam dezenas de embaixadores plenipotenciários da Divindade – e tudo quanto esses ministros de Deus ordenavam ou proibiam era o próprio Deus que o ordenava ou proibia. Como era fácil, nesses tempos remotos, ser bom e encontrar o caminho da salvação! Era só fechar os olhos e eclipsar a razão – e executar ordens... Durante vários séculos funcionou sofrivelmente esse sistema de locutores de Deus, em forma de um magistério infalível ou de um livro infalível. Funcionava, porque a humanidade era espiritualmente infantil, não comera ainda do “fruto da árvore do conhecimento”. O homem era incapaz de julgar por si mesmo, e por isto aceitava, sem protesto nem dificuldade, essas mensagens de Deus à humanidade, em que se sentia perfeitamente seguro. Não é intenção nossa rejeitarmos esse estado de coisas como errado em si mesmo – assim como não acusamos de errada a infância onde esse regime prevalece e é normal. A criança não pode julgar por si mesma; deve confiar no critério dos pais. Necessita, sobretudo, de segurança, e esta lhe vem de uma obediência incondicional à autoridade paterna. Uma criança normal não sente pruridos de liberdade e emancipação; a única coisa de que necessita para a sua vida frágil é proteção e segurança.


O que rejeitamos é o fato de serem esses processos antigos aplicados mecanicamente a uma humanidade que, internamente, ultrapassou aquela ideologia, e tem o mesmo direito de se guiar por normas novas que a Idade Média tinha de obedecer a métodos antigos. Querer que um homem pensante do século 20 aceite, de olhos fechados e razão eclipsada, tudo quanto um hierarca eclesiástico ou um livro papiráceo diga aos homens como sendo a puríssima revelação de Deus, é tão absurdo como querer obrigar a um homem adulto a nunca sair da casa paterna e nunca pensar e agir por conta própria, mas tão-somente cumprir ordens de pai e mãe. A independência do homem adulto é tão natural e necessária como natural e necessária foi a dependência da criança. Essa falsa ideologia nasce de uma falsa concepção da natureza humana. Como se apenas uns poucos homens – o hierarca eclesiástico e os autores de um livro – tivessem a possibilidade de entrarem em contato direto com Deus e saberem, sem autoridade externa, a suprema verdade divina! Nós sabemos que essa mesma faculdade é inalienável patrimônio de toda e qualquer criatura humana. Neste sentido escreve Mahatma Gandhi, nas páginas da sua auto-biografia Minhas Experiências com a Verdade: “O único tirano que eu admito é a silenciosa voz do meu interior” (still small voice), isto é, a consciência, que é o eco da voz de Deus dentro do homem. Nenhuma mensagem de Deus é recebida por um simples ser humano sem que ela sofra diminuição em sua verdade e pureza, porquanto “o recebido está no recipiente segundo o modo do recipiente”. O recipiente humano, porém é, por via de regra, imperfeito, e por isto a revelação de Deus, por mais perfeita e pura em si mesma, é recebida imperfeitamente e mesclada de impurezas. Nenhum profeta, nenhum vidente que não seja 100% perfeito e puro pode receber com 100% de pureza e perfeição a puríssima revelação de Deus; o humano contenedor impuro contamina a pureza do conteúdo divino. Acrescem outros fatores de contaminação. Sendo a inspiração divina um fenômeno que se realiza no plano estritamente espiritual, é inevitável que a sua manifestação verbal e mesmo a sua concepção mental sejam degradadas. Toda e qualquer inspiração divina, antes de chegar ao conhecimento da humanidade, já sofreu pelo menos duas deturpações: a deturpação mental e a deturpação verbal dos seus veículos humanos. Analisar mentalmente e exprimir verbalmente – oralmente ou por escrito – é deturpar inevitavelmente a verdade e pureza da revelação divina – e isto sem a menor má-fé da parte do recipiente humano, mas devido simplesmente à sua incapacidade físicomental. E mesmo no caso que o recipiente da revelação divina seja de extraordinária pureza e perfeição, como no caso de Jesus Cristo, quem garante a seus


discípulos a capacidade de atingirem a verdade e pureza total das palavras do Mestre? E através de quantos outros canais chegaram até nós essas palavras dos grandes avatares? *** Quer dizer que não temos nenhuma possibilidade e certeza de recebermos a verdade em estado puro e genuíno? Temos, sim, ou, pelo menos, podemos diminuir grandemente as probabilidades da deturpação. Existe dentro de cada um de nós uma “centelha divina” (por menos exata que seja essa metáfora poética), uma faculdade ou corda viva que responde à voz divina e lhe faz eco fiel – eco direto, silencioso, sem análise mental nem expressão verbal. Esse eco de Deus no homem é a sua “consciência”. Não é o homem-ego, o homem-persona, mas é Deus no homem. A consciência é precisamente o que seu nome diz, uma “ciência com”, um saber-emcompanhia, uma noção em conjunto entre o finito do homem e o Infinito de Deus. Das coisas humanas o homem tem apenas “ciência”, conhecimento unilateral; das coisas divinas tem o homem “consciência”, conhecimento bilateral. Quando a voz de Deus fala ao homem, e o homem faz eco a essa voz, então surge a “consciência”, que é “a voz mais eco”, “chamamento e resposta”, “raio solar e reflexo”. Se a consciência fosse apenas a voz do ego humano, da persona, nunca seria contrária aos nossos interesses humanos. Entretanto, é experiência geral que a consciência pode opor-se diametralmente aos mais queridos ídolos e fetiches do homem-ego; pode até exigir o que o homem tem de mais caro, a sua vida física. O mártir sacrificando a vida para obedecer à consciência prova que a consciência não é a voz da personalidade humana. *** A voz da consciência é o supremo tribunal na vida humana; é o último ponto de referência e centro de gravitação do pensar, falar e agir do homem. Para além dessa fronteira não há outra. E o Absoluto, a zero-dimensão – é Deus no homem. É chegado o tempo para ultrapassarmos todas as normas de conduta fora de nós e guiarmo-nos pela suprema e última norma de dentro. Persiste sempre, nos inexperientes, a dúvida se essa voz da consciência é menos falível que as normas externas, a hierarquia eclesiástica e os livros inspirados; pois, não são cometidos tantos crimes “em nome da consciência”?...


A consciência é ponto último e seguro de referência só no caso em que o homem não vise nenhum interesse pessoal, utilitário, nem para si nem para seu grupo, em atender aos ditames da consciência. Aqui se faz mister uma sinceridade conosco mesmos, sinceridade muito difícil, porém possível. Deve o homem robustecer cada vez mais, em si mesmo, essa voz silenciosa, escutando-a diariamente, em profundo silêncio físico-mental, e acatar carinhosamente a sua orientação. Quem não pratica regularmente essa carinhosa e silenciosa auscultação da voz de Deus na alma não a perceberá, no meio dos ruídos da vida, e não terá norma segura e suprema para os seus atos. Com a frequente e intensa auscultação da voz divina da consciência adquire o homem crescente facilidade, e até amoroso entusiasmo, em ouvir e seguir essa amiga invisível, evita o que reconhece como mau e pratica o que sabe ser bom – e isto não com medo de algum castigo ou esperança de um prêmio, da parte dos homens ou de Deus, mas unicamente porque sabe e sente que essa obediência à voz de Deus nele é a suprema realização do seu próprio EU eterno. A consciência não é outra coisa senão a própria Constituição Cósmica do Universo, enquanto refletida ou ecoada na alma humana. Assim, o homem sintonizando a sua vida individual com as vibrações da consciência, sintonizase com a vida do Universo inteiro – e isto é ser bom e ser feliz. Uma vez descoberta e saboreada essa fonte de suprema felicidade em um ser bom, o homem nunca mais pode ser mau, porque ser mau equivaleria a perder essa grande felicidade. Destarte, cria o homem um centro de gravitação interno, que resiste vitorioso a todos os embates de fora. *** Objeta-se que essa sintonização do indivíduo com o Universo é dolorosa e exige enormes sacrifícios, antes de se realizar. É verdade. Mas é precisamente esse sacrifício e esse sofrimento preliminar que confere à felicidade a sua suprema sagração e final beatitude. A felicidade atinge o seu zênite de gozo depois de passar pelo nadir do sofrimento. É neste sentido que o educador deve educar a si mesmo para que possa apontar a seus educandos esse mesmo caminho – passando da consciência externa do profano para a consciência interna do iniciado.


DO CONSCIENTE FINITO PARA O INCONSCIENTE INFINITO

A zona conhecida da nossa vida é o plano do consciente; mas, por detrás dele se alargam, incomensuráveis, as profundezas do inconsciente, que melhor chamaríamos o Incógnito. O consciente, ou Cógnito, assemelha-se à superfície iluminada do mar, ao passo que o inconsciente ou incógnito é como o próprio oceano nas suas misteriosas profundezas. O consciente é o pequeno “finito”, menos de 1% do TODO – o inconsciente é o grande “Infinito”, mais de 99% da nossa realidade. Nos ignotos abismos do Inconsciente estamos em contato permanente com o grande TODO do Universo; é a nossa vastíssima “zona cósmica”. E desses abismos misteriosos emergem, sem cessar, as grandes forças da nossa vida, forças tanto negativas como positivas. É opinião geral dos inexperientes que o consciente seja o perfeito, o positivo, o luminoso em nós, ao passo que o inconsciente seja o imperfeito, o negativo, o tenebroso. Há também quem identifique o inconsciente com o mundo inferior dos instintos cegos, ou então com os resíduos de um consciente que passou a ser ex-consciente; acham que o inconsciente seja aquilo que, um dia, foi consciente e depois desceu dessa superfície iluminada do ego para as tenebrosas profundezas do sub-ego. Freud é, em grande parte, responsável por esse erro, que, desde os primórdios do século passado, alastrou pela humanidade. Na realidade, porém, o chamado inconsciente, ou incógnito, é muito mais do que a zona do instinto ou a “lata de lixo” do ex-consciente. É o grande TODO, o imenso Oceano da Realidade que não foi atingido pela luz do nosso consciente. Quer dizer que o Inconsciente é treva, enquanto o Consciente é luz? Se treva e luz fossem algo absoluto, seria fácil responder a essa pergunta; mas treva e luz são conceitos relativos, e o ponto de referência é o homem. O que para nós é luz, para outros pode ser treva, e vice-versa. O que a nossa retina visual abrange normalmente é o pequenino segmento de vibrações que vão do vermelho ao violeta. Para além do vermelho há o infravermelho, e para além do violeta há o ultravioleta – e esses dois tipos de vibrações são, para nós, treva, porque não afetam a nossa retina, e por isto não temos consciência da sua


