Revista Raízes Jurídicas

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• Influência do princípio inquisitivo no processo penal brasileiro Fabiane Ivanski Silva Langer • Os poderes das organizações internacionais Fernanda Sabah Gomes Soares • O modelo contemporâneo de contrato Heloísa Camargo de Lacerda • O jurídico sob um olhar literário: fragmentos para um discurso da delicadeza no Direito Murilo Duarte Costa Corrêa • Hermenêutica jurídica e direitos humanos sociais do trabalhador Rubia Zanotelli de Alvarenga • Serviços públicos: morte ou renascimento? Sarah Maria Linhares de Araújo • A ilegitimidade da pena privativa de liberdade à luz dos fins teóricos da pena no sistema jurídico brasileiro Yvana Savedra de Andrade Barreiros 2 CORPO DOCENTE • Reflexões introdutórias sobre justiça e lealdade no Direito Tributário André Folloni

Revista do Curso de Direito e da Pós-Graduação

1 CONVIDADOS • Os novos caminhos do constitucionalismo no século XXI face ao (des)encontro (multi)cultural Benjamim Silva Rodrigues • A prisão cautelar e a garantia fundamental da presunção de inocência Clara Maria Roman Borges

• Quando o homem sem gravidade invade o processo penal: breves reflexões sobre o juiz no processo penal • O conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana Manoel de Souza Mendes Junior • Linhas sobre o estatuto das legislações interna e externa na filosofia prática de Kant Roberto Wu • Mandados constitucionais de criminalização: uma análise da questão sob a ótica do Direito Penal nacional Rui Carlo Dissenha • Estado e readequação de suas funções: o contexto brasileiro Safira Orçatto Merelles do Prado • Estado, ordem social e privatização: as terceirizações ilícitas da administração pública por meio das organizações sociais, OSCIPs e demais entidades do “terceiro setor” Tarso Cabral Violin 3 ACADÊMICOS • A possibilidade de usucapião dos bens pertencentes às sociedades de economia mista Cristina Malaski Almendanha • Aspectos gerais da Justiça Militar Estadual no Brasil Elisangela de Paula e Silva

ISSN 1809-5119

RAÍZES JURÍDICAS

brasileiro e o necessário resgate F@nD@Fb<0 grega Érica de Oliveira Hartmann; Guilherme Roman Borges

4 RESENHA • FOUCAULT, Michel. Raymond Russel Guilherme Roman Borges

V.4 9 771809 511004

Raízes

JURÍDICAS

Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação

N.2

VOLUME 4

VOLUME 4

NÚMERO 2

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2008

JULHO-DEZEMBRO 2008


ISSN 1809-5119

Raízes

JURÍDICAS

Revista do curso de Direito da Universidade Positivo e da Pós-Graduação v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5.300 Campo Comprido – Curitiba – PR (41) 3317-3000 Reitor Oriovisto Guimarães Vice-Reitor José Pio Martins Pró-Reitor Administrativo Arno Antônio Gnoatto Pró-Reitora de Extensão Fani Schiffer Durães Pró-Reitor de Graduação e Pró-Reitor de Planejamento e Avaliação Institucional Renato Casagrande Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Luiz Hamilton Berton Coordenação do Curso de Direito Marcos Alves da Silva (Coordenador) Alexandre Hellender de Quadros (Coordenador Adjunto)

Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da Universidade Positivo – Curitiba

Raízes Jurídicas/Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Curso de Direito. – v. 4, n. 2 (jul./dez. 2008) - .– Curitiba, Universidade Positivo, 2008 – Periodicidade semestral ISSN 1809-5119 1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito - Periódicos I. Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Curso de Direito. CDU 3 34

IMPRESSO NO BRASIL – PRINTED IN BRAZIL


Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Curso de Direito

Raízes

JURÍDICAS

Raízes Jurídicas. Curitiba. v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Curso de Direito

Raízes

JURÍDICAS Conselho Executivo André Parmo Folloni Alexandre Hellender de Quadros Guilherme Roman Borges Marcos Alves da Silva Paulo Opuszka Rui Dissenha Silvana Maria Carbonera

Conselho Editorial Abili Lázaro Castro de Lima (UFPR) Alexsandro Eugênio Pereira (UP) Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Ester Kosovski (UFRJ) Flavio de Azambuja Berti (UP) James Marins (PUCPR) João Maurício Adeodato (UFPE) José Roberto Vieira (UFPR) José Souto Maior Borges (UFPE) Luis Felipe do Nascimento Moraes (UP) Luiz Edson Fachin (UFPR) Marcos Antônio da Silva (UP) Raúl Cervini (Uruguai) René Ariel Dotti (UFPR) Roberto Wu (UP) Romeu Felipe Bacellar Filho (UFPR) Roque Antonio Carrazza (PUCSP) Simone Maluceli Pinto (PUCPR) Silvana Maria Carbonera (UP) Tercio Sampaio Ferraz Júnior (USP)

Projeto Gráfico e Diagramação Yvana Savedra de Andrade Barreiros


Raテュzes

JURテ好ICAS



Apresentação

O

curso de Direito da Universidade Positivo, juntamente com a sua PósGraduação, apresentam novo volume da revista acadêmica intitulada Raízes Jurídicas, com o objetivo primordial de tornar novamente pública a produção interna que está sendo realizada pelos seus professores, pelos acadêmicos do curso, que, desde cedo, dedicam-se à pesquisa e à extensão universitária, bem como pelas demais personalidades jurídicas que desejam mostrar o conteúdo de suas investigações. Destinada a contribuir para a formação de um sólido pensamento acadêmico no país, comprometido com a seriedade de pesquisa, a profundidade de investigação, o rigor conceitual e a austeridade acadêmica, Raízes Jurídicas torna-se um prestimoso veículo para colmatar lacuna interna existente, assim como para criar uma nova possibilidade de diálogo acadêmico e interinstitucional entre todas as áreas do curso e com outras entidades externas. Trata-se de uma publicação semestral da Universidade Positivo, mas controlada e dirigida pelo Curso e pela Pós-Graduação de Direito, cuja linha editorial se encontra atenta à dinamicidade da ciência e à sua abertura contemporânea, tendo caráter transdisciplinar, de tal modo que serão publicados artigos das mais diversas áreas, sempre afins à técnica jurídica: Filosofia, História, Arte, Sociologia, Literatura, Teoria Geral e Dogmática Estrita. Por tratar-se de uma revista acadêmica e jurídica, Raízes Jurídicas procura alcançar, especialmente, a leitores versados na sua respectiva área, conquanto busque também proporcionar um encontro com as mais diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, especialmente a Sociologia, a História, a Filosofia, a Antropologia, a Psicologia e a Ciência Política. Todavia, seu alvo se expande, ao objetivar também leitores que estejam mais próximos à instrumentalidade da prática, a ver-se pelo trabalho de juízes, promotores, advogados, delegados, procuradores, etc., bem como de entidades da sociedade civil organizada, de organizações não-governamentais, de organismos internacionais e de executores de políticas públicas em matérias pertinentes ao universo jurídico. O maior número de leitores tem em vista a ampliação do conhecimento técnico-jurídico, a ditongação dos horizontes filosóficos e lingüísticos e, sobretudo, o despertar do pensamento crítico e o favorecimento de opções de análises teóricas que não obriguem o leitor à concordância com a opinião comum, tão comum no dogmatismo da ciência.


Sumário 1 CONVIDADOS Os novos caminhos do constitucionalismo no século XXI face ao (des)encontro (multi)cultural Benjamim Silva Rodrigues ..................................................................... 11 A prisão cautelar e a garantia fundamental da presunção de inocência Clara Maria Roman Borges .................................................................... 73 Influência do princípio inquisitivo no processo penal brasileiro Fabiane Ivanski Silva Langer ................................................................ 87 Os poderes das organizações internacionais Fernanda Sabah Gomes Soares ........................................................... 133 O modelo contemporâneo de contrato Heloísa Camargo de Lacerda .............................................................. 157 O jurídico sob um olhar literário: fragmentos para um discurso da delicadeza no Direito Murilo Duarte Costa Corrêa ................................................................ 171 Hermenêutica jurídica e direitos humanos sociais do trabalhador Rubia Zanotelli de Alvarenga .............................................................. 193 Serviços públicos: morte ou renascimento? Sarah Maria Linhares de Araújo ......................................................... 221 A ilegitimidade da pena privativa de liberdade à luz dos fins teóricos da pena no sistema jurídico brasileiro Yvana Savedra de Andrade Barreiros ................................................. 235


2 CORPO DOCENTE Reflexões introdutórias sobre justiça e lealdade no Direito Tributário André Folloni ....................................................................................... 249 Quando o homem sem gravidade invade o processo penal: breves reflexões sobre o juiz no processo penal brasileiro e o necessário resgate grega Érica de Oliveira Hartmann; Guilherme Roman Borges .................... 261 O conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana Manoel de Souza Mendes Junior ......................................................... 283 Linhas sobre o estatuto das legislações interna e externa na filosofia prática de Kant Roberto Wu ........................................................................................... 301 Mandados constitucionais de criminalização: uma análise da questão sob a ótica do Direito Penal nacional Rui Carlo Dissenha .............................................................................. 313 Estado e readequação de suas funções: o contexto brasileiro Safira Orçatto Merelles do Prado ....................................................... 351 Estado, ordem social e privatização: as terceirizações ilícitas da administração pública por meio das organizações sociais, OSCIPs e demais entidades do “terceiro setor” Tarso Cabral Violin ............................................................................. 369

3 ACADÊMICOS A possibilidade de usucapião dos bens pertencentes às sociedades de economia mista Cristina Malaski Almendanha ............................................................ 381 Aspectos gerais da Justiça Militar Estadual no Brasil Elisangela de Paula e Silva ................................................................. 395

4 RESENHA FOUCAULT, Michel. Raymond Russel Guilherme Roman Borges .................................................................... 441


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Os novos caminhos do constitucionalismo no século XXI face ao (des)encontro (multi)cultural Benjamim Silva Rodrigues Doutorando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

(…) a modernidade define-se pelo facto de dar fundamentos não sociais aos factos sociais, impor a submissão da sociedade a princípios ou a valores que, em si mesmos, não são sociais . (…) No termo de um recenseamento das componentes da modernidade geralmente consideradas as mais importantes, duas me parecem indispensáveis à existência da modernidade. Elas são a condição de existência da liberdade e da criatividade no seio de sistemas sociais que tendem naturalmente a reforçar-se a si mesmos, mais do que a formar actores livres. O primeiro princípio é a crença na razão e na acção racional. A ciência e a tecnologia, o cálculo e a precisão, a aplicação dos resultados da ciência a domínios cada vez mais diversos da nossa vida e da sociedade, são para nós componentes necessárias, e quase evidentes, da civilização moderna. O importante é sublinhar que a razão não se funda na defesa dos interesses colectivos ou individuais, mas em si mesma e num conceito de verdade que não se apreende em termos económicos ou políticos. A razão é um fundamento não social da vida social, enquanto o religioso ou os costumes se definiam em termos sociais, mesmo que se referissem a realidades transcendentes, visto que o sagrado é uma realidade social. O segundo princípio fundador da modernidade é o reconhecimento dos direitos do indivíduo, isto é, a afirmação de um universalismo que dá a todos os indivíduos os mesmos direitos, sejam quais forem os seus atributos económicos, sociais ou políticos. TOURAINE, Alain, Um novo paradigma, Para compreender o Mundo de Hoje, Epistemologia e Sociedade, 234, Instituto Piaget, 2005: (1-251): 88-89. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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1 INTRODUÇÃO AO TEMA O Direito Constitucional contemporâneo encontra-se numa fase de inquietações ou intranquilidades teóricas e práticas dado que abandonou censuravelmente a sua dimensão tradicional e pujante: a dimensão política. E, como se isso não bastasse, operou-se uma jurisprudencialização asséptica do Direito Constitucional que o deixa desguarnecido da sua dimensão crítica e política. E, isto, apesar de se ter de reconhecer que o Tribunal Constitucional português, nos seus leading cases, sob o manto diáfano da dogmática e metódica constitucionais, (re-)escreveu algumas das páginas de mais alta política constitucional, indo ao ponto de, aqui e ali, reinventar politicamente a Constituição Portuguesa de 19761. Mais do que uma bipolaridade de um direito político em torno da constitucionalidade ou inconstitucionalidade, exige-se que o Direito Constitucional se abra às discussões políticas da polis com vista a gizar, sobre as mesmas, aspectos teórico-reflexivos operativos2. A precipitação das modernas sociedades para um modelo de sociedade informacional e comunicacional leva à necessidade de uma nova “contextualização” das Constituições dos diversos Estados. O moderno constitucionalismo afigura-se global, isto é, um constitucionalismo interconstitucional (multilevel), internético e a exigir uma governação transnacional (transnational governance). Nasce a rede de constitucionalidade (europeia). Os Estados Europeus, a diversos níveis, procederam à criação de instituições e mecanismos fundamentais em sede de consagração e protecção de direitos fundamentais3. Todavia, importa verificar em que termos estes “novos caminhos trilhados pelo constitucionalismo”, no dealbar do século XXI, se configuram como um encontro ou desencontro cultural entre os povos europeus em matéria de direitos fundamentais. A CRP 1976 é chamada (a dinamizar a) [à] inclusividade multicultural e carece, nos nossos dias, de uma profunda revisão, face aos fenómenos do pluralismo jurídico e do multiculturalismo social. Ninguém negará a existência, dentro do espaço social português, de uma pluralidade heterogénea de direitos. Existe um verdadeiro “pluralismo de 1) GOMES CANOTILHO fala mesmo do papel regulativo e recentrador das controvérsias jurídico-constitucionais e político-constitucionais, adoptadas pelo TC e que levaram à redução das complexidades do político e da política por meio de duas formas metodicamente pragmáticas: 1) através da rejeição, ou, pelo menos, prudência quanto à utilização dos amparos maiêuticos das grandes teorias (“discurso racional”, “razão pública”, “agir comunicativo”, “teoria da justiça”, “teorias referenciais”); 2) através da parcimónia na abordagem dos problemas metódico-metodológicos de interpretação/concretizaçao das normas constitucionais». CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Tribunal Constitucional, Jurisprudências e Políticas Públicas, Anuário Português de Direito Constitucional, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2003: (1-330): [77-86]: 77 e 79. 2) Em termos próximos, veja-se: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Discurso na Sessão de Encerramento do Colóquio Comemorativo dos 20 Anos da Constituição de 1976, in: AAVV, 20 Anos da Constituição de 1976, STVDIA IVRIDICA 46 – Colloquia – 5, Coimbra Editora, Coimbra, 2000: (1-310): [307-310]: 308. 3) Pode mesmo falar-se numa tendência para a universalização, institucionalização, funcionalização, integração com o Direito interno, humanização, objectivação, codificação, jurisdicionalização e préconstitucionalização e socialização da protecção dos direitos fundamentais humanos. MIRANDA, Jorge, Uma nova fase no Direito Internacional dos Direitos do Homem, in: MIRANDA, Jorge, Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais, Principia, Lisboa, 2006: (1-519): [439-449]: 439 e seguintes.

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direitos” dado que a sociedade portuguesa se tornou multicultural (pluralismo cultural) onde têm assento vários grupos culturais (“angolanos”, “cabo-verdianos”, “africanos”, “russos”, “moldavos”, “marroquinos”, “brasileiros”, etc) que, no lufa-lufa diário, produzem normas (ao nível dos ritos matrimoniais, religiosos, do ensino e demais práticas culturais típicas) que actuam no espaço social português e interagem com as normas produzidas pelas “macroculturas” dominantes nesse mesmo espaço. A Lei Fundamental, à luz das objecções multiculturais, é, segundo a teoria da constituição, “empurrada” para o desempenho de uma nova função/dimensão: a função de estruturar e garantir um sistema constitucional pluralístico4. Verificamos, hoje, no “espaço global europeu (e internacional)” relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço geopolítico5. É para estudar estas realidades que se faz apelo à teoria da interconstitucionalidade. Nestes estados compostos está sempre presente a articulação de vários princípios: o princípio da sobreposição das ordens jurídicas, o princípio da autonomia e o princípio da participação no poder central. A teoria da interconstitucionalidade tem como principal objectivo o afrontamento do problema da articulação entre constituições (1.º) e consequente afirmação dos poderes constituintes com fontes e legitimidades diversas (2.º). Para J. J. GOMES CANOTILHO6, a especificidade relativa da “associação europeia de estados” adviria dos seguintes topoi: i) A constatação da existência de uma rede de constituições de estados soberanos; ii) A identificação da turbulência produzida na organização constitucional dos estados soberanos pelas organizações políticas supranacionais; iii) A (necessidade da efectiva) recombinação das dimensões constitucionais clássicas através de sistemas organizativos de natureza superior; iv) A (urgência e exigência da) articulação da coerência constitucional estatal com a diversidade de constituições inseridas na rede interconstitucional; v) A (imperiosa e imprescindível) criação de esquemas jurídicopolíticos caracterizados por um grau suficiente de confiança condicionada entre as várias constituições imbricadas na rede e entre essas constituições e a constituição revelada pela organização política de grandeza superior7. Por seu 4) Temos dúvidas que esta estruturação e garantia passe, a partir do texto constitucional, pela proibição de organizações aniquiladoras ou defensoras da aniquilação do pluralismo ideológico e do multiculturalismo racial (“organizações fascistas” e “organizações racistas”). Fica-nos a (legítima?) dúvida de saber se, a final, essa “opressão” não se traduzirá numa nova forma “democrática” de “intolerância”, recolocando, na agenda, o tema das “normas constitucionais inconstitucionais”. Discordamos, por isso, neste ponto, de: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição (Reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1522): 1451. 5) O que impõe a necessidade de um “centro político europeu” aglutinador e activo para resolver os problemas económicos, sociais e culturais das sociedades nacionais europeias constitucionalizadas a partir de uma futura “Constituição Europeia Dirigente”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, «A Constituição europeia entre o programa e a norma», acedido e consultado, em 2007-05-22, na URL: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/ canotilhon.pdf>. 6) CANOTILHO, José Joaquim Gomes, “Brancosos” e Interconstitucionalidade, Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional, Livraria Almedina, Coimbra, 2006: (1-345): 266-267. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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turno, a justiça constitucional, absorvida até ao final do século XX, com os problemas “clássicos” e “fundamentais”8 da discursividade jusconstitucionalista, tais como a necessidade da clarificação da (in)exigência da sua externalização ou internalização (i), o questionamento da opção entre justiça de normas ou justiça de valores (ii), a opção da jurisdição constitucional por um “superjuiz” ou por um “superlegislador” (iii), a eleição da interpretação e ponderação, isto é, a opção entre a atribuição de um significado normativo ou a tomada de decisão (em tempo) razoável (iv), vê, no dealbar do século XXI, atracaram no seu porto, “novos problemas constitucionais”, onde sobressaem: i) o apelo a uma “melhor teoria da constituição” ou a um “melhor método decisório”; ii) a clarificação do papel da jurisdição constitucional face ao multiculturalismo e perante o multilateralismo supranacional (Tribunal Constitucional, Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e Tribunal Europeu dos Direitos do Homem)9. Os problemas estão identificados e importa, por agora, indicar o rumo das “intranquilidades discursivas” que irão orientar o presente estudo. Pretende-se averiguar, em matéria de direitos fundamentais, como se posiciona a CRP 1976 face à participação do Estado português no “espaço mundial global internacio7) A associação europeia é um desafio, não só aos juristas europeus, mas, acima de tudo, aos juristas (nacionais) constitucionalistas. O emergir da ideia de “constitucionalismo europeu” – com a (esperada e futura) Constituição Europeia no topo – implica uma consciencialização da necessidade da emergência e realização dos seguintes topoi: i) Um contrato social(dade) europeu(ia) com os seus cidadãos, municípios, regiões, Nações e respectivos Estados-Membros; ii) Uma identidade cultural (a partir do multiculturalismo presente) formada a partir de várias culturas (diferenciadas e fundantes); iii) Um espaço de (abertura) cultura(l), religião, educação, ensino, ciência, arte e desporto; iv) Um espaço de cultura jurídica assente na unidade e pluralidade, com os princípios jurídicos fundamentais, os direitos fundamentais e valores comuns a constituírem uma verdadeira “constituição do pluralismo”; v) Um espaço de publicidade plural onde a política assume um papel de relevo, com os partidos de nível europeu, as associações, as igrejas e confissões religiosas, as organizações não governamentais, as instituições científicas na qual caberá uma “teoria comparada da Constituição”; vi) Uma comunidade constitucional constituída pelas Constituições nacionais e a Constituição Europeia; vii) Um casa cultural onde a cultura constitucional de liberdade e identidade forma a dimensão profunda do processo e conteúdo da integração europeia; viii) Um espaço jurídico em que desaparecerá o “Direito Europeu” para dar lugar a disciplinas como “Direito Constitucional Europeu”, “Direito Administrativo Europeu” articuladas das dimensões específicas europeias e das dimensões jurídico-constitucionais estaduais; ix) Um espaço onde o “constituir Constitucional” faz referência a instâncias universais e a dimensões transcendentais. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, «A Constituição europeia entre o programa e a norma», acedido e consultado, em 2007-05-22, na URL: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/canotilhon.pdf>. 8) CANOTILHO, José Joaquim Gomes, «Jurisdição Constitucional e Intranquilidade Discursiva», in: MIRANDA, Jorge (Organização), Perspectivas Constitucionais, Nos 20 Anos da Constituição de 1976, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 1996: (1-908): [871-887]: 872 e seguintes. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, «Jurisdição constitucional e novas intranquilidades discursivas, Do melhor método à melhor teoria», in: AAVV, «La rebelión de las Leyes, Demos y nomos: la agonia de la justicia constitucional», Revista Fundamentos, n.º 4, 2006: (1-453): 425-439, para a versão espanhola («Jurisdicción constitucional y nuevas inquietudes discursivas del mejor método a la mejor teoría»), acedida e consultada, em 2007-05-20, na URL: <http://www.uniovi.es/constitucional/fundamentos/cuarto/pdfs/J[1].%20J.%20Gomes%20Canotilho.pdf> e, para a versão portuguesa, na mesma data, na URL: <http://www.uniovi.es/constitucional/fundamentos/cuarto/ pdfs/Gomes%20Canotilho%20portugues.pdf>. 9) Relativamente a esta última dimensão, VITALINO CANAS refere que cabe ao TC um controlo intervencionista e criador da observância do comando constitucional, se preciso for completando, complementando ou corrigindo a obra do legislador. CANAS, Vitalino, Introdução às decisões de provimento do Tribunal Constitucional, 2.ª Edição, Revista, AAFDL, 1994: 81-226): 16-17.

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nal” – com a Declaração Universal dos Direitos do Homem –, no “espaço europeu global” – com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem – e no “espaço europeu global regional” – com a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Por outras palavras, importa verificar em que termos a recepção 10 de tais “direitos fundamentais atípicos”11 ou “extraconstitucionais” se integram ou não no denominado “bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais”12 e em que termos eles surgem como parâmetro de controlo e aferição da conformidade constitucional das restantes normas jurídicas ou mesmo como parâmetro interpretativo substitutivo, face às demais correspectivas normas constitucionais nessa matéria, pela sua maior “abertura” ou “irradiação protectora”. O que se pretende, no fundo, averiguar é se um direito fundamental consagrado na CEDH, na DUDH ou na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais que detenha “maior amplitude” pode integrar e dilatar o bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais e com base nele levar à inconstitucionalidade de uma norma jurídica, independentemente da sua fonte originária. Se a CRP 1976 consagrar, por exemplo, em matéria de direito à reserva (da intimidade) da vida privada – artigo 26.º CRP 1976 –, um conteúdo menos abrangente do que o da CEDH13 ou da DUDH, será legítimo ao TC considerar tal conteúdo (mais abrangente) integrador do bloco e parâmetro de constitucionalidade para, com base nessa interpretação, considerar inconstitucional uma determinada norma jurídica no contexto constitucional português? A resposta afigura-se complexa e demonstrativa dos novos desafios com que se depara o “constitucionalismo dos direitos fundamentais”, no dealbar do século XXI. 10) Não se pode, todavia, esquecer que o processo de “reconhecimento”, “fundamentalização” e “constitucionalização” de direitos coloca problemas pertinentes à “teoria da constituição” e do “constitucionalismo”, produzindo uma transformação “qualitativa” e “quantitativa” no conceito de “constituição” como estrutura normativa. QUEIROZ, Cristina, Direitos Fundamentais Sociais, Funções, Âmbito, Conteúdo, Questões Interpretativas e Problemas de Justiciabilidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-254): 130. 11) Criticamente, JORGE MIRANDA censura o uso da expressão por JORGE BACELAR GOUVEIA, na sua obra “Os Direitos Fundamentais Atípicos”, considerando-a “inadequada” e “sem interesse”. «Inadequado o nome, porque, sendo o tipo um conceito de ordem através do qual se descrevem realidades por meio dos seus elementos mais significativo, também os pretensos direitos atípicos correspondem a tipos – pois as fontes infraconstitucionais donde constem não deixam de os definir. Sem interesse a concepção, porque nem tipologia equivale a tipicidade, nem fica clara a natureza desses direitos». MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 3.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 2000: (1563): 168. 12) Pretende-se questionar em que termos uma norma jurídica, consagradora de direitos fundamentais, fora da constituição, em leis ordinárias ou convenções internacionais, pode, por si só, “moldar” o chamado “bloco da constitucionalidade em matéria de direitos fundamentais”. Para J. J. GOMES CANOTILHO, a solução parece ser clara e linear: (1.º) ou esses direitos são ainda densificações possíveis e legítimas do âmbito normativoconstitucional de outras normas e, consequentemente, direitos positivo-constitucionalmente plasmados e integradores do referido “bloco da constitucionalidade”; ou (2.º) são direitos autónomos não-reentrantes nos esquemas normativo-constitucionais e, por isso, agora, concretizadores do “bloco da legalidade”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, (Reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1522): 922. 13) A menor amplitude dada a um direito fundamental constante da CRP 1976 face à CEDH, pode levar à condenação do Estado português, que à luz do artigo 46.º CEDH está obrigado a respeitar as sentenças definitivas do TEDH nos litígios em que for parte. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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2 OS NOVOS CONTORNOS DO CONSTITUCIONALISMO NO DEALBAR DO SÉCULO XXI 2.1 OS NOVOS DESAFIOS À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL EM MATÉRIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A existência de um sistema jurisdicional de garantia e tutela dos direitos fundamentais são uma condição e dimensão essenciais a uma sociedade democrática, no sentido de imposição dos seus comandos normativos junto dos seus destinatários. Tanto mais que as modernas Constituições assentam no primado da dignidade da pessoa humana enquanto elemento “colorativo” de todos os direitos fundamentais e «bem supremo da nossa ordem jurídica»14. É através dos órgãos jurisdicionais dos Estados e das diversas organizações internacionais que se procede à criação das condições mínimas de efectivação e garantia dos direitos fundamentais15. Interessar-nos-á, no presente estudo, o esclarecimento do papel do Tribunal Constitucional à luz da questão da primazia (ou não) do direito internacional, comunitário (ou não), originário ou derivado, sobre o direito interno português, constitucional e legal, em matéria de direitos fundamentais, procedendo à identificação da especificidade de tal temática ao nível do processo constitucional de fiscalização e, por outro lado, ao nível material, ao esclarecimento das relações entre as diversas fontes de direito em presença. Em suma, visa identificar-se em que termos os “direitos fundamentais atípicos” ou “extraconstitucionais”, previstos em textos internacionais, se integram na ordem jurídica interna; e, por outro lado, saber a quem cabe o poder de decisão, em última instância, sobre (os eventuais) conflitos jurisdicionais entre o legislador nacional (jurisdição comum ou constitucional) e o juiz internacional, seja este último o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) ou o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE)16. 14) SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995: (1-703): 97. 15) Não se pode esquecer que, num Estado de Direito, ter um direito fundamental é ter um “trunfo”, isto é, uma posição de prevalência sobre as demais posições subjectivas. NOVAIS, Jorge Reis, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003: (11008): 586, 597, 602 e seguintes. NOVAIS, Jorge Reis, Os princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2004: (1-344): 306 e seguintes. NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundametnais: Trunfos contra a Maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 7 e seguintes; 17-67, 82, 89 e seguintes, 235. ALEXANDRINO, José Melo, Direitos Fundamentais, Introdução Geral, Principia, Lisboa, 2007: (1-159): 24-25. ALEXANDRINO, José Melo, A Estrutura do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, Volume II, A Construção Dogmática, Colecção Teses, Livraria Almedina, Coimbra, 2006: (1-810): 34, 131, 246, 327, 389, 391, 448, 451, 490 e 697. 16) Isto ganha tanto mais relevância quanto se coloca o complexo problema de saber como se configura a vinculação dos tribunais pelos direitos fundamentais através da mediação do Tribunal Constitucional. Como refere GOMES CANOTILHO, trata-se de saber se as decisões judiciais observam não apenas os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, mas também se a interpretação/concretização desses direitos feita pelos tribunais ordinário não será, no fim de contas, uma interpretação contra os direitos fundamentais por estar em desconformidade com a interpretação desses mesmos direitos feita pelo Tribunal Constitucional. «A vinculação dos direitos fundamentais poderia, assim, ao ser mediatizada pela interpretação do Tribunal Constitucional, converter-se numa vinculação derivada: os direitos fundamentais vinculam os tribunais na medida em que o

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2.2 A EMERGÊNCIA DO ESPAÇO JUDICIAL DE GEOMETRIA TRIANGULAR E O “BLOCO EUROPEU DE DIREITOS FUNDAMENTAIS”

O moderno constitucionalismo (europeu) assiste à criação de um espaço judicial de geometria triangular17 ao reconhecer a existência dum “bloco europeu de direitos fundamentais” que colocam, numa relação “interconstitucional” e triangular, os tribunais (constitucionais) nacionais (TN) dos diversos Estados Europeus, o TEDH e o TJCE. Ganham significado as questões relativas ao relacionamento entre o direito comunitário e o direito interno, bem como entre cada um daqueles dois e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e seu respectivo “guardião” – o TEDH. No que respeita às questões do relacionamento entre o direito interno de cada Estado-Membro e o Direito Comunitário, podemos identificar dois níveis distintos de análise18. Um deles prende-se com a identificação da natureza da relação que se estabelece entre as normas «substantivas» de fonte comunitária e as de fonte interna. O outro centra-se ao nível da articulação dos mecanismos de controlo judicial interno e controlo judicial comunitário. Relativamente à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, importa igualmente aferir da natureza da relação que se estabelece entre essas normas e as do nível comunitário e interno de cada um dos Estados-Membros da actual União Europeia e o tipo de relacionamento que se estabelece entre o triângulo judiciário envolvido: Tribunais nacionais, Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Para além destes problemas, e com especificidade no constitucionalismo europeu, importa analisar o tema da conformação do “bloco constitucional dos direitos fundamentais” à luz da integração dos direitos fundamenTC «diz» interpretativamente como eles vinculam». O TC acabaria por surgir nas vestes de um «Tribunal de Revisão» e o Direito Constitucional deixaria de ser um «direito de controlo» para se transformar em direito de intervenção no processo de interpretação e aplicação do Tribunal Constitucional (concretização dos direitos fundamentais através do Tribunal Constitucional). Para obviar a estes “perigos”, J. J. GOMES CANOTILHO defende o ensaio de critérios operacionais. Um deles seria o do «direito constitucional específico», segundo o qual a conformação do processo, a fixação/valoração dos pressupostos de facto e aplicação/interpretação da lei aplicável ao caso concreto é tarefa indeclinável dos tribunais ordinários; o Tribunal Constitucional só pode intervir correctivamente quando os resultados da interpretação dos tribunais competentes para a causa se repercutem negativamente no âmbito da protecção dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados». Um outro seria o do “controlo das jurisdições jurídico-públicas (tribunais penais, administrativos), de acordo com o qual a intensidade de controlo seria mais severa, pois os «direitos públicos» – em especial, o direito penal e o direito administrativo – caracterizam-se por serem, em larga medida, «direito constitucional concretizado». Mais problemática será a extensão do controlo no caso da jurisdição civil, dado que, embora se admita a eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada, o direito privado não é, na mesma medida do direito penal ou do direito administrativo, «direito constitucoinal concretizado». CANOTILHO, José Joaquim Gomes, «Tópicos de um Curso de Mestrado sobre Direitos Fundamentais, Procedimento, Processo e Organização», Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXVI, Coimbra, 1990: (1-222): [151-201]: 200-201. 17) DUARTE, Maria Luísa, «A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Natureza e meios de tutela», in: AAVV, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães COLLAÇO, Volume I, Livraria Almedina, Coimbra, 2002: (1-868): [723-755]: 752 18) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1364-1365. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tais “atípicos” ou “extraconstitucionais” “naturalizados ou constitucionalizados” pela cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1 CRP.

2.3 A “CONSTITUCIONALIZAÇÃO” DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS “RECEBIDOS” NA ORDEM INTERNA PORTUGUESA

A abordagem dos novos desafios do constitucionalismo, em matéria de direitos fundamentais, na CRP 1976, no dealbar do século XXI, não pode ser levada a cabo sem tomar em linha de consideração a internacionalização do reconhecimento e a protecção de tais direitos por força de inúmeros instrumentos internacionais que se sucederam à Carta das Nações Unidas e à Declaração Universal de Direitos Humanos (1948)19. Formou-se um lastro jurisprudencial de interconstitucionalidade em matéria de direitos fundamentais, (essencialmente) por força da acção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que já não pode ser desprezado ao nível da densificação normativa e decisória jurisprudencial dos programas constitucionais e das normas e princípios consagradores de direitos fundamentais20. Na ausência de uma solução políticoconstitucionalmente negociada entre os diversos Estados-Membros da actual União Europeia e os demais Estados Europeus subscritores da CEDH, no sentido de identificar os critérios de resolução dos conflitos jurisdicionais em matéria de direitos fundamentais, urge verificar em que termos, à luz da actual redacção da CRP de 1976, se deve comportar o TC e demais tribunais nacionais na resolução de tais conflitos, em matéria de direitos fundamentais, que advenham da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou da legislação comunitária. Para alguns autores, no que respeita ao relacionamento entre o Direito comunitário e a CEDH – que é o mesmo que dizer entre TJCE e TEDH – a solução passaria pela adesão formal das Comunidades Europeias àquela Convenção Europeia21. Para outros, bastaria a celebração de um protocolo entre 19) Ainda sob a égide das Nações Unidas, cumpre abordar dois pactos: PIDCP e PIDESC. Especial menção nos merece, igualmente, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 20) CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-1152): 324. 21) GARCIA, Maria da Glória F. P. D., «La protection des droits de l´Homme en Europe: juges nationaux et juges européens», Direito e Justiça, 2001, Vol. XV, Tomo I, p. 36. MEDEIROS, Rui, «A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Estado Português», in: AAVV., Nos 25 Anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, Evolução Constitucional e Perspectivas Futuras, AAFDL, 2001: (1-680): [227-293]: 233-234. VITAL MOREIRA refere uma importância “preventiva” de tal adesão, pois sabendo «que os casos de direitos fundamentais submetidos à sua apreciação poderiam ser sempre levados até ao TEDH e conhecendo a jurisprudência deste em relação a cda um dos direitos fundamentais, isso constituiria uma poderosa alavanca para uma atenção mais comprometida por parte do TJC». E, além disso, invoca o argumento da “congruência”, pois se «todos os Estados membros estão vinculados à CEDH e à jurisdição do TEDH, no que concerne à sua actividade, não se compreende que quando transferem competências para a UE as actividades correspondentes deixam de estar sujeitas ao “standard” e aos mecanismos da CEDH (…)». MOREIRA, Vital, «A tutela dos direitos fundamentais na União Europeia», in: RIQUITO, Ana Luísa/VENTURA, Catarina Sampaio/ANDRADE, José Carlos Vieira de/CANOTILHO, José Joaquim Gomes/ GORJÃO-HENRIQUES, Miguel/RAMOS, Manuel Moura/MOREIRA, Vital, Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, Corpus Iuris Gentium Conimbrigae, 2, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-158): 81.

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os Estados-Membros das Comunidades Europeias e os demais Estados Europeus subscritores da CEDH, no sentido da adopção de um mecanismo de “reenvio prejudicial” ou um outro qualquer “mecanismo de comunicação”22. O TJCE, perante uma situação de conflito, colocaria ao TEDH todas as suas questões prejudiciais sobre a interpretação das disposições da CEDH e demais Protocolos Adicionais à mesma. Para MARIA LUÍSA DUARTE23 tal mecanismo teria a vantagem de submeter os actos comunitários a um controlo externo de legalidade em matéria de direitos fundamentais, afastando-se, desse modo, os inconvenientes do mecanismo da queixa junto do TEDH, com a obrigação do particular instaurar um novo recurso junto de outro tribunal. Para atingir este objectivo, haveria, ainda, que reconhecer aos particulares o direito de impugnar actos comunitários normativos com fundamento em violação de direitos fundamentais. A somar a estes problemas surge-nos um outro, de não menor importância, que se prende com o significado a atribuir à denominada “cláusula aberta” (artigo 16.º, n.º 1: «Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional»), em matéria de direitos fundamentais, ao nível da “conformação do bloco de constitucionalidade dos direitos fundamentais”. Adicionalmente o artigo 16.º, n.º 2 consagra o cânone interpretativo da “interpretação em conformidade com a DUDH” em matéria de direitos fundamentais, o que coloca igualmente o problema de saber se a DUDH possui estatuto constitucional que a faça ascender à categoria de parâmetro constitucional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem integra-se no acervo dos direitos fundamentais oriundos do “espaço mundial global internacional” e a “constitucionalização” do catálogo de direitos fundamentais que consagra ocorre, quer por força do disposto no artigo 8.º, quer por força do artigo 16.º da CRP 1976. Importa, desse modo, verificar em que termos ocorre tal processo de recepção de direitos fundamentais não típicos ou extraconstitucionais no direito interno e sua respectiva relevância.

2.3.1 O espaço mundial global internacional: a “Constitucionalização” dos direitos fundamentais da Declaração Universal dos Direitos do Homem 2.3.1.1 Breve resenha histórico-evolutiva As atrocidades cometidas nas duas grandes guerras mundiais (1914-18 e 1939-45) desembocaria na elaboração, sob os auspícios das Nações Unidas, em 22) Conclusão 37. MARTINS, Patrícia Fragoso, O Princípio do Primado do Direito Comunitário sobre as Normas Constitucionais dos Estados-Membros, Dos Tratados ao Projecto de Constituição Europeia, Prémio Jacques Delors – Melhor Estudo Académico sobre temas comunitários 2005, Principia, 2006: (1-208): 190. 23) DUARTE, Maria Luísa, «A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Natureza e meios de tutela», in: AAVV, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães COLLAÇO, Volume I, Livraria Almedina, Coimbra, 2002: (1-868): 755. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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10 de Dezembro de 1948, de uma Declaração Universal dos Direitos do Homem24 que se assumiria, doravante, como património (acquis) da comunidade mundial.

2.3.1.2 A integração da DUDH no “bloco da constitucionalidade” dos direitos fundamentais O legislador português consagrou uma abertura25 constitucional à consagração de novos direitos fundamentais a partir da opção por uma cláusula aberta26 no artigo 16.º, n.º 1 CRP27 28. Os direitos fundamentais serão não apenas os 24) O Texto oficial português foi publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 9 de Março de 1978, mediante aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros que referia: «Determinando o artigo 16.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem» por ordem superior se publica o seu texto em inglês e a respectiva tradução em português». 25) JOSÉ MELO ALEXANDRINO dá-nos a seguinte definição de abertura: «todo o conjunto de fenómenos por intermédio dos quais possam ser criados, revelados, alargados ou ampliados outros direitos fundamentais». Além da via da “cláusula aberta” do artigo 16.º, n.º 1, o autor entende que a “abertura” (a velhos ou novos direitos materialmente constitucionais mas não formalmente constitucionais) pode ocorrer através da: «i) Admissão de direitos fundamentais dispersos; ii) A compreensão aberta do âmbito normativo das normas de direitos fundamentais formalmente constitucionais; iii) A possibilidade de descoberta jurisprudencial de direitos fundamentais junto de outras normas constitucionais (com apoio nas penumbras das normas de direitos fundamentais, no texto, na história e na estrutura da Constituição); iv) e, naturalmente, o próprio aditamento de direitos fundamentais por revisão constitucional». ALEXANDRINO, José Melo, Direitos Fundamentais, Introdução Geral, Principia, Lisboa, 2007: (1-159): 50-51. 26) Trata-se de uma técnica cuja origem histórica beneficia, em muito, do IX Aditamento à Constituição dos Estados Unidos («the enumeration in the Constitution, of certain rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the people»), ainda que a mesma tenha um significado aí distinto do que desempenha na CRP 1976. Sobre esta temática pode consultar-se: MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (11022): [113-153]: 114-116. MIRANDA, Jorge, «A abertura constitucional a novos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da SILVA, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-1286): [559-572]: 559. 27) Historicamente, o constitucionalismo português adoptou a cláusula aberta em matéria de direitos fundamentais em vários momentos. Na Constituição de 1911, por influência da Constituição Brasileira de 1891, ela aparece no artigo 4.º («A especificação das garantias e direitos não expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna ou constam doutras leis»), apesar da sua fraca “operatividade” em matéria de (efectivo) reconhecimento de direitos extraconstitucionais, segundo as posições doutrinárias e jurisprudenciais mais relevantes da época. Por seu turno, a Constituição de 1933 consagrou uma cláusula aberta, no artigo 8.º, § 1.º («a especificação destes direitos e garantias não exclui quaisquer outros constantes da Constituição ou das leis, entendendo-se que os cidadãos deverão sempre fazer uso deles sem ofensa dos direitos de terceiros nem lesão dos interesses da sociedade ou dos princípios da moral») que deixou à doutrina fortes dúvidas sobre se estaríamos verdadeiramente perante uma cláusula consagradora da não tipicidade dos direitos fundamentais, no sentido da possível existência ou admissibilidade de outros direitos que não os enumerados. Daí que alguma doutrina conclua que a cláusula do artigo 8.º, § 1.º da Constituição de 1933 não configura, verdadeiramente, uma cláusula aberta de ampliação dos direitos fundamentais. Nesse sentido, pode consultar-se: MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 121. ALEXANDRINO, José Melo, Direitos Fundamentais, Introdução Geral, Principia, Lisboa, 2007: (1-159): 48 e seguintes.

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que formalmente se inscrevem na CRP 1976, mas igualmente aqueles outros provenientes de diversas outras fontes («leis» e «regras aplicáveis de direito internacional») e que dão sentido à chamada “constituição material”. Não existe uma opção manifesta do legislador constituinte pelo “fechamento” ou taxatividade dos direitos fundamentais, tendo-se optado por uma enumeração aberta, não taxativa, nem meramente exemplificativa29, em constante re-definição e aprofundamento face à evolução civilizacional30 e mais harmónica com a natureza do princípio da dignidade humana no qual assentam os modernos estados constitucionais. Refira-se que o processo de consagração da cláusula aberta se encontra rodeado de um certo enigma, pois, por um lado, o artigo 16.º, n.º 1 foi – estranhamente – aprovado sem qualquer tipo de debate parlamentar31; e, por outro lado, a redacção inicial aludia apenas a «direitos, liberdades e garantias», tendo, misteriosamente, passado, na redacção final, a aludir aos “direitos fundamentais”, aí se englobando aqueles e os direitos sociais. Neste primeiro e mais elevado nível de “constitucionalização dos direitos fundamentais”, cumpre analisar o lugar da DUDH na hierarquia das fontes e qual o seu papel ao nível da conformação do “bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais”.

2.3.1.2.1 Recepção, âmbito, hierarquia e natureza (força) jurídica da Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigos 8.º, n.º 2, 16.º, n.º 1 e 17.º CRP 1976) A “Constituição dos direitos fundamentais”32, na ordem jurídica portuguesa, não pode ser identificada sem ter em linha de conta o referencial dogmático de que parte: o princípio da dignidade da pessoa humana. Não se estranhará por isso que o húmus que alimenta a interpretação e definição do catálogo dos direitos fundamentais seja o princípio da dignidade da pessoa humana que surge, no artigo 1.º CRP 1976, como proclamação emblemática sobre a qual mergulham as raízes da República portuguesa («Portugal é uma República soberana, baseada na 28) A solução legislativa é o resultado da opção por uma das duas vias que se degladiavam no momento da elaboração do texto constitucional. Em abono da consagração de uma cláusula aberta surgiam as propostas do MDP/CDE, do PCP e do PPD. Do outro lado, surgia o projecto do CDS que apontava para a criação de uma cláusula geral de “livre desenvolvimento da personalidade”. Vingou a primeira opção, ainda que hoje se encontre consagrada, no artigo 26.º a referida cláusula defendida pelo CDS. 29) MIRANDA, Jorge, «A abertura constitucional a novos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da SILVA, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-1286): [559-572]: 559. 30) Trata-se de uma abertura com especial relevância ao nível do constante encontro e desencontro cultural que se verifica nas sociedades modernas com o ritmo dos fluxos demográficos, pois permite a “apropriação cultural” de novas dimensões dos direitos fundamentais ou de novos direitos fundamentais de acordo com o quadrante geográfico a que pertence cada “fluxo migratório”. 31) Diário da Assembleia da República, n.º 35, p. 941-942. 32) MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 125. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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dignidade da pessoa humana…»). O que não nos pode levar a esquecer que o “alargamento” ou “enchimento” da cláusula aberta, com novos direitos fundamentais, pode contraditoriamente levar a um “atrofiamento” do “raio de acção” dos actuais direitos fundamentais consagrados. Desta constatação poderia identificar-se a seguinte regra tendencial em matéria de direitos fundamentais: quanto maior for o número de direitos fundamentais reconhecidos por uma constituição, maior probabilidade existirá do seu conteúdo ser limitado e estreitado33. Importa identificar como se efectua a recepção dos direitos fundamentais constantes da DUDH através da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1 CRP 1976 e em que termos se verifica a sua “constitucionalização”, passando os mesmos a servir (ou não) de parâmetro de controlo da constitucionalidade. Não deve confundir-se a abertura, em matéria de (recepção) de direitos fundamentais constante do artigo 16.º da CRP 1976 e a (outra) que resulta da própria abertura do sistema constitucional, nomeadamente do uso da técnica dos direitos implícitos e de outras referências a institutos, princípios, preceitos e técnicas de interpretação. Segundo ISABEL MOREIRA, tal abertura do sistema constitucional poderia detectar-se a partir do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), do princípio democrático (artigo 2.º), do regime aplicável aos direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º), da técnica de recepção das fontes normativas externas (internacionais e comunitárias) (artigo 8.º) e das regras de relacionamento internacional (artigo 7.º). Deste modo, a citada autora propõenos uma leitura fechada, integrada e subsidiária34 (da abertura) da cláusula aberta, chegando a afirmar que o sistema de direitos fundamentais é um sistema aberto, mas não apenas por força da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1 CRP, igualmente por força da necessidade de uma visão integrada de tal cláusula com as demais “aberturas sistemáticas” aos direitos fundamentais. Uma primeira questão a abordar é a de saber se os direitos fundamentais “recebidos” pela cláusula aberta e oriundos da DUDH possuem ou não natureza constitucional e que implicações daí advirão para a conformação do chamado “bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais”. Acerca da “natureza constitucional” dos direitos “recebidos”, a 2.ª Secção do TC, no Acórdão n.º 174/ 87, de 20 de Maio, esgrimiu o entendimento de que os direitos extraconstitucionais não assumem natureza constitucional, embora beneficiem parcialmente do regime constante dos artigos 18.º e 19.º da CRP 1976. Aplicar-se-ia o princípio da proporcionalidade ao nível da restrição e suspensão dos direitos extraconsti33) Numa formulação próxima, J. A. MELO ALEXANDRINO refere: «a maior extensão do catálogo de direito e liberdades fundamentais reconhecidos por uma constituição (…) determinará forçosamente, embora em termos variáveis, o estreitamento do conteúdo atribuído a cada direito e a cada liberdade». ALEXANDRINO, José Alberto Melo, Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-326): 66. 34) A autora refere que «em face de fontes constitucionais de abertura a novos direitos, a cláusula aberta de não tipicidade de direitos fundamentais, no que se refere à eventual recepção de direitos de fonte infraconstitucional, é, naturalmente, um instituto subsidiário». MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 129.

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tucionais, bem como o disposto no artigo 18.º CRP 1976, cabendo, igualmente, da sua violação a possibilidade de apresentação de queixa ao Provedor de Justiça. Em matéria de direitos fundamentais criados por lei, a 2.ª Secção desenvolveu o entendimento de que os mesmos só poderiam ser restringidos ou extintos por lei ordinária. Diferentemente, a 1.ª Secção do TC viria a reconhecer a relevância constitucional dos direitos fundamentais extraconstitucionais, ainda que sem aludir ao modo como chega a tal natureza (recepção ou outro equivalente), a partir do princípio da analogia com os direitos fundamentais constitucionais, advogando a aplicabilidade do seu regime material e formal. Em consequência deste entendimento, a extinção de tais direitos deveria ser fundamentada de forma exigente, ainda que por meio de lei, mas sendo afastada a livre supressão ou restrição. Uma outra questão que se coloca é a de saber que tipos de direitos fundamentais acolhe a cláusula aberta, isto é, tratar-se-ão apenas de direitos, liberdades e garantias, de direitos sociais ou de ambas as categorias? A doutrina divide-se nesta matéria. Para alguma doutrina existiriam argumentos que intuitivamente levariam a uma conclusão restritiva, no sentido de só se acolherem direitos fundamentais com a natureza de “direitos, liberdades e garantias”. Não é essa a posição de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA que referem que em matéria de extensão da abertura se deve entender que «a cláusula aberta colhe direitos fundamentais de qualquer natureza (direitos, liberdades e garantias; direitos económicos, sociais e culturais), não havendo nenhuma razão para reservá-la para os direitos equiparados aos direitos, liberdade e garantias»35. Invocando a natureza do Estado Social de Direito e já não do Estado liberal, JORGE MIRANDA entende que não tem cabimento a visão redutora, afirmando que «os direitos económicos, sociais e culturais (ou os direitos que neles se compreendam) podem e devem ser dilatados ou acrescentados para além dos que se encontrem declarados em certo momento histórico – precisamente à medida que a solidariedade, a promoção das pessoas, a consciência da necessidade de correcção de desigualdades (como se queira) vão crescendo e penetrando na vida jurídica. E porque esses direitos (ou grande parte deles) emergem como instrumentais em relação aos direitos, liberdades e garantias assegurados pela Constituição, quanto mais solidariedade mais segurança, e quanto mais condições de liberdade mais adesão à liberdade»36. No mesmo sentido milita a posição de PAULO OTERO que sustenta que «a cláusula aberta não se circunscreve a uma categoria de direitos fundamentais, antes se mostra susceptível de acolher as duas categorias consagradas pela Constituição: os direitos, liberdades e garantias e, por outro lado, os direitos económicos, sociais e 35) CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-1152). – CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição (Reimpressão), Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1522): 366. 36) MIRANDA, Jorge, «A abertura constitucional a novos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da SILVA, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-1286): [559-572]: 563. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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culturais»37. Original é a posição de ISABEL MOREIRA que, como já se aludiu supra, propugna uma “intuitiva leitura restritiva e não inimiga dos direitos sociais” da cláusula aberta, advogando uma «específica compreensão da eventual recepção pela cláusula aberta do princípio do não retrocesso social»38. Indica como factores condicionantes39 da “abertura” da cláusula aberta: i) O elemento histórico-genético do artigo 16.º, n.º 1 CRP 1976 – no processo de redacção e votação e discussão parlamentar do preceito manteve-se a redacção “limitadora” «direitos, liberdades e garantias», tendo tal expressão sido alterada, misteriosamente, no seio da Comissão sem que tenha mediado qualquer votação parlamentar. No mesmo sentido militariam os projectos iniciais das várias forças partidárias (políticas) que contribuíram para a redacção final40. ii) O elemento sistemático – o artigo 16.º precede o preceito que se refere ao regime dos direitos, liberdades e garantias, sem que essa precedência possa ser considerada, liminarmente, indiferente. «Isto porque, admitindo-se a opção restritiva, a sequencialidade dos preceitos é sistemática e materialmente mais compreensível. O artigo 17.º prescreve que o regime dos direitos, liberdades e garantias se aplica aos enunciados no Título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. Ora, se tais direitos fundamentais, pela função do preceito, são, naturalmente, direitos de liberdade, é ponto assente que os direitos de natureza análoga podem buscar-se em fontes infraconstitucionais. Esta asserção não pode deixar de sugerir que a sequencialidade atrás referida não é inocente. Primeiro temos um preceito que reconhece a existência de direitos fundamentais extraconstitucionais e, logo a seguir, temos um outro que explica qual o regime dos direitos análogos – que podem ser extraconstitucionais –, necessariamente a direitos, liberdades e garantias»41. iii) O argumento da natureza dos preceitos constitucionais – os preceitos consagradores de direitos sociais caracterizam-se pela sua especial indeterminação, enquanto reveladores de normas-tarefa, de conteúdo finalístico e conexas com as funções do Estado, o que, em linhas gerais, não se passa com os preceitos relativos a direitos de liberdade. Desse modo, a maior vaguidade dos preceitos consagradores de direitos sociais impede a sua aplicabilidade directa, a sua invocação imediata na falta de lei concretizadora, ao contrário dos direitos de liberdade, os 37) OTERO, Paulo, «Direitos históricos e não tipicidade pretérita dos direitos fundamentais», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1061-1090]: 1073. 38) MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 131. 39) MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 131-135. 40) Contra, como a autora bem reconhece, poder-se-ia invocar a estabilidade redaccional que tal preceito gozou após as diversas leis de revisão constitucional. 41) MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 132.

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quais, mais estreita e imediatamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e com uma determinabilidade constitucional superior, têm o regime específico previsto no artigo 18.º da CRP. Enquanto será porventura justificável, a partir de um critério de analogia material e de um critério de analogia procedimental, no sentido que o direito infraconstitucional, “na formulação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 150/85, esteja tão radicado na consciência jurídica colectiva, como elemento fundamental do ordenamento, que dele se possa dizer que verdadeiramente passou a integrar o bloco de constitucionalidade”, reconhecer um direito que, excepcionalmente, porque reunidos aqueles pressupostos, deve ser tido por análogo aos direitos de liberdade, a mesma operação, no que toca a direitos sociais, arrisca-se a ser contra-natura: os direitos sociais infraconstitucionais – como o direito ao rendimento mínimo – não têm, em termos de estrutura normativa, nada de análogo aos direitos sociais constitucionais. Estes últimos encontram-se em preceitos já caracterizados como mais vagos e imprecisos do que os que consagram direitos de liberdade, precisamente porque o seu conjunto corresponde a um projecto de realização social – havendo abertura a um princípio de efectivação dos mesmos sob reserva do possível – que não pode deixar de ter no legislador o protagonista principal. iv) A ausência de fundamento material suficiente para construir uma proibição de retrocesso social à margem da cláusula aberta (tese de RUI MEDEIROS). Pelo contrário, para além do argumento literal, haveria que não esquecer que a proibição de retrocesso social surge associada à concretização de normas constitucionais que consagram direitos sociais, sendo, assim, instrumental à tutela desses direitos. v) A omissão do legislador constituinte – a cláusula aberta seria útil para não excluir aqueles direitos que escapam, por temporalidade ou por competência lato sensu, aos constituintes e aos constituídos devidos: tal cláusula dirigir-se-ia primacialmente aos direitos pretéritos e aos direitos com fonte internacional. Em conclusão, a autora entende que a melhor interpretação para o artigo 16.º, n.º 1 CRP 1976 é a que este se refere « prima facie a direitos de liberdade, não se negando a possibilidade da recepção do princípio do não retrocesso social, apenas e só se a mesma for considerada nos termos restritivos apontados»42. Também em matéria de determinação de um critério operativo para a identificação dos preceitos extraconstitucionais análogos aos direitos, liberdades e garantias e respectivas consequências regimentais se detectam posições doutrinárias divergentes. Após advogar uma visão intuitivamente restritiva do âmbito de abertura da cláusula aberta, ISABEL MOREIRA adopta o critério misto da analogia material e procedimental. Próxima de tal posição é a de BLANCO DE MORAIS que entende que os direitos extravagantes devem ter uma «natureza rigorosamente análoga a direitos constitucionalizados, e dentro destes» que «ostentem», 42) MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 135. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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«pela sua essencialidade axiológica, o mais elevado regime de protecção»43. Para J. C. VIEIRA DE ANDRADE essa “analogia de natureza” deve respeitar cumulativamente dois elementos: «tratar-se de uma posição subjectiva individual ou de uma garantia que possa ser referida de modo imediato e essencial à ideia de dignidade da pessoa humana, isto é, que integre matéria constitucional dos direitos fundamentais; e poder essa posição subjectiva ou garantia ser determinada a um nível que deva ser considerado materialmente constitucional»44. Os comentadores MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO perfilham uma visão não-maximalista do tema, pois entendem que «apenas se devem considerar direitos fundamentais de natureza análoga as posições jurídicas constitucionais (ou, excepcionalmente, extra-constitucionais) cujo conteúdo tenha um mínimo de determinabilidade constitucional [v.g., os artigos 20.º, n.º 1, 21.º, 59.º, n.º 1, alínea d), 62.º, n.º 2, 103.º, n.º 3, 268.º, n.os 1 e 4, 280.º, n.º 1, alínea b)], ou as que correspondam a prestações jurídicas vinculadas ou, ainda, as que, pela respectiva estrutura, correspondam a direitos negativos ou de defesa (v.g., artigos 61.º e 62.º), desde que, num caso como no outro, tais posições apresentem ligação ao princípio da dignidade da pessoa humana»45. Por seu turno, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, entendem que «Se os direitos enunciados no direito internacional são de considerar, por princípio, como direitos «fundamentais», já os direitos constantes de leis internas só são de considerar direitos «fundamentais» quando assumam a mesma relevância – desde logo pela sua radicação ético-jurídica – que os direitos estabelecidos na Constituição (direitos fundamentais formalmente constitucionais)»46. No que respeita à questão do regime jurídico aplicável, a doutrina maioritária portuguesa entende que se deve estender parcialmente o regime dos direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais recebidos pela cláusula aberta, desde que enquadrados nos denominados direitos fundamentais de natureza análoga. Para J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, no que respeita à questão da aplicação ou não do regime dos direitos fundamentais formalmente constitucionais em bloco aos direitos só materialmente constitucionais, os mesmos entendem que se aplicará: «(…) o regime geral dos direitos fundamentais e, se for o caso, o regime dos direitos, liberdades e garantias, mas já é questionável a aplicação de todo o regime dos direitos formalmente constitucionais. De qualquer modo, os princípios materiais das leis restritivas bem como os princípios densificadores do Estado de direito não podem deixar de ser aplicados (exemplos: princípio da legalidade na sua regulação, princípio da proporcionalidade na 43) MORAIS, Carlos Blanco de, Direito Constitucional II, Relatório, Suplemento, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-370):179. 44) ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2004: (1-424): 198. 45) SOUSA, Marcelo Rebelo de/ALEXANDRINO, José de Melo, Constituição da República Portuguesa Anotada, Edições Jurídicas – LEX, Lisboa, 2000: (1-548): 94-95. 46) CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-1152): 366.

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sua restrição, princípio da não retroactividade, princípio da salvaguarda do núcleo essencial)». E, mais adiante, na anotação ao artigo 17.º, ponto V, referem que os direitos constitucionais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias onde quer que estejam sediados na Constituição compartilham seguramente do regime constitucional próprio destes em todos os seus aspectos materiais. Todavia, entendem os comentadores que «Já não é tão seguro que compartilhem também da dimensão orgânica desse regime, ou seja, competência legislativa reservada da AR (artigo 165.º-1). Por um lado, o artigo 17.º da constituição não distingue, havendo toda a vantagem que tais direitos também gozem da reserva parlamentar de lei, com tudo o que lhe é inerente em matéria de formação da vontade legislativa (publicidade e acompanhamento da opinião pública, contraditório Governo-oposição, etc.). Por outro lado, porém, podem aduzir-se três argumentos contra este entendimento: (i) isso arrastaria um enorme alargamento da esfera de reserva legislativa do governo; (ii) esse alargamento teria fronteiras bem pouco nítidas, dada a dificuldade em delimitar a esfera própria dos direitos fundamentais aos direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o que causaria frequentes litígios de competência; (iii) se a referida alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º abarcasse também os direitos fundamentais de natureza análoga então não faria sentido que esse mesmo artigo incluísse várias outras alíneas que têm justamente a ver com tais direitos, como sucede, por exemplo, com a expropriação por utilidade pública (al. g), e a nacionalização dos meios de produção (al. l), o que só pode querer dizer que não estariam incluídos por força da al. b)»47. JORGE MIRANDA apresenta uma evolução não despicienda na compreensão do problema regimental aplicável aos direitos fundamentais análogos. Num primeiro momento não vê qualquer obstáculo «em admitir direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias apenas previstos na lei (ou em fontes de direito internacional): desde que sejam direitos fundamentais para efeito do artigo 16.º, também o podem ser para o efeito do artigo 18.º. Mas (…) não faria sentido aplicar a esses direitos o regime orgânico nem (claro está) o dos limites materiais de revisão constitucional»48. Relativamente ao regime material e à aplicabilidade em bloco do que vigora para os direitos, liberdades e garantias, JORGE MIRANDA pronuncia-se de forma “mitigadamente positiva”, pois refere: «mal se concebe que um direito criado por lei não possa ser extinto por lei, se bem que a extinção de um direito criado por lei careça de motivação particularmente exigente, não desproporcionada em relação ao interesse público invocado para o justificar». Depois, entende que «por menos exigente que se seja quanto à medida em que o regime constitucional é aplicável aos direitos análogos de origem legal, sempre restará como um mínimo irremissível a proibição de restrições injustificadas ou despro47) CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-1152): 374-375. 48) MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 2.ª Edição (Reimpressão), 1998: (1-485): 156-157. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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porcionadas»49. Na 3.ª edição do seu Manual JORGE MIRANDA veio clarificar que se um direito é criado por lei, sendo o mesmo um direito fundamental, «por reflectir o sentido próprio da Constituição material, e como a sua formulação representa mais um passo na realização desta, torna-se inadmissível ou extremamente difícil de conceber que ele possa depois vir a ser suprimido, salvo, porventura, situação excepcional ou revisão constitucional»50. Quanto à expressão “lei” reitera o entendimento da 2.ª Edição do Manual, ao referir que terá de tratar-se de uma lei da Assembleia da República51 quando a criação de um novo direito se repercutir, directa ou indirectamente, em alguns dos direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I da CRP 1976. Uma outra posição doutrinária de relevo é a de J. CASALTA NABAIS52 que, partindo de dados jurisprudenciais do TC, defende a extensão parcial do regime dos direitos, liberdades e garantias, que abrangeria apenas o seu regime material. Já em matéria de extinção de direito extraconstitucional análogo aos direitos, liberdades e garantias, ela seria admissível desde que tal direito não haja sido, entretanto, constitucionalizado por uma determinada revisão constitucional ocorrida ou passado o período ordinário de revisão sem que a mesma tenha lugar. Tais direitos ficariam arredados do requisito de que as restrições se encontrassem expressamente previstas na CRP 1976 e da aplicação do regime orgânico do artigo 165.º, alínea b) CRP. Uma outra posição doutrinária, típica dos que advogam um critério apertado de identificação de direitos, liberdades e garantias extraconstitucionais, é a da aplicação total do regime específico de tais direitos. Navega nessas águas, CAPELO DE SOUSA53 que, ao abordar a temática dos direitos (especiais) de personalidade, entende que todo54 o regime dos direitos, liberdades e garantias deve ser aplicado aos direitos extraconstitucionais análogos. Por seu turno, J. C. VIEIRA DE ANDRADE ao abordar a temática da aplicabilidade, além do regime material, do regime orgânico49) Para uma visão crítica deste primeiro posicionamento, pode consultar-se: MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 139-140. 50) MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 3.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 2000: (1-563): 169. MIRANDA, Jorge, «A abertura constitucional a novos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da SILVA, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-1286): [559-572]: 565. 51) Contra tal entendimento se pronunciam: GOUVEIA, Jorge Bacelar, Os Direitos Fundamentais Atípicos, Aequitas Editorial Notícias, Lisboa, 1995: 337. OTERO, Paulo, «Direitos históricos e não tipicidade pretérita dos direitos fundamentais», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1061-1090]: 1075. 52) NABAIS, José Casalta, «Os Direitos Fundamentais na Jurisprudência do Tribunal Constitucional», separata do BFDUC, 1990, p. 12-13. O mesmo texto pode ser consultado em: NABAIS, José Casalta, Por uma liberdade com responsabilidade, Estudos sobre direitos e deveres fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-392): [9-60]. 53) SOUSA, Rabindranath Capelo de, «A Constituição e os Direitos de Personalidade», in: AAVV. Estudos sobre a Constituição, 2.º Volume, Livraria Petrony, Lisboa, 1978: (1-493): [93-196]: 195-196. 54) O que vale para matéria da reserva da Assembleia da República.

