• A destinação do patrimônio em caso de extinção de uma fundação Maria Amélia Renó Casanova e Rosana Mara Brittes • Uma leitura sobre o percurso dos princípios no direito Sérgio Said Staut Júnior • O Tribunal Penal Internacional e sua implementação: questões controvertidas Yvana Savedra de Andrade Barreiros • Desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo Kátia Rovaris de Agostini e Leonardo Cesar de Agostini 2 DOCENTES • Direito de greve e dissídio coletivo Marcelo Wanderley Guimarães • Aspectos (re)velados do bem jurídico para o Direito Penal Pedro Luciano Evangelista Ferreira • Psicologia do testemunho, falsas Memórias e a reforma do Código de Processo Penal Brasileiro no depoimento de crianças e adolescentes Rodrigo Soares Santos e Michelli Miranda Andretta • Ensaio sobre o custo dos direitos negativos Rui Carlo Dissenha
Revista do Curso de Direito e da Pós-Graduação
1 CONVIDADOS • Poder e nomogênese jurídica: bases para uma reflexão do campo jornalístico Lucas Mastellaro Baruzzi
• A legitimação ativa para a propositura de ações voltadas à tutela coletiva Thaís Amoroso Paschoal
• A lei da anistia, a constituição e os crimes contra a humanidade: uma discussão acerca da punibilidade dos agentes públicos a serviço do regime militar Isaias Bissoto • Desaposentação: desnecessidade da devolução das parcelas já pagas pela autarquia previdenciária Gisele Machado Noga e Március Vinícius Caron Schlichting • Considerações sobre a competência e a possibilidade de recuperação judicial nas filiais Larissa Costa Czaplinski 4 RESENHA • Resenha da obra: FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir: Naissance de La Prison. Paris: Gallimard, 1975 Guilherme Roman Borges I SSN 1809- 5119
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3 ACADÊMICOS
V.7 9 771809 511004
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N.1
VOLUME 7
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NÚMERO 1
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JANEIRO-JUNHO 2011
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ISSN 1809-5119
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Revista do curso de Direito da Universidade Positivo e da Pós-Graduação v. 7, n. 1, jan./jun. 2011
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Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5.300 Campo Comprido – Curitiba – PR (41) 3317-3000
Reitor José Pio Martins Vice-Reitor e Pró-Reitor Administrativo Arno Antônio Gnoatto Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Bruno Henrique Rocha Fernandes Pró-Reitor de Graduação e Pró-Reitor de Planejamento e Avaliação Institucional Renato Casagrande Coordenação do Curso de Direito Marcos Alves da Silva
Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da Universidade Positivo – Curitiba
Raízes Jurídicas/Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Curso de Direito. – v. 7, n. 1 (jan./jun. 2011) - .– Curitiba, Universidade Positivo, 2012 – Periodicidade semestral ISSN 1809-5119 1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito - Periódicos I. Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Curso de Direito. CDU 3 34
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Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Curso de Direito
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Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Curso de Direito
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JURÍDICAS Editores Responsáveis Clara Maria Roman Borges Fernanado Borges Mânica
Conselho Editorial Abili Lázaro Castro de Lima (UFPR) Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux (USP) Ester Kosovski (UFRJ) Flavio de Azambuja Berti (UP) Guilherme Roman Borges (UP) James Marins (PUCPR) João Maurício Adeodato (UFPE) José Roberto Vieira (UFPR) José Souto Maior Borges (UFPE) Luiz Edson Fachin (UFPR) Raúl Cervini (Uruguai) René Ariel Dotti (UFPR) Romeu Felipe Bacellar Filho (UFPR) Roque Antonio Carrazza (PUCSP) Simone Maria Maluceli Pinto (PUCPR) Silvana Maria Carbonera (UFPR) Tercio Sampaio Ferraz Júnior (USP)
Projeto Gráfico e Diagramação Yvana Savedra de Andrade Barreiros
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curso de Direito da Universidade Positivo, juntamente com a sua Pós-Graduação, apresentam novo volume da revista acadêmica intitulada Raízes Jurídicas, com o objetivo primordial de tornar novamente pública a produção interna que está sendo realizada pelos seus professores, pelos acadêmicos do curso, que, desde cedo, dedicam-se à pesquisa e à extensão universitária, bem como pelas demais personalidades jurídicas que desejam mostrar o conteúdo de suas investigações. Destinada a contribuir para a formação de um sólido pensamento acadêmico no país, comprometido com a seriedade de pesquisa, a profundidade de investigação, o rigor conceitual e a austeridade acadêmica, Raízes Jurídicas torna-se um prestimoso veículo para colmatar lacuna interna existente, assim como para criar uma nova possibilidade de diálogo acadêmico e interinstitucional entre todas as áreas do curso e com outras entidades externas. Trata-se de uma publicação semestral da Universidade Positivo, mas controlada e dirigida pelo Curso e pela Pós-Graduação de Direito, cuja linha editorial se encontra atenta à dinamicidade da ciência e à sua abertura contemporânea, tendo caráter transdisciplinar, de tal modo que serão publicados artigos das mais diversas áreas, sempre afins à técnica jurídica: Filosofia, História, Arte, Sociologia, Literatura, Teoria Geral e Dogmática Estrita. Por tratar-se de uma revista acadêmica e jurídica, Raízes Jurídicas procura alcançar, especialmente, a leitores versados na sua respectiva área, conquanto busque também proporcionar um encontro com as mais diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, especialmente a Sociologia, a História, a Filosofia, a Antropologia, a Psicologia e a Ciência Política. Todavia, seu alvo se expande, ao objetivar também leitores que estejam mais próximos à instrumentalidade da prática, a ver-se pelo trabalho de juízes, promotores, advogados, delegados, procuradores, etc., bem como de entidades da sociedade civil organizada, de organizações não governamentais, de organismos internacionais e de executores de políticas públicas em matérias pertinentes ao universo jurídico. O maior número de leitores tem em vista a ampliação do conhecimento técnico-jurídico, a ditongação dos horizontes filosóficos e linguísticos e, sobretudo, o despertar do pensamento crítico e o favorecimento de opções de análises teóricas que não obriguem o leitor à concordância com a opinião comum, tão comum no dogmatismo da ciência.
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Poder e nomogênese jurídica: bases para uma reflexão do campo jornalístico Lucas Mastellaro Baruzzi .......................................................................... 11 A destinação do patrimônio em caso de extinção de uma fundação Maria Amélia Renó Casanova e Rosana Mara Brittes .................................. 21 Uma leitura sobre o percurso dos princípios no direito Sérgio Said Staut Júnior ............................................................................ 29 O Tribunal Penal Internacional e sua implementação: questões controvertidas Yvana Savedra de Andrade Barreiros ......................................................... 45 Desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo Kátia Rovaris de Agostini e Leonardo Cesar de Agostini ............................ 65
Direito de greve e dissídio coletivo Marcelo Wanderley Guimarães .................................................................. 87 Aspectos (re)velados do bem jurídico para o Direito Penal Pedro Luciano Evangelista Ferreira ........................................................... 97 Psicologia do testemunho, falsas Memórias e a reforma do Código de Processo Penal Brasileiro no depoimento de crianças e adolescentes Rodrigo Soares Santos e Michelli Miranda Andretta ................................. 121 Ensaio sobre o custo dos direitos negativos Rui Carlo Dissenha ................................................................................ 135 A legitimação ativa para a propositura de ações voltadas à tutela coletiva Thaís Amoroso Paschoal ........................................................................ 153
A lei da anistia, a constituição e os crimes contra a humanidade: uma discussão acerca da punibilidade dos agentes públicos a serviço do regime militar Isaias Bissoto ......................................................................................... 173 Desaposentação: desnecessidade da devolução das parcelas já pagas pela autarquia previdenciária Gisele Machado Noga e Március Vinícius Caron Schlichting ...................... 191 Considerações sobre a competência e a possibilidade de recuperação judicial nas filiais Larissa Costa Czaplinski ......................................................................... 207
Resenha da obra: FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir: Naissance de La Prison. Paris: Gallimard, 1975. Guilherme Roman Borges ....................................................................... 221
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Lucas Mastellaro Baruzzi Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. Graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH. Aluno especial do programa de mestrado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado.
Este ensaio pretende identificar as funções desempenhadas pelo campo jornalístico no processo de nomogênese jurídica conforme a teoria de Miguel Reale, especialmente no que tange à interferência do poder neste processo. O enfoque principal será dado na forma como se opera a redução de seletividade no processo de comunicação entre os campos jornalístico e político, de modo a compreender a manifestação do poder na ação comunicativa entre estes campos (conforme teoria de Tercio Sampaio Ferraz Jr.). Em seguida, será abordada a relação do poder enquanto comunicação com a ação política e a efetividade da comunicação desempenhada por outros campos (literário, científico, religioso, artístico etc.) no âmbito da nomogênese jurídica. Palavras-chave: poder; campo jornalístico; nomogênese jurídica.
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Inicialmente, de modo a subsidiar nossa análise, faz-se necessário recuperar na teoria de Miguel Reale suas considerações acerca da correlação entre direito e poder. Para o pensador, esta correlação é revelada e deve ser analisada por meio do estudo da gênese, da criação, de uma norma jurídica. Segundo Reale, a elaboração de toda norma está inserida num complexo de fatos – um conjunto de circunstâncias diversas que, ao mesmo tempo, demandam a criação da norma e a conformam tendo em vista e a realização (ou não) de um fim – e valores, que, sustentados pelos indivíduos, representam a tomada de posições perante o complexo fático que se apresenta. Deste modo, é possível inferir que toda norma jurídica é histórica, pois está circunscrita ao momento de sua criação, à relação entre fatos e valores que se apresentavam na época – representando, nos dizeres de Reale, uma solução 1 temporária . Também é possível concluir que a proposição normativa criada é um produto específico dentre diversos outros possíveis, dentre tantos quantos forem os valores incidentes sobre os diferentes complexos fáticos. Por conseguinte, para Miguel Reale, toda norma é a conversão de conteúdo 2 axiológico em ordem racional . Todavia, diante do sem número de configurações possíveis entre fatos e valores, qual arranjo resultará numa proposição normativa? Segundo Miguel Reale, a configuração será resultado de uma escolha, operada através de um poder decisório, que instaurará a nova norma e rejeitará todas as outras possíveis, elegendo uma como apta a produzir efeitos no ordenamento jurídico. Este poder, por sua vez, pode ter como sujeito, dentre inúmeros outros, por exemplo, o parlamentar em sua atividade legislativa. Na teoria da nomogênese jurídica de Miguel Reale, o poder desempenha papel fundamental, pois sua interferência elimina o arbítrio e põe fim à insegurança e à incerteza. Embora a função do poder possa parecer simplória, Miguel Reale reconhece que se trata de um problema complexo e que não pode ser apresentado como ato de pura racionalidade – o que não retira da norma jurídica 3 seu caráter racional .
Tendo em vista as inúmeras formas pelas quais o poder pode se manifestar, este ensaio pretende estudar sua manifestação enquanto comunicação. Para tanto, elegeu-se como objeto a comunicação feita pelo campo jornalístico e, mais propriamente, pela imprensa televisiva.
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REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998. p. 226. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002. p.551. 3 REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998. p. 228. 2
É inegável que este artefato tecnológico – a televisão – transformou a forma de nos comunicarmos, de percebermos e compreendermos a realidade, bem como o modo como informações são produzidas, transmitidas e 4 recebidas. José Arbex Jr. , em trabalho sobre o jornalismo televisivo, traz um minucioso panorama histórico de como a comunicação por meio da televisão influenciou e tem influenciado a vida política dos países (seja internamente ou na relação entre nações) e a formação da opinião pública, mobilizando-a ou desmobilizando-a para as mais diversas questões. Apenas para ilustrar a dimensão e alcance desta comunicação, José Arbex Jr. nos lembra da transmissão da Guerra do Golfo na década de 90, a primeira vez em que uma guerra era transmitida ao vivo (e que segundo ele mais lembrava um jogo de videogame ou computador do que um conflito sangrento entre soldados); o anúncio da abertura da passagem para Berlim Ocidental durante uma entrevista com centenas de jornalistas, que, momentos após ser noticiado pela televisão, fez com que milhares de pessoas saíssem ao mesmo tempo em direção aos postos fronteiriços; o julgamento de O. J. Simpson, que transformou os fatos da vida em novela e fez com que todos acompanhassem seu processo de julgamento e esperassem pela sua condenação. Mais recentemente, não há como deixar de mencionar o “caso 5 Nardoni” que, no entender da antropóloga Silvya Caiuby Novaes , a cobertura jornalística buscou sempre uma cobertura espetacularizada da vida cotidiana em seus aspectos mais banais e violentos, construindo um enredo semelhante ao de Branca de Neve e de Cinderela, onde a mãe “só é mencionada pela ausência” e “o ciúme toma conta da madrasta que, ao se sentir ameaça-
da pela menina só pode agir movida pela maldade.”
A relação entre comunicação televisa e atividade legislativa também é igualmente importante e merece especial destaque neste ensaio. Em palestra proferida em seminário em homenagem ao centenário de Miguel Reale, Mi6 guel Reale Jr. destacou diversos episódios de nosso país onde a televisão foi responsável por atribuir valores aos fatos que ela mesma selecionou: a repentina aprovação da Lei de Crimes Hediondos após o sequestro dos empresários Roberto Medina e Abílio Diniz e suas posteriores alterações com a inclusão no rol de crimes hediondos o homicídio qualificado (após o episódio que vitimou Daniela Perez), o homicídio quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio (após as chacinas de Vigário Geral e Candelária) e a falsificação ou adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou me-
4
ARBERX Jr, José. Showrnalismo - A notícia como espetáculo. Rio de Janeiro: Casa Amarela, 2001. NOVAES, Silvya Caiuby. Meninas, mães e madrastas. Por quê o caso Isabella mobiliza tanto? Disponível em <http://www.n-a-u.org/urbservatorio/scaiuby05-2008.pdf>. Acessado em 06.06.2010. 6 Seminário Internacional em Homenagem ao Centenário de Miguel Reale, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, organizado pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, entre os dias 05 e 08.04.2010. Mundo circundante, mídia e construção do direito, ministrada pelo Prof. Miguel Reale Jr., em 05.04.2010. 5
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dicinais (após o episódio envolvendo as pílulas anticoncepcionais de farinha). Como um último e mais recente exemplo, poderíamos mencionar o homicídio do cartunista Glauco Vilas Boas e seu filho, que deu ensejo à Audiência Pública na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, cujo Requerimento formulado pelos Dep. Paes de Lira (PTC-SP) e Pedro Wilson (PT-GO) vinha assim justificado “a coletividade
não quer a liberação de drogas, mesmo que seu uso venha mascarado por um culto religioso, pois mesmo destes surgem vítimas, tanto do próprio grupo, quanto vítimas externas, que vão desde a família do usuário a cida7 8 dãos comuns” , e à proposta de Projeto de Decreto Legislativo (Dep. Paes de Lira – PTC-SP) com vista a sustar a Resolução n.º 1/2010 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) – que adotou as normas e procedimentos formulados por Grupo Multidisciplinar de Trabalho para uso religioso de Ayahuasca (relatório final do Grupo aprovado em 06.12.2006), cujo Projeto contém em sua justificativa menção a matérias das revistas Veja e Isto É acerca do homicídio do cartunista.
Como já demonstrado, a nomogênese jurídica tem como um dos elementos fundamentais o poder, que por meio de sua interferência decisória objetiva em uma nova norma o complexo fático e os valores incidentes sobre este. Também, se demonstrou que através de fatos concretos é possível supor que a comunicação televisiva exerça de alguma forma este poder. Contudo, subsiste a necessidade de investigarmos de modo mais aprofundado a relação entre comunicação, poder e nomogênese jurídica. 9 Tércio Sampaio Ferraz Jr. propõe em sua obra Estudos de Filosofia outra perspectiva para se pensar o poder: como meio de comunicação. O autor, alertando-nos que tradicionalmente as noções jurídicas tentam reduzir o poder ao direito (por exemplo, com o conceito de soberania), afirma que o estudo de poder e direito pode se dar entendendo-os como meios simbólicos de comunicação. Importante ressaltar que o autor, na obra supracitada, propõe definir comunicação como uma estrutura comunicacional da sociedade, um fato inerente do comportamento humano, o que permite comparar o 10 poder com outros meios de comunicação . Portanto, sob esta perspectiva proposta, também seria possível investigar de que forma o poder exercido
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Requerimento n.º 197/2010, Deputado Paes de Lira (PTC-SP), acessado em 14.06.2010 via ,www.camara.gov.br>. 8 Projeto de Decreto Legislativo n.º 2491/2010, Deputado Paes de Lira (PTC-SP), acessado em 14.06.2010 ,via www.camara.gov.br. 9 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009. p. 5. 10 Idem, p. 34.
pela comunicação televisiva pode afetar o direito e, mais especificamente, a criação da norma jurídica. De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Jr., este conceito pressupõe a intermediação simbólica entre aqueles que se comunicam ( alter e ego na definição do autor), conectando-os. Outro elemento importante da comunicação é a seletividade: a liberdade que alter e ego possuem para selecionar o conteúdo a ser transmitido, estando o poder relacionado a esta possibilidade de 11 transmitir performances seletivas de ação , ou seja, uma seleção que limita a seletividade do outro. Diante das considerações feitas, é possível aventar que a comunicação televisiva realiza esta forma específica e sutil de poder – não o poder como aquele exercido pelo soberano ou o regulamentado e contido no direito, de uma vontade sobre a outra, mas a que instrumentaliza através da comunicação uma vontade por ele produzida, controlando e reduzindo a seletividade do outro. Transportando a reflexão para a esfera da teoria da nomogênese jurídica de Miguel Reale, talvez seja este o poder comunicado àqueles que exercem função legislativa e que atuam de acordo com a relação de ação estabelecida pela televisão – não se tratando de uma relação de mando e obediência entre alter e ego, mas de uma combinação de ação entre as partes. Assim, a comunicação televisiva comunicaria a sua preferência, a solução a ser dada ao conjunto de fatos de acordo com o conteúdo axiológico por ela mesma selecionado e construído. Sobre o poder comunicado pela televisão àqueles que exercem função legislativa poder-se-ia dizer ainda que estes últimos não estão vinculados à agenda e preferências adotados pela televisão. Contudo, como bem observa 12 Pierre Bourdieu em Sobre a Televisão, os campos jornalístico e político possuem um elemento fundamental em comum: ambos estão submetidos à sanção do mercado e do plebiscito, exercendo o campo jornalístico (no qual está inserido a comunicação televisiva) um poder comunicado ao campo político (no qual está inserido os parlamentares), submetendo este último às expectativas e exigências de uma maioria passional – constituída e construída pela comunicação que recebem da televisão. Sobre esta redução da seletividade imposta por um campo (o jornalístico) a outro (o político), Tércio Sampaio Ferraz Jr. afirma que “o funcionamen-
to do poder repousa sobre o fato de que certas possibilidades de relação existem, mas cuja realização é evitada. O evitar sanções é relação indispensável para a função do poder que, como meio codificado de comunicação, a relaciona, por sua vez, com outra relação: cumprir (positivamente) a ordem
11
Idem, p. 43. De acordo com a elaboração teórica de Pierre Bourdieu, “campos” são espaços estruturados de posições, onde indivíduos ou instituições competem por um mesmo objeto (no caso, o objeto em disputa seria o conteúdo axiológico e normativo no âmbito da nomogênese jurídica). 12
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emitida: o código do poder estabelece – estrutura – relações de ação.
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Formulando ao modo de Pierre Bourdieu, embora o campo político não esteja submetido a uma relação de mando do campo jornalístico, este último pode oferecer aos políticos serviços simbólicos indispensáveis que não podem ser conquistados na mesma dimensão sem a contribuição do campo jornalístico, a saber, a legitimação perante os eleitores. Resgatando o que ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr., ambos os campos conhecem as possibilidades que devem ser evitadas (ao político não é dada a seletividade de contrariar o conteúdo axiológico comunicado pela televisão) de modo a prevenir que sanções sejam modalizadas (decréscimo simbólico da legitimação do político junto aos seus eleitores). Outra característica desta relação entre comunicação televisiva e nomogênese jurídica que merece atenção é o caráter sutil deste poder como comunicação que, ao contrário de uma submissão legal ou de uma coerção explícita, quase não se deixa ser notado. De acordo com formulação de Pierre Bourdieu, um “poder quase mágico que permite obter o equivalente da14 quilo que é obtido pela força ”. Uma vez reconhecido pelo campo político este poder como legítimo, o poder exercido pela comunicação televisiva (campo jornalístico) deixa de ser arbitrário e passa a existir nesta relação entre ambos os campos, transformando a relação de força e violência em 15 poder simbólico , submetendo um campo ao outro pelo reconhecimento de sanções simbólicas que podem vir a ser modalizadas. Para Bourdieu, o poder simbólico não é exercido de forma instrumental por uma classe sobre a outra, mas através da relação entre atores e campos de produção simbólica, através da imposição de significados legítimos.
Pelo exposto até o momento, a comunicação televisiva exerce enorme poder no processo de nomogênese jurídica, de modo a comunicar aos parlamentares uma redução na seletividade de suas ações (por exemplo no modo como devem votar e apreciar determinada matéria), ainda que este poder seja dado numa relação “velada”, “mágica”, entre parlamentares e jornalistas. Se pudéssemos identificar todos os processos de comunicação envolvidos na nomogênese jurídica (ou seja, o poder, conforme proposto por Tércio Sampaio Ferraz Jr.) e, por conseguinte, identificar todas as performances seletivas de ação transmitidas (ou seja, a limitação de seletividade transmitida pelos atores dos mais diversos campos aos atores do campo político), enxergaríamos uma distorção na norma jurídica criada: não uma distorção 13
Idem, p. 48. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. p. 14; Como ressalta Luciano Miranda in Pierre Bourdieu e o Campo da Comunicação, embora estejamos tratando de campos, macroestruturas, a teoria bourdiesiana possibilita a análise do poder também em enfoques microestruturais, entre campos e entre agentes; 14 15
na representação política, mas uma distorção daqueles que podem exercer o poder através da comunicação, ou seja, dos campos que realmente comunicam uma seletividade de ação ao campo político. Embora atualmente esteja muito mais em voga a análise e discussão sobre a qualidade da representação no campo político (ou seja, temas como a existência ou não de uma subrepresentação política de determinados Estados, voto distrital, sistema de lista fechada para eleições proporcionais, inelegibilidades etc.) há a necessidade de se pensar também o alcance da comunicação no processo de nomogênese jurídica, pois, ainda que por suposição a representação política fosse ótima, subsistiria a distorção do poder enquanto comunicação: atores de determinados campos (jornalístico, por exemplo) transmitiriam mais eficientemente uma redução da seletividade aos atores do campo político do que a comunicação feita por outros campos (acadêmico, religioso, artístico etc.), comunicando aos parlamentares por meio de um poder simbólico qual arranjo de fatos e valores deve se converter em norma jurídica. Teríamos, ao final, a norma jurídica como expressão de este ou aquele campo de produção simbólica (no caso deste ensaio, notadamente do campo jornalístico), e não como expressão dos diferentes campos que compõem a sociedade (campos literário, científico, artístico, político, religioso etc.), existindo uma distorção entre atores e campos que realmente possuem capacidade de comunicar suas preferências (seletividades) aos parlamentares. Assim, também deve ser pauta de um debate público a qualidade da comunicação entre os diversos campos com o campo político, de modo a se encontrar mecanismos que se contraponham à comunicação exercida pelo campo jornalístico, visando um maior equilíbrio entre os diversos campos que disputam no âmbito da nomogênese jurídica – por exemplo, a concessão de rádio e televisão para entidades da sociedade civil organizada, o fomento a publicações impressas por associações representativas diversas etc. Outro ponto que merece ser problematizado é suscitado pela compa16 ração feita por Pierre Bourdieu entre o campo jornalístico (sobretudo a comunicação televisiva) e a pesquisa de opinião: aquele instauraria com os eleitores uma relação direta de modo a descartar todos os demais agentes (sejam sujeitos ou instituições e associações) legítimos a participar do processo de elaboração de opiniões, contribuindo para enfraquecer a autonomia do campo político e dos representantes eleitos. Assim, como se existisse um único canal de comunicação capaz de exercer poder no processo de criação de uma norma – o canal da comunicação televisiva. Talvez seja possível cogitar que esta concepção de poder enquanto meio de comunicação e que instrumentaliza uma vontade por ele produzida possa interferir de certa forma na ação política conforme concepção cunhada por Hannah Arendt. 16
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 115. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Para a autora, a ação política constitui uma das três experiências humanas básicas, integrando, ao lado do animal laborans e do homo faber, a 17 vita activa. Conforme nos ensina Celso Lafer , interpretando a autora, são características da ação política a necessidade de palavra e ação se converterem em política por meio de espaço que permite o aparecimento da liberdade. Ainda de acordo com Celso Lafer, o conceito de liberdade para a autora deve ser entendido como “liberdade para participar, democraticamente, do 18 espaço público da palavra e da ação” , sendo o espaço público frágil e informado pela verdade factual. Sendo este espaço informado pela verdade dos fatos, Celso Lafer destaca a preocupação da autora com a propaganda e ideologia ou outros fenômenos que ameacem a verdade factual. Ora, nesta perspectiva, cabe problematizar se a comunicação televisiva tratada até aqui não possui o condão de se constituir em um destes “outros fenômenos” capazes de alterar a verdade dos fatos e, consequentemente, comprometer o espaço público e ação política. Pierre Bourdieu diria que sim, já que para este a televisão (campo jornalístico) opera de modo a ocultar mostrando, a tornar insignificante o que é necessário mostrar e a construir 19 um sentido que não corresponde à realidade . Uma vez comprometido o frágil espaço público, também poderia restar comprometido o agir conjunto e a geração do poder, impedindo, por exemplo, a cidadania por meio da ação política e a possibilidade desta ação instrumentalizar o poder de modo reduzir a seletividade do campo político no âmbito da nomogênese jurídica (tendo então a norma jurídica posta através do poder decisório o conteúdo axiológico comunicado pela televisão e não pela ação política). Os problemas associados ao espaço público também foram analisados 20 por Jurgen Habermas , que estudando a imprensa (ou para Bourdieu o campo jornalístico) percebeu que esta “refuncionalizou” a participação de amplas camadas na esfera pública, todavia num movimento histórico associado a uma perda de caráter político desta esfera e a uma perda de uma forma de comunicação de um público (de esferas privadas políticas para uma comunicação pública de massa). Jurgen Habermas também está preocupado com esta perda de comunicação política na esfera pública e o aumento da influência política do campo jornalístico (esfera privada), o que, no entender da teoria de Hannah Arendt, constituiria um óbice ao exercício da liberdade – ou seja, da ação política. Consequentemente, a partir das bases construídas por este ensaio sobre poder, comunicação e nomogênese jurídica, corresponderia à criação de uma norma jurídica com interferência decisória de um poder
17
LAFER, Celso. Hannah Arendt – Pensamento, Persuasão e Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 31. Idem, p. 32. BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. p. 24. 20 HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário. p. 207. 18 19
do campo jornalístico, não exercendo (ou exercendo pouco) a ação política uma redução da seletividade no campo político.
Este breve ensaio tentou revelar o modo como se opera esta forma de poder como meio, presente na comunicação. Como dissemos, trata-se de uma forma sutil e quase oculta de poder, que necessita ser revelada para que o poder exercido pela comunicação televisiva no âmbito da nomogênese jurídica não seja considerado um dado mágico, dogmático, inerente à existência da televisão. A partir do momento em que este poder se torna visível e compreendido, abre-se a possibilidade de pensar formas para que o exercício da ação política seja relevante sob o ponto de vista do poder que interfere na criação da norma jurídica. Embora não se negue a importância da qualidade da representação (pelo contrário), atenção e estudos também devem ser voltados de modo a melhorar o exercício da comunicação na ação política, no campo da sociedade, para que seu poder como meio também possa interferir neste importante momento da nomogênese jurídica que é a objetivação de fatos e valores feita pelo poder. Exercendo a ação política um poder como meio que interfira nesta objetivação, teríamos normas jurídicas criadas com um conteúdo axiológico fruto de diversos campos da sociedade e não 21 do campo do jornalismo. Como lembra Robert Dahl , a comunicação é um elemento fundamental para o exercício e funcionamento da democracia. Embora Robert Dahl volte sua preocupação com a existência de meios de comunicação independentes e não controlados pelo Estado, também poderíamos incluir a necessidade de uma comunicação que extrapole estes requisitos, de modo a considerar também se os meios de comunicação disponíveis possibilitam que a ação política interfira decisoriamente na criação da norma jurídica ou se esta interferência é exercida exclusivamente pelo campo jornalístico. Diversas questões ainda permanecem abertas e devem ser objeto de estudos: como melhorar a ação política enquanto comunicação? há necessidade de regulamentação do campo jornalístico visando melhorar a esfera pública? como possibilitar que a comunicação do campo da sociedade seja mais efetiva na criação das normas? O fato é que normas jurídicas tem sido fruto de “índice de audiência” e não da ação política crítica e participativa.
21
DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. Brasília: UNB. p. 111. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Maria Amélia Renó Casanova Assessora jurídica e mestranda em Educação
Rosana Mara Brittes Assessora jurídica e mestre em Educação.
O Ministério Público velará pelas fundações. Assim determina o Código Civil, no seu artigo 62. Isto significa que o Ministério Público fiscalizará a constituição, a administração, a contabilidade, a realização dos fins para os quais a fundação foi criada, as alterações estatutárias, enfim, todas as atividades práticas de velamento, de cuidado, judiciais e extrajudiciais. O velamento realizado pelo Promotor de Justiça, não se resume a uma atividade burocrática, mas em um conjunto de atividades destinadas a defesa dos interesses sociais. No caso em estudo cumpre ao Ministério Público velar pelo patrimônio da entidade, evitando que o patrimônio fundacional remanescente, reverta para pessoas físicas ou jurídicas que intentem ser beneficiadas ilicitamente com os bens da entidade por ocasião da extinção desta. Embora o Código Civil Brasileiro apresente uma solução prévia acerca da destinação patrimonial quando da extinção de uma fundação muito se tem discutido acerca da destinação patrimonial quando da extinção de uma fundação, em especial se haveria possibilidade de ser revertido ao instituidor por disposição estatutária ou por inexistência de entidade com fins congê-
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neres ou semelhantes no Estado da Federação onde a fundação se encontra situada. Não se pretende com o presente estudo, oferecer respostas definitivas acerca do tema, e sim ampliar a discussão sobre a impossibilidade de reversão do patrimônio fundacional ao doador, com base na prática de atuação desenvolvida no Centro de Apoio das Promotorias das Fundações e Terceiro Setor do Ministério Público do Estado do Paraná, com vistas a garantir a finalidade primordial para qual o patrimônio foi destinado, a saber, atendimento às necessidades da sociedade. Os contornos para conceituar uma Fundação, estão na legislação civil, especificamente no art. 62, lembrando-se que o seu diferencial é a atribuição de personalidade jurídica a um patrimônio, com finalidades especificas, de cunho eminentemente social, destinadas exclusivamente ao atendimento de necessidades da sociedade. Para DINIZ (2008, p.100), fundações de direito privado são [...]universalidades de bens, personalizadas pela ordem jurídica, em consideração a um fim estipulado pelo fundador, sendo este objetivo imutável e seus órgãos servientes, pois todas as resoluções estão delimitadas pelo instituidor.
Na esteira desse entendimento, explica VENOSA (2009, p. 270) que “Nas fundações há de início um patrimônio despersonalizado, destinado a um fim”. Ainda o autor: Trata-se, portanto, de acervo de bens que recebe personalidade para realizar fins determinados. O patrimônio se personaliza quando a fundação obtém sua existência legal. Não é qualquer destinação de bens que constitui uma fundação. É necessário o ato de personificação.
RESENDE (2003), em estudo acerca das Fundações e o Novo Código Civil, vai além, ao estabelecer um elo entre o patrimônio e as finalidades a que este se destina, explicando que [...] uma fundação é um patrimônio que se transforma em pessoa jurídica, patrimônio este que pertence à sociedade desvinculando-se de seu instituidor e passando ao domínio público, em razão de sua finalidade social.
Por esta vertente, orientando que o patrimônio fundacional está aliado a uma percepção de finalidade social, se pode perceber o espaço que as fundações ocupam dentro da sociedade brasileira, papel de grande importância, dentro do terceiro setor.
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Percebe-se, portanto a importância de ampliar a discussão acerca da destinação do patrimônio de uma fundação que esteja em processo de extinção e sua impossibilidade de reversão ao instituidor.
O Novo Código Civil exige que, para que seja constituída uma fundação, o instituidor o faça por meio de escritura pública ou testamento. É neste ato que será realizada a dotação especial de bens livres pelo instituidor que, especificará o fim a que se destina a fundação e a maneira pela qual o acervo será administrado. A dotação inicial a que se refere a lei deve ser suficiente para que a fundação possa desenvolver suas finalidades sociais. Embora o Código Civil não tenha fixado uma regra objetiva a ser seguida pelo Ministério Público quanto à verificação da suficiência da dotação especial de bens, o dever de velamento implica em exigir dos instituidores a elaboração de projeto de viabilidade econômica da pessoa jurídica a ser criada. Importante ressaltar que dentre as formalidades de criação, embora essenciais, tanto a escritura pública de constituição ou o testamento não têm o condão de dar personalidade jurídica à fundação. Esta só emergirá a partir do registro do estatuto, ato este que deve ser submetido, previamente, à aprovação do Ministério Público, cabendo, em caso de indeferimento, recurso ao juiz, e se aprovado, registrado em Cartório próprio. Nesse sentido, VENOSA (2009, p. 274), aponta: O art. 64 dispõe que, quando a fundação for constituída por negócio jurídico entre vivos, “o instituidor é obrigado a transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dotados, e, se não o fizer, serão registrados, em nome dela, por mandado judicial”. Portanto, a promessa do instituidor que se traduz na dotação de bens ou direitos possui caráter irrevogável e irretratável, autorizando a execução específica.” (destaques do autor)
Após o ato formal de registro do estatuto é que a fundação passa a ter existência no mundo jurídico, a promessa de dotação especial de bens feito pelo instituidor na escritura pública passa a ter força de título executivo, e o instituidor ou a pessoa por ele designada poderá ser compelido a transferir a propriedade desses bens à nova entidade, caso não o faça espontaneamente.
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O Código Civil determina no artigo 69 que, quando da extinção da fundação os bens devem ser encaminhados a outra fundação, designada pelo juiz, com fim igual ou semelhante, salvo se houver disposição em contrário no ato constitutivo ou no estatuto. Entretanto emerge a problemática da destinação do patrimônio remanescente em especial quando o Estatuto for omisso ou dispuser de forma contrária à lei. Inicialmente apresentamos algumas soluções ofertadas pela legislação e doutrina quanto à destinação do patrimônio remanescente. E, em seguida elencamos hipóteses para a destinação patrimonial no caso de extinção de fundações. 1º hipótese: Quando no Estatuto ou na escritura pública de instituição há disposição específica. SABO PAES (2006.p.398), assim explica: O primeiro caminho a ser adotado como destino do patrimônio residual é verificar-se no estatuto da fundação, ou na sua escritura pública de instituição, se encontra presente manifestação do(s) instituidor(es) sobre o que deve ser feito, em caso de extinção da entidade, com os bens que dela remanescerem.
Neste caso, como conseqüência os bens devem ser encaminhados para a Fundação congênere ou semelhante designada, sem maiores questionamentos, desde que não contrarie a lei e tampouco que a destinação tenha por objetivo promover a reversão do patrimônio ao instituidor. 2ª hipótese: Caso o Estatuto da fundação nada disponha sobre a destinação patrimonial e exista outra fundação com fins iguais ou semelhantes. Neste caso, também não há maiores discussões, consoante disposição expressa do Código Civil, no artigo 69, no sentido de que o patrimônio remanescente será encaminhado à entidade congênere ou semelhante existente no Estado. 3ª hipótese: Inexistência, no Estado da Federação de outra fundação com finalidade igual ou semelhante. Neste caso a doutrina insinua-se pela declaração da vacância dos bens, para que estes sejam devolvidos à Fazenda Pública Estadual. PEREIRA (2004, p. 365), assim leciona: Se não existir outra fundação em condições de recolher os bens da extinta, a invocação dos princípios gerais de direito concluirá pela sua vacância e, tornados então vagos, devolvem-se à fazenda estadual como todos os desta natureza
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SABO PAES (2006, p. 398-399) perfilha o mesmo posicionamento: O terceiro caminho aventado pela doutrina, uma vez que dele não dispõe expressamente a lei, é no caso de inexistir no Estado onde se situa a fundação outra fundação com fins iguais ou semelhantes à extinta, apta a receber o patrimônio remanescente. Nesse caso, os bens que se tornaram vagos serão devolvidos à Fazenda do Estado ou do Distrito Federal.”
FIÚZA (2008, p. 83), ensina que, parte da doutrina, aplicando por analogia o artigo 61, § 2ª, do Código Civil, entende que os bens remanescentes devem ser devolvidos à Fazenda Pública da União ou Estado, independentemente da declaração de vacância 4ª. Hipótese: Quando a fundação foi instituída com finalidades específicas para atender aos funcionários de uma empresa. Uma prática comum no passado era a criação de uma fundação com o objetivo de proporcionar atividades assistenciais, culturais e recreativas aos funcionários de uma determinada empresa. Evidente que atualmente não se concebe a criação de uma fundação com tal finalidade; todavia ainda persistem fundações nesta situação. Exemplifique-se. A Fundação ZZ foi criada para proporcionar atividades assistenciais, culturais e recreativas para os funcionários da Empresa Z. Esta foi adquirida pela empresa X. Se não existem mais funcionários na empresa Z já que seus contratos de trabalhos foram vinculados à empresa X, a Fundação ZZ deve ser extinta pela perda da finalidade para a qual foi criada. Pergunta-se: para onde direcionar os bens remanescentes se o Estatuto não destinou, em caso de extinção, o patrimônio remanescente? Num primeiro momento pode se afirmar que não há entidade congênere ou semelhante. Daí como um primeiro caminho seria a declaração de vacância. Secundariamente percebe-se que esta fundação possui todas as características de uma Associação e que jamais deveria ter sido autorizada a sua existência no mundo jurídico como Fundação. Porém que outra solução jurídica poder-se-ia aplicar ao caso? NERY JUNIOR e NERY (2009, p. 275) entendem que Extinta a fundação, seu patrimônio deverá ser incorporado a outra entidade preferencialmente fundacional, com fins iguais ou semelhantes, salvo se houver outra disposição constante de seus estatutos.
No caso, e reitere-se somente neste caso, entende-se que é possível sejam encaminhados os bens remanescentes para a associação dos funcionários da empresa. Entretanto é fundamental que se avalie muito bem o caso concreto, e se o Promotor de Justiça ou o operador do direito entender pela
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inviabilidade do encaminhamento para a associação, deve optar pela declaração de vacância. É imperativo que o patrimônio remanescente, se destinado à associação dos funcionários, seja gravado com cláusula de inalienabilidade com determinação de que estes bens por ocasião da extinção da Associação sejam revertidos a uma fundação determinada, ou para um ente fundacional com finalidades semelhantes, ou seja, de fins assistenciais, culturais, etc. Quanto aos bens móveis estes podem ser cedidos em comodato para a associação beneficiária e, que seja incluída cláusula estatutária vedando alienação desses bens, cujo destino futuro será o igualmente o antes apontado. 5ª hipótese: Quando o Estatuto dispõe que o patrimônio da fundação deve retornar ao instituidor ou ainda que este seja revertido para a empresa deste em caso de seu falecimento ou da extinção da Fundação; Atualmente é vedado ao Ministério Público, responsável pelo velamento das fundações, acatar disposição estatutária com tal ingerência do instituidor. Neste passo, manifesta-se a doutrina de Rafael (1997, p.106): Se a clássica pergunta (Podem os bens retornarem ao meu patrimônio se a instituição não der certo?) for exarada pelo futuro instituidor, é motivo, mais que óbvio, para não se autorizar a criação da entidade, permitindo que a idéia amadureça com o passar do tempo.
Todavia a prática diária nos aponta hipóteses como esta, em especial nas Fundações antigas, onde o instituidor percebia a fundação como extensão de suas atividades empresariais. Dentro desta hipótese, emerge também o caso daquela fundação que surgiu com objetivo de proporcionar atividades culturais e recreativas aos funcionários de uma determinada empresa, cuja empresa instituidora é adquirida por um grupo empresarial o qual pretende a extinção da fundação com reversão dos bens para o patrimônio do adquirente. Há que se dizer que ao criar uma fundação o instituidor separa parte de seu patrimônio pessoal para colocá-lo a serviço de um determinado fim, em prol da sociedade. Com certeza este não foi um ato desorientado, mas sim é um ato pensado, que está registrado publicamente. Dos ensinamentos de PEREIRA (2004, p. 275), tem-se que [...] nunca será possível a distribuição ou partilha do acervo em proveito particular, nem é facultado aos dirigentes ou à assembléia que deliberou a extinção resolver ao seu alvedrio o destino de seu patrimônio.
No mesmo sentido é o entendimento de SABO PAES ( 2006, p. 399) [...] creio que no estudo da teoria das fundações não deve este ser o entendimento preponderante, de que o patrimônio fundacional, em caso de extinção, retorne ao domínio dos instituidores. E, assim, afirmo ba-
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seado no sentido social e público que deve haver quando instituidores disponham e destinem bens a favor de uma coletividade por intermédio da pessoa jurídica fundação.
Sabo Paes (206, p. 400) explica que, inicialmente, as fundações tinham como finalidade a caridade que talvez por isso tenha se priorizado na legislação pátria a uma atenção maior à vontade do instituidor benemérito. Incabível tal posicionamento nos dias atuais, firme-se que os bens foram excluídos da propriedade do Instituidor e, por conseguinte de seus herdeiros, não existindo hipótese alguma de retorno ao ex-proprietário. Por outro lado evidencia-se que a disposição estatutária possibilitando o retorno do patrimônio fundacional ao instituidor fere as disposições básicas do instituto da doação. Isto porque, entende-se que a doação destinada à criação de uma fundação refere-se em verdade a uma doação modal ou com encargo, regida pelo Código Civil, no artigo 553, caput, parágrafo único, dispondo que “O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.” Venosa (2007, p. 105) esclarece acerca do instituto da doação modal: Doação modal, onerosa ou com encargo é aquela na qual a liberalidade vem acompanhada de incumbência atribuída ao donatário em favor do doador ou de terceiro, ou no interesse geral.
No caso, considerando o caráter social alcançado por uma fundação, o patrimônio desta Entidade constitui uma doação em benefício da coletividade. Evidencia-se então que a doação de que ora se trata, foi realizada para que se criasse uma fundação. Assim, criada a fundação, cumpriu-se o encargo e, uma vez cumprido não é possível a reversão aos doadores/instituidores, tampouco revogação da doação. Só é possível a reversão em prol da coletividade, ou seja, para outra entidade de fins iguais ou semelhantes, a critério do juiz. Portanto não é possível em hipótese alguma que os bens possam retornar ao seu instituidor, tampouco ser transferida para particulares. O Ministério Público ao aprovar o estatuto da Entidade Fundacional deve observar, com cautela, a destinação dos bens em caso de extinção, concluindo sempre que é uma aberração, diante da finalidade social, que os bens da fundação possam ter destino distinto que não seja outra fundação ou entidade congênere.
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Sérgio Said Staut Júnior Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná - UTP. Professor da Escola da Magistratura Federal - ESMAFE, da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR e do Centro de Estudos Jurídicos do Paraná - Curso Prof. Luiz Carlos. Advogado.
Um importante debate que se observa atualmente no direito é o resgate da noção de princípio e o seu papel no espaço jurídico. Discute-se, entre outras questões fundamentais, qual é o seu significado, suas características e a sua extensão, qual o papel normativo desempenhado pelos princípios no âmbito de uma ordem jurídica, quais são as suas fontes e as suas manifesta1 ções legislativas . Essa discussão assume importância, ainda maior, se for colocada na 2 sua relação com os direitos humanos . Muitos dos direitos humanos encontram nos princípios a sua representação (positivação) e a sua própria fundamentação. Inúmeras preocupações teóricas e práticas acerca dos direitos humanos perpassam, necessariamente, pela temática dos princípios. Quais são os direitos humanos, como se dá a sua fundamentação, se estes direitos são de natureza moral ou são criações positivas, se são universais ou não, 1
Um interessante trabalho sobre os múltiplos significados da palavra princípio pode ser encontrado em: CARRIÓ, Genaro R. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970. Sobre a natureza normativa dos princípios jurídicos e sua indeterminação verificar: COMANDUCCI, Paolo. Principios jurídicos y indeterminación del derecho. Doxa, 21, vol II, p.89 -104 (1998). 2 Nesse sentido, a obra: CARRIÓ, Genaro R. Los Derechos Humanos e su proteccion: distintos tipos de problemas. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1990. Nessa obra, Carrió apresenta um panorama dos cinco principais focos de problemas envolvendo os direitos humanos e sua tutela, são eles: i) definições conceituais (significado e extensão da expressão Direitos Humanos; ii) a proteção dos direitos humanos no âmbito nacional; iii) a consagração e tutela internacional dos direitos humanos; iv) a tutela dos direitos humanos em situações de emergência; v) os problemas do subdesenvolvimento e o seu impacto nos direitos humanos. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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como implementar e garantir a sua tutela (nacional e internacional), quais os instrumentos legislativos e interpretativos disponíveis nessa área, entre outros questionamentos que têm ocupado boa parte da pesquisa científica na área jurídica. Temas que, em maior ou menor medida, vinculam os direitos humanos ao estudo e à reflexão sobre os princípios. Evidentemente que o presente trabalho não tem qualquer pretensão de responder a todos esses questionamentos. Qualquer tentativa nesse sentido, além de muito complexa, seria apenas provisória. O que se quer tão somente com este trabalho é destacar que a “atual descoberta” dos princípios pelo direito é muito mais uma “redescoberta”. A expressão que deve ser colocada em evidência, em matéria de princípios jurídicos, é a palavra “resgate” ou “revalorização” dos princípios jurídicos. A justificativa para isso se dá pelo fato que é na modernidade, especialmente após o processo de codificação, que o direito passa por um profundo processo de redução e simplificação, como será observado. Essa redução radical de complexidade do fenômeno jurídico acaba por desprezar outras manifestações do direito e de direitos que propiciam uma ordem normativa aberta e plural. As práticas, os costumes e os princípios são excluídos do universo jurídico ou colocados em segundo plano como fontes apenas subsidiárias do direito. A própria atividade interpretativa, fonte por excelência do direito na Idade Média, após a codificação francesa do século XIX, começa a ser vista, cada vez mais, com profunda desconfiança. Os princípios jurídicos, assim como as cláusulas gerais, ao serem resgatados, principalmente nos principais textos constitucionais do século XX, possibilitam uma maior abertura do ordenamento jurídico, valorizam a atividade do intérprete e do aplicador do direito, bem como permitem um maior diálogo do ordenamento jurídico com as demais esferas sociais (econômicas, políticas, culturais, etc.) A Constituição, como afirma Paolo Grossi, “assumiu, especialmente nos últimos anos, um papel de mediadora entre o pluralismo dos valores de uma 3 sociedade e a surdez dos textos legislativos.” . A abertura do universo jurídico é possibilitada ou reforçada, dependendo do ordenamento analisado, pela valorização de uma ordem jurídica que se preocupa com os princípios.
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Sobre o papel da Constituição Italiana de 1947 e das Constituições do período pós-segunda guerra mundial, Paolo Grossi afirma que a “Constituição pertence indiscutivelmente à dimensão jurídica, já que ordena juridicamente a sociedade civil: não se trata de uma série de comandos secos e insignificantes (...) mas sim de princípios e regras de validade absolutamente e extremamente ordenadoras.” (....) O texto constitucional (...) não é portanto uma carta que se impõe a partir de cima sobre a sociedade, mas é nela radicada, e pode muito bem ser apresentada ao leitor iniciante como a ponta emergente de um continente em sua maior submerso (do qual, porém, aquela ponta se nutre continuamente). Na Constituição se fundem texto e experiência, ao menos nos ‘princípios fundamentais’ e na ‘primeira parte’, por ter aquele texto pretendido ser somente o instrumento de identificação de valores profundos.” (p.81). (GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 82-83).
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É com o movimento de codificação na Europa que a lei estadual come4 ça “a monopolizar a atenção dos juristas” . Na França, após 1804, com a elaboração do Code Civil, também chamado de Código de Napoleão, o encantamento com a atividade do legislador assume uma importância sem precedentes na história. Esse evento, de certa forma, representa um momento dramático no percurso histórico do direito. É fruto de um processo de redução e simplificação do fenômeno jurídico ocorrido na Modernidade. Segundo Paolo Grossi, 5 esse processo pode ser chamado de “Absolutismo Jurídico” que “significa uma civilização jurídica que perde (ou diminui muito) a percepção da complexidade; uma civilização jurídica que se tornou uma ordem simples, extremamente coerente em suas linhas essenciais, forte em uma sua lógica 6 rigorosa, mas muito pouco sensível ao devir e, sobretudo, à mudança.” O direito, cada vez mais, passa a ser um produto da vontade do legislador, uma manifestação do poder político, perdendo progressivamente com isso a sua dimensão plural e social. Como nos ensina Paolo Grossi, “no auge da idade moderna, a esfacelada, complexa e talvez complicada paisagem sócio-política e cultural é abandonada em troca de uma concepção monopolista e absorvente do poder político, o direito passa de nervura da inteira sociedade civil a simples nervura 7 somente do poder político” . 8 Nesse espaço e tempo, a “forma código” , constituindo “a concretiza9 ção legislativa da volonté générale” , torna-se o modelo ideal de Direito, ou melhor, não há Direito e direitos que estejam para além dos monumentos legislativos codificados. Ao intérprete e à doutrina cabe apenas o culto à Lei, numa atividade de submissão ao arbítrio do legislador.
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HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 376. 5 GROSSI, Paolo. Assolutismo giuridico e diritto privato, Milano: Giuffrè, 1988. 6 GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Renovar: Rio de Janeiro, 2006, p. 131. 7 GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Renovar: Rio de Janeiro, 2006, p. 142. Deve ser observado, entretanto, como alerta António Manuel Hespanha, que a “ideia de que na sociedade há, ou deve haver, apenas um centro político teve um parto longo e difícil no pensamento político ocidental.” (HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004, p. 28). Observa-se que o processo de centralização administrativa e de monopolização do direito pelo Estado não ocorrem de forma concomitante e automática com o surgimento dos Estados nacionais. Isso significa dizer que esse processo de apropriação do poder político e jurídico por parte do Estado foi construído historicamente. 8 CAPPELLINI, Paolo. Il codice eterno – la Forma-Codice i suoi destinatari: morfologie e metamorfosi di un paradigma della modernità. “in” CAPPELLINI, Paolo; SORDI, Bernardo. Codici: una riflessione di fine millennio. Milano: Giuffrè, 2000. 9 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 376. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Para entender um pouco melhor o papel que a “Lei” (especialmente a “regra”) assume na formação do pensamento jurídico moderno e a sua pro10 funda diferença em relação a outras formas de se pensar o fenômeno jurídico ao longo da história, parece ser necessário ou interessante trabalhar um pouco, ainda que em linhas muito gerais e sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, com a passagem da maneira medieval de compreender o direito (e o seu papel na sociedade) para uma forma hegemônica de entendêlo na Modernidade.
A sociedade medieval européia, em linhas muito gerais, é identificada como uma sociedade de ordens em que cada integrante de uma comunidade possui o seu papel dentro da estrutura social, como um órgão desempenhando uma função em um corpo. Trata-se de uma organização que valoriza o coletivo e que, por isso, atribui o sentido ao todo e não ao individual. Nas palavras de Bartolomé Clavero, “los individuos existirían tan sólo por modo secundario en cuanto integrantes de tal o cual ordo, estamento, corpus o cualquier otra entidad colectiva. Estas otras entidades, y no por sí mismos los individuos, serían enton11 ces unos sujetos sociales.” Essa sociedade caracteriza-se por ser profundamente estratificada e hierarquizada, desigual por natureza, mas auto-organizada e ordenada em virtude das diferentes e específicas funções aceitas e desenvolvidas por cada 12 órgão social . No medievo não existe, portanto, a figura do indivíduo livre e autônomo, construtor e senhor do seu mundo, assim como não existe a presença de um ente centralizador e monopolizador de todo o poder político ‘legítimo’, denominado “Estado Soberano”.
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Como demonstra Adriano Cavanna, “Il tipico modello adottato dai vigenti regimi giuridici continentali è il modello del diritto positivo codificato. Esso non è affatto tanto ovvio, intuitivo e scontato come la immaginazione del comune cittadino irriflessivamente presuppone. Non ha costituito sempre (e nemmeno costituisce ancor oggi) l’unico schema organizzativo di una esperienza giuridica evoluta. Basterebbe pensare a come si sono organizzati nel passato o a come appaiono organizzati nel presente altri ordinamenti politico-sociali ad elevato livello di strutturazione, per esempio la Roma classica o l`Inghilterra medievale e moderna: in questi due modelli di case law non scritta la norma nasce dalla soluzione dal caso e non la soluzione dal caso da una norma precostituita.” (CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. Vol 2, Milano: Giuffrè, 2005, p. 33-34.) 11 CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution: cultura y lengua constitucionales. Madrid: Editorial Trotta, 1997, p. 12. 12 FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p. 32. Ainda, segundo Hespanha, “O pensamento social e político medieval é dominado pela idéia da existência de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objetivo último que o pensamento cristão identificava com o próprio Criador.” (HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 101).
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Conforme explicita Ricardo Marcelo Fonseca, “a idéia de um comando social legítimo e unificado, que fosse fonte de todo o poder e de toda autoridade social, era completamente estranha ao mundo tradicional – intrinse13 camente fragmentado e descentrado.” O Estado é uma invenção moderna e, como demonstra Paolo Grossi, a ordem jurídica medieval se caracteriza, especialmente, por ser um direito sem Estado (no sentido moderno do termo). Em uma sociedade como essa é absolutamente impossível pensar em uma única fonte de Direito e, conseqüentemente, sequer imaginar um Código unificador de toda a regulação jurídica legítima de uma sociedade. Os tempos ainda não são favoráveis ao aparecimento de uma forma muito espe14 cífica de compreender o Direito como aquela da Escola da Exegese . Deve ser ressaltado que o Direito só pode ser compreendido na sua 15 profunda historicidade , e assim deve ser observada e analisada essa etapa do pensamento jurídico moderno. Uma leitura possível e interessante que caracteriza muito bem a ordem jurídica medieval e a passagem dessa forma de compreender o Direito para a mentalidade jurídica moderna é encontrada na obra “L’Ordine Giuridico Me16 dievale” , de Paolo Grossi. Na análise do professor italiano, a ordem jurídica medieval se caracteriza por um “vazio político relativo”, como já foi destacado, um Direito sem Estado no sentido habitual utilizado hoje. Deve ser ressaltado que “a tipicidade medieval reside acima de tudo neste relativo vazio, sobre (...) aquela
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p. 33. 14 Conforme Adriano Cavanna, “il concetto di codificazione è completamente estraneo al Medievo, che pure è l’epoca la quale ha vissuto nel mondo più integrale la dimensione giuridica dell’esistenza associata. (...) È naturale: nel pensiero dell’uomo medievale non c’è posto né per il concetto di unità né per quello di statualità del diritto. Ancor meno vi trova spazio un’idea politico-costituzionale di sovranità (sia questa di un principe o di una nazione) da cui consegua che unico produttore del diritto sia lo Stato.” (CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. Vol 2, Milano: Giuffrè, 2005, p. 35.) É nesse percurso histórico de redução do fenômeno jurídico que surge a Escola da Exegese. Segundo Norberto Bobbio, algumas causas determinantes para o aparecimento e consagração, na França, da Escola da Exegese foram: i) o próprio fenômeno da codificação (com as suas conseqüências); ii) a mentalidade dos juristas da época dominada pelo princípio de autoridade (a norma é fruto da vontade do legislador, decorrência direta da autoridade do soberano, expressa de maneira segura e completa nos códigos); iii) a doutrina da separação dos poderes (e a decorrente impossibilidade de o juiz criar direito, ou seja, o magistrado deveria ater-se ao que estava expresso no texto legal); iv) o princípio da certeza do direito (um direito simples e seguro de fácil compreensão); e v) uma profunda pressão política na reorganização do ensino jurídico nas instituições superiores de direito, com o intuito de que fosse ensinado apenas o direito positivo, localizado evidentemente nos textos legislativos codificados. (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 78 - p. 83). Um trabalho muito interessante sobre a Escola da Exegese e suas principais características pode ser encontrado em: NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Vol. 2, Coimbra: Editora Coimbra, 1995. 15 Compreender o direito na sua radical inserção na História, como ensina Paolo Grossi, “retira o caráter absoluto das certezas de hoje, relativiza-as pondo-as em fricção com certezas diferentes ou opostas experimentadas no passado, desmitifica o presente, garante que sejam analisadas de modo crítico, liberando os fermentos atuais da estática daquilo que é vigente e estipulando o caminho para a construção do futuro.” (GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 25). 16 GROSSI, Paolo. L’Ordine Giuridico Medievale. 11ª ed., Roma: Laterza, 2004. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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incompletude do poder jurídico medieval, entendendo-se por incompletude a falta de qualquer vocação totalizante do poder político, sua incapacidade de pôr-se como fato global e absorvente de todas as manifestações sociais, sua realização no processo histórico medieval cobrindo apenas certas zonas das relações intersubjetivas e consentindo em outras – amplíssimas – a pos17 sibilidade de ingerência de poderes concorrentes.” A ordem jurídica medieval nunca possuiu a pretensão moderna de dar conta de toda a realidade com um sistema legislativo de regras e, muito menos, concebeu a possibilidade de centralizar a produção do Direito em uma única fonte, como a estatal. Como nos esclarece Paolo Grossi, “a ausência do Estado (...) tira do direito a sua ligação com o poder e a sua função de controle social, torna-o livre para se reaproximar dos fatos primordiais – naturais, sociais e econômicos –, para tentar ordená-los num pleno respeito à 18 sua natureza.” O direito está enraizado nos estratos mais profundos dessa sociedade e é aceito por ela como algo natural. A ausência do Estado e a desvinculação relativa do poder político com o Direito são verificadas em todo o período medieval, da primeira Idade Média (aproximadamente do século V ao século XI), com o seu direito profundamente marcado por uma praxe consuetudinária (usos, costumes e práticas ligados a grupos e comunidades), à segunda Idade Média (a partir do século XI, com o trabalho dos glosadores e posteriormente dos comentadores), com o desenvolvimento de uma fase muito rica da história do pensamento jurídico que dominou, especialmente, o cenário jurídico europeu ocidental a partir do segundo medievo. Nessa sociedade de poderes fragmentados, o que se verifica é um Direito plural por natureza que se desenvolve no seio da sociedade, muito além dos poderes políticos instituídos. Esse pluralismo efetivo permitiu, por exemplo, que na segunda Idade Média diversas formas de regulação social tivessem uma convivência pacífica, uma certa compatibilização ou harmonização. Os direitos locais conviviam com o “direito comum”. Grossi explica que essa ordem jurídica é denominada Direito Comum “seja porque a sua projeção geográfica era comum a todas as terras civilizadas, realizando uma espécie de unidade jurídica européia, seja porque constituía a absorção da sapiência jurídica romana e canô19 nica.” Analisando o Direito Comum (Ius Commune) constituído na baixa Idade Média, ou segunda Idade Média, com base no trabalho dos glosadores e, posteriormente, dos comentadores, Hespanha identifica algumas características fundamentais dessa doutrina jurídica: (i) a utilização do direito justinia-
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GROSSI, Paolo. L’Ordine Giuridico Medievale. 11ª ed., Roma: Laterza, 2004. p. 41 (tradução livre). GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.43. GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 45-46.