realidade e dos mundos existentes nessas dimensões. Real é, para nós, somente aquilo que exerce impacto sobre os nossos nervos e, deste modo, afeta o nosso consciente; o que não atinge o nosso consciente é, para nós inexistente, embora para outros seres, de constituição diferente, seja existente, real, enquanto o nosso “real” é para eles “irreal”. O “real” que nós conhecemos não é o “real absoluto”, mas é “real relativo”. A ciência provou, por exemplo, que, para além do violeta, que é a extrema fronteira de nossa perceptibilidade, existem ainda mais de 20 trilhões de outras vibrações que a nossa retina não percebe, por serem demasiadamente intensas. São treva – por excesso de luz! Quer dizer que pode haver treva por duas razões: ou por falta ou por excesso de vibrações. Uma luz negativa é, para nossa retina, treva; luz semipositiva é luz perceptível, e luz plenipositiva também é treva. Quem fitasse em cheio o globo solar não veria luz alguma, mas teria a impressão de estar diante de uma grande escuridão; mas quando o homem contempla luz solar menos forte, dispersa e difusa, tem a impressão de luz, porque sua retina não sucumbe à intensidade das vibrações. Uma ave noturna, voando em pleno meio-dia, não enxerga nada, mas de noite enxerga perfeitamente. O chamado Inconsciente pode tanto corresponder ao infra-vermelho (baixa vibração) como também ao ultravioleta (alta-vibração). O inconsciente é, de fato, o infinito abaixo e o infinito acima de nós; aquilo que representa um menos e aquilo que representa um mais, considerado do ponto de vista da nossa atitude humana; pode ser um subconsciente e pode ser também um superconsciente. *** Ora, na zona do nosso pequeno Consciente vigoram os motivos de agir por nós conhecidos e acima especificados: somos bons e deixamos de ser maus, com medo de certas sanções – lei, polícia, cadeia, multa; céu, inferno – mas, se penetrássemos no grande inconsciente do Universo, que está tanto dentro como fora de nós, descobriríamos uma Constituição Cósmica cujos imperativos têm caráter absoluto, eterno, universal. Nessa zona, não somos bons pela esperança de algum prêmio fora de nós, nem deixamos de ser maus com medo de algum castigo vindo de fora de nós. Nessa zona começa o homem a ser bom pelo fato de ser esta a sua verdadeira natureza, e a natureza do próprio Universo; aqui, o homem é bom por ser esta a voz da Harmonia Universal. Encontra a razão última de ser bom dentro si mesmo. Ele é bom por ser esta a voz da sua natureza ou consciência, e, ainda que não houvesse lei nem polícia, nem céu nem inferno, esse homem continuaria a ser bom da mesma forma, uma vez que o motivo de ele ser bom não é algo fora dele, algo heterônomo e heterogêneo à sua íntima natureza – é ele mesmo, o seu divino EU SOU.


O homem que atinge essas alturas da bondade imanente entra no regime da “cosmocracia”, isto é, ele é governado pelas mesmas leis eternas que regem o cosmos de fora. O seu cosmos de dentro se chama “consciência”, que é o eco fiel do cosmos de fora chamado “Universo”. O homem cosmocrático não aboliu a autoridade – transferiu a autoridade de fora para dentro; passou da exocracia (governo de fora) para a endocracia (governo de dentro), e por isto pode dispensar qualquer governo de fora. O homem cosmocrático é um homem “anárquico”, não no sentido comum do termo, de não aceitar governo algum, mas no sentido de não necessitar de um governo externo, por ter criado um governo interno mil vezes melhor do que todos os governos externos. Seria um “anarquista cósmico”, e não um “anarquista caótico”. Mas... tão grande verdade só serve aos esotéricos. O educador que se educou a si mesmo para essa cosmocracia é o único homem capaz de ser educador para outros. O homem cosmocrático cuja consciência entrou em perfeita sintonia com o supremo imperativo do Universo é um homem remido, um homem integral, um homem cósmico – e pode apontar o caminho certo a seus semelhantes.


FAZER GRANDEMENTE AS COISAS PEQUENAS

Quem teve a paciência e intrepidez de nos seguir até aqui deve ter percebido que o educador genuíno deve ser um verdadeiro iniciado. Só um verdadeiro iniciado é que pode ser um educador genuíno. Vivemos numa época em que, graças à invasão da filosofia Oriental em vastas zonas do Ocidente, milhares de pessoas desejam ser iniciadas, e milhares se têm em conta de iniciadas – quando, na realidade, são pouquíssimos os verdadeiros iniciados. Quase todos entendem que a iniciação consista num determinado rito esotérico, cuja aplicação transfira o profano, automaticamente, para dentro de um novo mundo, fazendo dele um iniciado, da noite para o dia. Confundem certas técnicas externas com a realidade interna. *** Certo dia, foram ter com Mahatma Gandhi dois homens e lhe pediram que os iniciasse. O grande mestre da Índia aceitou-os no seu asham, e logo os encarregou de varrerem o pátio coberto de folhas secas. Depois disto mandou a um dos dois candidatos à iniciação descascar batatas para o almoço, enquanto o outro teve ordem de rachar lenha para acender o fogo. Depois do meio-dia enviou os dois para uma aldeia vizinha fazer limpeza nas instalações sanitárias. E assim por diversos dias. Os dois iniciados esperavam a cada momento que Gandhi os convidasse, finalmente, para a suspirada cerimônia de iniciação espiritual; esperavam, talvez, que se fechasse com eles numa salinha misteriosamente iluminada, com o ambiente impregnado de perfume de incenso e, ao som de melodias sacras e fórmulas mágicas, lhes conferisse poderes extraordinários. Nada disto, porém, aconteceu. Finalmente, os dois iniciados perderam a paciência e perguntaram ao Mahatma Gandhi quando começaria o rito sagrado da iniciação. – Já começou – respondeu Gandhi –, falta apenas uma coisa.


– Que é que falta? – perguntou um dos dois, cheios de esperança de ver chegado o momento solene. O Mahatma, porém, lhes respondeu calmamente: – Falta apenas que os senhores façam com espontânea alegria e entusiasmo o que até agora fizeram a contragosto e compulsoriamente. Nada mais falta... No mesmo dia, os dois abandonaram o ashram, decepcionados, e, provavelmente, foram contar aos amigos, lá fora, que Gandhi nada entendia de iniciação espiritual, tanto assim que os mandou varrer lixo, descascar batatas, rachar lenha, limpar privadas, etc. *** Educar é eduzir, conduzir para fora da alma do educando, despertar e desenvolver o que nele existe de positivo e de bom, e não eduzir nem despertar o que nele há de negativo e mau. O educador, repetimos, é um “edutor”. Realizar essa “edução” dos elementos positivos e bons é a mais difícil e sublime de todas as ciências e artes. A natureza humana é um misto de luz e trevas, de grandeza e miséria; todo homem é um anjo e um diabo em potência. É arte delicadíssima saber exprimir o que no educando há de bom, e reprimir o que nele há de mau. E, como toda arte consiste numa síntese de técnicas e de inspiração, assim também a arte suprema da educação. O grande escultor francês Auguste Rodin disse, um dia, a seus alunos, num atelier de Paris: “Apoderai-vos das técnicas da vossa arte; e depois esquecei-as todas e cedei à inspiração!” As técnicas são o corpo, a inspiração é a alma da arte; esta se exprime através daquele. Não basta que o educado reconheça as técnicas educacionais, porque essas técnicas são apenas o corpo – e um corpo sem alma é um cadáver. É necessário que ele também tenha inspiração, que nele haja o espírito (inspirar quer dizer: estar no espírito), a alma da educação. Essa alma, porém, é a alma do próprio educador, que deve animar as técnicas, assim como a alma humana anima o corpo e lhe dá vida e vigor. As técnicas se referem ao que o educador tem – a inspiração reflete aquilo que ele mesmo é. Todo educador deseja fazer coisa grande. Mas o fato é que todas as coisas grandes consistem em coisas pequenas, por vezes pequeninas e pequeníssimas. Quem espera realizar coisas grandes em sua vida, talvez espera a vida inteira sem nada descobrir de grande para realizar, e assim, de tanto esperar pelas coisas grandes e extraordinárias, deixa de realizar as coisas pequenas e ordinárias – e sua vida é uma falência...


Na realidade, nada de grande existe no mundo objetivo, das quantidades. Coisa grande só existe no mundo subjetivo, da qualidade. Fazer grandemente as coisas pequenas de cada dia, é a única possibilidade de realizar coisa grande, porque o objeto reveste o colorido do sujeito que o realiza. Todo objeto em si é neutro, incolor, amorfo; não é bom nem mau, eticamente; não é pequeno nem grande, porque essa designação é bitolada do ponto de vista do homem. Toda grandeza ou pequenez é um produto do sujeito que pratica os respectivos atos. A grandeza ou pequenez está na atitude, na intenção, na qualidade interna de quem pratica o ato. Varrer as ruas ou rachar lenha não é, de per si, coisa menor do que governar um país ou cristianizar um povo. Quem faz com grandeza de alma uma coisa qualquer é grande; quem faz com pequenez de alma essa mesma coisa é pequeno. Quando os dois iniciados da Índia fizeram a contragosto as coisas corriqueiras de que Gandhi os incumbiu, fizeram coisa pequena; se tivessem feito com amor e entusiasmo essas mesmas coisas, teriam feito coisa grande. Se o educador é grande na sua atitude interna, grande será a sua obra educacional; do contrário será pequena. Educar-se a si mesmo para a verdadeira grandeza, que é amor e benevolência, é o requisito número um para o verdadeiro educador. Ser ele mesmo, plenamente, assim como ele desejaria ver o seu educando – isto vale mais que todas as técnicas e valoriza essas próprias técnicas.