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formal (reserva de competência da AR e limites materiais de revisão constitucional) dos direitos, liberdades e garantias aos direitos análogos, nos termos do artigo 17.º, entende não existirem razões suficientes para concluir que tal normativo não se refira à globalidade do regime. Seria a analogia substancial com os direitos, liberdades e garantias que, na sua óptica, justificaria que também os direitos abrangidos gozem dos diversos aspectos desse regime, incluindo as garantias da irrevisibilidade e da protecção resultante da reserva de lei formal. Todavia, flexibilizando a sua posição, apesar de lhe parecer estranho à primeira vista, entende não ser impensável a aplicação global do regime, ainda que na medida do possível e, portanto, com as necessárias adaptações, aos direitos análogos previstos na lei e nas normas internacionais. Em abono da sua posição advoga vários argumentos ao nível da matéria da reserva parlamentar (i), dos limites impostos às restrições legislativas (ii), à subordinação do legislador às normas internacionais (iii) e à garantia contra o poder de revisão (iv)55. HENRIQUE MOTA entende que se aplicam aos direitos fundamentais extraconstitucionais análogos aos direitos, liberdades e garantias o regime destes últimos, nomeadamente a reserva orgânica, a proporcionalidade das restrições (princípio da constitucionalidade e princípio do não retrocesso normativo) dentro do condicionalismo do direito positivado em fonte infraconstitucional e à luz do quadro do regime das restrições56. De outro lado, encontramos uma visão minimalista. É o caso de CARLOS BLANCO DE MORAIS que refere que «num plano jurídico-positivo, a solução deve passar pela aceitação de que o n.º 1 do artigo 16.º, constitui 55) «Quanto à reserva parlamentar (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º), por exemplo, não é logicamente absurdo, nem é novidade, que um preceito constante de um decreto-lei (p. ex., do Código Civil) não possa ser modificado ou revogado por outro decreto-lei, tanto mais que o primeiro decreto-lei será naturalmente anterior à Constituição e terá provindo, por isso, de um outro poder, com uma esfera de competência diferente. «Quanto aos limites impostos às restrições legislativas (artigo 18.º) e à consequente vinculação do legislador a normas legais, por imposição ou indicação de preceitos constitucionais, é hoje uma realidade normativa consagrada na figura das leis reforçadas (v. o n.º 3 do artigo 112.º, e as alíneas a) do n.º 2 do artigo 280.º e b) do n.º 1 do artigo 281.º) e, de qualquer modo, não repugna, desde que se aceite que, embora positivados em diplomas de legislação comum, estes direitos pertencem à «constituição material» e gozam, no plano de validade, da autoridade superior à das leis ordinárias. De resto, mesmo a necessidade de previsão expressa do poder de restrição estabelecida no n.º 2 do artigo 18.º não será inaplicável, se for referida, como entendemos possível, a valores consagrados na Constituição. «Por seu turno, a subordinação do legislador às normas internacionais é já defendida pela doutrina dominante em face do artigo 8.º e parece indiscutível, por força do artigo 17.º, no que respeita às normas de direito itnernacional geral ou convencional que contenham direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias. «Quanto à garantia contra o poder de revisão, a alínea d) do artigo 288.º pode ser entendida como a proibição de introdução no texto constitucional de um preceito que diminua o alcance do conteúdo essencial desses direitos fundamentais legais ou internacionalmente análogos aos direitos, liberdades e garantias, em termos de os fazer desaparecer ou de os desfigurar. Esta posição pressupõe o entendimento – que sempre foi o nosso – de que os limites materiais de revisão correspondem ao núcleo essencial que confere identidade de sentido à Constituição em sentido material, que naturalmente se estende aos direitos, liberdades e garantias substancialmente análogos aos enunciados no catálogo». ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2004: (1-424): 200-201. 56) MOTA, Henrique José Moreira da, Biomedicina e Novos Direitos do Homem, Lisboa, 1998: (1-): 233 e seguintes. Sobre o mesmo tema pode consultar-se a dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas do autor: Biomedicina e novos direitos do homem – uma aplicação do princípio da não tipicidade dos direitos fundamentais, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 1988. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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uma cláusula de recepção constitucional a direitos extravagantes de natureza rigorosamente análoga a direitos constitucionalizados, e dentro destes, apenas os que, pela sua essencialidade axiológica, ostentem o mais elevado regime de protecção, e que são os direitos, liberdades e garantias». Por tudo isso, defende uma «extensão limitada aos mesmos do regime do artigo 18.º e do artigo 19.º da CRP, no que respeita à eficácia directa e à protecção dos mesmos direitos (mormente em matéria de restrições, no que respeita aos limites configurados na segunda parte do n.º 2 e ao n.º 3 do artigo 18.º). Direitos que, em razão da sua natureza formalmente legislativa, podem ser extintos a todo o tempo, observado o princípio constitucional da protecção da confiança»57. Diferentemente, os comentadores MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO constatam que «o aparecimento de novos direitos poderá descobrir-se em leis parlamentares, em normas de direito internacional e em normas costumeiras», ainda que advoguem, relativamente aos direitos do passado, e só nessas específicas situações, que os mesmos surjam em decretos-leis. Advogam o combate a uma ideia em voga de que «é saudável e normal a criação irrestrita de direitos fundamentais», porque «cada novo direito funcionará sempre como um limite aos direitos já estabelecidos, e nem aos Parlamentos se pode consentir liberdade excessiva ou desproporcionada nesse domínio»58. Num outro nível se situa a abordagem do tema por parte de PAULO OTERO, dado que o autor a limita aos direitos fundamentais consuetudinários e aos de matriz histórica. O autor pretende saber em «que medida a projecção pretérita do princípio da não tipicidade em matéria de direitos fundamentais poderá funcionar como cláusula de salvaguarda de direitos históricos e, deste modo, a Constituição abrir as portas a verdadeiras derrogações ou compressões vindas do passado ao alcance de certas normas ou princípios constitucionais do presente»59. Para este autor, a expressão “leis” do artigo 16.º, n.º 1 CRP 1976, identifica-se com o conceito de norma jurídica, abrangendo a cláusula aberta em matéria de direitos fundamentais também os direitos que tenham origem em fonte consuetudinária60 ou regulamentar. Relativamente a esta última – fonte regulamentar –, socorrendo-se de posições doutrinárias de AFONSO QUEIRÓ61 e SÉRVULO CORREIA62, entende que fora dos domínios da re57) MORAIS, Carlos Blanco de, Direito Constitucional II, Relatório, Suplemento, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-370): 179. 58) SOUSA, Marcelo Rebelo de/ALEXANDRINO, José de Melo, Constituição da República Portuguesa Anotada, Edições Jurídicas – LEX, Lisboa, 2000: (1-548): 72. 59) OTERO, Paulo, «Direitos históricos e não tipicidade pretérita dos direitos fundamentais», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1061-1090]: 1065. 60) Justifica a sua posição afirmando: «é chocante que se entenda que o costume interno não pode ser fonte de direitos fundamentais para efeitos do princípio de não tipicidade e se admita, por sua vez, que o costume internacional, enquanto fonte das “regras aplicáveis de direito internacional” (CRP, artigo 16.º, n.º 1), possa já habilitar a relevância de direitos extraconstitucionais». OTERO, Paulo, «Direitos históricos e não tipicidade pretérita dos direitos fundamentais», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1061-1090]: 1080. 61) QUEIRÓ, Afonso Rodrigues, «Teoria dos Regulamentos», Revista de Direito e Estudos Sociais, 1980: 11 e seguintes.

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serva de lei a Constituição admite o exercício de um poder regulamentar com base nela mesma. Na ausência de uma prévia intervenção legislativa em espaços situados fora da reserva de lei, o Governo encontra-se habilitado, à luz do artigo 199.º, alínea g) CRP 1976, a emitir regulamentos rigorosamente independentes. Daí que o autor advogue a criação de direitos fundamentais por via de qualquer fonte infraconstitucional. Na sua perspectiva o n.º 1 do artigo 16.º da CRP é uma cláusula de ampliação pretérita das fontes do sistema constitucional, havendo que ter em conta a aplicação pacífica das respectivas normas e, concretamente, em analogia com o artigo 282.º, n.os 3 e 4 de normas de direito ordinário contrárias à Constituição63. Por último, cumpre expor a perspectiva de ISABEL MOREIRA que entende que a «única fonte infraconstitucional admissível como consagradora de direitos extravagantes é, à parte dos direitos pretéritos formalizados em decreto-lei e dos direitos de origem internacional, a lei em sentido formal». Por isso, a autora rejeita o entendimento segundo o qual se podem encontrar direitos fundamentais, inclusive direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias, em qualquer fonte normativa infra-estadual, o que acarretaria a diabólica consequência de um direito daquela natureza poder ser criado por um regulamento municipal, mas só merecer regulamentação posterior de autoria parlamentar, ou governamental, mediante lei de autorização. Por outro lado, fazendo jus da interpretação limitativa da cláusula, preconiza que mesmo a criação de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias por lei da AR se afiguraria difícil de conceber, quer perante a extensão do sistema constitucional, quer pela sua juventude. Além disso, os diversos mecanismos de abertura sistémica impelem a autora para o entendimento da admissibilidade de aplicação do regime orgânico aos direitos, liberdades e garantias, desde que tais direitos fundamentais análogos se configurem, à semelhança do que preconizam MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO como «posições jurídicas constitucionais cujo (…) conteúdo tenha um mínimo de determinabilidade constitucional (…) ou as que correspondam a prestações jurídicas vinculadas, ou ainda, as que, pela respectiva estrutura, correspondam a direitos negativos ou de defesa (….), desde que, 62) CORREIA, José Manuel Sérvulo, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Colecção Teses, Livraria Almedina, Coimbra, 1987: (1-822): 208 e seguintes. 63) Criticando esta tese, podem consultar-se: MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 145-147. A autora invoca (i) uma diferença abissal entre a relevância do costume no direito internacional e no direito interno; (ii) Fragilidade da permissa de que o artigo 16.º não estabelece condições materiais limitativas das fontes de direitos atípicos, admite que aquele preceito possibilita a relevância constitucional de direitos fundamentais decorrentes de normas legais ou consuetudinárias contra constitutionem objecto de uma longa e pacífica aplicação, contornando o disposto no artigo 290.º da CRP 1976. JORGE MIRANDA entende que não parece admissível a convivência de duas ideias de direito dentro do mesmo país; e a de não se poder extrapolar as regras contidas no artigo 282.º, n.os 3 e 4 – «regras correctivas e de âmbito bem circunscrito, senão excepcional – para uma derrogação do artigo 290.º, n.º 2, a título permanente». MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 3.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 2000: (1-563). 171. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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num caso como no outro, tais posições apresentem ligação ao princípio da dignidade da pessoa humana»64. A autora conclui o seu raciocínio do seguinte modo: «A partir do momento em que se adopta uma visão restritiva da cláusula aberta – quanto aos direitos pela mesma recebidos; quanto ao critério da respectiva identificação; quanto às fontes infraconstitucionais que se crê admissível convocar –, não se encontra razão alguma para negar aos direitos extraconstitucionais análogos aos direitos de liberdade a aplicação da globalidade do regime dos direitos, liberdades e garantias. O artigo 17.º em nada limita essa extensão, pelo que, as conclusões restritivas a que se foi chegando resultaram, precisamente, da constatação deste regime. Crê-se vivamente que os problemas dogmáticos que uma matéria jurídico-constitucional possa levantar devem, se possível, procurar linhas de solução a partir do respectivo regime. No fundo, acaba-se com o princípio. Se não se encontra, nem se adere às teses que o fazem, fundamento constitucional para restringir teleologicamente a letra do artigo 17.º, então só pode estar em causa a aplicação ampla referida, incluindo a garantia da irrevisibilidade prevista na alínea d) do artigo 288.º da CRP, entendida “como proibição de introdução no texto constitucional de um preceito que diminua o alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais legais ou internacionais análogos aos direitos, liberdades e garantias, em termos de os fazer desaparecer ou de os desfigurar”. Em remate final, a autora conclui que o «artigo 16.º, n.º 1 poderia, talvez, em tese, absorver ao artigo 17.º da CRP, ficando a questão do regime a cargo da jurisprudência com apoio nos elementos que sejam razoavelmente seguros na doutrina»65.

2.3.1.2.2 O significado e implicações da “interpretação em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem” (artigo 16.º, n.º 2 CRP 1976): a dupla regra da interpretação conforme Além do problema da cláusula aberta, o artigo 16.º, n.º 2 CRP 1976 (: «Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem»)66 coloca-nos o problema de averiguar qual é o estatuto constitucional da Declaração Universal dos Direitos do Homem e qual é papel que a mesma desempenha em sede de interpretação dos direitos fundamentais. Questiona-se, 64) SOUSA, Marcelo Rebelo de/ALEXANDRINO, José de Melo, Constituição da República Portuguesa Anotada, Edições Jurídicas – LEX, Lisboa, 2000: (1-548): 94-95. 65) MOREIRA, Isabel, «Por uma leitura fechada e integrada da cláusula aberta dos direitos fundamentais», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [113-153]: 150. 66) A fonte originária do preceito podemos encontrá-la no artigo 11.º, n.º 2 do Projecto do Partido do Centro Democrático Social: «Portugal adopta como sua a Declaração Universal dos Direitos do Homem, devendo todos os preceitos constitucionais e legais ser interpretados, integrados e aplicados de harmonia com essa Declaração, cujo texto em protuguês é publicado em anexo a esta Constituição e dela faz parte integrante». Para maiores desenvolvimentos, nomeadamente relativamente ao contributo do Partido Popular Democrático, para esta matéria, pode consultar-se: MIRANDA, Jorge, Fontes e trabalhos preparatórios na Constituição, Colecção Estudos Portugueses, Edições ICM, Lisboa, 1978: (1-512): 236.

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igualmente, como deve ser resolvida a contradição entre o disposto na Constituição e os princípios constantes da Declaração Universal. Face ao princípio da interpretação em conformidade, deverá advogar-se que as normas da DUDH prevalecem sobre as normas constitucionais?67 O problema não pode ser analisado sem abordar uma outra questão: existirá ou não, em matéria de direitos fundamentais, uma dupla regra da interpretação conforme? A interpretação constitucional dos direitos fundamentais deve ser levada (sempre) em conformidade com a Constituição (1.º momento) e em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (2.º momento), com a prevalência daquele primeiro momento a não ser nos casos em que o 2.º momento surja como consagrador de um nível de protecção mais elevado. Tratar-se-ia de proceder ao alargamento do “bloco da constitucionalidade em matéria de direitos fundamentais”, ex vi DUDH (ou mesmo CEDH), por força do disposto no artigo 16.º, n.º 1 CRP que configuraria um desvio justificado ao princípio geral da interpretação em conformidade com a Constituição sempre que o direito fundamental seja consagrado e interpretado de forma mais abrangente e protectora num daqueles instrumentos internacionais mencionados. Tal interpretação mais abrangente, de um direito fundamental idêntico aos constitucionalmente consagrados, levaria a uma “apropriação” desse lastro jurisprudencial interpretativo e normativo do TEDH ou TJ, para surgir, aos olhos do TC português, como parâmetro orientador da fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas. Quanto ao problema do estatuto constitucional da Declaração Universal dos Direitos do Homem, importa referir que estamos perante uma declaração das Nações Unidas, sem qualquer força jurídica, mas que, a pouco e pouco, procedeu a uma verdadeira universalização dos direitos (fundamentais) do homem. Para J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA68 a interpretação de tal preceito deve reger-se por duas ideias fundamentais. Por um lado, (a) uma ideia de subsidiariedade – o recurso à Declaração, como base interpretativa e integrativa dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais, não dispensa o intérprete e aplicador do direito da necessidade de recorrer, em primeiro lugar, de acordo com as regras hermenêuticas, à ordem constitucional dos direitos fun-

67) Na resposta a estas questões, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS entendem que: «Há que distinguir consoante a norma constitucional seja originária ou proveniente de revisão e consoante o princípio da Declaração Universal seja de jus cogens ou não. No primeiro caso, nunca haverá inconstitucionalidade. Não é inconstitucionalidade a contradição com o jus cogens – por definição supraconstitucional. E se o princípio não for de jus cogens, o que acontecerá então será a retracção do alcance da Declaração; a norma constitucional (a considerar especial ou excepcional e a ser interpretada restritivamente) subtrai ao domínio da Declaração determinada matéria ou zona de matéria entre todas que nela recaem. Pelo contrário, na segunda hipótese, o fenómeno reconduz-se a inconstitucionalidade, porque o poder de revisão constitucional é um poder constituído, subordinado aos princípios fundamentais da Constituição; e, indubitavelmente, a Declaração Universal incorpora alguns desses princípios, verdadeiros limites materiais de revisão, mesmo para além das alíneas d) e e) do artigo 288.º». MIRANDA, Jorge/MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Introdução Geral, Preâmbulo, Artigos 1.º a 79.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2005: (1-753): 142. 68) CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-1152): 367. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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damentais; (b) uma ideia de não constitucionalidade da Declaração – ela não assume a natureza de direito constitucional, visto que a Constituição não efectua aqui uma recepção da Declaração enquanto tal, antes remete para ela como parâmetro exterior. Se alguns dos princípios consagrados nesta Declaração forem, como é entendimento comum, também normas de direito internacional (consuetudinário ou convencional), então serão estas normas que vigorarão na ordem interna portuguesa, de acordo com o artigo 8.º, como verdadeiro direito internacional, com a hierarquia que lhe cabe na nossa ordem jurídica. Quanto ao alcance a atribuir ao princípio (constitucional) da interpretação em conformidade com a DUDH, os autores entendem que abrange os seguintes aspectos: (a) no caso de polissemia ou plurissignificação de uma norma constitucional de direitos fundamentais, deve dar-se preferência àquele sentido que permita uma interpretação conforme à Declaração Universal; (b) na «densificação» dos conceitos constitucionais relativamente indeterminados referentes a direitos fundamentais (ex.: dignidade humana, direito de asilo, direito a existência digna) deve recorrer-se ao sentido desses conceitos na Declaração Universal, sobretudo quando se trata de decidir sobre actos de autoridades estrangeiras para efeitos de reconhecimento no plano interno (pedido de asilo, pedido de extradição, reconhecimento de governos, etc.). Concordamos com GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA69 quando referem que o princípio da interpretação conforme à DUDH e o preenchimento de conceitos indeterminados de acordo com ela, deve ser paralizado sempre que, com o seu uso, se chegue a um sentido constitucionamente inadmissível. Devem ser postergadas as interpretações que contrariem o texto e a razão de ser de determinada norma constitucional bem com a função e contexto do conceito constitucional indeterminado. De igual modo, será de abandonar a “interpretação conforme à DUDH” sempre que a mesma conduza a uma solução interpretativa mais desfavorável aos direitos fundamentais do que aquela que resultaria do texto constitucional. Fala-se em princípio da preferência de aplicação das normas consagradoras de um nível de protecção mais elevado. Trata-se de um princípio que encontra consagração nos artigo 53.º e 52.º, n.º 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C 364/01)70 onde se prescreve que nenhuma disposição normativa «deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar Direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito Internacional e as Convenções Internacionais em que são partes a União, a Comunidade e todos os Estados-Membros»71. O que se pode questionar é se, ao nível da conformação 69) CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-1152): 367-368. 70) Publicado no Jornal Oficial das Comunidades, C 364, de 18 de Dezembro de 2000, páginas 1-22, acedido e consultado, em 2005-08-23, na URL: <http://www.europarl.eu.int/charter/pdf/text_pt.pdf>. 71) Refira-se que o mesmo princípio é consagrado no artigo 53.º da CEDH: «Nenhuma das disposições da presente Convenção será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos do homem e as liberdades fundamentais que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela seja parte».

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do “bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais”, a DUDH pode servir de parâmetro “ampliador” de determinado direito fundamental e, por essa via, levar a um juízo de censura de uma determinada norma jurídica da ordem interna portuguesa, quer esse direito fundamental exista já ou não neste ordenamento jurídico. Julgamos que é de admitir que a DUDH sirva de parâmetro constitucional de interpretação, nomeadamente procedendo a um alargamento do âmbito do actual bloco da constitucional em matéria de direitos fundamentais, bem como seja usada para fins de integração, quer se trate de lacunas de previsão de certos direitos, quer de se trate de lacunas de regulamentação. Um último ponto merece a nossa atenção e é o que se prende com o recurso à DUDH para introduzir restrições (não expressamente previstas) nos direitos fundamentais constantes do catálogo da CRP 1976. Em matéria de direitos fundamentais, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, apenas são admissíveis restrições nos casos expressamente previstos na CRP 1976. Deste modo, alguma doutrina e jurisprudência entende que, ainda que a CRP 1976, relativamente a um determinado direito fundamental, não reconheça a possibilidade de restrição, a mesma poderia ser levada a cabo através da invocação do normativo do artigo 29.º, n.º 2 da DUDH. Contra este entendimento, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA argumentam do seguinte modo: i) o sentido constitucional da norma do artigo 16.º é de alargar e não restringir a cobertura constitucional dos direitos fundamentais; ii) em matéria de «direitos, liberdades e garantias» a Constituição é explícita ao exigir que as eventuais restrições legais estejam «expressamente previstas na Constituição» (artigo 18.º, n.º 2), pelo que o mesmo ficaria inutilizado se se admitissem restrições fora dos casos previstos na Constituição; iii) a DUDH não especifica qualquer caso de restrições admissíveis aos direitos nelas previstos, pois limita-se a prever uma cláusula geral de limitação aos direitos fundamentais (artigo 29.º, n.º 2 da DUDH); iv) a DUDH nem sequer estabelece directamente quaisquer restrições, limitando-se a autorizar que os ordenamentos nacionais as prevejam, os quais, naturalmente, só poderão fazer nos termos da respectiva Constituição, que, entre nós, exige que ela mesma preveja tais restrições; v) à objecção da evolução doutrinária no sentido de se admitirem restrições não expressas a direitos fundamentais no texto constitucional, dir-se-á que as mesmas pressupõem o balanceamento entre bens (ou valores) constitucionais (reserva constitucional do bem)72. Aplicando a regra da dupla conformidade, acima sumariamente exposta, igualmente chegaríamos à conclusão que referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, no sentido de inadmissibilidade de restrições aos direitos fundamentais a partir do artigo 29.º, n.º 2 da DUDH, pelo facto do 2.º momento da interpretação conforme (conformidade com a DUDH) violar o 1.º momento (conformidade com a Constituição), pois introduz um cânone interpretativo “inimigo dos direitos fundamentais” dado que restringe o âmbito de aplicação do direito fundamental. 72) CANOTILHO, José Joaquim Gomes/MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-1152): 368-369. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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2.3.2 O espaço europeu global: a “Constitucionalização” dos direitos fundamentais da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 2.3.2.1 Breve resenha histórico-evolutiva No seio do Conselho da Europa, em 4 de Novembro de 1950, foi adoptada a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que consagra, no seu Título I – Direitos e Liberdades, um catálogo de direitos e princípios fundamentais, de onde se salientam: i) o direito à vida (artigo 2.º), ii) a proibição de tortura (artigo 3.º), a proibição da escravatura e do trabalho forçado (artigo 4.º), direito à liberdade e à segurança (artigo 5.º), direito a um processo equitativo (artigo 6.º), o princípio da legalidade (artigo 7.º), o direito ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 8.º), o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (artigo 9.º), a liberdade de expressão (artigo 10.º), a liberdade de reunião e de associação (artigo 11.º), o direito ao casamento (artigo 12.º), o direito a um recurso efectivo (artigo 13.º), a proibição de discriminação (artigo 14.º), o princípio da autorização excepcional de derrogação em caso de estado de necessidade (artigo 15.º), restrições à actividade política dos estrangeiros (artigo 16.º), proibição de abuso de direito (artigo 17.º), limitação da aplicação de restrições aos direitos (artigo 18.º). Do Protocolo Adicional n.º 4 à CEDH, nos termos do artigo 11.º, n.º 1 pode, ainda, desenraizar-se a proibição de prisão por dívidas. A maioria dos direitos consagrados na CEDH, sobretudo após a Lei de Revisão Constitucional n.º 1/97, foram “constitucionalizados”. Todavia, tal não retira relevância à problemática de saber como se integram tais direitos na ordem interna e qual é a relevância dos tribunais portugueses efectuarem uma interpretação ou aplicação dos direitos fundamentais constantes da CEDH de uma forma menos abrangente do que aquela que vem a ser levada a cabo pela jurisprudência do TEDH.

2.3.2.2 A integração da Convenção Européia dos Direitos do Homem no “bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais” 2.3.2.2.1 Recepção, âmbito, hierarquia e natureza (força) jurídica da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 8.º, n.º 2 e 16.º, n.º 1 CRP 1976) A Convenção Europeia dos Direitos do Homem assume relevância na ordem interna através da sua recepção, quer por via do artigo 8.º, n.º 2, quer por intermédio do artigo 16.º, n.º 1 da CRP. Cumpre referir que o Estado Português, bem como os tribunais portugueses, se encontram obrigados a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes (artigo 46.º, n.º 1 CEDH) e que, por outro lado, se consagrou o princípio da salvaguarda dos direitos do homem reconhecidos por outra via, nos termos do artigo 53.º: «Nenhuma das disposições da presente Convenção será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos do homem e as liberdades fundamentais que tiverem 36

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sido reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela seja parte». A primeira questão que se coloca é a de saber, à luz do teor e “espírito” subjacente à cláusula aberta, se os direitos fundamentais da CEDH não terão uma força vinculativa indirecta, em sede de interpretação, para todos os tribunais portugueses como a que ocorre por força da DUDH. De facto, se um determinado tribunal nacional interpretar um direito fundamental consagrado simultaneamente na CRP 1976 e na CEDH (como será o caso do direito à reserva da intimidade da vida privada previsto, simultaneamente, nos artigos 26.º CRP e 8.º CEDH), de uma forma menos ampla do que a que é levada a cabo pela jurisprudência do TEDH, poderá a mesma ser sindicada ao nível do Tribunal Constitucional, já que se sabe que, nesse caso, sempre estará aberta a via para o TEDH após exaustão dos recursos internos? Dever-seá apelar aqui para o nível de protecção mais elevado? O que é certo é que ao efectuar uma interpretação “restritiva” do âmbito do direito fundamental – ao aderir à interpretação do TEDH –, o tribunal nacional arrisca-se a ver a sua decisão a ser alvo de recurso para o TEDH e, consequentemente, a contribuir para a condenação do Estado português, por força do disposto no artigo 46.º, n.º 1 CEDH e consequente reformulação da decisão judicial e eventual indemnização pelos prejuízos sofridos.

2.3.2.2.2 A tutela jurisdicional da CEDH: o nascimento de um “triângulo judiciário” [europeu] A tutela jurisdicional da CEDH cabe primacialmente ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, encontrando-se a matéria da sua composição, competência e organização regulamentada no Título II – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, abrangendo os artigos 19.º a 51.º da CEDH. O que não significa que outras instâncias judiciais não possam levar a cabo tal tutela, será o caso dos tribunais nacionais dos Estados signatários73. Todavia, no seio da 73) Alguma doutrina entende que as relações entre o juiz constitucional e o TEDH não colocam os problemas de «delimitação» ou de «fronteira» que se colocam com o juiz comunitário, mas sim problemas de «concorrência» necessária entre as duas instâncias em matéria de protecção dos direitos fundamentais. O juiz constitucional (e o juiz ordinário nacional) não estariam vinculados à jurisprudência do TEDH, excepto na medida em que uma decisão deste, nos termos da CEDH, tenha de ser acatada pelo Estado português e portanto pelo seu juiz constitucional. Acresceria a tudo isso o facto de não estar previsto qualquer mecanismo processual de revisão da decisão jurisdicional interna (incluindo a do Tribunal Constitucional) transitada em julgado que o TEDH considere violadora da CEDH, de tal modo que o significado prático dessa vinculação se diluiria consideravelmente. Temos sérias dúvidas que tal interpretação do relacionamento entre o TC e TEDH seja dessa forma tão “irrelevante”, nomeadamente atendendo ao disposto no artigo 46.º CEDH que obriga ao respeito definitivo das sentenças, logo, ainda que tenha transitado em julgado determinada sentença, seja ela do TC ou tribunal comum, deve entender-se que a mesma deve ser (extraordinariamente) revista e conformada de acordo com a sentença do TEDH, sob pena de violaçao de um princípio elementar em matéria de Tratados: Pacta sunt servanda (artigo 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados). ARAÚJO, António de/BRITO, Luís Miguel Nogueira de/COSTA, Joaquim Pedro Cardoso da, «As relações entre os tribunais constitucionais e as outras jurisdições nacionais, incluindo a interferência, nesta matéria, da acção das jurisdições europeias, XII Coneferência dos Tribunais Constitucionais Europeus (Bruxelas, Maio de 2002)», 2002: (1-70), acedido e consultado, em 2007-07-25, na URL: <http://www.confcoconsteu.org/reports/Portugal-PT.pdf> ou na URL: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos020108.html?impresao=1>. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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União Europeia, a pouco e pouco, o TJCE assumiu-se, igualmente, como guardião da CEDH, no âmbito do seu afã de criação, por via pretoriana, de um catálogo de direitos fundamentais para as “Comunidades Europeias”. Pode dizer-se que sob a alçada da CEDH nasce um “triângulo judiciário europeu” entre o TJ, TEDH e os tribunais (constitucionais) nacionais dos Estados Europeus participantes naquele instrumento internacional. Deste modo, coloca-se o problema de saber quem é que, em última instância, tem competência para dirimir os conflitos que surjam na aplicação da CEDH e em que termos se procede o relacionamento entre o TJCE e o TEDH. Não podemos esquecer que não existem modelos politicamente assépticos74 em matéria de protecção dos direitos fundamentais, pelo que importa identificar os critérios que têm guiado o Tribunal de Justiça na afirmação de um determinado modelo de protecção, a partir da “apropriação pretoriana” do catálogo de direitos fundamentais constante da CEDH. O TJCE tem vindo a assumir a competência para fiscalizar, em estreita cooperação com os tribunais nacionais, a compatibilidade dos actos normativos dos Estados-Membros com o catálogo de direitos fundamentais desenraizados da CEDH, assinada, em 4 de Novembro de 1950, em Roma. Detecta-se, deste modo, que os particulares podem obter do TJCE uma protecção efectiva contra os actos legislativos e regulamentares, lesivos dos seus direitos fundamentais, ainda que não imputáveis à “Comunidade Europeia” mas aos seus Estados-Membros, sem que isso signifique, ao mesmo tempo, a inviabilidade do recurso aos tribunais constitucionais nacionais e ao TEDH para atingir esse mesmo desiderato. Importa, neste ponto, verificar os contornos da evolução jurisprudencial do TJCE que o levaram a considerar-se competente em matéria de direitos fundamentais75. O critério de extensão desta competência operou a partir da ideia de que as «disposições de direito nacional que se situam no âmbito de aplicação do direito comunitário».

2.3.3 O espaço europeu regional: a “Constitucionalização” dos direitos fundamentais da União Europeia – da “Jurisprudência pretoriana” à Carta Européia dos Direitos Fundamentai 2.3.3.1 Breve resenha histórico-evolutiva O Tratado que instituiu a Comunidade Económica Europeia76, assinado em Roma em 25 de Março de 1957, não contém qualquer catálogo de direitos fundamentais. Não admirará que se aluda, por isso, a uma integração pretoria74) DUARTE, Maria Luísa, «A União Europeia e os Direitos Fundamentais – Métodos de Protecção », in: AAVV, Portugal-Brasil Ano 2000, Tema Direito, STVDIA IVRIDICA 40 – Colloquia 2, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra, 1999: (1-461): [27-49]: 29. 75) Entende-se, por “direito fundamental” os direitos reconhecidos e garantidos por normas superiores de uma determinada ordem jurídica e que são essenciais para a existência e o conteúdo dos outros direitos que a integram. 76) De “Tratado de Roma” viria a transformar-se em “Tratado da Comunidade Europeia” após as alterações introduzidas pelo Tratado da União Europeia, celebrado em Maastricht em 7 de Fevereiro de 1992.

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na de um catálogo de direitos fundamentais77. Isso não significa, no entanto, que não se possam detectar algumas normas no Tratado de Roma que contribuam, de forma directa ou indirecta, para a protecção dos direitos fundamentais78. Não restam dúvidas de que somente a partir de uma via pretoriana o TJ viria a reconhecer e consagrar uma tutela efectiva aos direitos fundamentais no espaço da “Comunidade Europeia”. O primeiro passo dessa “caminhada pretoriana” é dado com o Acórdão de 4 de Fevereiro de 1959 – Storck/Alta Autoridade (Processo C-415/93)79 – que foi proferido no âmbito do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Questionado sobre a legitimidade de um acto imperativo da Alta Autoridade que violava o direito fundamental ao livre desenvolvimento e o direito à livre escolha de profissão, com consagração na Constituição Alemã (artigos 2.º e 12.º), o TJ esgrimiu a argumentação de que a sua missão era apenas a de garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação do Tratado e dos regulamentos de execução . Desse modo, entendia que não lhe competia pronunciar-se sobre as normas (constitucionais) internas dos Estados-Membros nem sobre as eventuais infracções cometidas pelos órgãos da Comunidade relativamente a tais direitos. Não admira que alguma doutrina logo se tenha apressado a entender que o TJ se demitia da missão de garantir o respeito pelos direitos por entender que tal tarefa cabia afinal aos tribunais nacionais. Mau grado esse primeiro revés, a ordem jurídica comunitária viria a ganhar, pretorianamente, um catálogo de direitos fundamentais à custa da acção jurisprudencial do TJ. Essa “viragem jurisprudencial” inicia-se com o Acórdão de 12 de Novembro de 1969 – Stauder/Ulm (Processo 29/69)80 – que procedeu à descoberta ou levantamento progressivo de um catálogo não escrito de direitos fundamentais em tudo semelhante ao que vigora na ordem interna de cada Estado-Membro e que viria a servir como “bloco de constitucionalidade” parametricial para aferir da validade dos actos jurídicos adoptados pelo Conselho e pela Comissão da Comunidade Europeia. Assistia-se à «constitucionalização do Tratado, ou seja, para a conversão deste

77) PIÇARRA, Nuno, «A competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias para fiscalizar a compatibilidade do direito nacional com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Um estudo de Direito Constitucional», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1393-1440]: 1395 e seguintes. MOREIRA, Vital, «A “constitucionalização”dos direitos fundamentais na União Europeia (UE)», in: AAVV, Esstudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003: (1-1227): [814-848]: 814 e seguintes. 78) É o caso do artigo 164.º que impele o TJCE para uma missão de «assegurar o respectivo do direito na interpretação e aplicação do presente tratado», o que significará uma protecção indirecta dos cidadãos através da correcta aplicação do direito. O mesmo se diga do artigo 7.º que consagra o princípio de proibição de discriminações em razão da nacionalidadde. Por seu turno, o artigo 40.º protege os produtos e consumidores de produtos agrícolas contra discriminações. O artigo 119.º estabelece o princípio da igualdade remuneratória independentemente do sexo. Por último, os artigos 48.º, 52.º e 59.º abarcam a matéria da proibição de discriminações em razão da nacionalidade nos sectores do trabalho assalariado, do estabelecimento e da prestação de serviços, visando remover entraves não discriminatórios nesses sectores. 79) Colectânea, p. I - 4291. 80) Colectânea 1969-1970, p. 157, Ponto 7. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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na «carta constitucional de uma Comunidade de Direito»81. Da sua actividade jurisprudencial82 o TJ procedeu à fixação de um conjunto de princípios83 com vista ao enquadramento da protecção dos direitos fundamentais: i) Os direitos fundamentais da pessoa contam-se entre os princípios gerais do direito comunitário cuja observância é garantia pelo TJ; ii) A protecção desses direitos deve ser garantida tendo em conta a estrutura e os objectivos da Comunidade; iii) Tal protecção inspira-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, bem como nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais relativos à protecção dos direitos do homem em que os Estados-Membros cooperam ou a que aderiram, com especial destaque para a CEDH; iv) Não podem ser admitidas na Comunidade medidas incompatíveis com os direitos fundamentais assim reconhecidos e garantidos. As violações de direitos fundamentais por parte de acções dos órgãos da Comunidade só pode ser apreciada no contexto próprio do ordenamento comunitário, de tal modo que nos casos em que o TJ é chamado a pronunciar-se pela violação de um direito fundamental consagrado na constituição de um EstadoMembro ele limita-se a «analisar se não terá sido violada qualquer garantia análoga, inerente ao direito comunitário»84. Com o artigo F, n.º 2 do Tratado da União Europeia verifica-se uma “constitucionalização da jurisprudência do TJ”, dada que aí se refere que a «União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário»85. A viragem jurisprudencial do TJ, em matéria de protecção de direitos fundamentais, ancorou-se nalgumas ideias-chave:

81) PIÇARRA, Nuno, «A competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias para fiscalizar a compatibilidade do direito nacional com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Um estudo de Direito Constitucional», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1393-1440] 1399. 82) Acórdão Stauder/Ulm de 12 de Novembro de 1969 – Processo 29/69, Colectânea 1969-1970, p. 157, Ponto 7; Acórdão Internationale Handelsgesellschaft/Einführ- und Vorratsstelle Getreide de 14 de Maio de 1974 – Processo 11/70, Colectânea 1969-1970, p. 625, Ponto 4; Acórdão Nold/Comissão de 13 de Dezembro de 1979 – Proceso 4/73, Colectânea 1974, p. 283, Ponto 13; Acórdão Haeur/Land da Renânia-Palatinado – Processso 44/79, Colectânea, p. 3727, Ponto 15. 83) Seguimos, de perto, a síntese efectuada por: PIÇARRA, Nuno, «A competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias para fiscalizar a compatibilidade do direito nacional com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Um estudo de Direito Constitucional», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1393-1440]: 1399. 84) Acórdão Internationale Handelsgesellschaft/Einführ- und Vorratsstelle Getreide de 14 de Maio de 1974 – Processo 11/70, Colectânea 1969-1970, p. 625, Pontos 3 e 4. 85) E, isto, apesar de, paradoxalmente, ser denegada a competência do TJ para a aplicação do citado artigo F, n.º 2, conforme dispões o artigo L.

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i) Visão do direito comunitário como um corpo normativo directa e uniformemente aplicável no conjunto das ordens jurídicas dos Estados-Membros, afirmando-se o seu primado contra quaisquer normas internas contrárias86. ii) A competência dos tribunais comuns de certos Estados-Membros (Alemanha e Itália, neste estádio evolutivo das Comunidades Europeias), sob a autoridade máxima de um Tribunal Constitucional, para fiscalizar a compatibilidade das normas aplicáveis aos litígios que lhes são submetidos a julgamento com os direitos fundamentais consagrados nas respectivas constituições. Por tudo isto, a aplicação uniforme do direito comunitário (primário e secundário) no «espaço judiciário europeu» só ficaria garantida mediante a verificação de dois requisitos: i) Exigência de que os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros se abstivessem de desaplicar ou invalidar as disposições do Tratado e os actos adoptados pela comunidade, sempre que os reputassem contraditórios aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados nas suas ordens internas; ii) Exigência de que o TJ “solidariamente” e em “contrapartida” dessa abstenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, assumisse a competência para invalidar actos de fonte comunitária com fundamento em violação de direitos fundamentais. Os principais princípios em matéria de protecção jurisdicional dos direitos fundamentais foram estabelecidos pelo TJ, não no âmbito do “recurso de anulação” (artigo 173.º Tratado)87, mas no âmbito do artigo 177.º88 que se configurou como a “pedra angular” do sistema jurisdicional comunitário ao nível das questões prejudiciais de interpretação e de validade de normas de fonte comunitária, remetidas pelos tribunais dos Estados-Membros com um sistema de controlo jurisdicional de constitucionalidade. Saliente-se que na “fase de arranque” não faltaram contributos de alto valor para a solidificação da jurisprudência protectora do TJ em matéria de direitos fundamentais. Pela sua importância, cumpre referir as implicações da decisão de 29 de Maio de 197489 do Bundesverfassungsgericht que teve origem no Acórdão do TJ Internationale Handelsgesellschaft e onde o mesmo assumiu a competência para fiscalizar os actos da Comunidade. Podem apontar-se as seguintes conclusões de tal jurisprudência: i) Afirmação da competência para aferir da inconstitucionalidade de um regulamento comunitário, enquanto a ordem jurídica comunitária não se encontrar dotada de um catálogo de direitos fundamentais de origem parlamentar e equiparável ao existente na Constituição Alemã; ii) Renúncia genérica ao exercício dessa competência enquanto a Comunidade e o TJ garantirem uma protecção eficaz dos direitos fundamentais perante os poderes de autoridade exercidos pelos respectivos ór86) Para tal contribuiu a seguinte jurisprudência: i) Acórdão Van Gend & Loos/Administração Fiscal de 5 de Fevereiro de 1963 – Processo 26/62, Colectânea 1962-1964, p. 205, 212; ii) Acórdão Costa/ENEL de 15 de Julho de 1964 – Processo 6/64, Colectânea 1962-1964, p. 549, 555. 87) Apesar de tudo, o citado Acórdão Nold foi proferido ao abrigo deste artigo. 88) Foi o caso dos acórdãos: Stauder, Internationale Handelsgesellschaft, Haeur. 89) Entscheidungen des Bundesverfassungsferichts (BVerfGE), 37, p. 271 e seguintes. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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gãos, equiparável no essencial à que é assegurada pela Constituição Alemã; iii) Limitação progressiva de tal renúncia, exceptuando, num primeiro momento, a competência para fiscalizar plenamente a constitucionalidade das normas internas adoptadas em execução de directivas comunitário e declarando, posteriormente, que a sua competência relativa à protecção dos direitos fundamentais não abrange apenas os actos praticados pelos órgãos do Estado alemão. Um desenvolvimento semelhante levou a cabo a Corte Costituzionale Italiana, através do Acórdão de 27 de Dezembro de 197390, ao fazer prevalecer os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados sobre o direito comunitário. Aqui chegados, fica sumariamente identificado o quadro processual dentro do qual o TJ é chamado a apreciar a compatibilidade de actos legislativos e regulamentares dos Estados-Membros com a CEDH, no quadro das respostas a questões prejudiciais de interpretação do direito comunitário remetidas pelos tribunais nacionais. O TJ anunciou a sua competência para fiscalizar a compatibilidade do direito nacional com a CEDH, no ponto 42 do Acórdão ERT, do seguinte modo: «Na medida em que uma regulamentação nacional entre no âmbito de aplicação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça, chamado a decidir a título prejudicial, deve fornecer todos os elementos de interpretação necessários à apreciação, pelo órgão jurisdicional nacional, da conformidade daquela regulamentação com os direitos fundamentais cujo respeito o Tribunal garante, tal como resultam, em especial, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem». O TJ viria a pronunciar-se em diversos casos relativamente à compatibilidade de normas ou regulamentos dos Estados-Membros com a CEDH: i) Acórdão Cinéthèque/Fédération Nationale des Cinémas Français, de 11 de Julho de 1985, onde se discutiram as disposições do artigo 89.º da Lei de 29 de Julho de 1982, regulamentada pelo Decreto de 4 de Janeiro de 1983. Tais normas estabelecem um período de carência de um ano antes que qualquer obra cinematográfica explorada em salas de espectáculos possa ser objecto de exploração simultânea por videocassetes. O litígio consistia em saber se tais disposições lesavam o artigo 30.º do Tratado (livre circulação de mercadorias) e artigo 10.º CEDH (liberdade de expressão). Face a isto, o TJ declarou: «se é certo que incumbe ao Tribunal de Justiça garantir o respeito pelos direitos fundamentais no âmbito próprio do direito comunitário, já não lhe cabe, porém, examinar a compatibilidade, com a Convenção Europeia, de uma lei nacional que se situa, como no caso concreto, num âmbito da competência do legislador nacional (Ponto 26)». A doutrina crítica apressou-se a referir que incoerentemente ficava fora do direito comunitário matéria a ele tipicamente pertinente e que tal arresto se configurava como um retrocesso jurisprudencial. ii) Acórdão Rutili/Ministro do Interior, de 28 de Outubro de 1975, o TJ declarou que no contexto comunitário o conceito de «razões de ordem pública» devia ser entendido estritamente, pelo que o seu alcance não podia ser determinado unilateralmente por cada um dos Estados-Membros sem controlo dos órgãos da Comunidade. São de duas ordens os desenvolvimentos jurisprudenciais que daqui se retiram: primeiro, o TJ poderia vir 90) Giurisprudenza Costituzionale, 1973, p. 2401.

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a considerar-se competente para, na falta de regras específicas de direito comunitário, apreciar a compatibilidade, com o «princípio mais geral consagrado pelos artigos 8.º, 9.º, 10.º e 11.º da CEDH», das medidas legislativas ou regulamentares dos Estados-Membros derrogatórias não só à liberdade de circulação dos trabalhadores (artigo 48.º, n.º 3), mas igualmente à liberdade de estabelecimento (artigo 56.º), liberdade de circulação de mercadorias (artigo 36.º) e liberdade de prestação de serviços (artigo 66.º); segundo, tornar tal competência fiscalizadora extensiva aos actos legislativos e regulamentares dos Estados-Membros restritivos de liberdades comunitárias fundamentais (nomeadamente nos casos dos artigos 30.º, 48.º, 52.º e 59.º). De especial relevo na evolução jurisprudencial do TJ, merecem destaque tópico, e sem carácter exaustivo, pela sua relevância, os seguintes acórdãos: i) Acórdão Demirel/Schwäbisch Gmünd – Processo 12/8691, de 30 de Setembro de 1987; ii) Acórdão Johnston/Chief COnstabele of the Royal Ulster Constabulary – Processo 222/8492, de 15 de Maio de 1986; iii) Acórdão Klensch/Secrétaire d´État – Processos Apensos 201 e 202/8593, 25 de Novembro de 1986; iv) Acórdão Wachauf/Bundesamt für Ernährung und Forstwirtschaft – Processo 5/88, de 13 de Julho de 1989; v) Acórdão Bostock de 24 de Março de 1994. A evolução jurisprudencial identificada coloca a nu as dificuldades da exacta delimitação do âmbito de competência fiscalizadora do TJ no que toca à conformidade do direito nacional com a CEDH. De todas as maneiras, o reconhecimento de tal competência, em matéria de protecção dos direitos fundamentais, não nos pode levar a esquecer o papel que as ordens constitucionais nacionais detêm a esse nível. O TJ terá maior competências naqueles Estados-Membros onde os particulares não obtêm uma protecção “interna” idêntica à que ocorre no âmbito comunitário. É óbvio que isso não se verificará, em regra, nos Estados-Membros dotados de “fortes” e “activos” tribunais constitucionais. Apesar de ser possível – e nalguns casos desejável – que o TJ fiscalize a compatibilidade com a CEDH das disposições nacionais que se situam no âmbito de aplicação do direito comunitário, isso não pode prejudicar a eventual submissão das mesmas ao pleno controlo de constitucionalidade por parte dos respectivos Tribunais (constitucionais) nacionais. Um outro problema que se pode levantar, no “triângulo judiciário europeu”, é o da articulação entre o TJ e o TEDH. O problema ganhou relevo quando o TJ interpretou que o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio (artigo 8.º, n.º 1 CEDH) apenas abarcaria o domicílio privado das pessoas singulares daí se excluindo as instalações comerciais das empresas. O TEDH, por seu turno, teve entendimento completamente oposto. Se o conflito se verificasse entre um Tribunal Nacional e o TEDH, não restariam dúvidas que a última palavra caberia àquela alta instância europeia. Mas como resolver um conflito entre o TJ e o TEDH, sendo certo que a Comunidade Europeia não é parte contratante da CEDH? Uma solução seria a de defender a irrecorribilidade, para o TEDH, de uma decisão 91) Colectânea, p. 3179. 92) Colectânea, p. 1651. 93) Colectânea, p. 3477. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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relativa a actos imputáveis à Comunidade. Estaria, com tal entendimento, aberta a porta para que os Estados signatários da CEDH se subtraíssem às suas obrigações mediante a transferência de competência para a entidade jurisdicional da Comunidade Europeia. Tal conclusão é afastada por uma decisão de inadmissibilidade de um recurso interposto contra um acto nacional de execução do direito comunitário. Em abono de tal entendimento esgrimiram-se os seguintes argumentos: i) A CEDH não proíbe as partes contratantes de transferir competências para uma organização internacional; ii) Porém, tal transferência não pode excluir a responsabilidade das partes pelo exercício das competências de que se trate; iii) Torna-se necessário que no âmbito da organização internacional em questão de direitos fundamentais sejam protegidos de uma forma idêntica à que é garantida no âmbito da CEDH; iv) A Comunidade Europeia e a jurisprudência do TJ garantem uma protecção eficaz dos direitos fundamentais relativamente aos poderes de autoridade exercidos pelos respectivos órgãos. De tudo isto, poderá concluir-se que nem o TEDH pode fiscalizar o exercício dos poderes transferidos pelos Estados-Membros para os órgãos da Comunidade, nem os particulares que se considerem afectados nos seus direitos fundamentais por actos imputáveis à Comunidade podem impugná-los perante as instituições encarregadas de assegurar o respeito da CEDH94.

2.3.3.2 A integração da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais no “bloco da constitucionalidade” dos direitos fundamentais 2.3.3.2.1 Recepção, âmbito, hierarquia e natureza (força) jurídica da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (artigos 8.º, n.os 3 e 4, 7.º, n.º 6 CRP 1976) A evolução, alargamento e aprofundamento da integração comunitária, nas suas diversas etapas, conhece, com a Carta Europeia dos Direitos do Homem95, 94) Não espanta, por isso, que se tenha verificado uma tentativa de aproximação e adesão das Comunidades Europeias à CEDH. Tal proposta de adesão, da autoria da Comissão, de 4 de Abril de 1979 foi, posteriormente, renovada em 19 de Dezembro e 26 de Outubro de 1993. O Parlamento Europeu mostrou-se favorável à adesão através da Resoluçlao de 18 de Janeiro de 1994. Por seu turno, o Conselho submeteu ao TJ um pedido de parecer acerca da compatibilidade com o Tratado do projecto de adesão da Comunidade à CEDH, nos termos do artigo 228.º, n.º 6 do Tratado. O TJ emitiu o parecer desfavorável em 28 de Março de 1996, invocando que a Comunidade apenas dispõe de competência de atribuição, para actuar a nível interno e internacional, mas sem que exista qualquer disposição do Tratado que confira aos órgãos da Comunidade competência específica, expressa ou implícita, para aprovar normas em matéria de direitos do homem ou para celebrar convenções internacionais neste âmbito. Deste modo, a não ocorrer qualquer revisão do Tratado, ficaria inviabilizada a adesão da Comunidade àquele texto internacional. Parecer 2/94, de 28 de Março de 1996, Colectânea 1996, pI1786, par. 17-18. Sobre a matéria pode consultar-se: SOARES, António Goucha, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, A Protecção dos Direitos Fundamentais no Ordenamento Comunitário, Coimbra, Editora, Coimbra, 2002: (1-159): 23-30. 95) Importa sublinhar que a Carta Europeia se encontra sujeita a uma “cláusula de não retrocesso”, em matéria de direitos fundamentais, nomeadamente relativamente à CEDH, Convenções Internacionais sobre a matéria, Tratados ou Declarações Internacionais e Constituições dos Estados-Membros. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, «Compreensão Jurídico-política da Carta», in: RIQUITO, Ana Luísa/VENTURA, Catarina Sampaio/ANDRADE, José Carlos Vieira de/CANOTILHO, José Joaquim Gomes/GORJÃO-HENRIQUES, Miguel/RA

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um novo desenvolvimento, dado que voltam à ribalta, com maior acuidade, as questões do relacionamento entre o direito comunitário e o direito constitucional dos Estados-Membros e a compatibilização da jurisdição do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e os tribunais internos competentes para a aplicação e salvaguarda da Constituição, como é o caso do Tribunal Constitucional português. Para se aferir do tipo de relacionamento que se estabelece entre a jurisdição comunitária e a constitucional portuguesa, importa identificar a natureza da relação que se estabelece entre as normas «substantivas» de fonte comunitária e as de fonte interna. Costuma falar-se em primazia (ou princípio do primado) do direito comunitário sobre o direito nacional e do seu fundamento. É neste contexto que deve ser abordada a questão da repartição de tarefas entre os tribunais internos de cada Estado-Membro e o Tribunal de Justiça das Comunidades, ao nível da garantia e harmonização da “ordem jurídica global” aplicável em cada um dos países da União Europeia. Para a solução deste problema, importa analisar o conjunto de regras e princípios constitucionais que respeitam à recepção no foro interno de normas de outros domínios jurídicos (I), como é o caso do comunitário, bem como as demais normas constitucionais relativas ao regime e sistema de controlo da constitucionalidade (II). A recepção das normas de Direito Comunitário é levada a cabo, no nosso ordenamento jurídico, a partir do artigo 8.º da CRP. Num primeiro nível, surgenos o artigo 8.º, n.º 2 CRP, relativo ao direito internacional convencional em geral e que consagra a “recepção automática” no foro domestico daquele direito, aí se dispondo que «as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado português». Num segundo e terceiro níveis surge-nos a recepção, no direito constitucional português, essencialmente, do chamado “direito comunitário”. O artigo 8.º, n.º 3 CRP dispõe que «As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos». Por seu turno, o n.º 4 do artigo 8.º CRP refere que «As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático». Com a revisão constitucional de 1992, a CRP 1976 ganhou um artigo 7.º, n.º 6 que visou possibilitar a ratificação e aprovação do Tratado de Maastricht, aí se dispondo que «Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de MOS, Manuel Moura/MOREIRA, Vital, Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, Corpus Iuris Gentium Conimbrigae, 2, Coimbra Editora, Coimbra, 2001: (1-158): [13-15]: 14-15. Por outro lado, ela traduz um «empobrecimento», em matéria de direitos fundamentais, face ao catálogo da Constituição da República Portuguesa de 1976. MEDEIROS, Rui, «A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Estado Português», in, AAVV, Nos 25 Anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, Evolução Constitucional e Perspectivas Futuras, AAFDL, Lisboa, 2001: (1-680): [227-293]: 254. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial, de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da união europeia». A tudo isto acresce que, no que respeita ao controlo da constitucionalidade, a nossa ordem jurídica, optou por um modelo misto de controlo da constitucionalidade, que combina elementos do controlo concentrado e difuso, visto que se reconhece tal competência a um Tribunal Constitucional e a todos os demais tribunais judiciais portugueses, recaindo sobre todos eles a obrigatoriedade de apreciar a constitucionalidade de todas as normas jurídicas a aplicar nas suas decisões judiciais e cabe-lhes, ainda, recusar a aplicação das normas que considerem inconstitucionais (artigo 204.º CRP). De especial importância é o facto de se ter consagrado a recorribilidade de todas as decisões judiciais comuns que se pronunciem sobre a constitucionalidade de determinada norma jurídica para o Tribunal Constitucional (artigo 280.º). Além do domínio do controlo “concreto” da constitucionalidade de normas jurídicas, acresce um controlo “abstracto”, a requerimento de determinadas entidades públicas e com eficácia obrigatória geral (artigos 281.º e 282.º). No que respeita às convenções internacionais e às normas com o valor formal de lei fica abrangida a modalidade de controlo abstracto preventivo (artigos 278.º e 279.º CRP). Em matéria de âmbito do controlo da constitucionalidade não ficam excepcionadas quaisquer modalidades de normas, a não ser pela natureza do tipo de controlo, como ocorre com o controlo preventivo, visto que se abrangem todas as normas aplicáveis na ordem jurídica portuguesa. O controlo estende-se igualmente às normas que integram a ordem jurídica portuguesa por força da “recepção” das normas de direito internacional (convenções internacionais devidamente celebradas e ratificadas). O artigo 277.º, n.º 2 estipula uma excepção à plenitude do controlo normativo dos tribunais no que respeita aos “vícios de forma” dos tratados internacionais, devendo, no entanto, entender-se que ficam abrangidas as demais normas internacionais internamente recepcionadas por força do artigo 8.º CRP. De acordo com a doutrina e jurisprudência maioritárias96, o princípio do primado (ou primazia) do direito comunitário sobre o direito interno ordinário – legal – foi acolhido(a) pela CRP 1976, no artigo 8.º, n.º 2 que consagra a mencionada cláusula de recepção automática do direito internacional convencional. Daqui derivaria, de forma implícita, o princípio da superioridade hierárquica do direito convencional sobre o direito interno de nível legal. Desta constatação não restariam dúvidas de que todos os tratados de direito comunitário primário são direito convencional internacional e gozam da superioridade referida. O mesmo se deveria dizer relativamente ao direito comunitário derivado à luz do disposto no artigo 8.º, n.º 3 CRP 1976, «seja porque não faria sentido interpretar diferen96) Nesse sentido, a nível jurisprudencial, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Dezembro de 1991, em matéria da Directiva n.º 64/22, BMJ n.º 412: 229.

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temente ou atribuir um alcance diverso às duas disposições, seja sobretudo porque, remetendo esta segunda norma constitucional para os tratados constitutivos das organizações a que se reporta e reconhecendo o «efeito directo» do respectivo direito «derivado» na precisa medida em que esses tratados o estabeleçam, não pode deixar de receber também a «primazia» desse direito, a qual, do ponto de vista daqueles tratados, é inerente, como é óbvio, a um tal efeito»97. De qualquer modo, este posicionamento não retira relevância ao problema de saber como deve ser tratada a desconformidade de uma norma de direito interno ao direito comunitário (derivado). Estaremos perante a violação de um princípio constitucional? Para CARDOSO DA COSTA a solução parece ser linear à luz do actual sistema português de controlo da constitucionalidade. De facto, em caso algum a efectivação do primado do direito comunitário seria reservada ao TC ou retirada aos tribunais comuns. Tudo isto porque o TC, em matéria de questões de fiscalização da constitucionalidade, levantadas perante as jurisdições comuns, apenas actua a partir do momento em que já se verificou uma decisão judicial sobre a questão e por via de recurso. Por outro lado, a qualificar-se como questão de constitucionalidade a desconformidade do direito interno com o direito comunitário, tal não obstaria a que o tribunal interno português decidisse tal questão dando primazia ao direito comunitário. Daí que para CARDOSO DA COSTA o grande problema em matéria de efectivação do primado do direito comunitário é o de saber «se, podendo e devendo os tribunais comuns, ao aplicar o direito comunitário, conferir-lhe primazia sobre o direito legal, das correspondentes decisões (em qualquer dos sentidos) cabe recurso (e até recurso obrigatório) para o Tribunal Constitucional – e isso, desde logo, pelo facto de a incompatibilidade do direito interno com o direito comunitário dever igualmente ser qualificada ou tratada como «inconstitucionalidade». Se assim for, o primado do direito comunitário sobre o direito interno «comum» será assegurado, no âmbito do ordenamento jurídico português, em último termo, pelo Tribunal Constitucional; de outro modo, sê-lo-á exclusivamente pela jurisdição ordinária ou «comum»98. Apesar do TC já se ter pronunciado de forma divergente, ao nível de cada uma das suas secções, em matéria de saber se a incompatibilidade do direito interno com o direito convencional configura ou não uma questão de “inconstitucionalidade”, tal decisão não pode ser transposta, sem mais, para a presente temática. Existe mesmo um indicador que, com maior peso, em sede de desconformidade do direito interno com o direito comunitário, nos pode levar a rejeitar a qualificação de tal desconformidade como sendo uma “inconstitucionalidade”. Segundo CARDOSO DA COSTA, tal indicador adviria do facto de, diferentemente do que ocorre com a recepção do direito internacional convencional, a recepção 97) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1368. 98) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1370. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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do direito comunitário envolve(u) a “integração”, na ordem jurídica portuguesa, dos mecanismos institucionais que visam garantir a sua aplicação. De facto, não se pode negar que a ordem jurídica comunitária implementou uma instância jurisdicional vocacionada para a tutela do direito comunitário a interpretar e aplicar uniformemente pelos Estados-Membros. Daí que, para o citado autor, «seria algo incongruente que se fizesse intervir para o mesmo efeito, e no plano interno, uma outra instância do mesmo ou semelhante tipo (como seria o Tribunal Constitucional)» 99. Daí que não se devesse «reconduzir a contrariedade de uma norma interna com outra de direito comunitário a uma categoria ou um conceito dogmático cuja utilização ou aplicação na hipótese (…) implicaria retirar aos tribunais internos comuns a decisão definitiva daquela questão, na correspondente esfera»100. Apesar da decisão se afigurar sedutora, o certo é que a mesma implica que o TC renuncie a uma parte da sua competência fiscalizadora ao nível abstracto. Significa isto que o TC não pode, em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade, vir decretar erga omnes a ineficácia de uma norma interna com o direito comunitário e sua posterior eliminação da ordem jurídica portuguesa. Invocando um argumento da “necessidade da coerência interna do raciocínio”, deverá dizer-se que se o TC nega a qualificação do vício de desconformidade de uma norma de direito interno com o comunitário como sendo de “inconstitucionalidade”, então, ficará, em razão disso mesmo, excluída a sua competência para rever, em recurso, as decisões dos tribunais comuns sobre tal questão, em via de fiscalização abstracta da constitucionalidade, com a declaração, com eficácia geral da invalidade da norma interna impugnada101. O ordenamento jurídico português, em matéria de desconformidade de uma norma interna com uma convenção internacional, devidamente ratificada e aprovada (e publicada), pelo Estado português, consagra uma especificidade não desprezível no artigo 70.º, n.º 1, alínea i) da LOTC onde se dispõe que cabe recurso para o TC, em secção, das decisões: «Que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional». Com esta norma visa-se que pertença ao Tribunal Constitucional a «última palavra» nas questões jurídico-constitucionais e jurídico-internacionais pressupostas na decisão de desaplicar uma norma interna em desconformidade com a Convenção Internacional. Tais questões, segundo CARDOSO DA COSTA102, são duas: i) Ter o TC a última palavra sobre o 99) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1371. 100) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1371. 101) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1372.

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primado (ou não) do direito convencional sobre o direito legal; ii) Ter o TC a última palavra sobre a efectiva vigência (ou não) da convenção em causa in foro domestico. A questão que nos coloca o artigo 70.º, n.º 1, alínea i) da LOTC é a de saber se tal regra de competência do TC pode, sem mais, por analogia, ser alargada, estendida ou adaptada aos casos em que um tribunal comum português procede à desaplicação de uma norma legal interna por a mesma contender directamente com uma norma de direito comunitário. Para CARDOSO DA COSTA, a resposta negativa seria mais viável em matéria de direito comunitário derivado do que relativamente ao originário. Para tal refere: «(…) o primeiro não está abrangido directamente pela norma (como é claro), de modo que ocorre logo o argumento da natureza «especial» desta para não estender a sua aplicação a uma hipótese nela não contemplada; ao passo que o segundo, sendo direito internacional convencional, já o está, pelo que o seu afastamento da incidência da norma em causa exigirá, afinal, uma interpretação «restrita» ou «restritiva» dela: restará, então, saber se a consideração, atrás produzida, do significado e alcance específicos da «recepção» do direito comunitário na ordem interna portuguesa ainda aqui poderá invocar-se, como fundamento suficiente de tal «restrição» do âmbito do preceito»103. Apesar de nos parecer pertinente a argumentação desenvolvida, julgamos que o artigo 70.º, n.º 1, alínea i) LOTC consagra um princípio geral que deve ser “alargado”, ainda “dentro do âmbito da mesma excepcionalidade” às situações colocadas pela fiscalização do direito comunitário derivado, em nome do princípio do nível de protecção mais elevada vigente em matéria de direitos fundamentais.

2.3.3.2.2 O papel do Tribunal Constitucional no binómio: juiz nacional versus juiz comunitário Mais problemático se afigura a questão da relação do direito comunitário (originário, mas sobretudo do derivado) com o direito constitucional interno. Mesmo aqui, deverá considerar-se que opera o princípio do primado do direito comunitário? Podem identificar-se duas linhas discursivas diferenciadas na resposta a tal questão. Por um lado, o entendimento de que o TC deveria recusarse a apreciar a conformidade das normas do direito comunitário com o direito constitucional português, quer em nome do «primado» das normas “comunitárias”, quer em nome da “autonomia” do ordenamento comunitário. Por outro lado, o entendimento de que a Lei Fundamental portuguesa deveria prevalecer sobre as normas de direito comunitário. Face a estas alternativas, e tomando

102) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1373. 103) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1373. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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em linha de conta o papel de “guardião da Constituição”104 do TC e as normas sobre a fiscalização da constitucionalidade, aquela instância deveria aferir da conformidade das normas de direito comunitário com o direito constitucional interno na sua aplicação no foro domestico. O argumento fundamental adviria da conjugação do artigo 204.º e 277.º da CRP 1976, que impõe que todas as normas, inseridas no ordenamento jurídico português e aplicáveis pelos juízes portugueses, estão sujeitas ao controlo de constitucionalidade, não se vendo, por isso, como não incluir aí as normas de direito comunitário derivado105. Todavia, a norma do artigo 7.º, n.º 6 da CRP, ao consagrar o princípio da “soberania limitada”, pode impelir ao entendimento de que as normas de direito comunitário, aplicáveis na ordem interna, ficam excepcionadas do controlo de constitucionalidade. Com a adesão à União Europeia, o Estado Português reconheceria e aceitaria o seu edifício institucional, aí se abrangendo a instância jurisdicional comunitária criada para garantir que tal comunidade surja como uma “comunidade de direito”. Desse modo, ficaria a cargo da instância jurisdicional comunitária o exclusivo da competência «não apenas para concentradamente assegurar a «eficácia» do ordenamento comunitário (…), mas ainda para eventualmente aferir da «juridicidade» mesma das respectivas normas, isto é, da sua «validade» por referência a um quadro de valores jurídicos superiores»106. Trata-se de uma visão nitidamente a favor de uma perspectiva integracionista. Todavia, por mais sedutora que tal tese nos pareça, se se torna viável a limitação, nos termos referidos, da competência de fiscalização do TC, do que não se pode negar é que o mesmo não se pode “demitir” ou “abdicar” de salvaguardar o núcleo duro, essencial ou infungível da Constituição portuguesa. Todavia, mesmo aqui, a unidade do sistema comunitário pode ser atingida se, antes de se pronunciar pela inconstitucionalidade de uma norma do ordenamento comunitário, o TC “envolver” nessa decisão o TJCE através da submissão de tal matéria à questão de “interpretação e validade” do TJCE por intermédio do mecanismo 104) PETER HÄBERLE entende que esse papel cabe, não ao TC, mas essencialmente a «todos os cidadãos no seu conjunto». HÄBERLE, Peter, «O recurso de amparo no sistema germânico de justiça constitucional», Sub Judice – Justiça e Sociedade, «Justiça Constitucional», N.os 20/21, Janeiro/Junho de 2001: (1-220): [33-64]: 33. 105) CARDOSO DA COSTA afasta mesmo o argumento da inexistência de uma verdadeira e própria «recepção» dessas normas no ordenamento jurídico português, e que elas não constituiriam mais do que «um outro» ordenamento, paralelo a esse, igualmente aplicável no foro interno, e a que deve ser dada primazia, no caso de colisão entre ambos. Para tal invoca que «mesmo a aceitar-se que seja esta a melhor leitura do disposto no n.º 3 do artigo 8.º da Constituição, subsiste que se trata de normas que vão ser aplicadas na «ordem interna», pelo juiz nacional, e que por isso, seja a que título for, sempre «integram» conjuntamente e porventura em concorrência com normas de fonte nacional, o corpus normativo global aplicável no espaço jurídico português». COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1375. 106) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1375. 107) Sobre os actuais processos especiais de questões prejudiciais, pode consultar-se: QUADROS, Fausto de/ MARTINS, Ana Maria Guerra, Contencioso da União Europeia, 2.ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2007: (1-354): 124 e seguintes.