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neu (um direito romano antigo reinterpretado) combinado com o direito canônico e com uma certa influência dos direitos locais; (ii) um direito vigente em toda a Europa (ocidental); (iii) trabalhado com métodos e formas de raciocinar comuns; (iv) ensinados de forma idêntica em praticamente toda a Europa (ocidental); e (v) disseminado por meio de uma língua, na época, uni20 versal: o latim. Um direito bastante rico e complexo em virtude da pluralidade de ordens normativas, factual, marcado pela valorização dos costumes e pela práxis, em que o personagem principal é o intérprete e não o legislador. O direito é muito mais interpretação que ato voluntário, é muito mais autoorganização do que coerção. Além disso, uma ordem jurídica com uma presença marcante da Igreja (o direito comum é constituído em parte pelo direito canônico, como já foi observado), sem a figura central do sujeito de direito (categoria tipicamente moderna). Comunitarismo e reicentrismo também marcam a ordem jurídica medieval, um ordenamento baseado na idéia de perfeição da comunidade e não na perfeição do indivíduo, um direito que decorre muito mais da natureza das coisas do que da vontade de uma pessoa. Profundamente diferente da ordem jurídica medieval é a ordem jurídica moderna, caracterizada, de um modo geral, pela presença totalizante do Estado. Um direito do Estado e apenas proveniente desse Estado. O Direito passa a ser a voz do poder político e perde, em larga medida, a sua autonomia. Com esse processo de apropriação do direito pelo poder político na Modernidade, o que se observa claramente nessa nova ordem é a tendência 21 para um rigoroso monismo jurídico . Para além do sistema de regulamentação estabelecido ou construído no âmbito do Estado parece não existir ordem jurídica legítima. Tem-se, então, um direito muito preocupado com a redução da complexidade, com tendência à abstração e simplificação. Ser jurista na Modernidade, em algum sentido, passa a ser mais fácil que na Idade Média.
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HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 121. 21 Nas palavras de Antônio Carlos Wolkmer: “Distintamente da ordem jurídica feudal, pluralista e consuetudinária, o Direito da sociedade moderna, além de encontrar no Estado sua fonte nuclear, constitui-se num sistema único de normas jurídicas integradas (“princípio da unicidade”), produzidas para regular, num determinado espaço tempo, os interesses de uma comunidade nacionalmente organizada.” (WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Omega, 1994, p. 54.) RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Um direito que, apesar das inúmeras “mitologias jurídicas” produzidas, se vangloria do fato de ser um direito laico e do indivíduo, fruto do trabalho “democrático” (ou não) de um legislador (supostamente) representante do “interesse geral”. No entendimento de Michel Villey, estas são exatamente as marcas do pensamento jurídico moderno: a laicidade e o individualismo. Conforme explica o autor, por “meio da laicidade, o direito moderno se opõe ao direito clerical da alta Idade Média, àquilo que todo o direito da Idade Média, até o 23 seu final, tem de sacro.” Além disso, o individualismo é “o que o pensamento jurídico moderno tem de mais específico: é o individualismo que opõe o direito moderno não só às concepções dominantes da Idade Média, mas também às doutrinas clássicas da filosofia do direito da Antiguidade (ou se24 ja, sobretudo de Aristóteles)” . O direito na modernidade nos países de “Civil Law” passa a ser visto cada vez mais como um ato voluntário de um sujeito (legislador), ou seja, passa a ser compreendido como comando normativo e não mais como autoorganização. Consagra-se uma noção potestativa da ordem jurídica, e, com isso, o direito é retirado dos estratos mais profundos da sociedade sendo aprisionado na figura do Estado. 25 É exatamente nesse contexto histórico que a atividade legislativa ganha uma importância sem precedentes na história, especialmente na França do início do século XIX, com o fenômeno da codificação. O Direito por excelência é sintetizado por um conjunto de regras (não de princípios) e estas regras têm a pretensão de esgotar todo o fenômeno jurídico. É conhecida a clássica citação de um importante exegeta francês chamado Bougnet: “Je ne connais pas le droit civil, je n`enseigne que le code de Napoleón.” Estas palavras resumem muito o que foi o direito no período histórico pós Revolução Francesa. 22
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Conforme Grossi, “todo esse processo recebe uma refinada mitificação, ou seja, é fundado em crenças absolutas e indiscutíveis: se, antes da Revolução, o Príncipe legislador foi habilmente desenhado como intérprete sereno e alheio à felicidade pública, o único imune a paixões, capaz de ler a natureza das coisas, e, por isso, o único válido produtor do direito, com a Revolução o controle e a hierarquia foram revestidos até mesmo com uma aura democrática graças à axiomática identificação (ou se se preferir, à suprema ficção) da lei como expressão da vontade geral.” (GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 50). Para uma análise mais profunda dessa idéia verificar também: GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. 23 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 175. 24 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 177. 25 Conforme Grossi, “O legislador, sofrendo um processo de forte idealização, apresentava-se como uma espécie de moderno rei Midas, acima das paixões humanas, com o olhar constantemente voltado à felicidade pública; e a atenção se deslocava, de modo arriscado, do conteúdo à forma da lei: o importante era que o ato normativo proviesse de um determinado sujeito – aquele investido pelo poder supremo da soberania – com a única garantia do respeito a um certo processo e a uma adequada publicidade.” “O elogio da lei consistia sobretudo no elogio da norma, certa e clara, ficando absorvido o problema do seu conteúdo em uma confiança ilimitada no legislador, uma confiança que logo se revelaria mal depositada, como teria demonstrado com eloqüência o uso e o abuso do instrumento legislativo feito não só pelas ditas democracias burguesas, como também pelos regimes totalitários do século XX.” (GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 131).
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Conforme observado, o fator determinante para o aparecimento dessa maneira de compreender o direito (baseado em larga medida em um sistema praticamente fechado de regras) é a formação dos Estados Modernos na Europa e a progressiva dissolução da sociedade medieval e da sua ordem jurí26 dica . Especialmente no Estado francês a ordem jurídica medieval é atacada com veemência pela cultura jurídica burguesa. Acusada de ser uma ordem classista, desigual, retrógrada, injusta, complexa e contraditória, a mentalidade jurídica medieval perde quase totalmente a sua legitimidade após a Revolução Francesa e é praticamente sepultada após o movimento de codificação. No discurso jurídico burguês, “a nova ordem sociopolítica deve ser democrática, em oposição à decrépita ordem classista, exprimindo a vontade 27 geral da nação” e “a lei identifica-se com a vontade geral; o princípio de legalidade, ou seja, a conformidade de cada manifestação jurídica com a lei, 28 torna-se a regra fundamental de toda democracia moderna.” A legitimidade dos novos Códigos está garantida. Verifica-se a consagração de uma nova mentalidade jurídica, a moderna, um acontecimento que do ponto de vista historiográfico é relativamente recente. Nesse direito pós-revolucionário, marcado por sua pretensão à totali29 dade e universalidade, bem como por sua estatização, a “forma Código” (o Código no seu modelo moderno, filho do Iluminismo e de inspiração jusna30 turalista racionalista) é a grande marca dessa nova mentalidade jurídica. Nessa nova forma de compreender o direito, “aberturas” eventuais no universo jurídico, propiciadas por um sistema de princípios e cláusulas gerais, são vistas com desconfiança. A maior abertura admitida pela utilização de princípios e pela possibilidade de criação e desenvolvimento do direito atra-
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Como demonstra Adriano Cavanna, “lungo i secoli XVII e XVIII, l`atteggiamento ideologico degli ambienti di governo e della parte informata dell’opinione pubblica diviene a poco a poco antigiurisprudenziale: l’antico pluralismo viene ad essere negativamente concepito come particolarismo; l’autorità mediatrice del ceto giuridico perde credibilità e le opinioni dottrinali, da autoritativo parametro di certezza che erano, appaiono null’altro che opinioni private, cioè arbitrarie. Il diritto comune comincia ad assumere le parvenze di regime impraticabile e inattuale (...)” (CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. Vol 2, Milano: Giuffrè, 2005, p. 41.) Nesse mesmo sentido, verificar: GROSSI, Paolo. Dalla società di società allá insularità dello stato fra medievo ed età moderna, Napoli: Istituto Universitario Suor Orsola Benincasa, s/d. 27 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 54. 28 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 54. 29 Para uma reflexão crítica e muito interessante sobre o papel do Código na Modernidade, verificar CAPPELLINI, Paolo; SORDI, Bernardo. Codici: una riflessione di fine millennio. Milano: Giuffrè. 2000. 30 Como explica Paolo Grossi: “O jusnaturalismo vem a desembocar no mais agudo positivismo jurídico, e o Código, mesmo se portador de valores universais, é reduzido à voz do soberano nacional, à lei positiva desse ou daquele Estado.” GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas ..., p. 114. Hespanha fala em “positivação da razão”. (HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 377). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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vés da atividade interpretativa é compreendida, nesse tempo e espaço, como um retorno ao Antigo Regime. Até o final do século XVI o que era regulado e normatizado fora do poder soberano, pela própria sociedade, mediante práticas e costumes, passa a ser, cada vez mais regulamentado por uma única fonte abstrata e geral. A “forma Código” tem a pretensão de regular todas as zonas do ordenamento jurídico e, na explicação de Grossi, o “drama do planeta moderno consistirá em realizar o processo de absorção de todo o direito na lei, na sua 31 identificação na Lei.” Uma fonte (o código) que se caracteriza por uma tipicidade inconfundível: i) tende a ser a fonte unitária (forte monismo jurídico – em que a lei proveniente do Estado é a fonte quase exclusiva do direito); ii) tende a ser fonte completa (toda a experiência, toda a realidade é reduzida a um sistema de regras jurídicas); iii) tende a ser fonte exclusiva (o direito estatal como a única fonte legítima de direito, materializada no Código). Trata32 se, portanto, de um processo radical de redução do fenômeno jurídico . Com a codificação moderna (impulsionada, entre outros fatores, pela hegemonia da burguesia, pelo desenvolvimento do capitalismo e do liberalismo econômico e pela constituição dos Estados Liberais) o Direito (especialmente com a codificação francesa) passa a ser muito mais loi e sempre 33 menos droit . Os princípios, nesse momento, não são muito bem-vindos.
A mentalidade jurídica moderna, centrada na idéia de um Estado produtor de todo o direito e de um direito que se esgota em um conjunto de regras totalmente provenientes dessa fonte, já no final do século XIX e início do século XX começa a apresentar muitos problemas decorrentes, especialmente, da complexidade crescente dessa sociedade. Como bem observa Paolo Grossi, “Diferentemente da época medieval, que se estende por quase um milênio, o moderno tem uma duração muito mais breve: seus embriões afloram no século XIV (que é todavia um século de transição), mas já no século XX o seu modelo de interpretação da realida34 de sociojurídica se derrete como neve ao sol” . As formas e os modelos jurídicos modernos já não são mais suficientes para aquela realidade. Os motivos que contribuíram para a crise da mentalidade jurídica moderna são inúmeros. Apenas a título de exemplo, poderiam ser listados alguns fatores decisivos como a perda progressiva da centralidade do Estado
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GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 44. Segundo Grossi, “Como norma que presume prender a complexidade do social em um sistema fechado, o Código, toda codificação, somente pode traduzir-se em uma operação drasticamente redutiva (...)” GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 104. 33 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 96. 34 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 57. 32
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na regulação dos conflitos sociais (em uma sociedade bastante complexa e contraditória) e a retomada da consciência por parte de parcela da sociedade que o poder não é produto tão somente do poder soberano. Além disso, com o crescimento exponencial da atividade legislativa, “os Códigos, leis gerais nas quais se refletia bem a mais genuína consciência jurídica burguesa, são colocados ao lado, mas também sufocados e quase expropriados por atos legislativos especiais provenientes de necessidades 35 particulares.” Verifica-se, ainda, outro fenômeno, característico do século XX, que é 36 “a multiplicação e a sobreposição de diversos estratos de legalidade” tanto na ordem jurídica intra-estatal com o aparecimento das novas cartas constitucionais, como na ordem jurídica internacional com as novas estruturas comunitárias internacionais. Outro dado importante, “diz respeito ao fenômeno de privatização e de fragmentação das fontes de produção do direito, que tem seu aspecto mais vistoso na hoje tão discutida globalização jurídica. O monopólio estatal das fontes, santuário e baluarte da civilização jurídica saída da Revolução de 89, ainda que reste oficialmente proclamado e pretendido, é cada vez mais pro37 fanado e eludido.” Todos esses fatores contribuem para o resgate dos princípios e de sua importância para o direito. Com a complexidade das relações sociais, o próprio Estado-legislador se dá conta de que não é possível responder a todos os conflitos sociais com um simples conjunto de regras. Os princípios, com a sua porosidade e abertura à realidade, são importantes nesse novo contexto histórico. As Constituições do século XX, especialmente após o segundo pós-guerra, e as crescentes declarações de direitos humanos são repletas de princípios e de cláusulas gerais dotados de força normativa e aplicabilidade. O novo cenário normativo internacional também é construído tendo como um dos seus pilares fundamentais uma “ordem principiológica”. Outro “sintoma” do resgate do papel dos princípios na ordem jurídica atual é a quantidade de trabalhos acadêmicos e discussões doutrinárias acerca do tema. Sem dúvida, como demonstra Paolo Comanducci, “hoy en día, hay un acuerdo bastante ampio, detrás de las diferentes definiciones y detrás de la variedade de los términos empleados, en considerar los principios como una clase de normas: respectivamente, los principios jurídicos
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GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 59. GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 59. GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 60. Nas palavras de Hespanha, “a globalização económica e comunicacional desvalorizam também o Estado e o seu direito, ao proporem formas de organização política e de regulação que atravessam as fronteiras dos Estados, desafiando aquilo que era considerada a soberania destes.” (HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. 2ª ed., Almedina: Coimbra, 2009, p. 29). 36 37
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como una clase de las normas jurídicas, y los principios morales como uma clase de las normas morales. En particular, los principios han sido individua38 lizados diferenciándolos de las reglas de conduta.” Nesse sentido, é importante procurar uma individualização dos princípios no contexto jurídico contemporâneo, ainda que em linhas gerais.
Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, Genaro R. Carrió estabelece uma caracterização muito interessante acerca dos princípios. Partindo da “lei da vantagem” do jogo de futebol, Carrió traça um paralelo entre essa “norma” e os princípios, afirmando que muitas das características da “lei da 39 vantagem” do jogo de futebol são verificadas igualmente nos princípios . A “lei da vantagem” é um tipo de norma que versa sobre a aplicação de outras normas, de outras regras do jogo de futebol. Além disso, a “lei da vantagem” é dirigida primordialmente aos árbitros, ao juiz do jogo, e serve para justificar a introdução de exceções às regras de primeiro grau, ou seja, restringe o alcance e molda a aplicação das regras de primeiro grau. Como norma que apresenta certo grau de neutralidade tópica, a “lei da vantagem” apresenta certa indiferença de conteúdo. Isso significa que a “lei da vantagem” pode ser aplicada para ambos os lados e não serve para favorecer um dos “times” ou proteger apenas o “time” que está na frente ou que está perdendo. Todas essas características, em maior ou menor medida, são verificas igualmente nos princípios. Segundo Genaro R. Carrió são quatro as características principais dos princípios. Inicialmente, os princípios “Presuponen la existencia de otras reglas y 40 se refieren a ellas. Son, por eso, pautas de segundo grado.” Como a “lei da vantagem”, os princípios exercem uma influência enorme na aplicação de muitas outras normas, especialmente na aplicação das regras. Os princípios, conforme Carrió, “Se dirigen a quienes se encuentran en situación de justificar en concreto decisiones, reclamos, defensas, etc. con base en las reglas de primer grado. Con muchas salvedades y precisiones podríamos decir que se dirigen primordialmente a los jueces y solo secunda41 riamente a los súbditos.” A lei da vantagem é interpretada e aplicada pelo árbitro da partida. O mesmo é válido para os princípios, são dirigidos especialmente ao intérprete – que, no caso concreto, geralmente é o juiz (em conflitos decididos pelo Judiciário). 38
COMANDUCCI, Paolo. Principios jurídicos y indeterminación del derecho. Doxa, 21, vol II, p.89 -104 (1998), p. 90. 39 CARRIÓ, Genaro R. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970. 40 CARRIÓ, Genaro R. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970, p.24. 41 CARRIÓ, Genaro R. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970, p.24.
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Além disso, os princípios “Proporcionan una guía acerca de cómo y cuándo han de usarse las reglas sobre las que versan; qué alcance darles; cómo combinarlas; cuándo otorgar precedencia a algunas de ellas etc. Además, y en ciertas circunstancias, indican cómo colmar las lacunas que dejan ciertos grupos de reglas de primer grado o, con otras palabras, cómo justificar, dentro del processo de decisión, nuevas reglas específicas para dar so42 lución – lato sensu – a casos no contemplados por aquéllas.” Os princípios são poderosas ferramentas de interpretação e de integração do sistema normativo e, se bem utilizados, permitem decisões com um grau de fundamentação muito mais profundo do que a simples aplicação de regras. Isso também pode ser importante no papel de pacificação social exercido pelo direito. Os princípios, nas palavras de Carrió, também, “Exhiben un cierto grado de neutralidad tópica, o de relativa indiferencia de contenido, en el senti43 do de que trasponen los límites de distintos campos de regulación jurídica.” Podem ser aplicados em vários contextos e para atores sociais diversos, não “servem” para um lado em detrimento de outro. Resumidamente, é possível sintetizar as características principais dos princípios, segundo Carrió, como sendo: i) normas de segundo grau, ou seja, pressupõem a existência de outras normas e se referem a elas; ii) são normas dirigidas especialmente ao intérprete – geralmente ao juiz – que tem o papel de concretizá-las; iii) indicam como utilizar e aplicar outras normas e resolver lacunas e; iv) exibem um certo grau de neutralidade tópica, uma certa indiferença de conteúdo.
O presente trabalho procurou inserir um pouco de história na discussão atual sobre os princípios no direito, apontando algumas causas de sua desvalorização na formação da ordem jurídica moderna e alguns fatores “atuais” para a sua revalorização. Buscou, igualmente, apontar algumas das suas características ou peculiaridades principais. Sem absolutizar a idéia de princípio e hiper-valorizar o seu papel em um determinado ordenamento jurídico, parece ser possível afirmar que os princípios permitem uma maior abertura no sistema e possibilitam a aplicação de um direito um pouco mais atento às demandas da sociedade. Diferentemente das regras, os princípios fornecem um instrumental legislativo interessante que permite ao juiz compatibilizar as suas decisões ao sistema normativo como um todo, integrando-o quando necessário. Os princípios resgatam ou fortalecem o papel da interpretação na construção e 42 43
CARRIÓ, Genaro R. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970, p.26. CARRIÓ, Genaro R. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970, p.26. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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constante atualização da ordem jurídica, relativizando o primado do legislador (e das regras) que tanto caracterizou o direito ocidental a partir, especialmente, do início do século XIX. A discussão proposta sobre os princípios no direito, no entanto, deve ser realizada com “lentes críticas”. Em um processo contraditório e dialético, os princípios superam vários aspectos da ordem jurídica baseada em um modelo estatal e monista de regras, mas, em alguma medida, aprimoram o mesmo sistema e permitem que esse “jogo” continue sendo praticado por mais tempo.
CAPPELLINI, Paolo. Il codice eterno – la Forma-Codice i suoi destinatari: morfologie e metamorfosi di un paradigma della modernità. “in” CAPPELLINI, Paolo; SORDI, Bernardo. Codici: una riflessione di fine millennio. Milano: Giuffrè, 2000. CARRIÓ, Genaro R. Los Derechos Humanos e su proteccion: distintos tipos de problemas. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1990. CARRIÓ, Genaro R. Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1970. CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. Vol 2, Milano: Giuffrè, 2005. CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution: cultura y lengua constitucionales. Madrid: Editorial Trotta, 1997. COMANDUCCI, Paolo. Principios jurídicos y indeterminación del derecho. Doxa, 21, vol II, p.89 -104 (1998). FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2001. HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004. HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. 2ª ed., Almedina: Coimbra, 2009. GROSSI, Paolo. Assolutismo giuridico e diritto privato. Milano: Giuffrè, 1988. GROSSI, Paolo. Dalla società di società allá insularità dello stato fra medievo ed età moderna, Napoli: Istituto Universitario Suor Orsola Benincasa, s/d. 42 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Renovar: Rio de Janeiro, 2006. GROSSI, Paolo. L’Ordine giuridico medievale. 11ª ed., Roma-Bari: Laterza, 1995. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª. Ed., Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Vol. 2, Coimbra: Editora Coimbra, 1995. VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno, São Paulo: Martins Fontes, 2005. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Omega, 1994.
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Yvana Savedra de Andrade Barreiros Graduada em Direito (UP) Graduada em Comunicação Social - Jornalismo (PUCPR) Especialista em Língua Portuguesa (PUCPR) Especialista em Direito Penal e Criminologia (ICPC) Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA) Advogada no Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Positivo
A necessidade de se criar uma corte internacional direcionada a reprimir certas modalidades de crimes evidenciou-se no contexto da Segunda Guerra Mundial. Para punir as atrocidades cometidas durante a guerra, foram instituídos dois Tribunais Militares Internacionais: o de Nuremberg e o de Tóquio. Essas cortes foram destinadas a processar e ju lgar os responsáveis, na Alemanha e no Japão, pelos crimes de guerra e contra a paz e a humanidade. 1 Esses tribunais, entretanto, pelo fato de serem estabelecidos pelas nações vitoriosas, sendo portanto tribunais de exceção, proferiram decisões que causaram algum desconforto, por transmitirem, de certo modo, uma sensação de desigualdade e injustiça, o que tornou latente a necessidade de instalação de uma corte penal internacional permanente. De qualquer modo, a despeito de suas imperfeições, as cortes de Tóquio e Nuremberg serviram de base para a conformação dos princípios básicos da responsabilidade penal internacional e do processo de desenvolvimento do Direito Penal Internacional. Esse processo evolutivo culminou na 1
SABÓIA, Gilberto Vergne. A criação do Tribunal Penal Internacional. In: Revista CEJ,V. 4 n. 11 mai./ago. 2000. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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instituição do Tribunal Penal Internacional, uma corte, ao menos em tese, livre de influências externas e de interferências políticas.2 O Tribunal Penal Internacional, órgão jurisdicional permanente e independente do sistema das Nações Unidas3 e 4, foi criado na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas sobre o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional, realizada em Roma, de 15 de junho a 17 de julho de 1998. Sua criação ocorreu precisamente no último dia da conferência, mediante a aprovação do Rome Statute of the International Criminal Court, “por 120 votos a favor, sete votos contra e 21 abstenções”. O referido estatuto entrou em vigor no dia 1º de julho de 2002.5 O texto denominado Tratado de Roma foi amplamente “festejado pela comunidade jurídica, especialmente aquela mais estreitamente relacionada com os Direitos Humanos”.6
A corte penal internacional exerce sua jurisdição sobre pessoas que praticam crimes graves e de transcendência internacional, sempre atuando complementarmente às jurisdições internas. Ou seja, o Tribunal pode exercer sua jurisdição apenas quando esgotadas, ou falhas, as instâncias internas dos Estados-partes.7 Conforme explica Steiner, O Tribunal Penal Internacional rege-se pelo princípio da complementaridade. Não antecede, nem tem primazia sobre os sistemas judiciais internos. Ao contrário, para exercer sua jurisdição exige-se sejam reconhecidos uma série de requisitos atinentes à admissibilidade, orientados especialmente na questão referente à capacidade ou vontade de um Estado 8 em exercer sua jurisdição primária. 2
SABÓIA. A criação do Tribunal Penal Internacional... “The ICC is an independent international organization, and is not part of the United Nations system. Its seat is at The Hague in the Netherlands. Although the Court’s expenses are funded primarily by States Parties, it also receives voluntary contributions from governments, international organizations, individuals, corporations and other entities”. INTERNACIONAL CRIMINAL COURT. Disponível em: http://www.icccpi.int/Menus/ICC/ About+the+Court/. Acesso em: 05/04/2010. 4 “Diferente, portanto, dos tribunais ad hoc instalados por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, exclusivamente para julgar crimes cometidos durante um determinado período nos territórios da extinta Yugoslávia e em Ruanda”. STEINER, Sylvia. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http://www.esmpu.gov.br/dicionario/ tiki-index.php?page=Tribunal+ Penal+Internacional. Acesso em: 06/04/2010. 5 BIGAL, Valmir. A soberania nacional e o Tribunal Penal Internacional. Universo Jurídico. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/ default.asp?action= doutrina &coddou=3852. Acesso em 06/04/2010. 6 SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1152, 27 ago. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8849>. Acesso em: 06 abr. 2010. 7 STEINER. Tribunal Penal Internacional... 8 STEINER. Tribunal Penal Internacional... 3
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A competência material do Tribunal está delimitada no artigo 5 do Estatuto de Roma. Nesse dispositivo, estão elencados os crimes que podem ser julgados pela corte. São eles: o genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. O referido dispositivo apresenta a seguinte redação: Artículo 5 Crímenes de la competencia de la Corte 1. La competencia de la Corte se limitará a los crímenes más graves de trascendencia para la comunidad internacional en su conjunto. La Corte tendrá competencia, de conformidad con el presente Estatuto, respecto de los siguientes crímenes: a) El crimen de genocidio; b) Los crímenes de lesa humanidad; c) Los crímenes de guerra; d) El crimen de agresión.
Nos artigos 6 a 8 do Estatuto, estão descritos os crimes de genocídio e os crimes contra a humanidade. As normas complementares desses delitos, com todos os seus elementos e circunstâncias, foram elaboradas por uma Comissão Preparatória designada pela Assembléia das Nações Unidas e constam de um anexo ao Estatuto denominado Elementos dos Crimes 9. O crime de agressão, conforme prescreve o item 2 do art. 5 10, somente será submetido à competência da Corte após a aprovação de emenda ao Estatuto, na forma prevista nos seus arts. 121 e 123. Conforme elucida Sylvia Steiner, Como elementos básicos, apresenta o Estatuto, no seu Artigo 6, que o crime de genocídio é qualquer ato praticado com intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Em seu Artigo 7, define os crimes contra a humanidade como aqueles cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil. Dentre as diversas condutas arroladas numa série de alíneas, destacam-se as condutas de homicídio, escravidão, deportação forçada da população, tortura, violações sexuais, desaparecimentos forçados e o apartheid. Os crimes de guerra, apresentados no Artigo 8, são aqueles cometidos como parte de um plano ou política de cometimento de tais atos em grande escala, e os que estejam previstos nas Convenções de Genebra de 1949, cometidos em situações de conflitos armados internacionais ou internos. Dentre outros, estão previstos os crimes de homicídio, tortura, a tomada de reféns, os ataques intencionais contra a população civil que não participa das hostilidades, o ataque a pessoal e material de órgãos 9
STEINER. Tribunal Penal Internacional... Estatuto de Roma, artigo 5, item 2: “La Corte ejercerá competencia respecto del crimen de agresión una vez que se apruebe una disposición de conformidad con los artículos 121 y 123 en que se defina el crimen y se enuncien las condiciones en las cuales lo hará. Esa disposición será compatible con las disposiciones pertinentes de la Carta de las Naciones Unidas”. 10
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humanitários ou hospitais, as violações sexuais, o uso de armas de 11 guerra que tragam sofrimento desnecessário.
O Tribunal Penal Internacional apenas pode exercer sua competência em relação aos crimes cometidos após a vigência do Estatuto de Roma, ou seja, após o dia 1º de julho de 2002. Para o Estado que aderiu posteriormente, a competência só poderá ser exercida sobre os fatos cometidos após a entrada em vigor para esse Estado, a não ser que este aceite a competência retroativa à entrada em vigor do Estatuto.12 Essa previsão está contida no artigo 11 do Estatuto de Roma: Artículo 11 Competencia temporal 1. La Corte tendrá competencia únicamente respecto de crímenes cometidos después de la entrada en vigor del presente Estatuto. 2. Si un Estado se hace Parte en el presente Estatuto después de su entrada en vigor, la Corte podrá ejercer su competencia únicamente con respecto a los crímenes cometidos después de la entrada en vigor del presente Estatuto respecto de ese Estado, a menos que éste haya hecho una declaración de conformidad con el párrafo 3 del artículo 12.
De acordo com o art. 12 do Estatuto 13, os Estados que o ratificam aceitam sua competência. O Tribunal só pode exercer sua jurisdição sobre os crimes cometidos nos territórios dos Estados-membros ou por algum de seus nacionais. “Como exceção à regra, o Tribunal poderá exercer sua jurisdição sobre qualquer situação a ele remetida pelo Conselho de Segurança da ONU, não importanto, nesse caso, se o crime tiver sido cometido em território de Estado-Parte, ou por nacional de Estado-Parte”.14
11
STEINER. Tribunal Penal Internacional... STEINER. Tribunal Penal Internacional... Estatuto de Roma, Artículo 12. Condiciones previas para el ejercicio de la competência. 1. El Estado que pase a ser Parte en el presente Estatuto acepta por ello la competencia de la Corte respecto de los crímenes a que se refiere el artículo 5. 2. En el caso de los apartados a) o c) del artículo 13, la Corte podrá ejercer su competencia si uno o varios de los Estados siguientes son Partes en el presente Estatuto o han aceptado la competencia de la Corte de conformidad con el párrafo 3: a) El Estado en cuyo territorio haya tenido lugar la conducta de que se trate, o si el crimen se hubiere cometido a bordo de un buque o de una aeronave, el Estado de matrícula del buque o la aeronave; b) El Estado del que sea nacional el acusado del crimen. 3. Si la aceptación de un Estado que no sea Parte en el presente Estatuto fuere necesaria de conformidad con el párrafo 2, dicho Estado podrá, mediante declaración depositada en poder del Secretario, consentir en que la Corte ejerza su competencia respecto del crimen de que se trate. El Estado aceptante cooperará con la Corte sin demora ni excepción de conformidad con la Parte IX. 14 STEINER. Tribunal Penal Internacional... 12 13
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No Brasil, o Tratado de Roma foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 112 de 2002 e promulgado pelo Decreto Presidencial nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.15 Com a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o Brasil elevou ao patamar de norma constitucional a sua submissão à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nos seguintes termos: CF, art. 5º [...] § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
A Argentina ratificou referido tratado no dia 8 de fevereiro de 2001 e, em 9 de janeiro de 2007, foi publicada no Boletim Oficial de la República Argentina a Ley 26.200, que introduziu no ordenamento jurídico do país o tratado que deu origem à Corte Penal Internacional16. A lei em questão adequou as disposições do tratado para que fossem o mais compatíveis possível com o sistema jurídico argentino. A título de exemplo, mencionam-se algumas das previsões contidas no art. 10 da Ley 26.200, que trata das penas aplicáveis nos crimes de guerra: [...] Cuando el Estatuto de Roma se refiere a “reclutar o alistar niños menores de 15 años”, la República Argentina entenderá que se trata de menores de 18 años. Cuando el Estatuto de Roma se refiere a “hacer padecer intencionalmente hambre a la población civil como método de hacer la guerra”, previsto como tipo de violación grave de la ley y uso aplicable en los conflictos armados internacionales dentro del marco establecido de derecho internacional, la República Argentina lo hará extensivo a conflictos armados de cualquier naturaleza.
Brasil e Argentina, conforme se percebe, permitiram que o Tratado de Roma ingressasse de forma bastante efetiva em seus sistemas jurídicos; entretanto, isso não se verificou em parte dos países da América Latina, que, 15
BRASIL. Decreto 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 22/06/2010. 16 “La ley 26.200 hace una remisión al artículo 8 del Estatuto de Roma y lo completa con las infracciones graves que figuran en Protocolo Adicional I a los Convenios de Ginebra del 12 de agosto de 1949, faltantes en dicho Estatuto, y en el Protocolo facultativo a la Convención sobre los Derechos del Niño relativo a la participación de los niños en los conflictos.armados. La República Argentina ratificó el Estatuto de Roma el 8 de febrero de 2001. El trámite parlamentario que dio origen a esta ley obtuvo media sanción en el Senado el 6 de septiembre de 2006 y fue aprobada por la Cámara de Diputados el 15 de diciembre de ese mismo año”. COMITÉ INTERNACIONAL DE LA CRUZ ROJA. Argentina: nueva ley incorpora el Estatuto de Roma en el ordenamiento jurídico nacional. Disponível em: http://www.icrc.org/web/ spa/sitespa0.nsf/htmlall/ argentina-news-120107?opendocument. Acesso em: 05/04/2010. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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embora paulatinamente tenham quase todos aderido ao Tratado, ainda encontram obstáculos à sua aplicabilidade, para o que seriam necessárias adaptações em seus sistemas. Conforme relata Maria Thereza Rocha de Assis Moura 17, um grupo de estudos sobre o Tribunal Penal Internacional, constituído a partir de um convênio entre o Programa de Estado de Direito para América do Sul da Fundação Konrad Adenauer e a Faculdade de Direito da Universidade de Göttingen, na Alemanha, reuniu-se na Cidade do México para a realização de um colóquio internacional sobre Dificuldades jurídicas y políticas para la ratificación
o implementación Del Estatuto de Roma.
Nesse colóquio, percebeu-se que alguns países da América Latina, como El Salvador e Chile, não haviam aderido ao Estatuto porque para isso careceriam de uma reforma constitucional que possibilitasse sua adesão. O Chile manifestou sua adesão somente em junho de 2009. O México, por sua vez, assinou, mas, pela mesma razão, não ratificou imediatamente o Estatuto, o que só veio a ocorrer em outubro de 2005. Outros países assinaram e ratificaram o Estatuto, mas ainda encontram dificuldades na sua implementação, por conta de questões como: a entrega dos nacionais, a prisão perpétua e a imprescritibilidade dos crimes punidos pelo Tribunal Penal Internacional.18 Conforme dados do Tribunal, atualmente 24 países da América Latina e Caribe são Estados-membros do Tratado19. Destes países, 15 integram a América Latina. 1. Trinidad and Tobago, 6 April 1999 2. Belize, 5 April 2000 3. Venezuela, 7 June 2000 (América Latina) 4. Costa Rica, 30 January 2001 (América Latina) 5. Argentina, 8 February 2001 (América Latina) 6. Dominica, 12 February 2001 7. Paraguay, 14 May 2001 (América Latina) 8. Antigua and Barbuda, 18 June 2001 9. Peru, 10 November 2001 (América Latina) 10. Ecuador, 5 February 2002 (América Latina) 11. Panama, 21 March 2002 (América Latina) 12. Brazil, 20 June 2002 (América Latina) 13. Bolivia, 27 June 2002 (América Latina) 14. Uruguay, 28 June 2002 (América Latina)
17
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Implementação do Estatuto de Roma na América Latina. Disponível em: http://www. aidpbrasil.org.br/Implementa% C3% A7%C3%A3o%20do%20Estatuto%20de %20Roma%20na%20Am%C3%A9rica%20Latina.pdf. Acesso em: 05/04/2010. 18 MOURA. Implementação do Estatuto de Roma... 19 “As of 21 July 2009,110 countries are States Parties to the Rome Statute of the International Criminal Court. Out of them 30 are African States, 14 are Asian States, 17 are from Eastern Europe, 24 are from Latin American and Caribbean States, and 25 are from Western European and other States”. INTERNACIONAL CRIMINAL COURT. Disponível em: http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/ About+the+Court/. Acesso em: 05/04/2010.
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15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24.
Honduras, 1 July 2002 (América Latina) Colombia, 5 August 2002 (América Latina) Saint Vincent and the Grenadines, 3 December 2002 Barbados, 10 December 2002 Guyana, 24 September 2004 Dominican Republic, 12 May 2005 (América Latina) Mexico, 28 October 2005 (América Latina) Saint Kitts and Nevis, 22 August 2006 Surinam, 15 July 2008 Chile, 29 June 2009 (América Latina)20
O funcionamento do Tribunal Penal Internacional é regido por princípios gerais do Direito Penal e outros que lhe conferem a qualidade de corte especial, direcionada ao julgamento de situações peculiares relacionadas à pratica dos crimes de sua competência. Destacam-se a seguir alguns dos princípios e regras que regem as atividades da corte. Princípio da legalidade: apenas as condutas elencadas no Estatuto como crimes são julgadas pelo Tribunal Penal Internacional. Princípio da anterioridade: não há crime sem previsão normativa anterior que o defina, nem podem ser aplicadas penas não previstas no tratado. Em outras palavras, no âmbito do Tribunal Penal Internacional, aplica-se a máxima: nullum crime, nulla poena sine lege. Com relação a esses princípios, o Tratado assim dispõe: Artículo 22
Nullum crimen sine lege
1. Nadie será penalmente responsable de conformidad con el presente Estatuto a menos que la conducta de que se trate constituya, en el momento en que tiene lugar, un crimen de la competencia de la Corte. 2. La definición de crimen será interpretada estrictamente y no se hará extensiva por analogía. En caso de ambigüedad, será interpretada en favor de la persona objeto de investigación, enjuiciamiento o condena. 3. Nada de lo dispuesto en el presente artículo afectará a la tipificación de una conducta como crimen de derecho internacional independientemente del presente Estatuto. Artículo 23
Nulla poena sine lege
Quien sea declarado culpable por la Corte únicamente podrá ser penado de conformidad con el presente Estatuto.
20
INTERNACIONAL CRIMINAL COURT. ICC/About+the+Court/. Acesso em: 05/04/2010.
Disponível
em:
http://www.icc-cpi.int/Menus/
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Princípio da Irretroatividade: ninguém pode ser punido pelos crimes elencados no tratado se os mesmos foram cometidos anteriormente à entrada em vigor do Estatuto. Determina-se também que é aplicável, em qualquer caso, a norma mais benéfica, que poderá ser retroativa ou ultrativa para favorecer o réu. No Estatuto, o princípio em questão está descrito no art. 24, cuja redação é a seguinte: Artículo 24 Irretroactividad ratione personae 1. Nadie será penalmente responsable de conformidad con el presente Estatuto por una conducta anterior a su entrada en vigor. 2. De modificarse el derecho aplicable a una causa antes de que se dicte la sentencia definitiva, se aplicarán las disposiciones más favorables a la persona objeto de la investigación, el enjuiciamiento o la condena.
Princípio da complementaridade: a corte funciona apenas quando um país não julga ou não pode julgar algum dos crimes que esteja elencado no Estatuto. Contudo, essa complementaridade em certos casos acaba por invadir a coisa julgada, o que pode conflitar com os princípios da intangibilidade da coisa julgada e da non reformatio in pejus, que são pilares da maioria dos sistemas jurídicos. Princípio da responsabilidade penal individual: somente pessoas físicas podem ser julgadas pelo Tribunal, ficando excluídas de sua competência as pessoas jurídicas. A pena é restrita àquele que cometeu o delito. Esse princípio se encontra nos seguintes termos: Artículo 25 Responsabilidad penal individual 1. De conformidad con el presente Estatuto, la Corte tendrá competencia respecto de las personas naturales. 2. Quien cometa un crimen de la competencia de la Corte será responsable individualmente y podrá ser penado de conformidad con el presente Estatuto. [...]
Princípio da não prevalência de cargo oficial: assegura que todos são iguais perante a corte, ainda que o acusado seja titular de cargo público. Tal princípio viola disposições constitucionais de vários países que prevêem algumas imunidades em razão de cargo ou função. Esse princípio está descrito nos seguintes termos: Artículo 27 Improcedencia del cargo oficial 1. El presente Estatuto será aplicable por igual a todos sin distinción alguna basada en el cargo oficial. En particular, el cargo oficial de una
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persona, sea Jefe de Estado o de Gobierno, miembro de un gobierno o parlamento, representante elegido o funcionario de gobierno, en ningún caso la eximirá de responsabilidad penal ni constituirá per se motivo para reducir la pena. 2. Las inmunidades y las normas de procedimiento especiales que conlleve el cargo oficial de una persona, con arreglo al derecho interno o al derecho internacional, no obstarán para que la Corte ejerza su competencia sobre ella.
Princípio da imprescritibilidade: os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional são considerados imprescritíveis, sendo esse um dos pontos conflitantes com os sistemas jurídicos de vários países, incluindo o Brasil21. De acordo com a regra contida no art. 26 do Estatuto, para que alguém possa ser julgado pela corte, é preciso que, ao tempo do cometimento do crime, tenha 18 anos completos. E, por fim, o Estatuto prevê que não é eximida a responsabilidade penal, ainda que o crime tenha sido praticado em estrita obediência a ordem hierárquica, exceto com relação aos crimes de guerra (art. 33). Alguns desses princípios e regras são perfeitamente consoantes com a maioria dos sistemas jurídicos dos países que integram a América Latina, outros, entretanto, chocam-se frontalmente com alguns de seus princípios basilares e, por isso, constituem obstáculos, por vezes, intransponíveis à implementação do Tratado de Roma.
Conforme já se esboçou na apresentação de alguns dos princípios norteadores da atuação do Tribunal Penal Internacional, certas disposições do Estatuto de Roma contrariam princípios que regem os sistemas jurídicopenais de vários países. A questão pode ser ilustrada a partir do modelo brasileiro. A Constituição Federal brasileira, em seus dispositivos, assegura uma série de princípios que permitem uma compreensão do posicionamento axiológico do ordenamento jurídico, e, sob esse aspecto, alguns pontos carecem ser tocados, devido a sua significância para a harmonia do sistema jurídico.
O Estatuto de Roma prevê, em seu art. 77, item b, que, conforme as circunstâncias pessoais do condenado e a gravidade do crime, a pena aplica-
21
Artículo 29: Imprescriptibilidad - Los crímenes de la competencia de la Corte no prescribirán.
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da poderá ser de prisão perpétua. O dispositivo em questão apresenta a seguinte redação: Artículo 77 Penas aplicables 1. La Corte podrá, con sujeción a lo dispuesto en el artículo 110, imponer a la persona declarada culpable de uno de los crímenes a que se hace referencia en el artículo 5 del presente Estatuto una de las penas siguientes: [...] b) La reclusión a perpetuidad cuando lo justifiquen la extrema gravedad del crimen y las circunstancias personales del condenado.
Tal dispositivo contraria cláusula pétrea brasileira, na medida em que viola a Constituição brasileira em seu art. 5º, que, no inciso XLVII, dispõe: Art. 5º [...] XLVII - não haverá penas: [...] b) de caráter perpétuo;
Note-se que essa disposição, elencada no rol dos direitos e garantias individuais, por se tratar de cláusula pétrea, não pode ser alterada, conforme se depreende da leitura do § 4º, IV, do art. 60 da Constituição Federal: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV - os direitos e garantias individuais.
A despeito disso, o mesmo art. 5º em que se encontra a referida garantia fundamental, em seu § 4º informa que o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional: Art. 5º [...] § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
Esse evidente conflito das regras da corte com a ordem jurídica brasileira vem sendo mitigado para que se possa sustentar de algum modo a implementação do tratado. Um dos argumentos apontados pela doutrina para sustentar a aplicabilidade da regra contida no art. 77, b do tratado é o de que não se admite apenas que a pena de prisão perpétua seja cumprida no Brasil, de modo que, se ela for cumprida fora do país, não há que se falar em contrariedade à ordem jurídica constitucional.
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Esse posicionamento é sustentado Saulo José Casali Bahia : 22
A execução da pena perpétua eventualmente imposta seria impossibilitada tão apenas se o seu cumprimento devesse ocorrer no país, já que, nesta hipótese, o condenado deveria ser posto em liberdade tão logo ultrapassado o tempo máximo de cumprimento de pena previsto pelas leis nacionais. Desse modo, cumpriria tão somente ao Tribunal Penal Internacional, para fazer valer o seu julgado e evitar expor o Brasil ao descumprimento flagrante do Tratado de Roma, determinar que o cumprimento da pena se dê em outro país qualquer, compatibilizando-se, assim, as normas do Tratado de Roma e da Constituição Federal brasileira.
Há argumentos que visam afastar a contrariedade da prisão perpétua com o sistema brasileiro, sustentando que, se o Brasil admite a pena de morte em caso de guerra, não haveria óbice para a aplicabilidade da prisão perpétua em determinadas circunstâncias. Segundo Bahia23, A Constituição Federal admite a pena de morte, mais grave que a perpétua, no caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX (art. 5º, XLVII, a). [...] Ou seja, a Constituição Federal brasileira já prevê pena mais severa que a perpétua para boa parte dos crimes alcançados pelo Tribunal Penal Internacional, ou para todos os crimes alcançados, na medida em que a ONU atue para configurar o estado de guerra em relação aos atos criminosos praticados.
A despeito desses argumentos, de acordo com Luís Fernando Sgarbos24 sa e Geziela Jensen , A pena de prisão perpétua é apenas aparentemente menos gravosa do que a pena de morte. Pode até ser menos cruenta, menos selvagem, mas é tão cruel quanto a última. Ambas aniquilam o ser humano igualmente. Certamente causa ainda mais sofrimento do que a pena capital, pela sua continuidade, perenidade e pela ausência de perspectiva para o condenado.
Os autores acrescentam ainda que, embora haja no ordenamento jurídico brasileiro, excepcionalmente, “uma reminiscência de pena de morte no Direito Militar, em tempo de guerra”, a Constituição brasileira veda expressamente, sem comportar qualquer exceção, a prisão perpétua (Art. 5º, XLVII, b), o que indica que “esta última foi considerada, pelo Constituinte, ainda
22
BAHIA, Saulo José Casali. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira. Disponível em: www.direitoufba.net/mensagem/saulocasali/tribunalinternacional.doc. Acesso em: 14/04/2010. 23 BAHIA. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira... 24 SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. As opções políticas... RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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mais grave que a primeira, e que, se houvesse a possibilidade de exceção em relação à mesma, esta estaria prevista expressamente na Carta Política, co25 mo no caso da pena capital”. Ademais, a pena perpétua é incompatível com algumas das finalidades a serem alcançadas com as penas no Brasil. Diante da ausência dessas finalidades atribuíveis à prisão perpétua, também há problemas em compatibilizá-la com o sistema brasileiro. No Brasil, não se busca alcançar com a pena aplicada somente a retribuição pelo mal cometido. A despeito da discutível efetividade dos fins teóricos da pena, não há possibilidade de que o objetivo da prevenção especial positiva seja atribuído à prisão perpétua, pois, nela, não se configura a pretensa reintegração do condenado à sociedade, apenas a sua inocuização, qualidade inerente à prevenção especial negativa, o que não coaduna com a ordem jurídica brasileira. Outro argumento importante em desfavor da adoção da prisão perpétua é apontado por Pierre Legrand26: se em um determinado país a pena de morte e a de prisão perpétua podem parecer normais, como ocorre em certas unidades dos Estados Uni27 dos da América , por exemplo,há que se levar em consideração, por outro lado, que penas de tal natureza, assim gravosas, podem parecer abomináveis em outros Estados, como o Brasil e uma miríade de outros Estados latino-americanos, particularmente. A juriscultura de cada povo ou nação é diferente, seu direito interno apresenta particularidades que devem ser respeitadas.
Por fim, há que se enfatizar que a relativização de cláusula pétrea e a relativização de princípios como o da liberdade, em nome da política internacional, com a finalidade de dar efetividade a um tratado, abalam significativamente o caráter democrático e soberano dos Estados que assim procedem.28
Em certas situações, ainda que o Estado que exerça jurisdição sobre determinada causa já a tenha julgado, proferindo sentença condenatória ou absolutória, o Tribunal Penal Internacional pode invocar a competência para si.
25
SGARBOSSA; JENSEN. As opções políticas do Estatuto de Roma... LEGRAND, Pierre. Sur l’analyse différentielle des juriscultures. In: Revue Internationale de Droit Comparé, Paris: v. 51, 1999, p. 1053-1071 (apud SGARBOSSA; JENSEN. As opções políticas do Estatuto de Roma...) 27 Os Estados Unidos não são parte do Tratado de Roma, logo, não se submetem à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. 28 SGARBOSSA; JENSEN. As opções políticas do Estatuto de Roma... 26
56 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
O estatuto prevê essa possibilidade nas situações em que o Tribunal entenda que o julgamento no país de origem tenha obedecido ao propósito de isentar o acusado de sua responsabilidade penal, ou nos casos em que a corte entenda que o processo no país de origem não tenha sido imparcial, ou ainda quando tenha se desenvolvido de acordo com as regras do devido processo legal, mas de tal forma que, nas circunstâncias, era incompatível com a intenção de efetivamente submeter o indivíduo em questão à ação da justiça. 29 Essa previsão está contida no Estatuto de Roma, nos seguintes termos: Artículo 17 Cuestiones de admisibilidad [...] 2. A fin de determinar si hay o no disposición a actuar en un asunto determinado, la Corte examinará, teniendo en cuenta los principios de un proceso con las debidas garantías reconocidos por el derecho internacional, si se da una o varias de las siguientes circunstancias, según el caso: a) Que el juicio ya haya estado o esté en marcha o que la decisión nacional haya sido adoptada con el propósito de sustraer a la persona de que se trate de su responsabilidad penal por crímenes de la competencia de la Corte, según lo dispuesto en el artículo 5; b) Que haya habido una demora injustificada en el juicio que, dadas las circunstancias, sea incompatible con la intención de hacer comparecer a la persona de que se trate ante la justicia; c) Que el proceso no haya sido o no esté siendo sustanciado de manera independiente o imparcial y haya sido o esté siendo sustanciado de forma en que, dadas las circunstancias, sea incompatible con la intención de hacer comparecer a la persona de que se trate ante la justicia.
Note-se que, no Brasil, a coisa julgada tem amparo constitucional e define-se também como cláusula pétrea, uma vez que consta do rol de direitos e garantias fundamentais, sendo, portanto, inviolável. O texto da Constituição Federal diz que: Art. 5º [...] XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; [...]
Nas hipóteses mencionadas, há indiscutível violação ao “dogma da coisa julgada interna, promovida, em última análise, no Brasil, pelo Supremo Tribunal Federal, pois prevê o Tratado de Roma o reexame de questões já decididas em último grau soberano”.30
29 30
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A questão da entrega de um nacional para ser julgado pela corte penal internacional sempre foi uma questão nebulosa. A Constituição, em seu art. 5º, LI, prevê que: Art. 5º [...] LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei; [...]
Conforme lembram Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Jensen , o Estatuto busca estabelecer uma distinção entre o instituto da extradição e o da entrega: 31
Artigo 102 Termos Usados Para os fins do presente Estatuto: a) Por ‘entrega’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto. b) Por ‘extradição’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.
Como explicam os autores32, “o único e exclusivo traço que se pretende distintivo dos institutos, além da denominação, é aquele da entrega da pessoa a um Estado estrangeiro singularmente ou ao Tribunal Penal Internacional”. Para eles, teria sido criada uma distinção artificial entre os dois institutos, a fim de que se tornasse possível o exercício da jurisdição pela corte internacional. Essa distinção funcionaria como artifício para mitigar regulamentações distintas para o mesmo instituto. Sustentam esse posicionamento – ressalte-se, bastante pertinente – argumentando que: A distinção do art. 102 do Estatuto é tão artificial quanto artificiosa e não é apta a burlar preceito cogente e imperativo de nossa Constituição, que prevalece, no particular, sobre o direito convencional, o qual aqui se revela inconstitucional. Assim não fosse, estaríamos admitindo que é possível, numa dose de formalismo incompatível com o atual estágio da ciência jurídica e do Direito, que o legislador ou administrador furtem-se dos ditames constitucionais sobre quaisquer matérias, bastando que intitulem as situações sujeitas a preceitos cogentes com denominações diferentes, ou criem 31 32
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distinções e sutilezas no intuito de furtar determinadas situações, pes33 soas ou grupos à incidência de normas imperativas.
De qualquer forma, mesmo diante da clareza desse posicionamento, a entrega de nacionais vem sendo tratada com naturalidade no sistema brasileiro.
De acordo com Marcelo Augusto Paiva Pereira, a imprescritibilidade é situação oposta à prescrição e é preciso “conceituar esta para entender os efeitos daquela: prescrição é a perda da pretensão punitiva ou executória do Estado pelo decurso do tempo sem o seu exercício”.34 No Brasil, a prescrição é regulada pelo Código Penal, nos arts. 107, IV, 109 e 110. Esses dispositivos fixam os prazos para o exercício do jus puniendi pelo Estado, antes e depois de transitar em julgado a sentença, bem como determinam a possibilidade de extinção da punibilidade do agente quando não há atuação estatal (persecutio criminis). “É um instituto jurídico que confere ao Estado prazo certo para perseguir o agente, beneficiando-o com a extinção da punibilidade quando não se operar a atuação estatal”.35 Consoante elucida Pereira, “historicamente a imprescritibilidade era tida como uma injustiça praticada contra o agente, pois o colocava aos caprichos do ofendido, que podia processá-lo quando bem quisesse. Para diminuir esse efeito, criou-se a prescrição, pondo termo à persecutio criminis até então infinita.”36 Ainda segundo o autor, “a imprescritibilidade retira a paz pública e a segurança jurídica pugnadas pelo Direito e permite ao Estado pers eguir ad perpetuam o agente delituoso, sem que este possa ter extinta a punibilidade pelo decurso do tempo sem a atuação estatal”. Em outras palavras, “aquele nunca se livrará da persecutio criminis , submetendose à discricionariedade do ofendido quanto à oportunidade e conveniência para processá-lo, quando a providência mais adequada seria fixar um prazo certo para essa finalidade”. 37 O art. 29 do Tratado de Roma determina que os crimes sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional são imprescritíveis. São eles: os de genocídio, os de lesa-humanidade, os de guerra e os de agressão 38. 33
SGARBOSSA; JENSEN. As opções políticas do Estatuto de Roma... PEREIRA, Marcelo Augusto Paiva. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal. Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story= 20080509093736745. Acesso em: 23/06/2010. 35 PEREIRA. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal... 36 PEREIRA. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal... 37 PEREIRA. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal... 38 Artículo 5 - Crímenes de la competencia de la Corte - 1. La competencia de la Corte se limitará a los crímenes más graves de trascendencia para la comunidad internacional en su conjunto. La Corte tendrá competencia, de conformidad con el presente Estatuto, respecto de los siguientes crímenes: a) El crimen de genocidio; b) Los crímenes de lesa humanidad; c) Los crímenes de guerra; d) El crimen de agresión. 34
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Essa previsão contida no Estatuto de Roma não se amolda à Constituição Brasileira, segundo a qual são imprescritíveis apenas os crimes de racismo e os crimes de grupos armados, civis ou militares, cometidos contra a ordem constitucional e o Estado democrático. Essa previsão consta do art. 5º, XLII e XLIV: Art. 5º [...] XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; [...] XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
No Brasil, a esses crimes, e somente a eles, “se aplicam os efeitos da imprescritibilidade. São cláusulas pétreas, não podendo ser removidas nem modificadas, ingressando no ordenamento jurídico como desvios da evolução histórica dos próprios direitos humanos”.39 O Tribunal Penal Internacional, ao determinar a imprescritibilidade como princípio, a despeito da gravidade das condutas puníveis, adotou um posicionamento contrário ao processo de evolução do Direito Penal. Esse princípio passou a integrar os sistemas jurídicos dos países signatários e, no caso do Brasil, teve inclusive como resultado o aumento do rol de crimes imprescritíveis previstos constitucionalmente, algo que é, no mínimo, discutível.
A necessidade de uma corte penal internacional permanente evidenciou-se no contexto da Segunda Guerra Mundial, sobretudo por conta da atuação dos tribunais de exceção de Tóquio e Nuremberg. Essa lacuna no sistema de direito internacional culminou na criação do Tribunal Penal Internacional, órgão jurisdicional permanente e independente do sistema das Nações Unidas, que exerce sua jurisdição sobre pessoas que praticam crimes graves e de transcendência internacional, sempre atuando complementarmente às jurisdições internas. Os crimes que podem ser julgados pela corte são: o genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. Embora tenha se originado a partir de amplo debate da comunidade internacional, o Tribunal Penal Internacional, por conta da evidente violação de princípios basilares do Direito Penal por muitos de seus dispositi-
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vos, encontrou certa dificuldade de implementação no âmbito dos países signatários. Essa dificuldade se evidencia nos países da América Latina que, embora tenham quase todos paulatinamente assinado e ratificado o Estatuto, ainda encontram dificuldades na sua implementação, por conta de questões como: a entrega dos nacionais, a prisão perpétua, a relativização da coisa julgada e a imprescritibilidade dos crimes punidos pelo Tribunal Penal Internacional.
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SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1152, 27 ago. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol. com.br/doutrina/texto.asp?id=8849>. Acesso em: 27/04/2010. STEINER, Sylvia. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http:// www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Tribunal +Penal+Internacional>. Acesso em: 06/04/2010.
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Kátia Rovaris de Agostini Pós-graduada em Direito Civil pela UFPR-ESA/OAB-PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora das disciplinas de Direito das Relações de Consumo e Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos na Universidade Positivo e na Universidade Tuiuti do Paraná. Advogada Militante na Cidade de Curitiba – Paraná.
Leonardo Cesar de Agostini Pós-graduado em Direito Constitucional pela Unibrasil. Mestre em Direito Constitucional pela Unibrasil. Professor das disciplinas de Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos na FAPAR. Advogado Militante na Cidade de Curitiba – Paraná.
Como consabido, as associações de pessoas são inestimáveis propulsoras não só da economia nacional, como da mundial. Diante de sua irrefutável importância para o desenvolvimento econômico das sociedades, as pessoas jurídicas sempre receberam especial atenção dos ordenamentos jurídicos. Dentre as principais características reconhecidas às pessoas jurídicas, verifica-se a sua autonomia, sua independência, em face de seus membros, inclusive no que diz respeito ao seu patrimônio. No ordenamento jurídico pátrio, a absoluta separação de patrimônio e a limitação da responsabilidade dos membros ao capital inicial e voluntariamente investido no ente coletivo são reconhecidas, notadamente, nas sociedades por quotas de responsabilidade limitada e nas sociedades anônimas. Partindo-se dessa noção de pessoa jurídica e, mais especialmente, das figuras da sociedade por quotas de responsabilidade limitada e da sociedade
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anônima, analisar-se-á a forma clássica de desconsideração da personalidade jurídica, bem como a sua recepção pelo Código Civil brasileiro de 2002. Dando seguimento, será estudado o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, dispositivo esse que introduziu no ordenamento jurídico pátrio a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, analisando precisamente os seus contornos e a sua delimitação com a teoria clássica, bem como a posição jurisprudencial sobre a sua aplicação.
Para a realização de alguns empreendimentos, por vezes é imprescindível a união de várias pessoas, pois uma única pessoa natural não seria apta a realizá-lo. Ou seja, determinados objetivos nunca seriam atingidos pelos homens se atuassem de forma isolada, sendo premente a necessidade de associação de pessoas no intuito de atingi-los. Essa associação de pessoas objetivando um fim comum, segundo Paulo KHOURI, “é imperativo da própria ordem econômica, que deseja o crescimento, o desenvolvimento econômico”1 da sociedade. Apesar de ser pacífica a importância dessa forma de associação de pessoas para o desenvolvimento da sociedade, igual certeza não existe quanto à origem de sua personificação. Sem querer exaurir o tema, uma vez que não é esse o real objetivo desse trabalho, verifica-se a existência de duas grandes vertentes doutrinárias tendentes a explicar a origem da personalidade das associações de pessoas. A primeira2 entende que a personalidade das associações de pessoas decorre da lei, ou seja, as associações de pessoas não existem sem a tutela estatal, ficando assim reféns do Estado. A segunda3, contrariamente, considera a associação de pessoas uma realidade, uma concepção pré-jurídica e, na qualidade de pré-jurídica, não tem sua existência condicionada ao comando do Estado.