DA PEDAGOGIA À FILOSOFIA

Já deve o leitor ter percebido que, neste estudo sobre novos rumos para a educação, estamos ultrapassando a moldura habitual de um tratado de pedagogia educacional e invadindo afoitamente os domínios da filosofia e da mais remontada metafísica. E nenhuma educação real é possível sem que atinjamos as últimas raízes da natureza humana. Podemos, sim, persuadir o educando a que faça isto ou deixe de fazer aquilo – mas persuasão não é convicção, e sem verdadeira convicção não há verdadeira educação. Verdade é que o educador não pode nem deve transmitir ao educando todas as grandes verdades sobre a natureza humana – mas o certo é que ele mesmo deve possuir pleno conhecimento e profunda experiência das bases metafísicas e místicas da pedagogia educacional. Para que o mestre possa transmitir eficazmente 10% ao discípulo, deve ele mesmo possuir 100% de conhecimentos e, sobretudo, de experiência própria; os restantes 90% não transmissíveis atuam como “capital de reserva” para garantir os 10% postos em circulação. Quem possui apenas os 10% que tem de transmitir, corre risco iminente de “falência”, porque dentro em breve se sentirá esgotado. “Quem é mestre no reino de Deus”, disse Jesus, “tira do tesouro do seu coração coisas novas e coisas velhas”. Quando o Nazareno falava, dizia o povo, assombrado: “Esse homem fala como nunca ninguém falou; fala com poder e autoridade, e não como nossos escribas e sacerdotes”. Que é que o povo quer dizer com essa expressão “poder e autoridade”? Humanamente falando, Jesus não tinha “poder” algum, nem militar, nem político, nem financeiro; qual, pois, o alicerce da sua “autoridade”? A impressão de “poder e autoridade” que os ouvintes sentiam irresistivelmente provinha da profunda e vasta experiência do divino Mestre. Ele sabia e saboreava, por experiência íntima e vivência integral, o que dizia ao povo. As palavras não lhe vinham da flor dos lábios nem de simples especulações cerebrais. O pouco que o Nazareno dizia ao povo, por dizível, era como que um eco longínquo do muito que não lhe podia dizer, por indizível; era como umas gotas lançadas à praia do oceano imenso da sua sabedoria experiencial. O mar profundo e vasto do seu “ser” era a garantia dessas pequenas gotas do seu “dizer”. O povo ouvia o pouco que ele externava em palavras, e adivinhava o muito que recatava nas profundezas de sua alma. E era precisamente esse


“muito”, esse “indizível” que cingia o “pouco”, o “dizível”, como de um halo de mistério, de “poder e autoridade”. Porquanto, a verdade é esta: não impressionamos os homens pelo que dizemos ou fazemos, mas sim pelo que somos. Esse “somos” se refere ao nosso contato vital com o Infinito, o Eterno, o grande TODO, Deus. Esse “ser alguém” satura de poder e autoridade o nosso “fazer algo”. Não basta fazer algo, por muito que seja esse “algo”, quando não somos “alguém”. Mas homem algum é “alguém” sem uma profunda experiência mística revelada em vasta vivência ética. Essa profunda vertical da experiência mística revelada na vasta horizontal da vivência ética perfaz o “homem cósmico”, ou o “homem crístico” em toda a sua plenitude. E só um homem cósmico ou crístico é que pode ser um educador genuíno e autêntico, porque só ele pode falar das profundezas do seu ser; e essa plenitude do seu grande “ser” é que acorda poderosos ecos nas profundezas das alma que o ouvem e o veem. O homem que é alguém, graças a seu contato com o Infinito, não necessita de falar muito nem de fazer muito; o seu próprio “ser”, embora totalmente silencioso e anônimo, é que produz grandes efeitos, porque põe em vibração as cordas íntimas do “ser” que existem nas profundezas das outras almas. De maneira que o educador, para dar peso e impacto certeiro às suas palavras, tem de criar e manter por detrás desses símbolos verbais o grande simbolizado real, que consiste no seu contato com a Vida Universal do Cosmos, a Alma do Universo, o Espírito invisível que permeia todas as coisas visíveis. Sem essa experiência cósmica, ultramística, não pode haver educador eficiente; porque, em última análise, não interessa a nenhum dos meus educandos o que eu sei, mas tão-somente o que eu sou. (O verdadeiro saber é idêntico ao ser, mas, na linguagem comum, saber é apenas um conhecer intelectual, e é neste sentido que negamos a eficácia do saber, do saber puramente intelectual, analítico, horizontal). Nenhum educador, nenhum homem que não se tenha identificado vitalmente com a vida do Universo pode falar com poder e autoridade, porque só esse contato é que dá às suas palavras o peso e o impacto decisivos. O resto é ruído vazio, deslumbrante vacuidade, fogo de artifício, teatro de fantoches. Com efeito, o educador comum, sem essa experiência, é um fantoche, um boneco de engonços a agitar-se no palco, manipulado por cordéis alheios a seu próprio ser. Pode ser divertido contemplar esse teatro de fantoches, mas ninguém está disposto a fazer sacrifícios e abrir mão de certos ídolos e fetiches queridos por amor a esses bonecos.


PRECISA-SE DE UM EDUCADOR!

O problema máximo e mais doloroso, no setor educacional, não é o educando, mas sim o educador. Não temos educadores educados no espírito da verdade libertadora. E os poucos educadores verdadeiros que existem não têm projeção pública, porque as suas idéias, por demais avançadas, seriam consideradas obsoletas e retrógradas. É que a evolução caminha com passos mínimos em espaços máximos. Antes de tudo, o educador comum considera o seu trabalho como uma profissão, como outra qualquer, quando devia ser um puro ideal, um sagrado apostolado. Entretanto, o maior dos males é este: não temos educadores que possuam suficiente experiência própria para poderem servir de diretores aos outros. Não basta ter lido ou ouvido a verdade; não basta professar teorias certas sobre a verdade. Quem não viveu e sofreu e saboreou a Verdade, em toda a sua plenitude, amplitude e profundidade, esse não pode ser educador eficiente, porque não é suficientemente educado. Só pode conduzir os homens quem é conduzido por Deus. Quem não é conduzido por Deus é condutor cego conduzindo outros cegos. Pouco ou nada interessa ao educando quanto o educador leu, ouviu, estudou ou decorou. Nada disto exerce impacto real sobre ele. O educando só é atingido e movido interiormente por algo imponderável, porém intensamente real e dinâmico, algo que o educador tenha experimentado, dolorosa e jubilosamente, dentro de si mesmo, algo pelo qual ele possa viver gloriosamente e morrer tranquilamente. Quem nunca esteve sofrido de Deus e sofrido de si mesmo não é educador idôneo. A educação tem que ver muito mais com o que o educador é do que com aquilo que ele faz ou diz. O educador não é um simples professor que transmita ideias a seus alunos – é um verdadeiro mestre que vive tão intensamente a verdade que seus discípulos se sintam irresistivelmente contagiados por essas poderosas auras. Pode o professor fazer algo para seus alunos – mas só o mestre é que é muito para seus discípulos.


O íntimo ser é incomparavelmente mais poderoso do que todo o externo fazer. Quem é realmente bom, pelo contato direto com o Infinito, nunca deixará de fazer muito pelos outros, embora não diga muito daquilo que viveu e sofreu nesse caminho de ser bom. *** E com isto chegamos à conclusão de que o verdadeiro educador deve ser um mestre na experiencial verdade sobre si mesmo e na vivência integral dessa verdade. A experiência mística da verdade revelada em vivência ética é, em última análise, o programa total do educador. Ser bom é o único meio eficaz para fazer bem. Por onde se vê que que o problema educacional não é, a bem dizer, um problema do governo, mas um problema de evolução individual e de alguma organização sagrada que crie ambiente favorável para essa evolução interna. Nenhum governo do mundo pode decretar que eu seja bom. Nenhuma banca examinadora pode verificar e atestar se eu sou bom educador, porque não tem ingresso no meu foro íntimo. O educador deve fazer de si mesmo um homem plenamente “realizado”, deve ser um pleni-homem, um homem cósmico. A pedagogia educacional tem raízes na mais profunda metafísica do homem e sua afinidade com o Infinito. Onde estão esses homens cósmicos? esses homens plenamente realizados?...


NINGUÉM SERVE IMPUNEMENTE

Educar é, antes de tudo, uma atitude de servir. Mas, como o nosso velho ego só quer ser servido e tem horror ao servir, é indispensável que o educador ultrapasse esse velho ego e descubra o novo EU. Certo dia, refere o Evangelho, estavam os discípulos de Jesus discutindo entre si sobre quem deles era o maior no reino dos céus; e cada um fazia valer os seus pretensos direitos à primeira grandeza. Então lhes disse o divino Mestre: “Os reis e príncipes deste mundo dominam sobre seus súditos e por isto são chamados grandes; convosco, porém, não há de ser assim, mas, aquele dentre vós que quiser ser grande seja o servidor de todos”. É esta a nova filosofia crística da grandeza pelo servir, suplantando a velha política luciférica da grandeza por ser servido. Para o nosso ego profano, servir é inferioridade, ao passo que ser servido é superioridade. Os grandes mestres da humanidade, porém, são unânimes em proclamar a sabedoria cósmica de que a verdadeira grandeza consiste em servir, espontânea e jubilosamente, sem nenhuma esperança de retribuição, gratidão ou reconhecimentos da parte dos homens. Ninguém pode ser verdadeiro educador se não criar dentro de si um clima permanente de querer servir. Entretanto, não se esqueça ele de que essa permanente atitude de querer servir, voluntária e gratuitamente, cria infalivelmente o pólo contrário do sofrimento. Por mais estranho e paradoxal que pareça, a grande verdade é esta: NINGUÉM SERVE IMPUNEMENTE! Serviço produz sofrimento. Benefício produz ingratidão! Isto é psicologicamente explicável. O beneficiado cedo ou tarde, se sentirá humilhado pelo benfeitor; sente algo como inferioridade em si, e algo como superioridade no outro. E esse senso de humilhação e inferioridade se revela, algum dia, em forma de ingratidão e de revolta. O mesmo acontece com o serviço espontâneo: produz sofrimento. Mas esse sofrimento é a melhor medicina profilática para manter o servidor numa permanente atitude de humildade e pureza e preservá-lo do orgulho e da vanglória, de que sofria aquele fariseu no templo de Jerusalém que agradecia a


Deus por não ser “como o resto dos homens, ladrões, injustos, e adúlteros”, ele que “jejuava duas vezes por semana e dava o dízimo de todos os seus haveres”. Homem! no dia e na hora em que conseguires libertar-te do derradeiro resquício do desejo impuro da gratidão ou dos resultados externos dos teus trabalhos – nesse dia e nessa hora serás livre e liberto de toda a escravidão, e sentirás em ti uma alegria tão grande, uma beatitude tão profunda que, em face de tamanha felicidade, se eclipsarão as mais deslumbrantes glórias e as mais fascinantes alegrias que o mundo oferece a seus servidores. E então, e só então, compreenderás o que é ser educador, redentor de seres humanos que necessitam de redenção. E serás realmente feliz – porque só procuraste a felicidade dos outros. Quem quiser ganhar a felicidade perdê-la-á – mas quem perder a sua felicidade por causa da felicidade dos outros, esse a ganhará! É justo que o servidor sofra, e, como o maior dos serviços é o da educação, é natural que o educador sofra muito. Ninguém serve impunemente! Ninguém educa impunemente! É esta a sabedoria dos séculos e milênios: Educador, educadora! Presta a teus semelhantes todos os serviços de que és capaz, gratuitamente, espontaneamente, jubilosamente – mas não esperes gratidão, aplausos, reconhecimento, nem jamais permitas que em ti nasça o sentimento de seres um herói, uma pessoa virtuosa, qualquer espécie de elite, de exceção ou de “super”. “Quando tiveres feito tudo que devias fazer, dize: Sou servo inútil; cumpri apenas a minha obrigação; nenhuma recompensa mereço por isto” (Jesus, o Cristo). Se em ti conseguires criar e manter essa atmosfera de perfeita despretensão, serás ótimo educador, maravilhosa educadora – mas não te delicies nisto! A beleza só é verdadeiramente bela quando totalmente ignorada; no momento em que ela é contemplada complacentemente perdeu o mais delicado dos seus encantos... Liberta-se definitivamente do desejo impuro da justiça, da gratidão, do reconhecimento. No dia e na hora em que fizeres algo com o secreto desejo de seres admirado ou aplaudido, estás perdido! Porque nesse momento és vítima do egoísmo – do pior dos egoísmos, que é aquele que aparece em roupagens do altruísmo.