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do reenvio prejudicial107. Nesta visão das coisas, caberia ao TC português, em ultima ratio, o exercício do seu irrenunciável poder de controlo de constitucionalidade com vista a implementar na ordem jurídica portuguesa o princípio do primado do núcleo duro ou essencial da CRP 1976, com vista a obstar à sua desfiguração108. Contra esta tese poderiam invocar-se vários argumentos: i) Uma redução inadmissível da competência de controlo da constitucionalidade do TC; ii) Tal solução não é uniformemente viável em sede de controlo abstracto da constitucionalidade; iii) A não vinculação do TC pelo mecanismo do reenvio prejudicial. Julgamos que não devem proceder as apontadas objecções no que respeita à insólita «redução» da competência de controlo normativo do TC, visto que ela já encontraria na CRP 1976, um precedente expresso, que, ainda que de menor amplitude, não contende de todo com a «lógica constitucional»: trata-se da limitação do controlo da constitucionalidade que se verifica quanto aos tratados internacionais, nos termos do artigo 277.º. Por outro lado, a delimitação do “núcleo duro ou essencial” pode decifrar-se a partir do disposto no artigo 288.º que alude aos limites materiais à revisão da CRP 1976. No que respeita ao segundo argumento, a solução propugnada não encontra obstáculos em sede de fiscalização concreta, o mesmo já não ocorrendo ao nível da fiscalização abstracta da constitucionalidade, mas que, todavia, tais “obstáculos” poderão não se afigurar de todo intransponíveis. Quanto ao argumento da não vinculação do TC pelo mecanismo do reenvio prejudicial, sempre se dirá que a evolução jurisprudencial do mesmo, no seu Acórdão n.º 163/90109, é a de que também se lhe aplica o princípio da obrigação de «reenvio prejudicial» da correspondente «questão prévia» ao TJCE sempre que esteja em causa a interpretação ou validade e, consequente, eficácia de normas comunitárias. Face a tudo isto, que dizer do papel do TC face ao TJ e TEDH ao nível da manutenção do “nível mais elevado de protecção jurisdicional dos direitos fundamentais” no espaço judiciário europeu? Parece-nos que o reconhecimento do princípio do nível de protecção mais elevado em matéria de direitos fundamentais aliado à regra da dupla interpretação em conformidade (no nosso entendimento alargado: DUDH e CEDH) e do duplo reenvio prejudicial, poderiam levar a que o TC mantenha um papel activo, e não demissionário, na resolução dos litígios oriundos do reconhecimento do “bloco europeu de direitos fundamentais” e, por outro lado, evitaria “conflitos de competência” no eixo jurisdicional europeu (TJ e TEDH). Em complemento a esta perspectiva, como analisaremos de seguida, torna-se imprescindível a introdução de um recurso de amparo ou de queixa constitucional, já não apenas para a preservação do “bloco da constitucionalidade português” mas o “bloco constitucional europeu” em matéria de direitos fundamentais. 108) COSTA, José Manuel Moreira Cardoso da, «O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias», in: AAVV, AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998: (1-1446): [1363-1380]: 1377. 109) Processo n.º 154/89 – 2.ª Secção, relatado pelo Conselheiro MESSIAS BENTO, acedido e consultado, em 2007-08-28, na URL: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900163.html>. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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3 NOVAS EXIGÊNCIAS AO CONSTITUCIONALISMO: O RECURSO DE AMPARO (OU QUEIXA CONSTITUCIONAL)? 3.1 UM SISTEMA DE CONTROLO DA CONSTITUCIONALIDADE DEFICITÁRIO EM SEDE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A AUSÊNCIA DE RECURSO DE AMPARO CONSTITUCIONAL (OU QUEIXA CONSTITUCIONAL)

O grau de democraticidade, num verdadeiro Estado de Direito, mede-se pela aproximação à plenitude de protecção jurisdicional (comum e constitucional) contra todas as violações significativas dos direitos fundamentais. Olhando para a CRP de 1976, saída da Revolução de Abril de 1974, e após as várias “terapias” levadas a cabo pelas diversas leis de revisão constitucional, verifica-se que o actual sistema de protecção de direitos fundamentais, descontada a concorrência protectora oriunda do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o fenómeno da “constitucionalização” dos direitos advindos do seio da União Europeia, se afigura deficitário e profundamente desequilibrado. Impõe-se, por isso, um novo rumo ao sistema de fiscalização da constitucionalidade à luz das relações interconstitucionais que se travam em matéria de direitos fundamentais, no sentido de se obter uma efectiva protecção para as violações da Constituição que se traduzem numa insuportável afectação das posições jurídicas dos indivíduos. A violação dos direitos fundamentais, pelas mais diversas entidades (públicas e privadas), origina o problema de saber em que termos – e se são adequados! – os particulares podem aceder à justiça constitucional com vista à sua efectiva protecção. A nossa linha discursiva centrar-se-á sobre a modalidade da fiscalização concreta, visto que, hoje, é aí onde se identificam as maiores «deficiências, distorções e perversões do nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade»110. Os novos rumos do constitucionalismo, no dealbar do século XXI, projectam-se ao nível da justiça constitucional, de tal modo que se torna importante verificar se o actual sistema de controlo da constitucionalidade (não) deixa à margem do Tribunal Constitucional uma grande parte das mais significativas e correntes violações dos direitos fundamentais. Para comprovar esta afirmação, basta atentar no facto de que o actual sistema de controlo se encontra indexado à fiscalização de normas, o que leva à exclusão da alçada garantística do tribunal constitucional, do conjunto de inconstitucionalidades desencadeadas por violações ocorridas por força não de normas mas de decisões e actos individuais e concretos, praticados pelas mais diversas entidades públicas (o poder político, o poder judicial e a Administração). O problema é tanto mais sensível, ao nível dos direitos fundamentais, quanto os mesmos ficam desguarnecidos da tutela da justiça constitucional em todas as intervenções restritivas cuja lesão não tenha por base a inconstitucionalidade de uma norma. De facto, o Tribunal Constitucional só pode fiscalizar as normas restritivas de direitos fundamentais, ficando de fora todas as intervenções ablativas dos direitos funda-

110) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 159.

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mentais, sejam elas levadas a cabo pela Administração ou pelo poder judicial globalmente considerado. Concordamos com J. REIS NOVAIS111 segundo o qual os casos mais frequentes de violação pontual e concreta dos direitos fundamentais são os que ocorrem sem que na base e na causa do acto lesivo esteja uma (qualquer) norma inconstitucional. Nas modernas democracias, as leis restritivas de direitos fundamentais são consideradas inconstitucionais em raras situações. Para tal terão contribuído, segundo o citado autor, os seguintes factores: i) o reconhecimento consensual e progressivo da força normativa dos direitos fundamentais em Estado de Direito; ii) a ampla margem de conformação dos direitos fundamentais que é reconhecida ao legislador democrático; iii) porque a imprevisibilidade das circunstâncias reais de colisão entre direitos fundamentais e outros bens e as próprias necessidades de realização dinâmica dos direitos fundamentais obrigam frequentemente o legislador democrático a limitar o alcance da sua decisão, recorrendo a conceitos indeterminados, fórmulas gerais e remetendo expressamente para a Administração e para os tribunais a intervenção nos direitos fundamentais e a ponderação decisiva entre as necessidades da sua realização e as necessidades eventualmente opostas de realização de outros valores e bens dignos de protecção. Estranhamente, e mau grado a monumental abertura constitucional – artigo 16.º, n.º 1 CRP 1976 – à recepção dos direitos fundamentais “atípicos” ou “extraconstitucionais”, o legislador constituinte optou por arredar da tarefa de protecção “total” dos direitos fundamentais o “guardião dos guardiões” da Constituição – Tribunal Constitucional – aquele a quem cabe a nobre tarefa de interpretação, conformação e unificação dogmática do sentido dos direitos fundamentais no Estado de Direito português. Uma outra perplexidade advém da constatação de que a CRP 1976, no seu afã de se tornar “amiga dos direitos fundamentais”, consagrou – em clara reacção ao status quo do Estado Novo – um catálogo aberto de direitos fundamentais, introduzindo na ordem jurídica portuguesa uma cultura de direitos fundamentais que, contrariamente ao que pretendem os opositores da “plenitude máxima protectora dos direitos fundamentais junto do TC”, não se encontra suficientemente amadurecida, quer ao nível da sociedade, quer ao nível dos tribunais comuns, que justifique uma cega confiança nestas últimas jurisdições (comuns) e legitime um menosprezo do papel a desempenhar pela jurisdição constitucional nalgumas das vertentes – talvez uma das mais importantes – de garantia e protecção jurisdicional dos direitos fundamentais. Apesar de se reconhecer que a justiça constitucional se encontra histórico-genéticamente indexada à defesa da Constituição e, por isso, abrangendo os “direitos fundamentais (a)típicos”, o TC encontra-se somente legitimado para proteger os direitos fundamentais dos indivíduos perante intervenções normativas e já não perante a acção dos poderes constituídos conduzida por via normativa. Relativamente a estes últimos casos, dir-se-á que os particulares apenas podem bater à porta do TC, a título incidental, a partir de um caso judicial em que sejam parte e onde tenham suscitado uma questão de 111) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 160. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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inconstitucionalidade de uma norma. Isto significa que o particular-lesado pode igualmente ver o seu direito fundamental aniquilado ou seriamente ameaçado por intercorrência de um acto legislativo, sem que possa “legitimamente” entrar no pórtico da justiça constitucional. O TC surge-nos como o tribunal das “injustiças” em matéria de protecção de direitos fundamentais, visto que afasta do seu raio de acção, situações que mereceriam uma efectiva e plena tutela da sua parte. É certo que se pode argumentar – e (des)esperar (!) – que os tribunais comuns podem sindicar os actos, omissões pontuais, decisões individuais e concretas, bem como as demais intervenções restritivas na liberdade. De facto, as limitações do actual sistema, em matéria de defesa garantística dos direitos fundamentais, são notórias, dado que o cidadão apenas obterá tutela para os seus direitos fundamentais pela estreita janela da justiça constitucional configurada a partir do recurso contra decisões dos tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, bem como no caso de tal recurso se direccionar contra decisões que apliquem normas cuja constitucionalidade haja sido incidentalmente suscitada no respectivo processo judicial, restringindo-se, em ambos os casos, o recurso à questão da eventual inconstitucionalidade de tais normas. Se a Administração Pública ou os Tribunais praticarem actos que restringem, de forma desproporcionada e não justificada, os direitos fundamentais dos particulares, com directa lesão de princípios rectores do Estado de direito (princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da proporcionalidade, princípio da proibição do excesso, etc.), o particular fica impossibilitado de aceder e esgrimir tal violação junto do TC. O mesmo ocorrerá no caso de erróneas ponderações que contendam com os direitos fundamentais. O argumento da exaustão da cadeia dos tribunais judiciais não colhe se, a final, após penitência (e [im-]paciência), as violações aos direitos fundamentais persistirem. O problema pode, ainda, ser visto sob a vertente omissiva, isto é, se a intervenção restritiva do direito fundamental resultar de uma omissão da Administração ou dos órgãos jurisdicionais, e não contemplar, igualmente, o acesso à justiça constitucional. O sistema de fiscalização da constitucionalidade foi originariamente moldado na CRP 1976 de forma redutora e lesiva para os direitos fundamentais, daí que a Comissão Constitucional e, posteriormente, o Tribunal Constitucional tenham procedido a uma «exploração optimizada das possibilidades garantísticas». Para isso, adoptou-se uma concepção funcional de norma para efeitos de controlo de fiscalização: norma é um acto geral e abstracto e abrange, ainda, «toda e qualquer disposição contida em acto legislativo independentemente do seu conteúdo material»112. Por outro lado, o TC não se limitou a fiscalizar ape112) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 164. ALVES CORREIA, por seu turno, entende que o conceito de norma, para efeitos de fiscalização de constitucionalidade, tem sido alvo de uma densificação pela jurisprudência do TC de tal modo que ela abrange: «qualquer acto do poder público que contiver uma “regra de conduta” para os particulares ou para a Administração, um “critério de decisão” para esta última ou para o juiz ou, em geral, um “padrão de valoração de comportamento”. Trata-se de um conceitio simultaneamente formal e funcional de norma, que não abrange somente os preceitos de natureza geral e abstracta, antes inclui quaisquer normas públicas, de eficácia externa, independentemente do seu carácter geral e abstracto ou individual e concreto e, bem assim, de possuírem, neste

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nas a constitucionalidade das normas ordinárias quando consideradas objectivamente e em abstracto na sua relação com a norma constitucional, mas chamou a si a competência para fiscalização da constitucionalidade das normas na interpretação concreta que delas faz o juiz comum. Como salienta J. REIS NOVAIS113, o juiz constitucional pode deixar intocada a norma ordinária positiva, mas declará-la inconstitucional quando à mesma for dada, pelo juiz comum, uma determinada interpretação não conforme com a lei fundamental. É legítimo falar-se de uma evolução subjectivista em matéria de fiscalização da constitucionalidade e garantia dos direitos fundamentais. O TC procedeu ao alargamento – subjectivização –, de forma incomensurável e originariamente inimaginável, das suas possibilidades de intervenção fiscalizadora, dado que se passou a considerar competente não só para avaliar da “conformidade de uma norma”, mas, igualmente, de uma específica e determinada “interpretação concreta de uma norma”. Se isso não bastasse, o TC entendeu, nesse seu juízo de avaliação e sindicação constitucional do “sentido interpretativo judicial concreto”, abarcar não só as normas expressamente elencadas na fundamentação, mas, igualmente, aquelas que apenas se encontram latentes ou implícitas no juízo final decisório judicial. A justiça constitucional, numa linha de aprofundamento da protecção garantística, em sede de controlo da constitucionalidade, atribuiu uma benesse – “compensação”114 – aos cidadãos, visto que a toda a decisão judicial está subjacente uma determinada interpretação jurídica de uma norma, pelo que bastaria ao particular-lesado, invocar que o juiz ordinário aplicou uma determinada norma com um sentido interpretativo inconstitucional para poder ultrapassar, com sucesso, o pórtico do Tribunal Constitucional.

3.2 As “virtualidades” e “dificuldades” do actual sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade Em sede de protecção constitucional dos direitos fundamentais verifica-se a existência dalgumas “virtualidades” e “dificuldades” ao nível do sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade. Do lado das “dificuldades”, apontamse a impossibilidade de defesa dos particulares junto do TC em matéria de violaúltimo caso, eficácia consumptiva (isto é, quando seja dispensável um acto de aplicação). Necessário e suficiente, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, é que se esteja perante um preceito de um acto normativo público (maxime, lei ou regulamento), e não perante um acto administrativo propriamente dito, um acto político ou uma decisão judicial». CORREIA, Fernando Alves, Direito Constitucional, (A Justiça Constitucional), Programa, Conteúdos e Métodos de Ensino de um Curso de Mestrado, Relatório apresentado para a prestação de provas de agregação em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Livraria Almedina, Coimbra, 2001: (1-155): 68-69. Sobre o mesmo tema, pode igualmente consultar-se: MARTINS, Lícinio Lopes, «O conceito de norma na jurisprudência do Tribunal Constitucional», Estudos no Curso de Mestrado, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1999: (1-820): [599-648]: 604 e seguintes. 113) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 164. 114) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 165.

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ção dos seus direitos fundamentais por actuações restritivas da Administração e, nalgumas situações, dos Tribunais. Já no que se refere às decisões judiciais, os particulares(-lesados) poderão gozar das “virtualidades” do actual sistema (subjectivado) de fiscalização concreta, dado que se abre um leque extenso e quase ilimitado de situações em que os mesmos poderão recorrer à justiça constitucional por violação dos seus direitos fundamentais. Para isso, bastará que o particular tenha invocado, incidentalmente ou no decurso do respectivo processo judicial, a inconstitucionalidade de uma determinada norma ou de certa interpretação dada à mesma. É óbvio que, nestas situações, o particular pode ver defendidos os seus direitos fundamentais, quer intra-processualmente, porque o juiz do processo lhe reconhece pertinência à sua retórica argumentativa ou, pelo contrário, negar-lhe essa relevância e empurrá-lo, no caso de decisão desfavorável, para uma nova peregrinação processual junto do TC. Denota-se, nas palavras dalguma doutrina, uma “genorosidade” da parte do TC ao admitir os recursos de constitucionalidade relativamente a normas “funcionalmente concebidas como tais” e face a “determinadas interpretações jurídicas, expressas ou implícitas”, dadas a uma norma por parte de um juiz comum em determinado processo judicial. Todavia, a esta jurisprudência cumpre acrescentar uma outra evolução jurisprudencial que entende que, ainda que não tenha suscitado antecipadamente a questão da inconstitucionalidade, durante o processo em curso, o particular, em circunstâncias excepcionais e sempre que não lhe tenha sido objectivamente possível fazê-lo antes do proferimento da decisão judicial definitiva, à luz do “espírito do regime em vigor”, seria admitido a recorrer ao TC para defesa de um determinado direito fundamental alvo de violação115. Entre as dificuldades do sistema de fiscalização concreta, para uma efectiva protecção dos direitos fundamentais, salienta-se a sua manipulabilidade, ou seja, a possibilidade de tal instituto ser usado ao arrepio das suas funções originárias e com fins dilatórios ou, ainda, como «instrumento inconfessado para obtenção de fins menos nobres»116. O actual sistema de fiscalização concreta poderá ser “ludibriado”, em todas as situações desfavoráveis aos particulares, sempre que o mesmo lance mão do recurso de inconstitucionalidade para o TC invocando uma “pretensa” inconstitucionalidade de dada norma ou interpretação dada à mesma pelo juiz decisor. Existe mesmo, segundo J. REIS NOVAIS117, um verdadeiro sequestro e instrumentalização da justiça constitucional, sobretudo pelas partes que têm à sua disposição um arsenal de advogados, intelectual e diligentemente, despertos e conhecedores dos meandros da justiça constitucional. A invocação incidental de uma “pretensa inconstitucionalidade” (da norma ou interpretação dada à mes115) ARAÚJO, António de/COSTA, Joaquim P. Cardoso da, Relatório Português à III Conferência da Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha, BMJ n.º 493, Separata, Lisboa, 2000: 17 e seguintes. 116) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 166. 117) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 166.

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ma) abre a «via sacra para o Tribunal Constitucional»118. Ora, tal “flutuação processual” de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, além de fomentar os abusos (dilatórios), surge-nos como um factor de desprestígio da jurisdição constitucional. Acresce a tudo isto o facto do actual sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade se afigurar deficitário ao nível da protecção dos direitos fundamentais119, apesar de se reconhecer a existência de garantias de recurso excessivas ou inadequadas. Um dos factores de “desvio” e “aproveitamento disfuncionalizante” do actual sistema de acesso dos particulares à justiça constitucional é o de que não releva, para efeitos de recurso, o tipo de inconstitucionalidade presente na norma (ou interpretação) impugnada, isto é, torna-se (censuravelmente) irrelevante (saber) se estamos perante uma inconstitucionalidade material, formal ou orgânica, visto que, para estes efeitos, estamos perante um nivelamento e relativização de todas as circunstâncias envolventes: i) ter o vício muita ou pouca relevância; ii) ser o vício recente ou não; iii) a inconstitucionalidade envolva inexistência, nulidade, anulabilidade ou mera irregularidade. No actual sistema afigura-se irrelevante o tipo de relacionamento entre a inconstitucionalidade invocada e a efectiva e respectiva violação dos direitos fundamentais do particular. A situação é tanto mais dramática quanto se constata a existência de um «universo inabarcável de inconstitucionalidades orgânicas pululando no ordenamento jurídico à espera de descoberta para fins do conveniente recurso de inconstitucionalidade em sede de fiscalização concreta»120. O absurdo do actual sistema de fiscalização é o da inadmissibilidade de recurso do particular para o Tribunal Constitucional face a um acto da Administração ou de uma decisão judicial restritiva dos seus direitos fundamentais, ao passo que permite o recurso do particular face a uma norma em vigor há mais de 30, 40 ou 50 anos, em cujo processo legislativo de aprovação se “queimaram algumas das etapas” constitucionalmente obrigatórias121. Na ânsia de colmatar as “deficiências” e “limitações” do sistema de fiscalização, o TC tem procedido ao alargamento, desregrado e não criterioso, das situações de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta, contribuindo, desse modo, para a instalação de um sistema de 118) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 166. 119) Assiste, por isso, razão a GOMES CANOTILHO quando refere que «à riqueza e completude do «catálogo» dos direitos fundamentais, normativamente recortada na Constituição Portuguesa de 1976, não corresponde uma estrutura procedimental/processual adequada e eficaz para conferir plena realização prática a esses direitos». CANOTILHO, José Joaquim Gomes, «Constituição e défice procedimental», in: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2004: (1-233): [69-84]: 72. Este défice procedimental de protecção dos direitos fundamentais também se verifica no espaço comunitário. MARTINS, Patrícia Fragoso, Da Proclamação à Garantia Efectiva dos Direitos Fundamentais, Em busca de um due proces of law na União Europeia, Prémio Jacques Delors – Melhor Estudo Académico sobre Temas Comunitários – 2006, Principia, 2007: (1-234): 19 e seguintes. 120) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 167. 121) Para o desenvolvimento desta argumentação, pode consultar-se: NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 169. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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fiscalização com fronteiras móveis, difusas e manipuláveis122. Tal alargamento ocorreu pela via da admissibilidade, não apenas do recurso das decisões judiciais com fundamento na aplicação de normas inconstitucionais, mas, igualmente, do recurso com fundamento em normas “inconstitucionalmente” interpretadas pelo juiz decisor dos tribunais comuns. Clarificando, poder-se-á dizer que o primeiro alargamento ocorreu com a adopção da concepção funcional de norma e o segundo em virtude da admissibilidade do recurso relativamente a determinada interpretação123 expressamente referenciada de uma norma que contrasta flagrantemente com a Lei Fundamental. Ao nível do 2.º alargamento, a jurisprudência constitucional viria a admitir os recursos em virtude da sustentação indirecta ou latente (3.º alargamento) de uma determinada linha argumentativa-interpretativa implicitamente em confronto com o texto constitucional. O segundo e terceiro “alargamentos” indiciam uma viragem jurisprudencial dado que o TC arroga-se, agora, não apenas o poder de declarar a (in)constitucionalidade de dada norma e a sua eventual desaplicação, mas assume o poder de julgar da inconstitucionalidade da norma na específica interpretação levada a cabo pelo juiz decisor124. Com esta atitude, dissipou-se doravante a linha de fronteira entre controlo da inconstitucionalidade da norma e controlo da inconstitucionalidade da decisão judicial125. Esta tendência do constitucionalismo jurisprudencial português empurra o nosso sistema de fiscalização concreta para um «quase-recurso de amparo»126. A situação é de tal forma grave e movediça, quando o TC alarga desmesuradamente a admissibilidade do recurso ao abranger não apenas a inconstitucionalidade de normas construídas interpretativamente, dentro ou fora das situações de lacuna, por analogia, ou nos casos de construção jurisprudencial de normas no acto decisório concreto. A virtualidade desta jurisprudência prende-se com a possibilidade de recorrer de decisões judiciais aniquiladoras de direitos fundamentais que, de outro modo, ficariam sem qualquer resposta. «O particular passa a poder recorrer com fundamento, não apenas na pretensa inconstitucionalidade dessa mesma norma, não em si mesma, 122) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 170-182. 123) Sobre o tema, pode consultar-se: MOREIRA, Vital, «O Tribunal Constitucional Português: a “fiscalização concreta” no quadro de um sistema misto de justiça constitucional», Sub Judice – Justiça e Sociedade, «Justiça Constitucional», N.os 20/21, Janeiro/Junho de 2001: (1-220): [95-110]: 108. 124) COSTA, José Manuel Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues QUEIRÓ, I, Número Especial, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1984: (1-668): [209-258]: 228.229. 125) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 170. 126) De facto, a jurisprudência do TC tem permitido, ainda que de «forma lateral ou mitigada, alcançar alguns dos efeitos do recuros de amparo, designadamente quando admite a sindicabilidade das normas com a interpretação acolhida na decisão recorrida. (…) Nestes casos pode ver-se uma espécie de “quase-recurso de amparo”, visto que aí o Tribunal Constitucional controla nã a constitucionalidade da norma enquanto produto do legislador, mas sim na interpretação/aplicação que o tribunal recorrido dela fez». MOREIRA, Vital, «A “fiscalização concreta” no quadro do sistema misto de justiça constitucional», in: AAVV, Volume Comemorativo do 75.º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito (BFD), Boletim da Faculdade de Direito, Volume Comemorativo, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2003: (1-1227): [814-848]: 846.

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mas na interpretação particular, efectiva ou pressuposta, que dela terá feito o juiz»127. Este pretenso quase-recurso de amparo constitucional vai mais longe que o autêntico recurso de amparo ou queixa constitucional consagrado noutras ordens constitucionais, daí que comecem a abundar os factores favoráveis à sua efectiva consagração na ordem jurídica portuguesa.

3.3 NOVOS RUMOS DO CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS EM MATÉRIA DE PROTECÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A CAMINHO DA PLENITUDE DAS GARANTIAS JURISDICIONAIS CONSTITUCIONAIS – O RECURSO DE AMPARO OU “QUEIXA CONSTITUCIONAL” (?!) A evolução da jurisprudência constitucional, em matéria de recurso de fiscalização concreta, instaurou uma zona cinzenta128 nos limites objectivos prédefinidos de admissibilidade de tal recurso. Por tudo isto, instalou-se a insegurança jurídica, o subjectivismo, o tratamento desigual dos cidadãos e a potenciação de conflitualidade entre a jurisdição constitucional e os tribunais comuns. Tudo fica inseguro, movediço, difuso e indeterminado129. As dificuldades sobem de tom quando se torna necessário “descortinar” qual a interpretação pressuposta na aplicação de determinada norma. Nem sequer se torna possível saber se foi a interpretação que determinou a aplicação inconstitucional ou se a interpretação da norma foi correcta, apenas se tornando inconstitucional a sua aplicação. As mesmas dificuldades delimitadoras surgem se o juiz comum interpreta a norma de forma não inconstitucional, mas entende que, em determinado pleito, a mesma deve ceder perante uma outra norma ou princípio. Nestes casos, questiona-se se é a avaliação/ponderação/decisão do juiz que se afigura inquinada constitucionalmente ou se é a interpretação da norma que deveria, eventualmente, ter sido interpretada com a atribuição de uma força que lhe permitisse superar, na ponderação, o princípio contrário. O problema sobe de tom nas situações em que o juiz interpreta bem (em conformidade com a Constituição) uma determinada norma, mas no momento da sua aplicação se desvia daquela “interpretação conforme” e se apega a uma outra que contrasta ostensivamente com a CRP 1976. Coloca-se a dúvida de saber a que interpretação deverá o TC atender: a anunciada ou a implícita e em conformidade objectiva com o teor da decisão?130. Em suma, verifica-se uma efec127) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 171. 128) Falando em “zona branca”, pode consultar-se: MORAIS, Carlos Blanco de, «Fiscalização da Constitucionalidade e Garantia dos Direitos Fundamentais: Apontamento sobre os Passos de uma Evolução Subjectivista», in: AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão TELLES, Volume V, Direito Público e Vária, Livraria Almedina, Coimbra, 2003: (1-1022): [85-111]: 106. 129) MEDEIROS, Rui, A decisão de inconstitucionalidade, Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999: (1-945): 336 e seguintes. 130) Para todas estas interrogações, e de forma desenvolvida, pode consultar-se: NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 172-173. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tiva impossibilidade objectiva de delimitar as fronteiras rigorosas entre o que é a “interpretação” e o que é a “decisão judicial” 131, pelo que a questão sobre a admissibilidade ou não de determinado recurso, em sede de fiscalização concreta, fica um pouco ao “sabor da maré”, ao sabor da “boa ou má digestão dos juízes do TC”…, já para não dizermos, como alguém já disse, que mesmo que se fizesse um Curso Semestral numa Faculdade de Direito132, nem assim ficariam esclarecidos os actuais critérios da jurisprudência constitucional em sede de admissibilidade da fiscalização concreta da constitucionalidade… Apesar dalguma doutrina entender que o recurso de constitucionalidade, em sede de fiscalização concreta, basta, nos moldes em que se encontra gizado133, para uma efectiva e correcta protecção dos direitos fundamentais das pessoas violados pela Administração ou pelas decisões judiciais, o certo é que cresce o coro de vozes no sentido da consagração constitucional de um efectivo e pleno “recurso de amparo” ou “queixa constitucional” com contornos, prévia e objectivamente, bem delimitados. No sentido da desnecessidade de consagração do recurso de amparo esgrimem-se os seguintes argumentos134: i) O actual sistema de fiscalização concreta já contém todas as “virtualidades” que se reconhece ao original “recurso de amparo”; ii) O bloqueamento do TC a admitir-se o “recurso de amparo”. Vejamos se assiste razão aos defensores de tal argumentação. Quanto ao primeiro argumento, como bem relembra J. REIS NOVAIS135, existe um grupo de intervenções restritivas inconstitucionais em matéria de direitos fundamentais, praticadas pela Administração, tribunais e titulares do poder político, que ficam a descoberto do manto da tutela da justiça constitucional ou apenas, forçadamente e de forma enviesada, à custa de entorses às normas do actual sistema de fiscalização concreta conseguem ombrear o pórtico do TC. Quanto ao segundo argumento, ele apenas teria acolhimento se se defendesse, sem mais, a junção do recurso de amparo às demais possibilidades de acesso à justiça constitucional actualmente identificadas. Demonstrativo daquela sua fragilidade argumentativa é, notoriamente, o facto da operacionali131) Para uma concretização prático-jurisprudencial destas dificuldades, pode consultar-se a análise crítica de alguma jurisprudência recente levada a cabo por: NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 172-173. 132) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 173. 133) J. CASALTA NABAIS leva a cabo uma análise comparativa entre o actual sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade e o da queixa constitucional ou recurso de amparo vigente noutros horizontes constitucionais, para concluir que o primeiro cobre a maior parte – senão a totalidade – das situações típicas do segundo (queixa constitucional), daí que o autor não advogue a consagração de tal mecanismo. NABAIS, José Casalta, «Os direitos fundamentais na jurisprudência do Tribunal Constitucional», in: NABAIS, José Casalta, Por uma liberdade com responsabilidade, Estudos sobre direitos e deveres fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007: (1-392): [9-60]: 13-14. 134) CORREIA, Fernando Alves, «A justiça constitucional em Portugal e em Espanha, Encontros e divergências», Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 131.º, n.º 3893, págs. 238 e segs 135) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 183.

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dade de tal instituto noutros quadrantes geográficos (Alemanha e Espanha)136. O actual défice de protecção constitucional dos direitos fundamentais face a determinado tipo de violações justifica(ria), por si só, a necessidade de consagração de um recurso de amparo (ou queixa constitucional). Não existem justificações válidas para que os cidadãos continuem sem possibilidade de acesso directo ao TC contra violações sérias e constitucionalmente relevantes dos seus direitos fundamentais137 e levadas a cabo, por qualquer ramo do poder público, por meio de actos ou omissões dos titulares do poder político, dos tribunais ou mesmo da Administração. Pelo contrário, é demonstrativo da maturidade democrática, de um dado Estado de Direito, que se verifique a consagração do princípio da protecção jurisdicional constitucional plena e efectiva, não ficando os cidadãos desguarnecidos perante intervenções restritivas inconstitucionais e não apenas contra as restrições aos direitos fundamentais levadas a cabo pelo legislador e/ou consubstanciadas em normas. Todavia, importa notar que a introdução do recurso de amparo é um desafio incontornável e inolvidável no dealbar do século XXI, para uma cidadania efectiva, não podendo ser introduzido de forma não harmonizada relativamente à fiscalização concreta que careceria de uma remodelação no sentido de evitar “novas disfuncionalidades”. Uma das consequências seria a de que desapareceria a necessidade de poder recorrer para o TC das decisões dos tribunais comuns nos termos actualmente vigentes. A existência de normas inconstitucionais em vigor na ordem jurídica portuguesa não desaparecerá, por “passe de magia”, com a consagração do recurso de amparo, mas teremos agora a possibilidade pontual e excepcional da questão da constitucionalidade ser levantada por iniciativa dos juízes ou das partes. Um dos mecanismos propícios a tal desiderato seria o da consagração, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, da técnica do reenvio prejudicial138: o juiz comum, num processo concreto, sempre que é suscitada uma questão relevante em sede de constitucionalidade de uma norma aplicável, deveria proceder à suspensão da instância até pronúncia (vinculativa) do TC. Com isto, desapareceriam os expedientes dilatórios e o desprestígio dos tribunais comuns que, nos casos de vingar a tese da inconstitucionalidade, se vêem compelidos a conformar e alterar as suas decisões judiciais de acordo como juízo de censura constitucional do TC. 136) J. REIS NOVAIS vai mesmo ao pormenor de comparar as dimensões geográficas dos países que têm tal sistema de recurso (amparo ou queixa constitucional) e a quantidade de juízes integrantes do TC, pelo que, à luz de tais dados, a não ser por uma falta de produtividade dos juízes constitucionais portugueses, o mesmo seria viável e performante na nossa ordem jurídica. NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 183-184. 137) A expressão é por nós vista de forma abrangente e não restritiva, como refere alguma doutrina, dado que aí abarcamos os direitos, liberdades e garantias e os direitos sociais. 138) Contra o argumento invocado por alguma doutrina relativamente a este mecanismo, J. REIS NOVAIS refere que «a substituição do modelo de fiscalização concreta por um regime de reenvio prejudicial não constituiria uma alegada degradação da posição relativa da magistratura judicial no plano do acesso à Constituição, na medida em que só aparentemente ela perderia os poderes que lhe têm sido constitucionalmente reconhecidos desde a Constituição de 1911». NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 185. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Tal solução tem ainda de ultrapassar o facto de, a ser assim, se verificar uma verdadeira “demissão de decidir” dos tribunais ordinários em matéria de constitucionalidade, contendendo directamente com o segmento constitucional que difusamente distribui tal competência aos diversos tribunais. Todavia, como relembra J. REIS NOVAIS, assiste-se, hoje, a um “envenenamento” da jurisdição comum em sede de fiscalização difusa da constitucionalidade, dada a recorribilidade das suas decisões para o TC. Uma outra alteração a introduzir no actual sistema de fiscalização concreta, no caso de consagração efectiva do “recurso de amparo”, seria a da eliminação da admissibilidade de invocação de inconstitucionalidades orgânicas e formais, «por falta notória de justificação racional»139. Por último, não colhe o argumento de que a consagração da plenitude de acesso à justiça constitucional para garantia efectiva dos direitos fundamentais, ex vi recurso de amparo, possa levar a um aumento exponencial dos processos junto do TC. Em abono deste entendimento, podemos recuperar as seguintes linhas discursivas: i) Verificação de uma drástica diminuição dos processos junto do TC por força do incremento do reenvio prejudicial que ocorreria por força (ia) da eliminação da possibilidade de utilização abusiva do instituto para fins dilatórios, (iaa) com a limitação dos fundamentos invocáveis à inconstitucionalidade material, (iaaa) com a necessidade de convicção da inconstitucionalidade da norma por parte do juiz comum e (iaaaa) com o objectivo da fiscalização a incidir exclusivamente sobre normas positivas em vigor não sobre interpretação ou a construção autêntica ou presumida de normas pelo juiz comum140. O expediente do “reenvio prejudicial” (interno) é de tal modo atractivo que o mesmo poderia ainda ser articulado com o outro “reenvio prejudicial” (externo ou comunitário)141, e, ainda a essa nível, não seria impraticável um outro “reenvio prejudicial” para o TEDH, com vista a atingir um nível europeu mais elevado e uniforme de protecção em matéria de direitos fundamentais, numa clara defesa do “bloco constitucional europeu de direitos fundamentais”. Vejamos em que termos se defende a “operatividade” do expediente do “reenvio prejudicial” e “queixa constitucional” à luz do relacionamento entre os tribunais nacionais, TC, TEDH e TJCE de lege ferenda: Suponha-se que A alega, perante a jurisdição nacional, que uma determinada norma consagradora de um direito fundamental, à luz do entendimento do mesmo pela Carta Europeia dos Direitos Fundamentais/Convenção Europeia dos 139) O autor advoga mesmo que «mesmo em fiscalizaçãoo suscessiva abstracta, essas inconstitucionalides só deveriam poder ser arguíveis num prazo razoavelmente limitado após a publicação da norma». É um entendimento que não podemos acompanhar à luz dos dados positivos da experiência constitucional actual portuguesa nessa matéria. NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 186. 140) NOVAIS, Jorge Reis, Direitos Fundamentais, Trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, Coimbra, 2006: (1-285): 186. 141) Sobre a origem e funções do reenvio prejudicial, pode consultar-se: QUADROS, Inês, A Função Subjectiva da Competência Prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Livraria Almedina, Coimbra, 2006: (1-226): 24 e seguintes.

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Direitos do Homem/Declaração Universal dos Direitos do Homem, deverá levar à consideração da norma X que o juiz nacional se propõe aplicar para dirimir o conflito judicial que ocorre entre A e B. Perante a invocação de uma norma consagradora de um direito fundamental idêntico ou análogo aos demais constantes dos «DLG» da CRP 1976, com um “âmbito de protecção” mais abrangente e constante da Carta Europeia, como deverá posicionar-se o juiz nacional se a norma X que vai aplicar contende com tal direito fundamental? No caso de direito fundamental constante da Carta Europeia, o juiz nacional deveria lançar mão do expediente do “reenvio prejudicial” para aferir da validade e interpretação da norma X à luz de um dado direito fundamental constante da Carta Fundamental Europeia e com correspectivo no catálogo constitucional de direitos fundamentais no direito interno português. Posteriormente, duas respostas ou vias se abrem: 1.ª O TJCE concorda com a tese do particular da maior amplitude da norma consagradora de direito fundamental e entende que a norma X contraria, igualmente, a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais – Neste caso, o juiz nacional pode lançar mão da norma comunitária consagradora de direito fundamental e invocála para, “alargando o bloco constitucional dos direitos fundamentais”, ex vi, artigo 8.º, n.º 3 e 4 e 16.º, n.º 1 CRP, considerar inconstitucional a norma X e desaplicá-la; 2.ª O TJCE não concorda com a tese do particular, o juiz nacional não acata a reivindicação do particular e não declara inconstitucional nem desaplica a norma X. Neste caso, abrindo-se o recurso de fiscalização concreta da inconstitucionalidade, o TC deveria pronunciar-se. Ora, nestas situações, de duas uma: i) O TC concorda com o TJCE e entende desnecessário recorrer ao mesmo, ex vi “reenvio prejudicial” para um novo questionamento sobre a validade e interpretação daquela norma X à luz do acervo legislativo comunitário. O processo termina e, eventualmente, o particular, sempre que a norma do direito fundamental tenha igual correspondente na CEDH, pode iniciar a sua defesa junto do TEDH. Voltaremos a esta hipótese mais à frente. ii) O TC discorda do TJCE na sua pronúncia do 1.º reenvio e, então, ou se entende que se efectua um novo reenvio, existam elementos novos ou não no problema a analisar, ou não se admite e o TC decide. No caso de discordar do TJCE, o TC somente deverá poder fundamentar a sua decisão de inconstitucionalidade – com a consequente desaplicação da norma – se estiver perante uma lesão irremediável e insuportável dos princípios constitucionais estruturantes do núcleo essencial do Estado democrático português. Se o problema se colocar perante uma norma de direito comunitário que viola o direito interno português, com ligeiras alterações poderão manter-se as soluções anteriores. Diferentemente, se a norma X é de direito interno e o particular invoca um direito fundamental “mais amplo” do que existe no catálogo dos «DLG» da CRP 1976 ou mesmo se tal direito não existe aí, e se encontra consagrado na CEDH, então o juiz nacional poderá considerar inconstitucional aquela norma invocando a maior amplitude protectora daquele direito fundamental na interpretação dada ao mesmo pelo TEDH? Nesta situação, haveria que institucionalizar o procedimento de “reenvio prejudicial” para o TEDH, no sentido do tribunal nacional ficar “vinculado” a essa interpretação e, por via disso, decidir desfaRAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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voravelmente ou não o caso. A norma X poderia ser declarada inconstitucional a partir do alargamento do “bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais” mediante a integração e adopção da interpretação do TEDH relativamente a esse preceito e mais ampla do que a efectuada na ordem interna. Se o juiz nacional assim não entender, o particular poderia, em recurso de constitucionalidade, discutir aquela interpretação junto do TC. Nestas circunstâncias o TC poderia admitir a pretensão do particular e considerar a norma X inconstitucional à luz do entendimento do direito fundamental segundo a jurisprudência do TEDH acerca da CEDH. Por outro lado, o TC poderia recorrer “via prejudicial”, novamente, ao TEDH, sempre que se verificassem elementos novos ou, assim não o sendo, deveria entender-se que ficaria precludida a via judicial para o TEDH. Em jeito conclusivo, verifica-se, ainda que numa análise provisória e carecida de uma maior reflexão, torna-se possível, no espaço judiciário europeu dos direitos fundamentais, por intermédio do mecanismo do “reenvio prejudicial” e da “queixa constitucional” encontrar uma forma de articulação entre as jurisdições nacionais, TC, TEDH e TJCE que propicia um nível mais elevado de protecção dos direitos fundamentais a caminho da plenitude jurisdicional das garantias constitucionais dos particulares perante os Estados-Membros, Estados, particulares, entidades públicas e demais entidades ou órgãos jurisdicionais.

4 CONCLUSÕES E TESES Os novos caminhos do constitucionalismo, no dealbar do século XXI, face ao (des)encontro (multi)cultural, no seio da Europa, impelem a jurisdição constitucional para uma papel activo na defesa do “bloco constitucional europeu dos direitos fundamentais” no âmbito do “triângulo judiciário europeu” que se estabelece entre a jurisdição nacional, comunitária e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Consideramos desejável e possível, de lege ferenda, a introdução não só do “reenvio constitucional prejudicial” como do “reenvio prejudicial comunitário” ou do “reenvio prejudicial europeu” no sentido de uma correcta e uniforme articulação entre os tribunais nacionais (onde se inere TC), TEDH e TJCE, para se caminhar, a passos largos, para a plenitude da jurisdicionalização das garantias de defesas dos cidadãos (europeus) em matéria de violação de direitos fundamentais e, desse jeito, nascer uma nova cidadania europeia para o século XXI. As “inquietudes discursivas” que nos atormentaram neste estudo levaramnos às seguintes conclusões ou teses finais: 1.º O Constitucionalismo europeu é chamado a abandonar a via da jurisprudencialização asséptica do Direito Constitucional para recuperar a sua dimensão crítica e política; 2.º O Constitucionalismo europeu enfrenta os desafios do pluralismo jurídico e multicuturalismo social através da opção por uma teoria da constituição capaz de garantir e estrutura um sistema constitucional pluralístico; 3.º O Constitucionalismo europeu deve adoptar uma teoria da interconsti64

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tucionalidade, com a recuperação e articulação dos princípios da sobreposição das ordens jurídicas, da autonomia e da participação no poder central. 4.º O Constitucionalismo moderno deve enfrentar a “associação europeia de estados” a partir do respeito pela rede de constituições de estados soberanos, pelas instâncias políticas supranacionais, pela recombinação das dimensões constitucionais clássicas com os sistemas organizacionais supranacionais, pela criação de esquemas jurídico-políticos de combinação dos elementos organizacionais em confronto. 5.º O principal desafio da jurisdição constitucional, no dealbar do século XXI, é o da clarificação do seu papel perante o multiculturalismo e multilateralismo supranacional; 6.º O “espaço dos estados europeus” levou ao surgimento do “triângulo judiciário europeu” que introduz o complexo problema da conformação do “bloco constitucional europeu dos direitos fundamentais” à luz do espaço judicial de geometria triangular: direito interno nacional, do direito comunitário e da CEDH; 7.º A abertura constitucional do artigo 16.º n.º 1 CRP, em matéria de direitos fundamentais, introduz no Direito Constitucional o complexo problema de conformação do “bloco constitucional dos direitos fundamentais” enquanto parâmetro constitucional; 8.º Os direitos fundamentais recebidos pela cláusula aberta e oriundos da DUDH possuem natureza constitucional e têm implicações ao nível da conformação do “bloco constitucional dos direitos fundamentais”; 9.º A cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1 abarca todos os tipos de direitos fundamentais, sejam eles «direitos, liberdades e garantias» ou «direitos sociais»; 10.º O critério operativo para a identificação dos preceitos extraconstitucionais análogos aos direitos, liberdades e garantias passa pela consideração da sua ligação com a ideia de dignidade da pessoa humana e possui determinabilidade suficiente a um nível materialmente constitucional; 11.º Os direitos fundamentais recebidos pela cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1 CRP 1976 partilham do regime dos «direitos, liberdades e garantias», exceptuando-se, eventualmente, as dimensões regimentais que se revelem, de todo, incompatíveis com essa extensão em bloco; 12.º O artigo 16.º, n.º 2 da CRP 1976 consagra a regra da dupla conformidade, no sentido de que a interpretação dos direitos fundamentais dever ser levada (sempre) em conformidade com a Constituição (1.º momento) e em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (2.º momento), com a prevalência daquele primeiro momento a não ser nos casos em que o segundo momento surja como consagrador de um nível de protecção mais elevado; 13.º O artigo 16.º, n.º 1 CRP 1976 implica a conformação do “bloco da constitucionalidade dos direitos fundamentais” a partir do catálogo constante da CRP 1976, CEDH, DUDH e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; 14.º O artigo 29.º, n.º 2 da DUDH não pode ser utilizado como meio de restrição de um direito fundamental integrado no “bloco da constitucionalidade” por tal configurar um esvaziamento ou limitação do âmbito de protecção dos RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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direitos fundamentais, assim se violando o princípio do nível de protecção mais elevado vigente em matéria de direitos fundamentais; 15.º O uso do artigo 29.º, n.º 2 DUDH viola a regra da dupla conformidade acima exposta, sobretudo o seu primeiro momento; 16.º A “erosão” verificada no seio das fronteiras delimitadoras da fiscalização concreta da constitucionalidade, com a adopção de um conceito funcional de norma e com a admissibilidade de recurso relativamente a decisão que tenha, expressa ou implicitamente, na sua base uma norma inconstitucionalmente interpretada ou aplicada, introduziu uma fluidez e arbitrariedade incompatíveis com o nível mais elevado de protecção jurisdicional vigente em matéria de direitos fundamentais. 17.º A consagração do “recurso de amparo” e “queixa constitucional” são mecanismos imprescindíveis para uma efectiva protecção dos direitos fundamentais no espaço triangular judiciário europeu; 18.º O triângulo judiciário europeu em matéria de direitos fundamentais origina conflitos (positivos e negativos) de jurisdição que apenas poderão ser resolvidos pela introdução de dois mecanismos: por um lado, o reenvio prejudicial, seja ele o “reenvio prejudicial constitucional”, o “reenvio prejudicial comunitário” ou o “reenvio prejudicial europeu”; e, por outro lado, o da queixa constitucional que possibilitarão, de lege ferenda, uma correcta articulação entre as jurisdições nacionais, TC, TEDH e TJCE, com vista a atingir um nível mais elevado de protecção dos direitos fundamentais a caminho da plenitude jurisdicional das garantias dos particulares perante os Estados-Membros, Estados, particulares, entidades públicas e demais entidades ou órgãos jurisdicionais.

BIBLIOGRAFIA Nota do autor: As traduções de obras, artigos doutrinais e textos legislativos, quando inseridas no texto, referem-se aos textos originais, não tendo sido utilizado como critério o aproveitamento de outras traduções já existentes no panorama nacional, pelo que eventuais incorrecções deverão ser-nos imputadas não vinculando os autores originais. Justificação dos critérios de citação observados: a) Citação directa dos autores, obras e artigos de revista alvo de consulta efectiva; b) Os autores são referenciados de acordo com os princípios comummente adoptados, ou seja, através do uso, em primeira linha, do apelido, apenas se excepcionando os autores espanhóis relativamente aos quais a menção é feita a partir dos últimos dois; c) Seriação, por ordem cronológica, da referência às obras do mesmo autor; d) Os títulos das monografias e revistas são dados em negrito, com a especificidade de que o destes últimos é colocado entre aspas («»); e) Seguem-se, pela seguinte ordem, a referência às seguintes informações: edição, editora, lugar e ano de edição, número de páginas e página objecto de consulta; f) Em matéria de citação de documentos electrónicos, adoptou-se o esquema supra referido em e), acrescendo apenas: a data do “acesso e consulta”; a localização ou endereço electró66

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A prisão cautelar e a garantia fundamental da presunção de inocência*

Clara Maria Roman Borges Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora Adjunta de Direito Processual Penal na UFPR. Coordenadora e Professora do Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da Unibrasil

Sem dúvida o tema eleito para este painel ocupa há alguns anos o centro das discussões dos processualistas e criminológos do mundo todo e tal pode ser explicado porque aparentemente traduz uma polêmica insolúvel, em que se debatem dois discursos diametralmente opostos, um deles que ingenuamente defende a impossibilidade da prisão cautelar subsistir nos sistemas processuais contemporâneos, na medida em que viola frontalmente a garantia da presunção de inocência prevista nas Constituições e nos vários tratados internacionais,1 e outro que normalmente ganha a adesão das massas ao pregar que a prisão cautelar é fundamental para garantir a sua segurança, pois tem se mostrado eficaz na neutralização dos indivíduos considerados perigosos na medida em previne seus novos desvios e empreende a sua docilização antes mesmo da aplicação da pena.2 Ora, uma breve análise de seus argumentos permite perceber que ambos os * Palestra proferida no Congresso Polônia-Brasil de Direito Constitucional, promovido pelo Programa de Mestrado em Direito da Unibrasil, nos dias 03, 04 e 05 de setembro de 2008. 1) Ver por todos: “Un proyecto de democracia social forma por tanto un todo único con el de un estado social del derecho; consiste en la expansión de los derechos de los ciudadanos y, correlativamente, de los deberes del estado, o, si se quiere, en la maximización de las libertades y de las expectativas en la minimización de los poderes. Con una fórmula sumaria podemos representar a semejante ordenamiento como estado liberal mínimo y a la vez como estado social máximo: estado (y derecho) mínimo en la esfera penal, gracias a la minimización de las restricciones de las libertades de los ciudadanos y a la correlativa extensión de los límites impuestos a sus actividades represivas; estado (y derecho) máximo en la esfera social, gracias a la maximización de las expectativas materiales de los ciudadanos y la correlativa expansión de las obligaciones públicas de satisfacerlas.” (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 4. ed. Madrid: Trotta, 4. ed., 2000, p. 866) 2) JAKOBS, Günther; MELIÁ, Cancio. O direito penal do inimigo: noções e críticas. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

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discursos jamais apresentarão uma solução para este impasse, uma vez que não se preocupam com a identificação das práticas de poder que estão por trás desta pretensa funcionalidade da prisão cautelar nos atuais sistemas processuais. Vê-se que o primeiro discurso é guiado por uma crença cega no potencial garantista do edifício jurídico e parte do pressuposto ingênuo de que o direito é capaz de estabelecer limites ao exercício do poder, daí porque a discussão sobre suas práticas é desprezada ou no mínimo relegada a um segundo plano. Constata-se, ainda, que sua retórica não tem sido capaz de persuadir a sociedade sobre a gravidade da referida violação constitucional, pois aquela se encontra amedrontada diante das investidas violentas do grande contingente de excluídos produzido pelo atual estágio do modo de produção capitalista. Aliás, suas palavras se parecem mais com obstáculos nesta desenfreada corrida desencadeada em direção ao lugar onde todos estarão a salvo da barbárie dos que não participam do mercado, dos que não consomem. Em síntese, este discurso soa como herético num mundo em que todos sem perceber e sob a promessa de que chegarão ao lugar onde a segurança se encontra ao alcance das mãos são empurrados para um labirinto sem saída, já que as estratégias traçadas para a contenção dos excluídos ao invés de aproximá-los do tão sonhado objetivo termina por afastá-los cada vez mais.3 Além disso, sabe-se que o direito jamais poderá figurar como instrumento apto a alcançar a segurança desejada pela atual sociedade globalizada, visto que ela não passa de uma miragem que nos remete a um lugar que não existe mais e não voltará a existir. Zigmunt Bauman bem ressalta que esta vida segura sonhada por um exército de nefelibatas amedrontados frente à violência gerada pelo processo de crescente exclusão social promete um retorno aos tempos idos de comunidades tranqüilas, cujo entendimento era fruto de um sentimento natural, recíproco e vinculante, que não pode ser mais ser alcançado4 e muito menos através de um instrumento como o direito, que impõe o consenso a partir da luta e garante sempre uma paz artificial. Noutras palavras, o sociólogo polonês esclarece que a humanidade chegou a um certo grau do processo civilizatório em que as antigas comunidades, onde todos viviam seguros, não têm mais espaço, tal como ocorreu com Tântalo na mitologia grega e Adão na cristã, os homens ao evoluírem trans3) Zigmunt Bauman explica que esta busca obsessiva pela segurança nos dias atuais se dá propositadamente por caminhos que nos afastam cada vez mais dela: “Sentimos falta da comunidade porque sentimos falta da segurança, qualidade fundamental para uma vida feliz, mas que o mundo que habitamos é cada vez menos capaz de oferecer e mais relutante em prometer. Mas a comunidade continua teimosamente em falta, escapa ao nosso alcance ou se desmancha, porque a maneira como o mundo nos estimula a realizar nossos sonhos de uma vida segura não nos aproxima de sua realização; em lugar de ser mitigada, nossa insegurança aumenta, e assim continuamos, tentando e fracassando.” (BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca de segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 129). 4) “A comunidade de entendimento comum, mesmo se alcançada, permanecerá portanto frágil e vulnerável, precisando para sempre de vigilância, reforço e defesa. Pessoas que sonham com a comunidade na esperança de encontrar a segurança de longo prazo que tão dolorosa falta lhes faz em suas atividades cotidianas, e de libertarse da enfadonha tarefa de escolhas sempre novas e arriscadas, serão desapontadas.” (BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca de segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 19).

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grediram as regras que mantinham intacta a comunidade, ou seja, perderam a inocência e estão de alguma forma sendo punidos por saberem demais. Diante disso, pode-se concluir que esta segurança idealizada e almejada nos dias de hoje é incompatível com atual estágio do capitalismo e por este motivo o discurso jurídico garantista um pouco mais realista na sua concepção de segurança sempre parecerá débil em suas promessas de conduzir todos ao idílico paraíso onde estarão a salvo.5 A par desta inaptidão do discurso jurídico para recriar o mundo perfeito sonhado pela sociedade ocidental, é preciso lembrar que as atuais práticas de poder se apropriaram do direito para ganhar legitimidade e por esta razão é comum que os textos jurídicos pretensamente democráticos e garantistas, como os de caráter constitucional e na forma de tratados internacionais, vistam-se freqüentemente de roupagem autoritária e punitiva para auxiliar no controle dos excluídos. Neste contexto, mostra-se deveras simplista o discurso que sustenta a inconstitucionalidade da prisão cautelar em razão da violação da garantia da presunção de inocência, veja-se que próprio o art. 5o, XLIII, XLIV, LXI, LXV e LXVI, da Constituição Brasileira, oferece fundamento para a existência da prisão cautelar no sistema processual penal de nosso país, quando estabelece o rol dos crimes que não admitem a liberdade provisória mediante fiança; a possibilidade da prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade competente; a previsão de que a prisão ilegal deverá ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária, e a vedação da manutenção da prisão quando a lei admitir a liberdade provisória. Enfim, por todas essas razões, aqueles que acreditam na salvação acenada por uma ordem jurídica que se pretende democrática não conseguem deter o avanço do discurso oposto, que perversamente sustenta a inexistência de incompatibilidade entre a prisão processual e a garantia da presunção de inocência justamente sob o argumento de que a segurança também deve ser garantida pelo direito e a única maneira de alcançá-la é neutralizando os excluídos por meio de seu encarceramento. Note-se que após a destruição do Estado social nos chamados países de primeiro mundo e o fracasso das tentativas de sua implementação nos países da América Latina, em razão das crises econômicas mundiais provocadas por várias guerras e pelas desastradas especulações no mercado financeiro, este discurso tem servido perfeitamente para justificar o surgimento de um Estado penal cujo objetivo é manter dóceis os órfãos das velhas políticas sociais estatais que busca5) “De agora em diante, toda homogeneidade deve ser ‘pinçada’ de uma massa confusa e variada por via de seleção, separação e exclusão, toda unidade precisa ser construída; o acordo ‘artificialmente produzido’ é a única forma disponível de unidade. O entendimento comum só pode ser uma realização, alcançada (se for) ao fim de longa e tortuosa argumentação e persuasão, e em competição com um número indefinido de outras potencialidades – todas atraindo atenção e cada uma delas prometendo uma variedade melhor (mais correta, mais eficaz ou mais agradável) de tarefas e soluções para os problemas da vida. E, se alcançado, o acordo comum nunca estará livre da memória dessas lutas passadas e das escolhas feitas no curso delas.” (BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca de segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 19) RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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vam reduzir as desigualdades aprofundadas no período do entre e do pós-guerra. Nos EUA, o incremento do aparato penal estatal ocorreu na década de oitenta para gestionar a miséria produzida pelo processo de globalização neoliberal, apresentado como única alternativa para sanar os problemas econômicos do precário Estado Social rascunhado pelo New Deal na década de 30 e aperfeiçoado pelo compromisso keynesiano nos anos seguintes.6 Na Europa, a globalização neoliberal avançou com a formação da União Européia, quando os Estados sociais europeus surgidos na década de trinta foram desmantelados para a realização do grande sonho de um Estado social continental. Sabe-se que no início da formação da Comunidade Européia prevalecia a crença de que as políticas sociais promovidas individualmente pelos Estados que a integravam seriam aos poucos substituídas por políticas sociais comunitárias. Entretanto, nos dias de hoje se constata que há alguns anos os governos europeus deixaram de lado o sonho de um superestado social e privilegiaram a constituição de um forte Bloco Econômico, capaz de comandar mercados e fazer frente ao poderio norte-americano. Então, facilmente se deduz que a cooperação comunitária se institucionalizou apenas no sentido de manutenção da ordem e docilização daqueles que não contam mais com a assistência social estatal, isto é, dos excluídos. No Brasil, os planos para implementação do Estado Social também tiveram início na década de 30, entretanto as crises econômicas internas e externas não permitiram a sua concretização e o Estado Penal sempre esteve presente para assegurar os regimes totalitários e suas promissoras políticas de crescimento econômico e restituição da ordem.7 Deste modo, a globalização neoliberal, que em território pátrio se radicalizou na década de noventa com o governo Collor, só tratou de incrementar ainda mais o aparelho penal estatal que esteve sempre atuante para conter os miseráveis. Em suma, o processo de globalização neoliberal comum às sociedades ocidentais capitalistas foi responsável pela privatização das funções do Estado, pela abertura dos mercados, pelo desencadeamento dos movimentos internacionais de capitais, pela dissolução do Estado social e pelo deslocamento das funções de planejamento econômico do âmbito estatal para o âmbito das empresas transnacionais8, que desde então travam o que se pode chamar de verdadeira guerra econômica, que tem o mercado como seu campo de batalha, a competitividade como seu valor último e a eficiência como sua principal arma. Aos vitoriosos desse embate, 6) WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. Eliana Aguiar, 2. ed., Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 22. 7) V. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12 ed. São Paulo: Edusp, 2006. 8)"El proceso de globalización passa desde hace más de dos décadas por encima de América Latina, del mismo modo que pasa por encima del mundo entero: como un huracán. La privatización de las funciones del Estado, el comercio libre, el desencadenamiento de los movimientos internacionales de los capitales, la disolución del Estado social, la entrega de las funciones de planificación económica a las empresas multinacionales, y la entrega de la fuerza de trabajo y de la naturaleza a las fuerzas del mercado, han arrasado el continente.” (HINKELAMMERT, Franz J.. El huracán de la Globalización: la exclusión y la destrucción del medio ambiente vistos desde la teoría de la dependencia. El huracán de la globalización. Org. Franz Hinkelammert, San José: DEI, 1999, p. 17).