1
KHOURI, Paulo R. Roque A.. Direito do Consumidor: Contratos, Responsabilidade Civil e Defesa do Consumidor e Juízo, p. 194. 2
O precursor dessa vertente foi Savigny, com a teoria da ficção. Pode-se afirmar, ainda, que Kelsen foi um grande seguidor dessa vertente e no âmbito nacional, a título de exemplo, citase Pontes de Miranda, Caio Mário, Silvio Rodrigues, Renan Lotufo, Fábio Konder Comparato, Carlos Roberto Gonçalves, entre outros. 3
Essa segunda corrente, no âmbito internacional, é representada pelo escólio de Otto von Gierke. No direito brasileiro, tem como grande defensor Lamartine CORRÊA, que desenvolve a teoria ontológicoinstitucionalista, pelo que a pessoa jurídica pode ser vista como: “Sempre entendemos ser a pessoa jurídica realidade analógica ao ser humano. Como a pessoa humana, é um ser, dotado de individualidade, permanente, pois que a entrada e saída de sócios ou associados ou de administradores não lhe altera o ser, dotado de independência externa, porém não substancial, como a pessoa humana, que existe per se, mas acidental, pois que depende, para existir, dos seres humanos, que estão sob (sub stant) sua existência. Ser, pois que o acidente é, que existe para complemento do ser humano substancial que, sendo ser social, deseja os grupos associativos e societários e recebe utilidade das fundações.” (OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Conceito da pessoa jurídica. (tese), 1962, p. 164-165)
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Ficção ou realidade, o certo é que se reconhece a personificação das associações de pessoas. Conforme escólio de J.M de Carvalho SANTOS, uma das principais decorrências da personalidade jurídica das associações de pessoas é o reconhecimento de sua existência autônoma, ou seja, a independência dessas em relação a seus membros, afirmando que: “As pessoas jurídicas tem existência distinta da dos seus membros como uma conseqüência immediata da personificação da sociedade, que passa a ser uma unidade, não obstante a pluralidade de membros; havendo, portanto, uma individualidade, de um lado, e muitas outras individualidades isoladas, de outro lado; as quaes congregadas formam aquella outra unidade.”4 Tem-se, então, que o reconhecimento da personalidade da associação de pessoas cria um centro de interesse autônomo em relação aos seus membros, permitindo que recursos e esforços sejam empregados em um objetivo comum, objetivo esse da própria pessoa jurídica, que como ente autônomo tem a possibilidade de contrair direitos e obrigações em nome próprio. Assim, se a pessoa jurídica forma ente autônomo, independente de seus membros, por óbvio que também seu patrimônio deve ser autônomo, não se confundindo com o de seus membros. A pessoa jurídica é, então, um “novo ser, estranho à individualidade das pessoas que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade.”5, gozando da faculdade de contrair direitos e obrigações em nome próprio, olvidando a consecução de seus fins. Por conseqüência dessa autonomia, somente o patrimônio da pessoa jurídica responderá pelas obrigações por essa contraídas, conforme bem elucida Fábio Ulhoa COELHO, afirmando que: “Da definição da soci edade empresária como pessoa jurídica derivam conseqüências precisas, relacionadas com a atribuição de direitos e obrigações ao sujeito de direito nela encerrado. Em outros termos, na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionadas ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e a devedora dessas obrigações.” 6 Como seus membros não respondem pelas obrigações contraídas pela pessoa jurídica, verifica-se a limitação da responsabilidade de seus membros ao capital, inicial e espontaneamente, investidos.
4 5 6
SANTOS, J.M. de Carvalho. Código Civil Brasileiro Interpretado, p. 389-390 (grafia no original). REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, p. 372-373. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, p. 13-14. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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Assim, irrefutável o fato da autonomia patrimonial ser um fator essencial para motivar a iniciativa privada a promover o desenvolvimento econômico. Isso porque, com a garantia da autonomia patrimonial, o particular pode dedicar-se à exploração de uma atividade econômica, com a segurança de que seu patrimônio pessoal não será afetado, bastando para tanto, que participe de um tipo de ente coletivo que atribua a seus membros responsabilidade limitada pelos prejuízos oriundos da exploração do objeto social, tal como a sociedade por quotas de responsabilidade limitada e as sociedades anônimas, as quais serão objeto desse estudo. Desse modo, se a atividade se revelar infrutífera, somente os bens destinados à dotação (criação e manutenção) da pessoa jurídica poderão ser atingidos pelos credores, vez que o patrimônio dessa, e não o dos seus membros, é o responsável pela satisfação das obrigações assumidas. No âmbito do direito brasileiro, a autonomia da pessoa jurídica era expressamente reconhecida no art. 207, do Código Civil de 1916 e, apesar dessa regra não ter sido reproduzida no Código Civil de 2002, o princípio permanece hígido no ordenamento jurídico pátrio8. Tem-se, então, que a personificação das associações de pessoas é “um dos instrumentos que seguramente possibilita o êxito da atividade empresarial” 9, vez que com sua autonomia existencial e patrimonial, dá segurança os membros dessas associações de que seus patrimônios pessoais estarão livres das eventuais vicissitudes que a pessoa jurídica venha a enfrentar.
7
Art. 20 - As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros. (...) Para que não restem dúvidas sobre o reconhecimento da autonomia da pessoa jurídica, notadamente a patrimonial, no ordenamento jurídico pátrio, vale-se do escólio de Fábio Ulhoa COELHO acerca da impossibilidade de confusão patrimonial entre os bens dos sócios e os bens da pessoa jurídica: “Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não dos seus membros. Não existe comunhão ou condomínio dos sócios relativamente aos bens sociais; sobre estes os componentes da sociedade empresária não exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pessoa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios, encontrase a participação societária, representada pelas quotas da sociedade limitada ou pelas ações da sociedade anônima. A participação societária, no entanto, não se confunde com o conjunto de bens titularizados pela sociedade, nem com sua parcela ideal. Trata-se definitivamente, de patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis os dos sócios e o da sociedade.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, p.15.) 9 ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional, p. 245. 8
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Como visto no tópico antecedente, a autonomia existencial e patrimonial das pessoas jurídicas é largamente reconhecida e constitui-se em fator de estímulo ao desenvolvimento econômico. Tem-se, então, de forma iniludivelmente, que o patrimônio da pessoa jurídica e de seus membros são tratados como “distintos, inconfundíveis e incomunicáveis”.10 Entretanto, devido a esse princípio (autonomia patrimonial) o qual, ao que tudo índica, era intocável no primórdio, somaram-se várias atitudes indecorosas de maus empresários11, as quais apontavam para a necessidade de nova reflexão quanto à “intocabilidade” do princípio. Assim, diante da constatação de que, em determinados casos, a pessoa jurídica era utilizada para se alcançar fins contrários à boa-fé e ao Direito, ou seja, que a pessoa jurídica funcionava como “escudo” protetor de seu controlador12, era necessária resposta objetiva e efetiva do Direito no sentido de evitar abusos. Tornava-se imprescindível proteger a boa-fé.
Frente a esse panorama, de mau uso da pessoa jurídica, surgiu, inicialmente na Inglaterra, e posteriormente foi desenvolvida nos Estados Unidos da América, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que nada mais é do que a determinação, no caso concreto, da suspensão da vigência da personalidade jurídica, permitindo que o patrimônio da pessoa membro seja atingido em decorrência de obrigações assumidas pela pessoa jurídica. Ou seja, dá-se a suspensão do princípio da autonomia patrimonial 13. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nas palavras de João CASILLO, pode assim ser conceituada: “Basicamente, os partidários da teoria da desconsideração afirmam que, quando a forma da pessoa jurídica, ou a própria pessoa jurídica, é utilizada com o intuito de fugir às finalidades
10
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, p.15. Nesse sentido, segue a doutrina de Alexandre Ferreira de Assumpção ALVES: “A limitação de responsabilidade dos sócios, somada às prerrogativas que a sociedade gozava em virtude de sua personificação, estimulava a prática de atos emulativos contra os credores, especialmente a constituição de sociedades que serviam de fachada para negociantes individuais. Estes, usando do prestígio e facilidade de crédito que detinham, fundavam sociedades com o fito de limitar sua responsabilidade, designando sócios minoritários para geri-las, apenas de direito, pois influenciavam de fato e diretamente a atuação da pessoa jurídica.” (ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional, p. 257-258) 12 Essa utilização indevida da pessoa jurídica é assim exposta por Lamartine CORRÊA: “Uma pessoa jurídica pode ser, essencialmente, uma mera fachada, pessoa jurídica aparente.” (Lamartine CORRÊA. A dupla crise da pessoa jurídica, p. 613) 13 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p. 262. 11
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impostas pelo Direito, deve ser, então, ‘desconsiderada’, ou melhor, não deve ser levada em conta sua existência, para, na decisão do caso que lhe é apresentado, o julgador decidir como se, na espécie, a pessoa jurídica não existisse, imputando as responsabilidades aos seus sócios, ou, mesmo, a outra pessoa jurídica de que se tenha utilizado ou mesmo, se escondido sob a forma daquela primeira.”14 Verifica-se a uniformidade da doutrina nacional com a doutrina estrangeira no que diz respeito à conceituação da desconsideração da personalidade jurídica, pois como se observa do escólio de Juan DOBSON 15 a desconsideração é um remédio jurídico que possibilita prescindir a personalidade da associação de pessoas negando sua existência autônoma de sujeito de direito, frente a uma situação jurídica particular. O que se pode extrair perfeitamente de todos os conceitos apresentados, é que a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária é medida excepcional, episódica, somente podendo ser aplicada em casos especialíssimos, sendo que essa não visa anular a pessoa jurídica16, mas sim, afastar alguns de seus efeitos, no caso concreto, com vistas a proteger a “boa-fé e à prevenção do abuso de direito”17. Por isso mesmo, Lamartine CORRÊA sintetiza que: “só deveria ser ignorada a autonomia da pessoa jurídica quando tivesse ela sido utilizada, de modo voluntário, para fraudar a lei, elidir obrigação contratual, ou prejudicar terceiros.”18 Isso porque, se é essencial para a sociedade à constituição de pessoas jurídicas com o fito de obter desenvolvimento econômico, essa essencialidade fica abalada quando essas pessoas jurídicas, inicialmente benéficas, se valem do princípio da autonomia para prejudicar terceiros, criando instabilidade no mercado e não fomentado o seu desenvolvimento 19. A desconsideração é, pois, a forma de adequar à pessoa jurídica aos fins para os quais foi criada, limitando o uso indevido da autonomia patrimonial. Assim, em havendo desvio de função, inconcebível se mostra a manutenção da separação patrimonial. Ou seja, reservam-se à pessoa jurídica 14
CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica, p. 24. DOBSON, Juan. El Abuso de la personalidad jurídica, p. 11. 16 Alexandre Ferreira Assumpção ALVES discorrendo sobre a desconsideração da personalidade jurídica reforça a idéia de que esse instituto não busca acabar com a personalidade jurídica e sim suspendê-la em casos excepcionais: “Faz-se mister sublinhar que em momento algum é suprimida a personalidade, apenas procurase imputar aos sócios os resultados negativos que caberiam à pessoa jurídica ou ficariam irresarcidos, (...)” (ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional, p. 259.) 17 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A Dupla crise da pessoa jurídica, p. 609. 18 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A Dupla crise da pessoa jurídica, p. 609. 19 Verifica-se, nesse sentido, o escólio de Domingos Afonso KRIGER FILHO: “Salienta-se que essa teoria evidencia apenas uma tendência de afastar a incidência de regras gerais, não por inexistir solução dentro da sistemática normativa, mas porque a subsunção do concreto ao abstrato previsto na lei pode produzir um resultado indesejável e pernicioso aos olhos da sociedade.” (KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade societária na lei do consumidor, p. 81) 15
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que age dentro de seus propósitos os benefícios do instituto, afastando-os quando essa é usada para fins impróprios, desonestos, como para perpetuar fraudes, burlar a lei e escapar de obrigações20. Nesse sentido é o escólio de Rubens REQUIÃO: “a limitação da responsabilidade do sócio não equivale à declaração de sua irresponsabilidade em face dos negócios sociais e de terceiros. Deve ele ater-se, naturalmente, ao estado de direito que as normas legais traçam, na disciplina de determinado tipo de sociedade de que se trate. Ultrapassado os preceitos da legalidade, praticando atos, como sócio, contrários à lei e ao contrato, tornam-se pessoal e ilimitadamente responsáveis pelas conseqüências de tais atos.” 21 Desse modo, de acordo com a teoria clássica da desconsideração da personalidade jurídica, também chamada de teoria maior, “verificado o abuso do direito ou a fraude à lei, cabe ao juiz desvendar o véu que encobre da ação da justiça os verdadeiros responsáveis, responsabilizando-os pessoalmente pelos atos do ente coletivo.”22 Finalmente, cabe ressaltar que qualquer que seja a explicação adotada para a personificação dos entes coletivos, seja ficção, seja realidade, a desconsideração é perfeitamente justificada, como uma forma de controle do privilégio que a personificação confere. No tocante as correntes realistas, que reputam as pessoas jurídicas como concepções pré-jurídicas, explica Lamartine CORRÊA que “Se é em verdade uma outra pessoa que está a agir, utilizando a pessoa jurídica como escudo, e se é essa utilização da pessoa jurídica fora de sua função, que está tornando possível o resultado contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas fundamentais da ordem jurídica (bons costumes, ordem pública), é necessário fazer com que a imputação se faça com predomínio da realidade sobre a aparência.”23, ou seja, que a responsabilização recaia sobre o membro da pessoa jurídica que a está usando abusivamente. Por sua vez, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica vista sob os olhos dos seguidores das teorias ficcionistas 24 encontra respaldo no fato do Estado, concessor da personalidade jurídica, poder retirar esse benefício da pessoa jurídica que age em desobediência ou abuso à lei. Verifica-
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TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil, p. 78. 21 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial., p. 496. 22 ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional, p. 263. 23 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica, p. 613. 24 Sobre a justificativa da desconsideração da personalidade jurídica para os adeptos das vertentes ficcionistas elucida Luciano AMARO: “Se é o direito que reconhece a autonomia da pessoa jurídica, em relação aos titulares do capital desta, e afirma a limitação da responsabilidade dos sócios ao valor do capital que subscreveram, o próprio direito pode cercear os possíveis abusos de sua criatura, restringindo aquela autonomia, ou, em especial, restringindo a referida limitação de responsabilidade. Quem dá a função, pode limitá-la, restringila, excepcioná-la, condicioná-la; enfim, regular o seu exercício.” (AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de defesa do Consumidor, p. 71) RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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se, assim, a existência de requisitos para o gozo do benefício da autonomia, requisitos esses que uma vez não observados, implicam na responsabilização pessoal dos membros do ente coletivo. Em contraposição a teoria clássica, teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, encontra-se a teoria menor, a qual possibilita a ocorrência da desconsideração pelo simples fato da pessoa jurídica não dispor de bens para satisfazer suas obrigações perante terceiros. Essa teoria será melhor analisada no tópico 3, haja vista tratar-se de uma das vertentes interpretativas do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor.
Muito discutida a disregard doctrine no direito pátrio e, após a evolução das decisões jurisprudências25, pouco a pouco a teoria que outrora era mera construção pretoriana, veio a ser positivada no ordenamento brasileiro. Seguindo essa tendência (e como não poderia ser diferente), o Código Civil Brasileiro de 2002 trouxe para o disciplinamento legal a teoria da desconsideração. Inicialmente a desconsideração foi positivada no artigo 49 do Anteprojeto de Lei que viria a ser o embrião do atual Código Civil. Diante das críticas de grande parte da doutrina, dentre as quais pode se destacar a crítica de Lamartine CORRÊA26, abandonou-se a idéia de dissolução da sociedade empresária e deu-se nova redação ao artigo que tratava do assunto, sendo que em sua redação final o dispositivo foi relacionado com o número 50 e ganhou a seguinte redação, a qual se encontra vigente:
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A teoria da desconsideração da personalidade jurídica já era aplicada pelos Tribunais pátrios antes mesmo de sua positivação no CC/2002, e como se observa das decisões que antecedem o ano de 2003, ou seja, anteriormente a vigência do Código Civil, essas, de forma uníssona e reiterada, exigiam para justificar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica a verificação de fraude ou de abuso de direito. Nesse sentido, vejam-se os seguintes julgados: STJ, 4ª TC REsp 86502, rel. Min. Ruy Rosado, julg. 21/05/1996; 2º TA/SP, 6ª CC., AG 801.947-0/5, rel. Juiz Luiz de Lorenzi, julg. 30/07/2003; 2º TA/SP, 3ª CC., AG 73794811/0, rel. Juiz Ribeiro Pinto, julg. 24/04/2002; 2º TA/SP, 6ª CC., AG 617482-00/7, rel. Juiz Luiz de Lorenzi, julg. 16/05/2000, entre outros. 26 Dessa forma se manifestou Lamartine CORRÊA ao comentar o projeto de Lei enviado ao Congresso: “4.4. o combate ao abuso – O art. 49, na esteira da experiência fornecida pelo Direito Comparado, procurou coibir a chamada ‘fraude por meio da pessoa jurídica’, ou ‘abuso da personalidade jurídica’. Bem teria andado se tivesse a Comissão se limitado à norma do parágrafo único, que, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, manda responder, em tais casos, pelas dívidas, ‘conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.’ Até aí, tudo muito bem. O que não se concebe, porém, é que, para se sanar a lesão de que a pessoa jurídica foi vítima, pois seu nome foi utilizado, em proveito próprio, por sócios ou administradores desonestos, seja a pessoa jurídica dissolvida. E é isso, nada mais, nada menos, que é autorizado pelo ‘caput’ do mencionado artigo 49, que permite a dissolução da pessoa jurídica de que se abusou, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, e por decisão judicial. Cura-se a doença cortando-se a cabeça do doente. Acode-se ao lesado tirando-se-lhe a vida. Urge retirar ao Anteprojeto o perigoso radicalismo dessa sanção da dissolução.” (CORRÊA, Lamartine. A parte geral do anteprojeto de Código Civil, p. 276)
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Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Não é difícil visualizar que o legislador civil de 2002, ao albergar no bojo do Código Civil a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o fez com base na teoria maior da desconsideração (teoria clássica), exigindo, outrossim, que efetivamente restasse comprovado pelo credor o abuso da personalidade jurídica com intuito de prejudicar credores. Mister, ainda, se faz ressaltar que ao acolher a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica o legislador civil de 2002 não autorizou a aplicação de denominada teoria somente com base na mera ausência de bens. Por este motivo, Renan LOTUFO informa que há uma “lista tríplice” de requisitos para que seja possível o deferimento da desconsideração da personalidade com espeque no art. 50, do Código Civil de 2002, quais sejam: “atos ilícitos, ou abusivos, que concorram para fraudar a lei ou ainda para lesar terceiros.”27 Destarte, pode-se concluir, iniludivelmente, que a melhor interpretação a ser dada para o artigo 50, do Código Civil Brasileiro de 2002, a qual vem sendo acolhida pela jurisprudência pátria majoritária 28, é a de que tal dispositivo albergou a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica quando se fique constatado o real desvirtuamento do instituto com vistas a prejudicar credores, não bastando, portanto, eventual prejuízo patrimonial de determinado credor para a aplicação da medida excepcional. Ou seja, “É indispensável tenha havido indevida utilização, a deturpação do instituto.”29
27
LOTUFO, Renan Lotufo. Código Civil Comentado, p. 145. A harmonia jurisprudencial quanto à necessidade de comprovação de fraude ou abuso de direito para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, com espeque no art. 50 do Código Civil de 2002, pode ser verifica nos seguintes julgados: STJ, 3ª TC, REsp 401081, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, julg. 06/04/2006; STJ, 4 ª TC., REsp 744.107, rel. Min. Fernando Gonçalves, julg. 20/05/2008; STJ, 3 ª TC., REsp 876.974, rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 09/08/2007. Em sentido contrário, decisões minoritárias como a proferida pelo TJRJ, 15ª Câmara Cível, AG n.º 21.735/2003, rel. Des. Gilberto Dutra Moreira, julg. 09/06/2004. 29 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, p. 38-39. 28
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Apesar da teoria da desconsideração já ser utilizada no direito brasileiro antes mesmo de sua positivação, destaca-se que foi o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, o primeiro texto legal brasileiro a adotá-la expressamente, seguido por outros Diplomas, como a Lei 8.884/94, que versa sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, e a Lei 9.605/98, denominada de lei ambiental e, posteriormente, pelo Código Civil de 2002. O art. 28 do Código de Defesa do Consumidor apresenta a seguinte redação: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. §1° (Vetado). §2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. §3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. §4° As sociedades coligadas só responderão por culpa. §5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Inicialmente, cabe consignar que a melhor doutrina 30 não reputa a matéria contida nos parágrafo 2º a 4º, do art. 28, como matéria afeta a desconsideração da personalidade jurídica e, sim, como mera extensão da responsabilidade do fornecedor a outras empresas do mesmo grupo econômico 31, do consórcio32 ou, ainda, da sociedade coligada33. Assim, por não tratarem,
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Nesse sentido veja ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional, p. 269 e DENARI, Zelmo. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 208 31 Grupos societários e sociedades controladas são aquelas que se reúnem por convenção formalmente aprovadas pelas sociedades, para a realização de seus próprios objetivos ou empreendimentos comuns (art. 265, da Lei 6.404/76 e arts. 1.066 e 1.097, CC) tendo responsabilidade subsidiária. 32 As sociedades consorciadas estão previstas no art. 278, § 1º, da Lei 6.404/76 e são aquelas que se reúnem, por força de contrato, para a execução de determinado empreendimento empresarial, tendo responsabilidade solidária. 33 As sociedades coligadas estão regulamentas no art. 243, § 1º, da Lei 6.404/76 e nos arts. 1.097 a 1.101, do CC e são aquelas em que uma sociedade empresária participa com 10% ou mais do capital da outra, sem controlá-la, sendo que aquela que praticou o ato responderá de forma objetiva, mas as demais serão responsabilizadas mediante a apuração de culpa.
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expressamente, de desconsideração da personalidade jurídica e sim de mera extensão da responsabilidade, esses parágrafos não serão analisados no presente trabalho. No tocante ao caput, do art. 28 do CDC o primeiro questionamento que remanesce diz respeito à expressão: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando (...)”. Apesar da expressão “poderá”, observa-se de forma uníssona na doutrina 34 o entendimento de que a desconsideração da personalidade jurídica não se trata de uma faculdade do juiz, e sim, de uma obrigação, quando verificados, é claro, os pressupostos constantes da norma. Ou seja, verificado pelo Juízo os requisitos constantes da norma, obrigatoriamente deverá determinar a desconsideração da personalidade jurídica. Dando seguimento à análise do caput do art. 28 do CDC, verifica-se o permissivo para a desconsideração da personalidade jurídica sempre que constatada a ocorrência de “abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”. Observe-se que, nesse ponto, o legislador consumerista fiou-se na teoria clássica, na teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, consignando como pressuposto para a desconsideração o desvio do uso da personalidade jurídica do ente coletivo. Por sua vez, no que diz respeito à segunda parte do dispositivo, clara é a inovação legislativa35. Isso porque, na teoria clássica não havia permissivo para a desconsideração da personalidade jurídica em decorrência de “falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Importante destacar que a falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, por si só, não têm o condão de permitir a desconsideração da personalidade jurídica, sendo imprescindível que esses eventos se dêem em decorrência da má-administração da pessoa jurídica36. Agora se questiona: o que pode ser considerada máadministração da pessoa jurídica? Essa resposta é bastante controvertida, pois um ato arrojado, que atinge ótimos resultados, é tido como um primor de administração. Entretanto, se este mesmo ato arrojado, em decorrência 34
Sobre a obrigatoriedade da desconsideração da personalidade jurídica quando verificados os pressupostos constantes da norma legal, discorre Domingos Afonso KRIGER FILHO: “Face a isso, a expressão ‘poderá desconsiderar’ não encerra em si uma simples faculdade outorgada ao magistrado a ser usada ao seu alvedrio mas, ao contrário, conforme o caso, torna obrigatório ao magistrado chamar à responsabilidade os sócios que estavam na direção da empresa na ocasião da ofensa ao consumidor, sob pena de quebra da escala de valores instituída por ordem legal.” (KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade societária na lei do consumidor, p. 83.) 35 Confirmando o fato da teoria clássica da desconsideração da personalidade jurídica não encontrar permissivo em casos de falência ou insolvência da pessoa jurídica verifica-se o escólio de João CASILLO, Desconsideração da pessoa jurídica, p. 37 e Paulo R. Roque A. KHOURI, Direito do Consumidor: Contratos, Responsabilidade Civil e Defesa do Consumidor e Juízo, p. 195. 36 Ver, nesse sentido, Bruno MIRAGEM, Direito do Consumidor, p. 335. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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de situações inusitadas do mercado, demonstrar-se inexitoso, será considerado como administração temerária. Ou seja, um mesmo ato, uma mesma forma de gestão, pode conduzir a bons ou a maus resultados, implicando na dificuldade de precisão do termo “má-administração” e, conseqüentemente, tornando incerta a aplicação do instituto ora estudado 37. Mas as imprecisões da norma não param por aí. Após cumular novos requisitos autorizadores aos já reconhecidos na teoria clássica, o legislador consumerista inseriu a seguinte disposição no § 5º, do art. 28: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.” Esse dispositivo vem ocasionando ferrenhas discussões doutrinárias desde o advento do Código de Defesa do Consumidor. Isso porque, parte da doutrina, calcada em uma interpretação literal do dispositivo, bem como na premissa de que os riscos do empreendimento devem ser suportados pelos membros do ente coletivo e não pelo consumidor, entende que sempre que a pessoa jurídica não tiver patrimônio para honrar com obrigações perante o consumidor, será possível a desconsideração com a busca de reparação no patrimônio de seus membros. Por sua vez, outra vertente doutrinária, calcada em uma interpretação restritiva do dispositivo em comento, propugna pela sua interpretação dentro dos limites do previsto no caput do art. 28. Ou seja, os membros do ente coletivo somente responderão com seu patrimônio pessoal quando a pessoa jurídica não apresentar bens suficientes para satisfazer a obrigação e for verificada a ocorrência de desvio de finalidade ou a má-administração ocasionadora de falência, insolvência ou inatividade. A primeira vertente doutrinária, que estende a desconsideração da personalidade jurídica a toda e qualquer situação em que a pessoa jurídica não disponha de patrimônio para satisfazer suas obrigações perante os consumidores (teoria menor), é capitaneada por Cláudia Lima MARQUES, que fundamenta a sua posição, notadamente, no inciso VI, art. 6º, do CDC, o qual consagra como direito básico do consumidor a efetiva reparação aos danos sofridos, pelo que toda medida tendente a atingir esse fim estaria de acordo com o espírito da legislação protetiva38. A professora Cláudia Lima MARQUES é seguida por outros doutrinadores, como Bruno MIRAGEM39 e Rizzatto NUNES40, os quais são veementes em 37
TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil, p. 89. 38 Veja-se a manifestação da autora: “Desconsideração da personalidade e proteção da confiança: É o princípio da confiança, instituída pelo CDC, garantindo não só a qualidade dos produtos colocados no mercado, mas assegurando também, como dispõe o art. 6º, VI, a efetiva reparação dos danos sofridos pelos consumidores, mesmo que, para isto, casuisticamente, se deva desconsiderar um dos maiores dogmas do direito comercial e civil.” (MARQUES, Cláudia Lima (et alli). Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 442) 39 MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor, p. 338.
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afirmar a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica sempre que a pessoa jurídica não disponha de patrimônio para honrar com a obrigação. Já Paulo R. Roque KHOURI41, mais cauteloso, restringe a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica para as situações em que se verifique um acidente de consumo e a pessoa jurídica não disponha de patrimônio para proceder as devidas reparações. Observe-se que para essa vertente doutrinária existem no ordenamento jurídico pátrio duas teorias da desconsideração da personalidade jurídica, a teoria maior (teoria clássica) prevista no Código Civil, na qual há a necessidade de evidenciação da fraude ou do abuso de direito e a teoria menor, prevista no Código de Defesa do Consumidor, na qual os requisitos da teoria maior não são exigidos, bastando para o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica a ausência de patrimônio do ente coletivo para fazer frente a obrigações devidas a consumidores. A segunda vertente doutrinária propõe uma interpretação restritiva do § 5º, do art. 28, do CDC, observada a construção teórica da concepção clássica, pode ser representada por autores como Zelmo DENARI 42, um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, o qual chega a afirmar que o § 5º do mencionado dispositivo tem, até mesmo, a sua vigência questionada. Isso porque, fora intenção do presidente vetar esse dispositivo43. Entretanto, erroneamente, as razões de veto recaíram sobre o § 1º. De todo modo, mesmo que se reconheça vigência ao § 5º, do art. 28, do CDC, como elucida Fábio Ulhoa COELHO, outro seguidor dessa vertente doutrinária, sua interpretação está condicionada ao caput, pelo que a desconsideração somente poderá ser deferida quando verificado o uso fraudu-
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Eis a manifestação do doutrinador sobre o tema: “Portanto, pode-se se afirmar que, independentemente da verificação de fraude ou infração da lei, será possível, no caso concreto, suplantar a personalidade jurídica da pessoa jurídica, se for esse o obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo consumidor.” (NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor, p. 687). 41 Assim se manifesta Paulo KHOURI sobre o assunto: “Parece que as situações indicadas no caput do art. 28 são meramente exemplificativas. É que a disposição contida no § 5º autoriza o magistrado a desconsiderar a personalidade jurídica e obrigar pessoalmente os sócios pelo ressarcimento dos prejuízos causados, toda vez que a personalidade for obstáculo para tanto. (...) Entretanto, o entendimento anteriormente exposto deve cingir-se às hipóteses de acidente de consumo, previstas nos arts. 12 e 14 do CDC para dar efetividade à reparação dos danos, seja de ordem material ou moral, causados pelos produtos e serviços.” (KHOURI, Paulo R. Roque A.. Direito do Consumidor: Contratos, Responsabilidade Civil e Defesa do Consumidor e Juízo, p. 198-199). 42 São, ainda, seguidores dessa vertente doutrinária, exemplificativamente, Genácia da Silva ALBERTON, A desconsideração da pessoa jurídica no Código do Consumidor: aspectos processuais, p. 168; Domingos Afonso KRIGER FILHO, Aspectos da desconsideração da personalidade societária na lei do consumidor, p. 84; Simone Gomes RODRIGUES, Desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor, p. 19; Luciano AMARO, Desconsideração da pessoa jurídica no Código de defesa do Consumidor, p. 78; e Marlon TOMAZETTE, A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil, p. 83. 43 “De fato, não há referibilidade alguma entre as razões de veto e a disposição contida no parágrafo vetado, que se limita a indicar quais administradores deverão ser pessoalmente responsabilizados na hipótese de acolhimento da desconsideração.” (DENARI, Zelmo (et alli). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: Comentado pelos Autores do anteprojeto, p. 213). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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lento ou abusivo da pessoa jurídica, afirmando que: “A melhor interpretação judicial dos artigos de lei sobre a desconsideração (isto é, os arts. 28 e § 5º do CDC, 18 da Lei Antitruste, 4º da Lei do Meio Ambiente e 50 do CC/2002) é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica”44. Assim, para essa segunda corrente o simples fato do consumidor ter sofrido dano patrimonial em decorrência de ato praticado por pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, pois essa interpretação contrariaria um dos fundamentos da República, a livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF) e um fundamento da ordem econômica, a livre concorrência (art. 170, V, da CF). Isso se verifica, pelo fato de que a livre iniciativa e concorrência, olvidam o aprimoramento da economia e, para o desenvolvimento da economia faz-se necessário o estímulo à constituição de pessoas jurídicas, de sociedades empresárias. Ora, a partir do momento em que se responsabiliza a pessoa membro pelos atos da pessoa jurídica, a sua constituição não está sendo fomentada e, consequentemente, esses fundamentos constitucionais são desrespeitados45. A discussão sobre a extensão do art. 28 do CDC não se limita ao âmbito doutrinário, verificando-se, também, na esteira jurisprudencial. Em nível de Superior Tribunal de Justiça imperiosa se faz a remissão ao julgamento do recurso especial n.º 279.273, cuja ementa foi fixada nos seguintes termos: “Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º. (...)A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). - A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, p. 54. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constitucional, p. 272. 45
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de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. - Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e⁄ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e⁄ou administradores da pessoa jurídica. - A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos especiais não conhecidos.”46
Observa-se que, nesse caso, houve a adoção da primeira vertente doutrinária (teoria menor), aquela que condiciona a desconsideração da personalidade jurídica ao simples fato da pessoa jurídica não apresentar patrimônio para satisfazer suas obrigações perante os consumidores. Entretanto, essa decisão não se deu de forma unânime. O voto vencedor foi proferido pela Ministra Nancy Andrighi, acompanhada pelos Ministros Castro Filho e Antonio de Pádua, sendo vencidos os Ministros Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes de Direito, que propugnaram a necessidade de verificação de fraude ou abuso de direito para a efetivação da desconsideração. Não é demais mencionar que em julgados anteriores, proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, houve menção expressa à fraude ou ao abuso de direito como requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo47. Ou seja, não há, ainda, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça unanimidade sobre a extensão do art. 28, do CDC. A situação não é diferente nos Tribunais Estaduais. Existem aqueles em que a maioria das decisões tendem a determinar a desconsideração pelo simples fato da pessoa jurídica não apresentar patrimônio para satisfazer suas obrigações perante os consumidores48. Outros que as decisões majoritárias restringem a interpretação do § 5º, do art. 28 aos limites do caput, exigindo a ocorrência de fraude ou abuso de direito para a autorização da
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STJ, 3ª Turma, REsp. 279.273, rel. Min. Ari Pangendler, rel. acórdão Min. Mancy Andrighi, julg. 04/12/2003. 47 Veja nesse sentido: STJ, 3º Turma, REsp. 252.759, rel. Min. Carlos Alberto Menezes de Direito, julg. 12/09/2000 e STJ, 4º Turma, REsp 158.051, rel. Min. Barros Monteiro, julg. 22/09/1998. 48 Como os Tribunais de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Distrito Federal citando-se como exemplo os seguintes julgados: TJ/DF, 6º TC, AC 20000110719678, acórdão n.º 300670, rel. Des. João Batista Teixeira, julg. 07/11/2007; TJ/DF, 6º TC, AG 20080020038438, rel. Des. Jair Soares, julg,. 07/05/2008; TJ/RJ, 5ª CC., AG 2008.002.17609, rel. Des. Antonio Saldanha Palheiro, julg. 15/07/2008; TJ/RJ, 6ª CC., AG 2008.002.05051, rel. Des. Benedicto Abicair, julg. 04/06/2008; TJ/RJ, 3º CC., AG 2008.002.15184, rel. Des. Luiz Fernando de Carvalho, julg. 02/06/2008. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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desconsideração49. E, ainda, aqueles em que é possível se encontrar decisões nos dois sentidos50. Verifica-se, então, que essa questão ainda está longe de ser pacificada, seja na doutrina, seja na jurisprudência. Entretanto, para a solução desse impasse, não se pode deixar de mensurar que a aplicação generalizada da desconsideração da personalidade jurídica acabaria por extinguir a própria figura da pessoa jurídica, a qual, como já visto, apresenta-se essencial para o desenvolvimento da economia. Isso porque, ao saber que seu patrimônio pessoal poderia ser integralmente atingido em decorrência do insucesso da atividade do ente coletivo, as pessoas membros dificilmente se arriscariam nesse negócio. Ou seja, os investimentos seriam afugentados, o que não é preciso mencionar tem conseqüências nefastas, como o desemprego, o aumento da informalidade, o não recolhimento de impostos e assim por diante. Ressalte-se, ainda, que em um país em desenvolvimento, como o Brasil, no qual os empresários são surpreendidos por diversos planos econômicos, eventuais inadimplementos obrigacionais estão, na maioria das vezes, atrelados a essa instabilidade do mercado e não a má administração ou a utilização fraudulenta da pessoa jurídica. Esse é exatamente o lúcido raciocínio de João CASILLO afirmando que: “Podemos encontrar inúmeras situações onde a empresa tornou-se insolvente sem que tenha havido utilização da pessoa jurídica de maneira indevida, como v.g., uma falência por circunstâncias normais de uma crise de mercado. (...)”.51 e, igualmente de José Waldeci LUCENA, o qual consigna “Os azares, a álea, a tirania das circunstâncias (como as chamou Galbraith) rondam os negócios. E em países como o nosso, de economia instável, há ainda o ‘fato do princípe’ (em oito anos, oito planos econômicos), a transformar, repentinamente, bons negócios em caminho certo até mesmo para quebra.”52 Assim, a partir do momento em que se possibilita a desconsideração da personalidade jurídica em decorrência da simples inexistência de patrimônio do ente coletivo, coloca-se no mesmo patamar o bom e o mau empresário, o empresário inescrupuloso e antiético com aquele empresário que
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Como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, citando-se como exemplo os seguintes julgados: TJ/RS, 13ª CC., AG 70021052485, rel. Des. Breno Pereira da Costa Vasconcellos, julg. 03/09/2007; TJ/RS, 12ª CC., AI 70019441930, rel. Des.Jorge Luiz Lopes do Canto, julg. 17/05/2007. 50 Como os Tribunais de Justiça do Estado de Minas Gerais e Paraná, citando-se como exemplo de aplicação ampla do § 5º, do art. 28 do CDC, os seguintes julgados: TJ/MG, 2.0000.00.447786-3/000, rel. Des. José Amâncio, julg. 03/08, 2005; TJ/MG, 1.0024.98.031049-4/001, rel. Des. Eulina do Carmo Almeida, julg. 08/11/2007 e TJ/PR, 7ª CC., AG 0420802-8, rel. Des. Rogério Ribas, julg. 21/08/2007 e de aplicação restrita do § 5º, do art. 28 do CDC, os seguintes julgados: TJ/MG, 1.0000.00.308144-5/000, rel. Des. Pedro Henriques, julg. 25/09/2003; TJ/MG, 2.0000.00.368578-9/000, rel. Des. Roberto Borges de Oliveira, julg. 10/12/2002 e TJ/PR, 17ª CC., AC 0449921-0, rel. Des. Paulo Roberto Hapner, julg. 16/01/2008. 51 CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica, p. 37. 52 LUCENA, José Waldeci. Das sociedades limitadas, p. 402.
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só tinha a intenção de desenvolver atividade honestamente, mas que foi surpreendido pelas vicissitudes do mercado. Isso é inadmissível, pois a desconsideração da personalidade jurídica é exceção e, justamente por ser exceção, foi criada para combater outra exceção, o inescrupuloso empresário. De igual maneira, justamente por ser exceção, a desconsideração não deve ser deferida somente em decorrência de ausência de bens, pois esse fato, isoladamente, não tem o condão de revelar que o empresário devedor esteja imbuído de má-fé ao não cumprir com sua obrigação, necessária, então, a verificação do desvio da função da pessoa jurídica para o deferimento desse remédio. Finalmente, não se pode deixar de mencionar que, para os adeptos das teorias realistas da pessoa jurídica, ou seja, aqueles que reputam que a pessoa jurídica constitui-se realidade pré-jurídica, que tem a sua existência independente da tutela do Estado, a desconsideração em decorrência da simples ausência de patrimônio se mostra absolutamente inconcebível. Essa afirmação se dá, pois se o ente coletivo é pessoa independentemente da tutela do Estado, existente anteriormente a esse, não pode o Estado, simplesmente, ignorar a sua existência, desconsiderá-la ao seu talante, sendo que a desconsideração somente se opera, conforme lúcido escólio de LAMARTINE, anteriormente transcrito, quando o ato não tenha sido praticado pela pessoa jurídica e sim, indevidamente, por seus membros, em manifesta fraude. Melhor sorte não encontram os ficcionistas, vez que a partir do momento que se aplica, indistintamente, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, a própria concepção de pessoa jurídica fica prejudicada, conduzindo, inclusive, a possibilidade de sua extinção, ou seja, ao fim da ficção. Assim, independentemente do ângulo que se analise o assunto, o certo é que a desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada com parcimônia, não se efetivando em decorrência da mera inexistência de patrimônio.
A personificação dos entes coletivos é importantíssima para o desenvolvimento da economia e, por sua vez, da sociedade, com essa personificação há o surgimento de um novo sujeito, autônomo de seus membros. Dependendo do tipo de ente coletivo, a responsabilidade de seus membros será limitada ao capital inicial e voluntariamente investido, tal como na sociedade por quotas de responsabilidade limitada e na sociedade anônima, pelo que o particular pode dedicar-se à exploração de uma atividade econômica com a segurança de que seu patrimônio pessoal não será afetado.
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De todo modo, apesar da relevância da pessoa jurídica para a sociedade, é certo que quando essa é utilizada em manifesto abuso de direito ou para perpetrar fraudes, que sua importância fica afastada, justificando-se, igualmente, o afastamento de sua autonomia, atingindo o patrimônio de seus membros, por dívidas contraídas por essa. Aqui a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que se constitui em momentânea abertura do véu protetor conferido pela personificação do ente coletivo, para atingir o patrimônio de seus membros, quando verificada fraude ou abuso de direito. Veja-se, então, que a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional, constituindo-se em uma “sanção” pela utilização indevida do ente coletivo. Entretanto, com o advento do Código de Defesa do Consumidor e, principalmente, pela redação conferida ao § 5º, do art. 28, a desconsideração passou a ser entendida, por parte da doutrina, e, aplicada, por alguns Tribunais, em decorrência, unicamente, da ausência de patrimônio da pessoa jurídica, ou seja, dispensando-se a verificação de fraude ou abuso de direito. Esse entendimento constitui-se em desmesurada, indiscriminada e não criteriosa aplicação de tão importante teoria, pelo que se arrisca a afirmar, que se na década de setenta, o professor LAMARTINE advertia que “as técnicas de disregard ou de Durchgriff são o mais agudo sintoma de crise de função”, pois “elas denunciam a existência de um desvio do instituto (pessoa jurídica) - da função que lhe foi assinalada pelo legislador” 53, hodiernamente, está-se diante de agudo sintoma de crise da aplicação do próprio instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque, ao condicionar à desconsideração a mera inexistência de patrimônio da pessoa jurídica, relegando-se a necessidade de uso fraudulento ou abusivo da personalidade, estar-se-á trafegando por terreno extremamente pantanoso e perigoso, que poderá, inclusive, conduzir a derrogação do regime das sociedades limitadas e das sociedades anônimas, vez que limitação da responsabilidade dos membros não mais existirá, respondendo esses, com integralidade de seus patrimônios pessoais, sempre que a pessoa jurídica não disponha de numerário para satisfazer suas obrigações perante o consumidor. Conseqüência disso, inevitavelmente, será a fuga dos investimentos empresariais. Desse modo, considerando que a pessoa jurídica é dotada de um altíssimo valor para a economia e para a sociedade, essa deve prevalecer no conflito com a necessidade individual de ressarcimento de consumidores. Em outras palavras, se, ao que tudo indica, o progresso e o desenvolvimento econômico proporcionado pela pessoa jurídica são mais importantes para a sociedade que a satisfação individual de um consumidor, a personificação 53
Lamartine Corrêa. A dupla crise da pessoa jurídica., p. 608.
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deve prevalecer54, não se autorizando a desconsideração da personalidade jurídica pelo simples fato da pessoa jurídica não dispor de patrimônio para honrar com suas obrigações. Conclui-se, então, que a interpretação do § 5º, do art. 28, do CDC, mais adequada com ordenamento jurídico pátrio é uma interpretação restritiva, que o limita aos contornos do caput, possibilitando a desconsideração da personalidade jurídica quando a pessoa jurídica não disponha de patrimônio para saldar sua obrigação para com o consumidor e se verifique a utilização abusiva ou fraudulenta da personalidade.
54
TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil, p. 79.
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Marcelo Wanderley Guimarães Mestre em Direito pela UFPR. Professor de Direito Processual do Trabalho na Universidade Positivo e de Legislação e Rotinas Trabalhistas no Centro Tecnológico da Universidade Positivo. Advogado trabalhista em Curitiba.
No mês de dezembro de 2010, circularam pelos mais diversos meios de comunicação notícias a respeito das negociações entre os sindicatos dos trabalhadores Aeronautas e Aeroviários e empregadores do setor. Os Aeroviários (categoria que abrange os empregados de empresas de transportes aéreos, mas trabalham em terra firme) e os Aeronautas (categoria que abrange os trabalhadores que atuam nos vôos, a exemplo dos pilotos, comissários de bordo, mecânicos de vôo etc) apresentaram pauta conjunta de reivindicações para tentativa de negociação com a categoria econômica (os seus empregadores). As notícias veiculadas poucos dias antes do Natal indicavam que as negociações não surtiram efeitos, motivo pelo qual os trabalhadores anunciaram que entrariam em greve a partir do dia 23.12.10. De propósito, não serão mencionadas quais eram ou deixavam de ser as reivindicações dos trabalhadores ou as propostas dos empregadores. Certamente existem bons argumentos tanto para afirmar que as reivindicações são justas e adequadas ao momento de crescimento do setor econômico, quanto para dizer que as propostas possíveis pelos empregadores foram feitas e que a deflagração de greve em plena antevéspera de Natal seria medida extrema, oportunista e irresponsável por parte dos trabalhadores. Exatamente para não nos perdermos entre as razões de uma e de outra parte, é que não se discute a procedência ou improcedência das mesmas, nem sequer se faz referência a elas. O objetivo deste artigo é justamente não
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entrar no mérito das reivindicações, mas tomar como exemplo o episódio recente – a sinalização da greve pelos trabalhadores e o seu desfecho judicial -, para abordar e refletir sobre o direito de greve e o sindicalismo no Brasil.
É evidente que a greve dos Aeroviários e dos Aeronautas pode causar incômodos, transtornos, prejuízos e até danos irreparáveis, a depender da necessidade, dos motivos, da urgência e das alternativas de transportes de que dispõem os passageiros. Também fica claro, portanto, que a caracterização e classificação de cada um – desde um mero incômodo até a configuração de um dano ou dano irreparável - só será possível se analisada a situação concreta individualmente. Assim, desde boa parte da sociedade pode sentir, direta ou indiretamente os efeitos do movimento grevista. Entretanto, para cada um esses efeitos terão sentido diverso. Para quem havia programado uma viagem de fim de semana e para quem tinha negócios a concretizar e eventualmente perderam a oportunidade de fazê-lo, as consequência são diferentes. No entanto, no caso específico da pretensa greve dos aeronautas e aeroviários pode-se dizer, com certa margem de segurança, que o grande público desses serviços, e também a maior parte dos prejudicados com a greve nas vésperas de Natal e Ano Novo seriam aqueles que compraram e programaram suas viagens de férias. Se pensarmos de maneira mais ampla, poderemos incluir outros passageiros que não apenas aqueles que pretendiam viajar a lazer, mas sim por motivo de negócios, por problemas de saúde, por motivo de falecimento de um ente querido da família, para realização de um concurso público ou vestibular. Enfim, há uma infinidade de possibilidades de conseqüências da greve em cada um dos indivíduos da sociedade. Mesmo assim, o público aqui é determinável, isto é, aqueles que precisavam do serviço de transporte aéreo e eventualmente não teriam acesso a ele. Não é diferente quando a greve se instala em outros setores. Podemos citar como exemplo a greve dos bancários, no setor privado, ou dos servidores da Previdência Social, no setor público. Além dos trabalhadores e empregadores, sempre haverá uma parcela da população direta ou indiretamente atingida pelo movimento grevista. No caso dos bancários, pessoas físicas e jurídicas deixam de cumpri pontualmente suas obrigações, pagam multas e juros, remessas de dinheiro deixam de ser enviadas ou recebidas, ficam sem dinheiro vivo em mãos. Nos exemplos do serviço público, benefícios previdenciários ficam pendentes, pagamentos a aposentados podem atrasar, perícias não são realizadas, mais atraso no atendimento e tramitação de benefícios. Enfim, toda greve possui um custo para a sociedade em geral, em
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maior ou menor grau e extensão. A população toda ou parte identificável dela pode sofrer com as greves. Portanto, se as greves têm o potencial de atingir a sociedade toda, em maior ou menor extensão, é possível afirmar que elas possuem sempre um componente político envolvido que ultrapassa os interesses das partes – trabalhadores e empregadores. Dizer que a sociedade tem interesse nos conflitos entre empregados e empregados, porém, não significa dizer que esteja sempre alerta a esse fato. Ao contrário, em geral o que se percebe é que “problema salarial de aeronauta, aeroviário, bancário, servidor público ou qualquer outra categoria que não seja a minha, não é problema meu!”. Cada macaco no seu galho, diz o dito popular. Exceto se a vítima desta ou daquela específica greve seja você. Ademais, a depender das circunstâncias, a mídia toma partido e mostra o verdadeiro “caos” que se instala em cada aeroporto ou agência bancária. Disso resulta que o interesse da sociedade não surge apenas no momento em que se ameaça ou se concretiza um movimento paredista, a partir dos indivíduos que sofrem as conseqüências diretas e indiretas da greve. É interesse de todos que as relações entre patrões e empregados sejam diretas, francas, participativas, de modo que esses sujeitos alcancem a justa composição dos seus interesses e conflitos, de modo a não prejudicar os terceiros – sociedade – que não são partes diretas nesta relação. Ressalta-se que a justa composição pressupõe a existência do conflito, o qual precisa ser admitido, enfrentado e resolvido. Portanto, a greve revela um acontecimento típico da vida em sociedade, sobretudo da sociedade contemporânea, em que o exercício de um direito individual ou coletivo pode disparar efeitos em diversas direções, gerando uma situação complexa com repercussão muito além das partes diretamente envolvidas. Daí a necessidade imperiosa de regulamentação legal sobre o assunto.
O direito de greve está previsto na Constituição Federal de 1988. Diz o art. 9º, expressamente: É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. §1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Além do mencionado texto constitucional, a Lei 7783/89 dispõe sobre o exercício do direito de greve, esclarecendo o sentido e alcance das ativida-
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des essenciais e necessidades inadiáveis, mencionados no § 1º do dispositivo constitucional citado. Conforme previsão constitucional, o direito de greve é garantido aos trabalhadores, competindo a estes decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os direitos que devem por meio dele defender. A Lei 7783/89, art. 3º, no entanto, determina que somente após “ Frustrada a
negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho.”
Em outras palavras, a greve é um direito dos trabalhadores garantido pela Constituição, porém, nos termos da Lei 7783/89, o seu exercício pressupõe que tenha havido negociação sem sucesso entre patrões e empregados. Somente após a inexistência de acordo em tentativa de negociação amigável é que a lei autoriza a paralisação coletiva do trabalho – a greve. A lei privilegia os entendimentos diretos entre os envolvidos, sem a interferência de terceiro, seja ele quem for. Eis aí questão das mais importantes. Historicamente o Estado brasileiro tem participado diretamente das relações capital-trabalho no Brasil. Algumas rápidas observações permitem esta afirmação: a) a própria Justiça do Trabalho, antes de integrar o Poder Judiciário, nasceu como órgão do Poder Executivo, destinado a conciliar os conflitos entre trabalhadores e empregadores – intervenção do Estado na relação capital-trabalho; b) a função normativa Justiça do Trabalho, mesmo após a sua integração no Poder Judiciário, constitui espécie de decisão estatal obrigatória sobre conflito de natureza econômica entre capital e trabalho, criando regras a serem aplicadas em relações de trabalho, não simplesmente fazendo aplicar o direito existente, em verdadeira atividade judicial atípica – regulamentação pelo Poder Judiciário; c) o modelo legal do sistema sindical brasileiro, desde a sua criação na década de 30, sempre esteve estritamente ligado ao Estado, seja porque carecia de autonomia até a Constituição de 1988, seja porque sua estrutura dependia economicamente de recursos provenientes de contribuições compulsórias, seja em razão da organização imposta por categorias em base territorial 1 mínima de um município – vinculação entre o Estado e os sindicatos. Esse é o modelo garantido na Carta de 1988, ao qual o texto constitucional dá o atributo de liberdade sindical. Dentro desse quadro de organização sindical, não havendo acordo entre as partes em negociação, a lei possibilita a qualquer um deles ajuizar ação, chamada de dissídio coletivo, na qual se postula uma decisão do Poder Judiciário que ponha fim ao conflito. Não havendo consenso entre as partes, decide a Justiça do Trabalho.
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Análise comparativa entre o modelo anterior e posterior à Constituição Federal de 1988 revela que a mudança mais significativa foi mesmo a autonomia dos sindicatos em relação ao Estado. Quanto aos demais elementos que compõem e modelo brasileiro de organização sindical – categorias, base territorial, contribuição compulsória, unicidade sindical – quase nada se alterou.
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Ocorre que muitas destas questões têm natureza econômica, tais como os percentuais de reajustes e os valores dos pisos salariais. Na ausência de composição direta entre as partes, a Justiça do Trabalho legisla sobre o assunto. Neste caso, o Poder Judiciário cria norma para ser aplicada no âmbito das partes envolvidas (trabalhadores da categoria e respectivos empregadores). Pois bem. Voltemos então ao ponto dos entendimentos diretos entre empregados e empregadores. Justamente a fim de promover a negociação direta entre capital e trabalho, sem a intervenção de terceiros, a Justiça do Trabalho inclusive, a Emenda Constitucional 45/2004 alterou o texto do art. 114 da Constituição 2 Federal para estabelecer que o dissídio coletivo somente poderá ser ajuizado de comum acordo entre os envolvidos. Vale dizer, empregados, por seus sindicatos, e empregadores devem estar de acordo quanto ao ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica, podendo o Judiciário decidir o conflito, não mais estabelecer normas e condições. Neste caso, parece claro, 3 a Justiça do Trabalho atuará como árbitro estatal por convenção das partes. Do que foi exposto até o presente momento, percebe-se que o direito de greve é assegurado aos trabalhadores e que cabe a estes decidirem sobre a oportunidade do seu exercício. Além disso, ao determinar que o dissídio coletivo seja ajuizado somente por comum acordo entre as partes (sindicatos dos empregados e sindicatos das empresas ou sindicato dos trabalhadores e empregadores diretamente), a mesma Constituição Federal afirma que, quanto possível, o Estado-Judiciário deve se afastar da atividade normativa perante conflitos econômicos entre particulares, capital e trabalho. Esta interpretação – exigência de comum acordo para ajuizamento do dissídio coletivo e revogação do poder normativo – pode sugerir que a classe operária estaria agora desguarnecida do último meio institucional de segurança de seus direitos. Na ausência de negociação positiva nas cláusulas econômicas com o empregador, os trabalhadores não teriam a quem recorrer. Por outro, esta mesma interpretação pode significar um verdadeiro (e forçado) impulso para uma nova etapa na história dos movimentos sindicais brasileiros, já que na ausência de uma solução oriunda de um terceiro, o Judiciário, é imperioso que as partes debatam até alcançarem a justaposição 2
Art. 114, § 2º, redação atual: Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente (sublinhado pelo autor) Art. 114, § 2º, redação anterior: - Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho. 3 Esta interpretação não é pacífica. Sobre o assunto, 2 textos são sugeridos: PRAGMÁCIO FILHO, Eduardo. Reflexões sobre o dissídio coletivo na Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 45 de 2004, in LTR vol. 74-01,89/95; SANTOS JÚNIOR, Rubens Fernando Clamer dos. O poder normativo da Justiça do Trabalho: considerações após a Emenda Constitucional n. 45/04, in LTR vol. 74-06, 711/717. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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dos seus interesses. Esta nova disposição constitucional teria determinando que a solução para os conflitos econômicos entre capital e trabalho deve partir diretamente das partes envolvidas, admitindo veladamente a possibilidade do confronto – que não é sinônimo de violência. Mas para isso é preciso que aconteça o encontro. O espaço deste artigo não merece especulações sobre isso. Só a história será capaz de dar o veredictus a respeito do impacto desta mudança na organização sindical brasileira e, consequentemente, no desenvolvimento dos trabalhadores como classe, bem como da maior ou menor democratização das relações trabalhistas, já que o encontro para uma solução autônoma requer transparência, negociação aberta e franca.
Em relação aos aeronautas e aeroviários, o mês de dezembro é estabelecido por convenção coletiva que a época própria para negociação. Em dezembro de 2010, como de praxe, reuniram-se os representantes dos empregados e empregadores para tal negociação. Segundo reportagem publicada no Jornal do Brasil, “Após 81 dias de negociação, o Sindicatos dos Ae-
roviários confirmou a paralisação da categoria prevista para ter início nesta quinta-feira” (23.12.10).4
Entretanto, no mesmo dia em que foi feito o anúncio da greve pelos trabalhadores, após uma reunião para tentativa, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) proferiu decisão liminar em processo cautelar ajuizado pelo próprio Ministério Público, na qual determina que sejam mantidos em atividade 80% (oitenta por cento) do efetivo dos aeronautas e aeroviários, de forma a viabilizar o transporte aéreo em todo o território nacional, no período compreendido entre 23 de dezembro de 2010 e 2 de janeiro de 2011, sob pena de pagamento de multa de R$100 mil (cem mil reais), por dia, em caso de 5 descumprimento. Evidente que a determinação vinda do TST esvaziou o movimento paredista, tanto porque determinou que 80% do serviço seja mantido, quanto porque estabeleceu multa em valor significativo. No dia 23 de dezembro diversos veículos divulgaram que os aeroviários e aeronautas suspenderam a
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Agência Brasil. Sem acordo, aeroviários confirmam greve para quinta-feira. Jornal do Brasil. 22.12.2010. Disponível na internet: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2010/12/22/sem-acordo-aeroviarios-confirmamgreve-para-quinta-feira/. Último acesso em 18.01.10. 5 A notícia foi divulgada oficialmente pelo site do TST, mas deixou de mencionar o número do processo. Disponível na internet via: http://ext02.tst.gov.br/pls/no01/NO_NOTICIASNOVO. Exibe_Noticia?p_cod_area_noticia=ASCS&p_cod_noticia=11667. Acessado em 22.12.2010.