Trabalha intensamente, mas renuncia a cada momento aos frutos do teu trabalho! No dia e na hora em que esperares resultados palpáveis dos teus trabalhos, ou te entristeceres por falta desses resultados, estás perdido, porque cedeste ao egoísmo! Seja o único motivo dos teus trabalhos o amor, a alegria, o entusiasmo, a puríssima e divinal consciência de seres cooperador de Deus na construção do mundo e na redenção da humanidade. Não te preocupes jamais com os resultados palpáveis dos teus trabalhos, porque esses mesmos trabalhos realizados com o máximo de perfeição e alegria são o verdadeiro resultado; esperar prêmio posterior, fora do próprio trabalho, é espírito mercenário e analfabetismo espiritual. És cooperador de Deus na criação do mundo e na redenção do homem – não será isto recompensa suficiente? Para que necessitas tu de uma recompensa adicional, extemporânea, alheia ao próprio trabalho prestado? Deixa de ser tão pueril e torna-te, finalmente, adulto!


SEGUNDA PARTE

EDUCAÇÃO SOCIAL


RUMO À COSMOCRACIA MUNDIAL

As democracias do século XX, salvo raras exceções, estão agonizantes. Quase todas ainda sobrevivem graças a constantes injeções. Perderam a sua vitalidade interna, e isto não por causa dos maus democratas que constituem essas democracias, como certos “médicos” diagnosticam, mas em virtude de um mal intrínseco, inseparável desses regimes. É de praxe dizer que a democracia em si é boa, mas que os homens são maus; se os democratas fossem tão bons como as democracias, dizem, tudo iria às mil maravilhas. Não é exato. O próprio conceito da democracia envolve um germe de dissolução. E por isto não bastam remédios e injeções, paliativos e cataplasmas de espécie alguma para evitar a sucessiva decadência das democracias – é necessário abandonar o próprio conceito da democracia e abraçar uma concepção totalmente diversa, que, na sequência destas linhas, chamaremos “cosmocracia”. Não basta medicar os efeitos da doença – é necessário ir à própria causa do mal. Aquilo é charlatanismo superficial, isto é cura radical... Cometemos o erro de querer perpetuar o velho conceito democrático, quando a humanidade dos nossos dias, pelo menos a humanidade-elite, já ultrapassou o estágio evolutivo que preconizava o regime democrático como ideal e definitivo. Esse obsoleto anacronismo cria no homem do século XX uma tensão e uma atmosfera de insegurança e mal-estar; por um lado, quer ele crer no poder salvífico da democracia, que se lhe tornou palavra sagrada – por outro lado, despertou nele uma nova consciência que lhe segreda, com crescente nitidez e insistência, que existe um regime ultra-democrático e que os melhores dentre nós estão maduros para compreender e viver esse novo regime adaptável ao estado atual da natureza do indivíduo humano. A nossa Constituição proíbe abolir o regime vigente por meios violentos – e nós, obedientes à lei, não pregamos revolução destruidora –, proclamamos, porém, uma evolução construtora, e, para que possamos construir, algo tem de ser destruído, não por violência física, mas por compreensão metafísica. Não há maior poder que o do pensamento, quando baseado na verdade. Mahatma Gandhi libertou a Índia da prepotência do império britânico, mas não derramou nem permitiu a seus patrícios que derramassem uma única gota de sangue humano; com meio século de ofensiva espiritual, Mahatma derrubou a


defensiva material do Commonwealth e libertou mais de 400 milhões de indianos – fato único e inédito na história da humanidade. É necessário vitalizar o organismo decrépito da democracia com o novo espírito da cosmocracia.


MONOCRACIA

Todo indivíduo humano, graças à sua própria natureza, é, no princípio, monocrático, quer dizer, governado por um indivíduo fora dele. Essa monocracia é, portanto, uma “alocracia” ou “exocracia”, um governo de outrem, um regime de fora. Toda criança é alocrática, porque governado por um indivíduo distinto dela, que são, geralmente, os pais. Essa monocracia alocrática é natural para a criança. No princípio, o governado e o governante são pessoas diferentes, porque o governado não está ainda em condições de se governar a si mesmo, não pode ser ainda um auto-governado, por isto tem de ser um alo-governado. Para o ser humano infantil o único regime certo é alocracia, não autocracia. A autonomia da criança é mínima ou nula, por isto a sua heteronomia tem de ser máxima ou total. O lema do Estado de São Paulo duco, non ducor (conduzo, não sou conduzido) não serve para a criança, que só pode adotar a legenda ducor, nun duco. Essa heteronomia infantil, que exige alocracia, lhe garante a necessária segurança, ambiente indispensável para a infância. Nenhuma criança normal reclama liberdade, sente-se bem numa atmosfera de segurança, o mais imperioso elemento vital da sua existência. A liberdade é autocrática, a segurança é alocrática. Nesse período da vida, são incompatíveis a liberdade e a segurança, porque a liberdade gera insegurança, e a segurança é adversa à liberdade. Por ora, o problema é “ou – ou”, ou segurança sem liberdade, ou liberdade sem segurança. E, como o elemento fundamental da vida incipiente é segurança, a criança sente instintivamente que a autoridade paterna e materna lhe garante esse elemento, e aceita espontaneamente essa autoridade. Nenhuma criança normal se sente escravizada pelo fato de ter de obedecer a ordens vindas de fora. Essa alocracia lhe é algo inteiramente natural; uma autocracia prematura poria em perigo a sua segurança e sua própria existência. *** O que acontece no plano individual tem o seu perfeito paralelo no plano social. Os povos primitivos são naturalmente alocráticos, ou seja exocráticos, governado por outrem, de fora, porque a sua vida social é algo infantil, incapaz de autocracia ou endocracia. Em cada tribo existe sempre uma pessoa de mais experiência e critério, a qual, por direito natural, é considerada como “governo”; geralmente, é o homem mais idoso da tribo ou do clã, o “pai dos pais” ou “patriarca”, por vezes também a “matriarca”, a “mãe das mães”.


O patriarcado ou matriarcado representam a monocracia em sua forma mais simples e primitiva. A segurança da tribo repousa na voluntária obediência dos súditos ao superior. Fenômeno análogo se dá no plano espiritual dos povos. Os povos de espiritualidade primitiva professam monocracia alocrática, ou seja exocracia heterônoma. Uma pessoa considerada como excepcionalmente espiritual é reconhecida como chefe religioso da comunidade, e suas palavras são acatadas como ecos da divindade; por vezes essa pessoa chega a ser identificada com a própria divindade, ou é considerada embaixador plenipotenciário e único de Deus, tão infalível como este mesmo. O dogma da infalibilidade doutrinária do chefe espiritual é a última palavra em matéria de heteronomia religiosa e garante aos crentes o máximo de segurança espiritual. Uma vez que o homem se convença de que o chefe espiritual da sua igreja é infalível, está solucionado o problema central da segurança e tranqüilidade metafísica, cuja ausência tanto atormenta os outros. A dificuldade está apenas em adquirir essa convicção integral, essa fé cega e incondicional na infalibilidade do chefe; uma vez superada essa dificuldade e imposto silêncio a todos os protestos e dúvidas em contrário, o resto vem automaticamente, como a conclusão decorre logicamente das premissas. Por isto, é recomendável que esse homem pense pouco e creia muito; o pensamento é a voz da liberdade, que gera insegurança; a fé é a voz da obediência, que gera segurança. O mundo espiritual é imensamente misterioso e incerto; raríssimos são os homens capazes de se orientar com segurança nessa noite. Aqui, o duco é impossível para a maior parte, enquanto o ducor é de imperiosa necessidade. Entre um milhão de homens dificilmente haverá um que seja capaz de se orientar por si mesmo nas regiões do mundo espiritual; por isto, necessita de alguém que tenha mais experiência do que ele e no qual ele tenha confiança incondicional. Fechar os olhos, não pensar, crer e confiar – é esta a atitude capaz de dar segurança e tranquilidade espiritual à maioria dos homens do nosso tempo. Milhares e milhões daqueles que alegam não necessitar dessa heteronomia e heterocracia iludem-se a si mesmos, ou por não terem ainda atingido a misteriosa fronteira do universo espiritual, ou pelo fato de criarem uma segurança ilusória em lugar de uma certeza real. No mundo espiritual, quase todo homem é exocrático, à exceção de uns poucos místicos; necessita de um indivíduo humano que o conduza por essas veredas incertas e lhes dê segurança no meio da insegurança. Em parte alguma é tão necessária a confiança como no terreno espiritual. Por isto, a exocracia é regra geral entre os homens religiosos; são exocráticos mesmo os que não reconhecem uma pessoa humana como chefe, mas um livro como norma de crer e agir, porque também eles buscam a segurança num fator externo. Apenas uns poucos místicos verdadeiros, raríssimos, podem


prescindir desse fator externo; eles ultrapassaram tanto a monocracia alocrática como também a democracia egocrática – e entraram na zona definitiva da cosmocracia.