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restam as vantagens mercadológicas e o estabelecimento das regras da globalização, e aos perdedores, a irremediável exclusão das relações de consumo, o que na perspectiva do novo projeto econômico de mercado total, transformador de todas as relações humanas em relações de consumo, significa a completa exclusão.9 Evidentemente, esses excluídos não aceitam inertes todo este processo que não se restringe a marginalizá-los – no sentido de levá-los à margem – mas que os empurra ao abismo da dolorosa invisibilidade e sua reação é sempre violenta, isto é, dirigida a subjugar fisicamente o grupo dos incluídos. Não por outro motivo, este Estado mínimo no setor de políticas sociais se vê premido a avançar e crescer no que se refere às medidas destinadas à gestão desta incômoda miséria que começa a bater na porta dos mais abastados e, neste momento, a prisão surge como sua grande arma. Então, é possível compreender porque a maioria dos países ocidentais assiste ao estrondoso crescimento dos índices de encarceramento e comodamente se contenta com a explicação de que a prisão é a única alternativa para conter os excluídos e por esta razão é compatível com os valores constitucionais, devendo ser inclusive concretizada ainda durante o processo.10 Entretanto, aqueles que num ato de ousadia resolvem questionar a eficiência da prisão e os seus limites, percebem que ela não é capaz de transformar a realidade e acabar com os excluídos, trata-se apenas de um paliativo prestes a se tornar inócuo, na medida em que os cárceres existentes não serão suficientes para albergar o contingente de miseráveis que só faz aumentar. 9) “Agora eu quero encaminhar o encerramento: segundo Martin & Schumann, em setembro de 95, a Fundação Gorbachev reuniu, em um hotel em San Francisco, na Califórnia, diversas personalidades mundiais, dentre eles cientistas e os grandes detentores do dinheiro mundial (aproximadamente 385 pessoas). Em tal reunião, chegaram-se a algumas conclusões que nos são extremamente importantes: uma delas é que o que nos espera no século 21 é uma sociedade chamada de 20 x 80. Tal parâmetro significa que somente 20% da mão de obra será suficiente para dar conta da demanda mundial. De conseqüência, os outros 80% serão compostos com os chamados excluídos, postos à margem do ganho. Como se sabe, excluído é, tecnicamente falando, do ponto de vista da economia, alguém que não consome: um não-consumidor. Um não-consumidor é, por evidente, alguém que não produz, porque quem ganha é quem produz, e quem produz é quem consome, ou seja, aquele que, teoricamente, teria direito ao lazer. Uma das questões mais intrigantes que se colocou, naquela oportunidade, foi o que fazer com os tais 80%, postos à sorte, jogados no mundo, tendo-se presente que não perderiam a voz e o voto? A conclusão a que tais ilustres figuras chegaram é que é preciso fazer todo o esforço para que se evite uma catástrofe mas, acima de tudo, cada um deve buscar resolver seus problemas. Cada um tem que tentar incluir-se.” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Globalização e Direitos Humanos. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Porto Alegre: Síntese, v. 33, p. 50-51, 2000). 10) No capitalismo tardio periférico alguns aspectos podem ser observados: primeiro uma estetização radical da cultura, que coloca o simbólico no econômico, produzindo uma realidade cotidiana, que entra pelos olhos, que naturaliza uma rígida e hierarquizante ordem social. Segundo a luta pela ordem contra o caos, que passa pela criminalização e desqualificação da pobreza, dos novos hereges. Por último, a confluência dessa estetização radical e dessa luta pela ordem através da criminalização da pobreza desemboca na herança escravocrata de um sistema penal genocida, que converteu a América Latina como um todo numa colossal instituição de seqüestro, num apartheid criminológico natural, dirigido aos desaparecidos de nascença, ontem escravos e capoeiras, hoje favelados e traficantes. Enfim, é assim que os discursos do medo se cristalizam, do perigosismo do discurso jurídico às concretudes erigidas pelas políticas criminais, produzindo espacialidades apartadoras, fronteiras indissolúveis e zoneamentos invisíveis. (BATISTA, Vera Malguti. A arquitetura do medo. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. a. 7, n. 12, p. 104-105, v. 12). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Ademais, aqueles que conseguem superar o medo e decidem não encarar os excluídos do mercado como inimigos chegam à conclusão de que a prisão sempre foi útil ao capitalismo e esteve o tempo todo lhe dando suporte para que continuasse radicalizando as desigualdades sociais, sem maiores efeitos colaterais. Portanto, basta um estudo histórico do encarceramento para compreender que a prisão é funcional ao modo de produção capitalista e jamais servirá para corrigir o seu funcionamento descontrolado tal como ocorre nos dias de hoje em tempos de globalização neoliberal.11 Aliás, sabe-se que a práticas disciplinares de poder, imprescindíveis para o surgimento e consolidação do capitalismo, há muito utilizam a prisão para ganhar concretude e docilizar os corpos daqueles que precisam ser normalizados, sejam para trabalhar na fábrica ou para deixar em paz os que fazem parte do mercado, conforme explicam os estudos desenvolvidos por Michel Foucault. Sobre o surgimento da prisão, este filósofo francês esclarece que esta “se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e centraliza.”12 Portanto, afirma que o surgimento da prisão apenas traduziu a exigência de uma aparelhagem disciplinar que se disseminou por todo corpo social a partir do século XVII, com intuito de tornar os corpos dóceis e úteis ao emergente capitalismo industrial. Por outro lado, destaca que a sua previsão legal como penalidade de detenção ocorreu somente por volta do final do século XVIII e princípio do século XIX, quando este poder disciplinar pulverizado por toda a sociedade se apropriou da instituição judiciária. Aliás, nesta atmosfera em que a disciplina do corpo era algo tão corriqueiro, a prisão como castigo previsto em lei para as condutas mais graves logo assumiu um caráter de obviedade, que eclipsou prontamente as demais formas de punição idealizadas pelos reformadores do início século XVIII13. 11) “A la brutal legislación penal de los siglos XVI y XVII le sigue progressivamente um complejo de medidas dirigidas a disciplinar a la población fluctuante y excedente a través de uma variada organización de la beneficencia pública por um lado y a través del internamiento institucional por outro. Surge uma nueva política social que, sobre el único fundamento de la aptitud para el trabajo subordinado, discriminaba entre el pobre inocente (el anciano, el nino, la mujer, el inválido) y el pobre culpable (el joven y el hombre desocupado): a las necesidades de supervivencia del primero se intentará hacer frente a través de la organización assitencial; para el segundo se usará la internación coactiva em el vasto archipiélago institucional que surgirá um poco por todas partes en la Europa protestante y también em la católica de los siglos XVII e XVIII.” (PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Madrid: Siglo Veintiuno, 1983, p. 32) 12) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 207 13) Por reformadores, entendem-se aqueles integrantes da primeira fase da Escola Clássica, mais especificamente os integerantes da Accademia dei Pugni, que se constituiu em Milão, por volta 1758: “Faziam parte desse seleto grupo milanês, dentre outros, Giuseppe Visconti di Saliceto, Luigi Lambertenghi, Antonio Menafoglio, Alfonso Longo, Giovan Battista Biffi, Pietro Secchi-Comnemo (‘il signore filosofiche’), a bela Antonia Belgioioso e, logicamente, Cesare de Beccaria e os irmãos Alessandro e Pietro Verri. Esse grupo fantástico de pensadores da

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Segundo Michel Foucault, desde os primeiros anos do século XIX todos pareciam convencidos de que a prisão era a única alternativa para o sistema punitivo, como se acreditassem que esta havia sido imposta à humanidade pelo movimento da história, ainda que conhecessem todos os seus inconvenientes e soubessem que ela sempre fora perigosa quando não inútil.14 Alude, ainda, o filósofo francês, que tal fenômeno de banalização da prisão encontra duplo fundamento, um de ordem jurídico-econômica e outro de ordem técnico-disciplinar. O primeiro fundamento remete ao fato de que prisão é concebida como um castigo igualitário na medida em que priva os cidadãos do único bem que pertence a todos da mesma maneira, isto é, da liberdade, ao contrário do que exemplificativamente ocorre com a multa, cuja aplicação tem seus efeitos determinados de acordo com o patrimônio de cada um. Não por outro motivo, considera-se que só a prisão está em verdadeira consonância com o princípio de igualdade formalmente consagrado pelos ordenamentos jurídicos elaborados a partir do século XVIII. Além disso, a prisão permite a contabilização do castigo em dias, meses e anos, o que estabelece equivalências quantitativas delito-duração e a sensação de que seu cumprimento enseja verdadeira reparação não só do sujeito lesado, mas de toda a sociedade por força da relação universal e constante que os cidadãos mantêm com o bem do qual ela os priva.15 Isto significa que a pena de prisão estabelece uma espécie de economia do poder punitivo, que se exerce na exata medida da reparação do dano causado pela prática do delito. Por certo, não são poucos os que negam este caráter retributivo da prisão, próprio de um modelo taliônico e incompatível com um sistema punitivo fundado no princípio da humanidade das penas. Todavia, é preciso compreender que este discurso humanista figura somente como um golpe de cena para mascarar o verdadeiro caráter reparatório da sanção de encarceramento nas sociedades modernas. Ora, a partir do momento em que se define a prisão como uma espécie de punição pela quebra do contrato social, considera-se inevitavelmente a supressão da liberdade como uma forma de restauração da ordem social e, conseqüentemente, como uma reparação de toda a sociedade por ter sofrido a violação de seu pacto. Certamente, este pensamento também se aplica aos dias atuais, mesmo após este direito penal fundado no princípio da soberania ter sido varrido pelos vida cultural e civil, organizados pelo fundador Pietro Verri e embriagados pelo enciclopedismo de Diderot e d’Alambert e pelas obras de Montesquieu, Voltaire e Rousseau, passam a divulgar surpreendente produção literária, entre as quais estão Meditazione sulla felicita (1763), de Pietro Verri; Dei delitti e delle penne (1764), de Beccaria; e Il Caffé, periódico criado e dirigido por Pietro Verri, publicado entre os anos de 1764-1766, com intuito de fazer uma guerra perene e incessante para melhorar as pessoas.” (CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 57). 14) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 208. 15) “Daí a expressão tão freqüente, e que está tão de acordo com o funcionamento das punições, se bem que contrária à teoria estrita do direito penal, de que a pessoa está na prisão para ‘pagar sua dívida’. A prisão é ‘natural’ como é ‘natural’ na nossa sociedade o uso do tempo para medir trocas.” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 208).

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ares neoliberais. Isto porque neste novo contexto a prisão continua a ser aceita como forma de reparar à violação ao pacto, mas agora não mais daquele criador do Estado, mas daquele que transferiu ao Mercado o controle e a proteção dos indivíduos, ou melhor, dos consumidores. Neste sentido, a prisão se converte numa forma de restabelecimento não da ordem social, mas aquela do próprio Mercado, e um modo de reparação não do cidadão, mas dos próprios consumidores.16 Por outro lado, como anteriormente referido, o segundo fundamento desta obviedade da prisão se encontra no papel disciplinar que ela desempenha a serviço do capitalismo vigente. Noutras palavras, a prisão foi banalizada porque é vista como o único aparelho capaz de transformar o comportamento dos criminosos, uma vez que reproduz de forma mais acentuada os mecanismos de treinamento, confinamento e docilização que se encontram pulverizados por todo corpo social. Neste sentido, Michel Foucault explica que a prisão não passa de um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria e por este caráter de suplemento corretivo teria alcançado plena aceitação da sociedade.17 Deste modo, a única diferença que se pode identificar entre a normalização imposta pela prisão e aquela produzida pelos mecanismos da própria sociedade é quantitativa, pois a disciplina das prisões é sempre incessante, despótica e visa à correção sem lacunas do indivíduo anormal. Aliás, dentre as acentuadas técnicas corretivas da detenção penal, a mais visível é sem dúvida o isolamento do indivíduo, que não consiste apenas no seu afastamento físico do corpo social, mas também moral e psicológico. Esta medida trata de cortar ou tornar raro o seu contato com o mundo exterior e, conseqüentemente, com os motivos que o levaram à prática da infração, para que no recôndito da solidão possa refletir sobre seus atos e sentir a culpa avolumar-se sobre os seus ombros, até que a repulsa pela conduta punida se torne insuportável e definitivamente promova a transformação de seu comportamento.18 Outro conhecido mecanismo corretivo da prisão é o trabalho, que impõe ao 16) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho denuncia este direito penal máximo estruturado em tempos de globalização neoliberal para conter a grande massa daqueles excluídos das relações de consumo: “Agora, não obstante, a situação é distinta. Dentro da mesma base legal – e a partir daquela constitucional –, concomitantemente com o tittyainment (e quiçá iludidos por ele), alguns penalistas, até então tidos como democráticos, quando não pios, têm pregado um direito penal máximo: é um verdadeiro terror legal. Integram eles aquele que se convencionou chamar de Movimento de lei e ordem. São, indisfarçavelmente, homens adeptos da ordem pela força, para os quais, em geral, os fins justificam os meios. Cegados (não seria propositalmente, pelo menos alguns?) pelas imensas dificuldades do cotidiano (a realidade tem sido impiedosa), não têm razão suficiente para colocar-se no lugar do outro, para perceber o diferente, para pensar em fórmulas capazes de resgatar os desviantes e, no final das contas, os criminosos. O dilema, contudo, é que um direito penal máximo não exclui ninguém, transformando todos em delinqüentes, sem embargo de que gente desse porte pensa-se, em geral, intocável, inatingível, esquecendo poder ser vítima da mesma lógica perversa que faz questão de não humanizar esse outro, mesmo ele, se for o caso, no seu próprio tempo.” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do pensamento economicista no Direito Criminal de hoje. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v. 31, 1999, p. 45 e 46). 17) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 209. 18) “Além disso, a solidão deve ser um instrumento positivo de reforma. Pela reflexão que suscita, pelo remorso que pode deixar de chegar.” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 212).

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detento uma atividade laborativa e o converte numa engrenagem industrial produtiva, de funcionamento ordenado e regular, isto é, em operário dócil e mecanizado segundo as normas gerais do regime capitalista. Finalmente, pode-se identificar uma terceira técnica de correção empregada pelo sistema carcerário, que se traduz na vigilância, na observação, no registro silencioso e incansável da biografia e do comportamento do preso para a prescrição de um tratamento individualizado e adequado à sua transformação. Em outros termos, a prisão se torna um estágio de observação do detento e certamente decisivo para a modulação de sua pena, que na perspectiva do atual sistema deverá atender aos anseios do capitalismo neoliberal. 19 Isto significa que o modo de cumprimento da pena será determinado de acordo com a capacidade de reinserção do indivíduo no Mercado, o que permite concluir que só serão cuidadosamente reeducados e terão direito a gozar dos benefícios dos regimes aberto e semi-aberto, da suspensão condicional da pena ou do livramento condicional20 aqueles possíveis consumidores. Note-se que todas essas técnicas de correção enumeradas têm por objetivo primordial fazer o indivíduo evoluir dentro da curva de normalidades do corpo social, que vai desde a escala da completa normalização até a delinqüência. Em síntese, todo este aparato carcerário recorre a três grandes esquemas, o político-moral do isolamento individual e da hierarquia; o econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório e o técnico-médico da cura e da normalização”21, com o intuito de classificar os indivíduos na escala de docilização capitalista e fazê-los nela evoluir. Atualmente, malgrado despontem algumas alternativas ao encarceramento, não se pode negar que a prisão continua a ser considerado o meio mais eficaz à correção do criminoso cuja conduta cause distorções na ordem imposta pelo Mercado. Portanto, é preciso reconhecer que a jurisdição ao atuar para resolver o caso penal, não tem outra saída senão submeter à pena de prisão o indivíduo considerado culpado pela violação não mais do pacto social criador do Estado, mas do pacto que transformou o Mercado na instância de controle social. É verdade que hoje têm previsão no ordenamento brasileiro as chamadas penas alternativas, as quais ao invés de levarem o indivíduo ao confinamento lhe impingem restrições ao exercício de certos direitos. Contudo, observa-se que tais penas não ganharam aceitação da sociedade naqueles casos em que o delito é considerado repugnante ou intolerável, pois seu grau corretivo é considerado insuficiente para reformar o criminoso que atenta contra a ordem de proteção aos consumidores. Até porque no Brasil a crise do sistema carcerário, determinada pelas superlotações e pela falta de políticas capazes de garantir nestes ambientes o mí19) O art. 5º, da Lei 7.210/84, estabelece as premissas para esta modulação da pena: “Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade para orientar a individualização da execução penal.” 20) A Lei 7.210/84 estabelece em seus arts. 110 e ss., as regras para a concessão de tais benefícios. 21) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 220. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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nimo necessário à sobrevivência humana, torna o efeito normalizador da prisão ainda mais intenso. Ora, percebe-se facilmente neste país, que a prisão provoca um isolamento profundo, prolongado para além dos limites temporais legalmente fixados e insuperável na medida em que relega o indivíduo definitivamente à condição de excluído do mercado, prescreve ao mesmo tempo um trabalho autômato e escravizante nas chamadas penitenciárias industriais, o qual jamais fornecerá subsídios à reinserção do detento no mundo neoliberal. Assim, constata-se que a jurisdição penal, na medida em que traduz o exercício de poder, só faz normalizar e no Brasil, mais especificamente, disciplinar os corpos para torná-los dóceis, úteis ao capitalismo que hodiernamente ganha nuanças neoliberais. Sabe-se que para o neoliberalismo os anormais e criminosos são aqueles que não consomem e representam algum perigo a esta ordem mercadológica excludente e as prisões neste contexto são verdadeiros mecanismos de contenção das massas excluídas. Aliás, para cumprir tal intento a prisão se especializa cada vez mais e se traveste em penitenciária de segurança máxima, a qual dispõe de todo um aparato cibernético de vigilância dos detentos e impõe o seu isolamento completo e quase irreversível, principalmente quando sua atuação oferece algum perigo para aqueles que controlam o Mercado, como é o caso dos traficantes de entorpecentes, cuja atividade movimenta capital imensurável. 22 Veja-se que no Brasil esta espécie de prisão teve seu regime de detenção regulamentado recentemente pela Lei nº 10.792/03. Por fim, é preciso destacar que não há qualquer diferença teórica ou prática entre a prisão-pena e a prisão cautelar, mas apenas retórica, pois a prisão cautelar possui praticamente os mesmos efeitos da prisão-pena, ainda que trate de antecipá-los para o momento processual na forma de prisão preventiva, prisão em flagrante e prisão temporária. Assim, ao contrário do que afirmam os manualistas do processo penal brasileiro, as prisões processuais se traduzem em verdadeiro cumprimento antecipado do encarceramento-pena e sua execução em nada se distingue deste. Isto quer dizer que não mais se sustenta a falácia de que no processo penal brasileiro 22) Alessandro Baratta, ao tratar dos processos de criminalização na sociedade atual, assevera que “o desvio deixa de ser uma ocasião – difusa em todo corpo social – para recrutar uma restrita população criminosa, como indica Foucault, para transformar-se, ao contrário, no status habitual de pessoas não garantidas, ou seja, daqueles que não são sujeitos, mas somente objeto do novo ‘pacto social’. Talvez, em breve, para disciplinar tais estratos sociais, bastará a criação de grandes guetos controlados por computador (na medida em que a disciplina do trabalho e do consumo será suficiente para satisfazer a necessidade de ordem na população garantida). Em tal sociedade, a originária função do aparato penitenciário, no momento do surgimento da formação social capitalista – ou seja, a função de transformar e produzir o homem, adaptando-o à disciplina da fábrica, e de reproduzir a mesma disciplina como regime da sociedade em geral -, estará definitivamente superada. A inversão funcional da pena privativa de liberdade, que se exprime com o nascimento do cárcere especial, do cárcere de máxima segurança, poderia manifestar, neste sentido todo o seu significado.” (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Trad.: Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan e ICC, 2002, p. 196).

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não se promove à execução antecipada ou provisória da sentença penal, até porque esta é plenamente compatível com a hegemônica e irrestritamente adotada Teoria Geral do Direito Processual. Neste sentido, Eugenio Raul Zaffaroni denuncia que os países da América Latina utilizam irrestritamente a prisão cautelar para conter os inimigos, inclusive aponta a existência de dois sistemas penais, um que opera antes da condenação e outro depois. Desta forma, demonstra que tal prisão não tem propriamente caráter processual e esclarece que apesar de suas modalidades estarem previstas nos códigos de processo penal, suas regras possuem natureza penal, pois não buscam simplesmente assegurar o bom andamento da persecução penal e sim infligir sofrimento, impor pena,23 principalmente quando decretadas para garantir a ordem pública ou econômica.24 Ademais, este autor destaca que tal espécie de sistema penal cautelar foi amplamente difundida na Alemanha nazista, sob a justificativa de que a prisão preventiva não deveria servir apenas para evitar o perigo de fuga do acusado ou o apagamento das provas no futuro, mas também deveria ter como objetivo a proteção da comunidade diante dos fatos que o acusado poderia cometer em liberdade ou diante do risco de quebra da ordem pacífica do povo. Com base neste exemplo, alerta que ignorar o fenômeno da hipertrofia do sistema penal cautelar, pode gerar um encobrimento do aumento considerável do poder punitivo estatal por intermédio de uma legislação aparentemente processual.25 Veja-se que o penalista argentino em poucas palavras conseguiu demonstrar que as atuais práticas de poder encontram na prisão processual uma medida eficaz para conter os inimigos dos incluídos e tratam de fundamentar retoricamente sua compatibilidade com o direito vigente pretensamente democrático a partir de argumentos que tem o único objetivo de invocar o medo dos que se sentem ameaçados com as investidas violentas dos excluídos. Em síntese, ele foi capaz de sucintamente expor a falta de proficiência do debate inicialmente delineado entre garantistas e defensores da segurança a qualquer preço, bem como deixou claro que a resposta para este impasse passa inicialmente pelo questionamento das práticas de poder que estão por trás do caráter fisiológico da prisão nas atuais sociedades ocidentais e não pela afirmação do discurso jurídico apropriado por tais práticas para justificar a prevalência da segurança sobre a presunção de inocência no momento da ponderação dos valores constitucionais. Note-se que ele não propõe nenhuma idéia mirabolante para conter a difusão da prisão processual em tempos de capitalismo neoliberal, até porque ainda não se encontrou uma substituta para ela. Todavia, este penalista dá o primeiro 23) ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 109-114. 24) “Completamente inaceitável, diante da absoluta inconstitucionalidade, a ‘futurologia perigosista’, como denominou o Relator, comumente invocada para decretar uma prisão preventiva com base na ‘possível’ reiteração de delitos. A prisão preventiva para garantia da ordem pública ou econômica nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que legitimam esses provimentos.”(LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, p. 210) 25 ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 109-114.

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passo no sentido de questionar os fundamentos que alçam à prisão ao lugar de única solução possível para a insegurança social. Enfim, pode-se dizer que é exatamente esta a proposta da presente fala, romper com o senso comum jurídico e iniciar os questionamentos sobre a eficiência da prisão processual na tarefa de amenizar os efeitos colaterais da atual globalização de nuanças neoliberais. Sabe-se que a solução do problema gerado pela crescente exclusão está longe de ser alcançada, até porque o modo de produção capitalista foi internalizado de tal maneira que dele não conseguimos nos desvencilhar para pensar noutras saídas senão na prisão. Contudo, tem-se consciência de que é preciso começar, afinal, chegará o momento em que o processo de exclusão social em andamento atingirá o seu limite, os cárceres não serão mais suficientes para garantir a segurança dos incluídos e a mencionada solução deverá ser apresentada rapidamente sob o risco de eclosão de uma barbárie sem precedentes.

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Influência do princípio inquisitivo no processo penal brasileiro

Fabiane Ivanski Silva Langer Graduada em História pela UFPR e em Direito pela UniBrasil

CONSIDERAÇÕES INICIAIS O fim do Império Romano, em 476, dá início a um novo período na História da Humanidade que ficou conhecido como Idade Média. É nesse contexto que se inicia a presente pesquisa, analisando-se as formas pelas quais foram acontecendo as principais transformações no campo político, econômico e social na Europa Ocidental, e, como essas mudanças passaram a atingir o modo pelo qual a justiça era entendida e aplicada nos seus mais diferentes aspectos, especialmente aqueles que mais dizem respeito ao Processo Penal. Dotado de um viés eminentemente histórico, o primeiro capítulo do trabalho atentará para o período das chamadas invasões bárbaras e para o fato de que estas em muito contribuíram para que ocorresse uma incorporação na cultura clássica (greco-romana) então existente, de institutos genuinamente bárbaros, o que veio a contribuir, entre outros fatores, com aquilo que se convencionou chamar de Sistema Feudal. O período da Idade Média representou uma profunda mudança de mentalidade nos séculos em que esteve em vigor, ou seja, desde 476 (com a Queda do Império Romano) até 1453 (com a Tomada de Constantinopla pelos turcos), implantando na Europa Ocidental o Feudalismo cujas características preponderantes se fizeram sentir nos campos econômico, político, social e, sobremaneira, no aspecto religioso. Por isso, o segundo capítulo destina-se à análise daquela que representou, por assim dizer, a “grande senhora feudal”: a Igreja Católica, pois foi no seio dessa poderosa instituição que nasceu o Princípio Inquisitivo, dentro do chamado Direito RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Canônico. Nesse sentido, faz-se interessante uma análise do processo de ascensão ao poder que foi gradualmente sendo galgado pela Igreja ao longo do período examinado, pois isso representou uma série de mudanças em praticamente todos os setores da vida medieval, notadamente no setor político, haja vista a aliança firmada entre a Monarquia e o Clero. Tal aliança que possibilitaria, com o passar do tempo, no nascimento de um novo tipo de processo: O Processo Inquisitivo. Como característica fundamental do Direito Canônico, o Princípio Inquisitivo, posteriormente levado à legislação laica, trouxe ao Processo a utilização da tortura como forma de se chegar à verdade real, transformando o sistema processual naquilo que conhecemos como Sistema Inquisitório Puro. Cumpre ressaltar que o Brasil, enquanto colônia de Portugal, sofreu as marcantes influências daquele período, uma vez que sua Metrópole lusitana sempre foi referência enquanto adepta do sistema inquisitorial. Em razão disso, no terceiro capítulo do presente trabalho, proceder-se-á ao estudo acerca da atuação da Inquisição em terras portuguesas, uma vez que, em sua administração no Brasil, Portugal se valeu dos mesmos métodos inquisitivos. Entretanto, mesmo após sua independência, no tocante aos aspectos processuais, embora tenha tido diferentes legislações, o Brasil sempre adotou um sistema processual com feição inquisitória.

1 A EUROPA OCIDENTAL NA IDADE MÉDIA 1.1 O INÍCIO DE UMA NOVA SOCIEDADE: FORMAÇÃO DAS ESTRUTURAS FEUDAIS

O ano de 476 marcou na História da Humanidade o fim da Idade Antiga e o começo do período conhecido como Alta Idade Média. O fator determinante para o início de tal período foram as invasões bárbaras1, porém, o fim do Império Romano não conta com uma data precisa de seu desaparecimento, uma vez que seu declínio foi um processo gradual que culminaria em 476 d.C, quando Odoacro depôs o último de uma série de imperadores romanos, Rômulo Augusto, pondo fim a um longo período que iniciara em 27 a.C. com César Augusto2. Insta salientar, conforme ressalta Jaques Le Goff, em sua obra A civilização do Ocidente Medieval, que:

1) “Esses bandos de aliados germânicos tinham permissão de estabelecer povoações ao longo da fronteira, do lado romano em troca de sua ajuda na defesa da fronteira contra outras tribos residentes do outro lado. Esse sistema era um grave augúrio do declínio e do poderio romano. No século IV, porém romperam-se as comportas e germanos começaram a derramar-se através da fronteira em número suficiente para engolfar o império. Em algumas regiões os romanos fizeram tentativas vãs para deter a onda, mas na maioria, reconhecendo que a resistência seria desesperada, salvaram o orgulho tratando os invasores como “aliados” a quem permitiam instala-se no solo imperial” (SAVELLE, Max. História da civilização mundial: a civilização Atlântica, Belo Horizonte: Vila Rica, v.2, 1990. p.122). 2) Id.

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Os bárbaros que se instalaram no Império Romano no século 5º não eram mais os povos jovens e selvagens saídos há pouco das florestas ou da estepe, como vieram a ser retratados pelos seus detratores da época ou por seus admiradores modernos. Tinham já evoluído bastante durante seus deslocamentos, seculares em vários casos, que por fim os lançaram sobre o mundo romano. Tinham muito aprendido e muito retido. No caminho, entraram em contato com culturas e civilizações das quais emprestaram costumes, artes e técnicas. A maior parte sofreu influência direta ou indireta das culturas asiáticas, do uito iraniano e do próprio mundo greco-romano - notadamente a sua parte oriental, que continuava a ser a mais rica e a mais brilhante enquanto ia se tornando bizantina.3

No campo do Direito, os germanos não possuíam leis escritas. Suas leis se fundamentavam nos usos, costumes e tradições. Foi o chamado Direito Consuetudinário, “esse direito, que não estava estabilizado pela escrita era utilizado pelos tribunais que proveriam suas decisões puramente orais (...), o papel somente tinha a finalidade de registrar a lista de testemunhas”4. Nesse sentido, o acesso ao tribunal era livre e as penas podiam variar de acordo com a proporção da ofensa e, via de regra, constituíam-se na aplicação de multas. As penas de morte, prisão ou punição física, a seu termo, ficavam a cargo da Igreja que através de juramentos e ordálios constatava a inocência ou a culpabilidade do suposto criminoso5. Em assembléias julgavam-se diversos delitos6. Com o passar do tempo, na Europa Ocidental, “as leis começaram a ser compiladas. A coleção completa constituía uma extensa enumeração de toda espécie de delitos”7. Mesmo com a adoção do direito consuetudinário, o direito romano não deixou de ser aplicado durante o período medieval na Europa Ocidental, porém, sua aplicação passou por profundas transformações, visto que passou a sofrer oposição de muitos homens da Igreja devido ao seu caráter pagão e, na visão de March Bloch: “na França do sul, onde a traição consuetudinária tinha conservado fortemente a influência romana, os esforços dos juristas, ao permitirem daí em diante o recurso aos 3) LE GOFF, Jaques. A civilização do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2005. p. 25. 4) BLOCH, March. A Sociedade Feudal. Rio de Janeiro, Setenta, 1998. p.131. 5) ANDERSON, Perry. Passagens da Antigüidade ao Feudalismo, São Paulo: Brasiliense, 2000. p.113. 6) “... seus depoimentos das testemunhas não eram suficientes para demonstrar a culpabilidade do acusado, a questão se resolvia de um modo particular, denominado de Julgamento de Deus. O acusado deveria purificar-se da acusação por meio de um juramento. Com ele, deviam pronunciar o juramento seus parentes. Era necessário fazê-lo de memória, sem qualquer equívoco: o menor erro significava a condenação. Os homens de então consideravam que era o próprio Deus quem não permitia ao acusado pronunciar corretamente o juramento e mostrava sua culpabilidade devia tomar em suas mãos um ferro aquecido ao rubro ou por a mão em água fervendo. A mão queimada era vendada e algum tempo depois a ferida era examinada: se cicatrizava bem, o acusado estava absolvido, caso contrário, condenado. Existia outra forma de ‘julgamento de Deus’: o duelo judicial. O vencedor ganhava a causa. O culpado devia pagar-lhe uma multa. Parte da multa beneficiava a vítima ou seus parentes mais próximos, outra o seu clã e outra, ainda, o rei” [grifos no original] (KOSMINSKY, E. A. História da Idade Média, Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1960. p. 20). 7) Ibid., p.21. 8) BLOCH, March. Op.cit., p.135. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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textos originais, acabaram por elevar o direito escrito à categoria de uma espécie de direito comum que se aplicava na falta de costumes expressamente contrários”8. Ainda quanto a essa questão, Perry Anderson9: O sistema legal e constitucional desenvolvido na Idade Média era híbrido. Uma justiça de caráter realmente popular e uma tradição de obrigações formalmente recíprocas entre governantes e governados numa comunidade tribal pública deixaram marca muito difundida nas estruturas jurídicas do feudalismo, mesmo quando as cortes populares não sobreviveram, como aconteceu na França. (...). Por outro lado, o legado romano de uma lei codificada e escrita foi também de importância central para a síntese jurídica específica da Idade Média; a herança.

A despeito do regime jurídico existente na Idade Média, este será mais bem aprofundado no item destinado ao papel desempenhado pela Igreja ao longo do Período Feudal. Durante o período das invasões bárbaras, a Europa foi assolada pela invasão de várias tribos. Povos como visigodos, ostrogodos e francos se fixaram em várias regiões da Europa, no entanto, com o passar do tempo foram sendo destruídos ou conquistados. Apenas o reino franco se estruturou na região da Gália, em virtude da aliança firmada entre a monarquia franca e a Igreja que começava, a partir de então, seu trabalho de conversão dos povos bárbaros invasores e, ao mesmo tempo, garantia aos soberanos francos a legitimidade no poder10. Teve início, então, a aliança do poder espiritual, representado pela Igreja, ao poder temporal, representado pelo monarca. Nesse sentido a Igreja, no período denominado Império Carolíngio, passou a legitimar a coroação do monarca que estaria, além do poder temporal, legitimado pelo poder divino11. Assim, por volta do ano 800, Carlos Magno (dinastia Carolíngia), apoiado pela Igreja, unificou toda a Europa Ocidental que se fundamentava na mistura dos mundos bárbaro e romano tendo por base a religião cristã que ganhava novos contornos12. É nessa conjuntura que nasceu o feudalismo enquanto um sistema social, político e econômico que vigorou na Europa no período denominado Idade Média e que durante um longo período marcou a história da Europa Ocidental com as características que lhes são inerentes e cuja influência ultrapassou os séculos. Insta salientar, no entanto, que o seu nascimento não coincidiu com o fim do Império Romano. Nesse sentido, esclarece-nos o autor William Bark Carroll relata que a Idade Média começou não quando o feudalismo ou algo semelhante se apresentou totalmente, mas muito antes, com as transformações políticas, econômicas e 9) ANDERSON, Perry. Op.cit., p.126. 10) SAVELLE, Max. Op.cit., p. 29. 11) “... o concílio de Paris de 1929 definiu os deveres do Rei (...) que consiste especialmente em governar e reagir o povo de deus na equidade e na justiça sendo defensor das Igrejas. Em troca a Igreja sacralisa o poder real. Todos os súditos deviam submeter fielmente e com obediência cega, pois ‘aquele que resiste a tal poder resiste à ordem desejada por Deus’ “ (LE GOFF, Jaques. Op.cit., p. 273-274). 12) SAVELLE, Max. Op.cit., p.33.

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sociais, que em algumas regiões conduziram finalmente ao feudalismo. Politicamente, o Império Romano não era mais eficaz e o governo imperial não pôde dominar o crescente poder dos potentiores. Economicamente, o império ocidental faliu quando a classe média desapareceu e os camponeses foram reduzidos a um estado dependente. Socialmente, o fim ocorreu quando os homens, romanos de nascimento e descendência livre, tiveram que escolher entre a escravidão e a emigração. Finalmente, todos esses fatores somados conduziram a um mesmo fim, ou seja, a vida no feudo sob o domínio de um senhor feudal.13 Do exposto, deve-se entender que “a formação do mundo medieval resultou do encontro e da fusão do mundo romano e bárbaro que se misturava, bem como da convergência das estruturas romanas e das estruturas bárbaras em transformação. Sem dúvida os bárbaros adotam tanto como podem o que o Império Romano legou de superior, sobretudo no domínio da organização política”14. Portanto, a queda do Império Romano representou o início do período da Idade Média que teve no feudalismo seu principal fundamento. É importante salientar, no entanto, que o feudalismo teve suas origens na Europa no tempo em que não havia governo forte e, por isso, a descentralização operada pelo sistema feudal foi fruto da insegurança que permanentemente assolava as populações na idade antiga. Por isso se fazem necessárias algumas considerações que forçam admitir que o feudalismo já ensaiava seu modelo ainda nos tempos romanos, como demonstra William Bark Carroll: É evidente que as origens da seigneurie medieval remontam na história aos tempos romanos e, mais longe ainda, a uma obscura era de chefes rurais. O passar dos séculos revestiu essa essência com sucessivas camadas de costumes. Na era romana surgiram as grandes propriedades, os latifundia, que empregavam um grande número de escravos e habitualmente alguns camponeses dependentes. A partir do século II, as modificações nas condições econômicas, militares e religiosas se combinam com as invasões, transformando paulatinamente os escravos em arrendatários, dentro em pouco eram idênticos (exceto na lei) aos arrendatários servis. Certas palavras (servus, por exemplo, que se torna servo na língua românica) e certas expressões legais preservaram a idéia de escravidão ou de origem servil.15 [grifos no original].

Nesse sentido, importante salientar que no decorrer desse período o elemento mais importante que veio constituir a classe dos servos durante os séculos IX ao XII, não foi o escravo, mas, sim, o homem livre. No entanto, havia diferenças entre os chamados coloni que cultivavam as terras no Império Romano, e os homens livres de origem germânica que se estabeleceram em território romano. Justiniano escreveu sobre os colonus distinguindo-os claramente dos escravos. Nesse período, no entanto, houve um significativo aumento do controle do senhor 13) CARROLL, William Bark. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1966. p. 94. 14) LE GOFF, Jaques. Op.cit., p. 33-37. 15) CARROLL, William Bark. Op.cit., p. 94. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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sobre o servo que, apesar disso, passou a contar com algumas vantagens, pois já não podia ser expulso da terra, embora pudesse ser transferido para outra propriedade. Quanto aos germânicos, os escritos de Tácito mostraram claramente que estes tinham agricultores escravos, como também inúmeros homens livres, porém dependentes de seus senhores. Devemos, portanto, considerar que o status livre, tanto no Império Romano, quanto nos povos de origem germânica, sofreu um lento processo de deteriorização em virtude da inexistência de um governo central forte que levou os fracos a, conseqüentemente, buscar proteção16. Com a divisão do Império Carolíngio em 843, começaram a ocorrer as chamadas últimas invasões bárbaras no século IX, que influenciaram os rumos tomados pelo nascente sistema feudal, ou seja, devido à insegurança que era promovida pelos invasores, o processo de descentralização política fortaleceu-se ocasionando a ruralização da economia, o declínio do comércio e condicionando, a partir de então, o processo de feudalização na Europa17. Começaria, então, o desenvolvimento do processo de feudalização da Europa Ocidental, ou seja, “a descentralização do poder político em vários feudos (unidade de produção) que permitia ao senhor feudal administrar de forma independente sua vila”18. No entanto, no tocante ao Direito Germânico, estes consideravam a lei como pessoal e não como territorial, dificultando, assim, a apreensão do conceito romano de lei. Quanto a essa questão nos esclarece Max Savelle: Entre os germânicos, como em outros povos primitivos, a base da tribo devia ser um laço de parentesco entre famílias que ela compreendia. (...) as leis da tribo governavam todas as pessoas que habitassem num local específico. Na grande época de suas migrações, as tribos transportavamse por distâncias de muitas milhas. Quando uma tribo se instalava em nova terra, não encarava como seus membros quaisquer outros povos que por acaso habitassem o local onde então ela se fixava. Esse princípio da personalidade da lei, derivado do costume germânico, teria muita significação prática na Era Feudal da história da Europa Ocidental: só depois de muitos séculos foi suplantada pela idéia mais nova da territorialidade da lei. (...). Em regra geral, portanto, os germânicos procuravam perpetuar sua própria lei tribal nos assuntos referentes aos germanos, ao mesmo tempo em que tentavam aplicar o direito romano nas questões referentes à população nativa romanizada. Desse modo, a lei romana não desapareceu, mas sobreviveu em forma degradada, como se nada mais fosse do que o “costume tribal” dos povos conquistados do ocidente europeu19.

Quanto às características das grandes propriedades nas quais os servos trabalhavam, Gerald A. J. Hodgett em seu livro História Social e Econômica da Idade Média, aduz que existiam muitos tipos diferentes de propriedade. As diferenças 16) HODGETT, Gerald A. J. História social e econômica da Idade Média, Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 35. 17) ANDERSON, Perry. Op.cit., p.137. 18) HODGETT, Gerald A. J. Ibid, p. 36-38. 19) SAVELLE, Max. Op.cit., p.119-133.

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originaram-se tanto de fatores geográficos e políticos quanto de condições climáticas e de solo. Nas regiões da Europa que foram abrangidas pelo sistema feudal, três características principais dessas grandes propriedades podem ser encontradas: as reservas do senhor (terra indominicata), os estabelecimentos camponeses, a terra comum e a floresta. A administração das operações agrícolas na reserva senhorial e mesmo, em certo sentido, em toda a propriedade era dirigida da casa do senhor feudal ou, mais corretamente, de um conjunto de construções que incluíam também os celeiros, currais e oficinas do senhor. Essas construções, algumas vezes fortificadas, eram chamadas em latim curtis, a corte ou cercado. 20 O procedimento feudal estava estruturado no juramento de fidelidade, homenagem e investidura, pelo qual o servo se comprometia para com o seu senhor. E, a partir do momento em que um vassalo estava sob essa proteção, estava obrigado a pagar por ela. Tal pagamento se dava sob a forma de tributos ou serviços garantindo, dessa forma, a subsistência das classes nobres que viviam à custa dos servos e modelavam o sistema de acordo com as suas conveniências e a ocasião. Assim, a característica primordial do feudalismo reside no fato de que os proprietários de terras exerciam também o poder político, pois a descentralização que se operou no sistema Feudal, possibilitou que cada feudo fosse administrado pelo senhor feudal em seus vários setores, ou seja, político, econômico e social. Nesse sentido, de acordo com o autor Max Savelle, o feudalismo abarcava apenas as pessoas integrantes da nobreza. Eram essas as pessoas que geriam a riqueza e o poder militar da terra, mais a população também incluía milhões de camponeses e dezenas de milhares de mercadores e artesãos que viviam nas cidades. Estes últimos, muitas vezes, estavam sob a jurisdição de um senhor feudal, mas, por não serem nobre de nascimento, não poderiam participar das relações feudais que uniam senhores e vassalos.21 Em linhas gerais, Jacques Le Goff traça as seguintes características marcantes do sistema feudal: Em primeiro lugar, o feudalismo é o conjunto de laços pessoais que unem entre si, hierarquicamente, os membros das camadas dominantes da sociedade. Tais laços apoiam-se numa base real: o benefício que o senhor concede a seu vassalo em troca de um certo número de serviços e de um juramento de fidelidade. Em sentido estrito, o feudalismo é a homenagem e o feudo. O senhor e seu vassalo uniam-se pelo contrato vassálico, mediante a prestação de homenagem. O importante é que o feudo quase sempre era uma terra. Esse fato faz o feudalismo assentar sobre sua base rural e torna manifesto que se trata, em primeiro lugar, de um sistema de posse e exploração da terra. (...) O que assegurava o domínio crescente do vassalo sobre o seu feudo era, evidentemente, a hereditariedade desta peça essencial do sistema feudal. 22

20) HODGETT, Gerald. A. J. Op.cit., p. 41-42. 21) SAVELLE, Max. Op.cit., p.149. 22) LE GOFF, Jaques. Op.cit., p. 84-85. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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O feudalismo era uma sociedade de ordens, ou seja, não havia mobilidade social. E, a despeito da divisão da sociedade feudal em classes distintas, vem ao encontro da obra de Geoges Duby, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, que apresenta a sociedade feudal assentada sobre três pilares distintos: os que oravam (a igreja), os que combatiam (nobres/cavalheiros) e os que trabalhavam (os camponeses). Nesse sentido, a antiga centralização da vida social em torno da cidade-pólis foi sendo pouco a pouco substituída pela segurança dos feudos, o que passou a caracterizar o período medieval como que quase absolutamente rural23. Nesse sentido, pode-se afirmar que a vida feudal girava em torno do feudo, que representava uma unidade rural que se apresentava de forma auto-suficiente. Nessa mesma linha de raciocínio, volta-se Jaques Le Goff, no livro a Civilização do Ocidente Medieval, quando diz que: Nas proximidades do ano mil, a literatura ocidental apresenta a sociedade cristã segundo um esquema novo que logo conhece grande sucesso. A sociedade é composta por um “povo triplo”: sacerdotes, guerreiros, camponeses. Três categorias distintas e complementares, cada uma necessitando das outras duas. Seu conjunto forma o corpo harmonioso da sociedade. (...). A casa de Deus, que se crê una, esta assim dividida em três: uns oram, outros combates, e outros, enfim, trabalham. Essas três partes que coexistem não sofrem com sua disjunção; os serviços prestados por uma são a condição da obra das outras; e cada uma, por sua vez, encarrega-se de aliviar o todo. Assim, essa tripla associação não é menos unida, e a lei tem podido triunfar e o mundo tem podido gozar de paz. 24

O Período Medieval é caracterizado por profundas mudanças operadas nos mais variados setores da sociedade, sejam eles, sociais, políticos ou econômicos. Até mesmo a concepção de tempo foi influenciada por essa nova maneira de pensar. Nesse sentido, pode-se dizer que o tempo medieval era principalmente religioso e clerical25.

1.2 A IGREJA NA IDADE MEDIA: ASPECTOS GERAIS 23) DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa Lisboa, 1982. p. 299. 24) LE GOFF, Jaques. Op.cit., p. 257-258. 25) “... tempo religioso porque o ano é, antes de tudo, litúrgico. Mas – característica essencial da mentalidade medieval -, o ano litúrgico, foi aos poucos sendo recheado com momentos e dias significativos também dos santos. As festas dos grandes santos vieram a se intercalar no calendário cristológico e a festa de Todos os Santos (1º. de novembro) tornou-se, junto com o natal, a páscoa, a ascensão e o pentecostes, uma das grandes datas do ano religioso. O que fez aumentar a atenção das pessoas da Idade Média para com estas festas, o que lhes confere definitivamente seu caráter de data é que, além das cerimônias religiosas especiais e muitas vezes espetaculares que as marcam, elas eram ponto de referência da vida econômica: datas de pagamento das rendas agrícolas, dias de feriado para os artesãos e trabalhadores em geral. Tempo clerical porque o clero, por sua cultura, domina a medição do tempo. Só ele, para a liturgia, tem necessidade de medir o tempo, só ele é capaz, ao menos de um modo aproximado, de fazê-lo. O cômputo eclesiástico e, antes de tudo, o cálculo da data da páscoa, estão na origem dos primeiros progressos para medir o tempo. O tempo medieval era ritmado pelos sinos. Os toques dos sinos, feito para os cléricos, monges, para os ofícios litúrgicos, eram os únicos pontos de referência diários. O toque dos sinos fazia conhecer o único tempo cotidiano parcialmente medido, o das horas canônicas, que regulava a atividade de todos os homens.” (LE GOFF, Jaques. Op. cit., p.175-176).

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Até aqui tratou-se de apresentar um breve relato sobre a conjuntura histórica da Idade Média, berço do sistema inquisitório, partindo das invasões bárbaras e a conseqüente queda do Império Romano do Ocidente, até o momento da estruturação das bases e fundamentos do sistema feudal. No entanto, é importante ampliar a contextualização deste processo, inserindo-se na organização do sistema feudal a única instituição que “sobreviveu à devastação provocada pelas imigrações germânicas, bem como aquela que registrou a queda definitiva do Império Romano dando origem a reconstrução do mundo ocidental sob a sua tutela: IGREJA”26. No início da Idade Média, a Igreja foi a instituição que desempenhou o papel mais dinâmico e progressista. Em meio ao caos, provocado pelas constantes invasões e saques, conseguiu preservar muito da cultura do Império Romano. É importante salientar também que a Igreja, enquanto legítima senhora feudal, geralmente possuía melhor habilidade no tocante a administração de seus feudos mas, em contrapartida, mantinha um relacionamento de caráter mais agressivo com seus servos. Como dissemos anteriormente, a Igreja transformou-se na mais poderosa influente instituição do feudalismo, aparecendo como árbitro do poder real e conferindo a este seu caráter divino. Desta maneira, segundo Jacques Le Goff, a sociedade feudal seria “bicéfala”, ou seja, teria duas cabeças: o Papa e o Imperador27. A afirmativa acima fica ainda mais clara nas palavras de Daniel Valle Ribeiro, quando este afirma que diante da situação de pobreza espiritual e moral que reinava naquela época, a Igreja voltou-se para a clericalização da sociedade, isto é, buscou exercer maior influência no sentido de afastar a cristandade dos assuntos do mundo. E assim, para poder realizar mais plenamente o plano da cidade de Deus (a cidade celeste) na terra, os representantes da Igreja buscaram apoio no poder laico. Efetivamente, desde o século V, a Igreja pôde contar com imperadores voltados a reconhecer a jurisdição pontifícia. A alta Idade Média consagrou essa tendência, ou seja, a prática religiosa, portanto divulgou-se graças ao prestígio da doutrina e ao aparo do poder laico.28 E no embate entre o poder temporal e o poder espiritual, a Igreja começa a levar vantagem sobre o Estado em muitos campos29. A Igreja, como vimos, detinha o conhecimento e o interpretava de acordo com seus interesses e aspirações. Nesse sentido, o campo filosófico também era monopolizado e, em assim sendo, como nos explica William Bark Carroll, a filo26) RIBEIRO, Daniel Valle. A cristandade ocidental medieval. São Paulo: Atual, 1988, p.17. 27) LE GOFF, Jaques. Op.cit., p. 267. 28) RIBEIRO, Daniel Valle. Op. cit., p. 20. 29) “A administração pública passou a ser regida segundo os princípios da moral cristã. (...) desejavam um governo de forte influência religiosa em que o poder fosse exercido direta ou indiretamente pelos sacerdotes. (...) além disso, os bispos – críticos impiedosos do governo e da administração leiga – atribuíam ao clero o papel de juízes da sociedade, vez que era o interprete exclusivo da sagradas escrituras. Ao proclamarem a reforma das sociedades leigas e religiosas, os bispos desviaram-se de seu ministério espiritual e tomaram partido entre os herdeiros do poder imperial, assumindo cada vez mais papel influente nas decisões políticas” (Ibid., p. 43).

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sofia aliou-se, dessa vez, com a teologia; a partir de então, durante alguns séculos a vida intelectual se fundamentaria sob a orientação da Igreja. O conhecimento do passado foi em grande parte mantido e transformado, em parte virtualmente ignorado. Os líderes cristãos, acima de todos, Santo Agostinho, lutaram com energia e êxito para reorganizar os padrões do pensamento e adaptar o conhecimento clássico utilizando-se, para tanto, a inspiração de Platão.30 A lógica platônica defendia que a verdade do mundo sempre estava em Deus, e a Igreja, que tinha acesso a tudo isso, reuniu em torno de si um grande poder. Na hierarquia feudal, a moral religiosa ocupava lugar de destaque e, nesse sentido, o comércio (usura) era condenado tal qual a ciência, porque a verdade religiosa era indiscutível. Assim, foi-se legitimando e justificando uma filosofia teológica em detrimento de um pensamento científico31. A filosofia escolástica impôs uniformemente suas teses aos intelectuais e, por isso, “a difusão do aristotelismo se manifesta como uma série ameaça à doutrina cristã”32. E as escolas, que durante vários séculos estarão nas mãos do clero, tiveram seu conhecimento monopolizado por estes. Dessa maneira, numa sociedade de ignorância generalizada, a Igreja detinha em suas mãos dois instrumentos indispensáveis para a dominação: a leitura e a escrita. Dessa forma, na disputa pelo poder, a Igreja vai até o século XI reunindo todas as condições favoráveis para sobrepor-se perante o Estado. Isso aconteceu, como dissemos anteriormente, devido ao fato de que, antes da formação dos burgos, a Igreja e os monastérios eram os únicos centros de formação. Já no século XIII, com o Papa Inocêncio III, o papado alcançou seu maior poderio33. No entanto, entre os séculos X e XIII começa acontecer uma gradual revitalização do comércio e, em conseqüência, as pessoas, principalmente comerciantes, servos descontentes e artesãos, começam a ir para as cidades e “com a ascensão de novas classes, aparece um novo sistema de valores que não mais respeita o caráter sagrado dos prelados (...) muitos movimentos urbanos passaram a se opor, através de constantes revoltas, ao poder tirânico exercido pelos eclesiásticos”34. Importante salientar também, segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que “a partir do ano 1000, mais ou menos, com o aumento das caravanas de 30) CARROLL, William Bark. Op.cit., p.103. 31) “A Igreja – esse estado que se fortalece a par dos reinos e dos principados (...) acha que deve manter cativos os seus súditos pelo sentido do pecado. Pela ameaça do inferno e dos castigos purgatórios. Daí a pressão cada vez mais forte, sobre as representações da organização social que emana das gentes da Igreja, de uma definição, de uma classificação das intenções pecaminosas. Os critérios da culpa substituem-se, insensivelmente, aos critérios funcionais” (DUBY, Georges. Op. cit., p. 342). 32) GIORDANI, Mário Curtis. História do mundo feudal. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1983. p. 21. 33) “... o Papa Inocêncio III considerava que o Papa devia ser, não somente o soberano espiritual, mas também o principal entre os soberanos terrenos (...) as riquezas do Papa cresciam rapidamente. Inocêncio III introduziu a “coleta da cruzada”, que era arrecadada aparentemente para a preparação dessas expedições, mas que continuou em vigor depois, mesmo quando as Cruzadas haviam cessado” (KOSMINSKY, E. A. Op. cit. p.104). 34) LE GOFF, Jaques. Op. cit., p. 297

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mercadores, freqüentemente comandadas por hebreus e árabes (e, portanto, nãocristãos), cada vez mais aparelhadas belicosamente, começam a aparecer os entrepostos comerciais e, de conseqüência, as cidades e os burgos”35. O domínio intelectual e artístico também sofreram forte influência da revitalização da vida urbana, ou seja, foram criadas as primeiras universidades laicas que possibilitaram um resgate da racionalidade aristotélica36 retirando dos mosteiros o monopólio do saber, pois seriam as cidades que a partir de então se fixariam enquanto centros de construção da cultura e do ensino37. Fatores, como o surgimento dos burgos, o desenvolvimento do comércio e a influência filosófica de Aristóteles, são responsáveis pelo processo de enfraquecimento político e econômico no seio da Igreja. Nesse sentido, nos últimos anos do século IX, teve início o movimento das Cruzadas, expedições de cunho religioso-militar que representaram uma contra-ofensiva cristã para romper o cerco muçulmano, mas que também representaram uma forma de aliviar a crise econômica, social e política pela qual passava a Igreja naquele momento histórico. Portanto, segundo aponta E. A. Kosminsky, a Igreja almejava e buscava, com insistência, uma expedição ao Oriente para a conquista da Síria e da Palestina. Em Jerusalém, de acordo com a lenda, estava sepultado Jesus Cristo, o fundador da religião cristã. A Igreja Católica exigia a reconquista do ‘Sepulcro do Senhor das mãos dos infiéis (muçulmanos). Na verdade, imaginavam uma investida triunfal ao Oriente para com isso promoverem um aumento de suas riquezas elevando, com isso, seu prestígio.38 É evidente, também, que as cidades comerciais da mesma forma esperavam obter grandes lucros e por isso estavam interessadas na conquista do Oriente. Prova disso foi a Quarta Cruzada, nos princípios do século XIII, que foi financiada pelos mercadores de Veneza e viciada em suas origens pelo interesse mercantil39. Apesar do fracasso no plano militar, o movimento das Cruzadas teve muita influência nos rumos da sociedade européia, principalmente no campo econômico. No entanto, contribuiu indiretamente para a decadência do Sistema Feudal40. Em meio a tantas transformações, a grande riqueza e poder acumulados pela Igreja, bem como a insatisfação popular com a exploração e os desmandos desta, começaram a resultar em insurgências contra o poder clerical. Nesse sen35) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 20-21. 36) “... na segunda metade do século XII e no primeiro quartel do século XIII começam a difundir-se traduções do árabe que revelam a obra aristotélica em toda sua plenitude, dando início a uma fermentação do pensamento num crescendo constante através de todo século XIII. Também neste mesmo século, grandes nomes de intelectuais traduzem diretamente do grego as obras de Aristóteles (...) assim, por exemplo, traduziu-se a Política de Aristóteles em 1260, a qual São Tomas cita pela primeira vez na Summa contra Gentiles” [grifos no original] (GIORDANI, Mario Curtis. Op. cit., p.19). 37) RIBEIRO, Daniel Valle. Op.cit., p. 66. 38) KOSMINSKY, E. A. Op.cit., p. 81. 39) BLOCH, March. Op.cit., p.141. 40) RIBEIRO, Daniel Vale. Op. cit., p. 63. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tido os séculos XII e XIII marcam os chamados movimentos heréticos vindos dos mais variados setores sociais41. Esses movimentos, por representarem uma grave ameaça contra o poder clerical, foram condenados pela Igreja. Valdenses e cátaros foram os mais importantes entre as heresias anticlericais, representando sua melhor expressão42. Quanto aos ideais dos movimentos heréticos, que desafiavam a ideologia eclesiástica dominante, esclarece Georges Duby: A heresia sonhava com uma outra sociedade. (...) uma sociedade diferentemente ordenada, fundada em uma nova concepção de verdade, das relações entre a carne e o espírito, entre o visível e o invisível (...) para interpretar essa palavra, pretendem passar sem os bispos. (...) por conseqüência, os bispos não tem, de forma nenhuma o monopólio da sapirentia. Negação das virtudes do sacramento, o que permite lança contra os heréticos uma outra acusação: eles põem em perigo a autoridade monárquica, minam os fundamentos do estado político.43

O ataque da Igreja contra os movimentos heréticos e a gradual perda de poder resultaram na instalação da Inquisição, a qual incluiu o processo inquisitorial no Direito Canônico para julgamento dos chamados crimes de heresia.

1.3 DIREITO LAICO E DIREITO CANÔNICO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Importante salientar que no regime feudal a jurisdição se encontrava nas mãos do senhor feudal e era exercida sobre todas as pessoas que viviam no feudo44. Nesse sentido, o supracitado autor afirma que as regras processuais adotadas eram costumeiras e basicamente as mesmas, tanto nos assuntos civis como nas questões de natureza criminal. Vigorava o chamado “sistema acusatório”, reduzindo-se o julgamento ao confronto, em termos de rigorosa igualdade, entre dois particulares, nobres ou homens livres. Não se formara a noção do interesse público em punir os crimes. Conseqüentemente, o direito de acusação pertencia à pessoa lesada, ou, se esta houvesse morrido, à sua linhagem. Sem a presença de uma vítima, queixando-se, não era possível instaurar o pleito. O procedimento era público, oral e formalista.45 41) “... os documentos citam abertamente a presença, entre os sectários, de gente de alta estirpe. Não aventureiros, mas cristãos a quem o ensino tradicional da Igreja simplesmente já não satisfazia e que esperavam outra mensagem. Entre eles – isto é igualmente certo e foi motivo de escândalo – havia mulheres, as mesmas mulheres que a instituição eclesiástica habitualmente punha de lado” (DUBY, Georges. Op. cit., p.155). 42) “A doutrina dos valdenses teve sua origem no sul da França, na Provença. O fundador da seita, o mercador Pedro Valdo, dividiu seus bens e foi pregar entre os artesãos pobres e os camponeses. Ensinava que a Igreja devia ser humilde, fulminava o clero por sua dissolução e sua riqueza e advogava o retorno a vida simples das primeiras comunas cristãs. Outro movimento herético, os dos cátaros também se propagou pela França e pelo norte da Itália. Esta seita negava completamente a Igreja católica e sua doutrina, não reconhecia os papas, os bispos nem os curas e tinha seus próprios sacerdotes. No sul da França, os valdenses e os cátaros receberam o nome de albigenses. O papa Inocêncio III ordenou uma cruzada contra os albigenses (1208). Com uma grande crueldade os cruzados reprimiam os hereges, a população de cidades inteiras foi aniquilada ...” (KOSMINSKY, E. A. Op. cit., p.105). 43) DUBY, Georges. Op. cit., p. 342. 44) GONZAGA, João Barbosa. A Inquisição em seu mundo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 22. 45) Id.

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Portanto, até meados do século XII, o processo era caracterizado enquanto acusatório, ou seja, não havia juízo sem acusação sendo que aquele que pretendesse apresentá-la deveria fazê-la aos bispos, arcebispos, ou oficiais que possuíam a responsabilidade de exercer a função jurisdicional. Assim sendo, a acusação era feita por escrito e oferecia as respectivas provas. Além do mais, acusado ausente não poderia ser processado46. Nessa mesma linha de raciocínio, Aury Lopes Júnior, em sua obra Introdução crítica ao processo penal, expõe: Até o século XII, predominava o sistema acusatório, não existindo processos sem acusador legítimo e idôneo. A acusação era apresentada por escrito, indicando as provas que se utilizariam para demonstrar a veracidade dos fatos. Estava apenado o delito de calúnia, como forma de punir as acusações falsas. Não se podia atuar contra o acusado ausente. As transformações ocorreram ao longo do século XII até o XIV, quando o sistema acusatório vai sendo, paulatinamente, substituído pelo inquisitório. Essa substituição foi fruto basicamente, dos defeitos da inatividade das partes, levando à conclusão de que a persecução criminal não poderia ser deixada nas mãos dos particulares, pois isso comprometia seriamente a eficácia do combate à delinqüência.47

Em suma, os procedimentos processuais neste tipo de processo estavam delimitados pelo que conhecemos como juramentos, duelo e ordálios. Sendo que os ordálios eram concebidos dentro do processo conhecido pelo nome de “Juízos de Deus” e eram bastante enraizados nos costumes germânicos que se fundamentavam na crença da intervenção divina para manifestar o verdadeiro culpado e que, na Idade Média, espalharam-se sob diversas formas, como a prova de ferro em brasa, de água a ferver entre outros48. Portanto, segundo Marc Bloch em sua obra A sociedade Feudal: 46) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, v. 1, n. 27, 2005. p. 84. 47) LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. p. 66 48) “As regras indicavam quantos depoimentos bastavam para que se desse como provado certo fato. Na hipótese de os juramentos não serem aceitos e de inexistirem testemunhas suficientes, restavam dois outros expedientes, oriundo do Direito Germânico: o duelo e os “Juízos de Deus” ou ordálios. Ambos baseavam na mesma crença, de um Deus sempre presente no mundo, a interferir nos negócios humanos. Provocava-se, pois a intervenção divina para que apontasse o culpado e não permitisse a condenação de um inocente. No duelo, batiam-se acusador e acusado, reconhecendo-se razão à aquele que vencesse. Não deixava de haver aí alguma perspicácia: esperava-se que o mentiroso, sabedor da própria culpa que Deus também conhecia, lutasse com menor ardor, mais facilmente sendo derrotado. Finalmente, se por qualquer motivo não conviesse o duelo, recorria-se aos ordálios. Se o acusado insistisse na sua inocência, era ele (e às vezes também suas testemunhas) submetido alguma prova que enlevasse a Deus a revelação da verdade. Os métodos variavam muito, mas em regra consistiam na “prova do fogo” ou na “prova da água”. Por exemplo, o réu devia transportar com suas mãos nuas, por determinada distância, uma barra de ferro incandescente. Enfaixavam depois as feridas e deixavam transcorrer certo número de dias. Findo o prazo, se as queimaduras houvessem desaparecido, considerava-se inocente o acusado; se apresentassem infeccionadas, isso demonstrava a sua culpa. Equivalentemente ocorria na “prova da água” em que o réu devia, por exemplo, submergir, durante o tempo fixado, seu braço numa caldeira cheio de água fervente. A expectativa dos julgadores era de que o culpado, acreditando no ordálio e por temor de suas conseqüências, preferisse desde logo confessar a própria responsabilidade, dispensando o doloroso teste” (GONZAGA, João Barbosa. Op.cit., p. 22-23). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Exercer a justiça não era, aliás, na época feudal uma tarefa muito complicada. Evidentemente que era preciso ter alguns conhecimentos de direito. Onde os códigos existiam essa ciência eqüivalia, a saber. mais ou menos de cor, ou a mandar ler, as regras, por vezes numerosas e pormenorizadas, mas demasiado rígidas, para dispensarem, largamente, qualquer esforço de pensamento pessoal. Se o costume era oral, pelo contrário, tinha relegado o texto, bastava ter alguma familiaridade com esta tradição difusa. Finalmente, de qualquer modo, convinha saber os gestos prescritos e as palavras necessárias, que encerravam os tramites num espartilho de formalismos. Trabalho de memória, em suma, tudo isso, e de prática. Os meios de prova eram rudimentares e de fácil aplicação. O emprego do testemunho, mediocremente freqüente, limitava-se ao registro dos depoimentos, mais do que à sua análise. Tomar nota do conteúdo de um documento autêntico – este caso, de resto, foi raro durante bastante tempo -, aceitar o juramento de uma das partes ou dos ajuramentados, verificar o resultado de um ordálio, ou de um duelo judiciário – este divulgava-se cada vez mais, com prejuízo das outras formas do julgamento divino: semelhantes funções não exigiam qualquer preparação técnica. 49

Paralelamente ao Direito dito laico (que trazia influências do Direito romano e do Direito germânico), coexistia o chamado Direito canônico (Direito que rege a ordem jurídica da Igreja católica), cujas fontes foram se consolidando, ocorrendo por volta de 1140 sua primeira reunião, vindo a formar, no final do século XV, o chamado “Corpus Iuris Canonic”, que eram aplicados pelos tribunais eclesiásticos cujo conteúdo era de natureza repressiva e que, de começo, somente se aplicava ao clero50. Nesse sentido, devido a suas funções serem parecidas com as de um governo, a Igreja foi desenvolvendo um conjunto de leis e um sistema judiciário próprios que se estabeleceram paralelamente aos tribunais e governos seculares. A lei que era administrada pelos tribunais da igreja denominava-se canônica, cuja escala de tópicos abrangia, segundo Max Savelle, um grande número de temas que hoje são apenas de competência do governo secular. Por outro lado, governos seculares da Era Feudal consideravam crimes várias questões que hoje admitimos como simplesmente casos de crença e prática religiosas. Assim, a jurisdição das duas espécies de tribunais entremesclava-se e as penas impostas pelos tribunais eclesiásticos eram espirituais e temporais. A punição espiritual mais elevada era a excomunhão. As penas temporais incluíam multas e prisão, mas não a sentença de morte, pois à Igreja era proibido derramar sangue. Contudo, sob a lei civil, o governo secular podia executar pessoas condenadas num tribunal da Igreja por infração grave da lei eclesiástica, como a heresia. E, como os tribunais seculares da época, os da Igreja também faziam uso da tortura, especialmente em casos de heresia, embora não de tal forma que envolvesse derramamento de sangue.51 49) BLOCH, March. Op. cit., p. 375. 50) GONZAGA, João Barbosa. Op. cit., p. 85. 51) SAVELLE, Max. Op. cit., p. 236.

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Por isso, no tocante ao surgimento do sistema Inquisitivo, Paulo Rangel, em Direito Processual Penal, esclarece: O sistema inquisitivo surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o Direito canônico, passando a ser adotado em quase todas as legislações européias dos séculos XVI, XVII e XVIII. O sistema inquisitivo surgiu após o acusatório privado, com sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, já que eram estes que iniciavam a percepção penal. O cerne de tal sistema era a reivindicação que o estado fazia para si do poder de reprimir a prática dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou delegada aos particulares. (...). Portanto, o próprio órgão que investiga e o mesmo que pune. No sistema inquisitivo, não há separação de funções, pois o juiz inicia a ação defende o réu e, ao mesmo tempo, julga-o.52

Nessa mesma linha de raciocínio, o autor Aury Lopes Júnior afirma que o sistema inquisitório transforma a face do processo de maneira radical, ou seja, aquilo que era “um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador.”53 Cumpre salientar que a partir de então o magistrado abandona sua “posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades de juiz e acusador e o acusador perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto de investigação.”54 Na definição de Jacinto Coutinho: ... trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu, e conhece. Sem embargo de sua fonte, a Igreja é diabólica na sua estrutura (o que demonstra estar ela, por vezes e ironicamente, povoada por agentes do inferno!), persistindo por mais de 700 anos. Não seria assim em vão: veio com uma finalidade específica e, porque serve – e continuará servindo, se não acordarmos – mantém-se rígido.55

Estavam postas, portanto, as bases para a instauração de um novo sistema processual, visto que diante da conjuntura histórica que se apresentava (a perda de dinheiro e de poder por parte da Igreja, o Movimento das Cruzadas, a criação das cidades e o desenvolvimento do comércio, entre outros), possibilitou-se a instauração de uma série de mecanismos repressivos que justifi-

52) RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 12. ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 45. 53) LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao Processo Penal. 4. ed., Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 167. 54) Id. 55) COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do novo juiz no Processo Penal. In: Crítica à Teoria Geral do Processo Penal, p. 18. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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cariam a adoção de procedimentos repressivos que justificariam uma série de violações à liberdade humana. Nesse sentido, uma análise mais aprofundada a respeito dos institutos fundamentais sob os quais estavam assentadas as bases do novo sistema processual, possibilitará uma melhor compreensão em relação ao seu modus operandi, bem como elucidará ao leitor aspectos importantes relativos à história das mentalidades relativos ao período medieval. No entanto, tais questões serão objeto de análise do próximo capítulo.