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greve, ao passo que trabalhadores noticiaram que não se intimidaram com a decisão judicial e realizaram o movimento grevista, apesar das restrições 7 impostas. Portanto, aqui, o Poder Judiciário atuou para limitar o exercício do direito de greve dos trabalhadores. Vale registrar que a ação foi ajuizada pelo Ministério Público e não por qualquer uma das partes, empregados ou empregadores. Outra decisão recente do TST cumpre a letra da atual redação do art. 114, § 2º, da Constituição Federal, ao exigir que empregados e empregadores estejam em consenso quanto ao ajuizamento de Dissídio Coletivo econômico e decide por extinguir a ação ajuizada isoladamente pelo Sindicato do Professores do Sul Fluminense, ou seja, sem o comum acordo com a parte 8 contrária. Aparentemente as decisões não se encontram em conflito, porque no caso dos aeroviários e aeronautas, a ação foi ajuizada pelo Ministério Públi9 co, como permite o § 3º, do art. 114, da Constituição Federal, e no caso dos Professores a ação foi ajuizada por um dos sindicatos sem o consentimento da parte contrária. Entretanto, no caso dos professores, ao extinguir a ação por falta de consentimento da parte contrária, uma alternativa possível e provável seria utilizar a greve como último mecanismo, ou para conseguir o consentimento quanto ao ajuizamento do dissídio coletivo ou mesmo como instrumento de pressão na negociação com a classe patronal. Já no caso dos aeroviários e aeronautas, o que fez o TST foi justamente o contrário, enquanto os trabalhadores usavam o direito de greve para alcançar bom termo em suas reivin6
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Notícia comunicando a suspensão da greve está disponível no GLOBO, na internet, no seguinte endereço: http://oglobo.globo.com/economia/mat/2010/12/23/aeroviarios-aeronautas-suspendem-greve-923345849.asp. Último acesso em 18.01.2010. 7 Apesar das notícias comunicando a suspensão da greve, o Sindicato Nacional dos Aeroviários divulgou que a greve ocorreu, nos termos determinado pela decisão judicial. Notícia disponível na internet: http://www.sna.org.br/noticia.php?id_not=179. Último acesso em 18.01.2010. 8 Trata-se do processo n. 5713-89-2009-5-01-0000 (RO-5713-89.2009.5.01.0000), cujos andamentos e algumas decisões estão disponíveis a consulta pública no site do TST (www.tst.jus.br). 9 Art. 114, § 3º, CF - Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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dicações, o Tribunal esvaziou a possibilidade de efetividade do movimento 10 ao determinar a manutenção de 80% de atividade, sob pena de multa diária. Para o caso dos Professores, se não foi possível ajuizar o Dissídio Coletivo sem o consentimento da parte contrária, a greve seria um recurso válido para prosseguir a negociação e obter os resultados, totais ou parciais reivindicados ou então seria um instrumento válido para alcançar o consentimento expresso quanto ao ajuizamento do Dissídio Coletivo. Neste caso, haveria que se garantir o cumprimento do preceito constitucional. Se a greve é um direito constitucional assegurado aos trabalhadores, cabendo-lhes a decisão e oportunidade do seu exercício, não seria dado ao Poder Judiciário restringir o exercício desse direito quando exercido legitimamente e sem abuso. Para o caso dos Aeronautas e Aeroviários a limitação ao exercício do direito de greve foi tamanha que efetivamente esvaziou o movimento paredista. Não havendo possibilidade de ajuizamento do dissídio coletivo sem o consentimento da parte contrária, nem a possibilidade da greve efetiva, os trabalhadores ficam enfraquecidos, desprovidos de instrumentos de luta. Mais uma vez o conflito é abafado. Vencido o período de festas de Natal e Ano Novo, o quadro ficou assim: 1. não houve efetivamente uma greve pelos Aeroviários e Aeronautas, apesar de provável “operação tartaruga” que pode ter contribuído com o atraso de inúmeros vôos, nada transparente; 2. a única solução alcançada com o ajuizamento do Dissídio Coletivo pelo Ministério Público foi o esvaziamento do direito de greve; 3. até o presente momento não houve acordo entre empregados e patrões do setor aéreo. A última nota disponível no site do Sindicato dos Aeronautas informa que na reunião do dia 12.01.11 as pro-
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Segue a íntegra da notícia divulgada no site do TST, em data de 22.12.2010: O presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Milton de Moura França, concedeu, em torno das 20h30 desta quarta-feira (22/11) liminar determinando que sejam mantidos em atividade 80% (oitenta por cento) do efetivo dos aeronautas e aeroviários, de forma a viabilizar o transporte aéreo em todo o território nacional, no período compreendido entre 23 de dezembro de 2010 e 2 de janeiro de 2011. E fixou multa diária de R$ 100 mil, em caso de descumprimento da ordem. A liminar atende ação cautelar preparatória de dissídio de greve, movida procurador-geral do Trabalho, Otávio Brito Lopes. Após ressaltar, em seu despacho, que o direito de greve está garantido pela Constituição Federal (art. 9º), de forma que não é lícito impedir o seu regular exercício, o Ministro Moura França afirma que, igualmente, “decorre de preceito constitucional (art. 5º, XV), que todos os cidadãos têm o direito de livre locomoção em todo o território nacional, por todos os meios de transportes disponíveis, salvo restrições, em casos específicos, que a própria Constituição Federal disciplina”. O ministro também ressalta que se trata de atividade considerada essencial, daí o imprescindível e insubstituível dever dos grevistas assegurarem o pleno atendimento das necessidades da comunidade, e faz considerações sobre a particularidade de o movimento ter sido deflagrado a dois dias do Natal, impondo a atuação do Estado-Juiz diante da constatação de comprometimento do direito da sociedade . “É de seu dever, pois, garantir, de um lado, o direito de greve dos trabalhadores e, de outro, o direito de expressiva parcela da sociedade brasileira que não pode e nem deve ser afetada pelo movimento paredista, em seu sagrado direito de livre locomoção, inclusive o aéreo, em todo o território nacional, conforme lhe assegura a Constituição Federal”. Ao concluir, o Ministro Moura França determina a manutenção de 80% do efetivo de aeroviários e aeronautas em atividade, sob pena de multa de R$ 100 mil, “em cumprimento ao art. 3º, I, da Constituição Federal, que proclama uma sociedade livre, justa e solidária, e art. 22, XII, “c”, que resguarda à União o dever de assegurar o serviço de navegação aérea”.
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postas apresentadas não são satisfatórias e que nova reunião foi agendada para o dia 17.01.11. Tudo permanece como dantes.
O sindicalismo brasileiro sofre não só pelo modelo jurídico de organização que herdou do início do século passado, mas também porque culturalmente a sociedade brasileira não está acostumada a conviver com os conflitos, e menos ainda com os confrontos, entre capital e trabalho. Até que se permita que esse encontro direto e franco aconteça, não será possível vislumbrar as conseqüências que dele poderiam advir. Na medida em que o Judiciário impede o livre exercício do direito de greve, retira dos trabalhadores, além de um direito constitucional, um instrumento essencial, único e necessário na conquista de direitos sociais ao longo da história do Direito do Trabalho. Invariavelmente a sociedade será afetada quando o direito de greve é exercido. Em maior ou menor extensão, a sociedade sempre sofrerá conseqüências da greve. Porém, há que se enxergar que a não-greve ou a manutenção das condições atuais de trabalho, ou mesmo a manutenção do padrão vigente das relações entre capital e trabalho, também são igualmente refletidas na sociedade, seja pela enorme desigualdade de distribuição de renda de que o Brasil é vítima, seja pela qualidade dos serviços que recebe, seja ainda pela precarização de milhares de empregos ao longo das últimas décadas. A alteração constitucional que exige o consenso para o ajuizamento do Dissídio Coletivo de natureza econômica pode ser vista como uma medida restritiva, mas pode também ser um pontapé para que os movimentos sindicais partam cada vez mais para uma em relação franca e aberta diretamente com a parte contrária. Na ausência de acordo, resta aos sindicatos fazer uso do direito de greve, seja para tentar obter os resultados que almejam nas negociações seja para obter o consentimento necessário ao ajuizamento do Dissídio. Espera-se que as interpretações do Judiciário se harmonizem. Se é necessário o comum acordo para ajuizar o Dissídio Coletivo de natureza econômica, então o direito de greve deve ser assegurado de maneira ampla e efetiva, pleno em seu conteúdo, limitado apenas o abuso, mas que seja assegurado aos trabalhadores decidir sobre a greve e a oportunidade do seu exercício. Do contrário, restará inviabilizada a ação sindical e até mesmo o preceito constitucional que atribui aos sindicatos a função precípua de defesa dos interesses da classe trabalhadora (art. 8º, III, CF).
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Agência Brasil. Sem acordo, aeroviários confirmam greve para quinta-feira. Jornal do Brasil, 22.dez.2010. Disponível na internet: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2010/12/22/sem-acordoaeroviarios-confirmam-greve-para-quinta-feira/. Último acesso em 18.01.11. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 10 de outubro de 1988. (Texto compilado; inclui as alterações posteriores). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui% C3%A7ao.htm>. Último acesso em 18.jan.2011. BRASIL. Lei n. 7.783, de 28 de junho de 1.989. Dispõe sobre o direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil/leis/L7783.htm>. Último acesso em 18.jan.2011. CBN. Aeronautas e aeroviários suspendem greve. O Globo. 23.dez.2010. Disponível na internet: http://oglobo.globo.com/economia/mat/2010/12/23/aeroviariosaeronautas-suspendem-greve-923345849.asp. Último acesso em 18.01.11. FONSECA, Cláudia. TST não impede greve dos aeroviários: trabalhadores se unem e promovem paralisação de acordo com a determinação judicial. Notícias SNA (Sindicato Nacional dos Aeroviários). Disponível na internet: http://www.sna.org.br/noticia.php?id_not=179. Último acesso em 18.01.11. PRAGMÁCIO FILHO, Eduardo. Reflexões sobre o dissídio coletivo na Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 45 de 2004, in LTR vol. 74-01,89/95. SANTOS JÚNIOR, Rubens Fernando Clamer dos. O poder normativo da Justiça do Trabalho: considerações após a Emenda Constitucional n. 45/04, in LTR vol. 74-06, 711/717. TEIXEIRA, Ribamar. Greve do setor aéreo: TST determina manutenção de 80% do efetivo em atividade. Notícias do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília, 22.12.2010. Disponível em: http://ext02.tst.gov.br /pls/no01/NO_NOTICIASNOVO.Exibe_Noticia?p_cod_area_noticia=ASCS &p_cod_noticia=11667. Acesso em: 22.12.2010.
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Pedro Luciano Evangelista Ferreira Professor de Direito Penal e Criminologia no Curso de Direito da Universidade Positivo. Mestre em Direito Penal e Criminologia pela UCAM/RJ. Professor da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP-PR). Professor do Curso Preparatório Prof. Luiz Carlos. Advogado.
O presente estudo é a continuação de uma reflexão feita anteriormente sobre as “múltiplas funções do bem jurídico-penal”, mas que agora segue trabalhando com autorizada doutrina não só jurídico-penal, mas também criminológica, com especial destaque para o significativo questionamento apresentado pela criminologia interacionista, que surge com o advento do labeling approach pelos idos de 1960. Sempre é oportuno destacar que o conceito de bem jurídico é de suma importância a qualquer indagação jurídico-penal pois serve de substrato material e critério diretivo a todo processo de criminalização. A sua importância é tamanha que a precisa compreensão das características e peculiaridades de qualquer espécie de crime não pode prescindir de duas perguntas principais: Qual bem jurídico o legislador busca proteger? Quais as formas de lesão que o tipo penal procura evitar? Atento a estas questões mister dedicar o presente estudo para buscar uma precisa definição de bem jurídico e o seu esquadrinhamento de suas múltiplas funções dentro da sistemática jurídico-penal, pois como bem assevera MAURACH: “El bien jurídico es el núcleo material de toda a norma de conducta y de todo tipo construido sobre ella. La interpretación de la ley penal - y com ella su conocimiento -, sin la directriz que le da la noción del bien jurídico, es simplesmente imposible.”1
1
MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Parte general - tomo I. Atualizado por Heinz Zipf. Tradução da 7ª edição alemã por Jorge Bofill Genzsch e Henrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1994. p. 339. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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Há muito se tem asseverado não existir sociedade sem o direito e o direito sem a sociedade - afirmação contida no brocardo latino “ubi societas, ibi ius” - uma vez que a sociedade não representa mera justaposição de indivíduos em determinadas coordenadas espaço-temporais, mas pressupõe a formação de um grupo de indivíduos convivendo e interagindo entre si pelas mais variadas formas de relações. A formação do corpo social busca alcançar a coexistência harmônica de todos os seus integrantes, coexistência que só será conseguida por meio da coordenação e adaptação das atividades e interesses individuais entre si. Esta coordenação é obtida pelo ordenamento jurídico, pela ética e pela moral que são conjuntos de regras de conduta, mas ao contrário das normas éticas e morais, as normas jurídicas ocupam destacada posição haja vista serem inter-subjetivas e não terem sua atuação circunscrita ao âmbito intrasubjetivo, como ocorre com aquelas. Responsável por traçar os limites das atividades de cada indivíduo, o ordenamento jurídico impõe e garante a observância de seus preceitos por meio de sanções cujos efeitos ultrapassam a esfera da consciência individual acentuando sua força coercitiva. Não é exagero concluir que o Direito cria e regula a própria sociedade, considerada como um todo, ou em suas partes ou elementos que a constituem - tanto pessoas físicas como pessoas jurídicas – sob o prisma jurídico. Assim, sob certo ponto de vista, o homem, como sujeito jurídico, também não deixa de ser uma criação do Direito, que ora lhe atribui faculdades, ora as reduz, ora delas o priva. Sendo essa a causa do Direito pode se notar a existência de tantos ordenamentos quantas forem as formas de organização social, nada legitimando a afirmação de que o Estado é a sua única manifestação. Pode-se dizer que ele é a manifestação mais recente já que foi antecedido por outras formas de organização social como as famílias, as tribos e os clãs. A própria Igreja é considerada como organismo autônomo, com ordenamento jurídico próprio (jus canonicum) e é tratada como qualquer outro Estado nas suas relações internacionais. As sociedades, companhias, sindicatos e corporações também se regem pelos seus próprios ordenamentos que estabelecem direitos e deveres para seus membros, e assumem, por esta razão, caráter eminentemente jurídico. Impende gizar a natureza do Direito como produto criado pelos agrupamentos sociais de acordo com a intensidade e direção das necessidades e interesses prevalentes em certo contexto histórico, em repulsa as concepções ideológicas do Direito como algo natural e pré-existente a toda a soci-
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edade, fruto de noções universalmente válidas.2 Assim, desponta claro e evidente que não pode haver independência ou dissociação entre o estudo do Direito e o estudo do ambiente cultural em que ele se desenvolve. 3 Desse modo, deve-se também frisar que todas as ciências sociais – a exemplo do Direito, da História e da Criminologia – são ideologicamente comprometidas, já que o homem é ao mesmo tempo sujeito cognoscível e objeto cognoscente. A pretensa “neutralidade científica” só é possível em ciências em que o objeto de estudo não é socialmente construído, ou seja, quando sua existência independe da ação humana, como ocorre com as ciências naturais. Porém, sob o ponto de vista dogmático, ou em função exclusiva das normas jurídicas, pode se afirmar que só há o Direito que promana do Estado uma vez que este, nos tempos atuais, é o poder absoluto dotado de soberania - nos limites de seu território -, sendo por meio do Direito que ele se constitui e representa a sua eficiência e força. Mas a realidade mostra que o Estado convive com outros ordenamentos ainda que enfeixe em suas mãos o ordenamento jurídico. Sobre o conjunto de relações sociais destinadas, em primeiro plano, à produção de condições materiais de existência do homem - variáveis em razão do contexto histórico em que se desenvolvem e influenciando fortemente este último - é criada a superestrutura jurídica, fruto da sedimentação e adensamento da ideologia dominante em uma sociedade estratificada de classes uma vez que a atividade humana não só é responsável pela produção social, mas também pela produção de ideias que desenvolvem e aperfeiçoam o modo de produção social.4 Buscando tornar possível a coexistência pacífica dos indivíduos em sociedade, o Estado irá defender e preservar os valores e interesses sociais especialmente relevantes segundo parâmetros escolhidos pelos interesses sociais hegemônicos, proteção que é efetivada por meio de todo um arsenal de normas jurídicas a serem executadas pelos órgãos oficiais. Todos os atos praticados pelo homem que contrariem as normas jurídicas serão denominados ilícitos jurídicos, são os atos que atacam ou colocam em perigo os interesses e valores protegidos pelo Direito. O objeto da proteção jurídica, representado por um interesse ou valor importante para a sociedade ou para o indivíduo recebe a denominação de “bem jurídico”, elemento central para a própria conformação e caracterização do Direito.
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BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 18. FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Direito Penal Português. Parte Geral. Tomo I. Lisboa: Verbo: Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. 1981. p. 23. 4 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia da Repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 14. 3
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Roxin - já nos primeiros parágrafos de sua obra - destaca a importância do conceito material de crime para a legitimação do poder punitivo estatal e para definição de todo o conteúdo da ação punível. 5 Em sentido amplo, bem é tudo que possui utilidade e necessidade, enfim todas as coisas materiais ou imateriais que possuem valor e que em razão deste valor são procuradas, disputadas, defendidas e, por força do inevitável choque de preferências e interesses individuais, estão sujeitas a certas formas de ataque ou lesão das quais precisam ser defendidas. 6 Todavia importa salientar que não são todos os valores e interesses sociais e individuais que são considerados bens jurídicos, mas apenas aqueles valores e interesses cuja “relevância social”7 torne indispensável o seu reconhecimento e a sua proteção pelo Direito. Desta forma o bem jurídico representa um interesse de vital apreciação comunitária ou individual que - por sua acentuada importância para a sociedade - recebe a tutela do ordenamento jurídico em razão das exigências da consciência geral ou das classes dominantes em determinado grupo social.8 Como se pronuncia a doutrina, entende-se por bem jurídico todo o estado social representativo de um valor ético-social especialmente significativo que o Direito busca proteger de lesões.9 Enquanto que coisa é o gênero que representa tudo que pode existir tanto no mundo exterior quanto no mundo interior do homem, o bem é a espécie, representando apenas as coisas que são ou podem ser objeto de um direito de modo que o ar atmosférico e as estrelas do céu não podem ser bens jurídicos enquanto que a honra, a vida e a propriedade podem. O termo “jurídico” surge a partir do momento que o bem não apenas é reconhecido, mas também tutelado pelo Direito. É oportuno esclarecer que os bens jurídicos podem representar valores sociais permanentes que perduram pelo tempo ou ainda valores de conteúdo variável em razão das mutáveis concepções de vida. 10 A esse propósito temos a liberdade e a honra, respectivamente. Mas ainda que o ordenamento jurídico seja definido como o conjunto total de normas emanadas do Estado, ele irá se dividir em vários ramos de acordo com a natureza das relações sociais que serão tratadas e com o objeto de sua proteção e de estudo, não obstante estes ramos manterem rela5
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general - Tomo I. Trad. 2ª edición alemana. Madrid: Thomson Civitas, 2003. p. 51 6 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.15. 7 Nota do autor: Cumpre mais uma vez destacar que mesmo em uma sociedade democrática esta “relevância social” é definida segundo os interesses daqueles que tiverem maior influência perante o Estado e não da maioria. Para tanto não devemos ignorar a utilização dos mais variados instrumentos (formais e informais) de manutenção, reprodução e controle ideológico. 8 MAURACH, Reinhart. op.cit. p. 333 9 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Busto Ramirez e Sérgio Yáñez Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1970. p. 15. 10 BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo 1º. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 30.
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ções de interdependência visando a formação harmônica, integrada e não contraditória, de todo o ordenamento jurídico.
Dentre os vários ramos do Direito - cuja separação atende principalmente a fins didáticos - temos o Direito Penal que é responsável por defender os valores mais caros e essenciais para o corpo social ao regular a atuação estatal no combate do ilícito penal que representa a forma mais grave de ilícito jurídico.11 Assevera-se que o Direito Penal é o conjunto de regras jurídicas ( jus poenali) que disciplinam o poder punitivo do Estado ( jus puniendi), em razão dos fatos possuidores de natureza criminal e, consequentemente, as medidas que são aplicáveis a quem os pratica12. Outros, afirmam que o Direito Penal é compreendido pelo conjunto de normas e disposições jurídicas reguladoras do exercício do poder estatal sancionador e preventivo, estabelecendo o conceito de crime como pressuposto da ação estatal, assim como da responsabilidade do sujeito ativo e, associando com a infração da norma uma pena finalista ou uma medida asseguradora13. As definições do que seja o Direito Penal – segundo a dogmática jurídico-penal – são várias apesar de manter a mesma essência, valendo destacar que ele pode ser observado através de três prismas diferentes, mas relacionados entre si.14 Sob o prisma objetivo, o Direito Penal seria definido como o conjunto das normas jurídicas pelas quais o Estado exerce a sua função de prevenir e reprimir a prática de fatos puníveis por meio da imposição de sanções aos seus autores15 (Direito Penal Positivo ou também Direito Penal Objetivo). Sob o prisma subjetivo o Direito Penal pode ser entendido como a faculdade que possui o Estado de considerar certas condutas como criminosas - mediante prévia tipificação legal - e de determinar, aplicar e executar as consequências jurídicas correspondentes (Direito Penal Subjetivo) 16. Já sob o prisma científico, o Direito Penal pode ser definido como o conjunto de conhecimentos que orbitam em torno do Direito Penal - objetivo
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MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal: parte general. 7º edición. Buenos Aires: Euros Editores S.R.L.,2005. p. 50. No mesmo sentido: BRUNO, Aníbal. op.cit. p. 25 e BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, volume 1. 6ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 02. 12 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, volume 1. 34ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999. 13 ASÚA, Luiz Jimenez de. La ley y el delito. Princípios de Derecho Penal. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Hermes, 1954. pp. 20-21. 14 BATISTA, Nilo. op cit. p. 50. 15 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. Vol.I. Tomo I. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Max Limonad, 1954. p. 8; BRUNO, Aníbal. op.cit. p. 28. 16 MIR PUIG, Santiago. op.cit. p. 52. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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e subjetivo - com vistas a possibilitar sua melhor compreensão e aplicação (Direito Penal Ciência, Ciência do Direito Penal ou Dogmática Jurídico-Penal). Estão intimamente entrelaçados os conceitos de Direito Penal como ciência fundante e determinadora do exercício do poder punitivo do Estado e a definição do Direito Penal como conjunto de normas que regulam o poder punitivo, e ainda, de Direito Penal como faculdade exclusiva do Estado de exercer o poder punitivo em nome da sociedade. O Direito Penal possui fundamental importância, uma vez que é responsável pela proteção dos interesses e valores mais importantes e essenciais para a sociedade. Esta proteção será realizada por meio da proibição de condutas humanas lesivas (real ou potencialmente) aos deveres ético-sociais elementares consubstanciados na figura dos bens jurídico-penais. Referida proibição possuirá atrelada ao seu descumprimento reprovável a imposição de consequências jurídico-penais específicas que se consubstanciam na aplicação de penas e medidas de segurança, conforme sistemática adotada pela maioria dos códigos17. Neste sentido o conceito de bem jurídico representa um dos principais elementos que constituem o arsenal teórico da dogmática jurídico-penal, desempenhando importantes funções (re)veladas no discurso oficial. Pois bem, uma destas funções, por si só suficientes para marcar o papel de relevância do bem jurídico dentro do Direito Penal, diz respeito ao próprio fim perseguido pelo Direito Penal. Não obstante o Direito Penal – na visão da doutrina crítica - representar o mais rigoroso sistema de controle e dominação social cuja criação está vinculada a certas finalidades funcionais de manutenção/reprodução de um sistema social global em cumprimento de uma nítida missão política (ou como querem alguns maniqueístas simplesmente dizer “para combater o crime”), em razão de um dos princípios basilares do Direito Penal - o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos - este ramo do Direito nasce voltado para a promoção da defesa da sociedade (ou pelo menos parte dela 18) pela proteção dos bens jurídicos que lhe são mais essenciais como a vida humana, a integridade corporal, a honra, a saúde pública, o patrimônio, etc.19 Vale ressaltar que a coordenação dos comportamentos humanos muitas vezes antagônicos e colidentes - requer a utilização de critérios de decisão uma vez que a resolução de conflitos supõe a eleição de interesses predominantes ou a conciliação de interesses avaliados pela sua relacionação 17
MIR PUIG, Santiago. op.cit., p. 49. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 162; No mesmo sentido: ANDRADE, Vera Regina Pereira de Andrade. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 205 e ss e SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 3ª ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008. pp. 4 – 14. 19 ROXIN, Claus. op.cit. pp. 52 e ss. No mesmo sentido: MIR PUIG, Santiago. op.cit. p. 128. 18
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com os interesses superiores20, neste ponto avulta a importância dos bens jurídicos, interesses e valores sociais importantes modernamente erigidos a esta categoria (bem jurídico) em consonância com os Direitos Humanos ou Direitos Fundamentais, pelo menos em tese. Contudo, a legitimação da intervenção penal no processo de disciplinamento dos comportamentos humanos em determinado contexto social depende da danosidade real ou potencial destas condutas. Isto ocorre por força do princípio da lesividade que impede a criminalização de condutas puramente internas que sejam apenas imorais ou diferentes, daí surgindo os crimes de dano e crime de perigo (concreto e abstrato). As consequências da adoção deste princípio pelo Direito Penal estão representadas na proibição da incriminação de atitudes, idéias, sentimentos internos que não se manifestem em uma conduta externa, ainda que, em última análise se identifique com um comportamento omissivo, ou até simples “imoralidades” como quer Roxin. Vale observar que o próprio tipo objetivo dos crimes dolosos necessita de um verbo a representar uma ação humana (matar, ocultar, induzir, etc.) como núcleo material, caso contrário, estaria criminalizando um estado de pensamento, uma atitude interna que, isoladamente, não representaria lesão à bem jurídico algum. 21 Também são proibidas as incriminações de condutas que se restringem ao âmbito do autor como os atos preparatórios previstos no art. 14, inc. II, do Código Penal Brasileiro e, também, a situação do crime impossível ou tentativa inidônea, descrita no art. 17 do mesmo codex, porque estão enquadradas no rol das condutas que não representam lesão ou perigo de lesão de bem jurídico, ou ainda, em havendo a lesão de bem jurídico, que esta não ultrapasse a esfera do autor, como ocorre com o suicídio 22. Na mesma linha de raciocínio são proibidas pelo princípio da lesividade as incriminações de simples estados pessoais ou condições existenciais, como desejam os sectários do Direito Penal do Autor que toma como base qualidades pessoais do agente para a imposição de pena23. Hodiernamente, com o advento do Estado de Direito e em nome da certeza e da segurança jurídicas, nas legislações penais prepondera o Direito Penal do Ato como norte diretivo, utilizando a intensidade e a direção das ações humanas - efetivamente praticadas, não apenas idealizadas - para fins de imposição de penas.
20
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 37. BATISTA, Nilo. Op.cit. p. 92. No mesmo sentido: ROXIN, Claus. op.cit. p. 56, MIR PUIG, Santiago. op.cit. p. 125., dentro outros. 22 Nota do autor: Em que pese o suicídio não ser um ilícito penal, continua sendo um ato ilícito. 23 Nota do Autor: apesar de predominar em nosso ordenamento o Direito Penal do ato, existem resquícios do Direito Penal do Autor, ad exemplum, a reincidência e até o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) na visão de alguns autores. 21
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Por fim são proibidas as incriminações de condutas desviantes que não danifiquem qualquer bem jurídico, o que abre espaço para o direito à diferença. Desta forma, certos comportamentos, ainda que estejam fora dos padrões escolhidos pela sociedade e recebam reprovação intensiva, não poderão ser criminalizados se não representarem lesão ou perigo de lesão a qualquer bem jurídico alheio, o que destaca ainda mais a importância do conceito de bem jurídico. Assim, o bem jurídico exerce a sua função de impedir que o legislador tipifique como crimes comportamentos humanos que não representem lesão ou perigo de lesão, constituindo verdadeiro limite material ao direito estatal de punir.24 Em se tratando do bem jurídico como critério legitimador e limitador da intervenção penal, precisas são as palavras de NILO BATISTA ao observar que: “O bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e
alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando a ofensa.” 25
Mas para nortear a criação e aplicação das normas jurídico-penais não basta apenas o escopo de proteger determinados interesses ou valores socialmente relevantes. Segundo o princípio da subsidiariedade ou intervenção mínima, o Direito Penal só atua na proteção dos bens jurídicos considerados mais importantes e essenciais à sociedade26, e ainda, apenas quando se verificarem contra estes a ocorrência - ou perigo de ocorrência - das formas mais graves de lesão e não contra todas as formas de agressão possíveis, conforme estabelece outro princípio de grande importância para o Direito Penal - o princípio da fragmentariedade - de modo que nem todos os bens jurídicos são protegidos pelo Direito Penal e nem todas as ações lesivas são por ele envolvidas.27 O caráter fragmentário do Direito Penal opõe-se a visão da “onipresença e onipotência da tutela penal”, tão bem: a) aceita pelas legislações medievais; b) aplicada com vigor no sistema penal do absolutismo; c) defendida por certos movimentos da política criminal contemporânea (“lei e ordem”). Definitivamente, o Direito Penal não é o detentor do monopólio no tratamento de todos os ilícitos existentes e não deve tratar dos mesmos de maneira minuciosa. É necessário que o Direito Penal deixe espaço para os instrumentos jurídicos não-penais agirem quando estes forem por si só sufi24
PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 40. BATISTA, Nilo. op.cit. p. 95. 26 Não se olvide mais uma vez a relatividade dos bens tutelados penalmente, uma vez que os interesses essenciais seriam assim definidos de acordo com o sistema de valores e interesses dominantes em uma estrutura social estratificada porquanto o Direito Penal não representa (e defende) um sistema de valores e normas cuja aceitação social é unânime, mas sim o sistema de valores prevalentes no momento embriogênico das normas (legislador) e no momento de sua aplicação (juízes, polícia, penitenciárias, etc.) evidenciando a “dupla seletividade do Sistema Penal”. Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 75. 27 MIR PUIG, Santiago. op.cit. p. 126. No mesmo sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 12 e ROXIN, Claus. op.cit. p. 65. 25
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cientes, caso contrário a atuação excessiva do Direito Penal retirar-lhe-á a legitimação da necessidade social.28 Em razão do Direito Penal ser responsável pela aplicação das formas mais severas de sanção existentes dentro de todo o ordenamento jurídico ele exige que sua estrutura seja rigorosamente delimitada e definida, e ainda, que sua aplicação seja realizada apenas nas hipóteses em que outras formas de proteção de determinado bem jurídico, verbi gratia, os outros ramos do direito, tiverem falhado em sua função protetiva. Vale reforçar que em razão do Direito Penal representar desde os primórdios da civilização a forma mais radical e contundente de intervenção na esfera individual, ele deve ser utilizado somente em razão última - ultima ratio - evitando a inflação penal para que o sistema penal não tenha apenas uma atuação simbólica, como estipula o princípio da intervenção mínima ou subsidiariedade que, aliás, como visto, se relaciona intimamente com o princípio da fragmentariedade. A utilização dos instrumentos do Direito Penal onde se mostra suficiente outra forma de atuação jurídica de natureza mais branda e amena é insensata e contraproducente porque se opõe aos fins do direito. 29 A necessidade de defesa em relação a ofensa precisa estar dotada de racionabilidade e para tanto não basta que a defesa seja capaz de prevenir ou fazer cessar a ação agressiva, mas é imperioso que a forma de defesa possa ser considerada racionalmente necessária para atingir tal desiderato. Dessume-se, portanto, que o Direito Penal não é um exaustivo sistema de proteção dos bens jurídicos uma vez que não abarcará todos eles e muito menos alcançará todas as formas possíveis de ações que representem uma lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos defendidos. A função maior de proteção dos bens jurídicos, atribuída à lei penal, não é absoluta. Observadas e atendidas as ressalvas impostas pelos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, impende esclarecer que o bem jurídico desempenha outro papel de grande relevo dentro do Direito Penal que é o de figurar como delimitador do conteúdo material do injusto penal. Mas nem sempre este foi o entendimento adotado pela dogmática jurídico-penal vez que inicialmente o crime era concebido como um pecado, uma afronta aos poderes divinos, uma desobediência que era punida com a expulsão do infrator como sacrifício para salvaguardar a coletividade e satisfazer aos deuses. Posteriormente o Iluminismo - com sua busca pela razão fórmula uma noção de crime desvinculada dos preceitos religiosos/míticos, entendendo-o como lesão ou perigo de lesão aos direitos subjetivos. Ressalte-se que esta concepção é fruto da aplicação da teoria contratualista no 28
Nota do autor: Para estudo mais apurado sobre a legitimidade punitiva vide: ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes Conceição. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 29 BATISTA, Nilo. op.cit. p. 87. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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direito penal em decorrência da ideologia liberal-individualista.30 Em seguida é desenvolvido o conceito de crime como lesão ou perigo de lesão de interesses vitais31, terminando por desenvolver a concepção material de crime como injustificada lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico que atualmente é um verdadeiro axioma.32 Deste modo, evidencia-se com translúcida clareza que o modo pelo qual o Direito Penal irá atuar está intimamente relacionado com o bem jurídico já que dependerá - de maneira incontornável - da seleção de quais interesses e valores serão objetos de proteção, e ainda, estará inequivocamente limitado pela escolha de quais formas de agressão que - mediante prévio e taxativo processo de tipificação legal - serão envolvidas pelo Direito Penal. A propósito, urge explicitar que a parte especial dos Códigos Penais contemporâneos - em que, via de regra, estão elencadas as condutas consideradas criminosas - trata dos crimes em espécie de acordo com certa classificação escolhida pelo legislador quando utiliza o bem jurídico como critério de seleção, disposição e agrupamento de crimes. Observando a parte especial do Código Penal Brasileiro atualmente em vigor (Decreto-lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940) que se inicia no art. 121 e finda no art. 359-h, pode-se visualizar a previsão de 11 (onze) títulos em que estão agregadas e divididas as figuras delitivas de acordo com o bem jurídico protegido, exempli gratia, “dos crimes contra a pessoa”, “dos crimes contra a família”, “dos crimes contra o patrimônio”, “dos crimes contra a paz pública”, “dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos”, “dos crimes contra a administração pública”, etc. Não se olvide que o bem jurídico, considerado um dos pólos do Direito Penal ao lado da norma, também possui um papel de incomensurável importância no momento da interpretação teleológica de qualquer preceito e de todo o ordenamento jurídico já que os seus fins inventivos e justificadores estão presentes no momento em que certos interesses são elevados a categoria de bem jurídico.33 Todavia, é oportuno esclarecer que o conceito de bem jurídico não se confunde com o conceito de objeto material do crime uma vez que este representa o objeto sobre o qual recai diretamente a ação lesiva praticada pelo agente (sujeito ativo) enquanto que o bem jurídico é o interesse ou valor cuja proteção é almejada pela norma penal.
30
PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 22. TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit. pp. 16-17. 32 ROXIN, Claus. op.cit. p. 52 e PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 24. 33 Neste sentido: ASÚA, Luiz Jimenez de. op.cit. p. 22; BATISTA, Nilo. op.cit. 96; PRADO, Luiz Regis. op.cit. p.41. Neste sentido vale lembrar a seletividade da criminalização primária (criação da norma) e secundária (aplicação da norma). 31
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Ad exemplum, observe-se que no crime de furto o bem jurídico protegido sempre será o patrimônio enquanto que o objeto material pode ser um livro, um relógio, um automóvel, uma valiosa obra de arte, etc. Estes motivos já seriam suficientes para demonstrar de maneira clara e precisa a penetrante propagação de efeitos do conceito de bem jurídico na forma como é constituído, estruturado e aplicado o poder punitivo do Estado, mas a importância do bem jurídico é ainda maior. O bem jurídico também exerce sua influência sobre a pena que é a forma mais incisiva de intervenção estatal na esfera individual uma vez que em razão do princípio da proporcionalidade das penas deve existir um justo equilíbrio entre a intensidade da ofensa praticada contra certo bem jurídico protegido pelo direito penal e a respectiva conseqüência jurídica a ser suportada pelo agente praticante do injusto penal reprovável, ou seja, é imprescindível analisar a natureza e importância do bem jurídico atacado, bem como a intensidade da ofensa ou lesão suportada (ou tentativa de lesão), para só então se tornar possível a análise da existência ou não de mencionada proporcionalidade. Deve também ficar registrada a existência do entendimento de que o bem jurídico desempenharia ao mesmo tempo uma função individualizadora ao servir de parâmetro para a fixação concreta da pena atendida a proporcionalidade supramencionada.34
Não bastasse a relação existente entre o bem jurídico e os princípios básicos do Direito Penal - fortes baluartes e, repita-se, precisos limitadores do poder punitivo estatal -, o bem jurídico ainda irá desempenhar respeitável papel dentro da teoria geral do crime. A teoria geral do crime, teoria jurídica do crime ou teoria do fato punível constitui o cerne do Direito Penal, “o segmento principal da dogmática penal”35 porque destina-se explicar as características gerais e essenciais da conduta punível e de seu autor, assinalando os caracteres constitutivos gerais e comuns a todos os fatos puníveis36, descobrir a “essência do conceito geral do delito”37, tratando da chamada parte geral38. Todavia, o trabalho do espírito para empreender a apreciação ou análise das características gerais do fato punível não se esgota no estudo da parte geral dos códigos, mas é um trabalho que exige por parte da doutrina a investigação da parte especial dos códigos, porquanto a parte geral de vários 34
PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 41. SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 01. 36 WELZEL, Hans. op. cit. p. 50. 37 MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luis Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 01 38 No mesmo sentido: MIR PUIG, Santiago. op.cit. p.146 e ROXIN, Claus. op.cit. p.192 35
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códigos é por demais sucinta, limitada mais à questão da aplicação da lei penal do que da própria categorização e construção de um conceito de crime.39 A teoria geral do crime ou teoria do fato punível, conforme modernas orientações, considerada uma “disciplina lógica, intrasistemática, conceitual e de oculta vinculação com a realidade40” busca responder uma série de perguntas que orbitam ao redor do seu objeto de estudo: o fato punível. Ocorre, no entanto, que muito pouco seria conseguido se houvesse a pretensão de responder tudo com uma só pergunta. Deste modo, as perguntas são consequências de uma análise que ocorre a passos sucessivos e ordenados, não se contentando apenas com a verificação ou não da ocorrência de um fato punível.41 A definição do fato punível pode variar dependendo do enfoque a ser utilizado pelo sujeito cognoscente, contudo, sem resultar em uma modificação do objeto cognoscível. Sob o aspecto formal - cujo ponto de referência repousa sobre o direito positivado - o fato punível passa a representar todo comportamento humano que contrarie a lei penal42; ou seja, “todo o crime resulta de definição legal”43, repelindo-se pela experiência e pela lógica a ideia proposta por GARÓFALO da existência de um suposto “crime natural” como criminalidade substancial identificável em todos os tempos e lugares. A definição puramente formal de fato punível que o restringe a análise de sua contrariedade com o ordenamento jurídico-penal não é falsa, porém, se traduz em uma “fórmula vazia”.44 Já sob o aspecto material, buscando-se a essência do crime em sua realidade fenomênica, a sua substância, o fato punível seria toda lesão ou perigo de lesão às condições existenciais do grupo social manifestadas em realidades aptas a realizar a satisfação de necessidade humanas - individuais ou coletivas -, que são objeto da proteção jurídica, em especial da tutela mais severa de todo o direito: a tutela penal.45 Assim o conteúdo necessário de todo fato punível não está representado por uma agressão a qualquer interesse humano, mas apenas a violação de determinado bem jurídico protegido pelo Direito Penal, pois “é sempre
um bem jurídico o objeto da especial proteção que a lei confere com a cominação de pena, e a violação ou exposição a perigo deste bem é que constitui 39
TAVARES, Juarez. Teorias do Delito: variações e tendências. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980. p. 06. 40 GOMEZ BENITEZ, José Manuel. Teoria Jurídica do Delito. Reimpression. Madrid: Civitas. 1988. p. 27. 41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 384. 42 NORONHA, E. Magalhães. Op. cit. p. 96; BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 281; SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. (2000) p. 02; MUÑOZ CONDE, Francisco. op.cit. p. 02 43 BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 282. 44 FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 195. 45 BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 282; TOLEDO, Francisco de Assis. op.cit. p. 80; SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 02.
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comportamento criminoso”.46 Porém, em última análise a lesão de um bem jurídico-penal não esgota o conceito de fato punível em sua totalidade porque representa apenas um resultado essencial do crime. 47 Tudo isto é certo, mas interessa, para objetivos práticos, saber quais características deve possuir um comportamento humano positivo (ação) ou negativo (omissão) para que só então seja considerado um fato punível. Buscando sanar as deficiências apresentadas pelos outros conceitos de fato punível surge o conceito analítico, dogmático ou “operacional” 48que, não obstante encontrar-se no plano teórico-abstrato, possui incontestável eficácia prática de esclarecimento e elucidação ao definir, modernamente, o fato punível como toda conduta - ação ou omissão - típica, antijurídica e culpável49. Elaborado pela dogmática germânica nos fins do século XIX e início do século XX mediante esforço de investigação lógica e sistemática das leis penais surge, inicialmente, o conceito clássico que adota a sistemática do esquema “objetivo-subjetivo” cunhado por VON LISZT e BELING, segundo o qual, crime seria o movimento corporal (ação) que produziria uma modificação no mundo exterior.50 Neste conceito não eram reconhecidas quaisquer valorações porquanto, seguindo o conceito causal-naturalista de ação51, considerava-se a tipicidade sob aspecto objetivo-descritivo, seguido de uma antijuridicidade objetivo-normativa, completada pela culpabilidade subjetivo-descritiva.52 Na seqüência - por força da influência da filosofia neokantiana - o conceito clássico adquire novas feições buscando sanar algumas insuficiências e repelir as fortes críticas que lhe eram dirigidas sem, contudo, abandonar suas características fundamentais como o conceito causal de ação. 53 Passando a ser chamado de conceito neoclássico de crime, verifica-se agora a consideração de elementos axiológicos e normativos por influência da chamada teoria teleológica do crime.54 A ação perde seus aspectos puramente biológicos e passa a ser definida de maneira mais geral e abrangente como conduta volitiva, voluntária ou humana.55 Na tipicidade ocorre a inclusão de elementos normativos e a consideração de elementos subjetivos no tipo, conquistas teóricas advindas dos 46
BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 285. FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 195. 48 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 02 49 Visão conceitual adotada pelo sistema tripartido do fato punível, não olvidando a existência do sistema bipartido que trabalha com o conceito de tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade) e culpabilidade, conforme adiante alinhavado. 50 ROXIN, Claus. op.cit. p. 198 e ss. 51 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 17. 52 BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 139. 53 GOMEZ BENITEZ, José Manuel. op. cit. p. 59. 54 TAVARES, Juarez. op.cit. 41; BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 139. 55 TAVARES, Juarez. op.cit. 42 47
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estudos desenvolvidos por MEZGER a partir das enunciações deste, de MAYER e de HEGLER. Ainda possuindo nítida natureza objetiva, a tipicidade deixa de ser apenas a descrição avalorativa originalmente proposta por BELING e passa a ser resultado de juízos de valor. Já o conteúdo da antijuridicidade não se restringe ao seu aspecto formal (contrariedade do fato com o ordenamento jurídico), mas requer um conteúdo material expresso na lesividade social da conduta. No que tange a culpabilidade, a teoria teleológica afasta a concepção puramente psicológica recepcionando definitivamente os elementos normativos concebidos especialmente por FRANK. A culpabilidade agora não representa apenas o liame psicológico existente entre o autor e o fato punível, mas perfaz a reprovabilidade do autor pela formação de vontade contrária ao dever. Todavia a última grande modificação no conceito analítico do fato punível ocorre com o advento da doutrina finalista de WELZEL, que adequou o conceito jurídico de ação ao seu conceito ôntico-ontológico, identificando-o com o “exercício de atividade final”56, como “fator de direção que sobrede-
termina o sucesso causal exterior e o converte, deste modo, na ação orientada para o objetivo”57. Contudo é necessário observar que a terminologia utilizada por WELZEL em 1935 (Finalität), se interpretada literalmente, dá lugar a equívocos - especialmente nos crimes culposos como admite referido autor - uma vez que a concepção adequada de ação finalista não se resume apenas a finalidade, mas encerra as ideias de direção e orientação, de encaminhamento sob o ponto de vista “biocibernético antecipado”. Assim, o mais correto seria denominar a “teoria final da ação” de “teoria da ação cibernética”, porém a primeira expressão consagrou-se mundialmente e, observada a ressalva acima, atende aos objetivos propostos desde que as principais atenções estejam centradas nas “descrições materiais de direção e do encaminhamento dos sucessos da ação”, como propõe WELZEL com especial argúcia.58 Desta forma não só a vontade, mas também o conteúdo da vontade passou a ser considerado no próprio conceito de conduta. Se conduta implica vontade, a vontade sempre leva (e se dirige) a uma finalidade porque não existe vontade de nada ou vontade para nada. Destarte, as consequentes modificações estruturais ocorridas na teoria do fato punível foram enormes, especialmente no que diz respeito ao tipo e a culpabilidade. O dolo e a culpa migram para o tipo formando a figura do “tipo subjetivo”, já a culpabilidade passa a ter sua estrutura composta apenas por elementos normativos destinados a fundamentação do juízo de reprova-
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WELZEL, Hans. op.cit. p. 53. WELZEL, Hans. A dogmática no direito penal. In Revista de Direito Penal nº 13/14, jan-jun 1974, p. 11. WELZEL, Hans. op.cit. p 12.
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bilidade, deixando o objeto de reprovabilidade localizado no injusto penal que a partir de então adquire as características de injusto pessoal. 59 Sobreleva notar-se que o tipo, descrição legal da conduta proibida figura puramente conceitual - não é em si mesmo antijurídico, mas antijurídica é apenas a sua realização não justificada.60 Já a antijuridicidade é a contrariedade da realização de um tipo proibitivo (norma incriminadora) com o ordenamento jurídico consubstanciada pela ausência de situação justificante. Assim, segundo o sistema tripartido61 - que é dominante na dogmática moderna -, o fato punível seria todo o comportamento humano (ação ou omissão voluntária) típico (previsto em lei como crime), antijurídico (contrário ao ordenamento jurídico, lesivo socialmente) e culpável (reprovável ao seu autor). Não se olvide o sistema bipartido de fato punível composto pelo tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade, como o objeto de valoração) e pela culpabilidade (juízo de valoração de cunho subjetivo pessoal concreto), adotado por juristas como ARTHUR KAUFMANN, OTTO, SCHÜNEMANN e ENGISCH.62 É oportuno lembrar que estratificado é o conceito de fato punível e não o fato punível, uma vez que não ocorre a soma de elementos, mas sim a consideração de características localizadas em planos conceituais distintos. Observada esta perfunctória exposição sobre o conceito analítico do fato punível, evidencia-se o importante papel desempenhado pelo bem jurídico nas categorias conceituais cuja presença cumulativa transmuta uma conduta em fato punível. Considerações acerca do bem jurídico estão presentes de maneira nítida e incontornável na tipicidade e na antijuridicidade Deixando de lado a conduta que é o substrato do fato punível, o bem jurídico permeia o tipo que é a descrição legal da conduta (elemento logicamente necessário, núcleo do ilícito penal63) influenciando a tipicidade, que é atributo da conduta (considerada a mais importante categoria para fins jurídico-penais64), uma vez que o tipo é o arquétipo conceitual onde está contida a descrição da lesão - ou perigo de lesão - de bens jurídicos.65 No que diz respeito a antijuridicidade, impende destacar que em algumas situações justificantes - como a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do ofendido - a sua ocorrência está vinculada a verificação de relações (diretas ou indiretas) com o bem jurídico, de modo que
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BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 141. WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Busto Ramirez e Sérgio Yáñez Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1970. p. 76 61 Levando-se em conta os predicados da ação (ou quadripartido ao considerar também a conduta. Neste sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. op.cit. p. 136). 62 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 04. 60
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TAVARES, Juarez. op. cit. p. 69. CONDE, Francisco Muñoz. op. cit. p. 41.
SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 03; COSTA, Álvaro Mayrink da. Teoria do Tipo. In Ciência e política criminal em honra de Heleno Fragoso, Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 64. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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estas situações possam ter o efeito de excluir a ilicitude indiciada pela tipicidade.66 Primeiramente analisemos a legítima defesa, situação justificante fundada nos princípios da proteção individual e da afirmação do direito cuja definição legal67 prevê a utilização moderada dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Pois bem, não basta a existência de um comportamento humano que se direcione para uma lesão ou um perigo de lesão a determinado bem jurídico (agressão), e ainda, que este comportamento não seja autorizado pelo Direito e esteja se desenvolvendo ou em vias de efetivação para que o autor da reação defensiva a ação inicial de cunho agressivo esteja contemplado pela situação justificante da legítima defesa. Para tanto, há de se analisar a natureza do bem jurídico protegido uma vez que existe uma cisão doutrinária no que tange a aceitação da legítima defesa de bens jurídicos de natureza coletiva. Expressiva corrente doutrinária partilha da idéia de que a ação protetiva da legítima defesa é cabível - desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos da justificante - independente da natureza do bem jurídico envolvido.68 Aliás, entende-se até que entre os bens jurídicos suscetíveis de defesa estariam incluídos todos os bens jurídicos reconhecidos pelo Direito e não apenas os reconhecidos pelo Direito Penal.69 Entretanto, o entendimento oposto70 vislumbra a legítima defesa apenas para bens jurídicos de natureza individual (vida, liberdade, patrimônio, etc.) ainda que - em um posicionamento mais estendido -, o titular deste bem seja uma pessoa jurídica ou o Estado. Repousam os argumentos desta corrente doutrinária principalmente sobre as afirmações de que a natureza e o fundamento da legítima defesa circunscrevem-se a esfera jurídica individual e que a agressão de bens suprapessoais, coletivos ou comunitários (paz social, ordem pública, etc.) não é suscetível de ser repelida em legítima defesa, uma vez que o zelo por estes interesses sociais seria atribuição policial, não se autorizando a atuação de particulares neste sentido. Atendidos todos os requisitos de ordem objetiva, observe-se, além disso, que sob o aspecto subjetivo um dos requisitos diz respeito à atuação 66
Em se tratando das relações existentes entre o tipo e a antijuridicidade, esta é a posição perfilhada pela Teoria Indiciária que é adotada pelo esquema finalista: tipicidade é indício de antijuridicidade (“ratio cognoscendi”). Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. op.cit. p. 43. Em sentido contrário: TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 161. 67 Art. 25 do Código Penal Brasileiro, in verbis: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” 68 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.186; NORONHA, E. Magalhães. op. cit. p. 200; MAURACH/ZIPF, Strafrecht, 1992, §26, n.12-13, p. 357 apud SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 162. 69 WELZEL, Hans. op. cit. p. 123. 70 FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. op.cit. p. 322; BRUNO, Aníbal. op. cit. p. 379. GOMEZ BENITEZ, José Manuel. op. cit. p. 330; ASÚA, Luiz Jimenez de. op.cit. p. 313. PRADO, Luis Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 213.
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do agente com vontade de defesa de bem jurídico para que só então reste configurada a excludente. Já no que tange ao estado de necessidade, outra espécie de situação justificante - prevista no artigo 24 do Código Penal Brasileiro71 -, vale observar que o bem jurídico também possui especial relevo uma vez que o estado de necessidade consiste em uma autorizada ação adequada de proteção necessária do bem jurídico em situação de inevitável perigo não provocado pelo agente.72 Uma exigência a ser atendida para a conformação da justificante em comento diz respeito a efetiva necessidade da ação de proteção uma vez que “de outro modo não se podia evitar” que o bem jurídico - alheio ou próprio sofresse a lesão oriunda da situação de perigo. Buscando fundamentação jurídica surgem algumas teorias como a “teoria do fim” que entende serem as ações protetivas de bens jurídicos verdadeiros “meios adequados para fins reconhecidos pelo Estado”. Já a “teoria da ponderação de bens” justifica ações que resguardem bens jurídicos de valor superior em detrimento de bens jurídicos de valor inferior. Contudo, de acordo com a “teoria da ponderação de interesses” que representa a posição contemporânea, a própria juridicidade da ação de proteção está vinculada a consideração de todas as causas e condições concretas relacionadas aos bens jurídicos em conflito, à natureza do perigo, etc. 73 Assim, há de se ter em conta a natureza dos bens jurídicos envolvidos na situação de perigo já que no estado de necessidade é imperioso sacrificar um bem para preservar outro, caso contrário, ambos os bens jurídicos irão perecer. Não se olvide que de acordo com seu respectivo substrato, os bens jurídicos podem representar interesses de natureza variada como uma relação vital (o matrimônio), um estado real (a tranqüilidade), um objeto psicofísico (a vida), um objeto espiritual-ideal (a honra) ou ainda uma relação jurídica (a propriedade).74 Todavia, ainda que a variegada natureza dos bens jurídicos permita sua avaliação e a conseqüente escolha do bem jurídico a ser sacrificado, insta esclarecer que em se tratando de situações envolvendo a “vida contra a vida” não há que se cogitar quaisquer diferenças de valor (verbi gratia, paciente com 30% de chances de sobrevivência versus paciente com 80% de
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Art. 24 do CP: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. 72 Nota do autor: Em que pese a redação do art. 24 CP fale expressamente em “perigo não causado pelo agente”, Roxin entende que esta posição está superada e mesmo se o perigo for causado pelo agente pode alegar tal justificação citando vários exemplos. Um deles é do “suicida que pula no rio e se arrepende...” Cf. ROXIN, Claus. op.cit. p. 698. Já MIR PUIG preceitua que a situação não é pacífica, em que pese entender que em casos de imprudência a solução seja mais “tranquila”. Cf. MIR PUIG, Santiago. op.cit. p. 468. 73 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 175. 74 WELZEL, Hans. op. cit. p. 15. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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chances de sobrevivência, ou, jovem versus idoso) ou de quantidade (exempli gratia, um veículo somente com o condutor versus um ônibus escolar com 40 crianças).75 O bem jurídico também desempenhará papel decisivo na esfera subjetiva do estado de necessidade uma vez que um dos seus requisitos é a ação do agente com vontade de salvar o bem jurídico, seja próprio ou alheio. Outra justificante que depende sobremaneira da análise do bem jurídico envolvido é o consentimento do ofendido; única situação que não está elencada no art. 23, mas é implícita e decorre de interpretação lógicosistemática de todo ordenamento jurídico, considerada como uma causa supralegal de justificação.76 Consistindo na renúncia de bens jurídicos disponíveis tutelados por normas penais, o consentimento do ofendido pode ter como efeitos tanto a exclusão da tipicidade da conduta (se o consentimento for real e se o tipo protege a vontade do ofendido) como da antijuridicidade da conduta típica (se o consentimento for presumido e, se além da vontade o tipo protege interesses públicos).77 Porém, é ponto pacífico e sedimentado em toda doutrina jurídicopenal que a caracterização de determinada situação dentro do conceito de consentimento do ofendido exige que o bem jurídico envolvido seja plenamente disponível por parte de seu titular, verbi gratia, o patrimônio, liberdade sexual, honra, caso contrário o consentimento - tanto real como presumido - será absolutamente ineficaz. Assim, mais uma vez há de ser analisada com maior detença a natureza do bem jurídico envolvido para que só então possam ter eficácia as especificações que giram em torno do próprio consentimento, como a sua anterioridade, a capacidade do ofendido para consentir e o conhecimento concreto daquilo que foi consentido tanto por parte do titular do bem quanto por parte do agente que, espera-se, esteja atuando dentro dos limites do consentido. Essas são apenas algumas das questões que o estudo do bem jurídico suscita dentro do conceito analítico de crime, lembrando que a proposta central deste trabalho é o estudo bem jurídico, porquanto a análise apurada de cada uma destas questões demandaria espaço apropriado. Mas o que se destaca com inegável clareza é a elementar importância do bem jurídico.
75 76 77
Conforme precisa lição de ROXIN, Claus. op.cit. p. 686. TOLEDO, Francisco de Assis. op. cit. p. 214 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do Crime. São Paulo: Editora Acadêmica, 1993. p. 57.
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Não bastassem as considerações enumeradas nos parágrafos anteriores acerca das relações existentes entre o bem jurídico e os princípios basilares do Direito Penal, além do importante papel desenvolvido pelo bem jurídico dentro da teoria do fato punível, há de ser notada a íntima conexão verificada entre o bem jurídico-penal e a Constituição.78 Uma vez que o texto constitucional pátrio perfilha valores fundamentais como a liberdade e a dignidade humana cujos desdobramentos se irradiam sobre todo ordenamento jurídico - cumprindo o papel de um norte diretivo -, há uma conseqüente delimitação e orientação da ação do legislador de modo a promover uma política criminal que não transforme o direito em mera força, mas obrigue os cidadãos em sua consciência, respeitadas as bases de um sistema democrático de direito. Nesta esteira de pensamento resta cristalino que o conceito de bem jurídico-penal nasce limitado ao conteúdo material das normas constitucionais que lhe são hierarquicamente superiores e com as quais ele jamais pode confrontar. Assim esquadrinhado, desponta também evidente que o conceito de bem jurídico-penal além de ser protegido pelo Direito Penal, precisa ser protegido do Direito Penal, restringido assim o poder punitivo a uma esfera precisamente limitada pelo Texto Maior, verdadeiro e legítimo indicador das linhas substanciais prioritárias já acolhidas na realidade social como um valor.79 O conjunto de valores encontrados no altiplano constitucional serve de baliza segura não só para o momento embriogênico das normas penais onde há a seleção e definição dos bens jurídicos a serem defendidos - mas também para o momento de interpretação e de aplicação destas mesmas normas. A propósito, norma alguma pode ignorar o conteúdo axiológico constitucional, devendo sempre ser examinada a luz deste conteúdo que confere o elemento normativo-material de todo ordenamento jurídico com vistas à realização da justiça material pela adoção de uma legalidade democrática. Contudo mister destacar-se que não basta apenas a previsão constitucional de certo valor social para que seja autorizada de pronto a criação de instrumento sancionatório criminal para a respectiva proteção. Deve também ser notado o escalonamento existente entre estes valores que observa o contexto histórico no qual se encontra inserido, reforçando ainda mais o caráter fragmentário e proporcional da tutela penal que
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Nota do autor: A rigor, a análise constitucional deveria ter preferência, mas a opção de tratar do Estatuto Maior neste breve tópico não desmerece e sequer prejudica a análise do tema proposto. 79 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 67. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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busca sua legitimação não apenas em aspectos formais, mas também na valoração ético-social. Como toda norma é fruto de uma decisão política, surge a Política Criminal como conjunto de critérios de orientação para o legislador, diferenciando-se do Direito Penal e da Criminologia, apesar da íntima relação. Apesar da Constituição ocupar o posto mais alto de todo o ordenamento jurídico e prever vários direitos e garantias individuais contra o poder punitivo do Estado - o que para muitos é um exagero benevolente -, na prática não são poucos os exemplos das mais variadas “conscientes, sistemáticas e funcionais” violações perpetradas pelo próprio Estado. As cifras negras da criminalidade e o predomínio radicalmente desproporcional das classes economicamente inferiores nas instâncias formais de controle social80 - em especial o sistema penitenciário – revelam que a mais importante regra constitucional não é respeitada e daí exsurge imperiosa indagação: “todos são iguais perante a lei”? Infelizmente não! Não pode se ignorar que: a) a igualdade formal prevista no texto constitucional contrapõe-se com uma desigualdade material cruel e seletiva dentro de uma sociedade estratificada de classes (tanto capitalista como comunista) que remontam as origens da pena privativa de liberdade, como bem destacam MELOSSI/PAVARINI81 em consagrada obra; b) os crimes estão presentes em todas as classes, dividindo-se em crimes convencionais (classes pobres) e crimes não convencionais (“crime do colarinho branco”), mas a reação a estas categorias de crimes é diferenciada tanto na criação (quantidade de pena, benefícios legais) quanto na aplicação da norma (prisões cautelares, devido processo legal, ampla defesa, execução penal). A correlação original “crime-pecado” é substituída pela visão lombrosiana de “crime-doença” e depois pela correlação “crime-pobreza” que hoje é presente no elemento “crime-consumo” de modo que os consumidores falhos ou débeis não são funcionais ao sistema e precisam ser auxiliados pelo sistema penal em sua dificuldade de “inserção” 82. Neste diapasão, a insegurança social generalizada dá azo a uma política de segurança que realimenta o sistema penal em um esforço contraproducente que segundo o discurso oficial busca a “contenção da violência”, mas na prática reforça e reproduz de forma legítima as desigualdades sociais em um claro programa visceral de reprodução e manutenção ideológica.
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DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena. 2ª reimpressão. Coimbra: Coimbra editora, 1997. p. 385. 81 MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica – as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de janeiro: Revan: ICC, 2006. pp.152 82 Wacquant, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Punitivos (a onda punitiva). Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª edição rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 56.