DEMOCRACIA

Até o fim da Idade Média, a quase totalidade da humanidade européia era monocrática, tanto no terreno civil como religioso. A monocracia era representada pelas monarquias – reinos e impérios – no terreno civil, e pelo magistério eclesiástico, ou papa, no campo religioso. Lá pelo fim do século XV chegou o tempo em que boa parte da humanidade cristã devia cruzar a fronteira da infância para a adolescência. A longa e tranqüila segurança foi perturbada pelos clamores da liberdade. O homem pósmedieval, o homem da Renascença e da Reforma, sentiu em si o despertar da sua personalidade, do seu ego intelectual e revolucionário. Esse ego via na tradicional obediência a uma autoridade externa uma escravidão, uma injustiça, uma usurpação, uma tirania. Procurou não somente corrigir os inegáveis abusos da autoridade civil e religiosa, mas resolveu destruir a própria autoridade como tal. Nenhuma exocracia, nenhuma heteronomia era tolerada! E começou a grande luta contra trono e altar, campanha da qual a Revolução Francesa não foi senão o símbolo externo, aurora sanguinolenta de uma nova era evolutiva. Ruíram as monarquias, reinos e impérios. Os poucos monarcas que permaneceram nos tronos da Europa passaram a simples figuras decorativas, espécie de saudosas relíquias colocadas em lindos nichos, mas sem influência decisiva na vida real dos povos. No plano religioso, foi o mundo abalado pela “Reforma”, que substituiu a heterocracia de um homem vivo e infalível pela heterocracia de um livro morto, igualmente infalível. Não houve mudança radical no regime. A autoridade espiritual continuou do lado de fora do homem. Um livro, morto e mudo, aceita sem réplica qualquer interpretação individual, analítica, intelectual, carecendo, por isto mesmo, de uma autoridade unificante. A transição da heteronomia papal para a heteronomia bíblica não representa modificação fundamental, porque, se eu e cada um dos crentes temos o mesmo direito de interpretar o texto sacro a nosso gosto e talante, como a liberdade democrática exige, embora esse novo regime pareça autocrático, ele é, na realidade, alocrático, não menos alocrático que a exocracia papal. Pela Reforma, a exocracia papal parecia ter sido transferida de fora para dentro, de uma autoridade externa e alheia para uma autoridade interna e própria – mas essa endocracia pessoal é grandemente ilusória; ela é pseudo-endocrática, ou, quando muito, semiendocrática, porque é visceralmente egocrática. A Reforma prometera estabelecer o governo da consciência individual em lugar da autoridade papal;


mas o que fez, de fato, e continua a fazer, foi proclamar como supremo árbitro espiritual a ciência pessoal, isto é, a análise intelectual, egocrática, do texto bíblico, em vez da consciência espiritual, a intuição cósmica do espírito da Bíblia. O regime exocrático da Idade Média passou a ser, no tempo da Reforma, semiendocrático, mas não atingiu as alturas e profundezas da verdadeira endocracia, que seria a cosmocracia, o governo do espírito, da alma, da razão divina, da consciência cósmica no homem. Como, porém, o ego intelectual é, por sua natureza, dispersivo e divergente, era inevitável que a introdução da egocracia na vida espiritual do homem da Renascença e da Reforma degenerasse, em breve, num pavoroso caos de dissensões e controvérsias religiosas, de onde surgiram centenas de seitas diversas. *** No plano civil, foi menos caótica a transição do regime monocrático para o regime democrático. Os reis e imperadores foram substituídos pelo povo. Já não havia soberano “por mercê de Deus” – os chefes democráticos eram chefes “por mercê do povo”, do “povo soberano”, que lhes conferia e tirava o poder, conforme as conveniências do momento. Foi proclamada, após a Revolução Francesa, essa maravilha paradoxal, ainda tinta de sangue e banhada em lágrimas, do “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essas três palavrinhas “do”, “pelo” e “para”, aparentemente tão inocentes, representam a alvorada de algo que parecia estabelecer a definitiva paz e felicidade dos povos sobre a face da terra – mas marcou o início de um período de caos e desordem de que não conseguimos ainda libertar-nos. Por quê? Porque a democracia nasceu com o funesto “pecado original”, que nenhum batismo foi capaz de cancelar; brotou de um pavoroso ilogismo, de cujas consequências não conseguiu libertar-se. O homem democrático da Renascença e Reforma rejeitou afoitamente a heteronomia medieval, na certeza de que todo homem nasceu livre e tem o direito de se governar a si mesmo, segundo o seu próprio critério. Até o presente dia estão os nossos hinos democráticos repletos desse ingênuo ilogismo, de que o homem possa e deva governar-se a si mesmo e que isto é ser livre. E ai de quem não concorde com essa apoteose da chamada liberdade! Toda essa confusão deriva de uma falsa noção da verdadeira natureza do indivíduo humano – e uma premissa falsa invalida todas as conclusões nela baseadas. Quando o homem comum diz “eu” – que é que ele quer dizer? que significa esse eu? Significa quase sempre o seu ego físico-mental-emocional,


que ele identifica ingenuamente com o seu verdadeiro “EU”. Eu estou doente, eu sou inteligente, eu fui ofendido – em todos esses casos, e milhares de outros congêneres, identifica-se ele com o seu corpo, com a sua mente ou com a sua psique, que são apenas três aspectos periféricos do seu EU central; são o seu tríplice “ego”, a sua “máscara” ou “persona” (a palavra latina “persona”, de que derivamos “pessoa” e “personalidade”, quer dizer literalmente “máscara”, invólucro ilusório). A democracia foi proclamada pelo ego e continua ser governada pelo ego; quer dizer, por um fator periférico da natureza humana, falsamente identificado com a realidade central do homem, que é o “EU”. O homem não é corpo, mente, psique – ele é sua alma, também chamada razão ou consciência. Eu sou a alma. Eu tenho corpo, mente, psique. O corpo, a mente, a psique são órgãos, faculdades ou funções do meu “EU”, que deles se serve para entrar em contato com diversas zonas de mundos ou vibrações. Eu sou o EU. EU tenho o ego. EU é central. O ego é periférico. EU é puro altruísmo. O ego é impuro egoísmo. A democracia, fundada e mantida pelo ego, não representa uma verdadeira endocracia, um governo de dentro, um regime central, porque o ego não é central, interior. A egocracia é apanas semi-endocrática. Ora, toda a zona da semi-endocracia democrática é essencialmente egoísta, dominada pelo ego da personalidade; e por isto não pode jamais estabelecer verdadeira unidade e harmonia dentro do homem, e, como a segurança vem da unidade, e a insegurança vem da falta de unidade, é inevitável que a falta de elemento unitário inerente à democracia dê origem a esse caos, lutas e desordens. No plano horizontal do ego são absolutamente incompatíveis a segurança e a liberdade, porque se acham em polos opostos, adversativos. A segurança nasce da autoridade, a insegurança é filha da liberdade. Como, porém, autoridade e liberdade são inconciliáveis, no plano horizontal, como luz e


trevas, como fogo e água, é inevitável que a democracia, filha da liberdade, destrua a segurança, filha da autoridade. É logicamente impossível que numa democracia haja autoridade, porque, para haver autoridade, deve haver distância entre governante e governado, entre superior e inferior, e quanto maior for essa distância tanto maior será a possibilidade de uma autoridade eficiente. Na democracia, porém, acontece esse tremendo ilogismo: o governante e o governado são o mesmo, isto é, o povo. Dizer que é o presidente que governa é abolir a quintessência da democracia, que, como todos sabem, é o governo do povo pelo povo e para o povo. O presidente, eleito pelo povo é, de fato, o povo personificado em fulano ou sicrano; o presidente de uma democracia sou eu, o cidadão democrata, o presidente são meus vizinhos, A, B, C, etc. O governo somos nós, os governados – que também somos os governantes. O povo-mandante é povomandado. O ego-governante é o ego-governado. Quem não vê nisto um círculo vicioso? espécie de “façanha do barão de Münchhausen” que, um dia, atolado no brejo, se agarrou pela cabeleira e se puxou para fora, ele mesmo... Como poderia haver autoridade onde não há distância entre o superior que governa e o interior que é governado? Entre o legislador e o legislado? Como é possível mover uma turbina com a água de um lago sem queda, sem diferença de nível entre o movente e o movido? Todo o impacto da força vem da diferença de nível, de uma alta-tensão, de uma voltagem, da desigualdade entre o polo positivo e o polo negativo. No conceito democrático, o ego governado pelo ego governante é um grande pseudos, uma funesta mentira ou ilusão, uma vez que semelhante processo é intrinsecamente impossível, porque contraditório. Esse círculo vicioso, essa pseudocracia, é responsável por todas as fraquezas e desordens das democracias. Por isto, é absurdo dizer que a democracia é boa, mas os democratas são maus; o contrário é que é verdade; há muitos democratas melhores do que a democracia em que vivem, e, graças a retidão desses democratas, as democracias ainda são até certo ponto toleráveis. Se o homem não fosse, no último reduto da sua natureza, cosmocrático, não haveria esperança para as democracias; mas essa esperança de redenção democratica existe, porque todo homem é cosmocrático por sua íntima natureza, embora essa cosmocracia latente no homem não se tenha ainda revelado explicitamente. Onde quer que sobreviva uma democracia ordeira, aí, é certo, vivem numerosos democratas melhores do que a democracia, democratas que, conservando o rótulo externo, são internamente cosmocráticos. Graças a esse espírito cosmocrático de certos democratas sinceros, as democracias têm esperança de sobrevivência e de regeneração.


Quando o homem-ego descobre o homem-EU – então nasce a cosmocracia.


COSMOCRACIA

A monocracia dava ao homem segurança, mas privava-o da liberdade. A democracia prometeu dar ao homem liberdade, mas perdeu a segurança – e ter-lhe-á dado a verdadeira liberdade?... À primeira vista, parece que o homem se acha em face de um terrível dilema: ou segurança sem liberdade – ou liberdade sem segurança. E assim é, de fato, no plano horizontal. Mas assim não é, no plano vertical, ou melhor, na zona universal, onde se encontram os dois planos, vertical e horizontal. É possível uma perfeita segurança com perfeita liberdade, e uma perfeita liberdade com perfeita segurança, o que equivale a dizer que o homem pode obedecer a uma autoridade e ser ao mesmo tempo livre. O que, à primeira vista, parece paradoxal e contraditório, é, na realidade, a maior das verdades e mais gloriosa conquista do homem, naturalmente do homem cósmico, plenamente realizado. O homem deve possuir perfeita segurança com perfeita liberdade. E por isto deve ultrapassar a monocracia e a democracia e entrar na cosmocracia. Que é cosmocracia? É o que a palavra diz: o governo do homem pelas leis do cosmos. A Constituição do Universo de fora é a mesma que a Constituição do Universo de dentro. As mesmas leis que regem o grande Além sideral devem reger também o grande Além humano. Enquanto o homem é monocrático, governado por um indivíduo de fora; ou enquanto é democrático, governado por um elemento semi-interno, não pode ele fruir de segurança e liberdade ao mesmo tempo; só pode ter esta ou aquela, separadamente. Mas, quando o homem ultrapassa a monocracia e a democracia e entra na verdadeira cosmocracia, então se torna ele um homem integral, cósmico, um homem seguramente livre e livremente seguro – um cidadão da grande cosmocracia. Quem é que governa, nesse regime cosmocrático?