2 A IGREJA E O PROCESSO INQUISITÓRIO 2.1 A ORIGEM DA INQUISIÇÃO MEDIEVAL Em meados do século XIII, a Igreja Romana passou a ser alvo de uma série de críticas aos dogmas sobre os quais apoiava-se a doutrina cristã. Tais críticas foram recebidas como uma ameaça ao poder da Igreja, levando esta à realização do Concílio de Verona56, nomeando bispos para visitarem duas vezes por ano as paróquias suspeitas de heresia57, os quais eram chamados Inquisidores Ordinários. Por isso, o momento exato do estabelecimento da inquisição não pode ser determinado, haja visto que esta foi produto de uma longa evolução e de um período no qual a Igreja e o papado sentiam-se ameaçados em seu poder.58 Por isso, acredita-se que a constituição e a posterior atuação da Inquisição foram se formando e se desenvolvendo gradualmente com a decretação de uma série de medidas que foram, ao longo do tempo, delineando as formas de procedimento do tribunal do Santo Ofício59. No entanto, segundo Frédéric Max, em seu livro Prisioneiros da Inquisição:

56) “O Concílio de Verona (1184) decide que os acusados de heresia serão maculados pela infâmia e privados de seus bens.” MAX, F. Prisioneiros da Inquisição. Porto Alegre: L&PM, 1991. p.15. 57) “A heresia é uma ruptura com o dominante, ao mesmo tempo que é uma adesão a uma outra mensagem. É contagiosa em determinadas condições dissemina-se facilmente na sociedade. Dá o perigo que represente para a ordem estabelecida, sempre preocupada em preservar a estrutura social tradicional.” NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p.11. 58) Ibid, p.156. 59) “Não é possível precisar a data em que foi constituído o tribunal inquisitorial, pois este foi se formando por meio de uma série de medidas (...). Em 1179 no terceiro concílio de Latrão, o papa Alexandre III decretou que era necessário opor-se aos hereges pela força, confiscando-lhes os bens, reduzindo-os à servidão. Em 1184 no concílio de Verona, Frederico Barbarroxa, influiu decisivamente para que o papa Lúcio III promulga-se uma nova constituição mais enérgica que é a de Alexandre III, contra os cátaros, patarinos e os que se chamavam falsamente os humilhados e os pobres de Lyon. A constituição decretava, em resumo: 1) que os senhores feudais e outras autoridades jurassem dar mão forte à Igreja sob pena de excomunhão. 2) que a população jurasse denunciar ao bispo os suspeitos de heresias. 3) que os bispos visitassem duas vezes por ano as cidades e aldeias de suas dioceses a fim de descobrir os hereges. 4) que os fatores de heresia fossem declarados infames e despojados de seus cargos. Esta constituição deve ser olhada como a origem da Inquisição episcopal, na medida em que são os bispos que se vêem encarregados de manter a fé. Por este texto o papa ordena-lhes de informar-se por si mesmos das pessoas suspeitas de heresia. Inocêncio III determinou que os heréticos fossem entregues ao poder civil e seus bens confiscados” (GIORDANI, Mário Curtis. Op. cit., p. 310).

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Muitos concordam que a origem da Inquisição deva ser buscada no pontificado de Inocêncio III (1198-1216) que, assim que foi entronizado, lançou decretais contra os hereges e enviou contra eles seus núncios, monges da Ordem Cistercienses. Ele recebe o apoio do Imperador Frederico II que, embora incrédulo, compromete-se em 1213 a destruir radicalmente a perversão herege e, mais tarde (1220-1234), editará um código completo da perseguição, entre as quais a Bula vergentis is senium, em 1199, através da qual equipara a heresia ao crime de lesa majestade. Em 1215, no quarto concílio de Latrão, Inocêncio III retoma e determina que os hereges sejam entregues ao braço secular. 60 [grifos no original].

Nesse sentido, a inquisição representou um importante instrumento de combate às heresias sendo confirmada pelo quarto Concílio de Latrão em 1215, que incluiu o processo inquisitorial no Direito canônico, instituindo o controle da heresia mediante a obrigatoriedade da confissão.61 Portanto, os bispos ficavam encarregados de procurar os hereges, que eram entregues ao braço secular, os seja, ao poder secular. Tratava-se, portanto, de uma aliança e o papa. Os inquisidores foram em sua maior parte saídos da Ordem Dominicana. De início, por ser uma instituição eclesiástica, a Inquisição aplicava penas espirituais – penitências, excomunhões, etc. Ao entregar o condenado ao poder civil, este lhe poderia aplicar a pena de morte e o confisco de bens.62 Importante salientar também com relação ao tema supracitado o comentário de Jacques Le Goff no livro A civilização do Ocidente Medieval no tocante à perseguição aos hereges e feiticeiros. Mas a partir do século XIII, apoiando-se no renascimento do Direito Romano, a razão de estado lançou caça aos feiticeiros. Não causa surpresa que os soberanos mais “estadistas” tenham-se entregado particularmente a isso. Os papas que viam os feiticeiros e os heréticos como autores do crime de lesa-majestade, agitadores da ordem cristã, estiveram entre os primeiros a persegui-los. Desde 1270 um manual para inquisidores, a Summa de offício Inquisitionis, consagra capítulo especial aos “algures e idólatras” culpados de organizar o ‘culto dos demônios’. [grifos no original].63

Diante de todas essas questões, a partir do século XIII, o antigo sistema acusatório foi desprezado e em seu lugar estabeleceu-se o “Inquisitivo”, generalizando-se as denúncias anônimas e a Inquisição. Todos esses fatores culminaram, com o decorrer do tempo, no processo inquisitivo, per Inquisitionis, que passaria a ser comum64. No tocante a essa questão, também nos esclarece João Mendes de Almeida Júnior:

60) MAX, Savelle. Op. cit., p.15-16. 61) RIBEIRO, Daniel Valle. Op. cit., p. 80. 62) Id. 63) LE GOFF, Jaques. Op. cit., p. 320. 64) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 84.

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O processo das justiças eclesiásticas passou por diversas vicissitudes. A princípio, o processo não se afastava, nos pontos principais, do que eram usados nas jurisdições seculares; porém, já se ia introduzindo o processo escrito, (...) no século XIII Inocêncio III declarou que, além da acusação, eram meios de iniciar o procedimento criminal o inquérito e a denúncia. (...). A denúncia foi o refúgio dos fracos contra a prepotência dos senhores feudais. Estava assim aberto o meio de evitar a formalidade da inscrição da acusação e estancada uma fonte de vinganças o opressões; mas, o mesmo Inocêncio III, para reformar os costumes do clero, endossou outro meio: a inquisittion antes de qualquer procedimento.65

A partir dos acontecimentos supracitados, a Inquisição instalou rapidamente seus tribunais em várias partes da Europa, como na Itália, França, Alemanha, Península Ibérica entre outras regiões, começando realmente a funcionar entre os anos de 1231 e 1233, apresentando características próprias nos procedimentos que lhes eram inerentes66. Contudo, precisamos ter em mente que o período da Inquisição estendeuse da era medieval até o chamado período da Inquisição moderna, estendendose, portanto, durante os séculos XV, XVI, XVII e XVIII, períodos estes que compreendem, no século XV, o início dos chamados Grandes Descobrimentos e dentre estes, o descobrimento do Brasil em 1500 por Portugal. Nesse sentido, Anita Waingort Novinski relata que a Inquisição esteve presente em muitos países, inclusive na Europa Oriental, porém onde teve maior força e eficácia foi na Europa Ocidental, principalmente no sudeste da França. Além do que a Inquisição Medieval e a Inquisição Moderna (principalmente Espanha e Portugal) sustentavam-se em fundamentos comuns: a delação, a denúncia, os “rumores”. Existia já naquela época como posteriormente na Península Ibérica e nas colônias os auxiliares da Inquisição, chamados “familiares”, que auxiliavam na perseguição aos suspeitos, funcionando como espiões, o que tornava mais eficiente o trabalho dos inquisidores.67 Conforme exposto anteriormente, segundo João Mendes de Almeida Junior, a partir do funcionamento dos tribunais da Inquisição, a acusação, a denúncia e a inquirição passaram a ser meios de iniciar o procedimento criminal68. Contudo, uma análise do comportamento da Igreja se faz necessária para compreender a sistemática da Inquisição. Nesse sentido, aponta-nos Aury Lopes Junior: 65) ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. 4. ed. Freitas Bastos, v.1, 1959. p. 72-74. 66) SAVELLE, Max. Op. cit., p.119-133. 67) NOVINSKI, Anita Waingort. Op. cit., p.18. 68) “Os canonistas exprimem as diferenças entre os três modos de proceder. A acusação era a declaração privada do réu ao juiz, com a exposição do crime, o pedido da pena e a inscrição do nome do acusador. A denúncia era igualmente privada, isto é, a delação do réu, feita por qualquer indivíduo ao juiz competente, com a exposição do crime, porém sem o pedido de pena e com a inscrição do nome do denunciante, precedendo admoestação caritativa. A inquirição, ou informação, era a investigação do crime, feita pelo próprio juiz, em vista da notoriedade do crime ou de qualquer insinuação clamosa” (ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p. 78-79).

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Trata-se de um sistema fundado na intolerância, derivada da ‘verdade absoluta’ de que a humanidade foi criada na graça de Deus. (...). o surgimento das escrituras sagradas que contêm um alfabeto sobrenatural que permite ter acesso as verdades divinas. Contudo, nasce um novo problema: o livro pode ser lido de diferentes maneiras. Surgem então os bispos e o papa, máximos interpretes e representantes da vontade de Deus. (...) e dotados de inefabilidade. Nesse momento reforça-se o mito da segurança, oriundo da verdade absoluta, que não é constituída, senão dada pelos concílios, encíclicas e outros instrumentos nascidos sob a assistência divina. Recordemos que a intolerância vai fundar a Inquisição.69

A partir de então começou a ser estruturada toda a lógica do sistema inquisitório, no qual o processo tinha sua origem, freqüentemente, nas delações secretas ficando ocultada, portanto, a identidade dos acusadores. Todos os demais atos processuais subseqüentes também eram mantidos em sigilo, ao ponto de o acusado ignorar a origem e o conteúdo da acusação que lhe era imputada, bem como desconhecia, ainda, as provas produzidas. Este método denominava-se Inquisitivo e foi firmado no Quarto Concílio de Latrão, em 1216, o qual estabelecia que no procedimento per inquisitionem havia a possibilidade para o juiz, mesmo sem existir um acusador, de iniciar um processo e nele arbitrar livremente as provas pertinentes ao julgamento. Portanto, percebe-se que é na Igreja que nasceu o que veio a se chamar de “sistema processual inquisitório”70. Assim, ainda no tocante às raízes do sistema inquisitório, estas ainda podem também ser encontradas na velha Roma, principalmente no período da decadência. No entanto, seu nascimento na forma como a entendemos atualmente apenas se deu no átrio da Igreja católica, como uma arma contra a ameaça das doutrinas heréticas71. Nesse sentido, voltando ao Direito comum, estabelecido no empirismo da justiça feudal, com seu sistema acusatório acaba, com o passar do tempo, tornando-se inviável e sendo gradativamente substituído por essa nova orientação na justiça criminal secular, ou seja, uma mistura de influências do Direito canônico e do Direito romano, passando a existir, então, um sistema criminal inquisitório, tal qual existia na Igreja e que levou a justiça comum, ao longo dos séculos XIII ao XVIII, ao desconhecimento de quase todas as garantias individuais que são inerentes às ordens jurídicas da atualidade, através da ampla utilização da tortura, da defesa inexistente ou fortemente cerceada, bem como através de um processo secreto e escrito72. Portanto, o sistema inquisitório que teve origem na jurisdição eclesiástica foi pouco a pouco se estabelecendo nas legislações laicas da Europa Continental, representando um grande instrumento de dominação política. Importa salientar, no entan69) LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.168-169. 70) GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p. 24-28. 71) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p.18. 72) GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p. 25-26. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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to, que na Inglaterra, diferentemente do que acontecia na Europa ocidental, permanecia a cultura de instituições liberais fundadas no sistema acusatório, no qual dominava a instituição do júri e a persecução penal ficava a cargo de qualquer um do povo73. Na Europa ocidental, ao contrário, estabeleceu-se o sistema Inquisitório dito puro e conforme as palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: Estabelece-se, assim, uma característica de extrema importância a demarcar o sistema, enquanto puro, ou seja, a inexistência de partes, no sentido que hoje emprestamos ao tema (...). A característica fundamental do sistema inquisitório em verdade, esta na gestão da prova confiada ao magistrado que (...) afastado do contraditório e sendo o senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato 74.

À guisa de conclusão, registra-se que “o processo inquisitório revelou-se um instrumento tecnicamente inidôneo. (...) e, por outro lado, a prevenção criada no espírito do inquisidor não lhe permite um julgamento psicologicamente imparcial”75.

2.2 O PROCESSO INQUISITÓRIO De acordo com a investigação histórica até aqui desenvolvida, percebe-se que o sistema inquisitório (puro) teve sua origem nas atuações da Inquisição, ou seja, nos procedimentos do tribunal do Santo Ofício, cujo intuito inicial era o combate às heresias que ameaçavam o poder da Igreja76. Também tendo por base a mesma análise histórica, é importante salientar que o referido tribunal equivaleu a uma justiça criminal secular em que se mesclavam influências do Direito canônico e do Direito romano e, essa mesma Justiça Comum, ao longo do período em exame (séculos XIII ao XVIII), desconheceu quase todas as garantias individuais que permeiam os ordenamentos jurídicos da atualidade. Quanto aos métodos de atuação do tribunal da Inquisição, esclarece-nos Anita Waingort Novinsky que o tribunal da Inquisição guiava-se por um regimento interno, onde estavam estruturadas as leis, jurisprudências, ordens e práticas a serem seguidas. Os crimes julgados pelo tribunal eram de duas naturezas: contra a fé, como judaísmo, protestantismo , luteranismo, deísmo, libertinismo, molenismo, maometismo, blasfêmias, desacatos, críticas aos dogmas; e contra a moral e os costumes, como bigamia, sodomia, feitiçaria, etc., com toda sua série de modalidades, e que se misturavam com o campo religioso. Os crimes contra a fé eram tidos como mais graves do que os crimes contra os costumes e a moral, e as suas penas eram muito mais severas. Os réus acusados de crimes contra a fé

73) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit., p. 85. 74) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 23-24. 75) TORNAGHI, Hélio. Compêndio de Processo Penal. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, v.2, 1967. p. 573-574. 76) “Dotado de natureza tentacular, o Santo Ofício via tudo, se infiltrava por toda parte, até no recesso dos lares, onde as paredes tinham ouvidos. Obrigava os fiéis a se tornarem espiões e delatores, dessa maneira montando densa rede de informantes ocultos. Graças a isso, manteve perfeito controle social, exigiu modelos de comportamentos, impediu o livre de bate e o livre arbítrio, sufocou dissidências, exerceu a censura ...” (GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p.17).

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tinham quase sempre seus bens confiscados, enquanto os infratores dos costumes recebiam sentenças leves e raramente pena de morte77. Dentro dessa conjuntura é que nasceu o sistema inquisitório que se configura em ser, ao mesmo tempo, complexo e singular e, que inaugura na história humana uma nova espécie de processo cuja estrutura o autor Aury Lopes Júnior nos relata de forma interessante: A estrutura do processo inquisitório foi habilmente construída a partir de um conjunto de instrumentos e conceitos (falaciosos, é claro), especialmente o de “verdade real ou absoluta”. Na busca dessa tal “verdade real”, transforma-se a prisão cautelar em regra geral, pois o inquisidor precisa dispor do corpo do herege. De posse dele, para buscar a verdade real, pode lançar mão da tortura, que se for “bem” utilizada conduzirá à confissão. Uma obtida a confissão, o inquisidor não necessita de mais nada, pois a confissão é a rainha das provas (sistema de hierarquia das provas). Sem dúvida, todo se encaixa para bem servir o sistema.78

Também, no tocante à questão da busca da verdade no processo inquisitório, é de fundamental importância a posição doutrinária assumida pelo autor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: Como crime e pecado passam a ser sinônimos, o processo é imaginado e posto em prática como um mecanismo terapêutico capaz de pela punição, absolver. Tudo continuava a ser, não obstante, uma fórmula de descoberta da verdade e ninguém melhor do que o acusado para dar conta dela. Compreende-se então, quão solitário e penoso (porque angustiante) é o labor do juiz, ciente de que deve chegar à verdade pelos caminhos que escolher (...). A lógica deformada do sistema, porém, não o permite, porque privilegia o mecanismo “natural” do pensamento da civilização ocidental (e aí seu grande valor estratégico e, talvez, o motivo de sua manutenção até hoje), ou seja, a lógica dedutiva, que deixa o inquisidor a escolha da premissa maior, razão pela qual pode decidir antes e, depois, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão. (...). Nesse patamar, os fatos podem estar relegados completamente a um segundo plano e se entende como a confissão torna-se a ‘regina probationum’. [grifos no original].79

Nesse sentido, não há de se olvidar que a lógica deste tipo de processo era o segredo, pois a origem da prisão invariavelmente era uma denúncia, quase sempre anônima ou devido ao fato de inquisidores terem visitado a cidade e proclamado o chamado Édito de Graça, o qual concedia três dias à população para que esta, sob pena de excomunhão, se auto-acusasse ou acusasse aqueles que consideravam apenas “suspeitos” de fatos que eram condenados pela Igreja. Se acolhida a denúncia, era redigida a ordem de prisão com seqüestro de bens80. 77) NOVINSKI, Anita Waingort. Op. cit., p. 56. 78) LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.171. 79) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 24-27. 80) MAX, Savelle. Op. cit., p. 38. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Portanto, a base sob a qual se assentava o início da atuação da Inquisição era a denúncia, anônima e secreta81. E, assim, visando obter uma uniformidade de comportamento, a fiscalização feita pela Inquisição foi importante, pois a Igreja obrigava o povo a seguir determinadas normas, “obrigava à obediência sob ameaças, e prometia a compensação aos que colaboravam com o sistema. A massa do povo tinha interesse em servir ao sacerdócio, aos agentes do tribunal, que lhe prometiam tantos bens de salvação, como absolvição dos pecados, a salvação da alma, o paraíso. A Inquisição introduziu uma nova promessa de redenção, mas por um preço: a denúncia”82. Quanto ao processo, “comprometido antes mesmo de ser iniciado, nada pode impedir sua marcha em direção à condenação já decidida anteriormente, que se desenrola inteiramente nesse elemento-chave do funcionamento do Santo Ofício, o segredo”83. Nesse sentido, não se pode duvidar que nesse tipo de processo a confissão ocupava lugar de destaque e representava a prova máxima, pois dentro do sistema de prova tarifada, nenhuma prova equivaleria ao seu valor no tocante à condenação. Por isso, como dissemos anteriormente, a busca pela “verdade absoluta” justificava o uso pelo juiz, de diversos meios coercitivos como jejuns prolongados, acorrentamento, privação do sono e a tortura propriamente ditas84. Portanto, em face do papel importante que assumia a confissão deste tipo de processo, o interrogatório constituía-se em um instrumento primordial e o inquisidor “isento de qualquer jurisdição local, agia de “de plano” não estando obrigado a seguir as normas processuais comuns”85. Por isso, a Inquisição normalmente utilizava a tortura para forçar os hereges à confissão de seus crimes e também para compelir outros a fornecerem provas que incriminassem os suspeitos86. Em assim sendo “a tortura era aplicada sempre que se suspeitava de

81) “Aceitavam-se denúncias de qualquer categoria de pessoas e mesmo cartas anônimas. O crédito das testemunhas dependia exclusivamente do arbítrio dos inquisidores. “Ouvir dizer” e “suposições” também eram considerados provas quando um indivíduo era denunciado, um funcionário da Inquisição ia a sua casa, acompanhado pelo juiz do fisco, que seqüestrava tudo o que o suspeito possuía, antes mesmo de ter provas de sua culpa. Depois de prendê-lo passava ferros e trancas nas portas da casa e ninguém mais podia entrar a não ser os funcionário da Inquisição. A família ficava na rua, sem abrigo, as crianças à mercê da caridade dos vizinhos, esperando que alguém as socorressem (...). Outras vezes, a Inquisição mandava que se arrasasse a casa em que haviam morado o herege e sua família, para que não ficasse dele sinal sobre a terra. Os descendentes de um penitenciado pela Inquisição eram considerados infames por várias gerações e impedidos de qualquer participação na sociedade” (NOVINSKY, Anita Waingort. Op. cit., p. 58). 82) Id., p. 88-89. 83) MAX, Savelle. Op. cit., p. 38. 84) Em 1252, o papa Inocêncio IV através da bula “Ad extirpada” permitiu o uso da tortura pelo Santo Ofício precisando os casos e as condições de seu emprego invocando o emprego da mesma nos tribunais seculares contra bandidos e ladrões (GIORDANI, Mário Curtis. Op. cit., p. 313). 85) Ibid., p. 312.

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uma confissão incompleta ou quando a confissão era incongruente. Uma testemunha era suficiente para justificar o envio para a câmara de tormento. Quanto mais débil a evidência do crime, mas severa era a tortura” 87. Diante de todas essas questões, perfeito se faz o raciocínio do autor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, quando este afirma que “a Inquisição, enfim, não inventou a tortura, mais o meio quase perfeito para justificá-la: os mecanismos do sistema inquisitório”88. No entanto, é lógico que tais mecanismos utilizados no procedimento inquisitorial não estavam adstritos apenas à utilização da tortura, mas formavam, juntos, o que propriamente se poderia identificar como a rota do processo Inquisitório, que tem início com a denúncia e, regra geral, tem sua finalização com uma condenação. Como se disse anteriormente, a confissão era considerada a “rainha das provas” e, para consegui-la, os inquisidores não hesitaram em utilizar da tortura. Portanto, o interrogatório assumiu papel de grande relevância nesse contexto, e era realizado com técnica pré-determinada que incluía vários tipos de tortura. O acusado era submetido apenas a um tipo por dia e, se em quinze dias nada tivesse confessado, acreditava-se que era inocente e, desta forma, liberado. No entanto, muitas vezes a tortura era de maior gravidade do que muitas penas aplicadas89. Um trecho do livro Prisioneiros da Inquisição relata a difícil e cruel aventura de William Lithgow, aprisionado pela Inquisição nos seguintes termos: Assim, permaneci por seis horas no cavalete desde as quatro horas da tarde até as dez da noite, e durante esse tempo sofri três vezes sete torturas. (...). Por fim minha cabeça foi por eles levantada e meu corpo retirado do cavalete, a água saindo com ímpeto de minha boca. Então eles vestiram meu corpo trêmulo e frio, pois eu permanecera nu durante todo o tempo. Eles me refrescaram com um pouco de vinho e dois ovos quentes, não por caridade, mas para me preservar para outras punições. Se esses sofrimentos não fossem conhecidos como verídicos, poderia aparecer, a muitos, incrível que um homem tão aniquilado pela fome e por crueldade extremas pudesse ter sobrevivido.90 86) “Todo réu, para salvar-se, tinha que confessar culpado, e acusar as pessoas de sua intimidade: pais, irmãos, parentes, amigos. Se não denunciasse a família, era considerado diminuto, isto é, estava escondendo os culpados. (...). Nesse caso, mandavam-no para a câmara de tortura. Confuso, no desespero de querer salvar-se, o réu prometia denunciar mais, e acusava todas as pessoas que conhecia: amigos de infância, pais, filhos, irmãos, parentes. Muitas vezes, atormentado pela sua consciência, arrependia-se de implicado inocentes e voltava à mesa inquisitorial para negar tudo. Com medo de ser queimado, pedia novamente para ser ouvido e ratificava as denúncias primeiras, implicando ainda mais gente. Debatia-se em um labirinto sem saída. Quanto mais denúncias recebiam mais satisfeitos ficavam os inquisidores. Assim, aumentava o número dos futuros réus e dos futuros confiscos.(...). A tortura era aplicada sempre que se suspeitava de uma confissão incompleta ou quando a confissão era incongruente. Uma testemunha era suficiente para justificar o envio para a câmara de tormento” (NOVINSKI, Anita Waingort. Op. cit., p. 59). 87) Ibid., p. 60. 88) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 30. 89) LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.172. 90) MAX, Savelle. Op. cit., p. 91. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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No tocante à prolação da sentença, é importante salientar que no sistema inquisitório não existia a coisa julgada e, dessa forma, “o bom inquisidor deveria ter muita cautela para não declarar na sentença de absolvição que o acusado era inocente, mas apenas esclarecer que nada foi legitimamente provado contra ele. Dessa forma, mantinha-se o absolvido ao alcance da inquisição e o caso poderia ser reaberto mais tarde pelo tribunal, para punir ao acusado sem o entrave do trânsito em julgado”91.

2.3 ENCERRAMENTO DO PROCESSO INQUISITORIAL: EXECUÇÃO DA SENTENÇA E CRÍTICAS AO SISTEMA A despeito do que foi dito no parágrafo anterior, a obra Prisioneiros da Inquisição, de Fréderic Max, aponta algumas considerações importantes acerca da atuação do tribunal inquisitorial: Nenhum tribunal gosta de se confessar falível. É justamente por causa desse sentimento que a absolvição do réu era pura e simplesmente proibida nas jurisdições religiosas da Idade Média, princípio que foi mantido pelo Santo Ofício romano, onde foi necessário aguardar até o século XVIII para que alguns acusados fossem absolvidos com a comprovação de fraude na acusação. As inquisições podiam “suspender” uma causa, assim como podiam reiniciá-la sob outros motivos. A “absolvição da instância”, bem rara, nunca foi concedida, a não ser em casos ad cautelum (sob reserva).92 [grifos no original].

No tocante à execução das sentenças, estas eram sempre prolatadas nos chamados autos-de-fé nos quais os réus ouviam suas sentenças e, então, as execuções faziam-se em praça pública para que toda a população pudesse ver o sentenciado sendo objeto dos mais variados castigos, entre eles: o esquartejamento, fogo, roda, forca, a decapitação. Porém, a punição por excelência foram as penas capitais, dentre elas a morte na fogueira. No entanto, entre as penitências e penas impostas aos hereges pela Inquisição também figuravam outros tipos de castigos, visto que o inquisidor dispunha de um vasto número de penas que variavam de acordo com o caso concreto93. Os autos-de-fé eram enormes festas populares94. Notemos que nesse tipo de processo as sanções não estavam ligadas a nenhuma idéia de justiça, no tocante a essa questão, João Bernadino Gonzaga faz menção de forma bem acentuada ao expor que seja como vingança, seja como 91) LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.172. 92) MAX, Savelle. Op. cit., p. 45. 93) “Entre as penitências e penas impostas aos hereges pela Inquisição, figuravam: obras de piedade, por exemplo: recitar certas orações, jejuar dentre determinado período, etc; peregrinações (Roma, Santiago de Compostela), sinais distintivos pregados nas vestes (cruzes em número variado, etc.), penas pecuniárias (que serviam para cobrir as despesas judiciárias ou eram empregadas em obras de interesse comum), prisão (murus strictus e murus largus – regime mais severo e regime mais suave: note-se que murus significa simplesmente prisão) confisco de bens (na França o confisco se fazia em favor do tesouro real, pois o rei assumia as despesas com o tribunal da Inquisição), demolição de casas (pena muitas vezes atenuada). A pena mais grave era a condenação à morte pela fogueira o réu condenado era entregue ao braço secular que deveria executar a sentença” [grifos no original] (GIORDANI, Mário Curtis. Op. cit., p. 314).

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advertência à sociedade, as sanções em si não estavam ligadas a nenhuma idéia de justiça. Era desconhecido o princípio da proporcionalidade entre crime e pena. Ao contrário, esta devia ser muito vistosa para impressionar os que dela tomassem conhecimento. Daí a grande preocupação em conferir a maior visibilidade possível à execução dos castigos, notadamente os corporais, convidando a população a assisti-los. A procissão seguia pelas ruas com grande aparato e ruído, a imposição da pena se fazia em praça pública sem que houvesse preocupação com a demora do veredicto, diante de um grande número de pessoas que para lá corria. Havia todo um arranjo de teatralidade com objetivo de, com maior eficiência, impressionar aqueles que ali se faziam presentes fazendo-os temer a justiça.95 Considerando as várias fases do processo inquisitorial, bem como seu resultado, tornou-se muito difícil justificá-lo, pois todos os princípios mais relevantes da justiça eram violados, ou seja, “prisão clandestina e maculação ipso facto de desonra acusado presumivelmente culpado, defesa reduzida e um inútil combate às cegas na obscuridade do segredo mantido em torno dos acusadores e da própria acusação, nenhuma possibilidade de recurso, exceto junto à suprema, que se limitava na maioria das vezes a confirmar as decisões de seus tribunais”96. Neste ponto do presente estudo, interessante se faz uma análise comparativa do processo inquisitorial com as garantias individuais que permeiam as ordens jurídicas da atualidade. Nesse aspecto, no que tange à referida análise, João Bernardino Gonzaga, em sua obra Inquisição em seu mundo, ponta algumas considerações importantes: Começando pelo plano constitucional lembremos que a tripartição política dos Poderes do Estado somente veio a ingressar no mundo civilizado em fins do século XVIII, por influência de Montesquieu (...) isso, sem dúvida, propicia não só a liberdade da justiça, mas também lhe permite agir com mais equilíbrio e imparcialidade. (...). Faltava o princípio, hoje constitucional, da igualdade de todos perante a lei a justiça. Por expressa disposições legais, as pessoas eram tratadas diversamente, no processo e nos métodos primitivos, de acordo com a classe social a quem pertenciam. As penas eram também executadas diferentemente. (...). a de mais, vigoram atualmente o princípio da publicidade do processo, no sentido de que as partes têm total direito de acesso a todos os atos nele produzidos, e o princípio da plenitude da defesa que de nenhum modo pode ser cerceada. Outrora nada disso existia. Antigamente havia indiscriminado emprego da 94) “... havia os autos-de-fé públicos e os particulares, reservados para os casos menos graves, ou especiais, como quando devia ser julgada uma pessoa pertencente à alta nobreza. Os autos públicos eram muitos dispendiosos e realizavam-se em geral uma vez por ano. (...). Os autos-de-fé duravam o dia todo e as vezes quando o número de réus era muito alto, estendiam-se até altas horas da noite, chegando mesmo até o dia seguinte. Na medida em que os anos passavam, os autos-de-fé aumentavam o seu caráter festivo e sua ostentação. Compareciam o rei, os infantes, toda corte, e quando havia um visitante ilustre na cidade era convidado de honra. Voltando a seu país, muitos relatavam com aversão a cerimônia que presenciavam. Durante o auto-de-fé os réus ouviam suas sentenças. Os condenados na fogueira, depois da cerimônia eram transportados para o lugar onde se erguia o queimadeiro. O auto-de-fé começava com uma procissão com uma missa” (NOVINSKI, Anita Waingort. Op. cit., p. 66). 95) GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p. 50. 96) MAX, Savelle. Op. cit., p. 50. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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prisão processual, bastando quaisquer pequenos indícios para que fosse imposta. Ao contrário do que sucede hoje, em princípio todo acusado deviam permanecer detido durante o processo (...). anotemos também que as pessoas ficavam entregues aos caprichos da autoridade, porque faltavam meios processuais expeditos para cortar os abusos. Não havia qualquer provid6encia legal como o atual habeas corpus, apta a fazer cessar prontamente os constrangimentos e legítimos.97 [grifos no original].

Ainda de acordo com o supracitado autor, “o exame que fizemos descortina um mundo totalmente diferente do nosso, que não é possível julgarmos com os olhos da atualidade. As mudanças, de lá para cá, foram radicais. (...). No campo do Direito penal a ruptura com o passado foi quase total. Os velhos métodos repressivos não mais podem ser aceitos, devido à imensa mudança de costumes, de sensibilidade, de respeito, que só modernamente passou a existir, às garantias individuais”98. Também o autor Paulo Rangel, em sua obra Direito Processual Penal, afirma que “o sistema inquisitivo demonstra total incompatibilidade com as garantias constitucionais que devem resistir dentro de um Estado Democrático de Direito e, portanto, deve ser banido das legislações modernas que visem assegurar ao cidadão as mínimas garantias de respeito à dignidade da pessoa humana”99. Diante do exposto, no tocante à estrutura do procedimento inquisitorial fundado a partir do sistema inquisitório é de fundamental importância a afirmativa do autor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: Um sistema com a referida estrutura, como parece elementar, tende a prevalecer no tempo, embora passível de mudanças secundárias. É assim que permanece, na essência, para nós, até hoje; e continuará prevalecendo – até porque sustenta o status quo e, portanto, serve a quem detém o poder em qualquer regime – enquanto as pessoas não se derem conta que a democracia processual só será alcançada (ou pelo menos estará mais próxima), quando ele for superado, avançando-se em direção da efetivação plena do contraditório, em um processo de partes que cubra toda a persecução penal (...).100 [grifos no original]

Eis a estrutura do que se convencionou chamar de Sistema Inquisitório Puro, ou seja, aquele cujos princípios fundantes encontram-se no Direito Cânonico, vindo a instaurar-se no Direito Secular em 1215 através do Quarto Concílio de Latrão e que trazia como fundamento um sistema processual extremamente rígido. Nesse sentido os princípios que norteavam os procedimentos nesse tipo de processo, consubstanciavam-se na existência de um processo secreto, no qual o acusado era simplesmente um objeto de investigação, iniciando através de uma denúncia anônima e que na busca incessante pela “verdade absoluta” não hesitou em utilizar práticas cruéis e desumanas, como a tortura. 97) GONZAGA, João Bernardino.Op. cit., p. 26-29. 98) Ibid., p. 46. 99) RANGEL, Paulo. Op. cit., p. 47. 100) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 31.

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3 INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO INQUISITIVO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO 3.1 A CONJUNTURA HISTÓRICA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO Cumpre salientar que o Brasil, durante o período em que era colônia de Portugal esteve, na sua administração, sujeito à política lusitana. Por isso, será interessante para o presente estudo breve digressão sobre a atuação da Inquisição portuguesa, no entanto, segundo João Bernadino Gonzaga, “ainda engatinham as tentativas de colocar em ordem e analisar a massa dos documentos guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo”101, encontrando-se, portanto, deficientemente estudada. No entanto, cumpre salientar que a bula Meditatio Cordis, de 16 de junho de 1547, estabelece definitivamente a atuação da Inquisição em Portugal através da implantação de um tribunal inquisitorial .102. Entende-se que o foco das perseguições Inquisitorial portuguesa se dirigiu principalmente contra os cristãos-novos de origem hebraica103. Devido aos métodos bastante severos, a Inquisição portuguesa bem como sua Justiça criminal tornam-se alvo de inúmeras críticas. Nesse sentido, Gonzaga afirma de forma interessante que a Justiça criminal comum lusitana se apresentava extremamente inflexível e que tão grande era o rigor das Ordenações Filipinas de 1603, que com grande facilidade cominavam a pena de morte, que se conta haver Luís XIV perguntado, ironicamente, ao embaixador português em Paris, querendo saber se, após o advento de tais leis, alguém havia escapado com vida.104 Importante observar também, no que tange à Inquisição portuguesa, sua clara implicação política se revelou desde o seu estabelecimento, ou seja, quan101) GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p. 222. 102) “Foram criados tribunais em Lisboa, Coimbra, Évora, Lamego, Tomar e Porto. Os três últimos foram abolidos por causa dos grandes abusos e corrupção de sua administração. Os demais trabalharam com intensidade até o século XIX. (...). Todas as negociações mantidas entre Roma e Portugal para se estabelecer o tribunal tiveram por base o poder do dinheiro. Os Papas sabiam que os monarcas portugueses, possuindo o domínio sobre a Inquisição, enfraqueceriam politicamente Roma. Daí as longas lutas travadas com D. João III e seus conselheiros que queriam a autorização para criar a Inquisição em Portugal. Tanto na corte portuguesa quanto nos estados papais reinavam a intriga, corrupção e suborno. A Inquisição foi “comprada” por Dom João III, no começo com algumas restrições, mas com o tempo estas foram abolidas e o Rei passou a ter o controle absoluto sobre a instituição. O estabelecimento da Inquisição em Portugal como na Espanha, está ligado às ambições de centralizações do poder” (NOVINSKI, Anita Waingort. Op. cit., p. 36). 103) “Tendo-se tornado oficialmente cristãos, os judeus logo quiseram daí tirar todas as vantagens possíveis: freqüentavam a corte, reivindicavam títulos de nobreza, obtinham cargos públicos mais rendosos, penetravam pelo casamento nas famílias tradicionais. Tantos avanços geraram no povo a sensação de medo a insegurança que buscava na Inquisição a força compulsiva destinada a enquadrar aquela minoria perigosa nos moldes da maioria tradicional, instando pela uniformização de mentalidades e de costumes. Uma sociedade assentada na economia agrária, que obtinha seu sustento através de labor duro e honesto, via com profundo desagrado os conversos em enveredarem pelo novo regime do capitalismo comercial, que produzia melhores frutos. A mudança parecia reprovável, obra não de Deus, mas do Demônio.(...) A Reação não tardou a produzisse, através de medidas discriminatórias” (GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p. 231). 104) GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p. 233. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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do do funcionamento do tribunal inquisitorial em que já mostraram-se unidas as forças políticas e espirituais da nação, no sentido de que a figura de rei e inquisidor reunia-se na mesma pessoa, ou seja o cardeal Henrique e o bispo D. Pedro de Castilho foram simultaneamente governadores e inquisidores105. João Bernadino Gonzaga aponta que, quanto aos procedimentos, métodos de trabalho, as medidas repressivas da Inquisição portuguesa foram, grosso modo, os mesmos adotados no restante da Europa; contudo, mais severos. Os preparativos começavam várias semanas antes, mais o anúncio público fazia-se 15 dias antes, a tempo de construir a cadafalso e o anfiteatro de confeccionar os sambenitos, espécie de hábitos com que saíam os condenados. No auto-de-fé de 18 de novembro de 1646, em Lisboa, gastaram-se 165 côvados de pano vermelho e amarelo, ou seja, cerca de 85 metros para 86 penitentes e relaxados. Sobre o pano deviam ir pintadas as insígnias correspondentes às penas. No tocante aos condenados à morte, o pintor chamado à sede da Inquisição devia observar os réus sem ser visto por eles, para lhes tirar o retrato a óleo, que figuraria no sambenito com meio corpo metido nas chamas. 106 Conforme já exposto anteriormente, houve a instalação de tribunais em Lisboa, Évora e Coimbra, sendo que o primeiro estendia sua jurisdição ao Brasil. Portanto, visando respeitar o viés adotado pelo presente trabalho, a análise se restringirá a partir de então, à conjuntura histórica na qual está inserido o processo penal brasileiro. Assim, a respeito da atuação da Inquisição em terras brasileiras, assevera-nos Novinski que a política racista, depois da descoberta do Novo Mundo, foi aplicada também aos índios, em seguida aos negros, mulatos e ciganos. Como havia uma grande miscigenação entre a população portuguesa, os estatutos de pureza de sangue serviram de arma que o poder utilizou para restringir apenas a um pequeno grupo a direção da sociedade, preservando assim a estrutura do antigo regime. Os povos espanhol e português foram gradativamente aceitando a mensagem propagandista da igreja, que vinha de uma minoria, e cujos interesses pediam a eliminação da burguesia conversa ou cristã-nova, identificada como “o perigo da heresia.”107 Cumpre salientar, portanto, que o Estado e a Igreja foram as duas instituições básicas que, por sua natureza, possuíam a tarefa de organizar a colonização do Brasil. Assim, esclarece-nos Boris Fausto em sua obra História do Brasil que, embora se tratem de instituições diferentes, naqueles tempos uma estava ligada à outra. Não existia na época, como existe hoje, o conceito de cidadania, de pessoa com direitos e deveres com relação ao estado, independentemente da religião. A religião do Estado era a católica e os súditos, isto é, os membros da sociedade deviam ser católicos.108 105) NOVINSKI, Anita Waingort. Op. cit., p. 43. 106) GONZAGA, João Bernardino. Op. cit., p. 233. 107) NOVISNKI, Anita Waingort. Op. cit., p. 43. 108) FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p. 60.

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Nesse sentido, para a completa realização do intento colonizador foi preciso, em princípio, uma divisão de trabalho entre as duas supracitadas instituições109. De acordo com o historiador Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra História Geral da Civilização Brasileira – A Época Colonial, “no Brasil colônia, o Direito como ciência existiu da mistura com seu Direito Positivo e este, até 1808, foi tipicamente português”110. Ainda de acordo com Holanda111: Relativamente ao Direito positivo, conquanto as Ordenações Manuelinas datassem de 1514, em pouco alteraram as Afonsinas que as antecederam. Mas, precisamente porque desde o século XV, antecedente ao descobrimento do Brasil, se assinala o aparecimento dos jurisconsultos portugueses influenciados pelo francês Cujas (Cujitatius ou Cujaux), será possível a Portugal, em começo do XVII, ter o primeiro monumento legislativo a que, guardadas as proporções, se pode dar o nome de Código. As Ordenações Filipinas, assim chamadas porque fruídas de recopilação ordenada por Filipe II (I de Portugal), e publicadas em 1603, ao tempo também de Filipe III, resultaram da reunião de textos esparsos chamados “Leis extravagantes” (coligidos por Duarte Nunes de Leão) e da legislação anterior (Ordenações Afonsinas e Manuelinas). Assim como regeram a vida dos direitos em Portugal, por igual tiveram tal destino do Brasil, onde, aliás, exerceram influência mais extensa que se tem pretendido, a par com a legislação de circunstâncias e a legislação local.

Portanto, das chamadas Ordenações do Reino, foram as Filipinas que tiveram uma maior aplicação no chamado período do Brasil Colonial, principalmente após a criação do Tribunal de Relação da Bahia. No entanto, o autor José Henrique Pierangelli atenta pelo fato de que nos primeiros séculos de colonização brasileira “reside um dos pontos da história do Direito Processual Penal do nosso país da maior obscuridade, com precariedade de fontes. Nem mesmo se sabe, com segurança, como foram no Brasil aplicadas as Ordenações do Reino”112. O que se sabe é que, por volta de 1530, D. João III inicia a colonização do Brasil com Martim Afonso de Sousa113. Porém, o sistema de capitanias hereditárias não logrou êxito, fazendo com que D. João III, em 1548, iniciasse o chamado Governo Geral, com sede na 109) “Ao estado houve o papel fundamental a soberania portuguesa sobre a Colônia, dotada de uma administração, desenvolver uma política de povoamento, resolver problemas básicos como da mão-de-obra, estabelecer o tipo de relacionamento que deveria existir entre Metrópole e Colônia. Essa tarefa pressupunha o reconhecimento da autoridade do Estado por parte dos colonizadores que se instalariam no Brasil, seja pela força, seja pela aceitação dessa autoridade, ou pelas ambas as coisas. Nesse sentido o papel da Igreja se tornava relevante. Como tinha em suas mãos a educação das pessoas, o “controle das almas” na vida diária, era um instrumento muito eficaz para veicular a idéia geral de obediência e, em especial a de obediência ao poder do Estado. Mas o papel da Igreja não se limitava a isso, ela estava presente na vida e na morte das pessoas, nos episódios decisivos do nascimento, casamento e morte. O ingresso na comunidade, o enquadramento nos padrões de uma vida decente, dependiam de atos monopolizados pela Igreja: o batismo, a crisma, o casamento religioso, a confissão e a extrema-unção na hora da morte, o enterro em um cemitério designado pela significativa expressão campo santo” (Ibid., p. 60). 110) HOLANDA, Sérgio Buarque. A Época Colonial. (História Geral da Civilização Brasileira; t.1; v.2) 10. ed. Rio de Janeiro: Berttrrand Brasil, 2003. p. 53. 111) Ibid., p. 55-56. 112) PIERANGELLI, José Henrique. Processo Penal: Evolução histórica e fontes legislativas. Bauru, São Paulo: Jalovi, 1983, p. 71. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Bahia e que tinha na figura de Tomé de Sousa o primeiro governador-geral. Posteriormente foi criado o cargo de ouvidor-geral ao qual estava o encargo de presidir a justiça114. Segundo João Mendes de Almeida Júnior, data dessa época, igualmente, a chamada coleção de Leis Extravagantes de Duarte Nunes de Leão115. Conforme exposto, foram as Ordenações Filipinas “que por mais de dois séculos foram aplicadas ao nosso país, até mesmo depois da independência”116 e que, portanto, merecerão neste estudo uma análise mais aprofundada quanto a seus institutos. As supracitadas Ordenações tiveram seu início a partir da morte de D. Henrique que possibilitou subir ao trono português, por herança, Filipe II da Espanha, sagrado em terras lusitanas com o título de Filipe I117. Filipe I ordena refundir as antigas Ordenações do Reino118, fazendo-se uma nova compilação. Assim as Ordenações Filipinas só foram promulgadas no rei113) “A posse efetiva do território, contudo, só viria a ser tentada com o regime de capitanias hereditárias, em número de 14, que foram doadas a 12 donatários. Essas doações ocorreram no início de 1534 até 1536. Aos donatários foram outorgadas as jurisdições civil e penal, especificados os privilégios nas cartas de doações ou forais. Assim, as cartas de doação estabeleciam que os donatários tinham jurisdição e alçada de morte natural para os peões, gentios e escravos e, até 10 anos de degredo e sem cruzados de pena, para pessoas de maior qualidade. Conhecer das apelações e agravos de qualquer ponto da capitania, também era da competência dos donatários, que também podiam influir nas eleições dos juízes e mais oficiais dos conselhos das vilas, apurando a lista de homens bons, que deveriam aqueles eleger e anuindo ou não às ditas eleições, apesar do que em contrário dispunham as ordenações” (Ibid., p. 71-72). A respeito, conferir também: SAMPAIO, Aluysio. Brasil, Síntese da evolução social. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1974. p. 33-38. 114) “Em geral, aos ouvidores nomeados para o Brasil, davam-se as seguintes atribuições: de conhecer, por ação nova, nos lugares de sua jurisdição onde estivessem, e 5 léguas ao redor, de todas as causas cíveis e crimes, e de sentenciar os feitos finalmente, dando apelação para a Relação do Estado do Brasil nos casos em que não coubessem na sua alçada, assim como para a mesma Relação e não para o Capitão seguiam os instrumentos de agravo e as cartas testemunháveis, conheciam, em grau de apelação, das sentenças dos ouvidores das capitanias do seu distrito e dos juízes ordinários das vilas, lugares e povoações de sua ouvidoria, tinham alçada nos feitos cíveis até 20 mil réis e nos feitos crimes para condenar em penas de açoiteis os escravos e em pena de degredo os peões. Nos casos em que coubesse pena de morte ou cortamento de membro assim como nos casos de traição, sodomia, furto, roubo de navio e quebramento de segurança, podiam condenar segundo lhes parecesse por direito, sem apelação nem agravo. E nos outros casos dariam apelação e agravo para Casa de Suplicação de Lisboa. Passavam as cartas de seguro e alvarás de fiança. Tiravam as devassas que os corregedores eram obrigados a tirar na forma de apelação” (Ibid., p. 72). 115) “Por um alvará de 5 de março de 1557, inserto na parte II, tit. II lei II da coleção das extravagantes, de Duarte Nunes de Leão, “ordenou o dito Senhor (El-Rei D. João III) que as doações que tinha feito aos capitães das terras do Brasil, per que lhes dava alçada em piões cristãos homens livres até a morte natural inclusive, se entendessem que, em caso de condenação de morte natural houvesse sempre apelação. E da mesma maneira nos quatro casos de heresia, traição, sodomia e moeda falsa, conteúdos nas ditas ordenações, quando a condenação fosse de morte natural. E ainda em que as doações dos ditos capitães dissessem que, nas ditas capitanias não entraria, nem poderia em tempo algum entrar Corregedor, nem alçada, havia por bem demandas a elas corregedor, e alçada quando lhe parecesse necessária e cumprisse a seu serviço sem embargo as ditas cláusulas das ditas doações” (ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p.142). 116) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 61. 117) Ibid., p. 62. 118) “As Ordenações Filipinas tiveram por fonte as Ordenações Manuelinas, a coletãnea de Duarte Nunes de Leão e a legislação extravagante posterior. Nela, apresentava-se claramente a preocupação de atualização, que sobrepõe à inovação. Preservou-se o espírito da legislação lusa mas, aproveitou-se da oportunidade para a modernização da linguagem. Portanto, só em medida muito restrita a legislação espanhola influiu nas Ordenações Filipinas. (...). A luta contra a justiça privada que começou com o fortalecimento do poder real e que ganhara maior ênfase com as duas primeiras compilações, prosseguiu com as Ordenações Filipinas” (PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 62).

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nado de Felipe II (III de Espanha), começando a vigorar em 11 de janeiro de 1603119. No tocante ao processo penal, esclarece José Henrique Pierangelli: Em matéria de processo penal, as Ordenações Filipinas repetiram, em grande parte, o conteúdo das outras ordenações. A importância que para nós, ela assume, está na razão direta de sua aplicação no nosso país. Embora formalmente, as ordenações Manuelinas e as compilações de Duarte Nunes de Leão vigorassem à época das capitanias hereditárias e dos primeiros governos gerais, segundo o que se tem afirmado, no Brasil, vigoravam as determinações régias, aliadas às Cartas de Doação com força semelhante à dos forais, por elas regulando a justiça local. O Direito empregado, no período das capitanias hereditárias, na prática, era quase o arbítrio dos donatários. Aquelas legislações vigorariam, portanto, restritamente.120

João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, no livro O Processo Criminal Brasileiro ressalta o reaparecimento no século XIV em diante da prova de Tormentos. Foi no século XIV que, de novo, entraram os tormentos na prática judiciária. A Ord. Afonsina, L. V, tit. 87 e 88 tem as leis de D. Pedro I e D. João I, determinando os casos em que devem ser dados os tormentos e estabelecendo, como regra, que não fossem metidos os réus a tormento se apelassem e que se lhes recebessem a apelação. (...) A esquissa ou inquérito e o processo secreto desenvolveram, pois, o uso da tortura, em conseqüência dos preconceitos que levaram a jurisprudência a formular, como regra essencial, a necessidade da confissão do acusado. O juiz, habituado a fundar toda instrução nas contínuas perguntas ao réu, buscava todos os meios de extorquir essa confissão, ostentando uma habilidade sem escrúpulo, quer para a sugestão, quer para as ciladas, quer para o cansaço do interrogado; e, se ainda assim nada conseguisse, recorria às ameaças e depois aos tormentos.121

Seguem após os Tormentos, confirmadas pelas ordenações Filipinas “de sorte que no último estado da legislação, estavam isentos das provas dos tormentos os mentecaptos, e os velhos, as mulheres pejadas, os valetudinários, os soldados, os vereadores, os nobres, os letrados e os menores de 14 anos”122. Importante salientar também a dominação do sistema da prova legal, isto é: ... o juiz deveria julgar pelo alegado e provado, ainda que a consciência lhe ditasse o contrário. Entretanto, força é reconhecer que em matéria crime não seria difícil ao juiz, salvo em casos raríssimos, harmonizar os preceitos legais com os ditames da sua consciência. Não podia o juiz aplicar as penas a seu arbítrio, quando elas eram certas e determinadas pela lei (Ord. L. 5 V, tit 136): quando, porém, o crime não tinha pena determinada pela lei, o arbítrio do juiz deveria ser regulado pela analogia de direito, sempre devendo, segundo a regra já então desenvolvida pelos praxistas do tempo, antes moderar do que ampliar o rigor da lei123. 119) Ibid., p. 62. 120) Ibid., p. 63. 121) ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p. 137 e 138. 122) ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p.139. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Contudo, em 1640 aconteceu a restauração da monarquia portuguesa que teve na figura de D. João IV o primeiro rei desse período, o qual confirmou as Ordenações Filipinas, o que vem a reforçar afirmação acerca do cunho nacionalista que era impregnado na ordenação supramencionada. Quanto à administração da justiça colonial brasileira, cumpre salientar que esta sofreu modificações com as chamadas Leis Extravagantes ou especiais que foram compiladas nas Ordenações Filipinas124. Em 1669, foram nomeados os primeiros Juizes de fora do Brasil designados para Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco125. Com relação aos órgãos de justiça no período colonial brasileiro, Boris Fausto, na obra História do Brasil, relata que estes, às vezes com funções administrativas, eram representados pelos vários juizes, entre os quais se destacava o ouvidor da comarca, nomeado pelo soberano por três anos. Para julgar recursos das decisões, existiam os Tribunais da Relação, presididos pelo Governado ou pelo Vice-rei a princípio só na Bahia e depois na Bahia e no Rio de Janeiro.126 A vinda da Família Real em 22 de janeiro de 1808 representou um grande avanço no sentido de possibilitar ao Brasil, então colônia, a fundamentação de uma infra-estrutura para, futuramente, conseguir sua independência. Nesse sentido, a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, feita por D. João VI, representou um passo importante rumo à emancipação política brasileira127. Outras providências também foram tomadas por D. João VI128. Assim, como assevera João Mendes de Almeida Júnior, “em 16 de dezembro de 1815, quando foi solenemente declarada a elevação do Brasil à categoria de Reino, já estava de fato estabelecida a mais completa autonomia das justiças”129. Quando da partida de D. João VI para Portugal em 1821, seu filho e então príncipe regente D. Pedro de Alcântara tinha consolidada em suas mãos as bases de separação que culminaria na independência política em 7 de setembro de 1822130. 123) Id. 124) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 69-73. 125) “Eram assim denominados, porque deviam ser de fora da terra ou de fora do senado, já que os juízes ordinários pertenciam à câmara e eram eleitos pelos vizinhos. Com a chegada dos juízes de fora, cessava a jurisdição dos juízes ordinários. Os juízes de fora, que deveriam ser letrados, eram verdadeiros chefes da justiça e da administração, nos seus respectivos termos, competindo-lhes substituir o ouvidos da comarca nas suas ausências, e impedimentos. Também lhes competia constranger os alcaides na administração da cidade e fazerem o serviço de polícia e segurança. Podiam proceder à devassa quando ocorressem homicídios, violação de mulheres, fuga de presos, moeda falsa, arrombamento de cadeias, resistência, furtos, cárcere privado e abrir devassa a cerca de juízes que os haviam precedido no cargo. De suas decisões, cabia recurso para a Relação” (Ibid., p. 75). 126) FAUSTO, Boris. Op. cit., p. 64. 127) HOLANDA, Sérgio Buarque. Op. cit., p. 53. 128) “Chegando ao Brasil, D. João VI criou o Supremo Conselho Militar de e Justiça, (...) e deu à relação do Rio de Janeiro de Casa de Suplicação, constituindo-a o Superior Tribunal de Justiça. (...). Foram ainda criados em 1808 lugares de Juízes privativos do crime no rio de Janeiro; e daí em diante até a independência foram sendo criados mais lugares de juízes de fora, ouvidores e corregedores, além dos juízes ordinários nas novas vilas que se iam estabelecendo, serventuários e oficiais de justiça, além da relação maranhão criado em 1812 e de Pernambuco, criada em 1821” (ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p.145-146). A respeito conferir também: RIBEIRO, João. História do Brasil. 17. ed. São Paulo: Paulo de Azevedo, 1960. p. 319-333. 129) Ibid., p.148.

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Portanto, de acordo com José Henrique Pierangelli “do que ficou expedido, conclui-se que grande parte da legislação penal e processual que vigorou no Brasil até sua independência se encontrava nas ordenações, principalmente no livro V, das Ordenações Filipinas, além das leis extravagantes (também portuguesas) e legislação editada no Brasil a partir de 1808, com a vinda da Família real”131 Livre, portanto, da dominação política de Portugal, em 20 de outubro de 1823, a Assembléia Nacional Constituinte põe em prática algumas medidas regularizadoras132. Segundo Boris Fausto, antes de entrar no exame da Constituição de 1824, dois pontos devem ser ressaltados: Um contingente ponderável da população - os escravos - estava excluído de seus dispositivos. Deles não se cogita, a não ser obliquamente, quando se fala dos libertos. O outro ponto se refere à distância entre os princípios e a prática. A constituição representava um avanço, ao organizar os poderes, definir atribuições, garantir direitos individuais. O problema é que, sobretudo no campo dos direitos, sua aplicação seria muito relativa. Aos direitos se sobrepunha a realidade de um país onde mesmo a massa da população livre dependia dos grandes proprietários rurais, onde só um pequeno grupo tinha instrução e onde existia uma tradição autoritária.133

Após a promulgação da Constituição do Império, o governo baixou algumas decisões dentre as quais podemos citar a de número 78, de 31 de março de 1824, que determinou aos juizes a fundamentação das sentenças que proferissem, bem como a decisão número 81, na qual o governo declarava incompetente o juiz da devassa para julgar o feito. No tocante ao Poder Legislativo, este se ocupava da organização da justiça e das regras do processo nos moldes dos ditames constitucionais estabelecidos134. Ainda de acordo com José Henrique Pierangelli, antes da promulgação do Código de Processo Criminal de 1ª Instância, foram surgindo outros diplomas legislativos que se constituíam importantíssimos135. 130) Id. 131) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 83. 132) “Que as Ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal e pelos quais governava até o dia 25 de abril de 1821, em que El-Rei D. João VI de ausentara e todas as que foram promulgadas daquela data em diante pelo Regente do Brasil e como Imperador Constitucional dele, desde que se erigiu em Império ficam em inteiro vigor na parte em que não tiverem sido revogadas, para por elas regularem os negócios do interior do Império, enquanto se não organizar um novo código, ou não forem especialmente alterados” (Ibid., p. 84). 133) FAUSTO, Boris. Op. cit,. p. 149. 134) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 92. 135) “Para o processo penal, importantíssima é a Lei de 30 de agosto de 1828, que declarava os casos em que se podia proceder à prisão por delitos, sem culpa formada. Em 18 de setembro de 1828, por Lei, foi criado o Supremo Tribunal de Justiça, (...) e 23 e 24 de setembro de 1828 foram editados mais 2 diplomas legislativos com conteúdo de processo penas: o primeiro é a lei que ‘prescreve as formalidades que se devem observar nos processo criminais, e a maneira porque devem ser instruídos e preparados os que forem julgados nas Juntas de Justiça’; o segundo, o decreto que ‘dá providências a cerca da substituição dos membros das Juntas de Justiça de Províncias, e manda que das respectivas sentenças de pena de morte se apelem ex-officio para a Relação do Distrito’. Em 6 de outubro de 1828, sob n. 148, merece destaque o seguinte diploma legislativo que ‘declara que não se pode mais conhecer de crimes incertos por meio de devassa’.” (PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 92-93).

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Com relação ao Código de Processos, aprovado em 29 de novembro de 1832, esclarece-nos Emília Viotti Da Costa, que este se apresentava como um dos principais instrumentos da centralização, representando uma conquista dos liberais radicais: Tornava a autoridade judiciária independente do poder administrativo, submetendo-o à eleição. Estendia a jurisdição criminal à competência dos juizes de paz, também eleitos. O promotor, o juiz municipal e o juiz de órfãos que até então tinham sido nomeados pelo governo central passaram a ser escolhidos a partir de uma lista tríplice composta pela Câmara Municipal. O Código também conferiu amplos poderes ao júri. (...) mas nem bem aprovado o código já se cogitava na assembléia de anular a autonomia local recém concedida e de restringir o seu caráter democrático. A concessão liberal e democratizante provocará uma reação conservadora, que acabou por prevalecer alguns anos mais tarde com a aprovação da lei de 1841 que reviu o Código de Processo, restringindo o poder dos Juizes eletivos e ampliando a área de influência dos representantes do governo no poder judiciário e policial- revisão perfeitamente coerente com o espírito do liberalismo regressiva que imperava nesta fase.136

No mesmo sentido se posiciona João Mendes Almeida Júnior, no que tange ao Código de Processo Criminal afirmando que foi “imenso o salto do L. V das Ordenações Filipinas para o liberalíssimo regímen do código de processo”137. Ainda de acordo com o supracitado autor, o Código de Processo Penal trouxe uma completa mudança nas formas de processo criminal138. No mesmo sentido interessante se faz análise de José Henrique Pierangelli em relação a estrutura do Código de Processo Criminal do Império: Toda e qualquer crítica ou elogio que se faça ao Código de Processo Criminal do Império deve se ter em conta o momento histórico que era vivido. (...). O que se nos afigura fora de dúvida é que os pensamentos iluministas da época nele se fizeram sentir, aqueles mesmos princípios que tinham influído na constituição do Império e do Código Criminal de 1830. (...). O Código estava dividido em duas partes. A primeira cuidava da organização judiciária, e, a segunda, ‘da forma do processo’.139 136) VIOTTI DA COSTA, Emilia. Da monarquia à república: momentos decisivos. 7. ed., São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p.153. 137) ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p.176. 138) “As devassas gerais que já tinham sido abolidas em Portugal desde 1821, as devassas especiais, as querelas e as denúncias, conforme os requisitos das Ordenações – foram eliminadas: as querelas, tomando forma nova, passaram a denominar-se – queixas e a competir somente ao ofendido, seu pai, mãe, tutor, curador, cônjuge; a denúncia passou a ser o meio de ação do ministério público ou da ação pública de qualquer do povo; o procedimento ‘ex-offício’ foi autorizado em todos os casos em que cabe a denúncia, ainda que denúncia não houvesse. A formação de culpa, desde o corpo de delito até o interrogatório, foi feita em sumário, a que só podia procederse em segredo somente quando a ela não assistisse o delinqüente e seus sócios; acusação e o julgamento nos crimes de pena maior que a de seis meses de prisão ou degredo, passaram a ser feitas em processo público e oral perante o júri. O júri era constituído em dois conselhos: o primeiro, para declarar se havia motivo para acusação; o segundo que era o júri de sentença. Foram regulados os recursos ordinários e o recurso, denominado extraordinário, do habeas-corpus” [grifos no original]. (ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p. 175-176).

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Outro aspecto relevante do referido Código de Processo, era que o ofendido, além da possibilidade de impetrar denúncia e acusação, também estaria liberado para oferecer queixa não apenas nos delitos chamados particulares, como também como nos delitos públicos e nos particulares afiançáveis, isto porque segundo José Henrique Pierangelli: O Código Criminal de 1830 dividia os crimes em públicos e particulares; os primeiros eram aqueles que ofendiam um bem coletivo ou do Estado; os segundos, os que atingiam um bem jurídico individual. Este critério, conseqüentemente, deveria influir no processo penal, pois, já nessa época, era patente e distinção entre Direito Penal e o Direito Processual Penal, este possibilitando a relação daquele.140

Após abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, transcorrido o período das Regências, aconteceu a antecipação da maioridade de D. Pedro II, em 23 de junho de 1840, sendo que nesse mesmo ano aconteceu a reforma do Código de Processo Criminal de 1ª Instância, que se deu através da Lei n. 261, de 3 de dezembro de 1841. Há de se notar, contudo, que a referida reforma assinalou um conteúdo autoritário e centralista ao código, fruto da influência dos conservadores na condução dos rumos do governo durante esse período141. Nesse sentido, a nova legislação e o Regulamento de número 120 passaram a realizar uma gama muito grande de modificações142. Por isso, devido ao seu viés conservador, a Lei n. 261 e seu Regulamento n. 120 começaram a ser alvo de muitas críticas por parte dos liberais pelo fato de, segundo estes, serem extremamente centralizadores e autoritários143. No entanto, após inúmeras tentativas infrutíferas, foi somente com a Lei n. 2.033, regulamentada pelo Decreto n. 4.824, de 22 de novembro de 1871 que o Processo Penal foi estruturado144. Portanto, ao ser Proclamada a República em 15 de novembro de 1889, o Brasil já podia contar com um processo penal regulamentado145. Ainda com relação à Proclamação da República, bem como com relação a Constituição de 1891 que a seguiu, esclarece João Mendes de Almeida Júnior:

139) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 99-100. 140) Ibid, p.119. 141) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p.134-135. 142) “Principais modificações operadas com a reforma de 1841: a) O Código de Processo Criminal estabeleceu que a polícia estava afeta a uma autoridade local: juiz de paz ou juiz popular. A este entregou atribuições policiais preventivas e repressivas, informativas e probatórias (...). Á polícia judiciária atribuiu-se as seguintes funções: proceder a corpo de delito; expedir mandado de busca e apreensão prender os pronunciados; julgar os crimes dentro de sua alçada (...) c) com a legislação em estudo, houve um sensível crescimento do ministério público (...) d) dentre outras modificações mais importantes, podemos assinalar: deu novas e mais amplas atribuições aos juízes de direito; aboliu as juntas de paz” (Ibid., p.140-143). 143) Ibid., p.145. 144) Ibid, p.151. 145) Ibid, p.153. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Proclamada a República em 15 de novembro de 1889, cada uma das Províncias passou a constituir um Estado Federado e o antigo município neutro constituiu o Distrito Federal, cada um com administração autônoma, devendo cada estado reger-se pela constituição e leis que adotasse, respeitados os princípios constitucionais da União. 146

A descentralização operada com a Constituição de 1891 também se constitui em objeto de análise de José Henrique Pierangelli, visto que, de maneira implícita, tal constituição outorgou aos Estados-membros a competência para legislar em matéria de processo147: A quebra de unidade processual, já que cada Estado-membro possuía a competência para legislar em matéria de direito processual e de organização judiciária, não trouxe qualquer vantagem para as instituições jurídicas do nosso País. Contrariamente essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal. Não obstante o pluralismo que se estabeleceu com a Constituição a União continuou a legislar em matéria de processo penal (...) Evidencia-se, portanto, que embora a constituição outorgasse aos estados membros a competência para legislarem em matéria de processo penal, quando da elaboração de leis extravagantes, ou das disposições penais enxertadas em outros diplomas legislativos, que também constituíam em leis especiais a União estabelecia regras que, tendo em vista a hierarquia de tais leis, deveriam ser observadas pela justiça estadual, inclusive nos Estados que chegaram a possuir seus próprios códigos.