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Não obstante a atividade de seleção dos bens jurídicos esteja presa às necessidades sociais “reais” de determinado contexto histórico, busca-se imunidade contra possíveis manipulações ideológicas ao exigir-se a observância e o respeito os limites constitucionais, sem ignorar que estes mesmos limites são fruto de uma ideologia. Enfim, o papel desempenhado pelo bem jurídico-penal como critério de garantia individual e de limitação estatal não pode ser relegado a um segundo plano, mas também deve ser sopesado com extrema cautela. Não é exagero asseverar que o processo penal é o que há de mais importante na vida de alguém que venha a ser alcançados pelo Sistema Penal, para tanto basta verificar os efeitos de uma condenação: individuais, sociais e penais. Recorrentes avalanches ideológicas e tempestades políticas cientes desta importância insistem em “soterrar” o bem jurídico-penal, com especial exemplo - mas não único - para os ataques sofridos pela dogmática no período do Terceiro Reich. Hodiernamente, propagada a ideia de “tolerância zero” ganha corpo a seletiva e odiosa proposta do “Direito Penal do Inimigo”, que apesar de não ser oficialmente aceita já é aplicada no Brasil e no Mundo bastando apenas olhar o perfil da população carcerária para entender “quem é o inimigo”, “quem merece um tratamento diferenciado”, “quem não tem garantias constitucionais”. A prisão não pode mais ser utilizada como aspirador para a escória social.83 Como dito anteriormente, as considerações ora realizadas são importantes e extremamente caras a todo jurista cônscio de que “ o direito não é
uma coisa, posta à mesa, como ‘fato’, para a refeição positivista. Direito e, portanto, crime, são elementos de um processo histórico-social e sociopolítico” relembrando as palavras do saudoso LYRA FILHO84; a todo jurista que não ignore - consciente ou inconscientemente - a gama de efeitos que a atuação penal tem proporcionado; a todo jurista que não queira limpar o sangue derramado com textos legais e que não deseje ser um mero títere na mão de interesses obscuros. E ainda, a toda pessoa que procure uma solução mais justa e humana para as misérias sociais (não apenas econômicas). Precisamos ter esperança, porque sem esperança estaremos fadados a escuridão e ao fracasso. Devemos entender que a melhor política criminal é a política social e prestigiar atitudes de inclusão cidadã que busquem diminuir as desigualdades e que prestigiem o respeito ao “outro”. Encerramos essas considerações lembrando
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Wacquant, Loïc. op.cit. p. 455. LYRA FILHO, Roberto. Carta aberta a um jovem criminólogo: teoria, práxis e táticas atuais. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982. p. 25. 84
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a lição do saudoso mestre Alessandro Baratta 85: o que mais importa é o “direito à segurança” ou a “segurança dos direitos”?
ANDRADE, Vera Regina Pereira de Andrade. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. ASÚA, Luiz Jimenez de. La ley y el delito. Princípios de Derecho Penal. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Hermes, 1954. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, volume 1. 6ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo 1º. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. COSTA, Álvaro Mayrink da. Teoria do Tipo. In Ciência e política criminal em honra de Heleno Fragoso, Rio de Janeiro: Forense, 1992. DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena. 2ª reimpressão. Coimbra: Coimbra editora, 1997. FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Direito Penal Português. Parte Geral. Tomo I. Lisboa: Verbo: Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. 1981. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1994. GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. Vol.I. Tomo I. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Max Limonad, 1954. GOMEZ BENITEZ, José Manuel. Teoria Jurídica do Delito. Reimpression. Madrid: Civitas. 1988. LYRA FILHO, Roberto. Carta aberta a um jovem criminólogo: teoria, práxis e táticas atuais. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982. 85
Aula ministrada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Universidade Candido Mendes (UCAM-RJ) em 2000.
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MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Parte general - tomo I. Atualizado por Heinz Zipf. Tradução da 7ª edição alemã por Jorge Bofill Genzsch e Henrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1994. MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica – as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de janeiro: Revan: ICC, 2006. MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal: parte general. 7º edición. Buenos Aires: Euros Editores S.R.L., 2005. MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Tradução e notas de Juarez Tavares e Luis Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988. NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, volume 1. 34ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999. PRADO, Luis Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. _________. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2000. ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte general - Tomo I. Trad. 2ª edición alemana. Madrid: Thomson Civitas, 2003. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia da Repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 1979. _________. Teoria do Crime. São Paulo: Editora Acadêmica, 1993. _________. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. _________. Direito Penal: Parte geral. 3ª edição rev. e ampl. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008. TAVARES, Juarez. Teorias do Delito: variações e tendências. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980. _________. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal . 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. Wacquant, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Punitivos (a onda punitiva). Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª edição rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan, 2007. WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Busto Ramirez e Sérgio Yáñez Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1970.
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_________. A dogmática no direito penal. In Revista de Direito Penal nº 13/14, jan-jun 1974. ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999. ________. O Inimigo do Direito Penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2ª edição.
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Rodrigo Soares Santos Psicólogo (CRP 08/7213) graduado pela UFPR; Mestre em Avaliação Psicológica pela Universidade São Francisco; Especialista em Psicologia Clínica; Professor de Psicologia Forense do curso de Direito da Universidade Positivo; Professor do curso de Psicologia da FAE; Perito Louvado e Perito Assistente Técnico, com atuação nas áreas de Direito Penal, Direito de Família, Direito Civil, Direito do Trabalho.
Michelli Miranda Andretta Advogada Criminal (OAB-PR 56.566) e especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário Curitiba.
Resumo: Este artigo aponta questões relevantes sobre a Psicologia do Testemunho e suas contribuições ao Direito. São destacados assuntos como a memória humana, seu funcionamento e o fenômeno das Falsas Memórias. As entrevistas de crianças e adultos são abordadas de uma forma crítica, identificando possíveis problemas e indicando técnicas mais adequadas para não influenciar o depoimento, que, muitas vezes, é de extrema relevância num procedimento judicial ou, até mesmo, a única prova. São, ainda, apontadas propostas, com base em dados e estudos científicos, de alteração para o Código de Processo Penal Brasileiro de modo a evitar informações que não correspondam à realidade e que possam gerar erros judiciais e suas graves consequências. Palavras-chave: testemunho, falsas memórias, elemento probatório, Código de Processo Penal, Psicologia Jurídica, Direito Penal.
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A busca da verdade judicial esbarra em distintos fatores que interferem na convicção do Juiz e em todo o procedimento judicial. Um processo, ao tramitar em julgado, é resultado do caminho percorrido desde a produção material da prova, o julgamento e seu desfecho. É certo que se busca o justo e, caberão às partes, quando for o caso, a organização dos meios de prova admitidos em direito para o êxito em sua ação. Contudo, por mais que as partes atuem com legitimidade na produção desse material, em alguns casos o que lhes restará serão provas subjetivas e frágeis como a prova testemunhal. É lícito afirmar que, por mais que tenhamos uma coleta competente de provas, alguns fatos aconteceram há tanto tempo que não existem mais meios de se buscar evidências concretas que configuram a materialidade do crime. Some-se a isso que, em muitos casos, a única testemunha é a própria vítima e, por vezes, quando esta ainda era uma criança, principalmente em delitos de natureza sexual. Em outros acontecimentos o evento é em demasia traumático e sua recordação traz consigo toda emoção negativa, podendo interferir no processo de recordação. Mesmo sem que exista a intenção de uma falsa imputação, sob algumas variáveis uma testemunha ou vítima pode fazer alegações muito diferentes do que viveram e descrever coisas que nunca aconteceram ou não ocorreram exatamente daquela forma. O estudo da Psicologia do Testemunho mostra que a busca pela verdade judicial pode ser um caminho frágil e perigoso que pode acarretar consequências nefastas na vida dos envolvidos; ademais, no Brasil a prova testemunhal tem um peso imenso e uma credibilidade que vai de encontro às pesquisas sobre o tema. Nesse sentido, ainda muitos juízes, promotores e delegados de polícia simplesmente ignoram a temática das Falsas Memórias e a sugestionabilidade testemunhal inerente ao armazenamento de informações – memória – a que todos nós estamos sujeitos. Esta temática tem embasamento científico em estudos de mais de 30 anos. No nosso Código de Processo Penal encontramos procedimentos, para a coleta da prova testemunhal, que há muito se comprova como ineficiente e sugestivo, tanto no testemunho infantil e adulto, quanto no reconhecimento de suspeitos pessoalmente ou por fotos. As propostas de mudança nesses procedimentos visam reduzir o máximo possível o efeito da sugestionabilidade nos interrogatórios de crianças, adolescentes e adultos e no reconhecimento de pessoas. O presente artigo espera contribuir para uma reflexão sobre o uso da prova testemunhal, entendida por muitos pesquisadores como a prova mais frágil no curso da busca por justiça.
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A memória se refere àquilo que armazena, conserva e evoca de sua própria experiência pessoal com fortes componentes emocionais e sob intensa modulação hormonal. Existem muitos tipos de memórias, as de curta e longa duração, a memória de trabalho, a episódica entre outras, e são localizadas em vários pontos do nosso cérebro atuando de forma concatenada (Izquierdo, 2009). Baddeley (2011) informa que a Memória Autobiográfica refere-se àquelas que mantemos em relação a nós mesmos e nossas relações com o mundo a nossa volta. Voltaremos a esse ponto mais tarde para falar de seu valor probatório. Muito do que vivemos na vida acabamos por esquecer, contudo algumas situações ficarão para sempre registradas. As Memórias Instantâneas (ou Vívidas), por exemplo, (Gazzaniga e cols., 2006) são aquelas associadas a circunstâncias de fatos chocantes ou emocionalmente carregadas. Um exemplo é perguntar o que estava fazendo em 11 de setembro de 2001? A maioria das pessoas pode dizer exatamente o que estavam fazendo, com quem estavam, o local e talvez até a roupa que vestiam. Imagina-se, assim, que essa memória seja mais precisa do que outras. Alguns estudos (Neisser e Harsch, 1992 apud Gazzaniga e cols., 2006), entretanto, afirmam que este tipo de memória não é mais preciso do que os outros e podem trazer informações que não aconteceram de fato. Uma pesquisa foi realizada com estudantes universitários americanos sobre as notícias da explosão da nave Challenger em 1986. Eles foram entrevistados 24 horas após o incidente e até dois anos e meio depois. Os resultados mostraram variações significativas nas respostas em mais de 40% dos estudantes. Feix e Pergher (2010) informam que boa parte dos indivíduos não está acostumada a resgatar suas vivências de maneira detalhada, e o momento de inquirir uma testemunha ou vítima pode ser equiparado a um teste de memória. Nesse sentido o uso de técnicas inadequadas para coleta de informações da memória de testemunhas pode resultar no comprometimento na qualidade de um testemunho. Revelam, ainda, que muitas pesquisas sobre o funcionamento da memória têm demonstrado que, ao vivenciarmos uma situação, focamos apenas em alguns aspectos do evento. Sendo assim será impossível lembrar-se de todos os detalhes que ocorreram, podendo até acrescentar novos detalhes ao fato vivido. Este fenômeno é conhecido como Falsas Memórias. Esse processo de ‘falsificação de memória’ (Stein & Neufeld, 2001) é descrito como a lembrança de fatos que não ocorreram, sendo objeto, há muito tempo, de estudos motivados principalmente pelo contexto clínico e forense, com vítimas ou testemunhas de um determinado evento.
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As falsas memórias podem se originar de duas formas, espontaneamente ou por sugestão. A falsa memória espontânea dá-se por autosugestão por meio de processos internos do indivíduo; enquanto as sugeridas se originam de uma informação externa ao indivíduo, de maneira intencional ou não. O fenômeno das Falsas Memórias, então, é uma distorção mnemônica natural do processo de armazenamento de informações que não se originam de mentiras, manipulações ou por pressão social. Para entender a gênese das distorções mnemônicas é importante salientar uma das teorias que propõem o armazenamento de informações em nosso cérebro. A TEORIA DO TRAÇO DIFUSO nos diz que a memória é não em um sistema unitário, e sim dois sistemas independentes. Stein e Neufeld (2001) explicam que um sistema armazena o conteúdo geral das informações, chamado MEMÓRIA DE ESSÊNCIA, enquanto que a MEMÓRIA LITERAL guarda os conteúdos referentes aos detalhes específicos de um fato ou evento. A explicação do funcionamento da memória, a partir desses múltiplos traços (Neufeld, Brust & Stein, 2010), trouxe novos contornos ao conhecimento do armazenamento de informações e duas variáveis foram importantes para isso. Uma delas se refere à relação semântica e a outra se deve à evolução do estudo sobre raciocínio e as diferenças nas habilidades de memória. Nosso processamento de informações busca o que é mais fácil para agilizar a compreensão e dá preferência ao trabalho com o que é essencial numa experiência, em contrapartida com o armazenamento dos detalhes desta. Nesse sentido, segundo a Teoria do Traço Difuso, as pessoas armazenarão de diferentes formas o conteúdo de um mesmo evento, sendo que a memória de essência tende a ser mais estável que a memória literal (Neufeld, Brust & Stein, 2010). Em outras palavras, será mais fácil recordar o sentido geral de um acontecimento que os detalhes nele envolvidos, já que a memória literal está mais sujeita a interferência por processamento de informações, enquanto a memória de essência é considerada mais robusta e duradoura (Brainerd, Howe & Reyna, 1996 apud Stein & Neufeld, 2001). Neufeld, Brust e Stein (2010) contam a história de assalto a um taxista que acarretou sua hospitalização. Durante sua convalescência ele foi interrogado ainda no hospital, onde lhe foram mostradas duas fotografias de suspeitos e possíveis autores do delito. Nenhum deles foi reconhecido. Após alguns dias a vítima foi à delegacia para realizar o reconhecimento de alguns suspeitos e reconheceu dois deles que, “por ventura”, eram os dois homens mostrados nas fotos ao taxista no hospital. Os suspeitos foram então acusados pelo crime. No julgamento o taxista relata que “eu tenho mais certeza que foram eles, do que meus filhos são meus filhos” (p.22). Passado mais um tempo dois outros homens foram presos em uma localidade próxima em
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decorrência de um assalto e, interrogados, confessaram vários delitos, incluindo o assalto ao taxista. Esse exemplo nos esclarece que nossa memória não é infalível e precisa, uma lembrança continua sendo influenciada por outros eventos que vivenciamos mesmo após o fato lembrado; assim, juntamos situações, pessoas e localidades distintas, algumas vezes, em uma só recordação. O taxista lembrava-se do fato, mas foi influenciado pelo investigador que o interrogou no hospital ao mostrar-lhe fotografias de duas pessoas. Ao passar pelo reconhecimento, o motorista de taxi lembra-se dos homens vistos nas fotografias mostradas no hospital e os associa ao evento traumático. Esse evento é descrito como ERRO DE MONITORAMENTO DA FONTE. Neufeld & colaboradores (2010) esclarecem que a teoria intitulada de Monitoramento da Fonte se deve ao local, pessoa ou situação onde determinada informação é originada, e o resgate dessas informações implica em processos de monitoramento de uma realidade vivenciada. A base dessa teoria concentra-se no julgamento da diferença entre a origem verdadeira da memória recuperada e outras fontes distintas. Tais fontes podem ser tanto internas ao sujeito quanto externas; as internas se referem às imagens, sentimentos e pensamento, enquanto as externas referem-se a qualquer outro evento vivenciado. Pergher (2010) complementa essa ideia afirmando que, ao passarmos por um determinado evento, nossa memória não codifica apenas os dados em si, mas também informações acerca das circunstâncias em que essa informação foi adquirida. Ao recordarmos um fato não o fazemos como num filme ou uma foto, e sim reconstruímos nossas lembranças sujeitando-as a todas as interferências de eventos que vivenciamos antes e depois do episódio em questão. Nossa memória é armazenada em arquivos denominados de Traços de Memória, que não são independentes e unitários e, ao acessarmos informações, seus conteúdos se misturam (Pergher, 2010).
Informações erradas têm o potencial de invadir nossas memórias quando falamos com outras pessoas, quando somos sugestivamente interrogados ou quando lemos ou assistimos notícias a respeito da cobertura que a mídia faz sobre um determinado evento que vivenciamos. As memórias são mais facilmente modificadas conforme o tempo passa, permitindo que a memória original desapareça. Basta um elemento para mudar um detalhe em nossa memória, sendo também suficiente para que seja implantada uma falsa memória de um evento que nunca ocorreu (Loftus, 1997). Embora fortes sugestionamentos não sejam rotina em interrogatórios policiais ou em sessões de psicoterapia, sugestões se fazem, às vezes, com
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um exercício de imaginação. Policiais quando desejam obter uma confissão de um suspeito, muitas vezes podem reportar-se a ele como um efetivo participante do crime. No contexto clínico, muitos terapeutas incentivam seus pacientes a imaginarem eventos escondidos em suas memórias (Loftus, 1997). Nesses casos, os terapeutas sugestionam seus pacientes a acreditarem que foram abusados sexualmente quando criança. A dimensão desses eventos chegou a tal ponto que existem associações americanas e inglesas 1 para apoiar vítimas de falsas memórias de abuso sexual. Memórias essas que não existiam antes do início das sessões psicoterápicas2. Contudo, muitas pessoas foram processadas e presas, suicídios foram cometidos e famílias se desfizeram sem qualquer elemento probatório além do testemunho. Não são raros também, os casos de pessoas que confessam crimes que nunca cometeram. Em janeiro de 1988, Michel Crowe, um adolescente, na época dos fatos com 14 anos, foi interrogado pela polícia como suspeito de ter matado sua irmã de 12 anos de idade, durante a noite, a facadas. Ele foi interrogado durante várias horas seguidas com perguntas indutivas e sugestionadoras. Ao final ele confessa o ocorrido. No julgamento sua confissão foi descartada quando o juiz viu o vídeo que mostrava como o interrogatório foi realizado. Tempos depois a polícia prendeu um homem que confessou ter matado a garota.3 Se os adultos, que possuem sua memória completamente desenvolvida, já sofrem alterações sob pressão ao deporem em um tribunal, o que dizer de crianças quando estão nessa situação, com sistemas de memória ainda parcialmente desenvolvidos? O testemunho infantil muitas vezes é utilizado em casos em que a própria criança fora vítima de violência, contudo, perguntas direcionadas podem induzir crianças a construírem testemunhos (Gazzaniga, Ivry e Mangun, 2006). Ao serem chamadas a prestar esclarecimentos, as crianças podem, assim como qualquer outra pessoa, fazer relatos de situações que elas nunca viveram ou não viveram dessa maneira. Stein e Nygaard (2003) afirmam que a demanda cognitiva e emocional, que recai sobre uma testemunha no momento do depoimento, é grande, sendo essa testemunha uma criança ou um adulto. Assim, o papel do entrevistador/investigador que inquirirá essas testemunhas é crucial, pois ele terá que engajá-las no processo de busca de informações precisas contidas em sua memória. Ele precisará dispor estraté-
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www.stopbadtherapy.com; www.fmsfonline.org; www.bfms.org.uk Esse fenômeno é conhecido como SÍNDROME DAS FALSAS MEMÓRIAS. Ver mais em Pinto, Pureza e Feijó, 2010. 3 www.michaelcrowecase.blogspot.com. Outros caso podem ser pesquisados: Peter Reilly (1973); Earl Washington Jr. (1975); e um caso de confissão coletiva que ficou conhecido como ‘The gang rape of Central Park’. 2
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gias para motivar e auxiliar a descrever o evento em detalhes com a maior precisão possível, pois, sem isso, provavelmente poucas informações serão obtidas (Poole & Lamb, 1998, apud Feix & Pergher, 2010). Mas como é possível que uma criança tenha relatado um fato que ela não vivenciou? Dependendo de algumas variáveis, crianças e adultos podem evocar falsas memórias de eventos nunca vivenciados ou não vivenciados daquela maneira. Uma entrevista dirigida de forma inadequada poderá contribuir para isso. Rovinski & Stein (2009) informam que, no contexto forense, a técnica de entrevista ultrapassa a simples ‘confirmação de hipóteses’ para a busca de uma verdadeira ‘testagem de hipóteses’, onde o psicólogo deve, a todo o momento, questionar a validade de seus achados e métodos utilizados. Segundo as autoras, esta postura mais crítica traz uma maior exigência em relação à validação científica dos dados levantados e uma maior limitação à interpretação das condutas do entrevistado. Evidenciam que casos de falsas acusações de abuso sexual em crianças estariam mais relacionados às entrevistas conduzidas de maneira sugestiva pelos adultos do que às possíveis distorções produzidas por déficits cognitivos relacionados à maturação infantil (Poole & Lamb, 1998, apud Rovinski & Stein, 2009). Goodman e cols. (1994) afirmam que um dos mais importantes fatores preditivos da precisão da memória é a idade do avaliado. O desempenho de memória para eventos traumáticos é significativamente pior em crianças entre de 3 a 5 anos em relação a crianças maiores. Para os autores, outras variáveis que afetam esse desempenho são o quanto o episódio traumático é compreendido pela criança, o grau de suporte emocional e de comunicação dos pais e os sentimentos da criança, positivos ou negativos. A criança então seria incapaz de descrever detalhes de situações por elas vividas? E, como realizar uma perícia psicológica forense numa criança de tenra idade? É sempre importante lembrar que em muitas ocasiões não existirão outras provas ou testemunhas da violação sexual, apenas o seu relato; também acontece com frequência a criança não entender o ato como uma violação, pois o fato pode envolver uma sedução com presentes, por exemplo, e um vínculo afetivo com o agressor. Como visto no início do texto, Baddeley (2011) afirma que a Memória Autobiográfica refere-se àquelas que mantemos em relação a nós mesmos e nossas relações com o mundo a nossa volta. Pergher (2010) relata que Memória Autobiográfica é o sistema de memória responsável pelo registro da história de vida de um sujeito; são as lembranças que este possui sobre sua própria história. Em outras palavras, o indivíduo é o protagonista do evento lembrado; é auto-referente. Sendo assim, pesquisadores são unânimes em afirmar que as memórias que temos do nosso passado não são um retrato
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fiel dos fatos como aconteceram, as lembranças da vida estão sujeitas a distorções. Para o autor, nossa memória é, por natureza, distorcida. 4 Conway (1997, apud Pergher, 2010) acrescenta que uma concepção comum às teorias que estudam as Falsas Memórias Autobiográficas é que, as nossas lembranças são em parte, uma reconstrução do passado e que não temos um mecanismo que arquiva, armazena e recupera arquivos de maneira fiel. O estudo da Psicologia do Testemunho é indissociável ao estudo da Memória Autobiográfica e de suas distorções, auxiliando, principalmente, nos crimes em que não há evidências materiais ou físicas; uma prova consistente implica em uma entrevista bem conduzida (Pergher, 2010). Herger e cols. (2002) realizaram uma pesquisa com 2384 crianças em um hospital dos Estados Unidos que haviam buscado auxílio como consequência de suposto abuso sexual. Somente 4% delas apresentaram alguma anormalidade no exame físico. Mesmo quando o abuso havia sido severo, incluindo penetração, os achados somaram apenas 5,5% das crianças. Welter e Feix (2010) acrescentam que o efeito da vivência de situações de estresse crônico no desenvolvimento neurológico da criança vitima de maus tratos, por exemplo, nem sempre são detectáveis durante o período da infância, podendo sê-lo na fase adulta. Eysenck (2011) por sua vez informa que, sobre a memória autobiográfica, alguns estudos sugerem uma escassez de lembranças que antecedem a idade de 5 anos. Fenômeno esse conhecido como amnésia infantil. Além da dificuldade de se obter informações, outra questão é a qualidade do que se recorda; essas informações são do próprio indivíduo ou são fontes de informações de outras pessoas? Para o autor, uma das características básicas da amnésia infantil é o fato de adultos tenderem a não conseguirem lembrar-se de memórias autobiográficas no início de suas vidas. A base da chamada amnésia infantil é a teoria freudiana (Freud, 1904 apud Baddeley, 2011) que propõe que tendemos a reprimir lembranças negativas. Essas lembranças geradoras de ansiedade seriam reprimidas pelo ego e, como consequência, geraria uma série de sintomas na idade adulta resultado da repressão a memória do abuso. Pinto e cols. (2010) esclarecem que a Associação Americana de Psicologia, desde 1995, adverte que não há nenhuma evidência científica comprovando que um conjunto de sintomas seja capaz de indicar que uma pessoa foi abusada sexualmente. Contudo Welter e Feix (2010) alertam, porém, que a falta de indicativos psicopatoló-
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Pergher (2010) em seu excelente texto relaciona as Falsas Memórias Autobiográficas a Teoria dos Esquemas como uma maneira de explicá-la. Contudo descrevê-la nesse momento fugiria a o tema; fica então a proposta de leitura.
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gicos não pode ser interpretada como evidência negativa da ocorrência de situações de violência.5 Rohenkohl & Col. (2010) informam, sobre a emoção e o fenômeno das Falsas Memórias, que quanto mais desagradável (VALÊNCIA) for o evento e mais intenso (ALERTA), mais existe a probabilidade de evocação de uma falsa lembrança ou Falsa Memória. Os autores citam estudos que indicam que eventos emocionais não são mais resistentes à distorção que eventos neutros, pois, especialmente em eventos emocionais, o aumento no índice de memórias verdadeiras vem acompanhado de memórias falsas. Afirmam, ainda, que “estímulos emocionais são recuperados em maior quantidade, mas também podem ser mais falsamente reconhecidos” (p. 95). E concluem que as memórias de eventos emocionais não são mais confiáveis e precisas do que memórias de eventos não emocionais, contudo, sugerem que tendemos a lembrar mais de eventos emocionais do que de eventos não emocionais. Na avaliação psicológica de crianças com suspeita serem vítimas de violência, Welter e Feix (2010) sugerem que os profissionais envolvidos na busca pelos indicativos de ocorrência dos fatos, devem reunir o maior número de elementos disponíveis sobre a suspeita de violação. Assim deve ser incluso o relato da criança, o exame de suas condições físicas e psicológicas, entrevistas com os responsáveis por ela, entre outros. Desta forma, objetiva reduzir o risco do erro nesta situação.6 No Rio Grande do Sul, o projeto DEPOIMENTO SEM DANO 7 tenta reduzir a ansiedade de crianças e adolescentes vítimas de abuso físico e sexual, aumentando a qualidade de seus depoimentos. Assim, possibilitam um ambiente adequado, que será útil tanto na busca de informações quanto na possibilidade do contraditório ao acusado. Verificando o vídeo produzido é possível saber se a testemunha/vítima foi sugestionada durante a entrevista. 8 As crianças estão cada vez mais sendo solicitadas a fornecer relatos de suas experiências em tribunais; na Inglaterra e País de Gales o Ministério do Interior e Departamento de Saúde, em 1992, decidiram que as entrevistas em vídeos, com crianças, eram admissíveis em casos de crimes. Portanto, é preciso saber a precisão e confiabilidade dos relatos de crianças a respeito dos 5
Welter e Feix citam Alberto, 2004, 2006. I) Alberto, I.M. (2004). Maltrato e Trauma na Infância. Coimbra: Almedina. II) Alberto I.M. (2006). Abuso Sexual de Crianças: o psicólogo na encruzilhada da ciência com a justiça in Fonseca, A.C., Simões, M.R, Simões, M.C.T. & Pinho, M.S. (org.). Psicologia Forense (p 437-470), Coimbra: Adrenalina. 6 Santos, R.S., Andretta, M.M. & Couto, G. (no prelo) Avaliação Psicológica e Ética Profissional, PsicoFAE: Revista do Curso de Psicologia da FAE (Curitiba-PR) discutem as conseqüências das avaliações psicológicas em casos de suspeita de abuso sexual de crianças e a produção de Laudos Psicológicos sem qualquer fundamentação técnica e científica, com resultados devastadores aos envolvidos. Há relato de caso onde o Psicólogo assina um Laudo sem nem ter visto ou ouvido a criança envolvida. 7 Ver Dobke, V. (2001). Abuso Sexual: a inquirição das crianças: uma abordagem interdisciplinar, Porto Alegre: Ricardo Lenz. 8 Infelizmente há propostas para impedir que o psicólogo participe de inquirições de crianças e adolescentes. Estas sugestões, muitas vezes, são de profissionais que não possuem experiência e conhecimento em Psicologia Jurídica, Avaliação Psicológica e Falsas Memórias. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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crimes alegados e como se pode maximizar a precisão desses relatos. Crianças novas possuem uma razoável memória de eventos específicos, principalmente se fornecidos estímulos adequados (Eysenck, 2011). A questão é que a idade, na época dos acontecimentos, parece ser um fator determinante na capacidade de acessar, de forma consciente, a memória de eventos traumáticos (Córdon, 2004). Bruck e Ceci (1997, 1999) explicam que a sugestionabilidade é maior em crianças nos primeiros anos da infância que nos últimos e que crianças de 3 e 4 anos são mais sugestionáveis que as maiores. As de 10 a 12 anos, contudo, não são mais sugestionáveis que adultos. Para Eysenck (2011), uma preocupação é que depoimentos de crianças como testemunhas podem conter erros, entretanto, quando o entrevistador é neutro em seu questionamento, as memórias infantis tendem a ser, em geral, mais precisas. Dois fatores estão envolvidos nesse processo; o primeiro seria a questão da submissão social e o outro é a imaturidade cognitiva da criança. Eysenck (2011) propõe que o entrevistador não faça perguntas orientadas, e alerta que sua influência pode se manifestar de forma mais sutil, como reforçando as respostas desejadas e criticando as respostas não desejadas. A repetição de perguntas também exercerá influência no depoimento infantil. Uma das formas de melhorar o desempenho de crianças é solicitando que elas desenhem o que se lembrem de um evento antes de lhe pedir um relato verbal (Gross & Hayne, 1999, apud Eysenck, 2011). Nesse sentido, então, produzir desenho permite a criança gerar as suas pistas de recuperação exclusivas enriquecendo seus relatórios verbais (Eysenck, 2011). Welter e Feix (2011) ressaltam que a qualidade da memória não é um produto cognitivo puro sem relação com o contexto no qual a pessoa é solicitada a realizar a tarefa. A criança poderá sofrer influência da forma como é questionada, o ambiente físico, o número de entrevistas realizadas entre outros fatores. Feix e Pergher (2010) listam alguns passos ao realizar entrevista em testemunhas, que seriam indicadas para uma melhor recuperação da memória e uma redução na sugestionabilidade9. Entre as indicações estão a construção de um ambiente acolhedor, recriação do contexto original, narrativa livre, questionamento e fechamento da entrevista. Em resumo, a hipótese de que “reprimimos” e esquecemos eventos negativos em nossa memória não se justifica, existem indicativos científicos de que eventos estressantes tentem a ser lembrados mais que eventos emocionalmente neutros. Entretanto, a busca dessas informações deve ser feita com cautela e por profissional treinado, para evitar a sugestão em depoimentos infantis e, como consequência, o aumento na produção de Falsas Memórias. 9
Mais detalhes de técnicas para minimizar os efeitos das Falsas Memórias durante a entrevista de testemunhas estão contidos no texto original dos autores.
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É possível que crianças testemunhem mesmo quando são vítimas e que seu relato seja confiável, contudo, as falhas em sua memória não devem ser encaradas como uma mentira e sim como um funcionamento normal do processo de armazenamento de informações. Lembrando sempre que crianças pequenas são altamente sugestionáveis. E, por fim, Stein & Nygaard (2003) lembram que a prova testemunhal é tida como a mais perigosa a ser utilizada num Tribunal, principalmente pela convicção que desperta e a evidência do testemunho, por meio da identificação de criminosos, não é infalível, independente da honestidade da testemunha.
Existe uma proposta de alteração do Código de Processo Penal Brasileiro. Entre as discussões estão pontos que são há muito estudados pela Psicologia no Brasil e em outros países. Um dos mais polêmicos é o testemunho de crianças e adolescentes que, por um lado, possui um valor probatório imenso e, por outro, sua precisão nem sempre é confiável. Mostramos que é possível colher informações de crianças de forma mais segura, de modo que possam ser utilizadas num processo para esclarecimento dos fatos e responsabilização dos autores de crimes. Por outro lado, existem muitas acusações infundadas que emergem geralmente de separações conjugais onde o genitor é afastado apenas com base em uma mera denúncia da outra parte. Nesse sentido as propostas objetivam garantir que as provas sejam produzidas de forma técnica, com embasamento em pesquisas científicas, para que se possa garantir um ambiente seguro ao infante, evitando sua revitimização e reduzindo os efeitos das Falsas Memórias. Por outro lado, a produção de Laudos Psicológicos sem fundamento tem sido responsável por transtornos imensos aos envolvidos em ações judiciais. O acusado, por sua vez, terá a oportunidade de ver a produção desta prova e, com auxílio do assistente técnico, avaliar se o depoimento da testemunha/vítima é valido. As propostas são: Que todos os depoimentos e perícias de crianças e adolescentes, que instruem processos criminais, sejam gravados em áudio e vídeo; Que conste na lei o alerta aos profissionais psicólogos, que deve ser tomada cautela para se evitar os efeitos da sugestionabilidade;
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Algumas propostas também foram feitas no sentido de minimizar o sugestionamento de testemunhas durante o reconhecimento de pessoas, seja ‘ao vivo’ ou por fotografias. Essas propostas são tema de outro artigo ainda em produção. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Que depoimentos de crianças e adolescentes não possam ser realizados em Delegacias de Polícia e sim, apenas em locais adequados realizados por Psicólogos Peritos do Instituto de Criminalística. Que a inquirição em juízo seja feita em ambiente reservado, monitorados por áudio e vídeo e realizado por Psicólogo Perito preferencialmente concursado.
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Rui Carlo Dissenha Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Diplôme Supérieur de l’Université de Paris II Panthéon-Assas, França. LLM in Public International Law with International Criminal Law Specialization at Leiden University, Holanda. Doutorando em Direitos Humanos na Universidade de São Paulo. Professor das disciplinas de Direito Penal e de Direitos Humanos na Universidade Positivo. Advogado criminalista.
A proposta do presente artigo é apresentar as posições doutrinárias que se manifestam sobre a existência ou não de custo reconhecível aos direitos fundamentais ditos negativos e, a partir delas, tecer algumas considerações sobre o tema. É necessário reiterar que o foco é efetivamente os chamados direitos de “primeira geração/dimensão”, comumente referidos como direitos civis e políticos. Não se pretende, neste momento e nestas linhas, debater-se o custo dos direitos de “segunda geração/dimensão” ou dos direitos coletivos de “terceira geração”. Como se sabe, o debate sobre essa temática é de uma complexidade ainda maior e seria necessário muito mais espaço e tempo para completar uma discussão de qualidade, sabendo-se sempre da impossibilidade da certeza nessa seara. Feita essa advertência, podem-se discutir alguns pontos prévios ao tema que merecem breve digressão a fim de identificarem-se questões importantes. Em primeiro lugar, convém dizer que é necessário desconstituir a barreira imposta entre as gerações (ou mesmo, “dimensões”) de direitos fundamentais, pois ela é apenas didaticamente útil e explicativa. É certo que serve, com louvor, para explicar uma evolução histórica dos direitos humanos, naquele sentido que faz, por exemplo, a prestigiada obra de COMPARA-
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TO1. A compreensão de fases na evolução histórica dos direitos humanos também é fundamental para justificar posições políticas importantes e esclarecedores dos rótulos de “liberais”, ”neoliberais”, “socialistas” ou “conservadores”. Nesse sentido, gerações e dimensões de direitos têm sua utilidade. Todavia, a aplicação prática dessa diferenciação se esgota nesse campo. Como é notório, a classificação de um direito como “de primeira geração/dimensão” ou “de segunda geração/dimensão” não explica a sua natureza e dá conta de poucos de seus efeitos, ao ponto de levar autores como BOBBIO a reiterarem que essa qualificação é sem importância quando a pretensão é de resolver o real problema dos direitos humanos, qual seja a sua efetividade2. É nessa toada que os autores produzem diferenciações mais ligadas aos conceitos de “positividade” ou “negatividade”, discutindo a natureza de um direito como negativo ou prestacional. Nessa condição, direitos podem ser melhor analisados por conta dos efeitos que têm. Mais do que isso – e o que é essencial para este trabalho – essa diferenciação é importante para a compreensão do alcance do referido direito na sua relação com o Estado. Guardada a larga zona cinzenta existente entre os conceitos e a multifacetada classificação que se lhes dá, se um direito é negativo, fundamenta-se especialmente na garantia de que o Estado se deve omitir de alcançá-lo – se faz algo positivo por ele é meramente indicando-o como garantido em textos legais. É o caso do direito à liberdade de crença, por exemplo. Por outro lado, um direito prestacional (ou “positivo”) implica uma atuação do Estado, com sua existência demarcada, sobretudo pela concessão de algo ao cidadão: a educação e a moradia são exemplos evidentes. Nessa diferenciação, a dimensão histórica dos direitos perde sua utilidade. Afinal, um direito dito de segunda geração pode se materializar justamente por uma atuação negativa do Estado – e.g., o direito de greve, como no exemplo de AMARAL3 – borrando a divisão histórica que se pretende fazer com as gerações ou dimensões. Para tornar a discussão toda ainda mais delicada, alguns direitos têm ao mesmo tempo efeitos prestacionais e negativos, demandando, portanto, uma dúplice relação para com o Estado. Segundo ALEXY, esses são os direitos fundamentais completos, sendo um bom exemplo o direito à liberdade de expressão. Nesse contexto, o autor indica que tais direitos são, na verdade, um “feixe de posições de direitos fundamentais4”.
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COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. Terceira edição. São Paulo: Saraiva, 2003. 2 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Nona edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 3 AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha: Critérios Jurídicos par Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. Segunda edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 44. 4 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Sâo Paulo: Malheiros, 2006, p. 249.
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Nesse contexto, a discussão se desenvolve no presente texto com referência aos direitos humanos na sua versão negativa ou, ainda, quando completos, na sua posição negativa. Afinal, não se pretende discutir o custo dos direitos efetivamente prestacionais: esse custo é evidente e, mais do que isso, contundente ao orçamento estatal. Embora se trate de tema importantíssimo e de profunda complexidade teórica, a discussão já não se desenvolve no plano da existência do custo desses direitos positivos ou prestacionais, mas, sim, nas consequências desse custo. Implicações dessa realidade como a solução que se deve dar às escolhas trágicas pelo legislador ou pelo julgador e como deve ser feita a alocação de recursos em uma lei orçamentária são problemas práticos essenciais e que merecem profunda reflexão. Todavia, esse não é o foco do presente trabalho que pretende apenas apresentar o problema que se manifesta na seguinte pergunta: direitos negativos têm custo para o Estado? A resposta a essa questão tem também implicações complexas. Se existe esse custo, então efetivamente existe uma limitação a tais direitos decorrente das opções do Estado. Mais do que isso, os problemas encontráveis na construção dos direitos ditos prestacionais também se alojam na dimensão negativa dos direitos fundamentais e induzem os reflexos judiciais e orçamentários da questão. Com essa proposta em mente, o presente texto divide-se em três partes. Em primeiro lugar, apresenta-se uma breve e necessária introdução sobre a história dos direitos humanos, relacionando-lhes o conteúdo e, com eles, o Estado Democrático de Direito. Na segunda porção, serão apresentadas as posições doutrinárias que tratam da questão acerca da existência de custo para os direitos negativos em oposição aos direitos prestacionais: primeiro, a porção da literatura especializada que indica que todos os direitos têm custo. Capitaneados pela produção de HOLMES e SUNSTEIN, grande parte dos autores que trata da questão indica que também direitos negativos são caros e, por isso, também nessa condição precisam ser pensados; em seguida, apresenta-se porção diferente da doutrina que indica que os direitos negativos – na sua maioria, direitos civis e políticos – são direitos inertes do ponto de vista financeiro: para alguns, compõem o custo do próprio Estado e, por isso, poder-se-ia inferir que teriam uma neutralidade financeira, e, para outros, apresentariam apenas uma simples judicialidade negativa 5. Finalmente, algumas conclusões serão tecidas sobre essa temática sem, contudo, qualquer pretensão de esgotamento do ponto. Sabendo-se que se trata de tema tormentoso, onde várias posições doutrinárias se debatem, a intenção dessas linhas é tão somente de se constituir em ensaio. Como ensaio que é, o texto se desenvolve na discussão 5
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (org.). Direitos Fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. São Paulo: Livraria do Advogado, 2008 (p. 11-53), p. 28. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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despretensiosa sobre as questões propostas. Sabe-se desde já que, em sendo mero ensaio, é ainda obra inacabada que precisa de muita lapidação para atingir a excelência dos autores em que se suporta.
Notoriamente conhecida por seus ideais iluministas, a Revolução Francesa de 1789 caracterizou um momento histórico decisivo e deu origem a uma nova fase da sociedade do século XVIII, tendo se tornado um referencial às sociedades ocidentais. Compreende-se perfeitamente que, em um momento de fortalecimento da classe de comerciantes, a luta necessária era contra os poderes do Estado, e, por isso, os direitos de liberdade e de igualdade foram o lema da bandeira da revolução dos burgueses. Esses direitos passaram então a ser consagrados nas respectivas constituições e declarações, coroando o individualismo que se afirmava naquele momento e caracterizando-se como os primeiros direitos inerentes ao ser humano. É certo que o caráter de universalidade desses direitos não era aplicável na medida em que se buscava a igualdade e a liberdade como forma da burguesia se proteger contra um regime de privilégios do Estado, ou seja, o objetivo era, ainda, garantir a propriedade frente à intervenção Estatal 6. Todavia, não se pode deixar de reconhecer a importância da evolução desse conceito. Também no que tange à originalidade da Declaração Francesa, importante se faz esclarecer que a Declaração dos Direitos do povo da Virgínia de 1776, nos Estados Unidos, é o primeiro registro quando falamos em direitos fundamentais. Todavia, é a revolução dos burgueses de 1789 que foi a responsável direta pela influência dos direitos humanos em inúmeras outras sociedades, sendo por isso conhecida como marco para a concretização dos direitos fundamentais de primeira geração7. Leciona SARLET que, apesar dos Ingleses terem sido precursores na previsão dos direitos do homem, primeiramente com a Carta Magna de 1215 que reconheceu a liberdade eclesiástica e a da propriedade privada e, depois, com o Bill of Rights de 1689, que reconheceu a liberdade do indivíduo frente ao Estado e a separação dos poderes, não há como dizer que estes são o marco inicial dos direitos fundamentais. Isso porque nestas declarações não havia a vinculação do parlamento, fato este que culminou com a carência de 6
COMPARATO, op. cit. p. 49. PUGLIESI, Giovanni. Appunti per uma Storia della Protezione dei Diritti Umani. In CARPI, Federico; ORLANDI, Chiara Giovannucci (ed.), Judicial Protection of Human Rights at the National and International Level: international congress on procedural law for the ninth centenary of the University of Bologna. Volume I. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1991, 57-104, p. 98. 7
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supremacia. Para o autor, houve uma “fundamentalização, mas não a constitucionalização dos direitos e liberdades individuais 8”. É importante estabelecer os conceitos balizadores da sociedade à época, comuns a ambas as declarações, e que lhes dão o tom. O cenário era a luta contra os abusos sofridos pelo indivíduo nas mãos do Estado: tratavase, assim, de um momento histórico em que se reconhecia que o indivíduo era a porção mais importante da sociedade e, portanto, não poderia haver outro núcleo de direito que lhe fosse maior. Na Europa havia a concentração de poderes nas mãos de uma nobreza e, por isso, o objetivo político tendeu ao futuro e representou uma tentativa de mudança na vida da sociedade, com a transferência de poder à burguesia. Nisso, diferenciava da Revolução Americana que teve como objetivo a restauração dos tradicionais direitos de cidadania. Como conseqüência desta luta, a nova ordem impôs tanto a limitação Estatal por meio da separação dos poderes, abarcando as funções legislativa, executiva e judiciária atribuídas a órgãos distintos, quanto a Declaração de direitos individuais9. Assim, foi nesse cenário que foi aprovada, em 26 de Agosto de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ato anterior à promulgação da Constituição Francesa. Este foi um dos momentos decisivos para a sociedade ocidental indicando uma virada na história do gênero humano. A finalidade era “a meta inteiramente política de firmar os direitos naturais, o principal dos quais a liberdade, seguido pela igualdade diante da lei... 10”. Esses seriam, portanto, os limites negativos à atuação Estatal, o que convinha ao momento histórico que então se vivia: se o que se buscava era uma limitação daquele portentoso poder que oprimia as classes econômicas emergentes, natural que os direitos que então nasciam tivesse um conteúdo eminentemente negativo. A principal diferença dessa Declaração para aquelas anteriormente proclamadas, especialmente na América, foi seu caráter universalizante ao firmar os direitos naturais do homem e não apenas do cidadão. Este caráter se refletiu inclusive nas declarações supra-estatais11 e nas Constituições e códigos que a seguiriam, como aqueles napoleônicos12. Todavia, apesar dos pactos firmados nesta época possuírem um caráter de universalidade, tratava-se esta de uma formalidade. As garantias de
8
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 51. 9 MALISKA, Marcos Augusto. O Direito à Educação e a Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2001, p. 41. 10 BOBBIO, op. cit., p. 101. 11 SILVA, op. cit., p. 162. 12 PUGLIESI, op. cit., p. 98. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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igualdade e liberdade não cabiam a todos os indivíduos e a sociedade era marcada pela desigualdade, o que se refletiu nas constituições seguintes. As Constituições desse período, conhecidas como as constituições liberais, foram marcadas pela concretização dos privilégios de alguns, isso porque, diferentemente da Constituições democráticas, não eram constituições eleitas pelo povo e sim, criadas pela classe dominante à época. Daí que uma das suas principais características era a expressão patrimonial trazida. Essa evolução histórica não se encerra nesse momento, obviamente. O reconhecimento da necessidade de limitação da total liberdade, a crise do laisser faire, laisser passer e o surgimento das correntes sociais deram uma nova face aos direitos humanos. Em meados do século XIX se desenvolvem as doutrinas socialistas e a consequente assunção de funções ao Estado de prestação de bem-estar ao cidadão. O novo Estado é grande e encarregado de obrigações que jamais haviam sido cogitadas quando das Revoluções Burguesas. Surgem aí os direitos sociais, econômicos e culturais que despertariam um sem número de discussões justamente porque, agora, não dependem mais de uma simples omissão do Estado, mas, sim, de prestações efetivas que demandam custo e regulamentação orçamentária. Por isso, “positivos”, “prestacionais” ou “de ação”. Não se ignora que essa evolução história é muito mais complexa do que aqui se apresentou. Tampouco se ignora o papel do plano internacional nessa construção gigantesca que é a dos direitos humanos. Todavia, por não se tratar do foco da discussão do presente texto, essa construção ficará para outra oportunidade e os direitos econômicos, sociais e culturais, ditos “de segunda geração/dimensão”, bem como as gerações/dimensões que lhes seguem, serão discutidos em oportunidade futura. Neste momento, basta essa breve introdução histórica que serve a identificar os direitos ditos de primeira geração/dimensão, base das Revoluções Burguesas e constituintes do Estado moderno liberal. De um jeito ou de outro, não se consegue pensar o Estado ocidental contemporâneo sem essas conquistas da liberdade e, assim, é imperioso que se discuta como se relacionam tais direitos de ordem “negativa” (as aspas são propositais) com o Estado Democrático de Direito em que se acredita viver.
De qualquer forma, embora fundamentação e definição dos direitos fundamentais seja tema complexo, difícil e razoavelmente confuso, é certo que suas relações com o Estado em que se fundam são determinadoras justamente das qualidades e características desse Estado. Afinal, com todas estas características, os direitos fundamentais podem ser considerados como ferramentas essenciais ao desenvolvimento de um Estado Democrático de
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Direito, estipulando, sobretudo, as garantias que um Estado deve prestar e as limitações a ele impostas. Neste sentido, NOVAES afirma que ter um direito fundamental em um Estado de Direito corresponde a um trunfo em relação ao Estado, isso significando que a existência da democracia depende de uma cultura gerada pelos direitos fundamentais. Estas relações entre Estado de Direito (previsão dos Direitos Fundamentais) e Democracia estão no centro político das discussões. Leciona o autor, que “mesmo partindo do pressuposto, que susten-
tamos, de que o actual Estado de Direito só vive em democracia, consideramos que, em um Estado de Direito Democrático, o princípio do Estado de Direito é um limite instransponível que se impõe ao poder legítimo e que, por isso, se pode o opor ao princípio democrático13”. Assim, a essencialidade dos direitos fundamentais estará na garantia passada à sociedade de que, independente dos governantes, daqueles que detém o poder mesmo que legitimamente, a proteção aos direitos do indivíduo vinculará os poderes, impedindo assim que, em nome de uma maioria, possam travar incessantes injustiças com o indivíduo. Essa ligação entre os direitos fundamentais e o Estado Democrático de Direito é notória. Afinal, da mesma forma em que não existem direitos fundamentais sem um Estado Democrático de Direito, pois direitos não são nada sem uma forma de serem pleiteados e daí a necessidade de um Estado constitucional, não se imagina este sem aqueles. Afinal, um Estado sem direitos fundamentais não passa de um Estado de Direito meramente formal onde a Constituição é simples organização do poder sem qualquer sinônimo de legitimidade. Para que um Estado seja materialmente de Direito ele precisa respeitar direitos fundamentais, de forma que os direitos fundamentais são a legitimação material do Estado tanto quanto são a sua limitação. Esse é o sentido da relação recíproca entre as duas espécies: Estado e direitos fundamentais são reciprocamente dependentes, pois direitos fundamentais não existem sem Estado e o Estado não existe sem direitos fundamentais. É nesse sentido que se manifesta PEREZ LUÑO: “existe um estreito nexo de inter-
dependência genético e funcional entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de Direito exige e implica, para sê-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao passo que estes exigem e implicam, para a sua realização o reconhecimento e a garantia do Estado de Direito 14”. E é isso que CANOTILHO15 chama de “reserva de justiça” e “auto-evidência normativa”.
13
NOVAES, Jorge Reis. Direitos Fundamentais trunfos contra maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 32-33. LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Madrid: Tecnos, 1999, p. 23. 15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Sétima edição. 2008. 14
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Mais do que isso, a liberdade e igualdade são requisitos para o Estado Democrático de Direito que não existe sem essas condições. Ora, para que se entenda um Estado como Democrático, é essencial que exista participação popular na sua constituição, pois o povo que compõe o Estado é, por sua vez, composto por toda a coletividade que precisa, ainda, se manifestar de forma livre e igual. De outra forma, não existe Democracia nesse Estado, sendo imperiosa, portanto, a necessidade de reconhecimentao da liberdade, da igualdade e dos direitos civis e políticos para que se lhe dê legitimidade. Estabelecida essa premissa, é possível caminhar em direção à questão do custo desses direitos negativos. Afinal, reconhecendo-se essa essencialidade entre os direitos fundamentais e o próprio Estado Democrático de Direito, convém discutir como os custos eventualmente inerentes a esses direitos devem ser contabilizados e pensados frente a um governo que deve lidar com necessidades infinitas e orçamento escasso.
Na presente porção do texto, a questão que se põe é acerca do custo desses direitos ditos negativos. Ora na condição de direitos fundamentais oponíveis ao Estado e, portanto, negativos, o que se pergunta é justamente se teriam eles algum custo na medida em que existem na inação do poder em face de interesses do cidadão. São basicamente duas as possibilidades de resposta a essa questão e em ambas se encontra portentosa doutrina. Enquanto aqueles que defendem a existência de custo para o Estado – com as consequências lógicas derivantes dessa condição – fundamentam-se quase unanimemente nas lições de HOLMES e SUNSTEIN, a outra parcela da doutrina entende que tais direitos de primeira geração (ou “dimensão”, para os mais puristas da linguagem técnica) têm neutralidade financeira e, por conseguinte, não custam ao Estado. Uma terceira postura anda pela tangente, reconhecendo o custo desses direitos, mas descolando a discussão central para a judicialidade da temática. Obviamente, é possível encontrar doutrina que se instala na zona cinzenta que se contrói entre essas duas posições. Todavia, neste trabalho, opta-se pela oposição entre esses dois grandes grupos por motivos didáticos, fazendo breve referência ao terceiro mencionado que não é nada diferente daquela postura sustentada em HOLMES e SUNSTEIN. Nesse sentido, serão examinadas as três posições em separado, com o intento de se conseguir traçar algumas linhas capazes de esclarecer a questão.
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A doutrina de HOLMES e SUNSTEIN parece ter adquirido grande prestígio entre os pesquisadores brasileiros. A obra comumente citada dos autores americados defende, em linhas gerais, que os direitos fundamentais, todos eles, apresentam custos ao Estado e, por isso, têm reflexos orçamentários evidentes. Nesse sentido, todos os direitos, mesmo os de ordem negativa, precisam fazer parte das contas do Estado e ficam sujeitos à imperiosa equalização entre necessidades infindáveis e receita limitada. Para os autores, “the private realm we rightly prize is sustained, indeed created, by public action”16. Nessa medida, os direitos, de toda espécie, não podem ser protegidos sem uma atuação positiva do Estado que custa dinheiro, pois independentemente da espécie que caracteriza o direito, seja ele de primeira ou de segunda geração, eles sempre implicam custos públicos. Nas palavras dos autores, “all rights make claims upon the public treasury 17”. Mais do que isso, direitos só não custam quando os governantes os ignoram ou onde o Estado não é capaz de cobrar impostos para custeá-los, pontos onde residem, evidentemente, grandes riscos para os cidadãos18. E nesse ponto, a conclusão dos autores fala por si: “a legal right exists, in reality, only when and if it has budgetary costs19”. Em rasgados elogios à obra, AMARAL identifica a essência do texto: “direitos são relativos, não pretensões absolutas. Atentar para os custos é
outrocaminho, paralelo a outros mais habitualmente percorridos, para a melhor compreensão da natureza qualitativa de todos os direitos, inclusive os constitucionais20”.
Assim, em resumo, a postura indicada defende que todos os direitos têm custo, inclusive aqueles que são tradicionalmente indicados como direitos de defesa. Embora aparentemente dependentes de uma omissão por parte do Estado, essa posição doutrinária defende que mesmo esse não-fazer implica gastos. Os exemplos lembrados são vários, mas emblemático é, por exemplo, o direito à propriedade que dependeria de uma atuação positiva (e custosa) do Estado para ser protegido. Ou o direito à representação política, que dependeria da realização de eleições democráticas. Ainda, o próprio direito de crença: se o Estado não garantir a liberdade de acesso a lugares de culto (o que custa) ou a segurança mínima para eventos religiosos, o direito
16
HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New YorkLondon: W.W. Norton & Company, 1999, p 15. 17 HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 15. 18 Citando o exemplo das mulheres vítimas de violências sexuais na Ruanda e Bósnia. HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 19. 19 HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p.19. 20 AMARAL, Gustavo, op. cit., p. 42. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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não pode ser gozado na sua totalidade e, assim, existe mesmo um custo por trás desse direito que seria, eminentemente, um direito negativo. Nessa mesma linha anda boa parte da doutrina nacional. SCAFF, por exemplo, reitera que, efetivamente, não há direitos sem custo para sua implementação, pois até mesmo os direitos de primeira geração, tais como a segurança pública e a prestação jurisdicional, geram enormes custos ao Estado “e devem ser custeados por toda a sociedade21”. Assim também se posiciona BARROSO: “é certo, todavia, que já não prevalece hoje a idéia de que
os direitos liberais – como os políticos e os individuais – realizam-se por mera abstenção do Estado, com um simples non facere. Pelo contrário, produziu-se já razoável consenso de que também eles consomem recursos públicos. Por exemplo: a realização de eleições e a organização da Justiça Eleitoral consomem gastos vultosos, a exemplo da manutenção da polícia, do corpo de bombeiros e do próprio Judiciário, instituições importantes na proteção da propriedade22”.
Por sua vez, TORRES identifica uma mudança na doutrina nacional dos direitos fundamentais construída nos anos noventa a partir da relativização da idéia de indivisibilidade dos direitos humanos, segundo a qual os direitos sociais seriam colocados na mesma medida dos direitos de liberdade 23. A discussão da questão no exterior produziu variadas mudanças de posição frente ao reconhecimento de que os direitos sociais não seriam exequíveis individualmente e, mesmo, seriam insuscetíveis de controle jurisdicional. Essa mudança de posicionamento, sobretudo no plano nacional, abriu a possibilidade para a construção e afirmação da noção de mínimo existencial e de toda a discussão que dessa temática de origina. Segundo o autor, por fim, parece certo que, no Brasil, passou-se a reconhecer que direitos sociais são direitos fundamentais. Mas, citando VILLEY, também é certo que essa parece ser a busca pela “quadratura do círculo24”, produzindo muito mais problemas do que soluções25.
21
SCAFF, Fernando Facury. A Efetivação dos Direitos Sociais no Brasil. In Scaff, Fernando Facury; ROMBOLI, Roberto; REVENGA, Miguel. A Eficácia dos Direitos Sociais. São Paulo: Quartier Latin, 2009 (p. 2142), p. 24-25. 22
BARROSO, Luis Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial“. Parecer apresentado à Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf>, atual em 14/11/2010. 23
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (org.). Direitos Fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. São Paulo: Livraria do Advogado, 2008 (p.69-86), p. 72-73. 24 VILLEY, Michel. O Direito e os Direitos Humanos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 8. 25 TORRES, op. cit., p. 76.
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Na lição de ALEXY, os direitos fundamentais são considerados como direitos subjetivos. A fim de evitar as polêmicas estéreis acerca de tal conceito, o autor alemão apresenta que esta afirmativa está suportada em um supraconceito que é o sistema de posições jurídicas fundamentais. Este sistema, para ALEXY, possui uma tríplice divisão das posições que devem ser consideradas como direitos, são elas: a) direitos a algo; b) liberdades e c) competências. Embora se pudesse também analisar as classificações dos direitos em liberdades e competências, para o presente trabalho, e por questões meramente exemplificativas, destaca-se especialmente a divisão acerca dos direitos a algo. Mesmo nessa categoria existe uma possível divisão dos direitos em negativos e positivos frente ao Estado. Veja-se o exemplo do direito à vida, dado por ALEXY26: com base nesse direito é possível exigir algo do Estado em duas vertentes, tanto que o Estado não lesione o bem jurídico vida, matando o cidadão (essa, a sua versão negativa), quanto que o Estado atue positivamente para impedir que outras pessoas lesionem o direito à vida de alguém. Importa lembrar que para ALEXY qualquer uma das duas formas se define sempre como um direito subjetivo do cidadão, mesmo quando são caracterizáveis como formas negativas – os tais direitos de defesa exercíveis contra o Estado. ALEXY os divide em três grupos27: o primeiro deles é o direito ao não embaraço de ações no sentido de que o Estado não poderá impedir ou dificultar as ações do titular, tais como, por exemplo, a manifestação de crença, a expressão da opinião ou o direito de reunião em uma rua pública. O segundo desses grupos é o direito à não afetação de características e situações, ou seja, nesse sentido o direito impede que o Estado pratique ações violadoras de certas situações, condições e estados, tais como a impossibilidade de violação de domicílio, por exemplo; e, finalmente, os direitos à não eliminação das posições jurídicas, produzindo a consequência de que o Estado não poderá eliminar situações que foram devidamente constituídas com fundamentos legais, como, por exemplo, a noção de proprietário: se houve o cumprimento de todas as definições legais para a sua caracterização, o Estado não poderia atingir ou eliminar essa posição jurídica28. Pois bem, a partir desse raciocínio desenvolvido pelo autor, parece ser possível acreditar que os direitos fundamentais, assim desenhados na sua forma eminentemente negativa, ou ao menos no seu reflexo negativo frente ao Estado, não teriam custos. Afinal, nesse contexto, os direitos são protegi26 27 28
ALEXY, op. cit., p. 195. ALEXY, op. cit., p. 196-200. Nessa mesma linha parece andar a obra de CANOTILHO. CANOTILHO, op. cit., p .408-409. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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dos da atuação do Estado bastando, assim, que o Estado não haja. É certo que, na esteira de HOLMES e SUNSTEIN, é necessário algum custo para que o Estado não haja: por exemplo, é necessário educar as forças públicas, tais como a polícia, para que não matem, garantindo a proteção do direito à vida contra a atuação do Estado. Mas é também certo que essa é uma porção positiva – e não mais a porção negativa – desse direito, configurando-se muito mais em um direito à educação ou à segurança do que em uma manifestação direta do direito à vida. Não se ignora que é certamente possível desenvolver o raciocínio de que tais direitos, justamente por apresentarem sentidos positivos e negativos ao mesmo tempo, têm um custo para o Estado – senão na sua versão negativa, ao menos na sua porção positiva. Mas ainda se pode opor outro argumento importante que é, basicamente, a origem de tal custo. Nesse sentido, leia-se ALEXY: “ao contrário do que ocorre com os direitos sociais, ou
direitos a prestações em sentido estrito, os direitos a proteção inserem-se inteiramente na compreensão liberal tradicional dos direitos fundamentais. Sua fundamentação no âmbito do modelo de Estado clássico contratualista, que nos últimos tempos tem experimentado um vigoroso renascimento, é praticamente inevitável29”. Essa inevitabilidade decorre da óbvia conexão que tem o Estado Democrático de Direito para com os Direitos Fundamentais, conforme mencionado acima. Se não existem direitos fundamentais sem um Estado Democrático de Direito e se este não se configura sem os direitos fundamentais, então, nesse contexto, os direitos fundamentais fazem parte do Estado e não têm seu cerne apenas no seu titular, o cidadão, mas encontram um fundamento gêmeo na própria base do Estado. A partir desse raciocínio, a consequência é óbvia: os gastos com aqueles “direitos” que são essenciais e essa fundamentação do Estado – a igualdade e a liberdade, mas também as garantias essenciais a esses outros direitos, tais como o direito à vida, à integridade física, ao patrimônio, etc., não podem ser ignorados pelo Estado. E a cada um desses “direitos” corresponde a função do Estado de protegê-lo, pois, do contrário, tais direitos não existem Consequência lógica: se o Estado deixa de investir nessas suas verdadeiras funções, acaba desnaturando-se como Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, o custo para esses direitos não seria do direito em si, mas, sim, do próprio Estado. Pagar pela organização de uma eleição não é o preço do direito ao voto ou à Democracia, mas, sim, o preço da existência do Estado Democrático de Direito, o preço da opção pela única forma de Estado que garante os direitos fundamentais. A mudança de enfoque da questão produz a consequência lógica de que o fato do cidadão ter direitos não é culpa sua tendo, portanto, que pagar por eles, como querem HOLMES 29
ALEXY, op. cit., p. 455.