O EU central do homem, que é a consciência, a razão, a alma, o Cristo interno, o “espírito de Deus que habita no homem”, no dizer de São Paulo. E quem é o governado? O ego, a personalidade físico-mental-emocional do homem. Nesse novo e glorioso regime, há distância imensa entre o EU governante e o ego governado, de maneira que aquele pode exercer veemente impacto de autoridade sobre este – e com isto existe a possibilidade e a realidade de uma segurança máxima na vida do homem. Por outro lado, essa autoridade do EU que governa faz parte do mesmo homem, e não é algum elemento estranho e adventício, heterogêneo, e com isto não há possibilidade de escravização do homem e destruição da sua liberdade. Diz tão sabidamente a filosofia oriental: “O EU é o maior amigo do ego. Mas o ego é o pior inimigo do EU”. O governo do EU sobre o ego, e a obediência do ego do EU – eis o reflexo da ordem cósmica no homem, o triunfo das leis do grande Cosmos do Universo no pequeno Cosmos do Homem! Há uma Constituição Cósmica, não escrita em livro algum, mas gravada na íntima natureza de todos os seres do universo, desde o átomo e o astro até o homem e o anjo – é a grande lei da interdependência de todas as coisas, a lei do amor, do equilíbrio e da solidariedade recíproca de todas as criaturas. No homem se manifesta essa Constituição Cósmica pela consciência, razão, alma, Cristo interno. Quando o homem sintoniza a sua consciência individual com a Constituição Universal, então atinge ele as culminâncias do seu poder e da sua felicidade. Verdade, Justiça, Bondade, Amor, Sinceridade, Benevolência, Solidariedade – são esses os sinais externos que revelam a atitude interna do homem cosmocrático. Para que o homem passe da democracia do pequeno ego para a cosmocracia do grande EU, necessita ele de passar da ignorância para a sapiência, do erro para a verdade sobre si mesmo. Deve conhecer-se a si mesmo. Enquanto o homem se desconhece a si mesmo e se identifica com alguma das suas periferias – corpo, mente ou emoção – não pode entrar na zona da cosmocracia, porque é ainda insipiente e egoísta. Nesta zona obscura, costuma ele chamar “liberdade” o que é escravidão e capricho do ego, e por isto não tem segurança, um vez que pseudo-liberdade não dá verdadeira segurança. Somente depois de entrar na zona luminosa do seu verdadeiro EU é que o homem conquista a verdadeira liberdade, a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”, conhece a verdade “e a verdade o liberta”. E à luz dessa verdade


libertadora é o homem integralmente seguro, e essa segurança lhe dá uma tranquilidade profunda, uma serenidade imperturbável, uma felicidade indestrutível. O supremo tribunal da autoridade foi transferido de fora para dentro do homem, e por isto a autoridade não destrói a liberdade, como nos planos inferiores. Não é mais o ego que escolhe o seu “presidente” e lhe delega os seus poderes, como na democracia; mas o ego descobre o fato de que, acima dele , ou dentro dele, existe esse “presidente” um soberano legítimo por “obra e mercê de Deus”, e esse Deus imanente no homem é o seu eterno EU, legítimo detentor do trono central da natureza humana. Obedecer a esse Deus interno do EU é liberdade, ordem, segurança, harmonia, paz, felicidade.


EDUCAÇÃO COSMOCRÁTICA

É necessário que saiamos da velha ilusão de que possa haver melhoramento social sem que haja conversão individual. O estado social da humanidade é necessariamente o eco do estado individual dos homens que compõem a sociedade. É claro que os governos podem criar técnicas educacionais que facilitem a educação – mas, em caso algum, podem essas técnicas substituir a própria educação. A educação em si não é da alçada dos governos, nem de poder externo algum. A educação obedece a leis internas de evolução individual. E essas leis culminam no fato do autoconhecimento e na subsequente autorealização do homem. O homem que não se conhece a si mesmo não pode realizar o seu verdadeiro EU interno. Auto-realização depende de autoconhecimento. Autoconhecimento, porém, não é apenas um processo mental nem uma simples psicanálise. O verdadeiro autoconhecimento é algo intuitivo, é uma visão ou revelação da profunda realidade do ser humano, um contato direto com a última raiz do EU humano, daquilo que fica para além de todas as palavras e para além de todos os pensamentos daquilo que jaz nos silenciosos abismos da Verdade Absoluta. Essa visão intuitiva do EU não é o produto de um simples esforço consciente, intelectual – embora esse esforço deva preceder. E, em última análise, uma revelação, um carisma, uma graça, um dom de Deus ao homem. Mas esse dom supremo, embora seja gratuito, não é arbitrário. O homem recebe essa graça do autoconhecimento, não como merecimento ou pagamento – pois, se assim fosse, seria produto do ego, e não seria coisa grande. Não o pode merecer, produzir, causar. Isto, todavia, não quer dizer que a graça do autoconhecimento seja algo meramente arbitrário. Ela é dada a todo homem que se tornar receptivo para a receber. Essa receptividade é uma condição prévia indispensável para o recebimento do divino carisma do autoconhecimento; mas não é causa do mesmo. A lei de causa e efeito vigora em todos os planos do finito, opera de finito a finito, mas não existe na relação de finito a Infinito, do homem a Deus. O homem não pode merecer algo de Deus, porque merecer é causar. Se o homem merecesse um dom divino, ele teria direito ao mesmo e Deus teria obrigação em face do homem – o que é absurdo. Deus nunca pode ter obrigação para com criatura alguma, e jamais pode alguma criatura ter um direito em face de Deus.


A atitude receptiva do homem condiciona o carisma divino, mas não o causa. Quando abro uma janela, entra a luz solar na sala – mas seria absurdo afirmar que o fato de eu abrir a janela fosse causa da iluminação da sala; a causa é o sol, o efeito é a iluminação da sala, e a condição dessa iluminação é o abrimento da janela. O que, nesta comparação, é o abrimento da janela, isto é, no caso do autoconhecimento, a receptividade criada pelo homem. Essa receptividade é uma espécie de canal livre, de veículo idôneo. Quando uma estação emissora lança ao espaço uma onda eletrônica, é necessário que eu sintonize o meu receptor para captar essa onda; do contrário, a onda passa despercebida, presente em si, mas ausente para mim. As “ondas” de Deus enchem sem cessar todo o universo e permeiam sempre a humanidade, mas, se não houver receptor devidamente afinado e sintonizado, as ondas presentes objetivamente são subjetivamente ausentes, inexistentes. Não é o receptor que produz ou causa as ondas eletrônicas, mas ele é a condição da sua captação. Essa receptividade ou disposição propícia da alma humana se chama, nos livros sacros, fé. Naturalmente, não uma fé meramente teórica, mas uma fé prática e plenamente vivida. Essa fé vivida pela ética prepara o ambiente para o carisma do auto-conhecimento, o qual, uma vez completo, produz a autorealização do homem, isto é, a realização ou despertamento do seu verdadeiro EU divino. Somente uma educação dessa natureza desperta no homem aquilo que poderá transformar a democracia agonizante numa cosmocracia triunfante e cheia de vitalidade.


EPÍLOGO

DESORIENTAÇÃO DAS AUTORIDADES RELIGIOSAS EM FACE DO PROBLEMA EDUCACIONAL

Acabávamos de terminar este livro, quando nos caiu nas mãos um artigo entitulado “Causas e remédios para delinquência juvenil”, da autoridade Fulton Sheen, bispo auxiliar de Nova York, artigo divulgado pela imprensa dos Estados Unidos e reproduzido, em vernáculo, por um dos grandes jornais de São Paulo. Esse documento é uma brilhante confirmação do que expusemos num dos primeiros capítulos deste livro sobre a “falência da educação religiosa”. Pedimos vênia para reproduzir, na íntegra, o referido artigo:

Causas e remédios para a delinquência juvenil FULTON SHEEN, BISPO DE NOVA YORK Entre as causas há as seguintes: 1 – Pais que não reconhecem nenhuma autoridade acima de si mesmos têm filhos que não reconhecem sua autoridade. Numa máquina, quando as engrenagens maiores deixam de funcionar, as pequenas se desarranjam. O Quarto Mandamento sobre a obediência dos filhos aos pais se relaciona com o Primeiro sobre a obediência a Deus. Os jovens não sabem traduzir sua rebelião em ideias, mas instintivamente se revoltam contra a atribuição de autoridade a quem não reconhecem nenhuma autoridade. Se não há Deus acima de seus pais, então porque devem estes estar acima deles? O agricultor que não obedece às leis da natureza com respeito às estações não deve espantar-se por ter más colheitas. 2 – A negação de responsabilidade pessoal, pela atribuição do mal ao ambiente. Por exemplo, crescer na pobreza ou em favelas, beber leite de segunda, ou não ter suficientes clubes de dança. Diz-se que isso faz delinquentes. Mas por que é que muitas crianças vivendo no mesmíssimo ambiente se tornam bons cidadãos? Nosso Senhor uma vez falou de duas


mulheres que moíam num moinho e de dois homens que trabalhavam num campo. Um deles salvou-se; o outo perdeu-se. Ambos cuidavam do mesmo engenho ou do mesmo campo; o mesmo sol brilhava sobre ambos; vestiam do mesmo modo, recebiam os mesmos salários – mas a diferença estava no interior. Não é o que entra em contato externo com o homem que o faz, mas o que sai do seu coração. A negação da responsabilidade pessoal traz como consequência a benevolência para com os delinquentes nos tribunais, pois não poderá um juiz condenar um delinquente do qual se diz ser o que é porque viveu numa vizinhança com latas de lixo à soleira da porta. 3 – A terceira causa da delinquência juvenil é uma consequência da segunda, isto é, a sociedade é que deve ser culpada – culpada porque externa uma atitude “vingativa” quando pune um transgressor; culpada porque os mestres com seu conhecimento superior dão aos jovens um "complexo de inferioridade”; culpada porque os exames e a publicação de boletins provocam comparações invejosas, tornando assim os jovens revoltados; culpada porque o amor excessivo ou deficiente da parte dos pais lhes dão uma “compulsão” para roubar ou matar. Algumas sugestões sobre a delinquência 1 – Toque de recolher – a ocasião deve ser estabelecida pela lei civil. Filadélfia pôs em prática um sistema de toque de recolher, que estatui multas tanto para os jovens como para os pais, que funciona de verdade. Dizer-se que isso constitui uma injustiça para com os bons elementos da juventude é esquecer que: a) uma vez que vivemos em sociedade, alguns membros devem mostrarse dispostos a fazer sacrifícios para o bem do todo; b) os jovens bons estão em casa à hora de recolher de qualquer modo. O rio é que deve purificar o esgoto, e não este que deve poluir aquele. 2 – Criação de uma comissão permanente de cidadãos responsáveis, em vez dos juízes de menores e dos chamados “peritos”, para decidir sobre a orientação, punição e tratamento dos delinquentes. 3 – Para os contraventores reincidentes e os culpados de assassinato, violação, assalto e outros crimes graves, a criação de Campos de Preservação Juvenil com as seguintes características: – Esses campos devem ser não só educativos como também reformativos. – Tanto a educação como a disciplina dos delinquentes devem ficar a cargo do Exército ou da Marinha. – Para os contraventores mais difíceis, depois do estágio no CPJ., seriam eles engajados no Exército.