A partir de então, teve início na história brasileira o período conhecido como “República Velha”, cujo término se deu com a Revolução de 1930, que instituiu na história brasileira o período denominado “Era Vargas”, o qual possibilitaria o fim da descentralização no processo penal que foi operado pela Constituição da República de 1891. Contudo, a próxima Constituição, também durante o período do governo Vargas, promulgada em 16 de julho de 1934 foi “quem pôs fim ao sistema pluralista, ao estabelecer que competia privativamente à União legislar sobre direito processual (artigo 5º., inciso XIX, alínea ‘a’)”148. Também durante o período denominado Estado Novo, no qual foi outorgada a Constituição de 1937, manteve-se a unidade processual estabelecendo que à União competia, privativamente, legislar sobre direito penal e processual penal149. Assim, em 3 de outubro de 1941, pelo Decreto-Lei n. 3.689 foi promulgado o Código de Processo Penal vigente, que vem sofrendo várias modificações até a data de hoje. Por não constituir-se em objeto central de análise do presente estudo, bem como por não apresentar alterações substanciais no Processo Penal, o período que vai desde 1941, passando pelos governos populistas bem como o

146) ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Op. cit., p.112. 147) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p.160-161. 148) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p.166. 149) Id.

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golpe militar de 1964, não merecerá, na presente pesquisa, atenção especial. Atualmente, com o advento da Constituição de 1988 e, de acordo com uma visão doutrinária tradicional, o Processo Penal brasileiro passaria a ser entendido como um processo acusatório, porém, de acordo com as considerações doutrinárias mais críticas em relação ao tema, a simples existência de partes, argumento utilizado pela doutrina tradicional, não seria suficiente para caracterizá-lo enquanto tal. No entanto, é preciso ressaltar que, embora tenha havido diferentes legislações, no Brasil sempre se adotou um Sistema Processual Penal com feição inquisitória, mesmo no Código Criminal de 1ª. Instância. Nesse sentido observa José Henrique Pierangelli: A ação penal também podia ser iniciada pelo próprio juiz, em razão dos deveres que lhe eram impostos pelo Código de Processo Criminal. Este, nos artigos 138, 141 e 206, bem assim nos artigos 256 e seguintes do Regulamento n. 120, mandava que o juiz procedesse à formação da culpa, nos casos em que era admitida a denúncia, mesmo que denunciante não houvesse. No artigo 138, determinava o juiz que procedesse “a auto de corpo de delito a requerimento da parte, ou ex-ofício nos crimes, em que tem lugar a denúncia” para tanto deveria formular os quesitos necessários aos quais respondiam os peritos após as averiguações convenientes. [grifos no original].150

Na mesma linha de raciocínio, cumpre também proceder-se incursão acerca do atual Código de Processo Penal, elaborado durante o período ditatorial de Getúlio Vargas e que teve por base o Código Rocco italiano151. Contudo, posto tratar-se de tema fundamental ao deslinde do presente estudo, este tema será objeto de análise específica ao longo do item 3.3, deste capítulo, no qual será analisado o posicionamento doutrinário mais avançado no tocante a essa questão e que tem nos ensinamentos do autor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho seus principais fundamentos.

3.2 ANÁLISE DOS INSTITUTOS LEGAIS QUE CONFEREM AO MAGISTRADO A FUNÇÃO DE INQUISIDOR Com o passar do tempo a humanidade assistiu ao nascimento dos chamados Sistemas Processuais Penais, quais sejam: Sistema Acusatório Puro (Inglaterra) e Sistema Inquisitório Puro (Europa Ocidental), ambos no período denominado Baixa Idade Média; bem como o Sistema Misto/Reformado/ Napoleônico (França, pós a Revolução). A conjuntura histórica de cada período foi determinante para conferir a cada um dos referidos sistemas institutos e características que lhes são próprios. Enquanto sistema, cada qual representa um conjunto de atos e elementos que estão conjugados por um princípio unificador que os une. Em assim 150) PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p.115-116. 151) Id. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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sendo, o sistema acusatório encontra fundamento no princípio dispositivo (processo com contraditório, público, podendo ser oral ou escrito, no qual as funções de defender, acusar e julgar são atribuídas a pessoas distintas, etc.), enquanto o sistema inquisitório norteia-se pelo chamado princípio inquisitivo (processo sem contraditório, com a concentração das três funções nas mãos de uma só pessoa, sigilo, procedimento escrito, etc.). Quanto ao sistema misto ou napoleônico, este não conta, como os sistemas anteriores, com um princípio unificador. Isto porque, constitui-se numa mistura dos dois sistemas anteriores e, portanto, poderia revelar maior tendência a um ou de outro princípio, ou seja: dispositivo ou inquisitivo152. O ordenamento jurídico pátrio ao adotar o chamado sistema misto traz à tona essa questão, pois de acordo com estudos doutrinários mais avançados nosso ordenamento passaria a refletir, apesar das garantias introduzidas com a Constituição de 1988, muito mais influências do Princípio Inquisitivo do que do Princípio dispositivo. Dentro desse raciocínio, a questão da “gestão da prova” no processo penal, por se encontrar nas mãos do magistrado, demonstra com maior evidência que nosso sistema processual penal recebe grandes influências do Princípio Inquisitivo. Com o intuito de prestar melhores esclarecimentos no tocante aos tipos de sistemas processuais existentes, urge referenciar os ensinamentos de Hélio Tornaghi: O processo penal se apresenta, através da história, sob três formas diferentes conhecidas pelos nomes: acusatória, inquisitória e mista. O que distingue a forma acusatória da inquisitória é o seguinte: na primeira, as três funções de acusar, defender e julgar estão atribuídas a três órgãos diferentes: acusador, defensor e juiz; na segunda, as três funções estão confiadas ao mesmo órgão. O inquisidor deve proceder espontaneamente e suprir as necessidades da defesa. (...) O réu é tratado como objeto do processo e não como sujeito, isto é, como pessoa titular do direito de defesa; nada pode exigir. A mista é uma combinação das duas outras: instrução inquisitória, julgamento acusatório. [grifos no original].153

No entanto, em que pese a existência da divisão do processo nas três formas supracitadas, assim esclarece Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: Salvo os menos avisados, todos sustentam que não temos, hoje, sistemas puros, na forma clássica como foram estruturados. Se assim o é, vigoram sempre sistemas mistos, dos quais não poucas vezes tem se uma visão equivocada (ou deturpada), justo porque, na sua inteireza, acaba recepcionado como um terceiro sistema, o que não é verdadeiro. O dito sistema misto, reformado ou napoleônico é a conjugação dos outros dois, mas não tem um princípio unificador próprio, sendo certo que é ou essencialmente inquisitório (como o nosso) com algo (caracte-

152) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p.17. 153) TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, v.2, 1977, p.1-2.

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rísticas secundária) proveniente do sistema acusatório, ou é essencialmente acusatório, com alguns elementos característicos (novamente secundários) recolhidos do sistema inquisitório.. Por isso, só formalmente podemos considerá-lo como um terceiro sistema, mantendo viva, sempre, a noção referente a seu princípio unificador.154

Nesse sentido, tendo por base o estudo realizado nos capítulos anteriores da presente monografia, no que tange ao processo inquisitório, percebe-se que em sua estrutura (inquisitorial) é excluída “por conveniência um órgão acusador: o actus trium personarum já não se sustenta”155. Ademais, o juiz inquisidor, cujo ofício é ao mesmo tempo acusar e julgar, é responsável, igualmente, pelo desencadeamento e impulso processual, o que de acordo com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “pode ser evidenciado, entre outras coisas a partir do fato de fixar tanto o thema probandum quanto o thema decidendum”156 [grifos no original]. Ao transformar o acusado em objeto de verificação, o juiz elimina a noção de parte enquanto sujeito processual; desestruturando o processo enquanto parte de um dos três elementos que estruturam toda a Teoria Geral do Processo Penal, ou seja: Ação, Jurisdição e Processo. A doutrina tradicional alega que no processo penal o magistrado deve buscar a “verdade material” diferentemente do que ocorre no processo civil onde existe a busca pela verdade formal. No âmbito desta questão, informa de maneira interessante a dissertação de mestrado da Professora Clara Maria Roman Borges, intitulada A competência nos crimes plurilocais e o Princípio do Juiz Natural, apresentada na UFPR, “... ao contrário do que ocorre no processo civil, em que o exercício jurisdicional se encontra limitado pela atuação das partes, no processo penal ela é exercida por um juiz que concentra em suas mãos grande poder e prescinde quase totalmente da participação das partes”157. De posse de tal poder o magistrado lança-se na busca de conseguir alcançar a “verdade material”, que seria o objetivo almejado no processo penal. Cumpre salientar que Carneluti destrói essa dicotomia dizendo que existe uma verdade só, de maneira que a verdade absoluta é impossível de ser atingida158. A intenção do processo penal foi apenas instituir um discurso para legitimar o juiz inquisidor como aquele juiz que gestiona a prova. Por isso é que nosso sistema é justificado através de um discurso no qual o juiz deve produzir a prova a pretexto de alcançar a verdade material. No entanto, no tocante a essa questão, esclarece a supracitada autora:

154) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 16-17. 155) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 23. 156) Id. 157) BORGES, Clara Maria Roman. A competência nos crimes plurilocais e o Princípio do Juiz Natural. Curitiba, 2001. 161 f. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná. p. 12. 158) CARNELUTTI, Francesco. Verdade, dúvida e certeza. Rivista di diritto processuale, Padova: Cedam, v. XX, 1965, p. 4-9. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Ademais, tal crença na possibilidade da descoberta da verdade por meio do processo acaba escamoteando que a opção por estruturar um sistema processual acusatório ou inquisitório é antes de tudo de ordem política. Isso implica em dizer que adoção de um sistema essencialmente inquisitório pelo Código de Processo Penal Brasileiro não se justifica pela fidelidade incontestável do legislador de 1941 à “verdade” – e suposta segurança que ela proporcionaria – mais por uma opção política e previsível de um governo ditatorial para quem o acusado deveria ser apenas um objeto de investigação e sua defesa em nada importava. Como se pode perceber, essa escolha teve – e tem – um preço alto a pagar, que se traduz principalmente numa jurisdição exercida sem qualquer limitação – nem mesmo das garantias constitucionais – e sob efeito de quadros mentais paranóicos.159

É no artigo 156 do Código de Processo Penal Brasileiro que se encontra o fundamento para que este assuma seu caráter inquisitório; quando claramente dispõe “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar de ofício as diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” [sem grifos no original]. Portanto, enquanto “gestor da prova” o juiz tem em suas mãos o controle sobre suas decisões, no entanto, segundo esclarece Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: ...a lógica deformada do sistema, porém não permite, porque privilegia o mecanismo “natural” do pensamento da civilização ocidental (e aí seu grande valor estratégico e, talvez, o motivo de sua manutenção até hoje), ou seja, a lógica dedutiva, que deixa o inquisidor a escolha da premissa maior, razão pela qual pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão. [grifos no original].160

Portanto, nessa conjuntura, ainda segundo o supracitado autor, “neste patamar, os fatos podem estar relegados completamente a um segundo plano (...)”161. Também no tocante à matéria referente à questão relativa ao Princípio do Juiz Natural se posiciona Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: A visão tradicional tem larga desvantagem de desconectar a matéria referente à competência do princípio do juiz natural, o que é inconcebível. Basta ver que em nome da relativização de tal princípio os nossos tribunais têm livremente alterado a competência em processos já constituídos, em flagrante violação à garantia constitucional do cidadão acusado.162

Diante de todas essas questões, à guisa de conclusão, nada mais adequado do que novamente referenciar as sábias lições do mestre Jacinto Nelson de Miranda Coutinho no tocante ao Processo Inquisitório: 159) BORGES, Clara Maria Roman. Op. cit., p.11-12. 160) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 25. 161) Id. 162) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit. p. 12.

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É assim que permanece, na essência, para nós, até hoje; e continuará prevalecendo – até porque sustenta o status quo e, portanto, serve a quem detém o poder em qualquer regime – enquanto as pessoas não se derem conta que a democracia processual só será alcançada (ou pelo menos estará mais próxima), quando ele for superado, avançando em direção da efetivação plena do contraditório, em um processo de partes que cubra toda a persecução penal ... [grifos no original]163

Diante do exposto, restou demonstrada a nítida influência do Princípio Inquisitivo no Processo Penal Brasileiro, o qual apesar de reconhecido pela doutrina tradicional enquanto um sistema processual Misto/Acusatório, ao possibilitar ao juiz uma série de atos que competiriam às partes, é notadamente informado pelo Princípio Inquisitivo. Neste contexto, interessante se faz explicitar o entendimento de Aury Lopes Júnior: A gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz conduz a figura do juiz ator (e não espectador), núcleo do sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por derradeiro, a imparcialidade – princípio supremo do processo.164

Diante de todas as observações levadas ao encontro do leitor através da presente pesquisa, tem-se que os poderes instrutórios exercidos pelo magistrado no processo acabam por comprometer sua imparcialidade. Nesse sentido reforça o supracitado autor: A imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor (poderes investigatórios) ou quando lhe atribuímos poderes de gestão/iniciativa probatória. É um contraste que se estabelece entre a posição totalmente ativa e atuante do instrutor, contrastando com a inércia que caracteriza o julgador. Um é sinônimo de atividade e outro de inércia.165

Tendo por base os elementos do Código de Processo Penal Brasileiro, passase agora a elencar vários artigos do referido diploma legal que conferem ao juiz poderes instrutórios/investigatórios, além do artigo 156 citado anteriormente166: Art. 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do ministério público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial. Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará as partes se restou algum fato para ser esclarecido. Formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante.

163) Id. 164) LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p. 89. 165) Id. 166) Id. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Art. 127. O juiz, de ofício, a requerimento do ministério público ou do ofendido, ou mediante representação da autoridade policial, poderá ordenar o seqüestro em qualquer fase do processo ou ainda antes de oferecida a denúncia ou a queixa. Art. 242. A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes. Art. 384. ‘Invocar o MP, no caso de mutatio libelli para que providencie o aditamento (para ele poder condenar, é óbvio...)’ [grifos no original].167.

Nesse sentido, ainda segundo o autor Aury Lopes Júnior, conclui-se que: ...devemos ainda recordar o interrogatório previsto no CPP, que, sobre o manto de “ato pessoal do juiz”, configura uma verdadeira inquisição, e a forma como são tomados os depoimentos das testemunhas no processo penal brasileiro: primeiro o juiz faz a inquisição completa, para somente depois deixar o que “sobrou” para as partes.168

Em face de tudo quanto exposto, ficou claro que o processo penal brasileiro ao possibilitar a gestão da prova ao magistrado, recebeu nítidas influências do princípio informador do sistema inquisitório, qual seja, o princípio inquisitivo. E, ao atuar nos ditames processuais existentes, o magistrado afirma que, realmente, tal princípio influencia grande parte dos procedimentos processuais e configura todo o sistema processual penal brasileiro nas bases de um sistema fortemente influenciado pelo princípio inquisitvo.

CONCLUSÕES Devido a várias razões conclui-se que, de fato, o Processo Penal Brasileiro apresenta grande influência do Princípio Inquisitivo. Conforme exposto anteriormente, com base na investigação histórica realizada, desde o período denominado colonial até a Promulgação da Constituição da República de 1988, apesar de ter havido diferentes legislações, no Brasil sempre se adotou um sistema processual penal com feição inquisitória. Desde sua colonização, passando pelo processo de independência, proclamação da República, Era Vargas, Governos Populistas, Golpe Militar e, finalmente, o período da chamada Abertura Política, o processo histórico brasileiro sempre denotou que interesses políticos e econômicos fundamentaram as tomadas de decisões nos mais diversos campos, entre eles, a questão legislativa em seu aspecto penal. Por isso, uma visão crítica quanto aos institutos processuais vigentes permitem uma conscientização por parte daqueles que operam o Direito. Nesse sentido, é importante salientar que acerca do papel desempenhado pelo juiz na gestão da prova, é de fundamental importância a posição doutrinária assumida pelo autor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, como em seu artigo

167) Id. 168) Id.

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intitulado: “O papel do novo juiz no processo penal”, no livro Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Seu trabalho representa alicerce importante enquanto fundamentação doutrinária no sentido de se assumir uma visão crítica referente à atuação do magistrado no processo penal. No tocante a essa questão, o referido autor faz menção de forma bem acentuada ao expor que: A visão tradicional não dá conta, coerentemente, da explicação do papel do juiz, o que pode ser constatado a partir da falta de referenciais semânticos adequados ao conceito que oferta. Órgão estatal desinteressado, imparcialidade, neutralidade e outros elementos formam um pano de fundo que só faz surgir uma irreal versão ao seu efetivo papel. Desde logo, no entanto, é preciso que fique claro que não há imparcialidade, neutralidade e, de conseqüência, perfeição na figura do juiz, que é um homem normal e, como todos os outros, sujeito à história de sua sociedade, e à sua própria história.169

Com efeito, apesar das garantias estabelecidas na Constituição de 1988, o sistema processual penal brasileiro apresenta nítidas influências do princípio inquisitivo. Antes de tudo, deve-se ter em mente que o Sistema Inquisitório e seu princípio unificador; o inquisitivo; denotam a atuação de um juiz inquisidor, ou seja, que detém em suas mãos o poder de investigar e ao mesmo tempo de julgar. Desta forma, sua imparcialidade fica altamente comprometida, diferentemente daquilo que se espera, uma vez que sua posição na relação processual seria “de órgão super-partes. Entretanto, deve-se levar em conta que tal situação não significa que ele está acima das partes, mas que está para além dos interesses delas”170. O fato da gestão da prova encontrar-se nas mãos do magistrado, em muitas passagens do CPP, as quais foram examinadas no capítulo 3 desta pesquisa, deixa claro que tal iniciativa probatória é característica fundamental da influência do princípio inquisitivo. Resta, portanto, para fins de conclusão verificar que, apesar de ter havido diferentes legislações, no Brasil sempre se adotou um Sistema Processual Penal com feição Inquisitória. Portanto, necessário se faz a conscientização por parte de todos os operadores do direito no sentido de se buscar evoluir para que, de fato, o processo penal encontre seu verdadeiro sentido de justiça.

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169) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p.15. 170) Ibid., p. 11. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Os poderes das organizações internacionais

Fernanda Sabah Gomes Soares Advogada; Especialista em Filosofia e Teoria Geral do Direito na ABDCons; Doutoranda em Direito Internacional na Universidad de Leon-España

1 INTRODUÇÃO A história recente revela que a análise das organizações internacionais é extremamente necessária para que se possa compreender a atual conjuntura internacional. É inegável que tais entidades exerçam uma forte influência tanto no âmbito interno, quanto no âmbito externo dos Estados. Para que se entenda o motivo da referida influência, perfaz-se indispensável a verificação de quais são os seus poderes e a partir de que momento os organismos internacionais, de fato, começaram a exercê-los na esfera mundial. Com base nesse contexto, o presente trabalho procura esclarecer quando, como e o porquê da criação dos organismos internacionais; quais são as suas competências; de que maneira é realizada a sua classificação; como são desenvolvidas as suas relações de poder; e quais são os poderes e as finalidades de algumas organizações, como o FMI, o Banco Mundial, o BID, a OCDE, a ONU e a Organização Comunitária. Enfim, essa pesquisa, de modo geral, evidencia aspectos das organizações internacionais, com o intuito de entender como e quando inicia-se o desenvolvimento de suas relações de poder em um panorama internacional cada vez mais globalizado.

2 A CRIAÇÃO DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS É indiscutível que o mundo é uma sociedade de Estados, na qual, ainda, não há uma interligação jurídica dos fatores políticos. Para se reconhecer um Estado, como pessoa jurídica de direito público, é essencial a comprovação de RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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sua soberania, assim, a referida sociedade política deve demonstrar as suas condições de assegurar o máximo de eficácia para a sua ordenação em um determinado território e que isso ocorra permanentemente. O que diferencia o Estado das demais pessoas jurídicas de direito internacional público é que só ele tem soberania. Logo, no âmbito interno a instituição estatal é uma afirmação de poder superior a todos os demais, já no externo é uma afirmação de independência. Realça-se que, de fato, é relativo o conceito de soberania no plano internacional e a sua regulação jurídica é aparente, pois os Estados mais fortes modificam o direito quando lhes convém. Mesmo assim, o reconhecimento jurídico da soberania ainda é importante, uma vez que a sua conseqüência qualifica como ilegítimo o uso arbitrário da força. A partir do século XIX, alguns Estados se convenceram de que, em razão da natureza dos interesses comuns que começavam a surgir, seria mais prática a constituição de órgãos internacionais permanentes, ao invés de se reunirem em conferências diplomáticas de maneira pontual e descontínua, como haviam feito até então. Diante desse novo panorama, surgiram as primeiras organizações internacionais, as quais tratavam das questões técnicas. Em 1815, foi criada uma comissão fluvial internacional para tratar da administração conjunta da navegação no Reno e, em 1856, criou-se a comissão do Danúbio. Na segunda metade do século XIX, em torno das questões administrativas, foram criados instrumentos de cooperação, tais como: a União Telegráfica (1865), a União Postal Universal (1874), a União para a Proteção da Propriedade Intelectual (1883) e a União das Ferrovias (1890).1 Nos anos de 1899 e 1907, as duas primeiras Conferências de Haia foram responsáveis pelo encontro entre as experiências multilaterais européias e americanas que tentaram, de forma inédita, estabelecer princípios jurídicos comuns para a organização internacional. Em 1900, em face das condições de trabalho e de vida dos operários das manufaturas, uma conferência diplomática, realizada em Paris, criou a Associação Internacional para a Proteção legal dos Trabalhadores (AIPLT). No início do século XX, as disputas entre as grandes potências provocaram a Primeira Guerra Mundial. Terminada a Guerra, surgiu a primeira tentativa para a constituição de uma organização mundial de Estados, que protegesse todos os entes estatais, opondo barreiras aos mais fortes. Essa tentativa fracassou e, posteriormente, ocorreu a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, com a aproximação dos Estados em decorrência da Guerra e devido ao temor, sob a estrutura do Estado de Bem-Estar Social2, multiplicaram1) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 31-35. 2) O Estado de Bem-Estar Social, segundo Jorge Reis Novaes, surge com a proposta de administrar e intervir na sociedade, prestando-lhe serviços, com o objetivo final de minorar a sua situação de miséria, assegurando-lhe um mínimo de susbsistência vital. (In: NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e Democrático de Direito. Coimbra: Suplemento ao Boletim da

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se as organizações internacionais, dotadas de personalidade jurídica de direito das gentes, de aptidão para manifestar uma vontade distinta daquela de seus Estados-membros e que afirmavam a ilegitimidade da submissão de um povo a outro, culminando em um grande surto de novos Estados e de forças que se preocupavam com o equilíbrio mundial.3 A maior causa da inter-relação estatal se deu pelo fato de um Estado não poder mais defender uma política econômica isolacionista, já que a sua prosperidade econômica passou a estar em função dos demais Estados, sendo preciso a derrubada das barreiras aduaneiras levantadas pela política protecionista. Dessa forma, o motivo principal do surgimento das organizações internacionais foi a necessidade da manutenção da paz na comunidade internacional, evitando-se que os possíveis litígios entre dois ou mais Estados fossem solucionados por meio da força. Para se evitarem métodos violentos foram apresentados, inclusive, modos de soluções pacíficas (medidas diplomáticas, coercitivas e jurídicas).4 É verdade que o ingresso de qualquer Estado em uma organização internacional é um ato voluntário que a entidade estatal realiza quando o deseja, pois é imprescindível que no momento em que se proponha ao acordo renuncie a alguns de seus direitos em favor da organização, mas também é verdade que todos sentem a necessidade e mesmo a imperiosidade desse ingresso. Indubitavelmente, as entidades internacionais tendem ao concerto das civilizações e a sua existência e funcionamento são as provas mais concretas da própria existência do Direito Internacional. Ricardo Antônio Silva Seitenfus5 define as organizações internacionais como sendo uma sociedade entre Estados que se constitui por meio de um Tratado, cuja finalidade é o estabelecimento de interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus membros. É essencial destacar que os tratados cons-

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, p. 188-192). Conforme as observações de León Duguit, o Estado não poderia permanecer passivo diante dos problemas sociais. Para isso, seria preciso o crescimento do papel da instituição estatal, legitimando a sua intervenção na economia como fator de realização da igualdade e da solidariedade social, ao mesmo tempo em que seria garantida a liberdade da sociedade. (In: DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitucionnel. T.I. 3. ed. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie, 1923, p. 640). Para Juan Ramón Capella, isso foi possível devido ao compromisso firmado entre as classes sociais, em relação à base do crescimento econômico. Ou seja, de certa forma, as classes dominantes aceitaram a redistribuição do produto social por intermédio do Estado, o qual se comprometeu em instrumentalizar e aplicar políticas de redistribuição das rendas em favor de políticas fiscais coerentes com esse propósito, com o fim de se atingir uma paz social. (In: CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 92-93). Além disso, como destaca José Fernando de Castro Farias, o advento da Segunda Guerra Mundial iria estimular ainda mais o intervencionismo do Estado, pois novas necessidades precisavam ser suprimidas pela iniciativa estatal em relação a vários setores, o que fez com que essa entidade assumisse amplamente o encargo de assegurar a prestação dos serviços fundamentais a todos os indivíduos, ampliando ainda mais a sua esfera de ação. (In: FARIAS, José Fernando de Castro. A Teoria do Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999. p. 71-76). 3) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 263-274. 4) ARAUJO, Luis Ivani de Amorim. Das organizações Internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 03-13. 5) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 21. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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titutivos de uma organização internacional têm como objetivo a determinação de direitos e de obrigações entre os Estados-membros ou entre esses com as organizações internacionais. Por essa razão, os Estados mais débeis ingressam nas organizações em busca de legitimação e segurança. Ademais, as organizações introduzem o chamado multilateralismo que é a cooperação internacional de dois ou mais Estados com o intuito de atingir fins comuns e criam normas que os Estados soberanos obrigam-se a respeitar, para que possam integrá-las. Isso acontece porque os entes estatais, ao manterem suas prerrogativas tradicionais de exercício de poder, concordaram em criar mecanismos multilaterais dotados de instrumentos capazes de atuarem nos mais diversos campos, inclusive de forma preventiva, como, por exemplo, quando se trata da manutenção da paz e da segurança internacionais. No entanto, as funções das organizações internacionais são percebidas distintamente por cada Estado membro. Na prática, os Estados se integram em uma ordem jurídica, mas não existe nenhum órgão superior de poder a que todos se submetam. Devido a essa ausência é que, nos últimos tempos, têm sido criadas muitas organizações internacionais dotadas de um órgão de poder, modificando os termos de relacionamento entre as instituições estatais.

3 A CLASSIFICAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Ricardo Antônio Silva Seitenfus6 relata que, após a Segunda Guerra Mundial, identifica-se a seguinte classificação das organizações internacionais: pela natureza de seus propósitos, atividades e resultados; pelo tipo de funções que a elas se atribuem; pelos poderes ou estrutura decisória que elas dispõem; pela sua composição. A primeira classificação se estrutura, basicamente, em organizações internacionais de objetivos políticos ou em organizações que objetivam a cooperação técnica. Aquelas enfrentam questões essencialmente conflitivas com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais, já essas trabalham com assuntos vinculados à cooperação funcional, buscando a aproximação de posições e a tomada de iniciativas conjuntas em áreas específicas7. As organizações internacionais de natureza política podem pretender agregar todos os Estados do mundo (como a Organização das Nações Unidas – ONU) ou somente alguns deles (como a Organização dos Estados Americanos – OEA)8. Seu traço fundamental é o caráter político-diplomático de suas atividades, pois essas influenciam sobre questões vitais dos Estados-membros, tais como: a sua soberania e a sua independência nacional. Desse modo, para o Estado integrar-se à organização, terá, obrigatoriamente, que observar certas normas de convívio internacional, que tendem a impedir a tomada de decisões militares externas 6) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 35. 7) Ibid., p. 35-42. 8) Id.

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ou mesmo de algumas decisões internas que venham a ferir os compromissos assumidos, sem a anuência prévia da organização internacional, sob pena do referido organismo agir de forma que o Estado-membro repare os seus atos lesivos. Em contrapartida, as organizações de cooperação técnica são delineadas pela natureza dos problemas que só podem ser enfrentados com a ação do coletivo internacional. Trata-se, por exemplo, do combate às epidemias (Organização Mundial da Saúde – OMS) ou a busca de melhoria da produtividade agrícola (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO). A outra classificação se estrutura nas funções das organizações internacionais que podem se estruturar: para aproximar posições dos Estados-membros, para que a tomada de decisões seja compatível com os interesses de todos (como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE); para adotar normas comuns de comportamento de seus membros (ocorre nas áreas de direitos humanos, da saúde pública internacional, dentre outras); para solucionar crises nacionais ou internacionais provindas de catástrofes naturais, conflitos internacionais, guerras civis através de ações operacionais; para prestar serviços aos Estados-membros, principalmente, no campo da cooperação financeira e do desenvolvimento (como o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – Banco Mundial)9. A terceira classificação se fundamenta na forma de tomada de decisões, para isso é necessário distinguir como o poder decisional é repartido entre os membros10. As regras do processo de tomada de decisões dividem-se entre aquelas que impõem a unanimidade para que um organismo tome uma decisão, a qual dificilmente será alcançada devido à diversidade entre os parceiros e a disparidade das suas expectativas e atuações, e as que estabelecem diferentes tipos de maioria para definir o resultado das votações, como a maioria quantitativa (considera-se cada Estado como um voto), a maioria qualitativa (a organização diferencia os membros segundo critérios próprios, atribuindo a cada Estado-membro um determinado coeficiente a ser computado após a sua votação) e o sistema misto (exige a dupla maioria, quantitativa e qualitativa). Assim como a observação das regras, a publicização dos debates é um procedimento de suma importância para a tomada de decisões, pois além de conceder transparência e respeito às posições diferenciadas, permite que o próprio processo decisório sofra a influência que a opinião pública nacional exerce sobre seus delegados, bem como revela a possibilidade de afirmar-se uma opinião pública internacional. Também cabe elucidar o papel dos órgãos permanentes das organizações internacionais, em particular do Secretariado que, de acordo com cada organismo, pode ser dotado de um substancial poder para direcionar a tomada de decisões e controlar a sua aplicação. Um exemplo é o Secretariado-Geral da ONU, porque possui o direito de iniciativa de reunir o Conselho de Segurança. Entre9) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 35-42. 10) Id. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tanto, seu poder depende do perfil da organização. Através de tal prerrogativa, pode-se esboçar a autonomia da entidade, porque esse órgão permanente atua em nome da organização. A última classificação refere-se à composição da entidade internacional que pode ser: regional (a organização se estrutura pela proximidade geográfica dos seus Estados-membros, como a Associação das nações do Sudeste Asiático – ASEAN -, ou pelos interesses e objetivos comuns dos seus membros como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP); universal (não é feita qualquer discriminação para o ingresso dos Estados, dividindo-se em organizações com objetivos amplos, como a Organização das Nações Unidas – ONU -, ou com fins específicos, como a Organização Internacional dos Trabalhadores – OIT)11. Dalmo de Abreu Dallari12, distintamente, classifica as organizações internacionais somente em: organizações para fins específicos (podem agrupar Estados de uma região ou de todas as regiões do mundo, apresentando, sempre, como característica um objetivo limitado a determinado assunto); organizações regionais de fins amplos (sua característica principal é a circunstância de só agrupar Estados de determinadas regiões, tendo competência para conhecer de todos os assuntos que podem interessar aos Estados a ela pertencentes, em favor da convivência harmoniosa e do progresso uniforme daqueles); organizações de vocação universal (pretendem reunir todos os Estados do mundo e tratar de todos os assuntos que pode interessá-los). Celso D. de Albuquerque Mello13 acredita que as organizações internacionais podem ser classificadas de acordo com vários critérios. Quanto as suas finalidades, elas podem ter finalidades gerais (predominantemente políticas) ou especiais (podem ser políticas, econômicas, militares, científicas, sociais e técnicas).14 Quanto a seu âmbito territorial, elas podem ser parauniversais (não possuem qualquer limitação geográfica para que um Estado venha a ser seu membro), regionais (o tratado institutivo determina o seu campo de atuação), quase-regionais.15 Quanto à natureza dos poderes exercidos, elas podem ser intergovernamentais (os órgãos são constituídos por representantes das instituições estatais e os Estados executam as decisões dos órgãos) ou supranacionais (os titulares dos órgãos atuam em nome próprio, não como representantes dos Estados, e as decisões são diretamente aplicadas no interior dos Estados membros).16 Quanto aos poderes recebidos, elas podem ser de cooperação (procuram coordenar as atividades dos membros) ou de integração (efetiva comunicação 11) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 35-42. 12) DALLARI, Dalmo de Abreu, op. cit., p. 263-274. 13) MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 583-609. 14) Id. 15) Id. 16) Id.

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entre os Estados de uma região, o que desenvolve o sentido de comunidade entre eles, com o intuito de manterem a paz, de aumentarem suas potencialidades, de realizarem determinados objetivos, de possuírem nova imagem e identidade).17 O que se conclui é que independentemente da classificação aplicada, é certo que cada organização possui estrutura e objetivos próprios. Logo, é imprescindível que cada uma delas seja dotada de poderes para alcançar seus fins.

4 AS COMPETÊNCIAS DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS A materialização jurídica de uma organização está condicionada à conclusão, à assinatura, à ratificação e à entrada em vigor de seu tratado constitutivo. O Estado para fazer parte da entidade internacional, deverá aceitar o seu tratado constitutivo a partir do processo de ratificação. Com o término desse processo e com a sua adesão ao organismo, o ente estatal não poderá mais concluir nenhum outro tratado que viole os preceitos estipulados no tratado institutivo da organização internacional da qual ele passou a fazer parte. O tratado constitutivo adquire o caráter de uma norma constitucional da organização, sendo que as demais normas a ela se subordinarão. As características do referido tratado são: o seu prazo de duração indeterminado; a sua execução realizada por vários atos; a sua interpretação feita pela própria organização; a sua primazia sobre os outros tratados; no silêncio do tratado, os Estados não podem denunciá-lo. Na concepção de Celso D. de Albuquerque Mello18, realmente, o Estado-membro não pode se retirar de uma organização, quando o seu tratado constitutivo não prevê o direito de retirada, já que o Estado limitara espontaneamente a sua vontade quando se aderiu ao organismo. Todavia, verificase, na prática, que a instituição estatal retira-se da organização quando quiser, porque ela não tem meios de obrigá-lo em sentido contrário. Enfim, o tratado constitutivo das entidades internacionais se apresenta como instrumento delineador de seus direitos e obrigações, além de outorgar suas competências. De modo geral, são atribuídas às organizações as seguintes competências: normativa, operacional, impositiva e de controle. A competência normativa das organizações internacionais pode ser dirigida ao exterior ou ao interior da própria entidade, objetivando a melhoria de seu funcionamento. A competência normativa dirigida ao exterior manifesta-se por meio das convenções (tratados firmados pelos Estados, membros ou não, ou com as outras organizações internacionais); das conferências diplomáticas que se realizam após a convocação dos Estados-membros pelo organismo; das convenções a serem aplicadas pelos Estados-membros, servindo, a organização, como guarda material e gestora dos tratados (como no caso do Conselho da Europa) e das recomendações (dirigem-se aos Estados-membros sob a forma de simples proposta, mas 17) Id. 18) MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 583-609. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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caso os Estados-membros não as acatem, deverão justificar as suas razões). As organizações que desempenham o papel de coordenação, em questões essencialmente técnicas do convívio internacional, possuem outra forma de exercício da competência normativa, a capacidade de editar regulamentos, destinados aos Estados-membros com o objetivo de uniformizar as condutas perante situações comuns. Um exemplo dessa competência normativa encontra-se na Organização Mundial da Saúde, a qual é responsável por editar regulamentos sanitários.19 Em relação à competência de controle, essa pode ser detectada com base tanto no tratado constitutivo quanto em convenções paralelas. A iniciativa do processo de controle por parte de uma organização contra um Estado que não cumpre suas obrigações, pode ser feita de três formas: um Estado pode acusar o suposto infrator; a própria organização pode fazê-lo por meio do seu direito de iniciativa, conforme relatório dos Estados, ou informações oriundas de órgãos privados ou através de inspeções regulares realizadas por funcionários internacionais ou agentes mandados pela organização; a iniciativa também pode partir do controle de pessoas ou de grupos. O controle pode exercer-se de maneira total em um território delimitado ou pode restringir-se à aplicação das normas originárias ou derivadas. Os seus efeitos dependerão, na maioria das vezes, de sua publicização como forma de pressão da opinião pública frente ao Estado, supostamente, infrator. É preciso elucidar que a criação da Organização Mundial do Comércio – OMC indica, em outro patamar, o controle das organizações internacionais sobre os compromissos dos Estados-membros, objetivando demonstrar as controvérsias comerciais entre os parceiros e permitindo-lhes a tomada de represálias, sob a proteção da Organização Internacional do Comércio, caso o Estado se considere lesado. Outra competência da organização internacional é a operacional que se desenvolve de maneira permanente ou pontual, junto a setores específicos e problemas concretos dos Estados-membros. A operação permanente, geralmente, se desenrola nos países em desenvolvimento através da ajuda à gestão técnica, econômica e social. Já a operação pontual auxilia na resolução de problemas circunstanciais, tais como catástrofes naturais, epidemias ou conflitos militares que afetem profundamente a população civil. Frisa-se que a organização dessas operações dependerá dos poderes, das competências e dos meios materiais que as entidades internacionais dispõem. Quanto à competência impositiva, essa se refere à possibilidade da organização internacional de impor suas decisões externamente, conforme o seu tratado constitutivo e sua natureza. A competência impositiva é natural quando se trata de organizações internacionais comunitárias ou de subordinação, como no caso das diretrizes da União Européia. Nas organizações de concertação, a imposição é uma exceção que dependerá de circunstâncias específicas e de interpretações dos direitos das entidades internacionais e dos compromissos assumidos pelos Estados-membros. 19) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 51-85.

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Cabe enfatizar que a competência impositiva só poderá ser exercida contra os Estados mais débeis, inclusive, em se tratando da Organização das Nações Unidas, mas, por exemplo, não poderá ser aplicada aos membros permanentes do Conselho de Segurança. As decisões impositivas das organizações internacionais podem ser aplicadas, exclusivamente, para a manutenção da paz e da segurança internacionais. No entanto, as entidades internacionais capazes de assumi-las são somente as que mencionam, em seu tratado constitutivo, que tal objetivo esteve na origem de sua criação. O problema é que a imposição de uma decisão do coletivo internacional ao ente estatal que decide não acatá-la constitui ato violento que pode ser interpretado como uma ingerência indevida nos assuntos internos desse Estado. Definese a ingerência pelo seu caráter impositivo ou coercitivo, em que um organismo internacional ou um país impõe a um Estado determinada conduta ou situação que ele não desejaria por si, atacando a sua soberania. Uma importante maneira de intervir nos assuntos internos das instituições estatais é representada pela concessão de empréstimos de entidades internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, na medida em que os tomadores dos empréstimos adotem medidas internas impostas por referidas instituições. Assim, a negociação das dívidas externas de muitos Estados, o processo de privatização e o gerenciamento da máquina pública, o papel da instituição estatal, são assuntos que, ao vincularem-se com estratégias externas, fogem do domínio do Estado. Também é possível a identificação da competência impositiva da Organização das Nações Unidas, ao se analisarem os acontecimentos históricos, como a tomada de sanções econômicas em relação ao Iraque, desde 1990, e ao Haiti, a partir de 1993, em que ocorreu uma ruptura das relações diplomáticas e comerciais até um bloqueio, resultante na ruptura de todas as relações econômicas desses países com o resto do mundo; como a tomada de medidas coercitivas de caráter militar, representadas pela intervenção na Somália ou pela autorização concedida pela ONU à OTAN para intervir no conflito da ex-Iuguslávia; como a intervenção em um conflito interno de um Estado membro, por exemplo, quando a ONU interviu contra a Unita em Angola, no ano de 1993, dispondo-se a colocar um fim na situação de instabilidade política ou de guerra civil. A justificativa da ONU para essas ingerências se fundamenta na prerrogativa da manutenção da paz, mas, para isso, a entidade em questão envia forças de interposição e intervém nos assuntos internos do Estado com o objetivo de auxiliá-lo a exercer suas competências.

5 O DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE PODER DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Reinhold Zippelius20 enaltece que a multiplicação das organizações internaci20) ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. München: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 519.

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onais foi resultado da intensificação das relações e interdependências econômicas em nível mundial, da enorme aceleração dos transportes internacionais e da troca de informações de natureza econômica, militar, técnica, científica, dentre outras. Acabada a Segunda Grande Guerra, foram desenvolvidos sistemas intercontinentais de armamento suficientemente potente para aniquilar grande parte da humanidade, surgindo, como conseqüência, sistemas defensivos, como espécies de organizações internacionais, de grande alcance militar.21 Ricardo Antônio Silva Seintefus22 afirma que as organizações internacionais desfrutariam de limitada ou escassa autonomia. Por isso, se para os Estados débeis as organizações internacionais tendem a representar uma garantia de independência política e uma forma de buscar o desenvolvimento econômico, para os países poderosos elas significam, na maioria das vezes, tão-somente um terreno suplementar, no qual atua seu poder nacional. Para esse autor23, como decorrência desta situação, o meio internacional no qual a ação e o discurso das organizações internacionais se manifestam, indicam que a sua ideologia estaria intimamente vinculada à dos Estados-membros. A partir disso, a trajetória ideológica das organizações internacionais repousaria em cinco momentos distintos após o ano de 1945: o funcionalismo (baseada no princípio de que as organizações internacionais deveriam servir os interesses da sociedade, descartando a preponderância da influência dos Estados); o desenvolvimentismo (em plena oposição leste/oeste, as organizações precisariam atuar mais incisivamente na manutenção da paz e da segurança); o transnacionalismo (a incapacidade dos países pobres em dispor de divisas, inviabilizando, portanto, as importações de bens de capital, induziria a oferecer condições para a instalação em solo pátrio de filiais de empresas estrangeiras, assim, as organizações presumiriam que essas empresas seriam os elementos dinâmicos do processo de desenvolvimento); o globalismo (identificaria a escassez de matéria-prima no planeta e os efeitos perversos, do ponto de vista ecológico, da busca incessante pelo crescimento econômico); a globalização (em razão de suas características, a globalização enfraqueceria o papel do Estado e das organizações em benefício das transnacionais privadas). Logo, tanto o surgimento das organizações quanto a sua evolução, representariam o resultado de um processo de relações de forças, sem, contudo, colocar em risco o poder exercido pelos Estados mais fortes. Nesse sentido, as organizações internacionais formalizariam e institucionalizariam uma espécie de hegemonia consensual. Sem dúvida nenhuma, a organização internacional, de acordo com os seus interesses, trata distintamente um Estado membro do outro, conforme a sua relevância internacional e o seu poder de imposição. Porém, é inegável a autonomia e o poder que as organizações internacionais possuem em relação aos seus Estados-membros. 21) Ibid., p. 519-533. 22) SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva, op. cit., p. 43-49. 23) Id.

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Acertadamente e sob outro viés, Reinhold Zippelius24 defende que as crescentes interdependências e interligações organizatórias entre os Estados contribuíram não só para facilitar a cooperação nos domínios das políticas externa, econômica e de segurança, como também para reforçar e equilibrar os controles internacionais e as relações de poder. Por meio dessa defesa, constata-se que as organizações internacionais, ideologicamente, foram criadas para harmonizar as relações entre os Estados, porém, sua atuação real é politicamente desenvolver relações de poder. Isso ocorre porque, mediante as tradicionais obrigações, derivadas de tratados de direito internacional, não era possível satisfazer ao enorme volume de tarefas de ordenamento e harmonização supranacionais, sendo indispensável à formulação de instituições que defendesse os interesses comuns, coordenasse os interesses divergentes e harmonizasse os interesses antagônicos cuja envergadura ultrapassava os Estados singulares. O renomado internacionalista Celso D. de Albuquerque Mello25 enfatiza que a proliferação das organizações internacionais aconteceu quando os Estados se encontravam debilitados, tanto por razões estruturais como por razões políticas, que os impossibilitavam na concretização de seus objetivos, por isso permitiram que as entidades internacionais os auxiliassem. Para ele26, as organizações internacionais, como uma espécie de superestrutura da sociedade internacional, constituem um reflexo das relações internacionais, entretanto, uma vez constituídas, elas passam a influenciar o meio social que lhes deu origem. Por isso, esse autor elenca uma série de funções e potencialidades das entidades internacionais, tais como: exercem influência nas decisões do Estado; desenvolvem meios para controlar conflitos; atuam contra o nacionalismo ao defenderem o internacionalismo; representam um canal de comunicação entre os Estados; constituem um mecanismo para a tomada de decisões; protegem os direitos humanos; garantem a segurança dos Estados; legitimam determinadas situações, bem como asseguram que as suas transformações sejam pacíficas e contribuam, de diversas maneiras, para a formação de normas internacionais. O célebre autor António Manuel Hespanha27 acredita que a criação de instâncias supra-estaduais de regulação, a um nível superior ao dos Estados, aconteceu para que esses organismos pudessem condicionar, decisivamente, as políticas estaduais. Assim, com esses enormes poderes em suas mãos, as organizações internacionais respondem à necessidade de especificação, promoção e concretização das finalidades comunitárias, ao mesmo tempo que equilibra os interesses federativos. Inclusive, a prática de negociar e regular, casuisticamente, questões individuais entre os Estados interessados foi abandonada, vez que as organizações 24) ZIPPELIUS, Reinhold, op. cit., p. 525-533. 25) MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 583. 26) Ibid., pp. 583-609. 27) HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Portugal: Tito Lyon de Castro, 2003. p. 35-40. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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internacionais passaram a ser as instituições responsáveis pelo planejamento e pela regulação dessa matéria, devendo realizar uma coordenação multilateral dos interesses de todos os Estados envolvidos.28 Como, para a consecução das finalidades fundamentais de uma organização internacional, exige-se a utilização de meios imprescindíveis, é necessário que essa entidade seja dotada de personalidade jurídica. Por causa dessa personalidade, as organizações internacionais possuem direitos e deveres que devem depender dos seus objetivos e funções, enunciados ou implícitos em seu ato constitutivo e desenvolvidos na prática. Os critérios essenciais de aferição da personalidade jurídica pelas organizações internacionais devem ser: a associação permanente de Estados, dotada de órgãos próprios e que pratica fins lícitos; a distinção, em termos de poderes e fins jurídicos, entre a organização e os seus Estados-membros; a existência de poderes jurídicos que possam ser exercidos no plano internacional, e não unicamente no âmbito dos sistemas nacionais de um ou mais Estados.29 Paul Reuter30 insiste em afirmar que a personalidade jurídica de direito das gentes não é a fonte da competência da organização, mas seu resultado. Se os Estados-membros projetam a organização internacional, conferindo-lhes prerrogativas próprias e autonomia em relação a cada Estado-membro, por óbvio, há a personalização desse ente internacional. Logo, o elemento mais indicativo e expressivo da personalidade jurídica de uma organização é a sua competência para celebrar tratados em seu próprio nome. No entanto, uma organização pode existir, mas não possuir os órgãos e objetivos necessários para ter personalidade jurídica. Entidades conjuntas de Estados podem ter competências restritas e independência limitada, não possuindo personalidade jurídica, como é o caso das agências e órgãos subsidiários das organizações, tais como: a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, o Alto Comissário para os Refugiados e o Departamento de Assistência Técnica em relação às Nações Unidas. Contudo, a maior parte das organizações são sujeitos de direito internacional, possuem a capacidade de serem titulares de direitos e deveres internacionais e possuem a prerrogativa de fazerem valer os seus direitos através de reclamações internacionais. Esses direitos que lhe são reconhecidos, muito embora não sejam estipulados ou homologados nos textos de suas regulamentações, são competências e obrigações que constam, de maneira implícita, no texto de seus estatutos, logo, não são taxativos, mas, sim, decorrência das atribuições que lhes são inerentes. As organizações internacionais têm poderes similares aos do Estado, fazendo com que a soberania deste seja diminuída. Os poderes das entidades in28) HESPANHA, António Manuel, op. cit., p. 35-40. 29) BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. Oxford: Oxford University Press, 1990. p. 707-733. 30) REUTER, Paul. Droit International Public. Paris: PUF, 1973, p. 126-127.

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ternacionais são: o poder de concluir os tratados (o instrumento constituinte não confere, normalmente, a faculdade geral de concluir tratados, mas tal faculdade pode ser estabelecida pela interpretação do instrumento como um todo e pelo recurso aos poderes implícitos31); o poder de possuir privilégios e imunidades (para funcionarem com eficácia, as organizações exigem um mínimo de liberdade e segurança jurídica para os seus bens, suas sedes, seus funcionários, para os representantes dos Estados-membros acreditados junto das referidas organizações); o poder de patrocinar reclamações internacionais (que dependerá da existência de personalidade jurídica e da interpretação do seu instrumento constituinte, à luz dos fins e funções da organização); o poder de proteção funcional dos agentes e dos seus familiares (ainda é uma questão polêmica, sobretudo, em relação à determinação das prioridades entre o direito de proteção diplomática do Estado e o direito de proteção funcional da organização); o poder de missão (o instrumento constituinte de uma organização pode permitir expressa ou tacitamente o envio de representantes oficiais para os Estados e para outras organizações), dentre outros poderes.32 É importante ressaltar que a independência em termos jurídicos, a personalidade jurídica própria e a subjetividade própria de direito internacional público, permitem às organizações executarem o direito internacional com justiça, assumindo, inclusive, funções de arbitragem para resolverem imparcialmente as discordâncias entre os Estados. Aliás, a autonomia jurídica das organizações implica o fato de possuírem uma ordem jurídica própria, ou seja, o seu próprio direito comunitário interno. O direito interno das organizações internacionais provém da manifestação de vontade da própria entidade, representada por um estatuto que regulamenta o funcionamento dos seus órgãos, as suas relações com os Estados-membros e as suas relações com seus funcionários. O referido estatuto é originário, independente, autônomo e válido, conforme o parecer da Corte Internacional de Justiça.33 Através de sua autonomia jurídica, as organizações internacionais têm o direito de exigir dos Estados-membros o cumprimento das obrigações resultantes da relação comunitária, todavia, deve respeitar o domínio reservado da jurisdição interna de cada Estado.34 A regra geral é a de que só as partes de um tratado estejam vinculadas pelas obrigações que nele contêm. Uma exceção a essa regra aparece na Carta das Nações Unidas, a qual define que a organização assegurará, inclusive, que os 31) O Tribunal Internacional de Justiça acredita na possibilidade de aplicação da doutrina dos poderes implícitos, argumentando que os direitos e os deveres de uma organização devem depender do seu fim e funções, tal como se encontram especificados ou implícitos nos textos constitutivos e desenvolvidos na prática. Assim, nos termos do Direito Internacional, deve considerar-se que a organização possui os poderes que, embora não previstos expressamente na Carta, lhe são conferidos por interferência necessária como sendo essenciais para o desempenho dos seus deveres, logo, resultam de uma interpretação necessária extraída da Carta. 32) BROWNLIE, Ian, op. cit., p. 707-733. 33) MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., p. 303-309. 34) ZIPPELIUS, Reinhold, op. cit., p. 519-533. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Estados que não sejam membros das Nações Unidas atuem de acordo com os seus princípios, na medida em que tal seja necessário para a manutenção da paz e segurança internacionais. Dentro da organização, o órgão competente delibera sobre algum assunto e a sua eficácia será medida pelo sistema constitucional da organização. A força compulsiva dessa decisão eficaz obriga o Estado-membro a acolhê-la, pois a partir do momento que passou a ser membro da organização, estimou válidos os seus mecanismos jurídicos. Nesse contexto, o Estado estará vinculado àquilo que a decisão realmente é, um ato obrigatório, editado pela organização, de cujos estatutos provém sua legitimidade.35 Os meios técnicos que poderão ser utilizados para especificar e concretizar os fins dos organismos são: a convocação de conferências internacionais, a elaboração de projetos de tratados e de outras recomendações, a elaboração de uma estratégia de defesa, a adoção de decisões específicas juridicamente vinculativas e a adoção de disposições gerais vinculativas a nível interno dos Estados membros. Inclusive, em relação a determinadas questões, as organizações internacionais adotam normas jurídicas com aplicabilidade direta em nível interno dos Estados-membros, podendo, dessa forma, interferir no domínio funcional dos órgãos legislativos daqueles. Isso quer dizer que as organizações, ao exercerem os seus poderes, criam por meio de deliberações, normas internacionais, que, ora terão valor obrigatório, como as resoluções, os regulamentos e as decisões, ora não o terão, como as recomendações, os votos e os ditames. Quanto às sanções, as organizações internacionais dispõem de um vasto leque de instrumentos: a declaração de violação de obrigações contratuais por parte de um Estado-membro, a solicitação a um tribunal internacional para que formule um parecer sobre tais violações de obrigações, a suspensão dos direitos do Estado-membro transgressor, a suspensão dos pagamentos e de outras prestações ao membro transgressor e ainda a exclusão de um membro da organização. Além disso, em caso de ameaça ou ruptura da paz mundial, o Conselho de Segurança pode, por resolução própria, adotar medidas coercitivas não-militares, econômicas ou de outra natureza, e, em último recurso, medidas militares, até mesmo contra Estados que não são membros da ONU. No caso concreto, a aplicação de um ou outro instrumento, para a transposição das tarefas comunitárias, pela organização internacional, dependerá da sua própria legislação interna em relação à respectiva matéria. Em suma, constata-se que as organizações internacionais originaram-se com poder, no Estado de Bem-Estar Social, face à complexidade das relações entre os entes estatais, e não adquiriram tal poder ao longo do século XX. Essa afirmativa pode ser comprovada por meio da análise da justificativa do surgi35) REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 132-135.

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mento de algumas organizações internacionais, assim como a observância das suas finalidades. Tais aspectos serão verificados à continuação.

6 ANÁLISE DOS PODERES DE ALGUMAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS 6.1 O FMI Os Estados Unidos, ainda durante a Guerra (1944), tiveram a iniciativa da realização da Conferência em New Hampshire Woods, EUA, que ficou conhecida como Conferência de Bretton Woods, contando com a presença das Nações Unidas e as associadas a ela na guerra, com o escopo de sedimentar a cooperação econômica internacional. Desse evento, foram criados o Fundo Monetário Internacional36 (FMI), o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento37 (conhecido como Banco Mundial) e o GATT38 (Acordo Geral para Comércio e Tarifas Aduaneiras).39 De modo geral, o propósito era o de fomentar o intercâmbio mundial pelo incentivo de práticas do livre-comércio, garantindo os fluxos globais de capitais de investimentos e de ajuda econômica aos países em desenvolvimento. As questões de ordenação dos fluxos financeiros e de ajuda ficaram a cargo de duas novas agências internacionais das Nações Unidas: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido como Banco Mundial. Porém, cabe realçar que essas duas organizações internacionais não desempenham as mesmas funções, vez que o Banco Mundial apresenta-se como uma típica instituição de auxílio ao desenvolvimento, enquanto o FMI restringe-se ao auxílio à administração monetária externa do Estado membro.40 É essencial destacar que no plano financeiro, o FMI serviu, inicialmente, aos interesses imediatos dos Estados Unidos, através da criação do sistema de paridades, em termos de ouro e de dólares, declaradas pelos associados do Fundo, resultando na vinculação da moeda americana ao metal. A referente conversibilidade moeda-metal funcionou entre governos, possibilitando a reintrodução 36 )No dia 22 de julho de 1994, em New Hampshire, EUA, realizou-se a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, que originou o FMI por meio do Acordo do Fundo Monetário Internacional, o qual entrou em vigor na data de 27 de dezembro de 1945. Esse acordo sofreu alterações em 28 de julho de 1969, concretizadas por meio da Resolução nº 23-5. No dia 1º de abril de 1978 ocorreram outras modificações pela Resolução nº 314 e outras aconteceram em 11 de novembro de 1992 pela Resolução nº 45-3. 37) O Banco Mundial proveio do Acordo do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento que foi assinado em Bretton Woods, EUA, em 1944. 38) O GATT surgiu em 1994 pelo Acordo de Marrakesh, estabelecendo a Organização Mundial do Comércio e parte dos Acordos da Rodada do Uruguai, assinados em Marrakesh. 39) Observa-se que o autor, em 1999, era advogado na Divisão para a América Latina e o Caribe do Departamento Legal do Banco Mundial. Cf. NINIO, A. “Banco Mundial e meio ambiente: perspectivas legais e institucionais”. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1999, pp. 1-5. 40) GRIECO, Francisco de Assis. A supremacia americana e a ALCA. São Paulo: Aduaneiras, 1998. p. 135-142. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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do “padrão-ouro” que foi o responsável pela regulamentação cambial. Assim, os Estados Unidos, donos de cerca de 40% do estoque mundial do ouro monetizado, veriam o dólar transformar-se na moeda universal.41 Em sua primeira etapa, o FMI procurou dar ênfase ao monitoramento e à regulamentação de medidas de recuperação econômica conseqüentes das crises de balanços de pagamento. O seu instrumento básico fora as políticas de câmbios flutuantes que deveriam ser adotadas nos programas de estabilização, juntamente com medidas de contenção orçamentárias e de equilíbrio na expansão monetária. No entanto, a imposição de critérios rígidos de recuperação econômica, com base em programas formais, passaram a ser aceitos pro forma pelos Estados, que a rigor estavam conscientes da impossibilidade de levá-los a termo. Os atrasos na concessão de ajuda do Fundo acabaram por conduzir às moratórias, seguidos de novas composições e negociações atrasadas. Na atualidade, o FMI tem a função de facilitar os pagamentos multilaterais, fixar as paridades monetárias e contribuir para a sua estabilização, bem como manter sob controle as restrições impostas às transferências de divisas.42 Enfim, cabe ao FMI auxiliar financeiramente países com dificuldades em suas balanças comerciais.43 A liberação de recursos é condicionada, pelo Fundo, à adoção de medidas de reforma estrutural dos países solicitantes da ajuda do FMI. As medidas em questão são conhecidas como programas de ajustes, as quais definem a política orçamentária, a emissão monetária, a taxa de câmbio, a política comercial e os pagamentos externos. Tais decisões são formalizadas por meio de uma carta de intenções, que o Estado entrega ao Fundo como compromisso que assegura o cumprimento das metas anuais. Assim, os recursos somente serão liberados se as metas estabelecidas na carta de intenções forem atingidas. Os conselhos do Fundo não são impositivos, pois um Estado que não aceita suas diretrizes tem liberdade de deixar a organização. Não se pode olvidar que, muitas vezes, o Fundo é obrigado, por motivos políticos, a integrar em seus critérios de recuperação econômica interesses de seus principais membros. Entretanto, com certeza, o aval do Fundo concedido a um Estado em desenvolvimento representa, também, um sinal à comunidade financeira internacional sobre a solidez da política financeira adotada por esse Estado, o que deflagra o poder de tal organismo internacional.

6.2 O BANCO MUNDIAL Desde o início, a função do Banco Mundial é prestar auxílio aos Estados necessitados. Porém, decorrida uma década de surgimento, de financiamento e com a criação da Corporação Financeira Internacional (1956) e da Associação Internacional do Desenvolvimento (1960), o Banco Mundial mudou sua ótica desen41) Id. 42) ZIPPELIUS, Reinhold, op. cit., p. 519-533. 43) NINIO, A., op. cit., p. 1-5.

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volvimentista, passando a dar prioridade aos países com menor desenvolvimento. Nos dias de hoje, a função do Banco Mundial é promover o desenvolvimento estável, sustentável e eqüitativo dos Estados, auxiliando na diminuição da pobreza mundial. É formado de cinco instituições inter-relacionadas que desempenham prerrogativas específicas: BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento); AID (Associação Internacional de Desenvolvimento); IFC (Corporação Financeira Internacional); AMGI (Agência Multilateral de Garantia de Investimentos); CIADI (Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos).44 O Banco Internacional para a Reconstrução o Desenvolvimento (BIRD) e a sua organização filiada Corporação Financeira Internacional (IFC) concedem créditos de auxílio para o desenvolvimento produtivo e para a reparação de estragos de guerra. Os créditos concedidos pela Associação Internacional para o Desenvolvimento (AID) também se destinam ao auxílio dos Estados em vias de desenvolvimento. O Banco Mundial apresenta um caráter ambíguo de poder. Por um lado, utiliza técnicas de um banco comercial, pois fornece recursos financeiros aos Estados membros, cobrando juros e auferindo lucros que permitem a sua sustentação, também capta recursos no mercado de capitais e nas disponibilidades oferecidas pelos Estados membros. Por outro lado, em razão de seus objetivos, pode ser apresentado como sendo um serviço público internacional. Por fim, evidencia-se que o Banco Mundial, atualmente, desenvolve uma política de financiamento de projetos produtivos de longo prazo, como por exemplo, os na área da educação, da reforma agrária e do meio ambiente. Além disso, organizou programas para formar recursos humanos nos países em via de desenvolvimento e, sobretudo, aconselhou políticas públicas. Nessas circunstâncias o Banco que até então tentava apresentar-se como uma instituição absolutamente desvinculada de valores políticos e ideológicos, tem demonstrado uma posição sobre temas que deveriam ser de interesse restrito dos países em via de desenvolvimento.

6.3 O BID Em 1959, foi criado o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, voltado para o desenvolvimento da América Latina, cuja estrutura repousa na experiência do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – Banco Mundial. É de suma importância realçar que, paralelamente ao surgimento do BID, eclodiam problemas políticos e comoções sociais na América Latina. Logo, o surgimento do BID não foi despropositado, pois foi um instrumento de auxílio para que os Estados Unidos, preocupados com a perda do seu domínio na América Latina e buscando a “fidelização” cubana, instaurasse a sua “Aliança para o Progresso”. Em princípio, o BID só seria integrado por Estados da América Latina, no entanto, modificações foram feitas em seus estatutos, permitindo o ingresso do Canadá, do Japão e de Estados da Europa Ocidental. O principal objetivo do BID é estimular o crescimento econômico dos Estados-membros, através da concessão de empréstimos, tanto de recursos própriRAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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os quanto de capital de origem privada. O Banco, por meio de seus poderes, além de conceder empréstimos, supervisiona, aconselha o planejamento econômico e elabora estudos técnicos.

6.4 A OCDE A Europa encontrava-se devastada após a Segunda Guerra Mundial. Para reerguê-la os Estados Unidos ofereceram um auxílio econômico conhecido como Plano Marshall. Para coordenar este plano, foi criada, em 1948, a Organização Européia de Cooperação Econômica – OECE, cujo objetivo consistia em planejar o desenvolvimento econômico dos Estados-membros. Em 1960, representantes de vinte Estados-membros decidiram substituir a OECE por uma nova entidade internacional chamada Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE45, a qual possibilitou o ingresso de Estados que haviam atingido certo grau de desenvolvimento, independentemente de sua localização geográfica. Os objetivos da OCDE são: a melhoria do nível de vida dos povos dos Estados-membros; a ampliação o desempenho econômico, com o crescimento da oferta de emprego; a contribuição para o crescimento da economia mundial; a expansão do comércio internacional em bases multilaterais e não-discriminatórias.46 Enfim, a OCDE é um órgão internacional e intergovernamental que reúne os países mais industrializados para que, através de seu poder, estabeleçam políticas as quais potencializem seu crescimento econômico, e colaborem com o desenvolvimento dos Estados-membros.