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e SUNSTEIN. O custo de tais direitos, a contrario moto, é requisito para existência do Estado de forma que este deve por eles pagar se quiser existir. Nesse sentido, pode-se reconhecer o que se chamaria de uma neutralidade financeira de tais direitos negativos: como direitos, não custam. Como deveres, sim, mas oponíveis ao Estado, não ao cidadão.
SARLET e MARIANA, por suas vezes, entendem que a posição de HOLMES e SUNSTEIN é perfeitamente defensável e que, efetivamente, há um custo para todos os direitos, inclusive os direitos negativos. Na esteira dos americanos, reconhecem que “levar direitos a sério (especialmente pelo prisma
da eficácia e efetividade) é sempre também levar a sério o problema da escassez30”. Afinal, segundo defendem, existe efetivamente uma dimensão positiva nos direitos negativos e, por isso, também eles custam e devem ser previstos no orçamento do Estado. Todavia, no que toca à prestação jurisdicional, parece certo que esses direitos assumem uma “neutralidade econômico-financeira31”. Embora tais direitos possam implicar custos ao Estado na sua dimensão positiva, é certo que não implicam custos quando são efetivados pela concessão do Judiciário a partir de solicitações do cidadão. É nesse sentido que andam as palavras dos autores quando dizem que “seguimos convictos de que, para o efeito de
se admitir a imediata aplicação pelos órgãos do Poder Judiciário, o corretamente apontado ‘fator custo’ de todos os direitos fundamentais nunca constituiu um elemento impeditivo da efetivação pela via jurisdicional. É exatamente neste sentido que deve ser tomada a referida ‘neutralidade’ econômico-financeira dos direitos de defesa, visto que a sua eficácia jurídica (ou seja, a eficácia dos direitos fundamentais na condição de direitos negativos) e a efetividade naquilo que depende da possibilidade de implementação jurisdicional não tem sido colocadada na dependência de sua possível relevância econômica32”. Em outras palavras, os autores deslocam o problema do custo desses direitos de cunho negativo para o momento da sua judicialização. Não negam que custam, efetivamente. Apenas informam uma realidade que é efetivamente evidente: no momento da sua garantia pelo poder Judiciário, não apresentam custo algum, pois se afirmam na omissão do Estado. O mesmo não ocorre, evidentemente, com os direitos sociais a prestações, quando o seu custo é evidente e implica diversas consequências no plano orçamentário. Afinal, a concessão judicial de tais direitos efetivamente implica aloca30 31 32
SARLET; FIGUEIREDO, op. cit., p. 32. SARLET; FIGUEIREDO, op. cit., p. 28. SARLET; FIGUEIREDO, op. cit., p. 28. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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ções financeiras não previstas nas contas do Estado e, por isso, podem desestabilizar os planos econômico-financeiros de um governo33.
O que se pergunta é se tais direitos não são, efetivamente, essenciais ao Estado para a sua própria existência. Em outras palavras, embora se possa reconhecer um efetivo custo à liberdade, esse custo não seria do direito em si, mas, sim, do Estado como tal. O Direito dos presos a um tratamento de saúde mínimo (mencionado pelos próprios HOLMES e SUNSTEIN34) é exemplo de algo que é inerente ao Estado de Direito: se o sujeito é condenado a cumprir pena, e, portanto, é objeto do ius puniendi estatal, é obrigação do Estado dar-lhe o mínimo de condições para que possa subsistir. Não se pode pensar o ius puniendi sem essa condição porque, de outra forma, afrontaria outro fundamento do Estado Democrático de Direito: o próprio princípio da dignidade humana. Ora, nessa toada, é evidente que existe um custo ao Estado para o exercício do direito de punir, mas é de se perguntar se o próprio Estado pode existir sem esse custo. Afinal, se é essencial para o Estado o direito de punir – e é, desde que se entendeu necessário, em nome da possibilidade de convivência humana civilizada, o impedimento da vingança privada – e se esse direito de punir deve atender a certos limites que, todos relacionados reticularmente, implicam a própria essência do Estado Democrático de Direito, então esse custo não é um custo do direito em si, mas, sim, do próprio Estado. Desse raciocínio, surgem duas possibilidades: 1. Se o direito negativo for entendido como um efetivo direito do cidadão que é oponível ao Estado, seu custo é evidentemente algo que está fora do Estado e é dimensionável no orçamento. Em outras palavras, previsível quantitativamente, esse direito só existe se previsto e se houver investimento financeiro nele. A opção do Estado vai indicar a sua proteção e, se não houver espaço no orçamento para tanto, seja por falta de previsão, seja por escassez de recursos, resta ao cidadão apenas suportar a sua falta, tal como ocorre nos exemplos indicados como escolhas trágicas na obra de AMARAL35. 2. Todavia, algo diferente acontece se esse direito negativo for pensado como parte essencial do próprio Estado, como decorrência das cessões do cidadão ao poder soberano para que se possa permitir a vida civilizada e que, portan33
É sobre essa questão que se constrói o texto dos autores SARLET e FIGUEIREDO (op. cit.) e, portanto, é esse o foco efetivo do problema. Embora se trate de questão complexa que enseja grande debate na doutrina sobre como se deve portar o Judiciário frente aos pleitos de garantia de direitos sociais e econômicos que na sua maioria são dependentes de atuação positiva (e custosa) do Estado, não é o tema do presente trabalho. Mas, nesse sentido, a leitura do texto indicado é de extrema oportunidade e esclarecimento. 34 HOLMES; SUNSTEIN, op. cit., p. 22. 35 AMARAL, op. cit., p. 46.
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to, se tornam mais um dever do Estado do que um direito do cidadão. Nesse contexto, como parte essencial da existência do Estado, o direito de voto, por exemplo, mais do que um direito do cidadão é um componente do Estado Democrático de Direito. A falta desse direito não poderá mais ser entendida como uma contingência ou como limitada por gastos com consequências apenas para o cidadão. Será, sim, uma desnaturação do próprio Estado Democrático de Direito. Assim desnaturado, o poder soberano não é mais o objetivo do contrato social, mas, sim, algo que mais se assemelha a um regime autocrático que desrespeita os próprios governados. Assim, na segunda hipótese, o Estado não tem escolha: ou organiza o orçamento de forma a respeitar os direitos negativos que não têm custo para além do custo que é inerente à organização do poder e seus limites e requisitos mínimos, ou deixa de ser aquilo mesmo a que se propôs assumindo a sua condição de antidemocrático. Por outro lado, aceitar a primeira hipótese permite que se reconheça um Estado antidemocrático às custas da própria desgraça do cidadão que, duplamente, resta privado de seus direitos: tanto perde a garantia de que um direito seu será respeitado pelo poder soberano porque não há espaço no orçamento para esse direito, quanto perde a garantia de um Estado efetivamente democrático, já que este descumpre suas obrigações sob a desculpa da falta de orçamento. É certo que o direito negativo também depende de atuação do Estado. Mas se essa atuação é vista como direito do cidadão, pode ser limitada. Se é vista como essência do Estado, não pode. Daí que os direitos negativos devem ser entendidos como sem custo para o Estado como direitos que são; só podem ser entendidos, na verdade, com custo, se o forem como função: a função de proteção da propriedade, proteção da vida, realização de uma eleição, garantia de policiamento, etc. Como direito, seriam apenas e essencialmente o impedimento da violação positiva pelo Estado; como elemento do Estado, desnaturam-no na sua essência se faltantes. Como funções, assumem a posição que lhes dá ALEXY na condição de “direitos a prestações em sentido amplo”, como explicado por SARLET e MARIANNA: “ com efeito, para R. Alexy (...) os direitos a prestações em sentido estrito (direitos sociais)
se distinguem dos direitos a prestações em sentido amplo, já que estes dizem com a atuação positiva do Estado no cumprimento dos seus deveres de proteção, já decorrentes da sua condição de Estado democrático de Direito e não propriamente como garante de padrões mínimos de justiça social, ao passo que os direitos a prestações em sentido estrito (direitos sociais) dizem com direitos a algo (prestações fáticas) decorrentes da atuação do Estado como Estado Social36”.
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SARLET; FIGUEIREDO, op. cit., p. 15. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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Não se pode negar que tal diferenciação é importante. Se o custo for do direito em si, então é possível limitá-lo no seu alcance e tolhê-lo tanto quanto necessário ao seu ajuste ao orçamento, pois, na esteira de SUNSTEIN e HOLMES, não há outra possibilidade se tornar possível a convivência entre as necessidades e a escassez de recursos. Quem perde é o cidadão titular do direito que deixa de ter seu interesse atendido pela absoluta falta de recursos no orçamento. Para uma compreensão nesse sentido, inclusive, parece convergir a nova “postura” da doutrina frente à oposição entre direitos fundamentais e direitos sociais, conforme indicada por TORRES e apresentada acima. Ora, o reconhecimento de que as características dos direitos sociais, especialmente seu custo, os tornariam diferentes dos direitos fundamentais, sobretudo porque se manifestariam como políticas públicas e não de forma individualizada, como acontece com o direito à saúde, por exemplo 37, parece demonstrar que algo há na essência de tais direitos negativos que os conectam de forma diferenciada ao Estado. Pode-se supor, portanto, que essa relação indispensável entre Estado e direitos fundamentais indica a forma como esses direitos compõem a própria essencialidade do Estado e, portanto, são fundamentos da sua construção – inegáveis e cujo custo, assim, é indicativo da própria opção pela existência do Estado Democrático de Direito e não uma opção do Estado por uma política pública em tal ou qual sentido, que poderia ser limitada, de uma forma ou de outra, em maior ou menor extensão, pela noção, por exemplo, de mínimo existencial.
O presente texto, como se disse, não tem a pretensão maior do que ser um ensaio. Por isso, jamais deixará de estar em construção. Foi por isso que se apresentaram as posições mais discutidas sobre o tema em debate e algumas breves conclusões sobre a questão. Mais do que oferecer respostas, a discussão presente nessas linhas pretendeu lançar dúvidas. Afinal, o tema é, efetivamente, instigante, e a presente discussão, como se viu, se relaciona com diversas questões de grande importância. Primeiramente, a problemática aqui apresentada perpassa a questão dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Discutir o custo dos direitos tem relação direta com a sua proteção e alcance e o reconhecimento desse custo implica conseqüências referentes às propostas e políticas que o Estado pode assumir, sempre “levando direitos a sério” e, portanto, considerando as suas possibilidades de realização frente à reconhecida escassez de recursos. Pelo mesmo motivo, mas por outro flanco, entender direitos como porção essencial do Estado e, assim, considerando que não existe um custo 37
Por todos, veja-se SCAFF, op. cit., p. 30.
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do direito em si, mas, sim, do próprio Estado, pode fazer com que a escassez seja vista de outra forma: como uma limitação do Estado que implica não a adoção de novas políticas mais ou menos restritivas, mas, sim, uma nova configuração administrativa mais racional e eficiente. Mas o problema pode ir além. A adoção de uma ou outra posição frente à questão pode identificar qual a proposta política do Estado – se mais para a esquerda ou para a direita de um largo espectro político. É natural que essa posição balance com frequência, atendendo à essência do próprio regime democrático. Mas também é certo que essa variação não pode perder de vista os objetivos do Estado de Direito. Sobretudo não pode perder de mira que o Direito é feito pelos homens, e não os homens pelo Direito. Nessa consideração, pensar que “um direito existe, na realidade, apenas quando e se ele estiver previsto no orçamento38”, como querem HOLMES e SUNSTEIN, parece limitar exageradamente o alcance dos direitos fundamentais, pois a criação acaba por dominar a criatura. E um pensar dos direitos humanos limitado pelas contingências econômico-financeiras parece construir um modelo em que a compreensão dos direitos mais importantes do ordenamento se dá apenas segundo o binômio “falso/verdadeiro”: uma lógica que parece inapropriada para os princípios e fundamentos constitucionais de um Estado de Direito. Seria mais conveniente pensar o contrário: o orçamento e sua construção precisam ser determinados pela proteção dos direitos fundamentais como, aliás, determina o texto constitucional. Afinal, parece existir nisso mais do que o simples binômio falso/verdadeiro: existe uma imensa zona cinzenta entre essas considerações que é justamente onde se situam os problemas sociais mais graves de um Estado e esse é o lugar onde a atuação governamental é mais requerida. Limitar-se ao orçamento, assim, é apenas conveniente e, certamente, não cumpre com o padrão de atuação do Estado Democrático de Direito buscado pelo texto constitucional e seus fins – o que vai muito além do simples binômio falso/verdadeiro.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2006. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha: Critérios Jurídicos par Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. Segunda edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. BARROSO, Luis Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva:
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SUNSTEIN; HOLMES, op. cit., p. 19. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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Thaís Amoroso Paschoal Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Processual Civil da Universidade Positivo. Advogada.
Acesso à justiça nem sempre é sinônimo de tutela jurisdicional efetiva. Embora a garantia do acesso à ordem jurídica justa represente “a principal 1 resposta à crise do direito e da justiça em nossa época” , esse fim somente será alcançado se o processo estiver a serviço do direito material, permeado das garantias constitucionais ligadas ao devido processo legal e à ampla defesa. Significa dizer que o processo somente será efetivo quando forem perseguidos todos os meios idôneos à solução adequada do problema levado à apreciação do Poder Judiciário. É incansável, nesse sentido, a busca pelo processo civil de resultados, que tem justificado toda a sistemática processual moderna. Não basta, assim, o puro e simples acesso ao Poder Judiciário na solução dos conflitos intersubjetivos, devendo-se atender de modo integral à ideia de instrumentalidade, a partir das técnicas adequadas, voltadas à prestação de uma tutela jurisdicional efetiva. E foi justamente para a concretização desse fim que surgiram as ações voltadas à tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, sobretudo considerando-se a insuficiência do processo civil tradicional para sua efetividade.
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CAPELLETTI, Mauro. O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época, in Revista de Processo, no. 61, Ano 16, janeiro.março/1991, p. 144. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Para que essa tutela coletiva possa responder de forma adequada ao problema de efetividade para cuja solução foi criada, porém, deve ser munida dos instrumentos necessários. Assim, ao lado das características peculiares que revestem a eficácia e a autoridade das sentenças coletivas, tem-se uma especial forma de legitimidade para a propositura de ações coletivas. Aplicados adequadamente, esses institutos garantem que a tutela coletiva seja, de fato, vocacionada à proteção efetiva dos direitos transindividuais e individuais homogêneos.
A Constituição Federal brasileira consagrou, em seu artigo 5º, inciso XXXV, a garantia do acesso à ordem jurídica justa, elevando à ordem de preceito fundamental o direito de ação, a ser exercido mediante o processo. Efetivou-se, assim, a consagração do processo como instrumento do direito material, vinculando-se diretamente a efetividade dos direitos à sua exigibilidade mediante a prestação da devida e adequada tutela jurisdicional. O processo civil moderno, portanto, tem buscado efetivar-se como um processo civil de resultados, na medida em que “uma reforma do direito substancial é ilusória se não é acompanhada de adequados instrumentos de execução-atuação da mesma, o que implica na volta de uma garantia no 2 plano jurisdicional” . Atrelado a isso, muito se tem dito acerca da tendência de universalização da tutela jurisdicional. “Universalizar a jurisdição”, como lembra Cândido Rangel Dinamarco, “é endereçá-la à maior abrangência factível, reduzindo 3 racionalmente os resíduos não-jurisdicionalizáveis” . E as reformas que têm sido realizadas no Código de Processo Civil brasileiro buscam, justamente, esse resultado. A ideia é ampliar o acesso à justiça, permitindo o tratamento isonômico entre os jurisdicionados, e, ao mesmo tempo, diminuir a morosidade, aumentando, em contrapartida, a efetividade do processo. Tudo isso sempre tendo em mente o necessário atrelamento entre o acesso à justiça e a efetividade da via que garante esse acesso. Como destaca Eduardo Couture, a expressão ‘tutela jurisdicional’ deve ser entendida como “a satisfação efetiva dos fins do direito, a realização da 4 paz social mediante a vigência das normas jurídicas” . Ou ainda, como afirma Cândido Rangel Dinamarco, a “efetiva concretização, em benefício do
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CAPELLETTI, Mauro. O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época, op. cit., p. 148. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. I, 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 113. 4 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 3. ed. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1993, p. 479. 3
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vencedor, de uma situação melhor do que a existente antes do processo e do 5 provimento jurisdicional que ali o juiz emite” . O Código de Processo Civil de 1973 foi, originariamente, estruturado com vistas à solução de conflitos muito bem definidos. Objetivava-se a disciplina de uma tutela capaz de resolver os conflitos individuais e préexistentes (tutelas reparatórias voltadas a direitos rigorosamente individuais), sempre tendo como base o fato de que a finalidade da função jurisdicional é “fazer observar o direito objetivo em seus preceitos individualizados”, 6 como destaca Calamandrei , ou, ainda, considerando que jurisdição é a “atividade dos órgãos do Estado, destinada a formular e atuar praticamente a regra jurídica concreta que, segundo o direito vigente, disciplina determina7 da situação jurídica”, como afirma Liebman . Contudo, o desenvolvimento da sociedade e, consequentemente, o surgimento de novas espécies de conflitos, mais complexos e com potencial de atingir inúmeros indivíduos, deixou clara a insuficiência dos instrumentos tradicionais. Com isso, foram introduzidas no direito brasileiro, por exemplo, as cláusulas gerais e as tutelas específicas - voltadas não à reparação, mas à prevenção do dano. Ao lado disso, verificou-se, também, a insuficiência da tutela individual para a proteção a direitos que extravasam a esfera de um único indivíduo. A solução foi a construção, ao lado do processo civil individual, de um processo civil coletivo, que permita o alcance efetivo e adequado a direitos e interesses que, por possuírem características peculiares, não são passíveis de tutela (ao menos, de tutela efetiva) por meio do “tradicional processo civil”. Tudo isso atendendo à ideia de que, como destaca Cândido Rangel Dinamarco, “tutela jurídica, no sentido mais amplo, é a proteção que o Estado confere ao homem para a consecução de situações consideradas eticamente dese8 jáveis segundo os valores vigentes na sociedade” . Essa evolução não passou despercebida por Mauro Capelletti, que, chamando a atenção para os principais obstáculos verificados pelo “movimento reformador”, destaca o “obstáculo organizador”, por meio do qual certos direitos ou interesses “coletivos” ou difusos” não são tutelados de maneira eficaz se não se operar uma radical transformação de regras e instituições tradicionais de direito processual, transformações essas que
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DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. III, 3a ed. revista, atualizada e com remissões ao Código Civil de 2002. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 203. 6 CALAMANDREI, Piero. Instituciones de derecho procesal civil, v. 1. Trad. Santiago Sentir Melendo. Buenos Aires: EJEA, 1986, p. 178. 7 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Trad. Cândido Rangel Dinamarco, 2a Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 7. 8 DINAMARCO, Cândido Rangel. Tutela Jurisdicional, in Revista de Processo no. 81, Ano 21, janeiro.março/1996, p. 61. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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possam ter uma coordenação, uma “organização” daqueles direitos ou 9 interesses .
E complementa, citando o que chama de “obstáculo propriamente processual, através do qual certos tipos tradicionais de procedimentos são ina10 dequados aos seus deveres de tutela” . Essa evolução e consequente necessidade de adaptação dos instrumentos tradicionais também foi objeto de análise por Teori Albino Zavascki, que, em obra específica sobre o processo coletivo, destacou, Tornou-se consciência, à época, da quase absoluta inaptidão dos novos métodos processuais tradicionais para fazer frente aos novos conflitos e às novas configurações de velhos conflitos, especialmente pela particular circunstância de que os interesses atingidos ou ameaçados extrapolavam, em muitos casos, a esfera meramente individual, para atingir 11 uma dimensão maior, de transindividualidade .
Fazendo menção às clássicas definições de “função jurisdicional”, vista como a “atividade estatal de identificar e fazer atuar a norma jurídica em casos concretos, vale dizer, a partir da verificação da ocorrência (ou da imi12 nência) de uma situação de fato” , esse mesmo autor ressalta que, atualmente, ela pode ser invocada também para buscar proteção a direitos e interesses transindividuais, difusos e coletivos, de titularidade indeterminada, o que já representa significativo alargamento do âmbito da tutela jurisdicional, se comparado com o dos limites delineados no sistema original 13 do Código de Processo .
Essa transição se dá, portanto, por meio da previsão de demandas em que se alcance a defesa dos interesses de um grupo, comunidade, ou mesmo de direitos individuais, mas com características de homogeneidade que os tornam aptos a serem coletivamente tutelados. As ações coletivas surgem nesse contexto, com a finalidade de propiciar maior efetividade à tutela desses direitos, além de garantir tratamento isonômico aos titulares de idêntica situação jurídica, na medida em que “é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda rela-
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CAPELLETTI, Mauro. O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época, op. cit., p. 148. Idem, Ibid. 11 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo – tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, 3a ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 31. 12 Idem, p. 59. 13 Idem, p. 60. 10
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ção de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido 14 ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto” . Enfim, constatou-se que a isonomia somente seria garantida se os indivíduos pertencentes a uma mesma classe, grupo ou categoria tivessem seus direitos tutelados da mesma forma, por meio de decisões não discrepantes. Foi nesse quadro que o legislador brasileiro, atento às mudanças já implementadas em outros sistemas jurídicos, sobretudo no direito norteamericano, passou a desenhar o que viria a ser um “processo coletivo”. O objetivo, como lembra Kazuo Watanabe, foi o de tratar molecularmente os conflitos de interesses coletivos, em contraposição à técnica tradicional de solução atomizada, para com isso conferir peso político maior às demandas coletivas, solucionar mais adequadamente os conflitos coletivos, evitar decisões conflitantes e aliviar a sobrecarga do Poder Judiciário atulhado de demandas fragmentá15 rias .
Assim é que nosso ordenamento passou, gradualmente, a ser permeado de instrumentos voltados à tutela adequada dos direitos que extravasam a esfera individual. 16 O primeiro passo significativo foi dado com a Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65), que regulamentou, de forma sistemática, instituto já previsto na Constituição Federal Brasileira de 1934, e, como lembra José Carlos Barbosa Moreira, “deu-lhe amplitude notavelmente maior do que a que resultava da 17 letra da Constituição de 1946, em vigor naquela data” . O objetivo da Lei, como se depreende de seu art. 1o, foi o atribuir a qualquer cidadão legitimidade para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público. Algum tempo depois, já em 1985, foi editada a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), com a previsão de uma “ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico”. Em seu art. 1o, está prevista a tutela aos direitos “transindividuais”, havendo ressalva expressa, no inciso IV, de que não se trata de rol taxativo, na medida em que a tutela ali 14
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª edição, 5ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 1998, p.38. 15 WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e os problemas emergentes da práxis forense, in Revista de Processo no. 67, Ano 17, julho.set/1992, p. 19. 16 E aqui se menciona tratar-se de passo “significativo”, pois os direitos difusos já vinham tutelados nas Constituições de 1934 e 1946, bem como em leis esparsas, como a revogada Lei 1.134/50, que regulamentava os direitos difusos atinentes aos funcionários públicos, ou a também revogada Lei 4.215/63, que disciplinava a representação coletiva dos advogados. 17 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses difusos”, in ________ Temas de Direito Processual – primeira série. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 114. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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prevista volta-se, também, a “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. “Pode-se dizer”, como ressalta Rodolfo de Camargo Mancuso, que a ação civil pública regrada na Lei 7.347/85 é o parâmetro processual básico para a tutela dos interesses metaindividuais, não somente daqueles nominados expressamente no seu art. 1o e incisos, mas também de outros, mesmo ainda não juspositivados, desde que socialmente 18 relevantes (...) .
A previsão dessas tutelas foi reforçada com o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe inúmeras previsões voltadas aos direitos coletivos em seu art. 5o, e, mais especificamente, à possibilidade de propositura, pelo Ministério Público, da “ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio-ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”, tal como previsto no art. 129, III. O acerto na inclusão da matéria na Constituição Federal de 1988 foi destacado por Barbosa Moreira que, em artigo específico sobre o tema, afirmou: Veio a Constituição de 1988 e selou a matéria, incluindo expressamente essa cláusula genérica [refere-se o autor à previsão de tutela de “outros direitos difusos e coletivos”, via ação civil pública, pelo Ministério Público] que, a rigor, até dispensaria tudo mais, porque, na verdade, os interesses relacionados com o meio-ambiente, os interesses relacionados com o patrimônio público e social e os próprios interesses relacionados com a proteção ao consumidor, desde que não digam respeito a lesões patrimoniais individualmente consideradas, mas sim aos fenômenos que abranjam ou que envolvam um número grande de pessoas, consideradas no seu conjunto, tudo isso entra no conceito de interesses difusos e co19 letivos .
Finalmente, o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, com a inserção, em seu Título III, da disciplina da “Defesa do Consumidor em Juízo”, acrescentou a previsão de defesa coletiva de direitos individuais homogêneos, “assim entendidos os decorrentes de origem comum”, possibilitando, então, a tutela de todo e qualquer direito individual passível de tratamento coletivo, por possuir, ao lado de outros direitos individuais, características de homogeneidade. Tanto a Lei da Ação Civil Pública, quanto o Título III do Código de Defesa do Consumidor, atribuem, em linhas gerais, legitimidade, exclusivamente, aos entes mencionados no artigo 82 do CDC e no artigo 5º da LACP (Ministério Público; Defensoria Pública; União, Estados, Municípios e Distrito 18
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada – teoria geral das ações coletivas, 2a ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 55. 19 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988, in Revista de Processo, no 61, ano 16, janeiro-março/1991, p. 193/194.
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Federal; entidades e órgãos da administração pública direta e indireta; associações legalmente constituídas a pelo menos 1 (um) ano, que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos dos consumidores) para buscar a tutela aos direitos transindividuais e individuais homogêneos. Pode-se dizer, assim, que se formou, no direito brasileiro, um “microssistema do processo coletivo”, com regras próprias, e releituras dos tradicionais institutos do processo civil, capazes de garantir a tutela aos direitos coletivos e aos direitos que, por suas características, permitem tratamento coletivo. Pouco tempo depois, em 1991, Barbosa Moreira apregoava o que viria a se concretizar após alguns anos: “Precisamos imprimir ao processo, como a tantas coisas no Brasil, um sentido mais social; e acho que as ações coletivas podem servir de instrumento para incentivar, para estimular essa neces20 sária evolução” . Para isso, contudo, não basta que a legislação, e a própria Constituição Federal, tragam a previsão dessas tutelas, ainda que de forma abrangente. É necessário, sobretudo, uma mudança de mentalidade, que permita que esse avanço legal seja efetivamente implementado pelos aplicadores do Direito, não se podendo perder de vista, como lembra Teori Albino Zavascki, que “o tempo, a experimentação, o estudo e, eventualmente, os ajustes legislativos necessários sem dúvida farão dos mecanismos de tutela coletiva uma via 21 serena de aperfeiçoamento da prestação da tutela jurisdicional” . Justamente por isso é que a implementação dessa nova forma de proteção aos direitos coletivos ou individuais, mas tratados coletivamente, não é tarefa simples, exigindo, como já se destacou, um repensar significativo acerca dos institutos tradicionais do processo civil, voltados, precipuamente, à tutela individual, sempre atentos ao que apregoa Cândido Rangel Dinamarco. Posicionando a transição da tutela individual para a tutela coletiva como uma das ondas renovatórias do processo civil, esse autor chama a atenção para um imprescindível cuidado que, necessariamente, deve ser tomado pelo aplicador do Direito no momento da utilização de todos os mecanismos voltados à universalização da Jurisdição: “Augura-se que o exagero com que às vezes alguns desses mecanismos são manipulados não conduza a uma re22 tração e a um retrocesso em relação aos progressos que eles significam” . Com efeito, a transposição dos instrumentos da tutela individual para a tutela coletiva depende, muitas vezes, de cautelosas adequações e, até mesmo, do alargamento de alguns conceitos, para que se prestem também a instrumentalizar a tutela coletiva de todo o aparato necessário à proteção dos direitos aos quais se destina. Ficou evidente que “a visão individualista 20 21 22
Idem, p. 200. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo..., op. cit., p. 24. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições... v. I, op. cit., p. 114. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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do devido processo judicial está se fundindo com uma concepção social, coletiva, de modo que apenas tal transformação pode assegurar a realização dos ‘direitos públicos’ relativos a interesses difusos”, como destacam Mauro 23 Capelletti e Bryant Garth . Consequentemente, como afirma Teori Albino Zavascki, “o sistema processual é, atualmente, mais rico e mais sofistica24 do” , ressaltando o autor que, Em decorrência da primeira fase de reformas, podemos, hoje, classificar os mecanismos de tutela jurisdicional em três grandes grupos: (a) mecanismos para tutela de direitos subjetivos individuais, subdivididos em (a.1) os destinados a tutelá-los individualmente pelo seu próprio titular (disciplinados, basicamente, no Código de Processo) e (a.2) os destinados a tutelar coletivamente os direitos individuais, em regime de substituição processual (as ações civis coletivas, nelas compreendido o mandado de segurança coletivo); (b) os mecanismos para tutela de direitos transindividuais, isto é, direitos pertencentes a grupos ou a classes de pessoas indeterminadas (a ação popular e as ações civis públicas, nelas compreendida a chamada ação de improbidade administrativa); e (c) instrumentos para tutela da ordem jurídica, abstratamente considerada, representados pelos vários mecanismos de controle de constitucionalidade 25 dos preceitos normativos e legislativos .
Um dos pontos que mais chama a atenção nesse quadro de evolução do processo civil tradicional para um processo civil que alcance, também, a tutela dos direitos coletivos, é a legitimação ativa, que, vista tradicionalmente, não seria capaz de garantir a efetiva tutela dos direitos transindividuais. Sua aplicação, porém, tem gerado problemas, decorrentes da generalidade e do certo simplismo com o qual a matéria tem sido tratada, sobretudo por nossos Tribunais. O tema será abordado com mais profundidade no próximo item.
Em se tratando de processos coletivos, não há como não fazer menção ao sistema norte-americano, precursor do modelo das class actions, e que inspirou todos os demais países da common Law e da civil Law na instituição de um sistema processual coletivo. De contornos inicialmente imprecisos, e com antecedentes no Bill of Peace (século XVII), as class actions tiveram sua primeira disciplina com as Federal Rules of Civil Procedure de 1938, até a edição da Rule no. 23, em
23
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução e revisão Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 49-50. 24 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo..., op. cit., p. 14. 25 Idem, p. 23.
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1966, que, nas considerações prévias, fixa os pré-requisitos para a propositura de uma ação de classe, estabelecendo, em seguida, os requisitos necessários para o prosseguimento da ação. São eles: (a) Pré-requisitos para a ação de classe: Um ou mais membros de uma classe podem processar ou ser processados como partes, representando todos, apenas se (1) a classe é tão numerosa que a reunião de todos os membros é impraticável, (2) há questões de direito ou de fato comuns à classe, (3) as demandas ou exceções das partes representativas são típicas das demandas ou exceções da classe e (4) as partes representativas protegerão justa e adequadamente os interesses da classe. (b) Prosseguimento da ação de classe: Uma ação pode prosseguir como ação de classe quando forem satisfeitos os pré-requisitos da subdivisão (a) e ainda: (1) o prosseguimento de ações separadas por ou contra membros individuais da classe poderia criar o risco de: (A) julgamentos inconsistentes ou contraditórios em relação a membros individuais da classe que estabeleceriam padrões de conduta incompatíveis para a parte que se opõe à classe; (B) julgamentos em relação aos membros individuais da classe que seriam dispositivos, do ponto de vista prático, dos interesses de outros membros que não são parte no julgamento ou que impediriam ou prejudicariam, substancialmente, sua capacidade de defender seus interesses; (2) a parte que se opõe à classe agiu ou recusou-se a agir em parâmetros aplicáveis à classe em geral, sendo adequada, desta forma, a condenação na obrigação de fazer ou não fazer (injunction), ou a correspondente sentença declaratória com relação à classe como um todo; ou (3) o juiz decide que os aspectos de direito ou de fato comuns aos membros da classe prevalecem sobre quaisquer questões que afetam apenas membros individuais e que a ação de classe é superior a outros métodos disponíveis para o justo e eficaz julgamento da controvérsia. Os assuntos pertinentes aos fundamentos de fato (findings) da sentença incluem: (A) o interesse dos membros da classe em controlar individualmente a demanda ou a exceção em ações separadas; (B) a amplitude e a natureza de qualquer litígio relativo à controvérsia já iniciada, por ou contra membros da classe; (C) a vantagem ou desvantagem de concentrar as causas num determinado tribunal; (D) as dificuldades que prova26 velmente serão encontradas na gestão de uma ação de classe .
Os incisos b1, A e B, e b2 tratam da ação que, no sistema brasileiro, corresponde à ação civil pública para tutela de direitos coletivos stricto sensu e difusos. No que se refere às class actions que tutelam esses direitos – os coletivos propriamente ditos - o sistema norte-americano prevê requisitos voltados à garantia de que sua propositura decorrerá de interesses legítimos. É esta a finalidade do pressuposto da “representatividade adequada” (adequacy 26
Tradução extraída de GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código de Defesa do Consumidor, comentado pelos autores do anteprojeto, 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 855/856. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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of representation), inserta no inciso (4) do item (a), que exige a necessária análise, pelo juiz, da idoneidade e representatividade do ente ou do indivíduo que propõe a class action27. Trata-se, como explica Álvaro Luiz Valery Mirra, de uma especial qualidade que tais titulares do direito de agir devem apresentar, consistente na aptidão para a defesa escrupulosa e eficiente, na esfera judicial, dos interesses da sociedade, em perfeita sintonia com as expectativas da coletividade na matéria, mesmo diante de litígios complexos e difíceis, muitas vezes contra os detentores do poder econômico (grandes grupos econômicos) e do poder político (os próprios gover28 nos) .
Essa representatividade adequada, que deve ser analisada caso a caso pelo magistrado no momento da propositura de uma class action e durante todo o processo, leva em conta, inclusive, as qualidades pessoais do ente legitimado ou do membro do grupo. Antonio Gidi explica que o representante deve “ser possuidor de uma higidez financeira que o habilite a uma boa condução do processo”, demonstrando que, “pela sua atitude, determinação, disponibilidade, seriedade e outras qualidades psicológicas tem condições 29 de representar os interesses do grupo em um processo judicial” . E, nessa avaliação, é levada em consideração, até mesmo, “a escolha do advogado, por parte da entidade (...) devendo recair em profissional com experiência na 30 área e prestígio na comunidade” . Embora, em termos geográficos, a adoção desse pressuposto no sistema brasileiro possa ser, de certa forma, prejudicada pela grande dimensão territorial de nosso país, é certo que muitos problemas seriam evitados se esse requisito fosse adaptado ao processo coletivo brasileiro. É o que destaca Luiz Valery Mirra:
27
No sistema norte-americano, dentre os legitimados para a propositura de ações coletivas, como se depreende do item (a) da Rules 23, de 1966, está o membro do grupo, individualmente considerado, desde que preenchido o requisito da “representatividade adequada”, além dos demais pressupostos previstos no item (a) da Rule. O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos traz previsão semelhante, em seu art. 20, incisos I e II, atribuindo legitimidade para a propositura de ações coletivas ativas a “qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, demonstrada por dados como: a- a credibilidade, capacidade e experiência do legitimado; b- seu histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos difusos e coletivos; c- sua conduta em eventuais processos coletivos em que tenha atuado” (inciso I) e ao “membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos coletivos, e individuais homogêneos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, nos termos do inciso I” (inciso II). 28 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Associações Civis e a Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: do Direito Vigente ao Direito Projetado. In GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo. Direito Processual Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 117. 29 GIDI, Antonio. Coisa Julgada e Litispendência em Ações Coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 63. 30 Idem, Ibid,
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a inclusão desses outros requisitos de representatividade adequada em nada restringiria o acesso à justiça das associações civis destinadas à defesa de direitos e interesses difusos. Ao contrário, apenas afastaria a legitimidade de entes não-governamentais destituídos de qualquer estrutura organizacional e seriedade de propósitos na tutela de bens e va31 lores a todos pertencentes em caráter indivisível .
Não diverge desse entendimento Ada Pellegrini Grinover, que vê na representatividade adequada uma solução para o controle na propositura de ações coletivas infundadas: Problemas práticos têm surgido pelo manejo de ações coletivas por parte de associações que, embora obedeçam aos requisitos legais, não apresentam a credibilidade, a seriedade, o conhecimento técnicocientífico, a capacidade econômica, a possibilidade de produzir uma defesa processual válida, dados sensíveis esses que constituem as características de uma ‘representatividade’ idônea e adequada. E, mesmo na atuação do Ministério Público, têm aparecido casos concretos em que os interesses defendidos pelo parquet não coincidem com os verdadeiros valores sociais da classe de cujos interesses ele se diz portador em juízo. Assim embora não seja esta a regra geral, não é raro que alguns membros do Ministério Público, tomados de excessivo zelo, litiguem em juízo como pseudodefensores de uma categoria cujos verdadeiros interesses podem estar em contraste com o pedido. Para casos como esse, é que seria de grande valia reconhecer ao juiz o controle sobre a legitimação, em cada caso concreto, de modo a possibilitar a inadmissibilidade da ação coletiva, quando a ‘representatividade’ do legitimado se demonstrasse inadequada. Quer me parecer que o sistema brasileiro, embora não o afirme expressamente, não é avesso ao controle da ‘repre32 sentatividade adequada’ pelo juiz, em cada caso concreto .
Luiz Rodrigues Wambier e Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos também chamam a atenção para esta que, segundo seu entendimento, seria uma das soluções para o controle de ações coletivas infundadas, A adoção desse instituto, em nosso sistema processual coletivo, evitaria, por certo, que demandas coletivas fossem ajuizadas por quem não tem condições de bem conduzi-las, fazendo com que, pela deficiência na fundamentação e mesmo na produção de provas, venham a ser proferidas decisões que prejudiquem os titulares dos direitos em jogo. Enquanto isso não ocorre, especialmente nos processos coletivos há que se permitir sem muita restrição – repita-se – que terceiros intervenham antes do julgamento dos recursos especiais selecionados, no STJ, contribuindo com subsídios para a análise da questão jurídica. Esses terceiros poderão ser os outros legitimados que, a despeito de mais qualificados 31
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Associações Civis e a Defesa dos Interesses Difusos em Juízo..., op. cit., pp. 114/135. 32 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ações coletivas ibero-americanas: novas questões sobre a legitimação e a coisa julgada, in Revista Forense, no 361, maio-junho/2002, p. 5. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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para a condução da ação coletiva, ou não a ajuizaram, ou tiveram sua ação extinta por litispendência, ou, ainda, não tiveram seu recurso espe33 cial escolhido para remessa ao STJ .
Referem-se os autores à alteração legislativa decorrente da Lei 11.672/2008, que, incluindo o art. 543-C, no CPC, trouxe a previsão dos 34 Recursos Especiais Repetitivos . O § 4º desse dispositivo permite, considerada a relevância da matéria, a “manifestação de pessoas, órgãos ou entida35 des com interesse na controvérsia”. Trata-se da figura do amicus curiae . Daí porque, não havendo, ainda, uma aplicação significativa por nosso Poder Judiciário do requisito da representatividade adequada, é de se permitir, ao menos, a intervenção, nas ações coletivas, de outros entes que ostentem maior qualificação para sua condução, até mesmo porque, como afirma Frank Michelman, “uma condição que contribui para a credibilidade é a ex36 posição constante do intérprete às opiniões diversas” .
O art. 82 do CDC atribui legitimidade a determinados entes para a propositura de ações coletivas. São eles: o Ministério Público; a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código; as associações legalmente constituídas há pelo menos 1 (um) ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC.
33
VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sobre a repercussão geral e os recursos especiais repetitivos, e seus reflexos nos processos coletivos, in Revista dos Tribunais, ano 98, abril/2009, v. 882, p. 43. 34 “Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. § 1o Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça (...) § 4o O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia. 35 No direito brasileiro, não há previsão legislativa desse “terceiro” utilizando-se a expressão amicus curiae, embora, em alguns casos, seja admitida a intervenção de “órgãos ou entidades”, como na Lei 9882/99, que regulamenta o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Teresa Arruda Alvim Wambier, acerca do tema, destaca: “como se trata de instituto ou de figura cuja adoção não tem outro sentido ou finalidade a não ser a de gerar decisões que sejam representativas de uma prestação jurisdicional qualificada, parece que se deve realmente admitir a possibilidade de que haja intervenção e manifestação do amicus curiae de maneira mais ampla e generalizada, independentemente de previsão legal expressa destas intervenções, ditas anômalas ou sui generis, porque não se encaixam nas figuras tradicionais de intervenção de terceiros” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Amicus curiae: afinal quem é ele? in Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, n. 34, dez. 2006, p. 241-245). 36 MICHELMAN, Frank I. Excerpts from Brennan and democracy. Princeton University Press, 1999. p. 19.
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Trata-se, no caso, de substituição processual. Dos substituídos (no caso, os titulares dos direitos tutelados via ações coletivas ou civis públicas) é o interesse tutelado, sendo sobre eles, portanto, que incidem os efeitos da Sentença coletiva. É o que destaca Cândido Rangel Dinamarco, O substituído é e permanece sendo titular dos interesses substanciais em litígio, não-obstante defendidos no processo por outra pessoa. É excepcional no sistema a outorga de legitimidade a quem não tem aquela titularidade (daí, legitimidade extraordinária), o que decorre da regra geral fixada no art. 6o do Código de Processo Civil – mas nas hipóteses em que isso ocorre é natural que o titular do direito ou interesse receba em sua esfera de direitos os efeitos substanciais da sentença, reputan37 do-se também vinculado por sua autoridade .
Os entes legitimados, tal como definido no art. 82 do CDC, portanto, 38 possuem legitimidade extraordinária para a propositura de ações coletivas . Essa legitimidade, contudo, não é ilimitada. Cada um dos entes elencados no art. 82 do CDC poderá propor ações coletivas observados certos parâmetros e determinadas condições que, em última análise, evitam a equivocada banalização na propositura dessas ações. Nem mesmo a legitimidade do Ministério Público pode ser vista de forma ampla, sendo limitada a seus fins institucionais, previstos no art. 127 da Constituição Federal. Por isso é que, para Teori Albino Zavascki, a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ações que tenham por objeto a tutela de direitos individuais homogêneos, “quando ocorre, se dá não por força do art. 129, III, da Constituição (já que de direitos coletivos não se trata), e sim porque sua tutela, em forma coletiva, constitui, em determinadas situações, 39 providência que interessa a toda a sociedade” . Daí ser aplicável a limitação prevista no art. 127 da Constituição Federal, de modo que “o Ministério Público tem legitimação ampla e irrestrita para promover ação civil pública,
37
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições… v. III, op. cit., p. 322. Nelson Nery Junior considera que a legitimação extraordinária somente se verificaria nos casos de ações coletivas para tutela de direitos individuais homogêneos. Tratando-se, contudo, de ações voltadas à tutela de direitos coletivos e difusos, tratar-se-ia de legitimação ordinária, “autônoma para a condução do processo” (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 1426). Esse entendimento, contudo, desconsidera o fato de que “ordinariamente a legitimidade ativa para a causa (legitimidade ordinária) pertence apenas ao sujeito que seja titular da pretensão deduzida (CPC, art. 6 o)”, sendo que “o sujeito legitimado extraordinariamente para defender em juízo interesse alheio em nome próprio é substituto processual”, como lembra Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, v. II, 3a ed. revista, atualizada e com remissões ao Código Civil de 2002. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116). Em nosso sentir, não há razão para a diferenciação realizada. Tratando-se de direitos coletivos lato sensu e de direitos individuais homogêneos, o ente legitimado figurará, sempre – ao menos no processo de conhecimento – como substituto processual, possuindo legitimação extraordinária para a causa. 39 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo..., op. cit., p. 38. 38
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mas desde que o bem tutelado tenha natureza típica de direito ou interesse 40 difuso e coletivo” . O STF já se pronunciou sobre a matéria, destacando, As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos (...). Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo esta41 tal .
Mais recentemente, em novembro de 2010, aquela Corte decidiu que “o Ministério Público detém legitimidade para propor ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos, quando presente evidente 42 relevo social” . Também a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas não é irrestrita, limitando-se às ações que tenham por objeto a tutela de direitos de pessoas carentes de recursos financeiros. Na Lei da Ação Civil Pública, a legitimidade da Defensoria Pública, contudo, é prevista de forma generalizada, no art. 5o, inciso II (incluído pela Lei 11.448/2007). Há opiniões doutrinárias e entendimento jurisprudencial, porém, no sentido da inconstitucionalidade desse dispositivo. E isso, pela simples razão de que a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas ou ações civis públicas deve ser analisada à luz do que prevê a Constituição Federal. Com efeito, a função institucional da Defensoria Pública é definida no art. 134 da Constituição Federal (“A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”), decorrendo, também, do princípio previsto em seu art. 5º, LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Como se vê, a própria previsão do art. 5o, inciso LXXIV, da Constituição Federal, serve de base à limitação da legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas e ações civis públicas. A leitura do princípio
40
Idem, p. 75. RE 163231, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26/02/1997, Tribunal Pleno, DJ 29-06-2001. AI 516.419-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 16-11-2010, Segunda Turma, DJE de 30-112010. 41 42
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previsto nesse dispositivo constitucional deixa claro que a assistência gratuita será prestada “aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Do STJ, extrai-se esse entendimento: A Defensoria Pública não possui legitimidade para propor ação coletiva, em nome próprio, na defesa do direito de consumidores, porquanto, nos moldes do art. 82, inciso II, do Código de defesa do Consumidor, não foi especificamente destinada para tanto, sendo que sua finalidade institu43 cional é a tutela dos necessitados .
A legitimidade ativa das associações é, também, tema permeado de questionamentos. Em primeiro lugar, as associações somente têm legitimidade para defender os interesses de seus associados. Trata-se da necessária interpretação do art. 5º, V, da LACP com o art. 5º, XXI, da Constituição Federal: “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”. A intenção do legislador, ao estabelecer o art. 5º, inciso V, da Lei nº. 44 7.347/85 , foi a de exigir o requisito da pré-constituição, além da pertinência entre a atuação da associação em juízo e o interesse efetivamente tutelado, fato que deve ser inequivocamente refletido e apurado a partir da interpretação sistemática das previsões insertas em seu Estatuto. Para a análise dessa pertinência é imprescindível que a associação tenha fins concretos, previamente determinados, voltados, exatamente, à proteção dos direitos, objeto da ação por ela proposta. Isso, contudo, na grande maioria dos casos, não é corretamente observado no momento da propositura de ações coletivas por associações, como destacam Luiz Rodrigues Wambier e Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos, Na prática, nem sempre se verifica a observância dessas condições – muitas vezes o próprio Judiciário desconsidera o requisito da pertinência temática – havendo um elevado número de ações coletivas ajuizadas por associações na defesa de interesses totalmente distintos de suas finalidades institucionais. É o caso, por exemplo, de associações constituídas para a defesa de interesses de donas de casa, de aposentados, e mesmo de consumidores a ela associados, que ingressam em juízo em face de instituições financeiras para defender supostos interesses de investido45 res em cadernetas de poupança .
43
REsp. 734.176/RJ, Rel. Min. Francisco Galvão, j. 27.03.2006. “Art. 5º. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (...) V- a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. 45 VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sobre a repercussão geral e os recursos repetitivos, e seus reflexos nos processos coletivos, in Revista dos Tribunais, ano 98, v. 882, abril/2009, p. 41. 44
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Quanto à exigência da pré-constituição da associação, Luiz Manoel Gomes Júnior destaca que tal requisito “tem como objetivo evitar a criação de associações ad hoc, apenas com a finalidade de ajuizar determinada ação 46 coletiva, desvirtuando o sistema” . Ainda, para Rodolfo de Camargo Mancuso, “é compreensível o propósito de legislador: evitar que associações não suficientemente sólidas, ou cujos objetivos não se coadunem com o interesse difuso em causa, se abalem, sem maior ponderação, ao ajuizamento de 47 ação coletiva” . Permite-se, desta forma, um controle a priori da idoneidade e honestidade de propósitos dessas associações, aplicando-se, portanto, embora não 48 sob essa denominação, o requisito da representatividade adequada , do qual já se tratou no item anterior. De fato, tão importante quanto assegurar a legitimidade ativa das associações para a propositura de ações voltadas à tutela coletiva, é assegurar que essa legitimidade seja exercida por entes sérios, e que tenham por objetivo, de fato, a proteção aos direitos de seus associados ou representados. Ada Pellegrini Grinover, examinando a questão, defende a necessidade de se respeitar, com rigor, os requisitos de legitimidade das associações, para evitar o (...) manejo de ações coletivas por parte de associações que, embora obedeçam aos requisitos legais, não apresentam a credibilidade, a seriedade, o conhecimento técnico-científico, a capacidade econômica, a possibilidade de produzir uma defesa processual válida, dados sensíveis esses que constituem as características de uma ‘representatividade’ idô49 nea e adequada .
Não se pode deixar de considerar, também, a possibilidade de percep50 ção, pelos entes legitimados, de honorários de sucumbência , comumente
46
GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. Editora Forense, Rio de Janeiro, 2005, p. 60. 47 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 140. 48 Lembre-se que, como já se afirmou, embora esse requisito não seja expresso no sistema coletivo codificado, parte da doutrina entende pela possibilidade de sua aplicação no direito brasileiro. 49 GRINOVER, Ada Pelegrini. Ações Coletivas ibero-americanas..., op. cit., pp. 3/12. 50 Com exceção do Ministério Público, para quem a jurisprudência já consolidou o entendimento de que é descabida a percepção de honorários. Veja-se, a este respeito, a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça: “no que respeita ao Ministério Público, porém, não incide tal disciplina. Como parte autora, não terá adiantado qualquer valor correspondente a despesas processuais; assim sendo, o réu nada terá a reembolsar. Por outro lado, tendo em vista que a propositura da ação civil pública constitui função institucionalizadora, uma das razões porque dispensa patrocínio por advogado, não cabe também o ônus do pagamento de honorários. Aliás, essa orientação tem norteado alguns dos órgãos de execução do Ministério Público do Rio de Janeiro, os quais, quando propõem a ação civi pública, limitam-se a postular a condenação do réu ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, ou ao pagamento de indenização, sem formular requerimento a respeito de despesas processuais e honorários advocatícios” (REsp 845339/TO; 1ª Turma; Rel. Min. Luiz Fux; j. em 18.09.2007; DJ de 15.10.2007, p. 237).
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arbitrados em valores elevados, em razão da importância do bem tutelado, o que também justifica o maior controle na análise da legitimação ativa. Não por outra razão, visando, justamente, ao controle na propositura de ações infundadas por entes que, na realidade, pretendem auferir ganhos com eventual resultado favorável, o art. 17 da Lei da Ação Civil Pública, prevê que “em caso de litigância de má-fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos”. Essa regra também é prevista no art. 87 do CDC. A jurisprudência, embora de forma ainda tímida, tem aplicado esse dispositivo para repreender os casos de evidente abuso na propositura de ações coletivas por entes legitimados descomprometidos com a finalidade para a qual foram criadas. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul assim atuou, no julgamento 51 de Apelação Cível interposta por associação inconformada com a rejeição dos pedidos que formulou em ação civil pública. A demanda havia sido proposta com vistas à condenação de uma específica casa noturna a restringir o fumo a locais apropriados ou para evitar que os frequentadores fumassem em suas dependências. Sem qualquer constrangimento, a própria associação afirmou nos autos que, com a ação intentada, pretendia “adquirir ‘poder de barganha’ para passar a atuar como disciplinadora dos estabelecimentos públicos, vindo a celebrar convenções e acordos acerca das áreas para fumantes”. Tanto a sentença quanto o acórdão proferido no julgamento da apelação rejeitaram a pretensão, condenando a associação às penas por litigância de má-fé. No voto proferido na ocasião, a Relatora consignou: não faço aqui qualquer alusão ao interesse social na restrição ao hábito de fumar ou à relevância da proteção à saúde pública. Tenho que é decisivo para a presente lide o fato de que a ação foi proposta contra uma casa de shows específica, objetivando que essa tomasse medidas no sentido de restringir o fumo a locais apropriados ou para evitar que os frequentadores fumassem em suas dependências. Em uma primeira análise, carece a demanda de interesse social de relevância tamanha que permita ser afastado o requisito legal da pré-constituição da entidade autora há pelo menos um ano, uma vez que de âmbito extremamente restrito, atingindo ínfima parcela da sociedade, frequentadores da casa ora apelada. Ainda, essa relevância foi afastada pela própria associação autora, que, em seu apelo, afirma que com a presente ação intenta, ao obter um resultado positivo, “adquirir poder de barganha” para passar a atuar como disciplinadora dos estabelecimentos públicos, vindo a celebrar convenções e acordos acerca das áreas para fumantes (...) Esta ausência de relevantes fundamentos, acrescida do ajuizamento dois meses 51
Apelação Cível nº. 70010369817; Relª. Desª. Naele Ochoa Piazzeta; j. em 06.10.2005; DJ de 18.10.2005. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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após a fundação da associação autora, tem como consequência a extinção da ação, (...) Entendo que resta efetivamente configurada a litigância de má-fé por parte da associação ao se utilizar do processo de modo temerário (CPC, art. 17, V), com o intuito de debater teses para “barganhar” frente a estabelecimentos comerciais, vindo a colocar-se como entidade fiscalizadora e reguladora da restrição ao hábito de fumar. Presente a má-fé, incide o disposto no artigo 87 do Codecon, parte final, mantendo-se a responsabilidade da associação sobre custas processuais e honorários advocatícios, rejeitado o pedido de AJG.
Em outra ocasião, o Tribunal de Justiça do Paraná também impediu o prosseguimento de ação civil pública, por perceber, a partir do exame dos atos constitutivos do instituto autor, que seus objetivos eram demasiadamente amplos, atribuindo-lhe uma função “quase institucional, como se fosse uma espécie de Ministério Público, defendendo e fiscalizando a sociedade, o que é impossível e ilegal”52. Do voto do Relator, extrai-se: Analisando pormenorizadamente a Ata da Assembléia Geral do apelante, verifica-se que este possui diversos objetivos, que vão desde promover cooperação entre organizações congêneres, passando pela formação de agentes sociais e finalizando na proteção de interesse de poupadores, conforme se vê às fls. 20/21, (...) Assim, seus objetivos lavrados na ata, simplesmente abarcam uma enorme gama de Direitos, numa espécie de metralhadora giratória, qual não lhe pode dar a qualidade de associação criada para defender os interesses dos poupadores, como seria necessário.
Como se disse, trata-se de tímidas atuações do Poder Judiciário na busca pela melhor utilização de ações coletivas. Postura que, aliás, deve guiar não só a análise da legitimação ativa para a propositura dessas demandas, como também a aplicação e interpretação de todos os dispositivos voltados à tutela coletiva.
A legitimidade prevista nos arts. 5o, da Lei da Ação Civil Pública e 82 do CDC, não pode ser aplicada de forma generalizada, sem se considerar as peculiaridades atinentes a cada um dos entes, além, por óbvio, do que prevê a Constituição Federal a respeito. Qualquer interpretação, nesse caso, deve ser realizada de forma harmônica, com a interação das disposições previstas na legislação esparsa, que integram o chamado “microssistema processual coletivo”, com o que resguarda a Constituição Federal. Rigorosamente aplicada, a legitimidade dos entes para a propositura de ações em que se busca a tutela de direitos coletivos (ou de direitos indivi52
Apelação Cível n°. 143.257-5; Rel. Des. Sidney Mora; j. em 29.10.2003; DJ de 17.11.2003.
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duais tratados coletivamente) reverterá em favor de um processo coletivo que, de forma adequada, alcance os fins para os quais foi criado.
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Isaías Bissoto Acadêmico do 3º ano do Curso de Direito da Universidade Positivo. M.Sc. em Engenharia Mecânica. Engenheiro Químico.
O presente trabalho discorre sobre a aplicabilidade da Lei da Anistia aos crimes cometidos por agentes públicos a serviço do regime militar. Busca também esclarecer se os crimes de tortura, sequestro, estupro e outros tipos, perpetrados por agentes naquela condição podem ser acobertados pelo referido Diploma. A análise envolve matéria multidisciplinar, razão pela qual a Lei é vista sob o prisma dos Diplomas fundantes de nosso Ordenamento jurídico, notadamente a Constituição Federal e os tratados internacionais mais eminentes acerca do tema dos Direitos Humanos. Palavras-chave: Lei da Anistia; Inconstitucionalidade; Eficácia de Lei; Crime Político; Direitos Humanos; TPI; CADH; Pacto de São José da Costa Rica.
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A análise sobre a constitucionalidade, ou não, da Lei 6.873/1979, conhecida como Lei da Anistia, não é tarefa simples. Por envolver questões complexas, o assunto requer pesquisa multidisciplinar ao seu deslinde. O presente trabalho originou-se das discussões havidas durante palestra proferida pelo Secretário Nacional de Justiça, Dr. Paulo Abrão Pires Jr., no campus da Universidade Positivo em 05/05/2011. Dessa palestra, dentre as tantas controvérsias do tema, veio a questão da conformidade constitucional da Lei da Anistia. Está-se cogitando, contudo, de Diploma Legal expedido anteriormente à vigência da Lei Maior, razão porque a análise requer uma apreciação mais pormenorizada da conformação ao ordenamento jurídico brasileiro e, no que atinente, aos pactos internacionais de que é signatário o Brasil. Busca-se aqui esclarecer, à luz da Constituição Federal (CF/88), da Norma de Introdução ao Direito Brasileiro e das demais atinentes ao tema, da Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH) – chamada de Pacto de São José da Costa Rica –, socorrendo-se ao Estatuto de Roma da criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) e ao direito comparado, quando necessários, a aplicabilidade da Lei da Anistia no Brasil e sua eficácia.