– Enquanto trabalhassem em estradas, florestas , etc., receberiam um pequeno salário. Parte desse salário seria retida, rendendo juros, até que deixassem o CJJ. Os delinquentes que causassem dano ao patrimônio teriam que pagar plenamente; aqueles que tivessem tirado uma vida seriam obrigados a pagar à família do jovem assassinado uma certa porcentagem do seu salário durante sua vida dentro ou fora do campo. Isso é duro, poder-se-á dizer, mas é mais duro para vinte mães e pais chorarem o assassino de vinte filhos. As Forças Armadas farão homens desses delinquentes; muito provavelmente farão mais do que isso – farão bons soldados deles. *** Vamos tecer uns comentários elucidativos sobre esse importante documento. Como é possível que uma autoridade eclesiástica de grande projeção, escritor, conferencista, locutor de rádio e televisão, orientando milhões de almas, dentro e fora de seu país, ignore as causas mais profundas da delinquência juvenil e aconselhe remédios tão superficiais, e até flagrantemente anticristãos? Na primeira parte de seu artigo, sobre as “causas” da delinquência, afirma Fulton Sheen que uma dessas causas é a falta de autoridade dos pais, e que estes não tem autoridade sobre os filhos porque eles mesmos não reconhecem acima de si autoridade superior, divina. Em parte concordamos com o ilustre escritos; mas perguntamos por que é que existem ateus só no Ocidente cristão? Por mais estranho que pareça, o “fenômeno ateísmo” é totalmente desconhecido em outras partes do mundo; é um produto tipicamente cristão, isto é, resultado de uma teologia pseudocristã que impera nas igrejas do Ocidente. Recordo-me das palavras do meu exímio mestre hindu, Swami Premananda, de Washington, sobre este particular: quando ele, uns decênios atrás, veio da Índia para os Estados Unidos e ouviu da existência de ateus, não o quis acreditar, porque nunca tinha visto um único ateu entre seus patrícios gentios do Oriente. De onde vem o ateísmo? Nasce de uma falsa concepção de Deus, que é impingida às crianças de catecismo ou escola dominical, um Deus com todos os seus atributos humanos, embora potencializados – um Deus irado, vingador, ciumento, militarista, (o “Deus dos exércitos”), nacionalista, que luta em favor de um pequeno povo eleito contra todos os outros povos do globo – um Deus sempre distante, longínquo, cujo maior prazer parece consistir em apanhar em falta uma pobre criatura humana e condená-la sadicamente a tormentos eternos, sem lhe dar a possibilidade do arrependimento, após-morte. No seu livro An historian´s approach to religion diz o grande historiador-filósofo britânico Arnold


Toynbee que se o Deus da teologia cristã existe, então é ele o maior monstro do universo. Felizmente, esse Deus não existe, nem pode existir. Perguntaram a Voltaire porque ele era ateu; ele, educado num ambiente religioso, eclesiástico, respondeu patriarca da descrença: “Se alguém me mostrar um Deus que eu possa amar hei de crer nele; mas até hoje ninguém me mostrou esse Deus”. Esse deus-monstro é ensinado às crianças, e elas, ingênuas, o aceitam, obedientes, de olhos fechados; um dia, porém, quando adultas, abrem os olhos e não conseguem harmonizar esse pseudo-deus da teologia com o Deus verdadeiro da sua consciência do Universo – e passam por ateus. Muitos dos maiores santos e místicos de todos os tempos e países foram “ateus” neste sentido – “ateus” por serem excessivamente sinceros consigo mesmo. Fulton Sheen acusa os pais dos delinquentes juvenis de não crerem em Deus. Perguntamos: quem é o culpado remoto desse “ateísmo”? Medice, cura teipsum! Passando das causas para os “remédios” da delinquência juvenil, o autor é ainda mais infeliz. Insiste em que a educação dos delinquentes fique a cargo das forças armadas, do Exército e da Marinha. Mas será possível que um bispo cristão veja nessas instituições militaristas a quintessência da arte educacional? quando todo o militarismo é, em última análise, um produto do nosso egoísmo? Será possível que Fulton Sheen ignore que “quem com ferro fere com ferro será ferido”? E, para coroar a sua obra, termina o bispo auxiliar de Nova York por dizer que “as forças armadas farão homens desses delinquentes, e, muito provavelmente, farão mais do que isto – farão bons soldados deles”. Quer dizer que, na opinião desse líder espiritual de milhões de cristãos, um bom soldado vale mais que um homem honesto! quem aprendeu nos quartéis a arte de matar com perícia e técnica – com canhões, metralhadoras, e bombas atômicas – esse vale mais do que o melhor dos homens que procura salvar vidas! E as forças armadas educarão o delinquente nesse sentido! Realmente, é a apoteose do militarismo anticristão! Ó Schweitzer! Porque escreveste um livro intitulado Reverência pela vida? Por que não te matriculaste na escola do bispo Fulton Sheen para saber como destruir vidas em massa?! Ó Gandhi! por que lutaste a vida inteira pela não-violência (ahimsa) e por ela morreste mártir? não sabias tu, pobre pagão, que nos Estados Unidos vive um


cristão que vê a salvação na violência?... que atrasado discípulo do Cristo és tu, pobre hindu, que ainda te guias por essas ideias obsoletas do Sermão da Montanha?...


TEXTO COMPLEMENTAR

A EDUCAÇÃO DA CONSCIÊNCIA


“A instrução ensina o homem a descobrir as leis da natureza, isto é, a ciência; mas a educação leva o homem a criar valores dentro de si mesmo”, diz o filósofo brasileiro Huberto Rohden nesta entrevista a VISÃO.

“Não existe crise de educação no Brasil, nem em qualquer parte do globo. O que existe é uma deplorável ausência de verdadeira educação”. Esta é a opinião do filósofo brasileiro Huberto Rohden a respeito da chamada crise da educação moderna. Rohden explica: “Não estou usando a palavra „educação‟ no sentido popular, referindo-me a graus de instrução. Uso a palavra „educar‟ no sentido rigorosamente etimológico e verdadeiro „eduzir‟, indicando que o educador deve eduzir, desenvolver e manifestar o que já existe na natureza do educando”. É esta razão que, no modo de ver do professor Rohden, “uma filosofia ou uma teologia que admita de antemão que o homem seja mau por natureza não pode falar em eduzir; só poderia tratar de impingir ao educando algo alheio à sua natureza. Mas isso é o contrário à educação”. Como Sócrates, Platão, e os Estoicos, Rohden acredita que a boa ordem social não pode ser criada com estratagemas políticos. A boa ordem social não tem origem na política, mas na ética que ordena a consciência dos cidadãos e dos líderes da sociedade: ela se projeta na sociedade, mas está radicada no indivíduo. Nascido em Tubarão, Estado de Santa Catarina, Rohden formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia nas Universidades de Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália). De 1945 a 1946, teve uma bolsa de estudos para o desenvolvimento de pesquisas científicas na Universidade de Princeton, Estados Unidos, onde teve a oportunidade de conviver com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito internacional da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do próprio universo. Em 1952, fundou em São Paulo o Centro de Auto-Realização Alvorada, que mantém cursos permanentes sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. É autor de mais de 60 livros, entre os quais estão Por que Sofremos, O Caminho da Felicidade, Mahatma Gandhi, Lúcifer e Logos, O Homem, Einstein – O Enigma do Universo e Educação do Homem Integral. Alto, cabelos brancos, roupas simples, mente aguçada, o professor Rohden concedeu a VISÃO a seguinte entrevista na sede do Centro de AutoRealização Alvorada, na Rua Alegrete, 72, Sumaré, São Paulo.


VISÃO – O senhor tem dedicado boa parte do seu tempo aqui na Alvorada, enfatizando a diferença entre a instrução e a educação. HUBERTO ROHDEN – Não, não é bem isso. Tenho falado unicamente sobre autoconhecimento e auto-realização da natureza humana. Isso inclui tudo e vai muito além da educação. Nós temos de nos realizar. Somos embrionários; “sementes” humanas. Falando simbolicamente, temos de realizar a nossa “semente” humana em forma de uma perfeita “planta” humana. Portanto, no Centro Auto-Realização Alvorada, cuidamos do autoconhecimento da natureza humana e sua auto-realização na vida prática. Temos de saber o que somos e temos de viver de acordo com aquilo que somos. O homem deve realizar-se. Ele não é realizado; é apenas realizável. Da auto-realização fazem partes duas coisas: tanto a instrução na ciência como a educação da consciência. O Governo só pode instruir na ciência; não pode educar na consciência. A educação da consciência é do foro íntimo do indivíduo. Temos um Ministério da Instrução; não temos um Ministério da Educação. Não existe nenhum ministério da educação em nenhum país; nem pode existir. Não devemos confundir instrução com educação. A educação é muito mais profunda do que a instrução. A instrução é da inteligência; a educação é da consciência. A instrução faz o homem erudito; a educação faz o homem bom. Ambas são necessárias, mas a mais importante é a educação da consciência. VISÃO – Então, ao contrário do que se supõe hoje em dia, a educação é uma atividade individual? ROHDEN – É eminentemente individual. Não pode ser uma atividade social. Ela se reflete na sociedade, mas está radicada no indivíduo. Só existe autoeducação; não existe alo-educação (educação de fora para dentro). Ou o homem se educa ou não se educa. Outros não podem educar-me; só podem mostrar-me o caminho pelo qual eu me possa educar. VISÃO – Essa é, então, a função do mestre – mostrar? ROHDEN – Sim. O mestre é um guia. O educador pode mostrar ao educando o caminho por onde o educando se pode auto-educar. Há muita confusão hoje em dia sobre a educação. Entre centenas de livros sobre a educação, mal encontrei um que possa aprovar integralmente. Alguns têm coisas boas, mas não frisam a coisa essencial que é a auto-educação. VISÃO – Falou-se recentemente que o sistema educacional brasileiro estava em crise. O senhor concorda que esteja? ROHDEN – Crise supõe uma presença. Não existe nenhuma crise; o que existe é uma deplorável ausência de verdadeira educação. VISÃO – De onde surgiu essa ausência de educação?