6.5 A ONU Em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, na Paz de Versalhes, foi criada a Liga das Nações, primeira organização dotada de fins políticos e de um sistema de sanção incipiente, com poder regulamentar e personalidade internacional que almejava a paz entre os Estados. O Pacto da Liga das Nações era estruturado em três órgãos: o Conselho, cujos objetivos eram o desarmamento, o controle dos territórios sob mandato, o controle da proteção das minorias, a exclusão de membros; a Assembléia a qual admitia os novos membros, aprovava o orçamento, elegia os membros não permanentes; Secretariado que era a parte administrativa. A liga também possuía dois organismos autônomos, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, que fora criada no Tratado de Versalhes e a Corte Permanente de Justiça Internacional – CPJI, que teve o seu estatuto formulado em 1920. De fato, desde a declaração da Segunda Guerra Mundial a Sociedade da Liga das Nações parou de funcionar. Oficialmente, entretanto, ela existiu de 1920 a 1947, quando, na sua 21ª Sessão, foi dissolvida, ou seja, as suas contas foram encerradas e todos os seus bens foram transferidos para a Organização das Nações Unidas – ONU. Em 1945, diante do término da Segunda Guerra Mundial, aconteceu a Conferência de São Francisco, denominada de Conferência das Nações Unidas 150

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para a Organização Internacional, na qual se originou as Nações Unidas, por meio da Carta da ONU. Destaca-se que no dia 10 de dezembro de 1948, a ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, texto de referência que estabelece os direitos naturais de todo ser humano, independentemente de nacionalidade, cor, sexo, religião, orientação política ou sexual. Não é uma lei, mas tem grande força moral e norteia boa parte das decisões tomadas pela comunidade internacional.47 A ONU é uma pessoa jurídica de direito internacional público, tendo a sua existência, organização, objeto e condições de funcionamento previstos no seu instrumento de constituição, que é a Carta das Nações Unidas. Apesar de sua vocação universal, a ONU resultou de um acordo de Estados, celebrado nos moldes de um tratado. Cabe salientar que cada Estado preservou a sua soberania, podendo retirar-se da Organização quando o desejar e também sendo possível o ingresso de novos Estados através da adesão, conforme processo previsto na Carta. Com o intuito de se estruturar um sistema global para a manutenção da segurança coletiva, com a liderança dos Estados Unidos e com mais o apoio de 50 nações, a Carta de São Francisco foi o instrumento que estabeleceu a criação de um órgão permanente, com autoridade, com poder efetivo e com discernimento para a preservação da paz mundial. A Carta, então, é a lei básica da ONU, formada de um preâmbulo e de 111 artigos, tendo como anexo o Estatuto da Corte Internacional de Justiça – CIJ, que é sua parte integrante.48 A ONU foi criada para concretizar as determinadas funções: ser a guardiã da paz e da esperança; desenvolver relações amistosas, entre os Estados, fundadas no respeito ao princípio da igualdade dos direitos e da autodeterminação dos povos; conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário; promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos e ser um centro destinado a harmonizar a ação dos Estados para a consecução desses objetivos. Para serem admitidos como membros, todos os Estados deverão aceitar as obrigações contidas na Carta, estando dispostos e aptos a cumprir tais determinações. No entanto, na realidade, considerações políticas têm exercido um papel importante na admissão de alguns membros, pois, em mais de uma oportunidade, os Estados membros, mais influentes, utilizaram o veto, abusivamente, para 44) SOBRE o Banco Mundial. Disponível em: www.bancomundial.org.br / index.php / content / view /6.html. Acesso em: 5 set. 2007. 45) A OCDE originou-se da Convenção para Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos, assinada em Paris, em 1960. 46) CORPORATE social responsability: partners for progress. Disponível em: www. oecd.org/ document/37/ 0,2340,em _2649 _201185 _2429925 _ 1 _1 _ 1_ 1,00.html. Acesso em: 10 set. 2007. 47) MORAES, Marcos Antonio de; FRANCO, Paulo Sérgio Silva. Geopolítica: apocalipse do século XX. Campinas: Átomo, 2006. p. 113-118. 48) SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 210-224. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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impedir o ingresso de Estados que possuem todos os elementos exigidos. Isso acontece porque a ONU consagrou, desde o início, a supremacia do Conselho de Segurança. Essa tutela firmou-se no direito de veto de seus cinco membros: China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e União Soviética livres, por conseguinte, para imporem ações diplomáticas ou militares. A igualdade dos Estados perdeu assim sua consistência mundial. Além do mais, os membros da ONU poderão ser suspensos do exercício dos seus direitos e dos seus privilégios, quando contra eles for levada a efeito qualquer ação preventiva ou coercitiva por parte do Conselho de Segurança, o qual, posteriormente, poderá restabelecê-los. Se violarem, persistentemente, os princípios da Carta, poderão ser expulsos pela Assembléia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança. É de extrema importância observar que a ONU apresenta falhas em sua estrutura e em seu funcionamento, tais como: o respeito à soberania dos Estados, pois implica tantas limitações que, praticamente, acabam por anular qualquer possibilidade de ação da ONU, no sentido de garantir a aplicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem; o direito de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança porque, na realidade, acentuou a discriminação entre os Estados (essa foi uma exigência dos Estados Unidos e da União Soviética para integrarem a organização, e como a sua constituição seria inviável sem a presença desses dois Estados, os demais tiveram que ceder); a falta de eficácia das decisões, pois sendo apenas uma confederação e não dispondo de meios concretos para impor a sua vontade, a ONU praticamente se limita a fazer recomendações, que muitas vezes não são atendidas, sem que nada possa ser feito; a falta de recursos próprios, dependendo de contribuição financeira de seus membros, muitos dos quais não efetuam regularmente os pagamentos devidos, mas, ainda que todos o fizessem, os recursos seriam insuficientes, fazendo com que a ONU dependa da ajuda especial dos grandes Estados para os empreendimentos mais importantes, o que reduz a sua eficiência e afeta a sua própria independência. Embora se declare baseada no princípio da igualdade de todos os seus membros, a ONU é, na realidade, dirigida por uma pentarquia, pelas cinco potências que dispõem do abusivo direito de veto no seio do Conselho de Segurança, detendo, por conseguinte, o comando da organização, decidindo, em última instância, sobre a paz ou a guerra no mundo. Além disso, examinando-se a Carta da Organização das Nações Unidas vê-se que a prática do veto impede que o Conselho de Segurança tome qualquer medida contra uma potência que nele tenha assento permanente, mesmo que essa potência ponha em perigo a paz e a segurança internacional. De tudo isso se conclui que o princípio da igualdade soberana de todos os membros, tão defendida na Carta da Organização das Nações Unidas, é uma fantasia. As cinco potências influenciam muito esse organismo, mesmo assim, a ONU é dotada de certo poder que faz dela uma organização respeitada pelos demais Estados-Nações. 152

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6.6 A ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA Nos dias de hoje, as etapas de integração internacional deflagram organizações supranacionais (comunidades supranacionais) cujo principal exemplo se encontra na União Européia, que se legitima pela interdependência econômica, pela mobilidade de mão-de-obra, pelo Estado Democrático de Direito, pela política externa e por outros fatores que integram os Estados-membros. Uma característica específica e exata dessa organização comunitária é o fato de ela ter a faculdade de adotar disposições diretamente vinculativas em nível interno dos Estados-membros. Relevante não é só o fator do efeito das decisões adotadas pela organização comunitária, mas também o número, a importância e o prazo de atribuição de suas funções, assim como os meios de execução de que dispõe a organização, conforme o grau de sua autonomia jurídica em relação aos seus membros. Além desses, para uma avaliação da verdadeira força de integração e das tendências evolutivas de uma organização devem ser considerados ainda outras questões, como as relações de interdependência ao nível da economia, da política, da defesa, da afinidade cultural, das concepções ideológicas, da intensidade, da tendência auto-afirmativa nacional manifestada a nível interno dos Estados-membros. Considerando o grau de integração atingido com fundamento nos critérios acima mencionados, observa-se que os órgãos da União Européia podem adotar determinadas disposições com aplicabilidade direta em nível interno dos Estados-membros, sobretudo quanto à política econômica, à administração da economia e à política monetária. As decisões elegidas pela maioria dos órgãos comunitários são, em medida considerável, vinculativas para todos os Estados-membros, existindo órgãos importantes que estão independentes de quaisquer instruções dos Estados-membros. O quadro institucional da União Européia é formado pelo Parlamento Europeu; pelo Conselho da União Européia; pela Comissão das Comunidades Européias; pelo Tribunal de Contas e pelo Tribunal de Justiça. O direito reinante na União Européia é o comunitário, que se distingue tanto do interno (nasce da vontade do Estado e por ele pode ser modificado ou revogado, não impondo nenhuma obrigação para os demais) quanto do internacional (disciplina no âmbito internacional os direitos e os deveres das pessoas internacionais). O direito comunitário objetiva, através de imposições de normas elaboradas por seus órgãos institucionais, adotar preceitos obrigatórios não só para os Estadosmembros, mas, por igual, aos seus nacionais, exatamente porque ocorreu a renúncia expressa dos Estados-membros ao exercício dessas competências.49 No direito comunitário, os órgãos criados pelos Estados agem em nome da Comunidade e não dos Estados-membros, sendo, portanto, um direito autônomo, com peculiaridades próprias. Sua finalidade é promover a interação entre os componentes dos órgãos supranacionais, eliminando as controvérsias e estabelecendo uma supranacionalidade extensiva a todo nacional dos 49) LOBO, Maria Teresa do Cárcomo. Manual de Direito Comunitário: a ordem jurídica da União Européia. Curitiba: Juruá, 2004. p. 90-115. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Estados integrantes da comunidade. Assim, os preceitos do direito comunitário se incorporam automaticamente no ordenamento jurídico doméstico de cada Estado-membro, sem necessidade de nenhuma norma de direito interno que as adote. Também cabe lembrar que o direito comunitário tem primazia sobre o direito interno, conforme prescrevem, implicitamente, os Tratados constituintes da Comunidade. É importante frisar que as organizações internacionais não dispõem de território, nem de população, porém a União Européia, em seus tratados, consideram os cidadãos dos Estados-membros do bloco como sujeitos a uma jurisdição supranacional, ao menos no que se refere a uma parte das competências estatais que são transferidas à ordem jurídica comunitária. Essa peculiaridade leva à construção de uma estrutura que propicia, em alguns casos, a demanda direta de um particular junto a organismos europeus, o quê inova toda uma perspectiva, já estruturada, entre a população e os organismos internacionais. Por tudo isso, afirma-se que a União Européia deflagra o poder de suas organizações supranacionais em relação aos Estados-membros que concordaram em se submeter a elas.

7 CONCLUSÃO Posteriormente à Segunda Guerra Mundial, com a aproximação dos Estados e devido ao temor, sob a estrutura do Estado de Bem-Estar Social, multiplicaramse as organizações internacionais, que pela primeira vez, foram dotadas de um sistema de sanção incipiente, com poder regulamentar e personalidade jurídica de direito internacional. Na realidade, a proliferação de organismos internacionais se deu pelo fato de não existir nenhum órgão superior de poder a que todos os entes estatais pudessem se submeter. Por causa disso, os Estados se integraram em uma ordem jurídica, formando as organizações internacionais as quais possuem um órgão de poder, resultando em uma modificação nos relacionamentos das instituições estatais. Ou seja, após a Segunda Guerra Mundial, devido à intensificação das relações entre os Estados, não era mais possível se satisfazer ao enorme volume de tarefas de ordenamento e harmonização supranacionais, sendo indispensável à formulação de instituições que defendessem os interesses comuns, coordenassem os interesses divergentes e harmonizassem os interesses antagônicos cuja envergadura ultrapassava os Estados singulares. A necessidade da manutenção da paz na comunidade internacional também foi um fator determinante para o surgimento das entidades internacionais, pois algumas delas evitam os possíveis litígios beliculosos entre dois ou mais Estados. O tratado institutivo das entidades internacionais atribui-lhes as seguintes competências: normativa, operacional, impositiva e de controle. Além disso, como para a consecução das finalidades fundamentais de uma organização internacional exige-se a utilização de meios imprescindíveis, é necessário que essa entidade seja dotada de personalidade jurídica. Por causa dessa personalidade, 154

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as organizações internacionais possuem direitos e deveres que devem depender dos seus objetivos e funções, enunciados ou implícitos em seu ato constitutivo e desenvolvidos na prática. Certamente, os organismos internacionais possuem vários poderes que, ao serem exercidos, inclusive, criam por meio de deliberações normas internacionais que às vezes terão valor obrigatório e às vezes não o terão. Em suma, conforme os motivos que fundamentam o surgimento das organizações internacionais, constata-se que elas se originaram com poder político, face à complexidade das relações entre os Estados e não adquiriram tal poder ao longo do século XX. Para averiguar essa afirmação, foi essencial a análise de algumas entidades internacionais, como a Organização Comunitária, o FMI, o Banco Mundial, o BID, a ONU, a OCDE. A Organização Comunitária, como, por exemplo, a União Européia, é formada de organizações supranacionais. O que a diferencia é o fato de ela ter a faculdade de adotar disposições diretamente vinculativas em nível interno dos Estados-membros. Isso significa que tal organização deflagra o poder de seus organismos supranacionais em relação aos Estados-membros que concordaram em se submeter a eles. Já o FMI, o Banco Mundial, o BID, a ONU, a OCDE exercem, desde a sua origem e de várias maneiras, os seus poderes, influenciando os entes estatais. Ademais, verifica-se que, à exceção da ONU, que é dirigida pela pentarquia a qual forma o Conselho de Segurança, os outros organismos possuem autonomia, ou seja, não são controlados, nem totalmente manipulados pelos Estados mais fortes, mas são regidos pelos seus próprios interesses, ainda que, algumas vezes, deixam-se influenciar por aqueles.

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O modelo contemporâneo de contrato

Heloísa Camargo de Lacerda Mestranda em Direito e Sociedade na PUCPR

1 INTRODUÇÃO Tendo em vista que os contratos são os instrumentos que viabilizam o comércio e as trocas em geral, bem como diante de sua função de conformação social, os estudos acerca dos instrumentos contratuais assumem grande relevância. O objetivo deste artigo é traçar a evolução conceitual pela qual passaram os contratos ao longo da história, dando ênfase ao modelo contemporâneo. Em tal modelo, observa-se a grade influência de princípios como o da boa-fé objetiva, da relativização da força obrigatória, da função social e da dignidade da pessoa humana. Ao longo do trabalho veremos que estes princípios são de grande importância na efetivação de direitos fundamentais, pelo que merecem larga acolhida. Isso porque a concepção contemporânea de contratos e, especialmente, a concepção dos contratos de consumo estão voltados para a constitucionalização dos pactos, bem como para a crescente influência dos direitos fundamentais sobre os acordos, tanto no momento de sua formação, quanto em sua execução e interpretação. Em seguida, abordaremos especificamente os contratos de consumo, na condição de representantes do modelo contemporâneo, passando por seus princípios e delineando seu espírito. Por fim, diante da efetivação de direitos fundamentais, concluiremos defendendo a larga acolhida e aplicação dos novos princípios contratuais, como forma de desenvolvimento socioeconômico, e apontaremos os motivos pelos quais eles ainda encontram resistência por parte dos operadores do direito. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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2 CONTRATOS Como a temática toda está inserida no âmbito contratual, impossível seria abordar o tema e entender a efetivação dos direitos fundamentais no âmbito contratual, bem como, o papel dos princípios, sem antes compreender a evolução conceitual pela qual passaram os contratos, bem como, o estágio atual da arte.

2.1 MODELO LIBERAL O Estado Liberal tinha como principal característica a não-intervenção do Estado e a liberdade de regulação das relações pelos particulares1, pois marcado pelos ideais iluministas. Vejamos a definição de iluminismo do pensador Immanuel Kant: O Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade. Ele mesmo é culpado por ela. A menoridade se assenta na incapacidade de fazer uso do próprio entendimento, sem a orientação de outro. A própria pessoa é culpada por essa menoridade, quando sua causa não está num defeito do entendimento, mas na falta de decisão e ânimo para fazer uso dele com independência. Sem o comando de outro. Sapere aude! Tenha coragem de usar seu próprio entendimento! Eis aqui a divisa do Iluminismo. 2

Percebe-se que, sob um discurso de racionalidade, a liberdade e a igualdade (formal) foram os pilares do pensamento iluminista e embasaram o individualismo crescente e estimulado pela burguesia da época. A concepção voluntarista de contrato, como sendo um acordo de vontades, surge neste contexto com o Código de Napoleão, o primeiro código moderno, que deu início à era das grandes codificações, influenciando todos os demais códigos, como o Italiano de 1865, o Português de 1867, o Espanhol de 1889, o BGB de 1896 e o Código Civil Brasileiro de 19163. As grandes codificações do século XIX traziam “a absoluta predominância dos conceitos de propriedade privada e da liberdade quase absoluta de contratar.”4 Assim, pode-se afirmar que as codificações tinham como um dos objetivos principais a proteção da propriedade privada. Outra característica deste modelo era a redução do indivíduo ao status de proprietário: 1) EFIN, Antonio Carlos. A revisão contratual no CDC e no novo CC. In: Repensando o direto do consumidor. 15 ANOS DO CDC (1990-2005) Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná: Curitiba, 2005. p.55. 2) KANT, Immanuel. Filosofia da história. Coleção Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 3) NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A teoria contratual e o código de defesa do consumidor. v. 17. São Paulo: RT, 2001. p.36. 4) PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Parte especial. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. t. XXXVIII, p. 39.

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Todo bem deve ter um titular para poder intercambiar-se, um proprietário; e vice-versa, toda pessoa deve se apresentar como proprietário de algo para existir na sociedade mercantil. Por essa razão, o discurso jurídicoburguês (e o político tocante a este ponto) apresentarão a todos os homens como proprietários. Até os que nada têm são proprietários de algo: de suas mãos (LOCKE), de sua capacidade para trabalhar – que podem alienar no mercado. Em certo sentido, pois, e na medida em que os sujeitos estejam dentro do âmbito das relações mercantis, se imaginarão necessariamente, uns aos outros como iguais num aspecto particular sem deixar de perceber a desigualdade real em outros aspectos (em outros âmbitos) ‘não relevantes’ para o funcionamento do ‘lado econômico’ do sistema.5

Neste contexto o conceito de contrato foi fortemente marcado pela autonomia da vontade e pela obrigatoriedade dos acordos (pacta sunt servanda). Vejamos o conceito doutrinário sobre a autonomia da vontade: é o postulado econômico da livre iniciativa, ou seja, na sociedade capitalista o homem precisa ter liberdade de agir para persecução dos seus interesses particulares. Tem no contrato o meio técnico-jurídico para exercer essa liberdade, podendo estipular, como, quando e com quem lhe aprouver.6

E sobre a força obrigatória dos contratos: O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente o seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para os contratantes, força obrigatória.7

Entretanto, esta visão estava fadada ao insucesso, pois tornava absoluto o princípio da autonomia da vontade sob o argumento de uma igualdade que era apenas formal, o que gerava injustiças e desequilíbrios sociais. Assim, a visão liberalista viria experimentar alterações diante de questões pungentes de ordem social que começavam a se delinear: Essa visão individualista da sociedade e do Estado, e, por via de conseqüência, das relações contratuais, estava destinada a sofrer o impacto de transformações históricas da maior relevância, sobretudo em razão do vertiginoso progresso científico e tecnológico, de um lado, e do outro, de fatores ideológicos que tornaram mais aguda a questão social, gerando profundos conflitos entre o capital e o trabalho.8

5) CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. p. 72. 6) GOMES, Orlando. Novos temas de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 103. 7) GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 36. 8) REALE, Miguel. Temas de direito positivo. São Paulo: RT, 1992. p. 15. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Diante disso, ocorre a transição do Estado Liberal e do modelo liberal de contrato, para o modelo social que passaremos a analisar.

2.3 MODELO SOCIAL As mudanças sociais que marcaram o fim do modelo liberal ocorreram após as guerras mundiais, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando, diante dos problemas sociais urgentes, o individualismo cede ao interesse social.9 Pudemos perceber no tópico anterior que o Estado Liberal fez surgir os direitos fundamentais de primeira geração (liberdade e propriedade). O Estado Social, por sua vez, veio assegurar os direitos fundamentais de segunda geração (sociais). Vejamos: (...) o Estado Liberal assegurou os direitos do homem de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual. O Estado Social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais.10

Assim, a autonomia da vontade não mais impera e os contratos passam a ser regulados pelo Estado para atingirem seus fins sociais (dirigismo). Vejamos o conceito doutrinário de dirigismo contratual: Nascida a partir das colocações de Josserand, no início da década de 30, a expressão dirigismo contratual engloba o conjunto de técnicas jurídicas que transforma os contratos menos em uma livre construção da vontade humana do que em uma contribuição das atividades humanas à arquitetura geral da economia de um país, arquitetura que o Estado de nossos dias passa, ele mesmo a definir.11

Surge então uma nova concepção de contrato: A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento de manifestação de vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha importância.12

Neste momento, vê-se um declínio do pacta sunt servanda e do conceito liberal de autonomia da vontade e, por outro lado, um aumento no prestígio de institutos de flexibilização, como forma de garantir o interesse social e a comutatividade contratual.

9) EFIN, Antonio Carlos. Op. Cit. p. 56. 10) LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e mudança social. Revista Forense n. 722, Rio de Janeiro: Forense. p. 42. 11) GRAU, Eros Roberto. Dirigismo contratual. In: FRANÇA, Limongi. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 32. p. 410. 12) MARQUES, Cláudia Lima.Contratos no código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 101.

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2.4 MODELO CONTEMPORÂNEO

No modelo contemporâneo, o que se observa no meio jurídico como um todo é um grande movimento de constitucionalização e de ênfase aos direitos fundamentais. Esse movimento surge com a descodificação em contrapartida às grandes codificações observadas anteriormente. Sobre a descodificação: Por muito tempo se acreditou na ilusão codificadora, mas, neste século, tal ilusão caiu por terra. Sob o influxo das experiências vividas em outros sistemas jurídicos, em especial o da common law, a questão da rígida fidelidade à lei e aos vínculos conceituais típicos ao modelo de interpretação axiomática, é afastada, permitindo-se hoje a admissão, também nos sistemas jurídicos integrantes da ‘família’ romano-germânica, da possibilidade da aplicação judicial do Direito por via da concreção. 13

Pode-se afirmar que especialmente o âmbito privado vem sentindo essa descodificação e conseqüente constitucionalização, donde surgiu o conceito de direito civil constitucional. Vejamos: Assim, o direito civil constitucional nada mais é do que a harmonização entre os pontos de intersecção do direito público e o direito privado, mediante a adequação de institutos que são, em sua essência, elementos de direito privado, mas que estão na Constituição, sobretudo em decorrência das mudanças sociais do último século e das transformações das sociedades ocidentais.14

Como conseqüência disto tem-se uma crescente importância dos princípios15 na ordem jurídica. Vários são os doutrinadores que ressaltam a importância dos princípios no modelo contemporâneo, vejamos um deles: (...) cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que não estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico. Observa Jeanneau que os princípios não têm existência própria, estão ínsitos no sistema, mas é o juiz que, ao descobri-los, lhes dá força e vida. Esses princípios, que servem de base para preencher lacunas não podem opor-se às disposições do ordenamento jurídico, pois devem fundar-se na natureza do sistema jurídico, que deve apresentar-se como um ‘organismo’ lógico, capaz de conter uma solução segura para o caso duvidoso. 16 13) MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Sub-secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, 1991. p. 24. 140 TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos. São Paulo: Método, 2005. p. 64 15) “orientação que informa o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas, que tem de ser tomado em consideração pelo intérprete, mas que pode, em alguns casos, ter direta aplicação. Os princípios extraem-se das fontes e dos preceitos através da construção científica e servem, por sua vez, de orientação ao legislador na definição de novos regimes.” PRATA, Ana. Dicionário Jurídico. Coimbra: Almedina, 1995. p. 764. 16) DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil interpretada. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 123. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Nesta esteira surgem também as chamadas cláusulas gerais17 que tanto definem parâmetros interpretativos, como são instrumentos de efetivação de princípios. Observamos ainda a queda do individualismo, com a crescente visão social das relações: O quadro que hoje se apresenta ao Direito Civil é o da reação ao excessivo individualismo característico da Era codificatória oitocentista que tantos e tão fundos reflexos nos lega. Se às Constituições cabe proclamar o princípio da função social – o que vem sendo regra desde Weimar – é ao Direito Civil que incumbe transformá-lo em concreto instrumento da ação. Mediante o recurso à função social e também à boa-fé – que tem uma face marcadamente ética e outra solidarista – instrumentaliza o Código agora aprovado a diretriz constitucional da solidariedade social, posta como um dos “objetivos fundamentais da república.18

Diante de todo este contexto contemporâneo, o conceito de contrato se modifica: a nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganham importância.19 O contrato atual não é um assunto individual, mas que tem passado a ser uma instituição social que não afeta somente os interesses dos contratantes. À sociedade, representada pelo Estado e outras entidades soberanas, atribui-se o controle de uma parte essencial do Direito Contratual. À sociedade interessa que existam bons contratantes, que ajam bem, socialmente, e isso cria um novo espírito contratual que pode ser denominado ‘princípio de sociabilidade’. Sobre essa base, impõem-se obrigações aos contratantes.20 17) “Configurado um possível impasse entre princípio que representa um valor socialmente amadurecido e que está a pedir não só reconhecimento, mas efetivação na ordem social, e um ordenamento jurídico dotado de normas pontuais, que na sua estruturação sob o prisma rígido da reserva legal não contempla a possibilidade de aplicação de valores-princípios, soltos nos anseios da sociedade, surgiram as cláusulas gerais, elementos de conexão entre os valores reclamados e o sistema codificado, propondo-se a efetuar o elo de ligação para a introdução desses valores no ordenamento, sem ruptura da ordem positivada, sem quebra do sistema.” JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas gerais no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 40. 18) MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 144. 19) MARQUES, Cláudia Lima. Op. Cit. p. 175. 20) LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,1998. p. 551. 21) "(...) foi precisamente em conseqüência da revisão a que foram submetidos o liberalismo econômico e, sobretudo, as concepções voluntaristas do negócio jurídico, que se passou a falar em autonomia privada, de preferência a mais antiga autonomia da vontade. E, realmente, se a antiga autonomia da vontade, com o conteúdo que lhe era atribuído, era passível de críticas, já a autonomia privada é noção não só com sólidos fundamentos, como extremamente importante.” NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 113.

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Percebe-se que, em matéria contratual contemporânea, ocorre a substituição do conceito de autonomia da vontade pelo de autonomia privada21, bem como uma maior ênfase à função social do contrato e a boa-fé objetiva. Sobre a função social do contrato: As menções à função social de alguns institutos jurídicos de direito privado, presentes nas normas constitucionais e nas de cunho ordinário, encontram-se vazadas na forma de princípio ou na de cláusula geral. Tanto num caso como no outro, a norma é jurídica, pois expressa um dever ser, e não apenas uma recomendação.22

Sobre a boa-fé objetiva: Andou bem o legislador ao se referir à boa-fé que é o cerne ou a matriz da eticidade, a qual não existe sem o intentio, sem o elemento psicológico da intencionalidade ou de propósito de guardar fidelidade ou lealdade ao passado. Dessa intencionalidade, no amplo sentido dessa palavra, resulta a boa-fé objetiva, como norma de conduta que deve salvaguardar a veracidade do que foi estipulado. Boa-fé é, assim, uma das características essenciais da atividade ética, nela incluída a jurídica, caracterizando-se pela sinceridade e probidade dos que dela participam, em virtude do que se pode esperar que será cumprido e pactuado, sem distorções ou tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes. Como se vê, a boa-fé é tanto forma de conduta como norma de comportamento, numa correlação objetiva entre meios e fins, como exigência e adequada e fiel execução do que tenha sido acordado pelas partes, o que significa que a intenção destas só pode ser endereçada ao objetivo a ser alcançado, tal como este se acha definitivamente configurado nos documentos que o legitimam. Poderse-ia concluir afirmando que a boa-fé representa o superamento normativo, e como tal imperativo, daquilo que no plano psicológico se põe com intentio leal e sincera, essencial à juridicidade do pactuado.23

Por fim, diante de todos os ensinamentos doutrinários, o que se conclui é que na teoria contratual contemporânea elevam-se ao grau máximo princípios como o da boa-fé objetiva, da dignidade da pessoa humana e da função social, na formação, execução e interpretação dos acordos de vontades.

2.5 MODELO DE CONSUMO

Neste contexto de descodificação e de constitucionalização insere-se o Código de Defesa do Consumidor, considerado pela doutrina como marco histórico do modelo jurídico contemporâneo. Isso porque o Código de Defesa do Consumidor está arraigado de princípios e vetores constitucionais24. 22) FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do direito privado. In: Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 43, n. 105, ano XXXIV. Porto Alegre: AJURIS, março de 2007. p. 159-160. 23) REALE, Miguel. Estudos preliminares do Código Civil. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 77. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Apesar de representante do modelo contemporâneo (promulgado em 1990) é importante ressaltar que a necessidade de proteção aos direitos dos consumidores não é uma preocupação recente, mas de fato algo que se observa desde a Revolução Industrial. A emergência da necessidade de proteção dos consumidores, porque hipossuficientes, não se insere na cena contemporânea, desde antanho esboçou-se a proteção destas categorias menos favorecidas. Entretanto, foi a partir das alterações no cenário econômico mundial, encadeadas pela Revolução Industrial, que se vislumbrou crescente desequilíbrio nas relações de consumo, acentuado, hodiernamente, pela grande concentração de capitais.25

Isso posto, passaremos a estudar mais de perto alguns dos princípios que regem o Código de Defesa do Consumidor, analisando sua correspondência constitucional e, em seguida, veremos o seu modelo contratual.

2.5.1 Princípios no Código de Defesa do Cconsumidor

O Código de Defesa do Consumidor veio para efetivar e positivar muitas das disposições constitucionais26. Como primeiro princípio que podemos destacar no Código de Defesa do Consumidor temos o da igualdade material, que possui o objetivo de, reconhecendo a vulnerabilidade própria dos consumidores, equilibrar as relações entre estes e os fornecedores. Vejamos: o código de defesa do consumidor veio para confirmar, de maneira concreta, o princípio da igualdade, pois surgiu para cumprir o objetivo maior de igualar os naturalmente desiguais, jamais podendo acontecer o inverso, isto é, desigualar os iguais.27

Tal princípio reflete o direito fundamental de igualdade (material), previsto no caput do artigo 5º da Constituição Federal e, as disposições do código por ele influenciadas, visam efetivar tal direito fundamental. Um segundo princípio que podemos identificar no diploma de proteção ao 24) “Destarte, no Brasil, é a paisagem constitucional que fixa os fundamentos nos quais estabelecer-se-á a proteção do consumidor. Neste diapasão, o CDC não ‘inovou’ em matéria de direitos básicos dos consumidores, quiçá a grande novidade trazida seja, no campo processual, a inversão do ônus da prova à parte hipossuficiente. Isto porque, o Código reflete os princípios constitucionais, a exemplo da boa-fé e da dignidade da pessoa humana, que já possuíam espaço na cena jurídica.” FACHIN, Luis Edson. As relações jurídicas entre o novo código civil e o código de defesa do consumidor: elementos para uma teoria crítica do direito do consumidor. In: Repensando o Direito do Consumidor 15 anos de CDC (1990-2005). V. I. Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná, 2005. p. 26-49. p. 35. 25) FACHIN, Luis Edson. Ibid. p. 26-49. p. 28. 26) “fica demonstrado, igualmente, que a lei consumeirista é, acima de tudo, uma lei de ordem pública e de interesse social (art. 1º do CDC), profundamente baseada na Constituição Federal de 1988 (...)” BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. Questões Controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 57-58. 27) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. Ibid. p. 30.

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consumidor é o princípio da liberdade, decorrente da igualdade, pois sem igualdade não há liberdade. na forma já vista, a desigualdade gera a escravidão do mais fraco por parte do dominador, haja vista que terá de se submeter ao arbítrio de quem possui mais poder em determinada relação contratual.28 liberdade significa, portanto, plena possibilidade de ação no meio social, desde que tal atitude não atinja o mesmo direito de liberdade que é reconhecido aos demais integrantes da sociedade.29

Assim, o código reflete novamente um direito fundamental, a saber, o da liberdade, presente em vários incisos do art. 5º da CF/88 e, da mesma forma, busca sua efetividade ao longo de seus dispositivos. Outro princípio norteador do CDC é a boa-fé objetiva: em assim sendo, e valendo-nos das lições do Ministro Ruy Rosado, podemos identificar três funções básicas do princípio da boa-fé objetiva, quais sejam as de que serve como padrão teleológico, apresentando critérios para uma melhor interpretação, serve como criador de deveres secundários ou anexos, exerce função limitadora de direitos evitando que as teses voluntaristas, que pregam a liberdade contratual total, possam levar a maiores situações de desequilíbrio social.30

Temos ainda o princípio da repressão eficiente dos abusos31, que visa garantir o direito fundamental da dignidade da pessoa humana e, o princípio da vulnerabilidade que visa efetivar o direito fundamental à igualdade: não se trata de qualquer prognóstico futurista, mas da realidade, motivo pelo qual o consumidor, por este primeiro aspecto, é considerado vulnerável, ou seja, pode ser facilmente atacado na sua livre manifestação de vontade, relativamente à escolha das suas prioridades e necessidade, cabendo à lei, defende-lo sempre com o objetivo de fazer valer o princípio da igualdade.32 esclarece o mesmo autor, que esta vulnerabilidade, aliás prevista expressamente no art. 4, inciso I, do CDC, também emerge sob o enfoque da fragilidade técnico-profissional dos indivíduos consumidores.33 por último, deve ser dito que o principio da vulnerabilidade representa a defesa dos princípios constitucionais da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da redução de desigualdades regionais e sociais e da busca do pleno emprego (...)34 28) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. Id. 29) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. Ibid. p. 35. 30) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. Op. Cit. p. 42. 31) “a noção de abuso está intimamente ligada ao conceito de direitos, pois abusar significa exercer de maneira desproporcional e contrária aos critérios de igualdade determinada conduta reconhecida, em princípio, como lícita.” BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. ibid. p. 47. 32) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. ibid. p. 43. 33) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. ibid. p. 44. 34) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. ibid. p. 47. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Por fim, temos o princípio da harmonia do mercado de consumo que procura efetivar o direito fundamental de proteção ao consumidor (art. 5, XXXII e art. 170, V): o moderno entendimento da economia deve passar pelo fortalecimento do consumidor, sem que tal, entretanto, venha a inviabilizar as atividades econômicas lícitas.35 aliás, diga-se que harmonizar o mercado de consumo significa, concretamente, atender a quase totalidade dos princípios da ordem econômica consubstanciados no artigo 170 da Constituição Federal.36

Diante do exposto, percebemos uma enorme intimidade e proximidade entre os direitos fundamentais e os princípios esculpidos no CDC, sempre estes com a função de efetivação daqueles.

2.5.2 Os contratos de consumo

No mesmo sentido, os contratos de consumo foram regulados seguindo a exegese constitucional, o que se evidencia em diversas disposições ao longo do código. Os contratos de consumo estão fortemente influenciados pelos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato, da autonomia privada em substituição à autonomia da vontade, pois, conforme vimos, estão inseridos no âmbito do modelo contemporâneo de contratos. Porém, além desses elementos comuns aos contratos em geral, nos contratos de consumo despontam algumas peculiaridades, entre elas, a que se destaca é o movimento de massificação dos contratos. Vejamos: o negócio jurídico no qual a participação de um dos sujeitos sucede pela aceitação em bloco de uma série de cláusulas formuladas antecipadamente, de modo geral e abstrato, pela outra parte, para constituir o conteúdo normativo e obrigacional de futuras relações concretas.37 O fenômeno de massificação do contrato sentenciou a pena capital à autonomia da vontade. A decadência do modelo clássico de contrato enseja o despertar de uma reaproximação de um Estado Social em relação à sociedade civil, deixando de ser o mero garantidor de uma vontade livre manifestada na negociação e a redefinição dos espaços público e privado que cartesianamente dividiram para que se pudesse compreender. 38

Diante desta peculiaridade, a necessidade de ingerência contratual aumenta, bem como a necessidade de utilização de mecanismos protetivos capazes de efetivar os direitos fundamentais. 35) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. Ibid. p. 53. 36) BONATO, Cláuddio e MORAES, Paulo Valério dal Pai. Ibid. p. 57. 37) GOMES, Orlando. Contrato de adesão: condições gerais dos contratos. São Paulo: RT, 1972, p. 3. 38) COUTINHO, Aldacy Rachid. A autonomia privada: em busca da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. In SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, 2a edição, p. 179.

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Se as novas figuras contratuais, hoje dominantes, prescindem ou ignoram o poder de escolha; se não há autodeterminação dos seus próprios interesses, o que supõe a liberade de determinação de cada parte; se os direitos, pretensões, ações e exceções já são prefixados pelo legislador e/ou pela empresa, não pode o negócio jurídico, com seu preciso conteúdo conceptual, ser uma explicação adeqüada. A teoria do negócio jurídico, por conceber o negócio jurídico como instrumento da autonomia da vontade, não exerce nenhum papel quando esta falta. Não é mais uma teoria abrangente. Essa necessidade de reconstrução da noção de contrato está colocada aos juristas, que sentem a insuficiência das categorias abstratas, inspiradas em outro contexto histórico.39

Assim, podemos perceber a importância de conhecer e aplicar os princípios contratuais contemporâneos, como forma de efetivação de direitos fundamentais e, conseqüentemente, como forma de caminhar em direção ao desenvolvimento nacional.

CONCLUSÃO Como vimos ao longo deste artigo, o modelo contemporâneo de contratos é fortemente influenciado por princípios como o da função social, da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva, bem como demais princípios deles decorrentes, entre os quais o da relativização da força obrigatória. Tais princípios visam efetivar direitos fundamentais como o da igualdade (material), da liberdade, da dignidade, da proteção aos consumidores, entre outros, pelo que merecem ampla atenção e acolhida. Isso porque o tão almejado desenvolvimento socioeconômico, certamente, depende da efetivação dos direitos fundamentais e do respeito e efetividade de todos os dispositivos constitucionais. Porém, devido à subjetividade dos termos e ao apego aos princípios tradicionais, tais como: o da força obrigatória dos contratos e o da autonomia da vontade, a efetiva aplicação dos princípios contratuais contemporâneos ainda encontra resistências. Ademais, o eventual conflito entre os princípios igualmente é uma barreira à sua efetividade. Entretanto, é preciso compreender que os princípios tradicionais e os contemporâneos não são contrários entre si, mas complementares e devem ser encarados como dois lados de uma mesma moeda, a moeda do desenvolvimento. Assim, na aplicação dos princípios contemporâneos o que se faz é uma ponderação e, por vezes, uma relativização, dos princípios tradicionais, mas jamais se exclui um em nome de outro. Por fim, o presente artigo não objetiva concluir o tema, mas levantar e contribuir com o questionamento e a reflexão - tão importante quanto os próprios avanços legislativos - pois somente através do debate e da reflexão que a letra fria da lei ganha vida e aplicabilidade social. 39) LÔBO, Paulo Luiz Neto. Op. Cit. p. 20.

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O jurídico sob um olhar literário: fragmentos para um discurso da delicadeza no Direito Murilo Duarte Costa Corrêa

1 INTRODUÇÃO Agora que escrevo me esqueço. Penso de fora de mim: plural, desamarrado. Assim é o direito visto pela literatura – múltiplo. A literatura, podemos perceber, é aquele lugar ao mesmo tempo próprio e ausente, porque nos conduz para fora de nós. Discurso de recuperação do corpo violentado por signos de poder, a literatura pode ser uma linguagem que se permite, a um só tempo, tranqüila e perturbadora, porque plural. É possível, a partir dela, reencontrarmos o erotismo do qual fomos segregados pelo discurso jurídico tradicional, a doxa1, e por sua linguagem sem corpo. A literatura desfaz a censura porque nos conduz para fora do real entendido como limite, já que, em literatura, “linguagem é sempre potência”2; desse modo, o real já não pode ser visto sob a perspectiva estreita de uma instituição consumada. Antes, deveríamos permitir-nos vê-lo sob o signo de uma configuração singular de mundo que o discurso pode instituir – e institui a todo momento. A literatura, a escritura, deixam-me livre de mim – ainda que escreva na primeira pessoa do singular. Já não me prendo a nada, pois sou apenas perda, desconstituição, fragmento. É meu contato amoroso com o Texto que produz esse estado3. O que há são espaços de mim, em que, perdendo-me, posso cons1) BARTHES, Roland. O Neutro, p. 184. “(...) doxa (...) (sistema particular de linguagem) que é vivenciado pelos usuários como um discurso universal, natural, que não precisa de explicação, cuja tipicidade não é percebida, em que tudo o que seja ‘exterior’ é relegado como margem, desvio: discurso-lei não percebido como lei”. 2) BARTHES, Roland. O rumor da língua, p. 315. 3) BARTHES, Roland. O prazer do texto. p. 20-21 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tituir-me e ao mundo à minha volta. Ao escrever, ao incorporar esse desejo de ser a mão que escreve4, como quisera Roland Barthes, de escrever todos os textos que desejo e desejei na leitura, não há subjetividade, mas apenas aquela voz interior que não é minha, mas de um Outro. Certamente, o tema ao qual nos propomos poderia ser tratado sob diversos panoramas; mas essa seria uma pluralidade estéril se não se orientasse a uma concepção – no sentido etimológico do termo – de uma razão sensual, solta, criativa, desamarrada e muito amável, encontrável alheia ao monismo instituído pelos discursos de poder, seus signos de força. Essa leitura aberta da proposta nos permite ver o método não mais como limitador, mas como espaço de liberdade de constituir-se a si e à realidade – o fato de vincular isso à potencialidade do discurso (ou à potencialidade do Texto) é apenas a visão de uma possibilidade singular, trêmula e fascinante, porque nela é possível o paradoxo: encontrar-nos no mesmo momento em que nos perdermos, já que o contato é feito com a parcela menos tirânica de nossa existência. Adentrando na metodologia específica sobre a qual o presente trabalho se verá, aos poucos, ser instituído, o jurídico sob um olhar literário assume, de pronto, um compromisso inalienável – irredutível – com a interdisciplinaridade. À evidência, a possibilidade de nosso discurso nos coloca, em última análise, na elaboração amorosa de uma estética diferente, como nas possibilidades infinitas da poesia. Inaugura-se, assim, uma estética que não é confortável, posto que o confortamento e o confrontamento são significados da totalidade discursiva, mas permite, dentro do que podemos denominar por angústia da escrita5, conceber novamente, a nós mesmos e à realidade, a partir de um lugar no qual nos permitimos ficar à deriva, soltos e, no mais, como quis Barthes, à vontade diante das formalidades6. Voltando ao método – em verdade não saímos dele –, Barthes trabalha a interdisciplinaridade de modo muito peculiar, ao afirmar que interdisciplinaridade não se faz convocando um tema e colocando ao seu redor duas ou três ciências. Para Barthes, “A interdisciplinaridade consiste em criar um objeto novo que não pertença a ninguém”7. Portanto, o termo não pode ser objeto da tradicional e costumeira subtração de sentido: é nos termos acima que compreendemos a proposta. Tampouco se deve reivindicá-lo como propriedade: o novo não pertence a ninguém, nem a nenhum domínio; é um universo em que a vaidade não tem sentido, porque não há subjetividade, nem mesmo há tiranias da subjetividade, ou a frieza objetiva, peculiar à epistême moderna. A linguagem não pode, presentemente, ser encarada como um uso, senão como uma vivência. Disso decorre que não estabeleçamos uma relação instru4) BARTHES, Roland. S/Z, p. 39. 5) “Escrevo porque não quero as palavras que encontro”. BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 50. 6) BARTHES, Roland. O rumor da língua, p. 83. O “à vontade” barthesiano passa ao largo dos signos de poder, assim como ao contentamento forçado com um universo inexpressivo de significantes. O “à vontade” quanto à forma, em Barthes, é expressão de uma subversão sutil; da mesma forma que a deriva, o estar à vontade dispensa a oposição – constitui outro lugar de fala, instituído por um abandono que desaloja a razão da totalidade. 7) Id., Ibid., p. 99.

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mental com os Textos – é isso que nos permite amá-los, desejá-los, querer ter escrito os Textos que amamos. Assim entendida, nossa relação com o discurso deixa de se instrumentalizar na ciência para constituir cons-ciências, elaborando, enquanto fala, e a partir de lugares incomuns dessa fala inventada, uma realidade afastada do Poder, e vizinha, a um mesmo tempo, da criatividade, da potência. Não buscar resultados com a linguagem é respeitá-la em seu íntimo: a precisão, o conceito, assassinam o plural que constitui sua potencialidade para o novo. Portanto, não nos colocamos diante da vida como Sísifo – imagem mais afeta ao jurista tradicional, já que, no dizer de Barthes, “Sísifo não é feliz: ele é alienado, não pela inutilidade de seu trabalho, mas por sua repetição”8. Ressignificando nossa relação com o discurso, com a fala – e utilizamos os termos de modo a querer significar linguagem, o mais amplamente possível –, colocamos nossa própria linguagem para longe de lugares da arrogância, da utilidade, da função. O que há num discurso de arrogância, como o científico, e num discurso de poder, como o jurídico conservador, retrata a castração – metonímia bloqueadora de toda metonímia9. Não digamos oposta, porque o “opor-se” é um descontrole da força, logicamente imerso na contraposição assumida arrogantemente como necessária, dentro de um signo de poder; mas, a proposta passa pela gestação de uma sensibilidade capaz de suspender os sentidos de Poder – possibilidade buscada no fora do discurso jurídico tradicional; a busca daquele objeto novo, objeto de ninguém, barthesiano. A superação da castração, da metonímia, figura que nos substitui por uma parte, encontra-se na possibilidade de uma deriva, assumida como método do entregar-se – deriva afetiva, metáfora que ressignifica, que multiplica o plural, recuperando um sentido disperso: a deriva, em si, é uma entrega à dispersão. Ao mesmo tempo, a deriva remete, em Barthes, “(...) à imobilidade no movimento (sempre a tranqüilidade na desordem)”10. E a metáfora é a criação de uma imagem que ao mesmo tempo tranqüiliza e desordena, para além de ser uma mera comparação. É nesse poder de metaforizar que reside a delicadeza11, porque a metáfora não exige uma troca, como o método científico moderno: objetividade, rigor, adequação, frieza. A metáfora é uma entrega ao sentido – e entrega amorosa, sem necessidade ou terminal finalidade de economia simbólica: a alteridade, o dialogismo, surgem como condição própria da deriva. Nesse sentido, a deriva passa a ser um modo de ressignificar a castração: imperativo transtornado em falta (metonímica). Dispensando a oposição12, a deriva, metodologicamente, compreende uma busca que busca a partir de si mesma e para fora, já que a entrega, o deixar-se levar, constitui um ato de amor no seio 8) BARTHES, Roland. A preparação do romance I. Da vida à obra, p. 07. 9) “Metonímica ela própria (e com enorme força), a castração bloqueia toda a metonímia: as cadeias da vida e da arte são quebradas (...)”. BARTHES, Roland. S/Z, p. 219. 10) BARTHES, Roland. O Neutro, p. 375. 11) Id., ibid., p. 75. 12) Id., ibid., p. 415. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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do qual só é possível colocar-se à distância da arrogância, do poder13. Mais importante, um discurso do delicado não contradiz, não nega, nem se sobrepõe à arrogância. Em verdade, é isso que faz a deriva: suspender-nos; exercício de sutileza, reverberação de uma nuance14. Se as ciências humanas, no dizer de Barthes, sempre desprezaram uma parcela imaginária do discurso15, na literatura não nos é defeso recuperá-la, vê-la como panorama e não como instrumental científico. Importa dizer: a linguagem nos constitui; vendo-a apenas sob o signo da instrumentalidade, não estaremos fazendo mais que implicar nossa condição humana objetal no discurso. Em Barthes: A linguagem não é uma espécie de instrumento, de apêndice que o homem teria “a mais” para lhe permitir comunicar-se com seu vizinho, pedir-lhe que passe o sal ou abra a porta. Não é nada disso. Na realidade, é a linguagem que faz o sujeito humano, o homem não existe fora da linguagem, que o constitui; a linguagem é uma perpétua troca, nenhuma linguagem é monológica. Não há monólogo, pois mesmo quando acreditamos falar apenas em nossa cabeça, na realidade sempre nos dirigimos de modo mais ou menos alucinado a um outro, ou ao Outro que está lá e nos rodeia.16

Para além da instrumentalidade do discurso, ele pode ser visitado a partir de suas potencialidades criativas. Para isso, há que se abandonar alguns preconceitos ou, ao menos, não deixar que eles nos invadam, suspendê-los. Essa é uma função da deriva, se com ela esquecemos nossa condição de sujeito17. Diante disso, o que se realizará é uma entrega singela: trataremos do tema do direito sob um olhar literário a partir de uma excursão, como apraz a Barthes, e, advertimos desde logo, com maior fundamento nesse autor, visto que seu potencial de análise é muito significativo relativamente ao tema proposto. É importante saber, ainda, que não há resultados a serem buscados: isso seria, como dissemos, fazer da linguagem um mero instrumento, utilizando o método como mera economia. O que temos, aqui, no ausente de nós, é uma entrega em que o fundamental é o empenho, a excursão, o passeio ao léu. 13) Jung, investigando o tema, chega à conclusão de que onde há amor, não pode haver poder – e assim por diante. Chega, mesmo, a dizer, o psicólogo suíço, que amor e poder são um a sombra do outro. A respeito, vejase JUNG, Carl Gustav. A psicologia do inconsciente, p. 45. 14) “(...) a nuance é um dos instrumentos lingüísticos da não-arrogância, da não-intolerância”. BARTHES, Roland. O Neutro, p. 268. 15) BARTHES, Roland. Inéditos. v.1 – teoria, p. 315: “Em todo discurso há sempre uma dimensão imaginária sobre a qual as ciências humanas não se indagaram, pelo menos até agora”. 16) Id., ibid., p. 311. 17) Aqui, nota-se a influência que as filosofias (se é que assim podem ser chamadas) orientais possuíam sobre Barthes – instrumentais discursivos que utilizava em suas aulas, já no final de sua vida, no Collége de France. A deriva como veículo de esquecimento da própria subjetividade revive parcelas do pensamento budista, relativas à impermanência e à subjetividade como ilusão. Barthes expressamente o admite em uma entrevista concedida ao The Frech Review, em fevereiro de 1979, compilada dentre os inéditos do autor. Assim ele se expressa: “O que consigo perceber, por reflexos muito distantes, do pensamento oriental me permite respirar”. Id., ibid., p. 321. De toda maneira, anotações várias de Roland Barthes que denotam essa influência são encontráveis em Como viver junto, O Neutro e A preparação do romance, I e II, mencionados ao longo de nosso texto.

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Dessa maneira, e certos de que o tema não será exaurido, importa saber desde logo que trataremos de muitas questões a partir de Barthes: em primeiro lugar, nosso próximo tópico, investigaremos a leitura comum do direito e a leitura barthesiana (plena). A seguir, a diferenciação peculiar de Barthes em relação à escrevência e a escritura, com as repercussões que podemos enxergar no jurídico. Como quarto ponto (considera-se a presente introdução como primeiro, logicamente), trataremos de um tema afeito a Roland Barthes e Gaston Bachelard, numa leitura das possibilidades de se ler o utópico sob uma estética da poesia. O quinto tópico, e penúltimo, versará sobre a possibilidade de se ensinar direito como literatura. Por fim, cumprir-nos-á indicar anotações, como considerações finais; nada além de alguns fragmentos para um discurso da delicadeza no direito – a partir de tudo o quanto consignarmos. Por enquanto, fique claro o seguinte: os autores escolhidos possuem obras com um potencial de análise muito extenso. Não será possível, em virtude disso, e por uma escolha metodológica, de necessária delimitação do tema, tratar a completude das obras e do pensamento de cada um deles. Por conta disso, deixamos claro, desde já, a natureza fragmentária desse texto, e certamente, incompleta, frisando que essa, longe de ser seu grande defeito, poderá, quem sabe, constituir sua maior virtude – pressuposto a uma abertura fundamental. De qualquer forma, a escolha é inarredável e necessária – como também o é a advertência metodológica quanto a ela.

2 PARA LER COM O CORPO: DA LEITURA DE CONSUMO À TEORIA DA LEITURA PLENA BARTHESIANA Reconhecemos ser pouco convencional que se comece um trabalho que tenha em consideração a literatura falando, em primeiro lugar, da leitura. Mesmo a crítica literária, de modo genérico, concentra seu trabalho ora na atividade do crítico, ora na do escritor, de modo que a atividade de ler é um pouco esquecida naqueles domínios18. Pois bem. Se, como diz Barthes, temos vontade de escrever pelos textos que somos capazes de amar, também é certo que, em Barthes, a atividade de ler ocupa um lugar de grande importância: “Ler é desejar a obra, é querer a obra, é recusar duplicar a obra fora de qualquer outra fala que não seja a própria obra (...).”19. Evidentemente, a leitura ocupa, em Barthes, um lugar incomum na teoria literária: o do desejo. Sempre vista como uma atividade eminentemente passiva, diante da do escritor, a leitura fora desprezada, quase que sem exceções, pelos críticos literários, que investigaram muito mais como o autor põe a obra no mundo e como, ao mesmo tempo, ele pode colocar o mundo diante da obra. Barthes, porém, pensador e, quem sabe, filósofo, se considerarmos, como ele, que a literatura é a filosofia deformada20, procede, ao longo de seus textos, à 18) BARTHES, Roland. O rumor da língua, p. 41. “(...) faz séculos que nos interessamos demasiadamente pelo escritor e nada pelo leitor (...)”. 19) BARTHES, Roland. Crítica e verdade, p. 230. 20) BARTHES, Roland. Inéditos. vol. 1 – teoria, p. 24. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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crítica dessa visão passiva da leitura. Se, de um lado, é porque lemos que sentimos o desejo de escrever, a leitura só poderia ter lugar se considerada como modo desejante de se ler; vale dizer: lemos porque desejamos o texto – lê-lo já é, em alguma medida, desejá-lo e, mais além, se o amamos, desejamos tê-lo escrito. Não lemos em busca de um significado último; melhor dizendo, essa busca implicaria, realmente, a ultimação do significado e, por extensão, a ultimação do plural. A leitura, para Barthes, não assume compromissos com a instrumentalidade: não se lê para – isso são leituras de consumo, funções de leitura ou, como talvez reste mais claro, leituras de função. Por isso, Barthes, a certo tempo, diferencia duas significâncias da leitura: a leitura de consumo e a plena, de tal modo que: (...) há leituras que não passam do simples consumo: precisamente aquelas ao longo das quais a significância é censurada; a leitura plena, ao contrário, é aquela em que o leitor é nada menos do que aquele que quer escrever, entregar-se à uma prática erótica da linguagem.21

Dessa sorte, e na medida em que a leitura ocupa um lugar periférico, de abandono, na teoria crítica literária, Barthes a recupera de modo a ressignificar a leitura como atividade tão central quanto a escritura. Enquanto a leitura de consumo assume um papel instrumental, em que o leitor coloca-se em posição de descobridor do sentido da mensagem, a leitura plena barthesiana valoriza a concepção plural da palavra, a concepção de seu erotismo. Esse erotismo não se vincula a nenhuma transparência dos signos, como é o ideal científico. Pelo contrário, sua lógica não se limita a ser a do significado da mensagem. É ao sair da lógica meramente compreensiva do texto, que poderíamos atingir um outro nível de leitura: a disseminação, a multiplicação; trabalho em que o leitor se constitui plural a partir do Texto. Aí, reconhecemos que possa existir a leitura de uma palavra erótica – erotismo da palavra sensível desde o balbucio22. Nesse passo, e longe do aspecto consumista, apenas compreensivo, a leitura passa a constituir uma atividade em que empenhamos todo o nosso corpo; ela seria um gesto do corpo23. No fundo disso reside o problema de identificar qual o espaço dessa leitura que suspende o instrumental. O erotismo da palavra, a atividade do corpo – para Barthes, é com o corpo que se lê –, fazem-nos identificar a leitura como campo desejante24. É nesse campo desejante que ocorre a dispersão da subjetividade; mais precisamente, dos totalitarismos dessa subjetividade do lente (aquele que lê plenamente, em Barthes). O erotismo, para o semiólogo francês, seria uma condição da leitura plena, uma vez que quando lemos, o desejo (de ler) encontra-se com o 21) Id., Ibid., p. 283. 22) “(...) mesmo a criancinha, no momento do balbucio, conhece o erotismo da palavra, prática oral e sonora oferecida à pulsão”. BARTHES, Roland. O rumor da língua, p. 49. 23) Id., Ibid., p. 45. 24) Barthes dedica à leitura desejante as páginas 48 e 49 de O rumor da língua.

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objeto (de leitura) – a definição que Barthes cria para o erotismo: o desejo (encontrado) com seu objeto25. Mais à frente, Barthes discorre sobre os efeitos da atividade de ler: esse erotismo, desejo já vizinho ao desejado: atividade clandestina em que o mundo que rodeia o lente é abolido pelo estado “absolutamente separado” que o “fechar-se para ler” implica26. De toda maneira, o que Barthes consegue realizar a partir disso, é – para dizer a seu modo – uma subversão sutil, na qual a leitura constitui o lente para fora de sua subjetividade – que é abolida, junto com o real circundante. Nesse momento, o erotismo, entendido como encontro do desejo com seu objeto, é o sujeito todo – seu corpo, seu pensamento, sua nova lógica. Ao afastar a compreensão como sentido da leitura, entramos em contato com o que é plural no texto – aquilo que vai constituir nossa verdade da leitura. Esse plural é essencial, no homem; tanto que Barthes escreve, ainda em O rumor da língua: A lógica que regula o Texto não é compreensiva (definir “o que quer dizer a obra”), mas metonímica; o trabalho das associações, das contigüidades, das relações, coincide com uma libertação de energia simbólica (se ela lhe faltasse, o homem morreria).27

É certo que a obra não admite sua superação pelo significado entendido como verdadeiro. O que a leitura de consumo procede é um virar de páginas incessante, inconsciente, impensado e sem sentido, para tentar chegar à próxima página, à próxima idéia, que tão logo se aproxime será sumariamente descartada pela próxima, e assim diuturnamente. Em O prazer do texto, falando do desejo de chegar ao final do romance, Barthes já enunciava que tal prática se identificava com um strip-tease, no qual assume a posição central o que ele chamou por desejo colegial de ver o sexo – prática pueril de leitura, desejo de atropelo do plural. A leitura de consumo não admite nem vê sentido na re-leitura: revisitação de um texto amado – porque já o amor desimporta: já cheguei ao final do romance, vi o sexo (exultação adolescente), funcionalizei minha leitura; tornei a potência de amor encerrada no texto em sentido ultimado – censurei seu plural, sua potência, a potência de sua linguagem. A leitura verdadeiramente plena28, contudo, trabalho metonímico, no dizer de Barthes, passa pela possibilidade que nos concedemos de, como lentes, abolir-nos, de investigar essas contigüidades, de praticar a intertextualidade, de vivenciar o sentido como plural, libertando o potencial simbólico censurado – porque acometido ao último significado – na leitura de consumo. 25) Id., Ibid., p. 48. 26) Id., Ibid., loc. cit.. 27) Id., Ibid., p. 74. 28) BARTHES, Roland. S/Z, p. 186. “(...) se aceitamos reler o texto, (...) é sempre com um proveito lúdico: para multiplicar os significantes, não para chegar a um último significado”. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Juristas, no mais, são doutrinados para o simbolismo finalista, fatalista, ou pragmático – daí sua angústia: as certezas quando falham. Ali, a hermenêutica – atividade em larga medida vinculada à leitura –, assume-se como um conjunto de regras fixas e se confunde com interpretação: decifração da mensagem (em tese) veiculada pelo texto. Fugitivos da prática plural, somos acostumados pela prática a uma leitura de disfarce; ao interpretarmos de acordo com regras fixas – aliás, há uma modalidade de interpretação no direito largamente conhecida como teleológica29 – buscamos o nascimento de um sentido último: nascimento que leva à morte a mãe, a parcela afetiva delicada, feminina, criativa, em nós. De outro lado, a leitura plena restabelece nosso corpo no mundo e o faz responsável pela hermenêutica – e pelo erotismo da interpretação. Se na leitura há erotismo pelo encontro de nosso desejo (de Texto) com seu objeto (o Texto), também a interpretação deve ser constituída singularmente, de modo a veicular esse erotismo da palavra – não assassinar seu plural, peculiar da dogmática e seu fatalismo da última palavra. Se o direito é prático, a leitura plena, implicada na hermenêutica, não oferece uma certeza, mas indica um plural. Barthes já afirmou que “interpretar um texto não é dar-lhe um sentido (mais ou menos embasado, mais ou menos livre), é, ao contrário, estimar de que plural é feito” 30. Esse plural que, embora desprezado, permaneceu criativo, sutilmente subversivo, permite repensar a linguagem no direito e os sentidos que os significantes tradicionais nos oferecem. Não encontramos limitação, mais, na linguagem. A ausência de clareza que fez da ciência um des-saber31 dogmático, agora é lido e revisitado como suporte da multiplicidade instituível no real pela literatura, pela linguagem, pela relação erótico-amorosa que, aos poucos, nos descobrimos capazes de manter com os signos. 29) Algo interessante é perceber, semiologicamente, que a regra da interpretação teleológica é vazia: atingir aos fins da norma, conhecê-los, realizá-los. A norma não tem sentido – ela é vazia sem plural. A norma não quer nada, nada deseja. Sou eu quem deseja o fim da norma, mesmo para poder sair da beira de abismo em que a busca me coloca. Seu sentido, sua finalidade, não deve ser esgotada no sentido ultimado ou ultimável. A norma não possui finalidade – nós a emprestamos (de nós) a ela e, discursivamente, tiramos o corpo fora, dizendo: “foi ela quem quis assim, não tenho nada com isso. Sou apenas o veículo que informa o telos”. Utilizei a expressão tirar o corpo fora para explicitar o seguinte: se leio com o corpo e não interpreto com ele, também ultimo o plural. Tirar o corpo fora, nesse sentido, e apesar da tautologia encerrada pela expressão, deixa claro que as formas interpretativas tradicionais vinculam a decisão a duas usurpações fundamentais de nosso corpo: em primeiro lugar, quando tentam implicar-nos numa leitura na qual consumimos o texto (e, por isso, perdemos nosso corpo – nosso desejo não se encontra com o objeto, não há erotismo). Em uma segunda instância, votada a legitimar a interpretação que provém da leitura, as técnicas tradicionais nos apartam mais uma vez do corpo, não vinculando nossa pessoa (nosso corpo) à realidade que criamos com o texto. Daí porque o tautológico não é inútil, nesse sentido: pois tiramos o corpo – e duas vezes, e deveras. 30) BARTHES, Roland. S/Z, p. 39. 31) Ademais, se saber e sabor, como Barthes alerta, possuem a mesma raiz etimológica, de modo que seriam indissociáveis, também se pode entender des-saber como prática cognitiva de um amargor intelectivo – um dissabor. A referência às relações entre saber e sabor são encontráveis em BARTHES, Roland. O prazer do texto.

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3 A ESCREVÊNCIA E A ESCRITURA: A VIDA REINVENTADA NO DESEJO Agora, realizamos o movimento inverso. Vamos por algumas passagens em um espaço de que a teoria literária sempre cuidou: a escritura; a literatura do ponto de vista do autor. A atividade da escritura sempre foi investigada no potencial de uma metonímia, tanto em Barthes, como em Blanchot: a mão que escreve32. Trata-se da metonímia que permite desviar-se de si como o absoluto, permite a felicidade, o erotismo autêntico da linguagem, já que somente escrevemos para burlar-nos33. É ausente de seus totalitarismos, no fora-de-si, que a escritura pode sustentar-se como atividade despida de tirania. Todavia, é certo que nem toda atividade de escrita corresponde à escritura de que falávamos. Há uma forma de inversão da escrita pela escrevência: atividade que suporta um fazer e não o constitui, em Barthes, pois coloca no mundo palavras-meio: Os escreventes (...) são homens “transitivos”; eles colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio; para êles, a palavra suporta um fazer, ela não o constitui. Eis, pois, a linguagem reduzida à natureza de um instrumento de comunicação, um veículo do “pensamento”. Mesmo se o escrevente concede alguma atenção à escritura, êsse cuidado nunca é ontológico: não é preocupação. O escrevente não exerce nenhuma ação técnica essencial sobre a palavra (...).34

A escrevência é esse modo de escrita ingênua, que postula um nível de linguagem que se esgota na capacidade de transmitir. Transformada em instrumento, a linguagem não pode mais constituir – apenas comunica a esterilidade de um pensamento incapaz de colocar-se para além de si. A ingenuidade lingüística a que Barthes se refere é inaugurada por uma prática de escrita em que, por fim, a prática é menos valorizada que a escrita. Ou seja, o mero ato de escrever não se completa, não é suficiente – daí a escrita ser instrumento e não objeto; meio, e não fim. Assim, os homens e mulheres de Ciência são devotos da linguagem pela possibilidade de comunicar, mais que pelo amor às palavras. A escrevência constitui, desse modo, uma prática de linguagem que auto-censura sua eroticidade. Em Barthes, pelo contrário, “escrevemos para sermos amados”35. Dessa maneira, a escrita deixa de ser uma atividade errática, voltada à função da 32) BARTHES, Roland. S/Z, p. 39. “(...) o texto escrevível é a mão escrevendo, antes que o jogo infinito do mundo (o mundo como jogo) seja cruzado, interrompido, plastificado por algum sistema singular (Ideologia, Gênero, Crítica) que venha impedir, na pluralidade dos acessos, a abertura das redes, o infinito das linguagens”. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir, p. 23. “A mão que escreve torna-se como que imaginária”. 33) “Sólo escribo auténticamente con una condición: burlarme de esto y de aquello, pisotear con las consignas”. BATAILLE, Georges. ¿És útil la literatura? In: La felicidade, el erotismo y la literatura. Ensayos 19441961, pp. 17-18. 34) BARTHES, Roland. Crítica e verdade, pp. 35-36. 35) Id., ibid., p. 20. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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linguagem e ancorada aos totalitarismos do emissor, como na escrevência. A partir do momento em que me concedo o erotismo da palavra, posso entrar naquela parte obscura da palavra – que, não à toa, pode ser identificada com o inconsciente; palavra que me perturba como um sonho em que tudo é nublado, plural. A inauguração dessa pluralidade discursiva só ocorre ao se passar da condição de escreventes a escritores – responsáveis por o que é normalmente denominado como escritura. Isso, evidentemente, torna possível enxergarmos a própria sintaxe do verbo escrever sob outro olhar (o olhar literário). Olhar que denuncia a suficiência da metonímia, que é sem objeto, e, igualmente, aponta para a multiplicidade de sua imagem: escrever passa a ser um verbo intransitivo – que não precisa de complemento (leia-se: de objeto, de finalidade, de função complementar, de sentido, significado, mensagem, totalidade do emissor etc.). Na escritura, diferentemente da escrevência, a subjetividade é afastada da metonímia: a mão que escreve. Isso é uma forma de dizer sobre a natureza neutra, no sentido barthesiano, da escritura36. Um Neutro que significa que as oposições foram dispensadas. O que há, no Neutro, é uma harmonia perturbadora, uma tranqüilidade incansavelmente tresloucada. O Neutro, na escritura, é o vazio capaz de abrir o texto: o sujeito que se perde para se constituir como escritor; aquele que fala a fala dos outros – a fala de um outro: escritura, essa linguagem que não me pertence, na qual não sou dominado e, justamente por isso, nela, também, não sou dado a dominar. Enseja dizer: escritura é um signo que nos deixa excêntricos da totalidade arrogante (o discurso científico). Dessa forma, o escritor não está despido de sua subjetividade – está é ausente de sua identidade compreendida como fala totalizante. Dito de outro modo, o Neutro, no escritor, se manifesta quando ele ouve todas as vozes do mundo, – além da própria –, e aí se ausenta de sua identidade subjetiva. Tal é a relação que a escrevência estabelece com a escritura: enquanto a primeira fecha os códigos de plural, a segunda os renova, assumindo-os como objeto do próprio trabalho, pleno, intransitivo, Neutro. Barthes lembrava seus alunos que Nietzsche considerava o conceito como sendo nada além que o resíduo de uma metáfora; então, é o que Barthes propõe: “substituir o conceito pela metáfora: escrever”37. Assim, o semiólogo francês via o conceito – entendido como último significado – como uma “força redutora do diverso, do devir que é sensível”38. Então, a escritura não seria conceitual; logo, não poderá ser, nunca, arrogante. Diferentemente, a escritura seria o discurso responsável por de36) BARTHES, Roland. O rumor da língua, p. 65. “A escritura é esse Neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda a identidade, a começar pela do corpo que escreve”. 37) BARTHES, Roland. O Neutro, p. 324. 38) Id., Ibid., p. 323-324.