A Lei da Anistia brasileira foi editada em 28 de agosto de 1979, sob a égide do ordenamento constitucional anterior. Fruto do momento histórico de transição entre a ditadura militar e a redemocratização do Brasil, foi a negociação entre os militares e a sociedade civil organizada que lhe deu as bases. O texto originalmente proposto previa a anistia de forma ampla, geral e irrestrita a todos os banidos, aos exilados e aos que ainda se encontravam na clandestinidade. Este projeto foi derrotado no Congresso Nacional, passando o projeto havido pelo acordo político, com algumas restrições não contempladas no projeto original. O texto, finalmente aprovado em 1979, foi aquele escrito no Gabinete da Casa Civil do então governo militar que previa um projeto de anistia mais restrito: excluía-se de seu alcance os chamados "crimes de sangue", como se verá a seguir. Assim, anistiavam-se todos os que, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou com estes conexos, crimes eleitorais e que tiveram seus direitos políticos suspensos com base nos Atos Institucionais ou Complementares.
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Tal anistia se estendeu não apenas aos civis, mas aos militares e funcionários públicos dos três poderes. Importa, portanto, saber se os crimes comuns (notadamente abuso de autoridade, atentado violento ao pudor, lesões corporais, estupro, desaparecimento forçado, homicídio, dentre outros) praticados por agentes públicos podem ser reconhecidos conexos aos crimes políticos ou, de outro ponto, está-se diante de crimes imprescritíveis, pois caracterizados como crimes de lesa-humanidade. Deve-se ter em mente que o poder público é exercido por cidadãos investidos em funções com vistas ao bem comum. Tem-se, portanto, funcionários a serviço do povo, jamais donos do poder, pois é do povo que emana todo o poder, apenas é exercido em seu nome, e a democracia é forma de organização política que se funda na igualdade de todos perante a Lei. Para efeitos desta Lei, conceituou-se como crimes conexos aqueles de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, excetuados os de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Entretanto, em que pese anistiar crimes políticos e definir o escopo entendido por "crimes a estes conexos", não logrou o mesmo êxito o Diploma em claramente definir o que entende por "crimes políticos". Tal imprecisão terminológica, como se apreciará no decorrer deste trabalho, acarreta toda a sorte de incertezas quanto ao verdadeiro alcance do instituto apregoado. A Lei da Anistia, redigida de forma intencionalmente obscura, pretendeu assim incluir sob sua proteção os agentes púbicos a serviço da repressão política. O então regime político estendeu a anistia criminal aos seus agentes, pela via legislativa, que possui caráter eminentemente político, ao sabor da discricionariedade, conveniência e oportunidade do Estado. Esta obscuridade acarreta toda sorte de discussões, além da inépcia técnica do dispositivo. Para além disto, ao conceder-se anistia indiscriminadamente aos agentes a serviço da repressão, prejudicou-se o conhecimento da verdade havida naquele tempo. Sabe-se que os agentes atuavam sob codinomes. Isto aliado à vagueza do texto legal e à falta de publicidade dos arquivos da ditadura, chega-se facilmente à conclusão de que se procurou ocultar sob o mesmo manto tudo o que ocorreu no tempo objeto da Lei. As discussões mais acaloradas se concentram quanto à negativa de explicações do Estado Brasileiro às famílias dos desaparecidos, muitos deles referentes aos conflitos conhecidos como a guerrilha do Araguaia, quando mais de setenta civis foram dados como desaparecidos, sendo incertos seus paradeiros e os de seus eventuais despojos mortais ainda hoje. Este déficit de verdade se fulcra na alegação de que os agentes públicos de então, em defesa do regime político vigente, perpetraram crimes comuns contra os agressores do sistema na intenção de prolongar a perma-
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nência no poder do governo de então, em defesa da ordem pública e da segurança do Estado. 1 Sustenta Aguiar que, sendo a Lei da Anistia norma penal benéfica, deve assim ser interpretada extensivamente, ou seja, tanto é crime político aquele que tenta modificar à força o regime vigente como aquele que tenta preservar o regime em curso. Dito de outra forma, tanto serve a Lei aos civis rebelados quanto aos agentes públicos. Muito embora se tenha incluído os funcionários dos Poderes na anistia, o regramento internacional a crimes considerados contra a humanidade fundamenta outro tratamento e apresenta solução diversa a aqui proposta.
Em Roma, a 17 de julho de 1998, a Conferência Diplomática dos Plenipotenciários das Nações Unidas aprovava um tratado versando sobre o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional (TPI) com o fito de exterminar a impunidade de que gozavam os autores de crimes que constituem ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade. Assim, os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão se submetem à 2 jurisdição daquele Tribunal. 3 Especificamente sobre os crimes contra a humanidade , elenca o artigo 7, dentre outros, o encarceramento ou outra privação grave de liberdade física, em violação às normas fundamentais do direito internacional; a tortura; a perseguição de um grupo ou coletividade com identidade própria, por razões diversas; o desaparecimento forçado de pessoas. Conceituando tortura, o Estatuto do TPI diz tratar-se da intenção de infligir dores ou sofrimentos graves, físicos e mentais, a um indivíduo que o acusado tenha sob sua custódia ou controle; a perseguição, por sua vez, refere-se à privação intencional e grave de direitos fundamentais, em razão da identidade do grupo ou da coletividade; o desaparecimento forçado de pessoas se caracteriza pela prisão, detenção ou sequestro de pessoas por Estado ou organização política, ou com sua autorização, apoio ou aquiescência, seguido da recusa em admitir tal privação de liberdade ou a dar informação sobre a sorte ou paradeiro dessas pessoas, com a intenção de deixá-las fora do amparo da lei por um período prolongado. Do cotejo entre estas definições e os crimes que são alvos da Lei da Anistia, percebe-se que esses se coadunam com aquelas. Contudo, na vigência do Estatuto do TPI veda-se expressamente a retroação, alcançando 1
AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "movimento da esquerda punitiva" e a revisão da Lei de Anistia. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1973, 25/11/2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12005>. Acesso em: 11/05/2011. 2 CHOUKR, Fauzi Hassan; AMBOS, Kai (org.). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: RT, 2000. 3 CHOUKR, Fauzi Hassan; AMBOS, Kai (org.). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: RT, 2000. Para ver o Estatuto do TPI, consultar <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>.
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crimes cometidos somente após sua entrada em vigor. Assim, à luz do Estatuto do TPI, os crimes praticados e acobertados (ou não) pela Lei da Anistia permaneceriam em seu devido tempo, não sendo mais punidos. Vale lembrar que o Brasil acrescentou o parágrafo 4º ao artigo 5º da CF/1988, através da Emenda Constitucional 45/2004, para declarar sua submissão ao TPI.
A seu turno, a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) assinou, em 22 de novembro de 1969, a Convenção que se chamou Pacto de São José da Costa Rica, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e que entrou em vigor internacional em 18 de julho de 1978. O Governo brasileiro depositou a carta de adesão a essa convenção em 25 de setembro de 1992, data em que entrou em vigor para o Brasil, pela 4 expressão do parágrafo 2º do artigo 74 da Convenção . Internamente, aprovou-se pelo Decreto Legislativo 27/1992 e, através do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, promulgou-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Dita Convenção se ocupa ostensivamente da proteção, sob os mais variados aspectos, dos direitos humanos. Em seu capítulo II estão relacionados os direitos civis e políticos, dentre os quais estão os direitos à vida, à integridade e à liberdade pessoal, assegurando-se a liberdade de consciência, expressão, pensamento e associação, além do direito de reunião. E, nesse aspecto, é preciso repensar o alcance da Lei da Anistia, pois é a autoanistia considerada nula e sem nenhum efeito perante a Corte Intera5 mericana de Direitos Humanos . Neste sentido, as violações dos direitos humanos havidas no período da ditadura militar brasileira já foram alvo de re-
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AMÉRICA. Organização dos Estados Americanos (OEA). Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José, Costa Rica, 22/11/1969. Disponível em <http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues /c.Convencao_Americana.htm>. Acesso em 20/05/2011. 5 Ao menos os casos abaixo já foram julgados em que a decisão se deu nesse sentido: AMERICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença. Secretário: Pablo Saavedra Alessandri. Washington, D.C., 26/09/2006. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>. Acesso em 17/07/2011. _____. Sentença. Secretário: Pablo Saavedra Alessandri. Washington, D.C., 29/11/2006. Caso La Cantuta Vs. Perú. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_162_esp.pdf>. Acesso em 17/07/2011. _____. Sentença. Secretário: Pablo Saavedra Alessandri. Washington, D.C., 14/03/2001. Caso Barrios Altos Vs. Perú. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_75_esp.pdf>. Acesso em 17/07/2011. _____. Sentença. Secretário: Pablo Saavedra Alessandri. Washington, D.C., 03/09/2001. . Caso Barrios Altos Vs. Perú. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_83_esp.pdf>. Acesso em 17/07/2011. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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clamação à Corte Interamericana dos Direitos Humanos , que declarou admissível o caso apresentado, prosseguindo com a análise do mérito. 6
A Assembleia Nacional Constituinte de 1988 houve por bem incluir nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), através dos artigos 8º e 9º, anistia aos servidores civis e militares atingidos por atos de exceção, institucionais ou complementares desde 1946 até a data da promulgação da CF/1988. Assim, em tese, restaria afastada qualquer discussão acerca da revogação legal da anistia concedida com a entrada em vigor do novo ordenamento jurídico. Contudo, tal análise é equivocada em essência, pois não pode o novo ordenamento estabelecer tratamento discriminatório a servidores públicos com vistas à extinção da punibilidade por crimes havidos sob a égide de ordenamentos constitucionais anteriores. Ademais, tal disposição constitucional afrontaria os tratados internacionais já em vigor no momento de sua promulgação. A Constituição Federal, por sua vez, elenca inúmeros princípios e dispositivos a albergar direitos humanos, como aqueles considerados pelo TPI como sujeitos à sua jurisdição: já no preâmbulo vemos a formação de um Estado democrático de direito, o asseguramento aos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, a criação de uma sociedade fraterna e plural, livre de preconceitos. Grafa-se, ainda, como fundamento da república a dignidade da pessoa humana, tendo como objetivo fundamental uma sociedade livre de preconceitos e de quaisquer formas de discriminação. Em suas relações internacionais, o Brasil se orienta, dentre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Isto tudo a partir de 05 de outubro de 1988, quando passou a vigir a denominada "Constituição cidadã". Desde então, por expressa disposição do inciso XLIII de seu artigo 5º, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os crimes definidos como hediondos são considerados inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, responsabilizando-se seus mandantes, executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. Entretanto, do ponto de vista meramente constitucional, imprescritíveis são apenas os crimes de racismo e de ação de grupos armados contra o Estado. A submissão do Brasil aos tratados internacionais, que versem sobre
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Caso 11.552, petição recebida pela CIDH em 7 de agosto de 1995, apresentada pela seção brasileira do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL/Brasil) e pela Human Rights Watch/Americas (HRWA). Posteriormente vieram agregar-se como copeticionários no presente caso o Grupo Tortura Nunca Mais, seção do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo (CFMDP/SP). A petição refere-se ao desaparecimento de membros da Guerrilha do Araguaia entre 1972 e 1975 e a falta de investigação desses fatos pelo Estado desde então. AMERICA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório nr. 33/01. Caso nr. 11.552. Guerrilha do Araguaia: Julia Gomes Lund e outros. Washington, D.C., 06/03/2001. Relatório Anual 2000. Disponível em <http://www.cidh.org/annualrep/2000port/11552.htm>. Acesso em 20/05/2011.
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direitos humanos, é que assegura a imprescritibilidade dos crimes considerados de lesa-humanidade. Ainda, neste diapasão, não se pode olvidar dos Princípios da Legalidade estrita e da Irretroatividade Penal (ou retroatividade benigna). Complementarmente, lembre-se que se utiliza o Direito Penal a ultima ratio. Entretanto, tendo sido a CF/1988 editada posteriormente à Lei, importa a compreensão do efeito temporal e espacial das Leis.
O Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, com a alteração dada pela Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010, dispõe em seus artigos iniciais sobre a vigência das leis no Brasil. Importante ressaltar que a lei da Anistia, por expressa disposição, entrou em vigor em sua data de publicação. Anos mais tarde, em 1988, por Assembleia Nacional Constituinte, entrava em vigor uma nova ordem constitucional, fortemente fulcrada em valores humanitários, buscando uma sociedade fraterna, justa e solidária. Ter-se-ia um conflito de lei, tanto no tempo quanto no espaço, entre a Lei 6.683/1979 e o texto constitucional, eis que, a teor do artigo 2º do Decreto-Lei 4.657/1942, lei que não se destina a vigência temporária, extingue-se com a entrada em vigor de outra que a modifique ou revogue. Igualmente, consoante o parágrafo 1º do mesmo artigo, lei posterior revoga a anterior quando expresso, quando com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria versada na lei anterior. Ora, sendo a Lei da Anistia um diploma voltado a produzir efeitos somente em relação a aquele lapso temporal expressamente previsto, sua atuação não se dá no âmbito da nova ordem constitucional, permanecendo sua aplicação e vigência restritas aos anos e fatos aos quais foi editada. É dizer, não é lei que se protraia no tempo, alcançando fatos e períodos outros que não aqueles expressamente previstos e delimitados, nem deixa de ter aplicabilidade futura se encontrar fatos daquela época ainda inalcançados por seus preceitos. Possui o condão de eximir da punibilidade quaisquer pessoas que se envolveram com os atos praticados durante o período legal apregoado, de maneira atemporal, ou seja, é como um manto acobertando as máculas de outro tecido (o social), unindo um tempo de estabilidade política anterior a outro posterior, como que a ocultar dos olhos da sociedade tudo o que, por sob sua letra, ali deva permanecer. Por força deste construto, entender pela possibilidade de levantar este manto, para pinçar dali fatos, pessoas ou atos, significaria expor novamente o que se pretendeu ocultar, a bem da pacificação social e do estabelecimento de um novo paradigma de convívio harmônico e pacífico.
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Quanto ao conflito temporal e espacial entre a Lei da Anistia e a Constituição, percebe-se claramente que a única maneira de se dar vigência à Lei é restringi-la ao tempo e ao lugar em que foi publicada. Isto porque, como alhures dito, foi editada sob um ordenamento constitucional pretérito e tem efeitos restritos ao tempo de sua edição. Pensar aquele Diploma à luz da nova ordem constitucional, prima facie, afronta diretamente os valores, princípios e fundamentos do novo ordenamento. Alegar sua revogação significa reabrir discussão acerca daqueles fatos, retroagindo norma penal mais severa, que também se afigura inaceitável. Não há cogitar-se de inconstitucionalidade superveniente. A Lei da Anistia, portanto, tal como prevista, é norma recepcionada pela nova ordem constitucional, como até agora vem entendendo o STF. Ela não é norma de caráter geral e abstrato e, apesar de aparentemente conflitante com o ordenamento jurídico presente, sua interpretação e aplicação devem ser feitas à luz dos preceitos e princípios fundamentais reitores da ordem vigente, considerada sua peculiaridade temporal e social. Diz-se, destarte, da inaplicabilidade a fatos outros que não os expressamente contidos em seu texto. Entretanto, não pode haver a sanção aos crimes por ela anistiados, por força da irretroatividade da lei penal. O fim precípuo desta Lei é extinguir a punibilidade dos crimes políticos ou os crimes conexos a político dentre os anos de 1961 e 1979. É dizer, crimes alcançados pelo manto da Lei 6.683/1979, não podem sofrer qualquer tipo de sanção a qualquer tempo. Editada para resolver o impasse quanto à redemocratização do país, pretender conceder a anistia entre os idos anos de 1979 a 1988, a crimes anteriormente cometidos e, com o advento de nova ordem constitucional, entender pela revogação da abollitio criminis, significa negar vigência aos princípios da segurança jurídica e da irretroatividade da lei penal, quando menos. É dizer, busca-se incriminar os agentes com fundamento na pura vingança, esquecendo-se da negociação então havida. De outro norte, tentar explicar aquela Lei em face do novo ordenamento significa aceitar a inconstitucionalidade superveniente da norma, igualmente implausível. Ademais, a revogação da Lei da Anistia significaria expor fatos havidos em outro tempo a um ordenamento estabelecido posteriormente. Seria dar tratamento mais severo a situação fática pretérita, constitucionalmente incompatível, destarte. A forma mais adequada para entender este Diploma Legal é conceber sua vigência tão somente para regrar os atos decorridos no interregno de 180 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
tempo e nas condições que se subsumem a seu texto. O regramento por nova lei significaria mais discussões acerca da constitucionalidade do novo dispositivo, pois rever anistia previamente concedida seria incriminar retroativamente fatos sociais anteriormente descriminados, sem olvidar que anistia concedida por lei tem eminente caráter político, como já mencionado. Sua atuação deve se dar tão somente para os fatos que se amoldam às hipóteses preconizadas, muito embora de forma obscura. A simetria de tratamento há de ser respeitada, pois ofende ao ordenamento jurídico a discriminação de tratamento diferenciado a um lado em detrimento do outro, vale dizer, a condição de tratamento a crimes como tortura e sequestro deve ser simétrica, aos agentes públicos como aos agentes da guerrilha. Em decisão proferida em sede de Arguição de Descumprimento de Pre7 ceito Fundamental (ADPF-153) no ano de 2010, quando se discutia se o referido diploma se estenderia a agentes políticos que perpetraram – dentre outros crimes – homicídio, desaparecimento forçado e lesões corporais, hou8 ve o STF por bem entender que a Lei da Anistia deve ser entendida como norma-medida, ou seja, aquela que extingue em si seus efeitos, constituindo-se de mero ato administrativo especial, vale dizer, entra no ordenamento jurídico para regrar um aspecto específico, produz seus efeitos e se extingue, cumpridos os seus fins. De toda a sorte, o mais correto é entender pela aplicação da Lei em seu tempo e espaço, sabendo-se que a Lei 6.683/1979 vigorou desde sua publicação, mas que se mantém apenas para regrar os crimes políticos e os comuns a eles conexos, no texto da lei, naquele tempo, não sendo possível a incriminação daqueles por força de revogação da Lei em face da nova ordem constitucional. A celeuma central está no alcance da definição do termo "crime político". Entender os crimes conexos a que se refere a lei, portanto, será mais simples, posto que o próprio Diploma se encarrega de esmiuçar a definição. A discussão deve se concentrar, portanto, em que crimes não foram alcançados pelo diploma anistiador, isto é, revelar se tortura e maus-tratos, à guisa de exemplos, cometidos pelos agentes públicos durante a ditadura militar estariam ou não inclusos no perdão legal. Ou, de outro vértice, se tais crimes poderiam ser excluídos do rol dos crimes conexos que foram conjuntamente anistiados. Em suma, saber a que se deferiu a isenção de punição e
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ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Conselho Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nr. 153-6/800. Coordenadoria de Processamento Inicial nr. 148623. Brasília, 21/10/2008. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=330654&tipo=TP& descricao=ADPF%2F153>. Acesso em 25/05/2011. 8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nr. 153. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 29/04/2010. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. Ementário nr. isponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960 2409-1. DJe nr. 145, 06/08/2010. D < >. Acesso em 17/07/2011. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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o que ainda pode ser sancionado, dentro da nova ordem constitucional e à luz dos pactos internacionais vigentes no Brasil.
A Lei da Anistia houve por bem incluir, de forma genérica, o que considera crimes conexos, sendo, contudo, silente ao que referencia como crime político. A não termos uma delimitação legal do alcance deste termo, mister se faz a construção deste significado, pois dele decorre o alcance da referida Lei. Tal busca se espraia, para efeitos deste trabalho, partindo-se da definição inclusa na Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1982) – muito embora seja este Diploma superveniente a aquele –, na jurisprudência do STF e na doutrina. Interessa-nos, aqui, observar que a Lei de Segurança Nacional (LSN) refere, ao seu início, a crimes que lesam ou expõem a perigo o regime representativo e democrático, levando-se em conta a motivação e os objetivos 9 do agente . Perceba-se que os crimes elencados no artigo 20º da LSN são aqueles mesmos que a Lei da Anistia excetuou de seu alcance, vale dizer, não eram anistiados antes nem o foram depois da edição desta Lei. 10 Em sede de Recurso Criminal (RC 1468) , entendeu o STF que crime político só há quando presentes os pressupostos dos artigos iniciais da LSN, agregando-se-lhes a motivação política. 11 Em outro Recurso Criminal (RC 984) , entendeu o Pretório Excelso que o uso da imprensa caracteriza crime político pela provocação de animosidade entre classe armada do país e outra estrangeira, com o fim de atingir a
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Em seu título II, elenca os crimes e penas objetos da lei, dentre os quais, no artigo 20, lê-se: "Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. Pena: reclusão, de 3 a 10 anos. Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo". BRASIL. Presidência da República. Lei de Segurança Nacional nr. 7.170/1982, 14/12/1983. Diário Oficial da União, 15/12/1983. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7170.htm>. Acesso em 18/07/2011. 10 "(...) Só há crime político quando presentes os pressupostos do artigo 2º da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/82), ao qual se integram os do artigo 1º: a materialidade da conduta deve lesar real ou potencialmente ou expor a perigo de lesão a soberania nacional, de forma que, ainda que a conduta esteja tipificada no artigo 12 da LSN, é preciso que se lhe agregue a motivação política (...)". BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário Criminal nr. 1468-5 Rio de Janeiro. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Brasília, 23/03/2000. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. Ementário 2078-1. DJ 23/08/2002. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=372773>. Acesso em 17/07/2011. 11 _____. _____. Recurso Criminal nr. 984. Distrito Federal. Relator: Ministro Edmundo de Macedo Ludolf. Rio de Janeiro, 27/06/1951. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=262783>. Acesso em 17/07/2011.
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segurança do Estado. Nestes casos, há que se comprovar nos autos o uso 12 efetivo dos meios, pena de inépcia da denúncia (HC 46103) . Em se tratando de relações internacionais, a Corte Maior entendeu que 13 não cabe extradição (EXT 1008) por crime político cometido, inclusos aqueles contra pessoa ou patrimônio no contexto de uma rebelião política. A definição mais flagrante de crime político fica facilmente caracterizada quando se imagina embate em praça pública entre facções contrárias, sob um estado de comoção geral, daí podendo decorrer lesões corporais ou mortes. 14 Discussão interessante se vê no Processo de extradição (EXT 272) , quando expõe o STF sobre agente a serviço do governo germânico que perpetrou crimes durante a segunda guerra mundial. No deslinde do caso, motiva a Corte Suprema que descabe a qualificação de crime político, pois não pode este título acobertar crimes executados com crueldade ou perversidade, lembrando que o altruísmo que une os criminosos políticos não se amolda à fria premeditação do extermínio em massa. Ademais, não consta que tal solução tivesse sido positivada pelo Estado alemão nem poderiam funcionários graduados ignorar a criminalidade dos atos praticados, sabendo-se do esforço das autoridades para apagar os vestígios dos crimes cometidos. Interessante comentar que, contrariamente à posição acima, o STF jul15 ga pela impossibilidade de extraditar (EXT 794) um refugiado político por crimes contra pessoa havidos no meio da rebelião. 16 Em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1231) , decidiu o STF que anistia é própria a beneficiar um grupo de pessoas. A anistia que depende de lei, contudo, tem natureza política, por derivar de ato político. 12
_____. _____. Habeas Corpus nr. 46103. Pernambuco. Relator: Ministro Victor Nunes Leal. Brasília, 14/06/1968. Seção de Jurisprudência, Aud. de Publ. 05/03/1969. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=60797>. Acesso em 17/07/2011. 13 _____. _____. Extradição nr. 1008-5. República da Colômbia. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 21/03/2007. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência, Ementário nr. 2285-2. DJ 17/08/2007. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=479118>. Acesso em 17/07/2011. 14 _____. _____. Extradição nr. 272. República Federal da Áustria; República Popular da Polônia; República Federal da Alemanha. Relator: Ministro Victor Nunes Leal. Brasília, 07/06/1967. Seção de Jurisprudência, Aud. de Publ. 13/12/1967. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc TP=AC&docID=324524>.acesso em 17/07/2011. 15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nr. 794-7. República do Paraguai. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, 17/12/2001. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência, Ementário nr. 2070-1. DJ 24/05/2002. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324957>. Acesso em 17/07/2011. 16 Nos termos da respectiva ADI, "A anistia é ato político, concedido mediante lei, assim da competência do Congresso e do Chefe do Executivo, correndo por conta destes a avaliação dos critérios de conveniência e oportunidade do ato, sem dispensa, entretanto, do controle judicial, porque pode ocorrer, por exemplo, desvio do poder de legislar ou afronta ao devido processo legal substancial". BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nr. 1231-2. Distrito Federal. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, 15/12/2005. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. Ementário nr. 2230-1. DJ 28/04/2006. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=385450>. Acesso em 17/07/2011. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Para Pamplona , Denomina-se “crime” político, previsto no artigo 5º, inciso LII da Constituição Brasileira, por nocrim: agir político no espaço público, nominalmente transformado em crime, impropriamente tipificado por decisão ilegítima e estratégica de governos não-democráticos. Vê-se, pois, que mesmo a doutrina e a jurisprudência muito debate acerca do conceito, sem o devido consenso. Assim, em síntese, entende-se que o que caracteriza o crime político é a motivação com que é perpetrado, podendo-se entender como condutas contrárias ao regime político vigente, tendentes a destituir-lhe o poder ou desacreditar-lhe. Abrange, portanto, os crimes cometidos com motivação política e aqueles em defesa de ideologia, mas não os cometidos por afronta aos direitos humanos. Não cabe, desta feita, a autoanistia, pois não se afasta a antijuridicidade da conduta, tão somente sua culpabilidade. É dizer, eximem-se de culpa os crimes havidos por força da ideologia política. Não pode o agente de poder justificar-se de que, com base na ideologia, possa-se perpetrar violações aos direitos humanos, na tentativa da perpetuação do regime então vigente. Combater a ideologia tem um viés político mediante o embate de ideias e opiniões, dentro de um jogo instituído de forças sociais que regem a vida coletiva; pretender impor suas convicções, por força de dominância bruta, em razão do domínio às forças armadas, significa afronta aos pactos internacionais dos quais é signatário o Brasil, razão porque, ao menos em tese, o comando do período sob a ditadura militar deveria ser responsabilizado. 17
Zaffaroni sustenta que a imprescritibilidade de tais crimes não encontra fundamento apenas na lei ou nos costumes, porque estes poderiam ser revogados. Entender a prescrição de crimes cometidos contra os escravos e índios cometidos no passado, o que relega seus descendentes a uma posição desvantajosa hoje, com fundamento no direito à propriedade e à segurança significa reconhecer este direito baseando-se num crime contra a humanidade e ater-se como medida anistiadora a simples passagem do tempo. Para ele, a imprescritibilidade das ações de crimes contra a humanidade quer, exatamente, evitar que isto aconteça. Sustenta ainda Zaffaroni que os crimes de lesa-humanidade são geralmente praticados pelas agências detentoras do poder punitivo, que ope18
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PAMPLONA, Gustavo. Crime Político: por uma nova proposta hermenêutica harmônica com o Estado Democrático de Direito. Jurisprudência em Revista, Belo Horizonte/MG, a. II, nº 40. Disponível em: <http://wp.me/p9jOi-l1> Acesso em: 25/05/2011. 18 ZAFFARONI, RAÚL EUGENIO. En torno de la Cuestión Penal. Buenos Aires: Euros Editores, 2005 (pp. 253-266).
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ram além do direito penal, fora de seu controle. Assim é que se processam os desaparecimentos forçados, os genocídios, os extermínios, de tal sorte que aquele que perpetra crimes contra a humanidade excede, em muito, com sua conduta, o conteúdo ilícito de qualquer outro delito. Conclui, ademais, que não há argumento jurídico nem ético pela prescrição destes crimes, pois tal seria norma fundante de autoimpunidade, quando os autores dos crimes legitimam suas consequências para si e seus descendentes. Posição idêntica externou o juiz espanhol Baltazar Garzón quando de 19 sua visita ao Brasil em 2008 . Em sintonia com eles, o então ministro da justiça Tarso Genro, o então ministro da Secretaria Especial de Direitos Hu20 manos, Paulo Vannuchi, entre outros . 21 Entretanto, há defensores de posição adversa , sustentando pela impossibilidade de se discutir o alcance da lei anistiadora. Dentre estes o emi22 nente professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior .
De todo o exposto, negar vigência, cogência e eficácia à Lei de Anistia seria inconstitucional, bem assim como pretender acobertar sob sua proteção outros crimes cometidos naquele período que não aqueles de natureza política ou comuns a eles conexos. Visto de outro norte, quando os agentes do Estado excederam manifestamente suas atribuições legais e constitucionais, assumiram o risco de produzir a ação, sabendo da ocorrência de um desvio de poder, perpetrando crimes contra a humanidade e a dignidade. Lutar contra uma nova ideologia que quer se instalar não implica, necessariamente, nem se justifica, incontinenti, o emprego e a autorização do uso de todos os meios e métodos possíveis; enfrentar o risco é produzir o resultado e arcar com o que dele advier. Outra forma de enfrentar a questão é franquear aos agredidos a inversão do ônus probatório. Caberia, então, ao Estado demonstrar que seus agentes não perpetraram as barbáries que lhes são imputadas. Aqui teríamos novo embate acalorado quanto ao real poder probante dos documentos relativos ao período, pois muito do que se tem dissimula a verdade, travestida
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BOCCHINI, BRUNO. Anistia não vale para crimes contra a humanidade, diz juiz espanhol. Agência Brasil. São Paulo, 18/08/2008. Notícia. Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2008-0819/anistia-nao-vale-para-crimes-contra-humanidade-diz-juiz-espanhol>. Acesso em 17/07/2011. 20 REDONDO, FELIPE. FESSERGS - Federação Sindical dos Servidores Públicos no Estado do Rio Grande do Sul. Ministério Público quer levar Lei de Anistia ao STF. São Paulo, 23/06/2008. Notícias. Disponível em < http://www.fessergs.com.br/noticias.php?id=245>. Acesso em 17/07/2011. 21 v. também nota de rodapé 6. 22 FERRAZ JÚNIOR, TÉRCIO SAMPAIO. A Verdade Sufocada. A Lei de Anistia impede a punição dos que praticaram tortura? Disponível em <http://www.averdadesufocada.com/index.php? option=com_content&task=view&id=1310&itemid=34>. Acesso em 17/07/2011. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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de uma legalidade aparente, que nem sempre traduz a verdade fática daquele momento. De todo o exposto, tenho que a natureza jurídica do crime político é essencialmente formal, ao que necessita ser claramente definido em lei, a fim de se evitar inconstitucionalidade na aplicação do conceito. No silêncio da Constituição, precisa a lei tipificar, pena de não se poder incriminar as condutas, pois não há crime, se não aqueles previamente tipificados em lei. E, neste passo, tenho que o emprego das definições constantes da Lei de Segurança Nacional, editada no ano de 1982, não poderia socorrer as definições pretendidas na Lei da Anistia, de 1979, porque posterior a esta e, no ordenamento constitucional à época vigente (art. 153, § 16º, EMC/1969) constava a irretroatividade da lei penal. Assim é que o amparo da LSN e suas definições só poderiam aplicar-se a crimes posteriores à edição dessa lei, que, no entanto, não socorre à Lei 6.683/1979. A natureza material da Lei da Anistia é multiforme, podendo expressar-se pelos mais diversos tipos, o que também não auxilia a restringir e delimitar seu campo de atuação. Portanto, cabe ao Judiciário estabelecer, no caso concreto, o verdadeiro alcance dos termos da Lei da Anistia, por absoluta inépcia do Diploma no delineamento de seus limites conceituais.
AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "movimento da esquerda punitiva" e a revisão da Lei de Anistia. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1973, 25/11/2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/ texto/12005>. Acesso em: 11/05/2011. AMERICA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório nr. 33/01. Caso nr. 11.552. Guerrilha do Araguaia: Julia Gomes Lund e outros. Washington, D.C., 06/03/2001. Relatório Anual 2000. Disponível em <http://www.cidh.org/annualrep/2000port/11552.htm>. Acesso em 20/05/2011. _____. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença. Secretário: Pablo Saavedra Alessandri. Washington, D.C., 26/09/2006. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile. Disponível em <http://www. corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>. Acesso em 17/07/2011. _____. Sentença. Secretário: Pablo Saavedra Alessandri. Washington, D.C., 29/11/2006. Caso La Cantuta Vs. Perú. Disponível em
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Gisele Machado Noga Advogada. Conciliadora do JEC. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho.
Március Vinícius Caron Schlichting Advogado. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho.
O presente artigo abordará a desnecessidade de devolução dos valores recebidos a titulo de aposentadoria quando da desaposentação uma vez que no que se refere à devolução ou não das parcelas há grande discussão, sendo que muitos entendem que a devolução é obrigatória, todavia, ainda não há uma posição consolidada na doutrina e jurisprudência. Palavras-chave: direito previdenciário; desaposentação; devolução da aposentadoria.
Antes da abordagem do tema central contextualizar-se-á o instituto da seguridade social, visando compreender a situação do trabalhador que após longo período de trabalho ou avançada idade, retorna ao mercado de trabalho, mesmo não tendo as mesmas condições de trabalhar, necessitando de um mínimo de auxilio estatal para garantir sua sustentabilidade.
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Adentrando no instituto da desaposentação, que visa resgatar a aplicabilidade do seguro social na vida dos indivíduos que ainda contribuem com a sociedade, se analisará o posicionamento dos doutrinadores e juristas quanto às formas de aplicação da desaposentação, principalmente no que se refere à devolução ou não das parcelas recebidas como aposentadoria. E, por ser um tema de bastante polêmica e repercussão, devido à ausência de leis regulamentadoras do assunto será abordada a aplicação e/ou possibilidade da desaposentação no caso concreto. Desta forma, ao longo do trabalho serão abordados quais são os princípios básicos da seguridade social, o que é a aposentadoria em linhas gerais, o conceito de desaposentação e seus reflexos e por fim a discussão jurídica sobre a devolução ou não das parcelas pagas ao segurado desaposentado.
Em linhas gerais a aposentadoria é um direito de todo o cidadão que tenha contribuído com a sociedade através do seu trabalho e esteja filiado à previdência social, além de cumprir todos os requisitos legais. Para melhor entendimento é oportuno fazer uma distinção entre o que é ordem social, seguridade social, previdência social e direito previdenciário. Primeiramente, a ordem social, conforme determina a Constituição Federal em seu artigo 193, tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem estar e a justiça sociais. Referido Estado do Bem-estar social, também chamado de Welfare State, refere-se ao Estado assistencial que garante padrões mínimos de educação, saúde, habitação, renda e seguridade 1 social a todos os cidadãos. Já a expressão seguridade social que surgiu com a Constituição Federal de 1988 tem como objetivo a criação de um sistema protetivo, que no Brasil foi definido como “o conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes Públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos à saúde, à previ2 dência e à assistência social, conforme artigo 194 da Carta Magna.” No que se refere à terminologia previdência social, esta é definida como seguro sui generis, pois tem a filiação compulsória para os regimes básicos (regime geral e próprio da previdência social), tem caráter coletivo, contributivo e de organização estatal, amparando seus beneficiários contra os riscos sociais. Além disso, há o regime complementar que é contributivo, 3 coletivo ou individual, ressalvando-se a autonomia e facultatividade.
1
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p. 348. 2 IBRAHIM, F. Z. Curso de Direito Previdênciário. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 5. 3 Ibidem. p. 29.
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Por fim, o direito previdenciário é o ramo do direito que trata do sistema de seguridade social, que está prevista no capítulo II da Constituição Federal, a qual dispõe no art. 194 que a gestão administrativa da seguridade social é quadripartite, ou seja, há a participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo nos órgãos colegiados.4
Portanto, após necessárias distinções, conclui-se que o sistema da seguridade social é formado pela saúde, previdência social e assistência social sendo o direito previdenciário um instrumento para a sua realização. A seguridade social é financiada por toda a sociedade de forma direta ou indireta e tem por objetivo, segundo LADENTHIN e MASSOTTI a “universalidade da cobertura e do atendimento; a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação do custeio; diversidade da base de financiamento e caráter democrático e descentralizado da administração.”5 Assim, pode-se observar que a seguridade social tem várias conotações, mas essencialmente busca cumprir com os princípios constitucionais previstos no art. 194 da Carta Magna, para cumprir essencialmente o direito à aposentadoria que nada mais é do que os proventos recebidos pelo aposentado, ou seja, por aquele sujeito que encontra-se no estado de inatividade remunerada, após determinada idade, tempo de serviço e tempo de contribuição, previstos em lei.6 A discussão acerca da devolução ou não de todo o valor recebido como aposentadoria paga pela previdência no momento da concessão da desaposentação, traz a tona, sobretudo dentre outros princípios constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana que estabelece ao Estado o dever de garantir o bem estar e a dignidade aos cidadãos, sendo uma premissa inafastável. Além disso, há o princípio da continuidade que determina que não pode haver interrupção no recebimento do benefício, por apresentar caráter alimentar e de prestação continuada,7 seguindo então para o princípio da irrepetibilidade dos alimentos que nos leva ao entendimento de que os valores recebidos mensalmente a título de aposentadoria têm natureza alimen4
PANTALEÃO, Sérgio Ferreira. Direito Previdenciário. Guia Trabalhista. Disponivel em: <http://www.guiatrabalhista.com.br/tematicas/direitoprevidenciario.htm>. Acesso em: 14 fev. 2011. 5 LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro; MASOTTI, Viviane. Desaposentação Teoria e prática. 1ª. ed. Curitiba: Juruá, 2010. p. 21. 6 GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico jurídico. 7 ed. São Paulo: Rideel, 2005, p. 87. 7 SANCHES, Adilson; XAVIER, Victor Hugo. Advocacia Previdenciária. 2ª. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2009 p. 97 – 104. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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tar, ficando, portanto, protegidos pelo princípio da irrepetibilidade, que significa que as prestações pagas pela Autarquia Previdenciária tem caráter social e visam garantir a subsistência dos beneficiários.8
No Brasil, como é notório, existem dois sistemas básicos da previdência, quais sejam: o público e o privado. O sistema público se divide em dois subsistemas, o Regime Geral de Previdência Social e os Regimes Próprios de Previdência Social e o sistema privado ou Regime Complementar, possui caráter facultativo e natureza privada, sendo regulado por lei complementar. 9 O Regime Geral é regido pelo INSS, o qual é responsável pela proteção dos trabalhadores privados e ainda dos funcionários públicos. Já os Regimes Próprios de Previdência Social são os mantidos pela União, Estados e alguns Municípios, em favor de seus servidores públicos e militares. Todos os requisitos para a concessão de aposentadoria pelo regime geral estão previstos na Lei 8.213/91 que determina cada espécie de aposentadoria. E quanto ao regime próprio a regulamentação encontra-se na Lei 9.717/98, sendo cabível aos Estados e Municípios criar uma regulamentação própria para seus funcionários. Observa-se ainda que os requisitos essenciais em ambos os regimes são: cumprir o tempo de carência, o tempo de contribuição e a idade. Portanto, para a concessão do benefício de aposentadoria é necessário que o contribuinte cumpra todos os requisitos legais para então passar a receber os valores correspondentes. O recebimento de tais valores é cessado pela morte do segurado, pelo restabelecimento das condições para o trabalho quando tratar-se de aposentadoria por invalidez ou por vontade do segurado.
No que se refere à vontade do segurado em cessar seu benefício previdenciário deve-se destacar que trata-se de uma prerrogativa conferida a ele tendo em vista tratar-se de um direito personalíssimo e de caráter patrimonial.
8
BUENO, Cleusa Oliveira. Do Direito à desaposentação no sistema previdenciário brasileiro. Disponivel em:<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:IX 1jffUVff8J:buenoecostanze.adv.br/index.php%3Foption%3Dcom_content%26task%3Dview%26id%3D11913 %26Itemid%3D95+princ%C3%ADpio+da+irrepetibilidade+dos+alimentos.&cd=14&hl=ptBR&ct=clnk&gl=br&source=www.go>. Acesso em: 14 fev. 2011. 9
IBRAHIM, Fabio Zambitte. op. Cit. p. 800.
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Assim, para melhor compreensão é necessária a distinção entre renúncia e desaposentação. A cessação da aposentadoria por vontade do segurado pode ser entendida como uma renúncia, a qual pura e simplesmente trata-se de uma opção do segurado que pretende deixar de receber sua aposentadoria, contudo, fazendo essa opção ele deixa de utilizar seu tempo de serviço para a concessão de outra aposentadoria, e não precisa restituir o que já recebeu a título de aposentadoria, diferente do conceito de desaposentação, na qual o segurado abdica o direito ao benefício, porém sem abrir mão do direito de apro10 veitar o benefício anterior. Ou seja, a desaposentação, segundo Fábio Zambitte Ibraim: “é a reversão da aposentadoria obtida no Regime Geral da Previdência Social ou em Regimes Próprios de Previdência de Servidores Públicos, com o objetivo exclusivo de possibilitar a aquisição de benefício mais vantajoso no mesmo ou 11 em outro regime previdenciário.” Ainda, segundo Wladimir Novaes Martinez a “renúncia é a abdicação de um direito pessoal disponível, se não causar prejuízos para terceiro. Não é 12 sinônimo de desaposentação que exige uma nova aposentadoria.” Entretanto, deve-se observar que a Autarquia Previdenciária, em sua Instrução Normativa n.º 45, art. 426, prevê a possibilidade de renúncia, com exceção nos “casos de aposentadoria por idade, tempo de contribuição e 13 14 especial“ , ou seja, possibilitando a chamada “despensão” sem haver a necessidade de devolução das parcelas outrora recebido. O entendimento que tem prevalecido é de que no caso de renúncia não é necessária a devolução dos valores já recebidos e o tempo de contribuição não seria mais utilizado, já na desaposentação é fato que o tempo de contribuição pode ser reutilizado, contudo, há divergência quanto à devolução ou 15 não das parcelas já recebidas.
Existem duas hipóteses de desaposentação, a primeira delas quando a nova aposentadoria ocorre no mesmo regime (situação em que haverá a acumulação do tempo contribuído antes da aposentadoria, com as contribui10
LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro; MASOTTI, Viviane. op. Cit.. p. 68 IBRAHIM, Fabio Zambitte. Desaposentação: O caminho para uma melhor aposentadoria. 4ª. ed. Niterói: Impetus, 2010. p.02. 12 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Desaposentação. São Paulo: LTr, 2008. P. 41 apud ibidem. p. 69 13 Instrução Normativa n.º 45. 14 Quanto à despensão ver LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro; MASOTTI, Viviane. op. Cit. P. 164166. 15 LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro; MASOTTI, Viviane. op. Cit. p. 68-69 11
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ções realizadas após) e a outra hipótese se verifica quando há mudança entre os regimes de previdência, por exemplo do Regime Geral para o Regime Próprio da Previdência Social, ou vice-versa (caso em que ocorrerá a averbação do tempo contribuído em outro regime). A hipótese de desaposentação para adentrar em regime diverso ocorre com maior frequência, em especial daquele que inicia no regime geral e passa ao regime próprio, uma vez que na maioria dos casos é mais vantajoso 16 manter-se aposentado pelo regime próprio do que pelo regime geral Contribui para a referida hipótese a previsão do artigo 201, §9º da Carta Magna que autoriza a contagem reciproca do tempo de contribuição, todavia, no caso do segurado já estar aposentado quando adentrar ao novo 17 regime, “o poder público entende ser inviável a desaposentação” tendo o segurado que promover ação judicial para garantir seu direito a uma melhor aposentadoria. O posicionamento da autarquia previdenciária toma por base o contido no artigo 181-B do Decreto 3.048/99 que proíbe a renúncia à aposentadoria e de acordo com Fábio Rodrigo Victorino, a fundamentação para a criação do artigo 181-B do Decreto 3.048/99 nasce da Interpretação sistemática do art. 18, § 2° (possibilita aos aposentados que retornam ao trabalho somente o gozo do salário-família, salário-maternidade e reabilitação profissional), do art. 96, III (impede que o tempo de serviço já aproveitado para a concessão de um benefício previdenciário seja novamente empregado) e do art. 122 (autoriza o segurado receber aposentadoria mais vantajosa desde que, preenchido tempo de serviço mínimo, opte por permanecer em atividade), todos da Lei n. 8.213/91.18
Entretanto, para Gisele Lemos Kravchychyn “um decreto como norma subsidiaria que é não pode restringir a aquisição de um direito do aposentado, prejudicando-o, quando a lei quedou-se omissa.”19 No caso em que a desaposentação é utilizada para melhoria dos rendimentos financeiros no mesmo regime, a autarquia previdenciária mantem o posicionamento de ser inviável, mas mesmo assim há um desdobramento de possibilidades, tal qual quando o segurado aposenta-se proporcionalmente e continua a laborar sem auferir qualquer contraprestação financeira da autarquia.
16
LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro; MASOTTI, Viviane. Op. Cit. p. 84. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Desaposentação: O caminho para uma melhor aposentadoria. 4ª. ed. Niterói: Impetus, 2010. p. 36. 18 VICTORINO, Fábio Rodrigues, Os desacertos da desaposentação. Revista de Previdência Social, São Paulo, v. 31, n. 325, p. 1045-1048. p. 1046. 19 KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos. Desaposentação: fundamentos jurídicos, posição e análise das propostas legislativas. Revista de Previdência Social, v. 31, n. 321, p. 756-766, ago. 2007. p. 761. 17
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Outro exemplo se dá com a mudança no status do segurado ao adentrar em idade avançada (60 anos no caso de mulheres e 65 no caso de homens) quando surge a figura do fator previdenciário, cuja aplicação é facultativa, conforme entendimento já consolidado na jurisprudência e inclusive na própria Autarquia Previdenciária, o que resulta na modificação significativa do valor auferido a título de aposentadoria. Neste caso Wladimir Novaes Martinez destaca a possibilidade da desaposentação haja vista a aplicação do fator previdenciário, pois com a aposentadoria a posteriori o fator implicaria em um decréscimo menor dos rendimentos do segurado, bem como o aumento do valor da aposentadoria decorrente do maior tempo de contribuição. 20 Portanto, depreende-se que em pouquíssimas hipóteses a desaposentação provocaria um decréscimo na renda do segurado, por isso deve a desaposentação ser concedida apenas quando for mais benéfica. Caso contrário não deve surtir efeitos para não prejudicar o segurado, isto porque a desaposentação, diferente da renúncia, apenas gera efeitos com a existência de uma nova aposentadoria mais benéfica.
Apesar de toda a discussão acerca da desaposentação não existe legislação que a vede ou a permita, motivo pelo qual se entende que deve ser possível sua aplicação, haja vista que a aposentadoria trata-se de direito patrimonial disponível, portanto, renunciável. O poder executivo vem se posicionando de forma oposta à desaposentação, conforme se verifica pela leitura do decreto 3.048/99 que se utiliza de uma prerrogativa “com evidente conteúdo praeter legem”, ou seja, está criando leis sem ter o poder para tanto e com isso entende não ser possível sequer renunciar a um benefício que já está sendo recebido, 21 embora a Instrução Normativa n.º 45, preveja que pode haver a renúncia uma única vez exceto “nos casos de aposentadoria por idade, tempo de contribuição e especial”. Todavia, referido entendimento não é a melhor posição, pois como passaremos a apresentar, a desaposentação é plenamente cabível desde que vise uma melhora econômica ao segurado, uma vez que o entendimento de irrenunciabilidade da aposentadoria, nada mais é do que uma forma de garantir que o beneficio, o qual possui caráter alimentar, não seja indevidamente interrompido, violando o ato jurídico perfeito.
20 21
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Op. cit. p. 88 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Desaposentação Op. Cit. p. 37. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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Destarte, conforme nos ensina Ibrahim, “as prerrogativas constitucionais não podem ser utilizadas contra as pessoas que são objeto da salvaguarda constitucional.”22 Em outras palavras, muito embora o ato jurídico perfeito e o direito adquirido sejam, inclusive, cláusulas pétreas da Carta Magna, devem ser relativizados para defender às pessoas que possuem sua garantia, devendo-se atinar ainda que a seguridade social, muito embora seja direito de todos é renunciável, diferentemente dos direitos da personalidade, no qual o constituinte cria uma proteção contra seu próprio titular 23. Assim, a seguridade social trata-se meramente de direito patrimonial e renunciável a qualquer momento. Frise-se que a desaposentação existe para aumentar os ganhos do segurado e abranger as contribuições obtidas após seu jubilamento, aumentando deste modo sua renda e garantindo uma aposentadoria mais justa. Outra questão relevante, no que se refere à desaposentação, surge da possibilidade de nascimento de um regulamento mais benéfico, o qual possivelmente geraria uma massa de demandas para obtenção da desaposentação que afetaria o principio do tempus regit actum aplicado no direito previdenciário, se não houver qualquer contribuição ao sistema após a aposentação. Neste diapasão temos que concordar com o entendimento do Professor Ibrahim, no sentido de que cabe ao legislador ordinário estabelecer qual o tempo de contribuição necessário no novo regime, não o fazendo, por inexistir regra a este respeito, deve o poder judiciário, utilizando-se da forma praeter legem que lhe é garantida, determinar, por exemplo, que haja no mínimo 1 ano de contribuição, garantido, assim, que a desaposentação ocorra tão somente em favor daqueles que prestaram uma maior contribuição para o sistema da seguridade social.24 Portanto, tornou-se indiscutível a possibilidade da desaposentação conforme determina ampla jurisprudência em praticamente todo o território nacional25, restando pendente apenas a questão da devolução dos valores e regulamentação da matéria.
Tendo sido consolidada a possibilidade de desaposentação, o cerne da questão encontra-se no posicionamento da jurisprudência e da doutrina no
22
Ibidem. p. 41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit. p. 463. 24 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Desaposentação. Op. Cit. p. 42-43. 25 Em sentido contrário, vide decisão do TRF da primeira região: AC 0033226-67.2006.4.01.3800/MG, Rel. Desembargadora Federal Ângela Catão, Conv. Juiz Federal Miguel Angelo De Alvarenga Lopes (conv.), Primeira Turma,e-DJF1 p.18 de 15/03/2011 23
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que se refere à devolução ou não dos valores pagos ao segurado quando solicitada a desaposentação. Alguns tribunais entendem, acredita-se de forma errônea, que para efetivar a desaposentação faz-se necessário a devolução das verbas anteri26 ormente recebidas como aposentadoria. Entendimento questionável tanto por ferir a questão da irrepetibilidade das verbas alimentares quanto pelo fato da seguridade social não ser fruto do capital unicamente de cada individuo para sustentar a si próprio. É notório que as verbas recebidas como proveito de aposentadoria são verbas alimentares e que por tal razão mantém a aplicação do princípio da irrepetibilidade das verbas alimentares, o qual determina que uma vez devidas, não se pode efetuar a cobrança de tais verbas, pois são utilizadas para a sobrevivência da pessoa. Um exemplo de aplicação do referido princípio se da quando a autarquia concede um benefício maior do que o devido e, não obstante a boa fé do segurado, passa a cobrar os valores já pagos, e neste sentido segue a jurisprudência em diversas decisões, tal qual a jurisprudência a seguir do TRF da 4º região: PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. REVISÃO DE BENEFÍCIO. VALOR DA RENDA MENSAL INICIAL. ERRO ADMINISTRATIVO. DESCONTO DOS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE. REPETIÇÃO DE VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ. IMPOSSIBILIDADE. 1. Apesar de não ser ignorado que a Administração pode e deve rever os atos, se eivados de ilegalidade, também não pode ser ignorada a segurança jurídica que deve escudar aqueles mesmos atos, em especial se o segurado percebe de boa-fé, benefício em valor superior ao devido, como decorrência de erro administrativo devidamente reconhecido nos autos. 2. Incabível, portanto, a devolução de eventuais valores percebidos pelo segurado em decorrência de erro administrativo, porquanto trata-se de quantia recebida de boa-fé. E, como vem reconhecendo os Egrégios Tribunais Pátrios, as prestações alimentícias, onde incluídos os benefícios previdenciários, se percebidas de boa-fé, não estão sujeitas a repetição.27 (grifo nosso)
O princípio da irrepetibilidade, que não possui amparo legal, mas sim lógico tem resguardo pelo motivo de que, como nos ensina Maria Berenice Dias, “os alimentos servem para garantir a vida e se destinam à aquisição de bens de consumo para assegurar a sobrevivência é inimaginável pretender
26
Este é o entendimento que prevalece no TRF da 4ª região, conforme TRF4 5011022-21.2010.404.7000, D.E. 02/03/2011 27 AC 2007.71.02.002620-0/RS, TRF/4, Quinta Turma, Relator Juiz Federal Eduardo Vandré Lema Garcia, D.E. 03.02.09. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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que sejam devolvidos. Esta verdade é tão evidente que até é difícil sustentála. Não há como argumentar o óbvio”.28 Sendo assim, não se pode imaginar que o segurado seja obrigado a devolver as verbas percebidas de boa fé, sob qualquer hipótese, seja para manter-se no mesmo regime, seja para trocar de um regime ao outro, embora, no último caso haja grande prevalência de que deve-se garantir as verbas já pagas. Ademais, além do caráter alimentar das verbas previdenciárias, no caso de desaposentação não deve haver a devolução das parcelas por possuir efeito ex nunc conforme entendimento dos Tribunais Superiores 29, uma vez que “não se confunde com a anulação do ato concessivo do benefício” 30, o qual ocorre quando há ilegalidade no feito. Embora em um primeiro momento pareça correto realizar a devolução das verbas, deve-se observar, tanto que a nova aposentadoria ocorrerá por um tempo menor, haja vista a expectativa de vida do segurado, quanto que existirão as contribuições necessárias para alteração do valor, tornando-se uma implicação desarrazoada, uma vez que equipara o desaposentado àquele que se aproveita de uma ilegalidade para aposentar-se. Outrossim, não se pode aceitar que a desaposentação, sem a devolução das verbas, seja considerado, conforme apresenta Novaes, “enriquecimento ilícito e prejuízo para o universo previdenciário” 31, uma vez que, acertadamente o Professor Ibrahim apresenta que, tal enriquecimento somente ocorreria caso houvesse correspondência entre as cotas pagas e o valor recebido, e não, como existe nos regimes previdenciários atuais de nosso país em que “a população atualmente ativa sustenta os benefícios dos hoje inativos”32. Infortunadamente, a maioria dos Tribunais Regionais Federais, com exceção de algumas decisões que já seguem o entendimento do STJ, embora entendam que é possível a desaposentação, decidem pela devolução das parcelas pagas ao segurado, mesmo que a aposentadoria tenha sido obtida de forma legal, impondo assim tratar-se de efeitos ex tunc. 33 28
DIAS, Maria Berenice. Dois Pesos e duas medidas para preservar a ética: irrepetibilidade e retroatividade do encargo alimentar. Jus Navegandi, 2007. Disponivel em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9790>. Acesso em: 13 fev. 2011. 29 No sentido de que não deve haver a devolução dos valores anteriormente pagos, vide decisões do STJ: AgRg no REsp 1217131/SC, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 15/02/2011, DJe 04/04/2011; AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.244.040 - PR (2011/0059654-7), Relator Ministro HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), 04/05/2011. 30 IBRAHIM, Fabio Zambitte. Desaposentação: O caminho para uma melhor aposentadoria. 4ª. ed. Niterói: Impetus, 2010. p. 64 31 NOVAES, André Santos. Possibilidade de desaposentação: temas autais de previdência social. São Paulo: LTR, 1998. p. 27. 32 IBRAHIM, Fabio Zambitte. Desaposentação. Op. Cit. p. 65. 33 TRF 2ª REGIÃO, APELREEX 459143, Primeira Turma Especializada Desembargador Relator: Aluisio Goncalves De Castro Mendes. DJU 15/01/2010.
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No mesmo sentido, como se passa a demonstrar é o entendimento da Turma Nacional de Uniformização que “já firmou o entendimento de que é possível a desaposentação desde que haja a devolução dos proventos já recebidos,”34 utilizando como escopo o artigo 18 § 2º da Lei 8.213/1991 35, parágrafo este que limita as prestações da Previdência daquele que for aposentado e permanecer na atividade, entretanto, observa-se que o que realmente se deseja é a renúncia de uma aposentadoria com a concessão de outra e não a cumulação de benefícios que o referido dispositivo legal deseja evitar.36 Observa-se a seguir um dos posicionamentos da TNU, que defende a devolução dos valores já recebidos e que vão de embate ao posicionamento do STJ: PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL. DESAPOSENTAÇÃO. EFEITOS EX TUNC. NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DOS VALORES JÁ RECEBIDOS. DECISÃO RECORRIDA ALINHADA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA TNU. IMPROVIMENTO. 1. Cabe Pedido de Uniformização quando demonstrado que o acórdão recorrido contraria jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. 2. A Turma Nacional de Uniformização já firmou o entendimento de que é possível a desaposentação desde que haja a devolução dos proventos já recebidos. Precedentes: PU 2007.83.00.50.5010-3, Rel. Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva, DJ 29.09.2009 e PU 2007.72.55.00.0054-0, Rel. Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz, DJ 15.09.2009. 37 3. Pedido de Uniformização conhecido e não provido.
A despeito do entendimento da TNU, segue-se o entendimento de Ladenthin e Masotti, no sentido de que “tanto a renúncia total quanto a renúncia parcial em que se dá a desaposentação têm efeito ex nunc, não impondo ao segurado a devolução da quantia por eles recebida, pois que o ato administrativo em ambas as situações foi válido, eficaz e perfeito.” 38 Apesar do posicionamento do STJ, vale ressaltar que o STF ainda não tem um posicionamento consolidado, tendo em vista que o assunto encontra-se em julgamento e atualmente tem apenas um voto, do relator Ministro
34
Turma Nacional de Unificação, Processo PEDILEF n.º 200872510067213, Relator: Juiz Federal José Antonio Savaris. Disponível em: < http://www.jf.jus.br/juris/tnu/Resposta> Acessado em: 10/05/2011. 35 Dispõe o §2º do artigo 18 da Lei 8.213/1991 que: “O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social– RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado.” 36 LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro; MASOTTI, Viviane. Op. Cit. p. 117. 37 TNU, PROCESSO Nº: 2009.72.58.00.0218-2, RELATOR: Juiz Federal José Antonio Savaris. Disponível em: <https://www2.jf.jus.br/phpdoc/virtus/pdfs/inteiroteor/200972580002182080410.pdf> Acessado em: 25/04/2011. 38 LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro; MASOTTI, Viviane. Op. Cit. p. 69. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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Marco Aurélio Mello, sendo este favorável pela não devolução das verbas, conforme se observa no Recurso Extraordinário de nº 381.367. Assim, aguarda-se que o posicionamento do STJ seja seguido pelo STF, isentando os contribuintes de devolver os valores já recebidos.
Para melhor visualização no caso concreto de que os valores recebidos pelo segurado não devem ser restituídos à Autarquia Previdenciária, cita-se jurisprudência do STJ sobre o assunto: DECISÃO (...) Na peça do recurso especial, a parte-autora, ora recorrente, aponta dissenso jurisprudencial, aduzindo que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento unânime no sentido de ser inexigível a devolução das parcelas recebidas a título de proventos. (...) Ante o exposto, com fundamento no artigo 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil, conheço do recurso especial da parte-autora e lhe dou provimento, a fim de afastar a exigibilidade de devolução dos valores recebidos a título de proventos, condenando a Autarquia Previdenciária ao pagamento da verba honorária, que arbitro em 10% (dez) por cento sobre o valor corrigido da causa, nos termos do artigo 20, § 4º, do Código de Processo Civil. Em tempo, com esteio no art. 557, caput do Código de Processo Civil, nego seguimento ao recurso do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. Publique-se. Intime-se. Brasília (DF), 1º de feve39 reiro de 2011. MINISTRO GILSON DIPP Relator (grifo nosso)
Portanto, o STJ já consolidou o entendimento de que os valores já recebidos não devem ser devolvidos à Autarquia Previdenciária, por tratar-se, primeiramente, de um direito patrimonial e consequentemente disponível, 40 considerando-se ainda a ausência de norma impeditiva para tal fato.