ROHDEN – Ela resulta do fato histórico de que a nossa evolução humana no mundo inteiro não está na altura. Não estamos na era da incerteza, da qual falou o economista John Kenneth Galbraith; estamos, sim, em estado permanente de incerteza, porque a humanidade está marcando passo na inteligência e não atingiu ainda o nível da razão, da consciência. Falta-nos uma disciplina ética avançada. Albert Einstein, que era um grande luminar, disse: “O descobrimento das leis da natureza – a ciência – torna o homem erudito; mas não torna o homem bom. O homem bom é aquele que realiza os valores que estão dentro de sua consciência. Do mundo dos fatos, que é a ciência, não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores, que é a consciência. Fatos não produzem valores, porque os valores vêm de outra região”. Teilhard de Chardin disse: “O homem veio da biosfera. Está na noosfera (noos quer dizer inteligência, em grego) e age em função da noosfera. Viemos da biosfera, isto é, da esfera da vida. Nós nos intelectualizamos há milhares de anos; viemos da biosfera para a noosfera. Passamos da vida para a esfera da inteligência – e cá estamos. Acima da noosfera está a logosfera, a esfera da consciência; mas ainda não estamos lá”. VISÃO – Não há alguns indivíduos que estão acima do grosso da humanidade? ROHDEN – É claro. Há indivíduos isolados, esporádicos, que estão na esfera da educação da consciência. Mas a maioria não está lá. É uma questão de evolução da humanidade. A culpa não é do Brasil, nem de ninguém. É da falta de evolução superior da humanidade. Na esfera em que estamos não podemos ter educação; só podemos fazer instrução. Todos os crimes e terrorismos vêm daí. A ciência não pode abolir o terrorismo; só a consciência pode fazê-lo. Já se foi o tempo em que se dizia ingenuamente: “Abrir uma escola é fechar uma cadeia”. A experiência prova que os grandes malfeitores da humanidade não foram analfabetos, mas, sim, homens que não educaram a consciência. VISÃO – E as Igrejas não favorecem a educação? Não é, essa, parte da sua razão de ser? ROHDEN – A teologia da Igreja ensina que melhor que viver corretamente é morrer corretamente. Se um homem vive cinquenta anos matando, roubando, defraudando e, nos últimos cinco minutos, se confessa e se converte, vai para a vida eterna. Isso é um convite antipedagógico, um convite tácito para uma vida má, contanto que haja morte boa. As teologias são tacitamente contrárias à educação da consciência. É uma denúncia que eu faço em base real. Simples moralidade não é educação. VISÃO – Mas as Igrejas não pregam a ética do Evangelho? ROHDEN – Não. Substituíram o Evangelho pela teologia. O Evangelho exige uma vida honesta do princípio ao fim. Mas as Igrejas pregam que basta


converter-se na última hora. E tentam consertar seu erro com uma falsa interpretação das palavras de Jesus ao ladrão na cruz. VISÃO – Além da teologia, há, na sua opinião, outras filosofias contrárias à educação operando nos chamados meios educacionais. ROHDEN – Os “meios educacionais” estão cheios dessas filosofias. Veja o behaviorismo de B.F. Skinner. Ele diz: “A liberdade é um mito. O livre-arbítrio não existe”. É uma filosofia que diz que somos autômatos, que somos condicionados pelo meio ambiente. Ora, se não há livre-arbítrio, então não há base para a educação. O homem tem a alternativa de ser bom ou mau; isto é, a possibilidade de auto-educação. Mas se o homem é obrigado pelas circunstâncias a ser mau, ou ser bom, então acabou-se toda a base para a educação. Não negamos que as circunstâncias possam dificultar o exercício do livre-arbítrio; negamos que o homem normal possa ser obrigado palas circunstâncias a ser bom ou mau. VISÃO – O vazio moral, a angústia existencial que muitos parecem sentir hoje em dia e que é constantemente representada na arte moderna – pintura, teatro, literatura, cinema, televisão, etc. – de onde vêm? ROHDEN – Vêm da falta de autoconhecimento e da falta de verdadeira educação. Esses fatores sociais – rádio, teatro, televisão, etc. – não podem educar porque, como já foi dito, a educação é um processo eminentemente individual. O que os citados fatores sociais poderiam e deveriam fazer é remover ou diminuir os obstáculos à verdadeira educação. Infelizmente, porém, quase todos os programas de cinema, rádio, televisão são flagrantemente antieducativos. E isso acaba num vácuo ou numa frustração existencial, como repetirmos sem cessar em nossos cursos da Alvorada e em nossos livros. VISÃO – Qual a relação entre a natureza humana e a auto-educação? ROHDEN – A auto-educação é a perfeita evolução da natureza integral do homem. Não é algo alheio introduzido nela; é o conteúdo interno da própria natureza, eduzido e manifestado na vida externa, individual e social. O homem profano, sem auto-compreensão, abusa de tudo, inclusive de si mesmo, a fim de ter momentos de prazer superficial. Por outro lado, o homem místico isolacionista se recusa a usar qualquer objeto; simplesmente recusa tudo. Mas o homem cósmico, o auto-educado e auto-realizado, usa de tudo sem abusar de nada. E isto é a verdadeira educação. O educador deve mostrar ao educando que ser fiel à sua própria natureza é ser feliz, embora essa felicidade nem sempre esteja livre de sofrimento. Enquanto o educando confundir felicidade com gozo, ou infelicidade com sofrimento, não tem o caminho aberto para a verdadeira educação. O homem auto-educando pode ser feliz no meio de sofrimentos e pode também ser infeliz no meio de


gozos. A base da auto-educação é autoconhecimento, como já diziam os filósofos gregos: “Conhece-te a ti mesmo”. VISÃO – Haverá no mundo moderno movimento de auto-educação? ROHDEN – Felizmente há, em todos os países, pequenos grupos que levam a sério a auto-educação. Conheço de convivência o movimento neugeist (Novo Espírito), nos países germânicos; bem como a Selfrealization (AutoRealização), nos países anglo-saxônicos, que, na Inglaterra, também é conhecida como The New Outlook (A Nova Perspectiva). Esses movimentos são representados no Brasil pelo Centro de Auto-Realização Alvorada. São iniciativas particulares de pequenas elites que tomam a sério a sua autorealização, baseada no autoconhecimento da natureza humana e manifestada na vivência ética da vida diária, individual e social. Felizmente, o maior dos educadores disse, há quase 2.000 anos: “O Reino dos Céus está dentro de vós, mas é ainda um tesouro oculto, que deveis descobrir”. Com isso o Nazareno afirma a presença de um elemento bom no homem e a necessidade que ele tem de revelar na vida diária esse tesouro oculto. Isto é pura auto-educação.


ÍNDICE

EDUCAÇÃO – PROBLEMA VITAL DA ATUALIDADE A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO LEIGA E DA EDUCAÇÃO RELIGIOSA A DELINQÜÊNCIA JUVENIL, FRUTO DE UMA FALSA EDUCAÇÃO O FLAGELO DO PARASITISMO E SUA CURA BASES PARA UMA NOVA EDUCAÇÃO ENTRE LÚCIFER E LOGOS ESSENCIALIZANDO A EXISTÊNCIA A SABEDORIA DOS GRANDES EDUCADORES OS MALES DA EDUCAÇÃO ESCATOLÓGICA ADORAÇÃO, SERVIÇO E SOFRIMENTO PARA EDUCAR – SER EDUCADO PASSANDO DA CONSCIÊNCIA EXTERNA PARA A CONSCIÊNCIA INTERNA DO CONSCIENTE FINITO PARA O INCONSCIENTE INFINITO FAZER GRANDEMENTE AS COISAS PEQUENAS DA PEDAGOGIA À FILOSOFIA PRECISA-SE DE UM EDUCADOR! NINGUÉM SERVE IMPUNEMENTE RUMO À COSMOCRACIA MUNDIAL MONOCRACIA COSMOCRACIA EDUCAÇÃO COSMOCRÁTICA EPÍLOGO: DESORIENTAÇÃO DAS AUTORIDADES RELIGIOSAS EM FACE DO PROBLEMA EDUCACIONAL


A EDUCAÇÃO DA CONSCIÊNCIA


HUBERTO ROHDEN VIDA E OBRA

Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália). De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor. Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais várias foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto; algumas existem em braile, para institutos de cegos. Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada. De 1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística. Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos.


Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos. Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yôga por Swami Premananda, diretor hindu desse ashram. Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não tomou posse. Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, onde mantinha cursos permanentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e dirigia Casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil. Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos de yoguis na Índia. Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre autoconhecimento e auto-realização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de Auto-Realização Alvorada. Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo. Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e inspiração. À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”. Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé e trabalho, somente comparados aos dos grandes homens do século XX.


RELAÇÃO DE OBRAS DO PROF. HUBERTO ROHDEN

COLEÇÃO FILOSOFIA UNIVERSAL: O PENSAMENTO FILOSÓFICO DA ANTIGUIDADE A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA O ESPÍRITO DA FILOSOFIA ORIENTAL

COLEÇÃO FILOSOFIA DO EVANGELHO: FILOSOFIA CÓSMICA DO EVANGELHO O SERMÃO DA MONTANHA ASSIM DIZIA O MESTRE O TRIUNFO DA VIDA SOBRE A MORTE O NOSSO MESTRE

COLEÇÃO FILOSOFIA DA VIDA: DE ALMA PARA ALMA ÍDOLOS OU IDEAL? ESCALANDO O HIMALAIA O CAMINHO DA FELICIDADE DEUS EM ESPÍRITO E VERDADE EM COMUNHÃO COM DEUS


COSMORAMA PORQUE SOFREMOS LÚCIFER E LÓGOS A GRANDE LIBERTAÇÃO BHAGAVAD GITA (TRADUÇÃO) SETAS PARA O INFINITO ENTRE DOIS MUNDOS MINHAS VIVÊNCIAS NA PALESTINA, EGITO E ÍNDIA FILOSOFIA DA ARTE A ARTE DE CURAR PELO ESPÍRITO. AUTOR: JOEL GOLDSMITH (TRADUÇÃO) ORIENTANDO “QUE VOS PARECE DO CRISTO?” EDUCAÇÃO DO HOMEM INTEGRAL DIAS DE GRANDE PAZ (TRADUÇÃO) O DRAMA MILENAR DO CRISTO E DO ANTICRISTO LUZES E SOMBRAS DA ALVORADA ROTEIRO CÓSMICO A METAFÍSICA DO CRISTIANISMO A VOZ DO SILÊNCIO TAO TE CHING DE LAO-TSÉ (TRADUÇÃO) SABEDORIA DAS PARÁBOLAS O QUINTO EVANGELHO SEGUNDO TOMÉ (TRADUÇÃO) A NOVA HUMANIDADE A MENSAGEM VIVA DO CRISTO (OS QUATRO EVANGELHOS TRADUÇÃO) RUMO À CONSCIÊNCIA CÓSMICA O HOMEM


ESTRATÉGIAS DE LÚCIFER O HOMEM E O UNIVERSO IMPERATIVOS DA VIDA PROFANOS E INICIADOS NOVO TESTAMENTO LAMPEJOS EVANGÉLICOS O CRISTO CÓSMICO E OS ESSÊNIOS A EXPERIÊNCIA CÓSMICA

COLEÇÃO MISTÉRIOS DA NATUREZA: MARAVILHAS DO UNIVERSO ALEGORIAS ÍSIS POR MUNDOS IGNOTOS

COLEÇÃO BIOGRAFIAS: PAULO DE TARSO AGOSTINHO POR UM IDEAL – 2 VOLS. AUTOBIOGRAFIA MAHATMA GANDHI JESUS NAZARENO EINSTEIN – O ENIGMA DO UNIVERSO PASCAL MYRIAM

COLEÇÃO OPÚSCULOS: SAÚDE E FELICIDADE PELA COSMO-MEDITAÇÃO


CATECISMO DA FILOSOFIA ASSIM DIZIA MAHATMA GANDHI (100 PENSAMENTOS) ACONTECEU ENTRE 2000 E 3000 CIÊNCIA, MILAGRE E ORAÇÃO SÃO COMPATÍVEIS? CENTROS DE AUTO-REALIZAÇÃO



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