Mesmo com a idade avançada muitos brasileiros continuam na luta por melhores condições de vida, voltando a atuar no mercado de trabalho ou continuando nele, sempre buscando garantir um mínimo de sobrevivência, sendo que é esta situação que enseja toda a discussão acerca da desaposentação. 39
STJ. RECURSO ESPECIAL Nº 1.224.200 - RS (2010/0222277-9) RELATOR : MINISTRO GILSON DIPP Publicação: 04/02/2011. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/decisoes/toc.jsp?tipo _visualizacao=null&livre=desaposenta%E7%E3o+&b=DTXT#DOC5 > Acesso em: 17/02/2011. 40 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça , Sexta Turma. AgRg no REsp 1240362/SC. Relator: CELSO LIMONGI, julgado em 03/05/2011. DJe 18/05/2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia /toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=desaposenta%E7%E3o&b=ACOR#DOC2>. Acesso em 23 jun. 2011
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A desaposentação em si já é amplamente aceita, mas ainda existe grande discussão quanto à devolução ou não pelo segurado dos valores a ele pagos pela Autarquia Previdenciária, sendo que os tribunais superiores vem se posicionando no sentido de que não é necessária a devolução do montante, por tratar-se de uma verba alimentar irrepetivel e obtida de forma legal. Há aqueles que entendem pela devolução dos valores, por acreditarem que a desaposentação gera efeito ex tunc, devendo haver retroação ao status quo ante, entretanto, não se pode concordar com tal posicionamento uma vez que sempre deve-se buscar aquilo que é mais favorável ao segurado, nunca esquecendo que a aposentadoria serve para garantir um mínimo de vida digna, através do recebimento de um valor de caráter alimentar. Ademais, a preocupação com o poder público não pode prevalecer em face do segurado, pois além deste ser dependente de uma contraprestação estatal após avançada idade, tem a seu favor vários outros princípios, os quais não podem ser ignorados A despeito da ausência de leis, juristas e doutrinadores tentam dar uma solução à questão e um exemplo é o voto do Ministro relator Marco Aurélio Mello do STF, defendendo a desaposentação sem a devolução das verbas. Assim, embora o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha se posicionado sobre o tema, ao contrário do STJ, acredita-se que a partir do voto do Ministro relator Marco Aurélio Mello outros votos surgirão no mesmo sentido, levando-se a questão a êxito e norteando qual o caminho a ser seguido. 41 Por fim, utilizando-se do entendimento do STJ , não deve o segurado arcar com qualquer ônus, uma vez que continua contribuindo para a seguridade social, que, diga-se de passagem, é um direito de todos, e o Estado como garantidor de direitos deve assegurar padrões mínimos de educação, saúde, habitação, renda e seguridade social a todos os cidadãos.
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AgRg no REsp 1240362/SC, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 18/05/2011 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009
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AC 2007.71.02.002620-0/RS, TRF/4, Quinta Turma, Relator Juiz Federal Eduardo Vandré Lema Garcia, D.E. 03.02.09. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça , Sexta Turma. AgRg no REsp 1240362/SC. Relator: CELSO LIMONGI, julgado em 03/05/2011. DJe 18/05/2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia /toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=desaposenta%E7%E3o&b=ACOR# DOC2>. Acesso em 23 jun. 2011 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no RECURSO ESPECIAL N.º 1240362/SC, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 18/05/2011 BRASIL. Turma Nacional de Unificação, PROCESSO Nº: 2009.72.58.00.02182, RELATOR: Juiz Federal José Antonio Savaris. Disponível em: <https://www2.jf.jus.br/phpdoc/virtus/pdfs/inteiroteor/200972580 002182080410.pdf> Acessado em: 25/04/2011. BRASIL. Turma Nacional de Unificação, Processo PEDILEF n.º 200872510067213, Relator: Juiz Federal José Antonio Savaris. Disponível em: < http://www.jf.jus.br/juris/tnu/Resposta> Acessado em: 10/05/2011. BUENO, Cleusa Oliveira. Do Direito à desaposentação no sistema previdenciário brasileiro. Disponivel em: <http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:IX1jffUVff8J :buenoecstanze.adv.br/index.php%3Foption%3Dcom_content%26task% 3Dview%26id%311913%26Itemid%3D95+princ%C3%ADpio+da+irrepeti bilidade+dos+alimentos.&cd=14&hl=ptBR&ct=clnk&gl=br&source=www.go>. Acesso em: 14 fev. 2011 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. DIAS, Maria. Berencie. Dois Pesos e duas medidas para preservar a ética: irrepetibilidade e retroatividade do encargo alimentar. Jus Navegandi, 2007. Disponivel em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9790>. Acesso em: 13 fev. 2011. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdênciário. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Desaposentação: O caminho para uma melhor aposentadoria. 4ª. ed. Niterói: Impetus, 2010. 204 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Larissa Costa Czaplinski Acadêmica de Direito da Universidade Positivo
O presente estudo trata da recuperação judicial das empresas, e em especial a questão da competência para julgamento das ações e a possibilidade ou não da aplicação do instituto da recuperação também nas filiais, separadamente da sede. Neste sentido, também faz-se necessário passar pelo direito comparado, princípios aplicáveis à esta legislação e o conceito de estabelecimento principal, que não é ainda definido de modo concreto, bem como a análise das fraudes contra credores envolvendo a questão da competência. O que se comprova é que a recuperação nas filiais não é possível considerando-se que uma separação entre sede e filial pode abrir espaços para diversas fraudes em detrimento dos interesses dos credores. Palavras-chave: Competência; Recuperação; Falência; Estabelecimento; Devedor.
O objetivo deste artigo é abordar o instituto da recuperação judicial, tendo em vista as alterações ocorridas com o advento da lei 11.101/2005, que veio para substituir o instituto da concordata. Para que o estudo fosse possível, verificou-se um grande número de doutrinas e jurisprudências acerca do tema, observando-se que a questão da
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fixação da competência para as ações falimentares e de recuperação de empresas é alvo de grandes discussões e ainda não há algo realmente concreto acerca deste assunto. Ocorre que, por muitas vezes, chega-se a pensar o que esta lacuna na lei pode ocasionar ao ordenamento jurídico brasileiro, e é em relação a um desses problemas a nossa busca por algum resultado ou tipo de solução. A recuperação das filiais é um assunto que ainda não tomou grandes proporções no país, porém há certo número de empresas que começam a pensar nessa possibilidade, utilizando-se tanto de boa-fé, para realmente recuperar a empresa de uma crise momentânea pela qual se está passando, quanto da má-fé para obter vantagens a sua empresa e até mesmo à própria pessoa do sócio empresário, prejudicando o interesse dos credores. Sendo assim, o principal resultado obtido na pesquisa é que as empresas não devem poder valer-se da recuperação, no caso de desejarem a mesma apenas para as filiais, já que este instituto aplicado desta forma poderia trazer mais prejuízos do que ajuda a maioria dos envolvidos no processo.
O advento da lei 11.101/2005 trouxe diversas inovações para o ordenamento jurídico brasileiro, substituindo o decreto n° 7.661/1945 que estava sendo utilizado até então, com novos princípios e institutos para aplicação ao caso concreto, como a recuperação judicial e extrajudicial. O Brasil, desde 1945 até 2005, período em que o antigo decreto ficou vigente, passou por inúmeras transformações econômicas, sociais e culturais que foram dignas de um novo pensamento também no que tange à ordem jurídica, e no que se refere à legislação falimentar a principal alteração veio com a substituição da concordata pela recuperação de empresas, seja a judicial ou extrajudicial. Como o objeto de estudo, temos a competência do juízo falimentar e é interessante que se faça um breve relato do que ocorre em outros países, que acabaram por ajudar na consagração da nossa legislação, vez que o direito aplicado em outros países serviu como inspiração para o nosso direito falimentar. Muitas legislações ainda vigentes são reflexos do Código Comercial Francês de 1808, inclusive no quesito competência, na medida em que atribuem o conhecimento e o julgamento de ações falimentares ao tribunal que designará aquele que será responsável por administrar o processo. Nos Estados Unidos, há o chamado Código de Insolvências, que trata da relação entre credores e devedor, incentivando fortemente a recuperação de empresas, que assim como no Brasil em que há a Assembléia Geral, ocor-
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re com a supervisão dos credores que atuam ativamente na recuperação da empresa. Outro ponto bastante relevante é que os americanos também utilizam da convolação em falência, caso o plano de recuperação não seja aprovado. A chamada “Chapter Eleven” (equivalente a nossa recuperação judicial), também aplicada nos Estados Unidos, não define um critério específico para a fixação de competência, e em muitos casos é o próprio devedor quem escolhe o local no qual sua recuperação deve ser proposta. Por sua vez, a Inglaterra traz em seu histórico um número de falências maior que ocorrem pelo Ato de Insolvência datado de 1986, porém nada impede de que se realize a recuperação da empresa por acordos informais, chamados de “workout”. É bem possível que daqui a algum tempo a falência seja deixada de lado para que a maioria das empresas possa realizar tais acordos informais para o pagamento dos credores, em vez de decretarem de pronto a falência sem que haja chance de superação da crise. Em relação às diferenças entre as legislações: “A comparação dos modelos americano e inglês permite ilustrar esse ponto. Embora ambos tenham como origem jurídica o sistema legal anglo-saxão, com forte tradição na proteção dos direitos de propriedade e respeito às garantias, eles apresentam, entre si, diferenças profundas na orientação geral”. 1
Além destes, também a Europa foi utilizada como fonte para o legislador brasileiro, tendo em vista que nos países europeus há grande incentivo para que a empresa mantenha suas atividades e também os empregos de seus colaboradores, que seriam os principais beneficiários. Com a recuperação, os empresários ganham a chance de restabelecer seus negócios por determinado período de tempo, a fim de que se verifique se a empresa é economicamente viável ou não e quais serão suas conseqüências caso a mesma venha a ter sua falência decretada. O processo de recuperação judicial figura como uma espécie de credibilidade confiada pelos credores aos devedores da empresa, ou seja, quando ambos aceitam o plano de recuperação apresentado, pressupõe-se que acreditam que a empresa passa por um momento de crise que deve ser superada de acordo com o que foi apresentado, confiando na capacidade da empresa e na boa-fé do devedor. Não é qualquer empresa que pode valer-se desse instituto, já que a lei trouxe consigo diversos requisitos que devem ser cumpridos para a formula1
ET ALII, Marcos de Barros Lisboa. A racionalidade Econômica da Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de. (Coord.) Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p.37-38. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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ção do pedido de recuperação como, por exemplo, seu exercício há mais de dois anos e a não obtenção do deferimento de pedido de recuperação judicial nos últimos cinco anos. Deferido o pedido inicial cabe ao devedor apresentar o plano de recuperação, que deve ser aplicado utilizando-se dos princípios e meios viáveis para a reestruturação da empresa, que pode ser desde a concessão de prazos e condições especiais para pagamento até a venda parcial de bens. Como já falado, além do cumprimento do plano apresentado em juízo, os princípios básicos da recuperação também devem ser estritamente cumpridos e sobre eles trava-se importante discussão.
Quando se fala na lei 11.101/2005, é inevitável explorar os princípios que a regem, sendo o principal deles a manutenção das atividades da empresa, que determina a criação de condições para que a empresa possa ter a chance de superar a crise pela qual está passando, neste sentido, deixa a decretação da falência para casos extremos em que realmente não se vislumbre viabilidade econômica para tanto. Juntamente com este, tantos outros princípios surgiram para permitir a sua efetiva aplicação, como a prevalência dos interesses dos credores, a publicidade, a manutenção e a conservação dos ativos e a “par conditium creditorium”, que significa que todos os credores são iguais, por mais que exista uma “hierarquia” no pagamento dos créditos. Ressalta-se que o principal objetivo da recuperação de empresas é que a mesma continue desenvolvendo suas atividades normalmente, para que possa preservar a dignidade da pessoa humana, principal princípio elencado na Constituição de 88, que é defendida por Carlos Claro: “O que se verifica no dia a dia das empresas, até mesmo naquelas situadas em outros países, é a verdadeira enxurrada de dispensa de empregados e planos para redução salarial, ou mesmo redução de jornada de trabalho. Então, a prática está demonstrando que as empresas buscam fôlego, oxigênio, a fim de se manterem no mercado competitivo, mas o trabalhador é o primeiro a ser dispensado, ou ver diminuída sua participação na empresa que atravessa crise considerada momentânea”.2
Como se vê, a chamada viabilidade empresarial é estritamente ligada à dignidade da pessoa humana, na medida em que uma empresa para se recuperar da crise pela qual está passando, deve buscar o apoio de seus colaboradores para a melhoria dos negócios e não dispensá-lo como comumente 2
CLARO, Carlos Roberto. Recuperação Judicial: Sustentabilidade e Função Social da Empresa. São Paulo: LTr, 2009. p.45.
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ocorre, pois neste caso além da economia como um todo ser afetada, a dignidade dos indivíduos envolvidos na situação de crise também será. Tal princípio é amplamente defendido também na Europa, onde se verifica que o fundamento da recuperação é a manutenção dos postos de trabalho, pois para garantir estabilidade econômica é preciso assegurar a subsistência dos trabalhadores através da continuidade de pagamento de seus salários. Após o conhecimento dos aspectos gerais da recuperação e seus principais princípios, pode-se enfim partir para o objeto de nossa análise, que é a competência do juízo falimentar, e que caso não seja analisado corretamente, também pode ser considerado uma afronta à dignidade da pessoa humana.
O juízo falimentar é considerado como indivisível e universal, e todas as ações envolvendo determinada empresa devem ser ajuizadas no mesmo local, para que não ocorram problemas entre os próprios credores, visto que caso as ações fossem ajuizadas em locais diferentes seria difícil saber ao certo a situação da empresa, e quando os débitos seriam pagos, dificultando também o trabalho do legislador. Neste momento, é necessário esclarecer o significado do princípio chamado de “vis atractiva”, que nada mais é do que a reunião de todos os processos falimentares em um único juízo, naquele que for considerado competente, a fim de que todas as ações tramitem num mesmo local e possa evitar uma série de transtornos, e até mesmo fraudes contra credores. Ressalta-se que antes mesmo da decretação da falência, a “vis atractiva” já produz seus efeitos, sendo que quando um credor requere a falência primeiramente, os demais deverão ajuizar suas respectivas ações no mesmo juízo. Porém, existem algumas exceções a este princípio que são referentes aos créditos trabalhistas, haja vista que cabe à Justiça do Trabalho o julgamento das reclamações deste caráter, e as ações apenas devem ser propostas em juízo universal após julgamento da ação trabalhista com a devida apuração do valor do crédito que deve ser pago ao trabalhador, quando o mesmo deve cobrar a totalidade de seu crédito da massa, habilitando-o então no juízo competente. Além dos créditos trabalhistas, outra exceção encontrada na legislação relaciona-se com os tributos não pagos, que devem ser propostos pelo fisco nas devidas varas, e não no juízo universal.
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Após as devidas explicações em relação ao juízo universal e suas exceções, cabe agora falar do local específico para ajuizamento das ações, de modo geral. No que tange à competência para o julgamento do processo de falência e recuperação de empresas, cumpre-nos verificar o que era anteriormente disposto na lei 7.661/45, em seu art. 7°: Art. 7º. É competente para declarar a falência o juiz em cuja jurisdição o devedor tem o seu principal estabelecimento ou casa filial de outra situada fora do Brasil. 1º A falência dos comerciantes ambulantes e empresários de espetáculos públicos pode ser declarada pelo juiz do lugar onde sejam encontrados. 2º O juízo da falência é indivisível e competente para tôdas as ações e reclamações sôbre bens, interêsses e negócios da massa falida, as quais serão processadas na forma determinada nesta lei. 3º Não prevalecerá o disposto no parágrafo anterior para as ações, não reguladas nesta lei, em que a massa falida seja autora ou litisconsorte.
Ocorre que após a entrada em vigência da lei 11.101/2005, tal artigo foi modificado, passando a substituí-lo o previsto no art. 3°, conforme se observa: Art. 3o. É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil.
O foro eleito tanto para ações de homologação da recuperação judicial, quanto para decretação de falência, passou a ser o do local de principal estabelecimento do devedor, ou de sua principal filial nos casos em que haja sede em outro país, reduzindo-se o anteriormente o disposto no decreto. Tal redução se dá pelo fato de que o decreto n° 7.661/45 não colocava o mesmo artigo para tratar da decretação de falência e da concessão da concordata (substituída pela recuperação judicial), fazendo a divisão pelo art. 7° e o caput do art. 156, o qual previa que caso o devedor não quisesse ter sua falência decretada, deveria procurar pelo mesmo juiz competente para decretá-la postulando a concordata preventiva. Então, é possível afirmar que tal alteração na letra da lei figura como um avanço, vez que agora seu aplicador, bem como os credores das empresas, podem verificar com mais praticidade qual o local correto para a propositura da ação.
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Por mais que a legislação tenha revelado alguns avanços, cabe-nos fazer uma crítica, visto que decretação de falência ou a proposição de recuperação judicial de empresas deve ocorrer no foro em que está localizado o principal estabelecimento do devedor, o que nos faz ter a seguinte dúvida: qual é, enfim, o principal estabelecimento? A questão levantada é, há algum tempo, objeto de grandes discussões e debates, mas ainda não há nem na doutrina e nem na jurisprudência um conceito concreto do que se pode entender como estabelecimento principal, causando uma grande diversidade de opiniões e julgamentos acerca dos casos concretos, dificultando assim sua análise e abrindo espaços para fraudes, em detrimento dos interesses dos credores. Em se tratando de uma empresa que não possua mais de um local em que sejam exercidas as atividades da empresa, não há duvidas neste sentido. O problema ocorre quando a empresa mais de um estabelecimento físico, o que torna difícil a distinção entre a sede principal e o estabelecimento principal e o estabelecimento do local onde as ações podem ser ajuizadas. Para que se entenda a que se refere o estabelecimento principal, primeiramente deve ser esclarecido o significado de estabelecimento, conforme previsto no art. 1.142 do Código Civil de 2002: Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.
Como se vê, estabelecimento é o complexo de bens necessário ao funcionamento da empresa e pode ser considerado tanto em sua esfera formal, quanto em sua esfera material, sendo a primeira referente ao que consta no registro empresarial como matriz e a segunda referente às atividades desempenhadas pela empresa. No momento em que se define o juízo competente, deve-se pensar tanto no interesse dos credores quanto no patrimônio da empresa, pois não seria justo que existissem diversos juízos competentes para o processo falimentar, dificultando assim sua defesa. Com a finalidade de resolver este tipo de conflito é que foi estabelecido o juízo universal. Parte da jurisprudência concorda que o estabelecimento principal deve ser considerado aquele em que está o centro dos negócios e não o declarado nos estatutos sociais: “Na jurisprudência, ainda levando-se em conta as antigas concordatas, mas cuja orientação é válida no âmbito da recuperação judicial de empresas, compreende-se por estabelecimento principal o local onde a atiRAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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vidade se mantém centralizada, isto é, onde está o comando dos negócios, que pode não ser onde os estatutos sociais estabeleçam como estabelecimento principal”.3
Neste sentido, há decisões nas quais estão sendo considerados tais pensamentos, diminuindo em parte os diversos conflitos de competência existentes.4 A eleição do foro competente, para parte da doutrina, deve ter início na distinção entre sedes e filiais, sendo que o principal estabelecimento não deve ser confundido com a sede, que está declarado em seu contrato social e registrado. O principal estabelecimento consiste então na sede administrativa, no qual as atividades de administração e organização estão centralizadas. Sendo assim: “Ao contrario da sede social, não decorre de estipulação no ato constitutivo levado a registro, mas sim de uma aferição da exteriorização de atos concretos, constituindo-se, pois, em uma questão de fato, a ser apreciada à luz do caso concreto pelo juiz ao aceitar sua competência.” 5
Fabio Ulhoa Coelho define como principal estabelecimento aquele no qual se manifestam as principais atividades da empresa relativas à economia: "Principal estabelecimento, para fins de definição da competência para o direito falimentar, é aquele em que se encontra concentrado o maior volume de negócios da empresa; é o mais importante do ponto de vista econômico". 6
Quando há determinação da competência, o processo segue para o juízo responsável, e em alguns Estados do país há varas especializadas para este tipo de ação, assim como ocorre no Rio de Janeiro. São oito as varas empresariais encontradas neste Estado, o que deveria ser motivo de orgulho para os cidadãos, porém não é o que vem ocorrendo
3
RESTIFFE, Paulo Sergio. Recuperação de Empresas. Barueri: Manole, 2008. p.95 "Decretação de falência. Competência. Estabelecimento principal e subsidiário. Comprovação difícil. A falência deve ser requerida no foro onde está o estabelecimento principal, que não é aquele em que registrados seus atos constitutivos, mas aquele em que se forma concretamente o corpo vivo, o centro vital das principais atividades comerciais do devedor, a sede ou o núcleo do negócios em sua vivência material. Decisão mantida" (fl. 42). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n° 29.712 – São Paulo (2000/0050912-4). Autor: Caipa Comercial e Agrícola Ipatinda Ltda. Réu: Vazoli Empreendimentos Ltda. Relator: Ministro Ari Pargendler. Brasília, 23 de agosto de 2000. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/IMG?seq=74889&nreg=200000635120&dt=20020204>. Acesso em: 20 dez. 2010. 5 CAMPINHO, Sergio. Falência e Recuperação de Empresa: O Novo Regime da Insolvência Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.32. 6 COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 28. 4
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devido a demora no julgamento das ações, e da má prestação de serviços encontradas no local. Também há na lei de falências aquelas situações consideradas como exceções, como o caso das empresas que requerem a falência com suas atividades já encerradas. Para que haja uma solução viável, o pedido de falência deve ser feito no foro declarado pela empresa no Estatuto Social, qual seja, aquele que foi declarado no Registro. Não há como se falar aqui em principal estabelecimento, vez que as atividades já foram paralisadas e não há um centro em que elas estejam sendo desenvolvidas como “cérebro” da empresa. Como já falado anteriormente, no que diz respeito à “vis atractiva” é interessante verificar que o art. 8° da lei 11.101/2005 tratou de falar, em seu § 8° da prevenção, que é justamente a forma encontrada para que a jurisdição se proteja de qualquer outro pedido de falência ou recuperação em relação ao mesmo devedor.
A lei falimentar abriu grandes brechas para a prática de fraudes contra credores, que também podem ocorrer de diversas formas pela fixação de competência. Ocorre que em muitos casos, quando o devedor percebe que sua empresa está enfrentando crises e pode vir a receber pedidos de recuperação e até mesmo de falência, decide por abrir novos estabelecimentos em novos locais, nos quais se exerce atividades consideradas essenciais para seu funcionamento, o que acaba por dificultar o trabalho do juiz na escolha do juízo competente. O que acontece também com muita freqüência nesses casos é a alegação, por parte do devedor, de que seu estabelecimento principal é sempre diferente daquele definido pelo juiz, o que acaba por deixar o processo que em regra já é lento, em condições mais difíceis ainda. Pode acontecer também, com o intuito de fraudes, a modificação do estabelecimento principal para locais de difícil acesso, a fim de prejudicar o processo de recuperação e falência, por este motivo grande parte da doutrina não considera o principal estabelecimento como o declarado em seu contrato social, visto que este poderia a qualquer tempo ser modificado 7. Neste ponto: “Outra relevante questão que merece ser enfrentada é a da mudança do devedor durante o curso de sua insolvabilidade, de um local para outro.
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FILHO, Manoel Justino Bezerra Filho. Lei de Recuperação de Empresas e Falências – Comentada. São Paulo: RT, 2008, págs. 59-62. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Com efeito, entre a verificação de um dos fatos reveladores da insolvência (artigo 94) e o efetivo requerimento de sua declaração pode ocorrer considerável espaço de tempo, mudando-se o devedor para outra Comarca, na qual dê seqüência ao exercício de sua empresa. Nessas condições, ressalvada a intenção do devedor em fraudar credores ou obter qualquer vantagem ilícita, a competência deve ser a do juízo no qual ficou estabelecida a nova sede administrativa. Esta também é a opinião de Bento de Faria, referendada por Requião”. 8
Quando a fraude é verificada, logo se aplica à decretação de falência da empresa, que foi prevista no art. 94, d, da lei 11.101/2005, e acontece quando há simulação de transferência de seu principal estabelecimento, já com a finalidade de prejudicar o credor, burlando a legislação e formando obstáculos para a aplicação da justiça e fiscalização. Verifica-se então que por mais que a legislação tenha vindo com a finalidade de adaptar-se à realidade do país, acabou por deixar em aberto algumas questões definidoras para sua aplicação eficaz.
Como já analisado ao longo do artigo, verificou-se que a nova legislação trouxe algumas modificações e inovações ao ordenamento, porém no que tange à competência o assunto continua sendo alvo de grandes debates. Há uma imensa dificuldade em se estabelecer qual seria o estabelecimento principal da empresa e cada doutrinador possui sua opinião acerca do tema não tendo nada pacificado em respeito a essa questão. Ocorre que muitas empresas, questionando essa brecha trazida pela lei, estão se perguntando se é possível uma recuperação postulada pela filial da empresa, sem que haja uma ligação com a sede. Em análise, o pedido de recuperação judicial das filiais não deve ser considerado possível, visto que a determinação da competência mostra-se complicada em casos em que sede e as filiais desejam utilizar-se da recuperação juntas, então o que se dirá das filiais que querem postular sozinhas por este instituto? Como fica a situação dos credores diante de tal situação? Não há como se pensar numa recuperação da filial separada de sua matriz, pois a sede da empresa pode estar apresentando boas condições de manutenção das atividades, enquanto que alguma de suas filiais apresenta crise. Será que então o problema realmente poderia ser resolvido com a recuperação judicial? O mais viável num caso como este seria a substituição do administrador da empresa, uma vez que matriz e filiais apresentam a mesma política 8
CAMPINHO, Sergio. Falência e Recuperação de Empresa: O Novo Regime da Insolvência Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.38.
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de gestão e é improvável que haja com isto uma diferenciação tão grande no que diz respeito à viabilidade. Os credores não podem, em hipótese alguma, ser prejudicados com a má utilização da lei que surgiu para ajudá-los no recebimento dos créditos e ajudar a própria empresa na manutenção das atividades, fazendo com que a economia local não seja prejudicada e nem o interesse de seus colaboradores, que não podem ter sua dignidade ferida por atos ilegais. Entende-se que o instituto deve ser utilizado com boa-fé, porém por mais que uma empresa postule a recuperação para realmente recuperar sua filial, não há como não pensar em fraudes que ali podem acontecer, tornando-se essa hipótese até descabida. A recuperação judicial nas filiais pode ser considerada então como um ato de “esperteza” de seus sócios, que se utilizam da brecha trazida pela lei para a obtenção de resultados positivos para si, em comprometimento aos interesses dos credores. Admitir a postulação da recuperação judicial nas filiais significa valerse de uma lacuna da lei para utilizar-se de meios fraudulentos e obter vantagens, prejudicando-se os demais envolvidos no processo.
A recuperação judicial surgiu no país com a finalidade de ajudar as empresas em crise a recuperar seus negócios, a manter suas atividades normais sem prejuízos às demais áreas da região em que se encontra instalada. Ocorre que com este instituto, surgiram diversas dúvidas em relação à competência declarada no art. 3° da lei 11.10/2005 para o julgamento do pedido de recuperação, visto que o principal estabelecimento não é definido com clareza pelo legislador. Em relação a isto, é correto afirmar que o estabelecimento principal não pode ser considerado como aquele declarado no contrato social e levado a registro, mas sim aquele no qual as atividades principais da empresa são desenvolvidas. Com esta dúvida, surgiu a questão de uma possível recuperação judicial que ocorresse apenas na filial de uma empresa, mas não afetasse as atividades da sede que poderia até apresentar condições favoráveis e nenhuma crise. Analisando-se, pode-se dizer que o instituto da recuperação surgiu para a recuperação da empresa de uma forma geral, e não apenas de parte dela, sendo que é improvável que uma empresa na qual as atividades caminham bem, apresente problemas em suas filiais.
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Quando se apresenta este problema, a solução não seria então a recuperação da filial, mas sim a sugestão de substituição do administrador, pois o problema deve ser interno. O instituto apresentado, se não usado com o objetivo ao qual se propõe, pode dar aberturas para que ocorram as fraudes, o que não é sua finalidade, já que veio para ajudar as empresas e também possibilitar o pagamento aos credores, ainda que em períodos maiores de tempo e não para que o ordenamento seja utilizado em sua prejudicialidade e ajuda nos interesses privados da empresa e seus sócios.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n° 29.712 – São Paulo (2000/0050912-4). Autor: Caipa Comercial e Agrícola Ipatinda Ltda. Réu: Vazoli Empreendimentos Ltda. Relator: Ministro Ari Pargendler. Brasília, 23 de agosto de 2000.Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/IMG?seq=74889&nreg =200000635120&dt=20020204>. Acesso em: 20 dez. 2010. CAMPINHO, Sergio. O Direito de Empresa à luz do novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. CAMPINHO, Sergio. Falência e Recuperação de Empresa: O Novo Regime da Insolvência Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. CLARO, Carlos Roberto. Recuperação Judicial: Sustentabilidade e Função Social da Empresa. São Paulo: LTr, 2009. COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. A polêmica conceituação de principal estabelecimento para fins de falência e recuperação de empresas. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 726, 1 jul. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6941>. Acesso em: 03 jan. 2011. FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Recuperação de Empresas e Falências – Comentada. São Paulo: RT, 2008. LACERDA, José Candido Sampaio de. Manual de Direito Falimentar. 14ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa, v. 1, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 218 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Por Guilherme Roman Borges
FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir: Naissance de La Prison. Paris: Gallimard, 1675.
Surveiller et Punir: nassaince de la prision foi publicado em 1975 pela editora Gallimard, e se consagrou como o ápice dos questionamentos formulados por Foucault durante os anos precedentes em seus cursos no Collège de France, em especial, Théories et institutions pénales 1 2 (1971/1972) e La société punitive (1972/1973). Ademais, esse livro de Foucault representou toda uma revolta empreendida contra o sistema carcerário francês, através de sua intensiva atuação no Groupe d’Infromation sur les Prisons, que se verá adiante. Demonstrando a crise institucional e os objetivos primordiais das prisões ao longo da história, representados pela produção da delinquência, Foucault encerra o debate sobre os olhos de um poder que se utilizou sempre de discursos de reeducação e de discursos políticos para legitimar práticas de exclusão social, tal como se fizera com os loucos nos hospícios. A repercussão do livro, consoante as palavras de vários autores renomados foi muito grande, sobretudo em razão da síntese que a obra trazia de suas últimas pesquisas. Didier Eribon, afirma que foi de ‘considerável suces3 4 so’, David Macey, diz ter sido bem acolhida pelo público, Pierre Billouet sustenta que Surveiller et Punir foi objeto de análises e críticas em diversos 1
FOUCAULT, Michel. Théories et institutions pénales. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 389-393. [trad. br. Teorias e instituições penais. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). (trad. Andréa Daher e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 1725] 2 FOUCAULT, Michel. La société punitive. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 456-470. [trad. br. A sociedade punitiva. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). (trad. Andréa Daher e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 25-45] 3 ERIBON, Didier. Michel Foucault., p. 219. 4 MACEY, David. Michel Foucault..., p. 410. “Le livre avait reçu un bel accueil et avait, tout naturellement, retenu l’attention des historiens de métier.” [trad. do autor. “O livro recebera uma bela acolhida e, naturalmente, retirara a atenção de historiadores profissionais.”] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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periódicos, até mesmo pelos historiadores, Agullhon, Chartier, Farge, Léo5 nard, Perrot e Revel. Entretanto, a maior repercussão, sem dúvida, foi no âmbito da política carcerária, pois com a sua publicação surgiram inúmeros questionamentos sobre a abertura das prisões, através da mídia, dos livros, da desdisciplinarização [dé-disciplinarisation], etc. Aquém de sua vasta recepção política e acadêmica, o livro de Foucault, visto como o ‘estudo de um problema’, objetivou, em especial, não uma simples história de um período, mas uma apresentação da ratio que fora colocada em lei com a reforma do sistema penal francês. Nesse sentido, muito bem acrescenta Billouet: “Um efeito de Surveiller et Punir será a distância que Foucault começa a ter com os textos de Sade. Nos seus três primeiros livros, Sade é uma testemunha da resistência à normalização. A partir de 1975 ele se torna um ‘sargento do sexo’, e no ano seguinte el será analisado como sintoma. Deve-se também notar que em 1977, Foucault modificou sua atitude puramente crítica, já que ele decidiu responder favoravelmente a uma comissão governamental encarregada de estudar uma reforma do código penal e de participar dos debates em curso. Em 1978, Foucault estima que Surveiller et Punir mostrou ‘um desbloqueio tecnológico da produtividade do poder’ a partir dos séculos XVII e XVIII, uma ‘nova economia do poder’. Ele não faria a história da instituição prisão, mas a história do pensamento da punição, das mudanças na problematização das relações entre delinqüência e castigo. Ele faria genealogicamente a ‘ontologia histórica de nós mesmos nas relações a um campo livre do poder, no qual nós nos 6 constituímos em sujeitos em vias de agir sobre os outros.” Fundamentado nas lutas contra a instituição carcerária, presentes na época, com esse livro Foucault as amadurece, e se consagra como um historiador do presente, conforme a suas próprias palavras: “É desta prisão, com todos os investimentos políticos do corpo que ela reúne em sua arquitetura fechada que eu gostaria de fazer a história. Por puro anacronismo? Não, se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos do presente. 7 Sim, se entendermos com isso fazer a história do presente.” Nesse livro Foucault procurou demonstrar como certo tipo de poder exercido sobre os indivíduos, através da educação, da formação de suas per5
BILLOUET, Pierre. Foucault: figures ..., p. 134-135. BILLOUET, Pierre. Foucault: figures ..., p. 140. “Un effet de Surveiller et Punir sera la distance que Foucault commence à prendre avec les textes de Sade. Dans ses trois premiers livres, Sade est un témoin de la résistance à la normalisation. A partir de 1975 il devient un ‘sergent du sexe’, et dans l’année suivante il sera analysé comme symptôme – Il est aussi à noter qu’en 1977, Foucault a modifié son attitude purement critique, puisqu’il a décidé de répondre favorablement à une commisssion gouvernementale chargée d’étudier une ‘réforme’ du code pénal et de participer aux débats en cours. En 1978, Foucault estime que Surveiller et Punir a montré ‘un déblocage technologique de la productivité du pouvoir’ à partir des XVII e-XVIIIe siècles, une ‘nouvelle économie du pouvoir’. Il ne ferait pas l’histoire de l’institution prison mais l’histore de la pensée de la punition, des ‘chagements dans la problématisation des rapport entre délinquance et châtiment’. Il ferait généalogiquement l’ontologie historique de nous-mêmes dans nos rapports à un champ du pouvoir où nous nous constituions en sujets en train d’agir sur les autres.” [trad. do autor.] 7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. (trad. Raquel Ramalhete) 11 ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 35. 6
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sonalidades, era correlato no Ocidente ao nascimento não simplesmente de uma ideologia, mas, sobretudo, de um regime de tipo liberal. Foucault destaca também o papel significativo das ciências humanas, especialmente atra8 vés do discurso penal moderno. David Macey destaca que os objetivos de Foucault eram de apresentar uma história correlativa da alma moderna e de uma nova estrutura e configuração do poder de julgar, uma espécie de genealogia do atual complexo científico-judiciário, no qual o poder de punir 9 encontra seu apoio. Foucault, ao contrário de uma simples descrição da prisão numa historiografia tradicional, estabelece, através de um método genealógico, uma crítica política da sociedade moderna, especialmente a partir de meados do século XVIII, interpretando diversos problemas como a individualização, a disciplinarização dos indivíduos, a normalização dos corpos, a formação dos poderes e das relações com a administração pública, etc. Seu objetivo, ele resume no início da obra: “A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ mo10 derna.” Por entre o seu percurso epistemológico do sistema carcerário, Foucault também reflete as técnicas punitivas e os dispositivos de controle social que se formaram desde aquela época nas fábricas, nas escolas e também nos hospitais, demonstrando, assim, que a sociedade passou a ser reconhecida como uma “sociedade disciplinar”, cujo objetivo primordial era formar indivíduos dóceis, úteis e formatados, através da invenção de uma tecnologia de vigilância, de controle, de identificação dos indivíduos, de esquadrinhamento de seus gestos, de sua atividade, de sua eficiência. Perguntado por Roger Pol Droit, por que a prisão e não outra instituição, Foucault afirmou que “desde os séculos XVI e XVII, havia no exército, nas escolas, nos hospitais, nas seções das indústrias uma tecnologia do poder final e quotidiano, do poder sobre os corpos. A prisão é a última figura desta idade das 11 disciplinas.” Através dessa perspectiva, Foucault procura explicar, aquém das interpretações dos fatores sociais e econômicos, que a sociedade moderna se delimitou como uma sociedade que propugnava pela exclusão do diferente, 8
Sobre os objetivos de Foucault ao publicar Surveiller et Punir, ver entrevista concedida a Roger Pol Droit, em fevereiro de 1975, para o Le Monde. DROIT, Roger Pol. Des supplices aux cellules: entretien avec Michel Foucault. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 716-720. 9 MACEY, David. Michel Foucault..., p. 339. “L’objectif de Foucault est de présenter ‘une histoire corrélative de l’âme moderne et d’un nouveau pouvoir de juger; une généalogie de l’actuel complexe scientificojudiciaire où le pouvoir de punir prend ses appuis, reçoit des justifications et ses règles, étend ses effets et masque son exorbitante singularité.” [trad. do autor. “O objetivo de Foucault é apresentar ‘uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-jurídico onde o poder de punir fundamenta seus apoios, encontra suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e oculta sua exorbitante singularidade.”] 10 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 31.. 11 DROIT, Roger Pol. Des supplices ..., p. 717. “... depuis les XVIe et XVIIe siècles, à l’armée, dans les collèges, les écoles, les hôpitaux, les ateliers. Une technologie du pouvoir fin et quotidien, du pouvoir sur les corps. La prison es la figure dernière de cet âge des disciplines.” [trad. do autor.] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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do louco, do criminoso, especialmente através das disciplinas, isto é, conjuntos regulares de saber, que se qualificam como uma modalidade anatômica de exercício do poder, através de técnicas, procedimentos, aplicações, etc. Todavia, é inevitável deixar de ressaltar que não se trata de uma obra que propõe soluções, que estabelece um juízo ideal, ou que vai de encontro à pena privativa de liberdade, mas de uma obra analítica, sob a metodologia genealógica, cujo objetivo é demonstrar, primeiro, que a punição tem uma função essencialmente social; segundo, que as ciências humanas desempenharam o papel indispensável para buscar o conhecimento necessário para o conhecimento da alma do criminoso; terceiro, que a punição não é exclusivamente jurídica, mas uma estratégia eminentemente política, um jogo das tramas do poder para que a classe dominante se conserve; quarto, que o corpo passou a ser o elemento de atuação do poder, especialmente através da disciplina; e quinto, que o poder e o saber, tal como já havia sido esboçado no discurso do Collège de France, estão intimamente relacionados, tecem pontos de atuação, estratégias de inclusão e exclusão, etc. Dessa maneira, o livro se divide didaticamente em quatro grandes partes, que representam os questionamentos históricos de Foucault envolvidos ao redor da crise carcerária: o suplício, a punição, a disciplina e a prisão. O suplício é o capítulo em que Foucault procura demonstrar a centralização do poder nas mãos do rei, posto que sempre que o indivíduo realizasse algum ato que violasse diretamente o soberano, fosse em sua particularidade, fosse em seus bens, haveria um castigo, como forma a punir e educar o “desviante”. Inicia o autor destacando que no século XVII todo o indivíduo que fosse condenado precisaria ser exposto. Havia a necessidade de tornar público que o ato praticado por todo aquele que ofendesse o soberano seria punido severamente aos olhares da população. Por fatores ainda religiosos, Foucault demonstra que a condenação estava baseada essencialmente pela grande prova que era a confissão, e, após torturas, servia de fundamento para que o juiz proferisse a sentença condenatória. O suplício fazia aparecer a “verdade” escondida na justificação do poder régio. “O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a ver12 dade do crime.” Nesse sentido, o suplício era uma forma de relacionar o indiciado à prática do ato que lhe havia sido imputado, e sua tristeza e a sua agonia permitiam que o público visualizasse a intervenção atroz do rei, restituindo-lhe incessantemente a ilegitimidade do poder que detinha. “O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes de açoite, localização 12
FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 35.
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do ferrete em brasa, tempo da agonia na fogueira ou na roda, tipo de muti13 lação a impor.” Entretanto, essa prática acabou sendo condenada pela reforma humanista no final do século XVIII, e pelo próprio povo, que não via mais no supliciado um coitado, cujo corpo sofrera a afirmação do soberano, mas um mártir, que passava a ser vangloriado pelas multidões. Os humanistas franceses, portanto, propõem o fim da exibição e do espetáculo dos suplícios, e passam a incitar o surgimento de outras formas de interdição, especialmente por uma justiça administrativa, embora seja um processo lento, que nem mesmo os jacobinos conseguiram mantê-lo, ao terem resgatado o uso de instrumentos de exibição do corpo supliciado, tal a guilhotina que matara o rei deposto. É assim que os suplícios começam a perder seu espaço, e as marcas de ferro, o corte da língua do blasfemante, cedem lugar ao castigo não como arte das sensações, mas como uma economia dos direitos suspensos, à prisão, à reclusão, aos trabalhos forçados, à 14 multa, etc. A pena começa a ser dimensionada não pelo suplício como técnica de sofrimento, mas como a perda de um bem ou de um direito. A punição é o capítulo em que Foucault investiga o modo como a sociedade criou formas de retribuição pelo ato do criminoso aos seus indivíduos. A pena, com a reforma da primeira metade do século. XIX do sistema carcerário se dissocia de um complemento de dor física, mas que ainda se instrui no corpo: “Permanece, por conseguinte, um fundo ‘supliciante’ nos modernos mecanismos da justiça criminal – fundo que não está inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente por uma penalidade do 15 incorporal.” E, nesse sentido, acrescenta Foucault que a punição nas suas formas mais duras não se exerce mais no corpo físico, mas na alma, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. É o momento, também que muitos crimes, como a blasfêmia, que deixou de ser crime, e outros, como o contrabando e o furto domésticos lhe foram retirada a gravidade criminosa. É o momento que a população começa a crescer, e a burguesia, recém posta no poder pela Revolução Francesa (destaque-se que é sobre essa realidade que Foucault se concentra, para evitar críticas infundadas, como geralmente dos autores norte-americanos) sente a necessidade de ver suas propriedades protegidas. Foucault salienta para o aparecimento de subdivisão nas ilegalidades: a ilegalidade de bens, essencial das classes pobres, que tem a punição mais severa, por ser aquela usualmente praticada contra a burguesia e seu patrimônio; e a ilegalidade de direitos, típica dos burgueses, que possuíam a possibilidade de desviar seus próprios regulamentos e suas próprias leis, “de fazer funcionar todo um imenso setor da circulação econômica por 16 um jogo que se desenrola nas margens da legislação,” divisão essa que 13
FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 34. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 16. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 20. 16 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 80. 14 15
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nada mais era, portanto, do que uma oposição de classes. Surge até uma especialização judiciária decorrente dessa separação das ilegalidades: para os bens e classe popular restam os roubos, os tribunais ordinários e os castigos; para os direitos e burguesia restam as fraudes, as evasões fiscais, as operações comerciais irregulares e as jurisdições especiais com transações, acomodações, multas atenuadas, etc. Essa reforma institui um novo modo de olhar a criminalidade, ainda gravada pelas diferenças de classe. Nesse sentido, não se tratou de uma reforma essencialmente humanitária, mas do surgimento de técnicas especializadas e mais aprimoradas para punir, e o direito de punir se deslocou do 18 soberano à defesa da sociedade. É a época de Beccaria, e a arbitrariedade das torturas cede lugar a um modelo mais regular e eficaz na punição dos criminosos. Nesse sentido, a punição seguia ao tipo de ilegalidade que estava acometida; não era mais exercício insano do soberano, caracterizada por 19 ser uniforme e modulada unicamente pela gravidade da falta, mas a pena gravada de acordo com a natureza do crime a o agente. Criam-se regras para quantificar a pena, isto é, através de uma técnica dos sinais punitivos, os reformadores estabelecem uma semiotécnica para o poder de punir: a regra de quantidade mínima; a regra da idealidade suficiente; a regra dos efeitos laterais; a regra da certeza perfeita; a regra da verdade comum (é o aparecimento do inquérito para a íntima convicção do juiz); e a regra da especificação ideal. A confissão deixa de ser a rainha das provas para ingressar um novo regime de busca pela verdade, o exame, a prova empírica, os laudos, as perícias científicas que começavam a ganhar espaço. Todavia, destaca Foucault que a prisão exercia um duplo papel na sociedade do final do século XVIII, ao mesmo tempo que servia para proteger os que possuíam patrimônio, era claramente questionada pelos reformadores, que nela visualizavam uma forma de trazer prejuízos à sociedade, em razão dos custos e dos vícios que fermentava. A disciplina investiga o exercício do poder nos dispositivos, especialmente no controle dos presos, de suas atividades, da normalização, etc. O século XIX vê o surgimento, já com a formação de uma disciplina penal, da pena quantificada cientificamente, com base em atenuantes e circunstâncias judiciais. O desenvolvimento das ciências humanas contribui para que o criminoso deixe de ser visto como mero corpo supliciado, para ser um lugar de investigação do saber. Sobre ele, em busca da verdade, debruçam-se psicólogos, psiquiatras, educadores, a fim de trazerem elementos para que o juiz exerça o poder legal de punir. Essa época marca o aparecimento das prisões, como um novo dispositivo pelo qual o poder passa a ser exercido, e a socie17
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 80. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 83. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 102.
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dade verificada sob um novo olhar, já no começo do capitalismo. Por isso, a duração da pena só passava a ter sentido em relação a uma possível correção e a uma utilização econômica dos criminosos corrigidos. Ademais, as prisões passam a ser separadas entre homens e mulheres, para estabelecer regimes de trabalhos diferenciados. Nesse sentido, Foucault defende que o crescimento demográfico e o crescente desenvolvimento do capitalismo exigem uma nova modalidade de se ingerir sobre os corpos. A prisão, como 20 aparelho administrativo, é uma fiel máquina para modificar espíritos. Se antes a violência e o suplício se destinavam ao corpo, agora a ele se destinam as forças produtivas. O indivíduo passa a ser importante sob o ponto de vista não só político, mas econômico, razão pela qual é transformado em corpo dócil e útil pelas prisões, juntamente com outros dispositivos de atuação: fábricas (que regulam o tempo dos trabalhadores), hospitais (e seus 21 regulamentos), escolas (a disseminação do código dos sinais), forças armadas (e a disciplina rígida), etc. Nesse período, esses dispositivos passam a induzir à obediência, e o ‘tempo’ se torna um dos elementos mais importantes para a disciplina do corpo. “O corpo disciplina é a base de um gesto efi22 ciente.” Há regras no controle da atividade: horário, elaboração temporal do ato, corpo e gestos correlacionados, articulação corpo-objeto, utilização 23 exaustiva, etc. Mas, sobretudo, há recursos para o bom adestramento, para que a disciplina fabrique indivíduos, como uma técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício, isto é, o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e a sua combinação num procedimento específico: o exame (que inverte a economia da visibilidade no exercício do poder; que faz a individualidade entrar num campo documentário; que com sua técnicas documentárias faz 24 de cada indivíduo um caso). Inserindo-se sobre o corpo, Foucault então afirma que a disciplina produz quatro tipos principais de individualidades: a celular, em razão do jogo da repartição espacial; a orgânica, pela codificação das atividades; a genética, pela acumulação do tempo, e a combinatória, pela composição das 25 forças. Essas práticas disciplinares nas prisões teriam seus fundamentos já nas práticas militares, todavia, uma significativa distinção seria que, a partir do séc. XVIII, o tempo se reconhece como valor indispensável na sociedade disciplinar. Nesse sentido, em busca de uma sociedade ideal para governar, disciplinada e dócil, para conseguir fazer exercer a vigilância, a norma, e o exame, elementos todos cerimonializados, cria-se toda uma nova arquitetu20
FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 111. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 150. 22 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 139. 23 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 136-141. 24 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 166-170. 25 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 150. 21
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ra na sociedade, em que a ostentação dos palácios cede lugar às estruturas definidas e planejadas das prisões. A arquitetura destacada por Foucault é aquela representada pelo Panóptico de Bentham, que em 1791, estabeleceu 26 um tipo ideal, “um laboratório de poder”: na periferia uma construção em anel; no centro uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma se abrindo para o interior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas periféricas. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um via captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia. O efeito do panóptico é destacado por Foucault: “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma rela27 ção de poder independente daquele que o exerce.” Foucault relaciona o aparecimento da sociedade disciplinar às orientações do ‘poder público’ no século XVII, quando as cidades eram fechadas e 28 vigiadas em razão da peste, especialmente por um policiamento espacial. Nesse momento, a razão moderna impõe-se a definir os anormais como todos aqueles que lhe fogem ao seu juízo, tal como destacara Foucault em Folie et Déraison, assim, os anormais precisam ser punidos, não simplesmente através das leis, mas através do exercício das “normas”, isto é, recursos que regulam os indivíduos e os inserem nos padrões da sociedade. Estabelecem-se tecnologias do poder, que numa microfísica se inserem nos corpos e lhes determinam a individualidade e a própria liberdade. Assim, para além do poder jurídico, que permanece nas estruturas, Foucault destaca a existência de um outro poder, capaz de produzir verdades sobre os indivíduos nas suas relações com o saber, e cujo eixo reside nas formas já citadas da vigilância, da norma e do exame. Esse novo modelo de poder que surge entre os séculos XVII e XVIII é o poder disciplinar, capaz de se infiltrar nas relações mais ínfimas e disciplinar o corpo individual e social, o que já o poder soberano não conseguira mais fazer em razão da pobreza e do crescimento populacional excessivo. Surge, portanto, uma “anatomia política”, que permitiu o próprio desenvolvimento do capitalismo, através da sujeição e da
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 180. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 177-178. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 173.
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disciplinarização através de instituições, aparelhos e normas dos corpos, e garantiu a ordem e o equilíbrio social tão desejado à época. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o direito existe na estrutura estatal, a disciplina atua com a mesma força nas tramas sociais. Enfim, a prisão é o capítulo em que Foucault se dedica a criticar a existência das prisões, o modo como atuam, as formas de delinqüência que produzem, a constituição de saberes e poderes de atuação sobre o corpo do indivíduo. Nesse sentido, salienta que a prisão é um dispositivo recente como pena, datado do período dos códigos napoleônicos, mas que se constituiu há muito tempo fora do aparelho judiciário. A prisão é momento que 29 marca o acesso à humanidade na história da justiça penal. Para Foucault, a prisão, no seu duplo fundamento: jurídico-econômico e técnico-disciplinar vem por atender às necessidades das disciplinas, do poder disciplinar, a partir do instante em que a privação de liberdade se transforma em técnica dos indivíduos, como “empresa de modificação dos indivíduos”. Do mesmo modo, salienta o autor que a reforma da prisão é contemporânea a ela mesma, é uma espécie de ‘programa’ capaz de assegurar a sua máquina. Para tanto, destaca que vários inquéritos começaram a ser realizados a fim de melhorar as suas instalações. Tornou-se, dessa maneira, um aparelho disciplinar exaustivo, ‘onidisciplinar’, incessante e despótico, capaz de levar os encarcerados à educação total pelos princípios do isolamento (pena individual e isoladora para evitar que realizasse associações misteriosas para conspirar na criminalidade); do silêncio (para que o indivíduo encontre na sua clausura a sua consciência moral, o remorso); do trabalho (para que retribua a recompensa do estado); etc. Nesse sentido, criam-se novas regras para modificar e controlar o pre30 so: a modulação da pena e a justa duração da pena. É uma forma silenciosa de corrigir o delinqüente, ao contrário de outros aparelhos estatais: “A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber. Compreende-se que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora, entretanto, filha de seus pensamentos. Ela lhe era 31 agradecida por isso.” Tornam-se verdadeiros ‘quartéis do crime’. Dessa maneira, a técnica carcerária ultrapassa os trâmites do poder jurídico e ingressa na própria transformação do preso, criando a figura do “delinqüente”, objeto essencialmente científico: médico e penal. Os laudos periciais surgem como forma de legitimar o discurso penal. 29 30 31
FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 207. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 218. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 227. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Desse modo, embora a prisão fosse solicitada pela massa da população, ela não recupera o indivíduo ‘criminoso’, mas pelo contrário, contribui para a constituição da delinqüência, e agrava a admissão desigual de ilegalidades, em razão de seu dispositivo de diferenciação e normalização. Tal como o era anteriormente, a prisão vem por agravar as desigualdades sociais, transformando-se em rígida pena para os crimes de menor potencial ofensivo, geralmente praticados pelas classes mais baixas, e mais tênue, em relação às classes mais altas, que muitas vezes nem sofrem as penas. “A prisão fabrica também delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder. Arbitrário da administração: corrupção, medo e incapacidade dos guardas; exploração por um trabalho penal, que nessas condições não pode ter nenhum caráter edu32 cativo. Foucault, então, atesta o fracasso das prisões. Elas, ao contrário de seu propósito, tornam-se visíveis, marcadas, úteis e irredutíveis as ilegalidades: “é a forma da delinqüência propriamente dita. (...) Nesse sentido, o sis33 tema carcerário substituiu o infrator pelo ‘delinqüente’.” A prisão torna possível, ou melhor, favorece a organização de um meio de delinqüentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades fu34 turas” Nesse sentido, em razão da imensa quantidade de desvios que começam a ser canalizados, as ciências humanas criam para Foucault todo um arcabouço capaz de auxiliar os dispositivos disciplinares. A psiquiatria e a psicologia, sobretudo, teriam de fato sido o próprio resultado dessa disciplina, a partir da noção de controle da normalidade. “Mas os controles de normalidade eram, por sua vez, fortemente enquadrados por uma medicina ou uma psiquiatria que lhes garantiam uma forma de ‘cientificidade’; estavam apoiados num aparelho judiciário que, de maneira direta ou indireta, lhes 35 trazia sua caução legal.” Dessa maneira, atesta Foucault que as técnicas de disciplinamento das prisões acabaram se espalhando pela sociedade, aos hospitais, às escolas, à administração pública, às empresas privadas, etc. formando um “arquipélago 36 carcerário:” escolas, casas correcionais, hospícios, orfanatos, penitenciárias, locais de usura, vilas operárias, etc. Surge o adestramento coletivo, a modelagem do corpo, técnicas de comportamento, em que a técnica da instituição penal é levada para o corpo social inteiro, produzindo severos efeitos: o estabelecimento de uma gradação lenta, contínua e imperceptível que permite passar como que naturalmente da desordem à infração; o carcerário, com seus canais, permite o recrutamento dos grandes delinqüentes; conse32
FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 240. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 243-244. 34 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 235. 35 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 259.. 36 FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 260. 33
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gue-se tornar natural e legítimo o poder de punir, baixando pelo menos o limite de tolerância à penalidade; uma nova disposição de lei, um misto de legalidade e natureza, de prescrição e constituição, a norma; um desejo furioso de parte dos juízes de medir, avaliar, diagnosticar, reconhecer o normal e o anormal; realiza-se ao mesmo tempo as captações reais do corpo e sua perpétua observação; a solidez da prisão “essa pequena invenção desacredi37 tada desde o nascimento.” Dessa maneira, encerra Foucault, não apontando para o fim total das formas de punição, mas para algo distinto, que ele hesita em dizer, já que seu objetivo é tão somente trazer críticas às suas estruturas, e não ser um “conselheiro”, como sempre alertou: “Portanto, se há um desafio político global em torno da prisão, este não é saber se ela será não corretiva; se os juízes, os psiquiatras ou os sociólogos exercerão nela mais poder que os administradores e guardas; na verdade ele está na alternativa prisão ou algo diferente de prisão. O problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de normalização e em toda a extensão dos efeitos de 38 poder que eles trazem, através da colocação de novas objetividades.”
Guilherme Roman Borges Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP (2007/2011). Bolsista doutoral anual do governo brasileiro na Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon Tméma Philosophías - Universidade de Patras – Grécia (2008). Pesquisador-Bolsista junto ao Max Planck Institut für europäische Rechtsgeschichte de Frankfurt – Alemanha (2010 e 2011). Pesquisador-Visitante junto ao Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht de Freiburg – Alemanha (2010). Pesquisador-Visitante Facoltà di Giurisprudenza dell’Università di Bologna – Itália (2008). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP (2006). Mestre em Direito do Estado na UFPR (2005). Graduado em Direito na UFPR (1998/2002). Ex-Professor Adjunto de Economia e Direito Econômico na Universidade Positivo (2003/2011). Juiz Federal Substituto – TRF3 (2011).
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 267. FOUCAULT, Michel. Vigiar e ..., p. 268. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
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Segundo consta do termo de audiência extraído dos Autos de processo criminal nº 0009583-52.2011.8.13.0271, da Comarca de Frutal-MG, o artigo intitulado “A aplicação da teoria da imputação objetiva aos delitos de perigo abstrato”, publicado no v. 5, n. 2, jul./dez. 2009, desta Revista, não é de autoria do Dr. Flávio Ribeiro Costa, mas do Dr. Wesley Miranda Alves e se trata de um excerto do trabalho monográfico por ele publicado sob o título “Uma perspectiva integradora ao estudo do perigo abstrato”, que se encontra arquivado na Faculdade de Direito Jacy de Assis, da Universidade Federal de Uberlândia. (conforme email enviado pelo autor).
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• A destinação do patrimônio em caso de extinção de uma fundação Maria Amélia Renó Casanova e Rosana Mara Brittes • Uma leitura sobre o percurso dos princípios no direito Sérgio Said Staut Júnior • O Tribunal Penal Internacional e sua implementação: questões controvertidas Yvana Savedra de Andrade Barreiros • Desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo Kátia Rovaris de Agostini e Leonardo Cesar de Agostini 2 DOCENTES • Direito de greve e dissídio coletivo Marcelo Wanderley Guimarães • Aspectos (re)velados do bem jurídico para o Direito Penal Pedro Luciano Evangelista Ferreira • Psicologia do testemunho, falsas Memórias e a reforma do Código de Processo Penal Brasileiro no depoimento de crianças e adolescentes Rodrigo Soares Santos e Michelli Miranda Andretta • Ensaio sobre o custo dos direitos negativos Rui Carlo Dissenha
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1 CONVIDADOS • Poder e nomogênese jurídica: bases para uma reflexão do campo jornalístico Lucas Mastellaro Baruzzi
• A legitimação ativa para a propositura de ações voltadas à tutela coletiva Thaís Amoroso Paschoal
• A lei da anistia, a constituição e os crimes contra a humanidade: uma discussão acerca da punibilidade dos agentes públicos a serviço do regime militar Isaias Bissoto • Desaposentação: desnecessidade da devolução das parcelas já pagas pela autarquia previdenciária Gisele Machado Noga e Március Vinícius Caron Schlichting • Considerações sobre a competência e a possibilidade de recuperação judicial nas filiais Larissa Costa Czaplinski 4 RESENHA • Resenha da obra: FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir: Naissance de La Prison. Paris: Gallimard, 1975 Guilherme Roman Borges I SSN 1809- 5119
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3 ACADÊMICOS
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JURÍDICAS
Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação
N.1
VOLUME 7
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JANEIRO-JUNHO 2011
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