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nunciar a arrogância de toda linguagem39. Daí ser possível, com Barthes, dispensar as oposições sempre forçadas – e reforçadas –, impostas e positivas da escrita científica, discurso arrogante do temos razão, para aceder a uma escritura que possibilite promover a ruptura com a escrevência: “(...) a descoberta de uma nova prática de escrita. (...) que a prática de escrita rompa com as práticas intelectuais antecedentes”40. Conformamos, a partir disso, a hipótese segundo a qual a prática da escritura, em seu sentido barthesiano, como no batailliano – se bem que em Bataille, a escritura é experiência-limite, avivada pela potência de transgredir41 –, demonstra-se como projeto de uma escrita de ruptura, uma crise (fundamento etimológico da crítica, como vimos), uma verdadeira fratura produzida no discurso total. E nesse sentido, Barthes é explícito quanto a seu imaginário de uma ruptura: “Romper quer dizer: vou produzir radicalmente, sem concessões, um outro eu (...)”42. Ruptura que produz, pela arte, a superação de nosso tédio – força passiva, opositora. Ao mesmo tempo, na arte, podemos reviver e, revivendo, elaborar a angústia, pois somos, na arte, todo corpos, erotismo – a placidez violenta do desejo; ou, como preferiu Barthes: “Sobre esse fundo, portanto, eleva-se a escrita como Arte; a Arte é, com efeito, aquela potência surpreendente que desenfada; é o corte (curto-circuito) do Tédio (...)”43. Logo, o compromisso da literatura, da escritura, agora entendida como metonímica, já não é totalizado, científico, verdadeiro: Digo que, entre todas as linguagens, a escrita, ou seja, o trabalho de enunciar a partir do modelo literário, se quiser, ainda é o discurso em que há menos ideologia, porque é o discurso onde há menos arrogância e também menos impostura. A escrita não se põe sob a instância da verdade, ela é o engodo assumido, a ilusão, a ficção, a arte, e por isso mente menos, afinal, que um discurso que, dogmaticamente, tenha pretensão à verdade.44

A escritura inaugura, dessa forma, na potência da metonímia sem objeto, o pensamento do que vai do conceito à metáfora, escrever, simplesmente – sem ter porquês ou para quês. Novo verbo intransitivo, capaz de constituir o mundo à volta da mão que escreve, sem compromisso com a verdade, escritura de uma ilusão vital. É aí que podemos falar sobre utopia; é nesse espaço, também, que são gestadas as potencialidades do poema. 39) Id., ibid., p. 333. 40) BARTHES, Roland. A preparação do romance I. Da vida à obra, p. 10. 41) Com isso queremos dizer o seguinte: a escrita transgressora como a batailliana parece não dispensar a oposição, não suspender o sentido do interdito. Aliás, é por transgredir que afirmamos o interdito. Dessa maneira, não haveria ali, como em Barthes, uma burla do paradigma, a construção de uma racionalidade ou de uma ética-estética voltada para a gestação da escritura entendida como esse suspender – modo de esquivar-se da fala totalizante. 42) BARTHES, Roland. A preparação do romance II. A obra como vontade, p. 176. 43) Id., ibid., p. 297. 44) BARTHES, Roland. Inéditos. v. 1 – teoria, p. 314. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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4 A UTOPIA COMO POÉTICA IMAGINATIVA EM ROLAND BARTHES – PARA PENSAR ALÉM DO REAL Um filósofo do direito disse, certa vez, que unir o direito à poesia já consistiria numa provocação surrealista45. Mas qual é a vocação do direito, senão a poética? Ao menos como libertação, o imaginário literário, poético, parece ser indissociável do direito, seja como hermenêutica, seja como ontologia, seja como deontologia. O direito engendra diversos níveis discursivos: a pretensão de ser, por meio da afirmação do dever ser e, ainda, o discurso da negação de toda a sua sistemática: as lacunas, os lugares atópicos do direito, onde o direito não existe, os textos contraditórios, os textos abertos, os enunciados múltiplos. Contudo, mais que normatividade (e antes dela), o direito é texto. Os juristas, entretanto, tentaram, ao longo do tempo, e com mais força desde o movimento positivista, que influenciou sobremaneira os saberes sociais e humanos, fazer do direito uma ciência não do Neutro barthesiano, mas do nulo. Seria o despojamento de sua sensualidade – o pêndulo da ciência. O conhecimento certo afastando as possibilidades epistemológicas do por vir. O Direito não existiria para semear a dúvida, mas para afirmar ou negar: afirma por regra, nega por desvio, e aí encontramos uma relação pertinente em Barthes46 e sua concepção de que a ciência lingüística é sempre assertiva (positiva), mas pode ser negativa ou interrogativa por desvio, como exceção47. Somos científicos por falta de sutileza48, ou por neurose. Pensar o direito cientificamente, e apenas cientificamente, parece-nos querer despi-lo de suas possibilidades de sensualidade, de sensibilidade: é aceder à certeza iludida de verdade, negando, taxativamente, a negação e a dúvida49: inauditas: ecos abafados. O pensamento científico cria um lugar privilegiado da certeza, como discurso unívoco, e nega a multiplicidade discursiva: não importa a poética, não importa o sonho, não importa a utopia: temos um lugar no real – e assim se desprezam as demais moradas do imaginário50. É a partir desse lugar desprezado, excluído, pela ciência embrutecedora, que se poderá, talvez, delinear alguns lugares discursivos de onde se fale sobre utopia e poesia. Trata-se de recuperar o imaginário, de suspender a univocidade para ouvir o rumor do mundo, de dizer o sonho, de existir prazerosamente e de se despir dos pensamentos monolíticos. Um convite a passear pelo infinito: não há trajeto: senão, desejo. 45) WARAT, Luis Alberto. Manifesto para uma ecologia dos desejos. In: Territórios desconhecidos: A procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da sensibilidade, p. 187. Pro-vocar: senão, avocar – o chamamento ao sonho, a (e)vocação poética. 46) BARTHES, Roland. Masculino, feminino, neutro, p. 05. 47) Id., Ibid., loc. cit. 48) BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 71. 49) Mas o que é a dúvida, senão uma demanda amorosa, despida de todos sentido totalitário? A pergunta não quer a resposta que falta; a pergunta quer questionar e, questionando, constituir. 50) “(...) uma imaginação que pensa”. BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar, p. 104.

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A poética51 é o discurso primordial do sensualismo, entendida como erótica, como desejo fundamental e espaço de um sem-lugar, que institui, em certa medida, esse sem-lugar. A poética é metalinguagem: propõe, ao mesmo tempo, a fuga, a fruição e o jogo do impossível. É a procura pelo sentido inalienável das coisas52. É uma fala transgressora, porque permanece política. Enquanto o discurso do direito faz-se mito53, uma vez que transforma em natureza uma intenção histórica, perdendo a reverberação das origens dessa intenção, a poética se estabelece como relação do ser humano com o próprio sentido das coisas ou, ao menos, com sua busca como devir e desejo. Poesia é buscar o discurso metalingüístico, é buscar a utopia do discurso. Como discurso da utopia, a poética surge sob a forma de um desejo do semlugar, o desejo de lugar nenhum: a possibilidade de fugir do mundo e de si mesmo em direção ao encontro com a própria sensibilidade – a recuperação das ambigüidades: quando as dobras do discurso já podem ser as dobras do mundo. A poética e a literatura não querem ser discursos da verdade: a verdade não é desejável; querem ser a ilusão vital – a ficção–, querem ser o texto que amamos; tanto, que o desejaríamos que fosse nossa própria linguagem54: nosso texto de prazer; utopia que descentraliza, o texto quer ser prazer, quer ser centrífugo. A utopia55 é a verdade do discurso poético, é o lugar-nenhum do encontro com Eros; é o mundo ausente de apartamentos, onde nos permitimos despir-nos de nossas próprias tiranias (que são sempre as piores possíveis – nossas amarras imorredouras). O discurso utópico inaugura o lugar – nenhum – onde a felicidade é possível: sensível às pontas dos dedos. Onde a imagem e o imaginário são confundidos, e onde a unidade deixa de ser mitológica (a linha que costura o real deformado nos vãos dos discursos), a virar um real constituído. A utopia poética é o corpo devolvido ao discurso: “é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu”56. Eis uma das irretocáveis entregas barthesianas ao sensualismo, a partir da linguagem. Inaugura-se, por uma espécie de metalinguagem, um sensualismo léxico. Reafirmada a divisão pendular existente entre sensualismo e racionalismo, adequando aquele a uma concepção erótica desde a utopia, traduzível como desejo do sem-lugar, desejo do sem-par no mundo. Desde a concepção barthesiana, a utopia é, pois, o lugar em que nossos corpos (lingüísticos) podem ser beijados com os olhos. O sem-lugar e o desejo de lugar-nenhum passa de excluído discursivo pela certeza científica a ser a condição de possibilidade do próprio imaginário. Daí poder-se falar que o dis51) Utilizo, aqui, a expressão poética querendo significar mais que apenas a poesia, ou a poética como epistême, o sensualismo do discurso: sua nudez reverberante: uma multiplicidade das falas sem-lugar. 52) BARTHES, Roland. Mitologias, p. 178. 53) Id., Ibid., p. 163. 54) Ver, a propósito, BARTHES, Roland. O prazer do texto. 55) E Barthes enuncia que “não pode haver utopia solipsista”. BARTHES, Roland. O Neutro, p. 88. 56) BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 24. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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curso é elemento capaz de trazer à tona o político, pela instituição da realidade da utopia. Eis o seu potencial de libertação: erótica, discursiva, corporal. O texto de prazer, o poema, a metáfora – que se pode entender como metalinguagem da própria utopia – querem que os amemos; não que nos amarremos. Amar é sempre um modo de liberdade desapegada – e de libertação. O discurso poético, por sua vez, ou uma concepção poética do discurso – e da hermenêutica, porque a interpretação sempre se revela discursiva – é o lugar do utópico (e do atópico) antes de tudo: é, como dissemos, sua própria metalinguagem. À margem do discurso científico, opaco, frígido, a poética constitui um discurso de prazer instituinte do mundo: é a contemplação serena de toda possibilidade. É uma fala revolucionária, no sentido que Barthes empresta a essa expressão57. O discurso com aptidão para excluir o mito, e a conservação de um mundo, como diz Barthes, não mais natural, mas agido58. A fala poética, assim como a literatura, desorganiza o mundo: obscurece a clareza eufórica da dogmática que tenta encetar uma realidade superficial, de formas, atribuições totalitárias de significados unívocos, um mundo sem complexidades. A poesia institui o discurso privilegiado da incerteza, da dúvida e da criatividade. A poesia é sempre revolucionária, nesse sentido, porque desconforta. A utopia poética é o lugar do político desmistificado, plural e imaginário. É o discurso propício: o precipício da fala. A origem e o fim da fala política, incômoda, inconformada. Reconhecer a ambigüidade do mundo, entretanto, parece ser insuficiente. Transgredir e, para além, criar e suspender essa ambigüidade pelo prazer e pelo discurso utópico da poesia, talvez possa ser útil. Se não for, será, ao menos, saboroso. O discurso poético é o ausente de amputações que a técnica jurídica tenta encetar: um discurso tão libertário que não quer encerrar o mundo: deseja passeá-lo, vivê-lo em suas possibilidades; deseja ir ao para além do texto, “como se a linguagem primeira da obra desenvolvesse nela outras palavras e lhe ensinasse a falar uma outra língua: é o que se chama sonhar”59. Por isso, Barthes diz que não haveria a possibilidade de um sentido denotativo do texto: a leitura, a escritura, a hermenêutica poética carregam-nos sempre a uma perturbação das certezas60, à impossibilidade do sentido verdadeiro, certo; conduz-nos, sempre, à conotação, ao sonho, ao imaginário. A poética é um discurso, um texto de prazer61 e, como tal, evoca uma leitura de inversão, uma leitura não mais sádica ou suicida do direito, mas sadiana62. Está para além da linguagem de estereótipos, das clivagens simuladoras das ambigüidades: o poema redescobre o que pode ser múltiplo. Dessa forma, uma concepção poética do discurso jurídico, uma leitura delicada do direito, acar57) BARTHES, Roland. Mitologias, p. 168. 58) Id., ibid., loc. cit.. 59) BARTHES, Roland. Crítica e verdade, p. 213. 60) Id., Ibid., p. 214. 61) BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 33. 62) Ver: BARTHES, Roland. Sade, Fourier e Loyola.

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reta uma subversão plena de sutilezas (avessa à ciência, diria Nietzsche63): aquela que não se interessa pela destruição, pela iconoclastia, mas pela procura do terceiro termo, do outro, não sintético ou dialético, mas excêntrico, inaudito, múltiplo, enfim, descoberto pelo poema. Visto isso, faz-se o momento de, poeticamente, trabalhar uma grande utopia: a possibilidade de se ensinar direito como literatura, de modo a despertar-nos uns aos outros para as possibilidades da leitura plena e do escrever como verbo intransitivo.

5 ENSINAR DIREITO COMO LITERATURA: OU MELHOR, VIVÊ-LO De tudo o que vimos, resta fazer algumas notas sobre a grande utopia pedagógica por-vir: a possibilidade de se ensinar direito como literatura. E é claro que a possibilidade é auto-destrutiva: literatura não se ensina. O que se pode, quem sabe, ensinar é tão-somente história da literatura, ou a do pensamento literário. Ocorre que a auto-destruição da hipótese demanda irmos além: se literatura não se ensina, o que fazemos, então, com a literatura? Sade, lido por Barthes, diria: gozamos64. A literatura somente pode ser vivida, e vivida nos interstícios das tiranias dos sujeitos que somos, e das imposições que fazemos uns aos outros, nossa hetero-tirania, se nos é permitido um neologismo. A literatura, como a escritura, necessita de suspensão, abolição, vazio – o Neutro em Barthes. Falar em uma pedagogia do direito sob um olhar literário é ressaltar que esse vazio só se consegue na vivência da contemplação do mundo e dos textos. Por isso, quem sabe, Gaston Bachelard afirmava enfaticamente: “O conhecimento poético do mundo precede, como convém, o conhecimento racional dos objetos. O mundo é belo antes de ser verdadeiro. O mundo é admirado antes de ser verificado”65. Então, o mundo é concebido primeiramente a partir de uma estética que por uma empiria. Esse é o sentido sensualista da vivência que propomos ao jurídico, a partir da literatura: o sensual, o erotismo; fazer amor com o mundo. Onde há amor, esquecemos a arrogância. Da suspensão de um conceito de vivência atrelada ao empirismo, poderemos falar sobre uma vivência do mundo pelos sentidos que não apenas os fisiológicos, porque mesmo a fisiologia sinestésica está implicada numa função. É no fora do instrumental do discurso que se pode viver o direito, amorosamente, como literatura. Com Bachelard, e sob a pele daquele seu pressuposto, não nos é defeso conceber “(...) uma filosofia que explica, como tentamos fazer, o real pelo imaginário”. O abandono que procedemos, deixando o real à míngua do imaginário, restabelece uma ligação desprezada, na qual o sonho explica o sonhador, o de63) F. W. Nietzsche, citado por BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 71: “Nós afirmamos a forma porque não aprendemos a sutileza de um movimento absoluto”. 64) A propósito, v. BARTHES, Roland. Sade, Fourier e Loyola. 65) BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos, p. 169. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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vaneio inventa a poesia e o discurso nos constitui e ao mundo que não está mais à nossa volta, pois vivendo a descoberta, já somos nós que nos encontramos às voltas com o mundo – figura alheia ao narcisismo. Essa vivência, como dissemos, deverá considerar as notas que fazíamos à leitura e à escritura. Lendo como amantes, viveremos como escritores, e não escreventes, no sentido que Barthes conferiu a essas noções. Abandonados ao texto, ao prazer que despertam, e fora de nós, poderemos ser, quem sabe, a mão que escreve, se desejarmos o texto ao passo em que queríamos tê-lo escrito. Só será possível, como quisera Bachelard, “colocar toda a vida em palavras”66 se pudermos, igualmente, reconhecer sob elas “uma imaginação que vive ou uma vida que imagina”67. A descoberta de um discurso de delicadeza, de todo modo, no direito e no ensino jurídico, significa a trajetória que percorremos entre os vãos de que é feita a alteridade, em todas as suas sedes. Essa ruptura que apazigua, prazerosamente, que dispensa o conflito, sem o evitar; enuncia, apenas: estamos tranqüilos; dizer (fazê-lo peremptoriamente) já não é necessário. O último significado é apenas um capricho, um apego, da doxa, e deve ser entendido como tal. Para além disso, há a mobilidade do querer, esse jogo que jogamos com o erotismo e nossas expectativas, nessa descoberta. É nesse sentido que Barthes, aliás, enuncia a possibilidade de um princípio da delicadeza: (...) o princípio de delicadeza: um gozo da análise, uma operação verbal que contraria a expectativa (...) e leva a entender que a delicadeza é uma perversão que joga com a minúcia inútil (não funcional): a análise produz coisas miúdas (um sentido possível de “delicado”, mas etimologia duvidosa), e esse recorte e esse desvio são gozosos à seria possível dizer: gozo do “fútil” (< lat. fundo – que se derrama, que nada segura).68

Justamente, é no Neutro barthesiano que há delicadeza – um Neutro que não significa o mesmo neutro a que somos acostumados a adorar ou desprezar pela doxa, que não passa do Neutro significante do nulo. O Neutro em Barthes, como dissemos, é tudo o que burla o paradigma69. Como o próprio semiólogo admite, o Neutro não é bem visto pela doxa, mas devemos ultrapassar a pré-compreensão de que o neutro é o passivo, o distante ou o indiferente. O Neutro, fora da doxa, é pluralidade, presença da aventura, “prática sutil da boa-distância”70, e não ausência. Por ser esse elemento que nos burla, que suspende o conflito como sentido – para que serve o conflito senão para dominar ou ser dominado?71 –, o Neutro barthe66) Id., ibid., p. 38. 67) Id., ibid., p. 82. 68) BARTHES, Roland. O Neutro, p. 66. 69) A propósito, Barthes, sobre o Neutro: “O melhor Neutro não é o nulo, é o plural”. Id., ibid., p. 247. 70) Id., ibid., p. 302. 71) Id., ibid., p. 264.

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siano sustenta a possibilidade de um princípio de delicadeza no discurso jurídico. O Neutro, ademais, pode ser espaço visto no contexto da literatura, pois ela representa, justamente, a abolição do sentido dos discursos de arrogância. A propósito, Barthes desenvolve suas postulações sobre o Neutro evidentemente a partir da literatura, da poesia, do haicai – forma oriental, concisa, que, representando a tranqüilidade e o desapegamento do Neutro72, ainda conserva, para Barthes, uma dobra sensual muito peculiar. Dessa maneira, o olhar literário sobre o direito confunde-se, de certo modo, no espaço do neutro barthesiano com esse mesmo espaço. Daí que ensinar direito como literatura, ou melhor, vivê-lo como literatura, importa conceber o Neutro diferentemente do modo pelo qual o faz a doxa, pois é o Neutro o espaço privilegiado da literatura, da leitura plena, da escritura e do abandono ao prazer do texto – ruptura inalienável. Dito isso, é tempo de encaminharmos o desfecho desse texto, que está longe de ser definitivo; assim, ele se dará como se fosse um piscar de olhos: cerramos para, em seguida, abrir de novo, e ver mais claro, e ver de novo, sem querer apegar-se a descobrir por último.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: FRAGMENTOS PARA UM DISCURSO DA DELICADEZA NO DIREITO Aproveitando a metáfora, é mesmo assim: essas considerações finais apenas são um piscar de olhos – intervalo necessário. Não tivemos a pretensão, e advertimos desde o início, de concluir nada peremptoriamente, e não o faremos aqui. O plural se oferece às vistas do leitor, basta abrir os olhos. Chamem de perspectiva, de panorama; chamem de idéia, de loucura: a delicadeza, mesmo ausente, constitui o sistema jurídico, seus valores discursivos, nem que seja pela negativa – onde não há delicadeza, subsiste o poder, as oposições, as falas terminais, a censura das linguagens. A poética, a utopia do discurso, o discurso do sem-lugar, também se oferecem como momentos em que o sentido do real é multiplicado, porque podemos abandonar sua univocidade impositiva. Já não há um real, mas muitas, infinitas, possibilidades de real. São essas utopias caminhantes, como gostaria Eduardo Galeano, que pelo discurso são capazes de constituir o real. Possibilidades que são, em verdade, potências: discursivas, ficcionais, fáticas. A distância entre real e literatura depende muito de sob que signos somos capazes de ler a possibilidade. Se a lemos como realidade desprezada, acedemos ao sentido unívoco. Se, de outro modo, lemos a possibilidade (literária) com olhos de amantes de textos, desejamos o sem-lugar até que se torne um lugar possível. Estruturamos sobre nossas fantasias os universos que desejamos. Desejos que são vividos contíguos, nós e os outros – também aí há uma grande parcela de erotismo, nessa ruptura que a alteridade provoca no uno cansado de ser um só. 72) Id., Ibid., p. 28. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Vimos que o Neutro, como espaço de burla, assume significâncias delicadas, suspensivas, tranqüilas – por isso não é bem aceito pela doxa, que deseja o conflito afirmador dos signos de poder: a palavra que domina. A existência já pode ser perpassada por uma poética de se viver, de descobrirse como vivo: a partir de então, somos viventes, não sobreviventes escapados ao poder. Na educação, o Neutro possibilita que vivamos juntos nossa idiorritmia. Idiorritmia, em Barthes, é quando podemos perscutar e viver a nossa própria polifonia, nosso ritmo próprio, momento em que já não somos mais a criança correndo para alcançar os passos do pai – muito mais largos. O poder é aquela disritmia que sofre a criança que anda na companhia do pai73 – uma heterorritmia, signo de poder.

A valorização da idiorritmia74 também só pode se estabelecer no Neutro, como forma do Eros do viver-junto barthesiano. Nesse sentido, sua grande implicação dá-se, também, no campo do ensino jurídico. Se é necessário que mestres (pais, mães) nos encaminhem os primeiros passos, é mais valoroso que se desapeguem de nos conduzir pelo resto de nossas vidas; que valorizem nossa idiorritmia. Uma filosofia do imaginário assentada sobre um princípio de delicadeza faz reverberarem outras questões e devaneios mesmo existenciais, considerados sob outro olhar: como se para um astrônomo no peito do qual o sonho se acomoda, ser ou não ser já não fosse um problema; ele já possuiria uma outra dúvida, na qual seu mundo, ao mesmo tempo, se inaugura e o encerra. Passa a ser essa, a questão: para mim, estar ou estrela, então? 7 REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _____. A poética do devaneio devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006. _____. A poética do espaço. Trad.: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins fontes, 1989. _____. A psicanálise do fogo fogo. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças.Trad.: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _____. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Trad.: Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 73) BARTHES, Roland. Como viver junto, p. 19 74) Nota que merece ser feita, acerca de um exemplo drástico de idiorritmia, que clarifica a idéia: a cena inicial de Salsa. Nela, há uma audição de piano. Aluno após aluno, sucedem-se executando mais ou menos decentemente algumas peças clássicas. Até que o protagonista, em cena, começa a execução de sua peça, determinada pelo professor, perfeitamente. Em poucos segundos, Rémi Bonnet (o protagonista) abandona Chopin e desanda a tocar salsa, decepcionando os julgadores e parte da platéia, que sai do teatro indignada, enquanto outra parte, simplesmente, dança. Aos poucos, o jovem parisiense aprende a dançar salsa como um verdadeiro cubano e apaixona-se por Nathalie – alegoria fantástica da idiorritmia em Barthes. SALSA. Direção de Joyce Sherman Buñuel. Produção de Aïssa Djabri, Farid Lahouassa e Manuel Munz. França: UIP, 1999. DVD (95 min.): DVD, son., color..

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Hermenêutica jurídica e direitos humanos sociais do trabalhador

Rubia Zanotelli de Alvarenga Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Finac-ES e de Direito Previdenciário da Pio XII-ES; Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho do curso de Pós Graduação da Fadivale-MG; Mestranda em Direito do Trabalho pela PUC-MG.

No mundo do direito, resiste-se contra a violação da lei, e, às vezes, contra a própria lei, violadora do justo. Mas, no mesmo mundo do direito e com igual freqüência, os homens se submetem, ora à lei violada, ora à justiça esquecida.1

1 A IMPORTÂNCIA DA INTERPRETAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO A interpretação consiste em ferramenta indispensável à boa compreensão da norma que compõe o ordenamento jurídico, visando, sobretudo, a resguardar os preceitos da democracia social, ao levar em conta as condições sociais no momento da aplicação da norma, por meio de recursos aos métodos interpretativos. E os direitos sociais do trabalhador se destinam a garantir o devido amparo e proteção social àqueles que não dispõem dos recursos necessários para viver dignamente. Neste trabalho, procura-se desenvolver raciocínio a fim de demonstrar a importância de uma interpretação no Direito do Trabalho em conformidade com a realidade social brasileira. No direito, para alcançar os anseios de um povo, deve-se interpretar a lei de forma que gere a justiça social desejada. Destarte, a atualidade sociojurídica aponta a inefetividade das normas fundamentais do trabalho, a crise da justiça social, a morosidade, o problema de acesso à justiça e a não-implementação dos direitos sociais, etc. E todos esses 1) VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 24. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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fatores se expressam pela absoluta falta de função social do Direito, ou seja, pelo cotejo entre o texto constitucional e o contexto social.2 Nesse caminhar, necessário trazer à baila o pensamento de Carlos Maximiliano: É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, faz-se mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.3

O papel do intérprete contemporâneo deve consistir em um trabalho construtivo de natureza teleológica, calcado no cotejo da norma com os princípios do Direito do Trabalho, aptos a valorar e a desenvolver a realização dos Direitos Humanos sociais do trabalhador na seara juslaboral. Assim, a interpretação no Direito do Trabalho consiste em reconstruir o conteúdo da norma de Direito Social, em nome da efetividade dos Direitos Humanos, pois, à medida que a lei se afasta de sua finalidade, ela perde seu compromisso com o bem comum. O intérprete deve estar atento aos princípios constitucionais do Direito do Trabalho por meio de um processo hermenêutico-interpretativo que coadune pelo comprometimento dos Direitos Fundamentais sociais do trabalhador. O intuito das diversas formas de interpretação é o de buscar a implementação dos Direitos Humanos no Direito do Trabalho, tendo como escopo a busca legítima da aplicação da lei e de uma interpretação que compatibilize a norma com a realidade social brasileira. Os Direitos Humanos sociais do trabalhador foram entronizados na Constituição Federal de 1988 para receberem o status de direitos essenciais do homem, ligados à vida digna por intermédio do exercício do trabalho, por estarem intrinsecamente relacionados com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana no Direito do Trabalho brasileiro. Convém, ainda, mencionar o princípio de interpretação jurídica da norma mais favorável (também compreendido na expressão in dúbio pro operario), que determina que o intérprete deve escolher, entre as várias formulações possíveis para um mesmo enunciado normativo ou diante de várias interpretações que comporta uma norma, aquela que melhor atenda à função social do Direito do Trabalho. Assim protegerá aquele que dependa das políticas sociais para a sua subsistência. Ana Virginia Moreira Gomes, em sua obra A aplicação do princípio protetor no Direito do Trabalho, explana com mestria o significado do princípio em tela: 2) Assevera Lenio Luiz Streck de que é preciso dar um sentido de Constituição que exsurge da proposta civilizatória do Estado Democrático de Direito, calcado na realização dos direitos fundamentais e da função social do direito. A respeito, consultar o artigo doutrinário A hermenêutica e a tarefa da construção de uma nova crítica do direito a partir da ontologia fundamental. Revista Filosofia Unisinos, v. 3, n. 4, Jan/Jun, 2002. p. 110. 3) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 1.

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A regra in dubio pro operario constitui um critério de interpretação jurídica, conforme o qual, diante de mais de um sentido possível e razoável para a norma, o aplicador do Direito deve escolher o que seja condizente com o abrandamento da desigualdade material que caracteriza a relação de emprego. Como dimensão do princípio protetor, é um instrumento através do qual este manifesta sua função interpretativa.4

A autora salienta ainda: “sendo a regra do in dúbio pro operario uma expressão do princípio protetor, a finalidade que se busca é a melhoria das condições de trabalho do empregado, devendo ser aplicada a norma no sentido que mais satisfaça a esse fim”.5 Convém repisar que a função normativa própria dos princípios possui o condão de invalidar toda lei que com eles seja incompatível. Por isso, eles solucionam problemas interpretativos em situações imprecisas e buscam melhor concretização dos direitos sociais do trabalhador. Nesse contexto, os Direitos Humanos sociais do trabalhador estão resguardados como cláusulas de imutabilidade e, dessa maneira, absolutamente inaptos à renunciabilidade pelo trabalhador. As cláusulas pétreas garantem a proteção ao patamar mínimo civilizatório6 com que o Direito do Trabalho brasileiro se sustenta na ordem justrabalhista brasileira. Destarte, “além de assegurarem a identidade da Constituição, podem ser elas próprias consideradas parte integrante desta identidade”.7 Maurício Godinho Delgado, em sua célebre obra Curso de Direito do Trabalho, ensina: No caso brasileiro, esse patamar civilizatório mínimo está dado, essencialmente, por três grupos convergentes de normas trabalhistas heterônomas: as normas constitucionais em geral; as normas de tratados e convenções internacionais vigorante no plano interno brasileiro (referidas pelo art. 5, § 2, CF/88, já expressando um patamar civilizatório no próprio mundo ocidental em que se integra o Brasil); as normas legais infraconstitucionais que asseguram patamares de cidadania ao indivíduo que labora (preceitos relativos à saúde e segurança no trabalho, normas concernentes a bases salariais mínimas, normas de identificação profissional, dispositivos antidiscriminatórios, etc.).8

Nessa linha de pensamento preceitua Gomes Canotilho 4) GOMES, Ana Virginia Moreira. A aplicação do princípio protetor no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001. p. 47. 5) GOMES, Ana Virginia Moreira. A aplicação do princípio protetor no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001. p. 47. 6) A expressão é apresentada por Maurício Godinho Delgado em sua obra Curso de Direito do Trabalho, editora LTr, p. 1.322, ao tratar do princípio da adequação setorial negociada, como um dos princípios especiais do ramo do Direito Coletivo do Trabalho. 7) SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 422. 8) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2007. p. 1.323. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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O número essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado. 9

Dessa forma, não podemos deixar de salientar a passagem que se constitui um verdadeiro postulado, da lavra de Mauricio Godinho Delgado, de que “o papel decisivo dos princípios no Direito do Trabalho advém do caráter essencialmente teleológico, finalístico, desse ramo jurídico especializado”.10 O intérprete não pode ignorar a realidade social e os valores que engendrariam a atividade judicial e jurisdicional de maior justiça e solidez. A solução contida na lei não é plena, sendo forçoso se recorrer a outras fontes e perseguir o chamado direito justo. A legislação deve compreender um reflexo da realidade e das necessidades de uma sociedade, pois, com o decorrer do tempo, surgem mudanças sociais que devem ser abraçadas pelo legislador. Errôneas, assim, são a análise e a aplicação unitária e isolada de um artigo da lei que contrarie um Direito Fundamental do trabalhador que visa às necessidades humanas reais na sociedade capitalista contemporânea. Exige-se do intérprete e aplicador do Direito uma interpretação condizente com a totalidade do sistema existente. Para suprir tais lacunas, ou melhor, para atender ao objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, que consiste na erradicação da pobreza, é que o Poder Judiciário, valendo-se do uso da hermenêutica, deve adentrar na interpretação conforme os ditames da justiça social e a plenitude dos fins sociais da norma. No esteio de Raimundo Bezerra Falcão, O intérprete não pode esquecer que determinadas normas, ainda quando válidas e vigentes são, às vezes, tão monstruosamente injustas e lesivas ao próprio sentimento de humanidade que se faz aconselhável interpretá-las atenuadamente, quando não seja pura e simplesmente o caso de as interpretar mais com base nos princípios que na letra da lei expressa.11

Nesse sentido, deve o intérprete rejeitar a interpretação que confronte com os princípios fundamentais da ordem jurídica democrática brasileira, consubstanciados nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal de 1988. A interpretação, como adequação da norma ao fato concreto, pode mudar, de forma significativa a realidade social, pela prevalência dos Direitos Humanos no Direi9) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 edição. Coimbra: Livraria Almedina. p. 450. 10) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 197. 11) FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 246.

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to do Trabalho brasileiro. Por isso, é inadmissível confundir-se o direito com a lei. Conforme expõe Michel Temer, [...] a interpretação de uma norma constitucional levará em conta todo o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios que foram valorizados pelo constituinte. Também não se pode deixar de verificar qual o sentido que o constituinte atribuiu às palavras do Texto Constitucional, perquirição que só é possível pelo exame do todo normativo, após a correta apreensão da principiologia que ampara aquela palavra.12

Verifica-se, desde logo, que os princípios são de suma importância para o atendimento dos Direitos Humanos sociais do trabalhador, pois exigem do intérprete grande sensibilidade para que capte a essência do ramo juslaboral. Nesse sentido, ao se tratar da busca do sentido normativo juslaboral, devem-se buscar os princípios do Direito do Trabalho que se relacionam com a questão, que são o núcleo de todo o universo juslaboral e que, por isso, devem ser sopesados na medida das necessidades de aplicação do caso concreto. O Direito do Trabalho deve ser interpretado e aplicado de modo consentâneo com o princípio constitucional fundamental da dignidade humana. Destarte, cumpre ao intérprete e aplicador do Direito do Trabalho a adaptabilidade da norma pela via interpretativa, da correção das desigualdades socioeconômicas que imperam ante o processo econômico neoliberal de desvalorização do ser humano em relação ao poder econômico nacional e internacional, pois o que estamos presenciando no Brasil de hoje são verdadeiras tentativas de fraude à Constituição e aos Direitos Humanos sociais do trabalhador, posto que configurem uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito. Conforme ensina Plauto Faraco de Azevedo, O jurista, visto como técnico a serviço de uma ordem jurídica dita neutra, em verdade é formado para ser o ordenador do poder instituído, seja ele qual for. Preparado para nada contestar, torna-se incapaz de colaborar de modo efetivo na construção da democracia, que passa necessariamente pelo adequado encaminhamento dos problemas suscitados pela justiça distributiva, reclamando agentes de pensamento aberto, habituados ao confronto e discussão de idéias contrárias, capazes de compreender o presente e planejar o futuro.13

É preciso estar atento, pois a Constituição Federal de 1988 constitui o diploma supremo nacional do Estado e ela menciona como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o respeito à dignidade da pessoa humana. Conforme aponta Clémerson Merlin Clève, 12) TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 67. 13) AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do Direito e Contexto Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 66. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Os direitos fundamentais sociais devem ser compreendidos por uma dogmática constitucional singular, emancipatória, marcada pelo compromisso com a dignidade da pessoa humana e, pois, com a plena efetividade dos comandos constitucionais. Ou seja, uma nova configuração dos direitos fundamentais, especialmente dos apontados como sociais, exige uma renovada abordagem doutrinária para dar conta de sua eloqüente significação.14

Ao tratar do significado da interpretação no Direito, ensina com vivacidade Lenio Luiz Strek que “não é a interpretação que conduz a alguma coisa, mas antes, é a compreensão que atua como condição de possibilidade desse ato interpretativo [...]”15. O autor, ainda, ressalta que “é preciso, pois, desocultar os pré-juízos advindos do pensamento dogmático do Direito que velam e condicionam a interpretação do direito [...]”.16 Nesse sentido, elucidativo é o estudo proposto por Maurício Godinho Delgado, na obra clássica Curso de Direito do Trabalho, sobre interpretação, integração e aplicação no Direito do Trabalho. Com a mestria que lhe é peculiar, conceitua a interpretação como um “processo analítico de compreensão e determinação do sentido e extensão da norma jurídica enfocada”. 17 Vaticina o professor que a interpretação consiste em um “processo intelectual mediante o qual se busca compreender e desvelar um determinado fenômeno ou realidade de natureza ideal ou fática. É, portanto, uma dinâmica de caráter intelectual voltada a assegurar a seu agente uma aproximação e conhecimento da realidade circundante”.18 Elucidativo, ainda, é o entendimento de Maurício Godinho Delgado ao tratar da distinção entre hermenêutica e interpretação. Ensina o autor que a hermenêutica traduz “o conjunto de princípios, teorias e métodos que buscam informar o processo de compreensão e reprodução intelectual do Direito”19, ao passo que a interpretação traduz, no Direito, “a compreensão e reprodução intelectual de uma dada realidade conceitual ou normativa”20. 14) CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 14, janeiro-Março, 2006, n. 54, Editora Revista dos Tribunais, p. 30. 15) Esclarece, ainda, o autor que não foram criadas as condições propiciadoras da abertura necessária e suficiente para a manifestação do ser da Constituição (e de seus desdobramentos jurídico-políticos, como a igualdade, a redução da pobreza, a função social da propriedade, o direito à saúde, o respeito aos direitos humanos fundamentais, etc.). Por isso , o jurista encontra-se em face do seguinte dilema: como pode o ente constituição vir à presença do agir-cotidiano-dos-juristas e nela permanecer? A respeito disso, consultar o artigo doutrinário Hermenêutica Jurídica: compreendemos porque interpretamos ou interpretamos porque compreendemos. Revista Estudos Jurídicos, v. 37, n. 101, Set/Dez, 2004. p. 37. 16) STRECK, Lenio Luiz, A hermenêutica e a tarefa da construção de uma nova crítica do direito a partir da ontologia fundamental. Revista Filosofia Unisinos, v. 3, n. 4, 2002, p. 123. 17) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 222. 18) Ensina o professor Maurício Godinho Delgado que toda cultura humana, todo conhecimento, resulta de um processo de interpretação. Os diversos tipos de saber, ou melhor, os diversos graus de saber, resultam, de forma coerente, de processos próprios de interpretação. Consultar a obra Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 223. 19) DELGADO, Maurício Godinho Delgado. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 224. 20) Idem, p. 224.

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Nesse sentido, “a interpretação é, em síntese, um processo, enquanto a hermenêutica é a ciência voltada a estudar o referido processo, lançando-se princípios, teorias e métodos de concretização”.21 Cabe, ainda, a análise de Reis Friede, ao ressaltar que [...] interpretação não se confunde com o de hermenêutica, pois a interpretação é, em essência, mera aplicação da hermenêutica, uma vez que somente descobre e fixa os princípios que regem a última. A hermenêutica pode ser, portanto, entendida como a verdadeira teoria científica da denominada arte da interpretação.22

Nesse caminhar, é importante pontuar o papel da interpretação no instante de elaboração da norma jurídica (fase pré-jurídica) e, em seguida, no momento da compreensão da norma já elaborada no contexto interpretativo (fase jurídica propriamente). A fase de construção da norma é destinada ao Poder legislativo, isto é, no momento político em que se elaboram as normas jurídicas. Nessa fase, cabe à atividade legiferante criar normas justrabalhistas em sintonia com os princípios do Direito do Trabalho e com os valores sociais que fundamentam a existência do Estado Democrático de Direito. Na fase do Direito construído, cabe ao intérprete e aplicador do Direito do Trabalho, no contexto sistemático e universal do fenômeno do Direito vigente, a compreensão dos significados e sentidos das normas que compõem o ordenamento jurídico, sempre de modo mais favorável ao trabalhador. Segundo Ana Virgínia Moreira Gomes, o princípio da norma mais favorável [...] tem como base o princípio protetor, ou seja, a possibilidade da intervenção direta do Estado nas relações de trabalho, assegurando assim a diminuição da desigualdade material entre as partes; da mesma forma pela qual este princípio é fundamentando pela busca da dignidade humana e da realização do trabalho como valor social e não apenas econômico [...].23

Nesse diapasão, o princípio da norma mais favorável, insculpido no caput do art. 7º da Constituição Federal de 1988, busca elaborar um nível mínimo de direitos sociais para desempenho do trabalho que somente pode ser ampliativo.24 21) Idem, p. 224. Cabe mencionar aqui a exposição de Maurício Godinho Delgado sobre os principais métodos interpretação do direito. Segundo o autor, diante dos principais métodos de exegese do direito, a hermenêutica jurídica recomenda que se harmonizem, na operação interpretativa, os métodos lógico-sistemático e teleológico. Expõe o autor que não há pesquisar o pensamento contido na lei sem a análise conjunta e unitária dessas três formas interpretativas. Nesse sentido, consultar a obra Curso de Direito do Trabalho, editora LTr, 2007. p. 235. 22) FRIEDE, Reis. Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 154. 23) GOMES, Ana Virgínia Moreira. A Aplicação do Princípio Protetor no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001. p. 57. 24) GOMES, Ana Virgínia Moreira. A Aplicação do Princípio Protetor no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001. p. 58. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Além disso, o presente princípio dispõe que o aplicador do Direito do Trabalho deve optar pela regra mais favorável ao empregado em três situações distintas: no momento de elaboração da regra jurídica, no instante de confronto entre regras concorrentes e no contexto de interpretação das regras jurídicas.25 Segundo a síntese magistral de Maurício Godinho Delgado, no processo de aplicação e interpretação do direito, o operador jurídico, situado perante um quadro de conflito de regras ou de interpretações consistentes a seu respeito, deverá escolher aquela mais favorável ao trabalhador, a que melhor realize o sentido teleológico essencial do Direito do Trabalho.26

Carlos Maximiliano (1994, p.5) ressalta, ainda, que “não basta conhecer as regras aplicáveis para determinar o sentido e o alcance dos textos. Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao estudo, em um encadeamento lógico”. Ora, o Direito deve acompanhar as mutações sociais. Não raro, o ordenamento justrabalhista é acusado de estar descompassado e obsoleto em face da realidade social, inapto a atender aos clamores da justiça social na órbita jurídica nacional. O hermeneuta deve, portanto, mediante sua atividade, enriquecer a interpretação de modo que forneça à norma a força de sentido de acordo com a principiologia que resguarda o Direito do Trabalho. Cabe ao intérprete a atividade de renovação e integração das normas, ressaltando a importância dos Direitos Humanos no Direito do Trabalho. Cabe ao jurista, na lição de Clèmerson Merlin Clève, adaptar o direito às exigências da sociedade contemporânea, fazendo uso, para tanto, das mais variadas técnicas ou métodos de interpretação. Cabe especialmente ao jurista ampliar, a partir da prática jurídica cotidiana, os espaços democráticos do direito dominante, facilitando a emergência de um direito libertário e protetor da dignidade do homem.27

Conforme expõe Carlos Maximiliano, o intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita. Esta é a estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito.28

Mais uma vez, inadiável é a criação de um Direito como instrumento de 25) Na fase pré-jurídica, o princípio da norma mais favorável age como critério de política legislativa, influindo no processo de construção do Direito do Trabalho. Na fase jurídica, o princípio em tela, atua como critério de hierarquia e interpretação de regras jurídicas. 26) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 200. 27) CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito e os Direitos: Elementos para uma crítica do Direito Contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 204. 28) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 12.

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luta, para reforçar o caráter democrático do Direito do Trabalho brasileiro. Dessa maneira, espera-se que a concepção de justiça se expanda a fim de moldar os Direitos Humanos no Direito do Trabalho, pois esse é o momento de se restabelecer a luta pelos Direitos Humanos sociais do trabalhador. Conforme é notória, a questão é desafiante no Direito do Trabalho. Somente pela constituição sistemática da norma, por intermédio da adaptação da lei ao fim social almejado, é que poderá alcançar a verdadeira justiça social. Temos uma sociedade que clama pela aplicação dos direitos sociais no Direito do Trabalho. Inolvidável a emergência de um novo Direito, isso realmente é necessário. Ora, o Direito do Trabalho surgiu para exaltar a dignidade da pessoa humana do trabalhador e como fonte de melhoramento da condição humana. Toda a humanidade necessita dos benefícios do trabalho regulado, do qual é mantida continuamente a vida humana. É o trabalho regulado e digno que integra o homem na sociedade e contribui para a plena realização da personalidade do ser humano. Ora, esse direito à vida requer, como conseqüência imediata, que o homem disponha dos meios necessários à sua subsistência. O homem é responsável pelo mundo em que nasce e o trabalho digno é sua condição de evolução.

2 HERMENÊUTICA JURÍDICA E DIREITOS HUMANOS SOCIAIS DO TRABALHADOR Há um descompasso freqüente entre a ordem justrabalhista e a realidade social. A presente reflexão visa a apontar a necessidade de maior aprofundamento da exegese no ramo juslaboral, ante o discurso liberal individualista que impera no Direito do Trabalho brasileiro. O que se faz aqui é ampliar a perspectiva hermenêutica nos Direitos Humanos sociais do trabalhador, esboçando uma abordagem global do Direito, sob o aspecto da dialética no ramo juslaboral. Conforme esclarece Lenio Luiz Streck, “não houve ainda, no plano hermenêutico, a devida filtragem em face da emergência de um novo modo de produção de Direito representado pelo Estado Democrático de Direito”. 29 Nessa senda, é relevante frisar que a hermenêutica jurídica se refere a todo processo de interpretação e aplicação da norma que implique a compreensão total do fenômeno jurídico. É de crucial importância, nesse momento políticohistórico, identificar a contribuição da moderna hermenêutica jurídica para o Direito do Trabalho Brasileiro, pois a interpretação justrabalhista deve ser feita ao aspecto do Direito como instrumento de transformação social. Conforme expõe Jorge Luiz Souto Maior, “os direitos sociais foram fixados a partir de noções principiológicas e é esta compreensão de poder e de responsabilidade que se exige dos homens do direito”. 30 29) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica em crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 33. 30) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de Emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 43. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Urge adaptar o Direito aos interesses sociais da sociedade contemporânea, pois é a justiça que irá gerar igual tratamento material aos cidadãos na vida social. Nesse caminhar, será o uso da exegese o instrumento para a correta aplicação do Direito, por permitir a delimitação do sentido e a extensão da norma enfocada. Em consonância com essa postura, enfatiza Ana Virgínia Moreira Gomes: “a aplicação do direito é dinâmica, os fatos nunca se dobram às normas; assim uma regra nova ou um caso com elementos diferentes dos usuais desafiam interpretações consolidadas”.31 Com efeito, o presente debate procura verificar a contribuição do labor interpretativo na aplicabilidade dos Direitos Humanos sociais do trabalhador no Direito do Trabalho brasileiro, pois é a hermenêutica uma importante ferramenta de importação dos Direitos Humanos para o Direito do Trabalho. Nesse sentido, a interpretação e a aplicação no Direito do Trabalho devem levar em consideração a realidade social do Brasil e os postulados constitucionais fundamentais encarnados na Constituição Federal de 1988. O Direito deve ser direcionado de maneira que propicie aos componentes da sociedade uma apropriada distribuição dos Direitos Humanos sociais a todos os cidadãos. Nessa perspectiva, tal modalidade exegética se presta ao processo de aplicação da norma jurídica levado a cabo pelo aplicador do Direito. Sob esse aspecto, a concepção da hermenêutica como interpretação da norma, no momento pré-jurídico e na fase jurídica propriamente, deve ser de um importante mecanismo de efetivação dos Direitos Humanos no Direito do Trabalho. 32 É a exegese que aproxima o Direito da Justiça, por isso “não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos”. 33 Dessa maneira, é imprescindível discutir a lei, observar qual o justo a ser aplicado e não aplicá-la quando em conflito com a finalidade social colimada para o Direito do Trabalho. Ora, é sabido que, em virtude do atual contexto econômico e político, o Direito do Trabalho, em especial, a relação de emprego, enfrenta uma crise sem precedentes, em virtude do modelo econômico neoliberal. Observam-se, na atualidade, propostas legislativas que concernem no desvirtuamento da função essencial do ramo justrabalhista. É ponto ilustrativo as seguintes hipóteses de flexibilização autorizadas pela legislação, se não vejamos: 31) GOMES, Ana Virgínia Moreira. A aplicação do princípio protetor no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001. p. 46. 32) Para um estudo mais aprofundado sobre interpretação, integração e aplicação do Direito do Trabalho, consultar a obra Curso de Direito do Trabalho, editora LTr, do professor Maurício Godinho Delgado, capítulo VII. Ressalta o autor que a interpretação atua em dois momentos fundamentais do fenômeno jurídico, no instante de elaboração da norma de direito e no instante da compreensão do sentido e extensão da norma já elaborada. O primeiro instante caracteriza-se pela gestão e concretização em norma jurídica de ideários e propostas de conduta e de organização fixadas socialmente. Já o segundo instante caracteriza-se pela apreensão do sentido e extensão da norma definitivamente elaborada, para sua aplicação ao caso concreto. 33) THOREAU, Henry David. A desobediência civil e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.35.

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a) A contratação por prazo determinado, o aumento das hipóteses de contrato determinado, com a alteração ocorrida no art. 443 da CLT, através do Decreto-Lei n. 229/67 que acrescentou o § 2; b) O contrato provisório para estímulo a novos empregos (lei n. 9.601/98). A Lei 9.601, de 21.01.98, além de agregar na legislação laboral a nova modalidade contratual, denominada como contrato de trabalho por prazo determinado, também foi responsável pelo denominado “banco de horas”, quando estabelece uma nova redação para o artigo 59 da CLT e institui a compensação do horário de trabalho em período máximo de 120 (cento e vinte dias), de maneira a se proceder a uma espécie de compensação quadrimestral. c) A utilização de trabalhadores temporários, na forma da Lei n. 6.019/74; d) A liberdade de o empregador em despedir imotivadamente o empregado com a criação do regime do FGTS (antiga lei n. 5.107/66) e atual lei n. 8.036/ 90 e extinção do regime anterior preconizado nos arts. 478 e 492 da CLT e) Quebra do princípio da irredutibilidade salarial, através do art. 7, inciso IV da CF/88 e do art. 58-A da CLT f) Flexibilização das jornadas de trabalho, por intermédio do art. 7, inciso XIII da CF/88 e do art. 59, § 2 da CLT que criou o banco de horas g) Ampliação da jornada de seis horas para os turnos ininterruptos de revezamento quando autorizada por negociação coletiva (art. 7, XIV CF/88); h) A possibilidade, mediante acordo entre as partes e desde que notificado o sindicato, da habitação do rural não ter natureza salarial (art. 9, § 5 da Lei n. 5.889/73) i) Trabalho por tempo parcial que autoriza a redução proporcional dos salários (art. 58-A CLT) j) A ampliação das hipóteses de terceirização, pelo enunciado 331 do TST k) Possibilidade de adesão ao programa de alimentação do trabalhador afastando a natureza salarial da alimentação in natura ou equivalente, fornecida pelo empregador (Lei n. 6.321/76) l) Suspensão do contrato de trabalho para redução de curso (art. 476-A CLT) m) O trabalho em domicílio (art. 6 CLT) n) Lei das microempresas autorizando benefícios burocráticos trabalhistas, como isenção do controle de ponto, de livro de inspeção, de contratação obrigatória de aprendizes, descaracterização das horas in itinere o) Ampliação das hipóteses de descontos salariais, que autoriza desconto no salário e nas parcelas da rescisão, mediante adesão voluntária e irretratável, para fins de empréstimo, financiamento e operações de arrendamento mercantins concedidos por instituições financeiras e outras mencionas na lei, desde que não ultrapassem 30% da remuneração do empregado p)Inclusão do trabalhador rural no inciso XXIX do art. 7 da CF/88 através da EC 28/00, estendendo a prescrição parcial rural q) A limitação do valor do crédito trabalhista a 15 salários mínimos para fins do art. 449, § 1 da CLT, isto é, limitação para fins de crédito privilegiado na falência (art. 83, I da Lei n. 11.101/05) RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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r) Redução do percentual do FGTS para os aprendizes e exclusão das hipóteses previstas nos arts. 479 e 480 da CLT, bem como aumento da idade para 24 anos (lei 11.180/05) s) A criação das comissões de conciliação prévia (art. 625-E CLT) Como se não bastasse, ainda encontramos, no plano social, a existência de trabalho escravo, a exploração do trabalho infantil, cooperativas fraudulentas, o descumprimento de regras primárias acerca da jornada de trabalho, enfim, uma série de irregularidades que violam os Direitos Humanos do trabalhador. Feitas tais considerações, é preciso reconhecer que, na medida em que a norma fundamental justrabalhista se afasta de sua finalidade social original, ela perde o compromisso de conferir o bem-estar social à coletividade. A busca da Justiça deve- se pôr como um fim da ordem social e, se ela não é justa, significa que não deve ser aplicada, de forma que se aproxime o mais possível do ideal de justiça social, para atender às classes sociais economicamente desfavorecidas no mercado de trabalho brasileiro. A hermenêutica jurídica dos Direitos Humanos Sociais do trabalhador se realiza para a promoção da máxima realização constitucional da dignidade humana do trabalhador. Diante dessa perspectiva, o Direito do Trabalho precisa eleger a hermenêutica, como instrumento de combate à flexibilização dos direitos sociais do trabalhador, para recuperar dos setores da população brasileira, grupos sociais que se encontram desprotegidos pela relação de emprego, no anseio concreto de almejar os princípios fundamentais do Direito do Trabalho como pilares para o processo de reconstrução do direito social ao pleno emprego, pois a miséria do povo se torna cada vez mais dolorosa e a inexistência de estabilidade no emprego enfraquece o verdadeiro ideal de distribuição de renda no sistema democrático brasileiro. Como ensina Lenio Luiz Streck, a “linguagem não é um mero fato, e, sim, princípio no qual descansa a universalidade da dimensão hermenêutica”. 34 Nesse panorama, torna-se necessário compensar as desigualdades existentes na sociedade por meio de mecanismos interpretativos e hermenêuticos condizentes com o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal procedimento somente se dará pelo aprimoramento dos métodos interpretativos no ordenamento justrabalhista brasileiro. Destarte, constitui a hermenêutica jurídica uma tentativa de perpetuar as injustiças sociais dos tempos atuais. Nesse clima, expressa Márcio Túlio Viana: “a lei deve ser vista como uma forma viva, mutável, dinâmica, sempre aberta a receber um sentido novo. Em sua criação há um momento do legislador e um momento do juiz”.35 Como bem ensina Atahualpa Fernandez, 34) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 192. 35) VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 405.

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Quando as normas negam conscientemente a vontade da justiça, quando os princípios, os direitos e as garantias consagradas são arbitrariamente violados, carecem tais normas de legitimidade e validez, pois não se pode conceber o Direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a justiça. E quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter jurídico das normas arbitrariamente impostas. Esse é o papel que cabe ao operador do direito na sua práxis hermenêutica.36

O autor, ainda, vai além A virtude e a independência do operador do direito não é outra coisa que a manifestação da autonomia do direito, comprometido ceticamente com o imperativo segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências, sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria humana, permitam a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum, isto é, com a criação de um modelo sócio-institucional livre, justo e solidário que permita a constituição de uma comunidade de homens livres e iguais unidos por seu comum, legítimo e compartido submetimento ao direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania.37

Neste diapasão, é perfeitamente admissível a transposição de Geovani De Oliveira Tavares, no atual Estado Democrático de Direito que “a diferença social e econômica existente entre ricos e pobres, a exclusão social, as distorções na distribuição das riquezas e a omissão do Estado diante desse quadro da realidade, justifica, legitima e autoriza a desobediência das regras de convivência já postas em sociedade”.38 Com efeito, ao jurista incumbe, na sua função de intérprete e aplicador da lei, dar exegese construtiva e valorativa às normas fundamentais justrabalhistas, para que se aperfeiçoem os fins teleológicos do Direito do Trabalho e os princípios basilares do Estado Democrático e Social de Direito. 39 Nesse sentido, a lei deve ser interpretada para alcançar a verdadeira justiça social. E, por mais clara que pareça, requer sempre um esforço hermenêutico visando à aplicabilidade plena dos Direitos Humanos sociais do trabalhador no Direito do Trabalho, pois o art. 3º, inciso III, elege como objetivos fundamentais da República a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Como já alardeava Carlos Maximiliano, 36) FERNANDEZ, Atahualpa. Argumentação jurídica e hermenêutica. São Paulo: Impactus, 2007. p. 92. 37) FERNANDEZ, Atahualpa. Argumentação jurídica e hermenêutica. São Paulo: Impactus, 2007. p. 93. 38) TAVARES, Geovani de Oliveira. Desobediência civil e Direito Político de Resistência. Os Novos Direitos. Campinas: Edicamp. 2003. p. 58. 39) A norma contida no artigo art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil refere-se à interpretação finalística utilizada pelo intérprete-aplicador na aplicação justa da lei. Conforme se depreende da leitura de seu texto, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador do Direito: tratava todas as questões como se foram problemas de Geometria. O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes do seu veredictum. Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto; todavia este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação – o bem social. 40

Cumpre-nos inovar a aplicação dos métodos hermenêuticos no Direito do Trabalho para renovar a ordem justrabalhista, que deve ser estabelecida sempre de modo mais elevado ao cidadão brasileiro. Para isso, deve ser ressaltado que, para se alcançarem soluções para o quadro político-jurídico vigente, ao aplicador do Direito do Trabalho será preciso desvestir a couraça positivista que lhe veste o ensino tradicional, pois, em tempos de constantes transformações políticas e ideológicas, a pobreza e a miséria espalham-se em índices inimagináveis. Conforme se pode constatar, é preciso avançar para garantir igual dignidade às pessoas e uma distribuição mais equitativa dos bens materiais, isto é, dar a todos o que é racionalmente necessário para gozar de oportunidades semelhantes e viver dignamente. É preciso respeitar os direitos das pessoas e o caráter próprio de cada povo, eliminando as diferenças socioeconômicas que hoje existem e crescem com freqüência, ligadas à crise do Direito do Trabalho no Brasil. Essa situação somente pode ser resolvida por uma tomada de consciência da igualdade dos homens, por medidas políticas e jurídicas voltadas para o atendimento de melhores condições de integração e de desenvolvimento universal do ser humano: o emprego. É necessário avançar nesse aspecto, pois a sociedade clama pela cristalização do pleno emprego e pela destinação dos Direitos Humanos sociais do trabalhador. Pelo que já foi posto, fica em evidência o papel do intérprete-aplicador em empregar a regra jurídica em conformidade com os anseios da sociedade, pois a democracia somente se legitima mediante a atuação criativa e transformadora no Direito do Trabalho. Como bem ilustra Márcio Túlio Viana, “enquanto, em alguns casos, luta-se pela lei que já se tem, em outros se combate pela lei que se quer ter”. 41 Desse modo, deve o intérprete-aplicador do Direito do Trabalho almejar por uma ordem jurídica justa, no objetivo de atentar à proteção da dignidade da pessoa humana no Direito do Trabalho, pois o Direito deve constituir uma realidade cultural que se põe sempre a serviço do valor justiça. Para estabelecer um pensamento sobre o assunto, transcrevemos os ensinamentos de Plauto Faraco Azevedo:

40) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 131. 41) VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 42.

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O jurista, visto como técnico a serviço de uma ordem jurídica dita neutra, em verdade é formado para ser o ordenador do poder instituído, seja ele qual for. Preparado para nada contestar, torna-se incapaz de colaborar de modo efetivo na construção da democracia, que passa necessariamente pelo adequado encaminhamento dos problemas suscitados pela justiça distributiva, reclamando agentes de pensamento aberto, habituados ao confronto e discussão de idéias contrárias, capazes de compreender o presente e planejar o futuro.42

Nesse panorama, destaca Ana Virgínia Moreira Gomes: o operador do Direito necessita de critérios que o auxiliem na aplicação da norma, ainda que ela já tenha sido muitas vezes devidamente interpretada na doutrina ou nos tribunais, possuindo mesmo um dos seus possíveis sentidos enunciados por órgãos de instâncias superiores.43

A par disso, a realização da justiça exige que a mobilidade necessária a um Direito do Trabalho em desenvolvimento seja organizada de tal modo que a vida dos indivíduos e de suas famílias não se torne mais instável e precária, pois a concepção de Estado adotada por nossa Constituição Federal de 1988 guarda íntima relação com os Direitos Humanos sociais do trabalhador. Qualquer que seja a sociedade historicamente considerada, somente a real justiça efetiva e igualitária será capaz de fomentar incessantes transformações sociais no Direito do Trabalho, de maneira que os direitos decorrentes da cidadania e assegurados pela democrática sejam aplicados de forma universal a todos os integrantes da sociedade. Como bem expõe Márcio Túlio Viana, “a tarefa do juiz não se reduz nos tribunais: como juiz cidadão, deverá levar a sua mensagem de resistência a toda a coletividade, lutando por uma ordem social mais justa e por mecanismos que dignifiquem o trabalhador”44. É vital que as leis sejam elaboradas e aplicadas em consonância com as necessidades da população, pois os Direitos Humanos declaram, ao longo da história, o que vem sendo construído no universo jurídico, por meio dos movimentos sociais. A luta faz parte do Direito de tal forma que é preciso alimentar a ajuda material e moral aos espoliados do sistema capitalista contemporâneo, pois a luta pelo trabalho digno se funda na constituição do Direito. Segundo Jorge Luiz Souto Maior, “é exatamente diante da busca desmesurada da exploração do capital sobre o trabalho humano que o direito do trabalho encontra, com muita razão, a lógica de sua existência”. 45 42) AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 65. 43) GOMES, Ana Virgínia Moreira. A aplicação do princípio protetor no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001. p. 46. 44) VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 408. 45) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de Emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 43. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Como bem explana Lutiana Nacur Lorentz, [...] para que a igualdade não seja uma quimera, bem como não seja o Estado Democrático do Direito meramente formal e não fático, é preciso que os cidadãos e seus Estados nacionais em desenvolvimento encontrem caminhos de resistência à voracidade das empresas e capitais transnacionais e busquem a valorização e o respeito às singularidades nos âmbitos pessoal, grupal e nacional.46

De tudo quanto foi exposto, o que importa é que, à medida que os postulados da justiça se põem como objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil, o avanço no Direito do Trabalho será inevitável, pois a aplicabilidade dos direitos humanos do trabalhador é condição essencial para a manutenção do Estado democrático brasileiro. Conforme enfatiza Lutiana Nacur Lorentz, “o importante é alcançar-se um sistema alternativo de idéias, de práticas e de vida, o que talvez só possa ser conseguido com a união, em âmbito mundial, de movimentos de resistência [...]”47. Nesse contexto, torna-se veemente necessário conclamar os Direitos Humanos na seara juslaboral, pois são eles constituídos e ligados pelos mesmos sentimentos humanos e aspirações que definem o que é o Direito e firmam o caminho de novas conquistas. Nenhuma norma do direito positivo representa apenas a si mesma, mas ao menos se relaciona com todo o ordenamento jurídico, por isso, se conclui, no pensamento de Juarez Freitas que, A interpretação sistemática tem que ser feita de maneira a resultar topicamente em conformidade com os fins, princípios e objetivos do sistema, os quais precisam rumar para a concretização plena numa sociedade livre, justa e solidária, na qual se dê a sujeição da ordem econômica aos ditames teleológicos e racionais da justiça social.48

O autor, ainda, arremata que “cada preceito normativo deve ser viso como uma parte viva do todo, eis que é do exame em conjunto que pode resultar melhor resolvido qualquer caso em apreço em apreço, desde que se busque descobrir qual é, na respectiva situação, o interesse mais fundamental”.49 Nesse desiderato, apenas com o uso adequado da Hermenêutica é que se alcançará a verdadeira liberdade de consciência, suficiente para evitar que o Direito permaneça mudo ante as necessidades da sociedade do trabalho contemporânea. É necessário encontrarem-se caminhos com o fito de enriquecer a ati46) LORENTZ, Lutiana Nacur. A norma da igualdade e o trabalho das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: LTr, 2007. p. 85. 47) LORENTZ, Lutiana Nacur. A norma da igualdade e o trabalho das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: LTr, 2007. p. 84. 48) FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 137. 49) FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 53.

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vidade interpretativa do jurista e permitir a eficiência e a aplicabilidade dos Direitos Humanos sociais do trabalhador no Direito do Trabalho brasileiro. Ao fim deste estudo, temos por firmado o entendimento de Márcio Túlio Viana: Sempre que a lei se revelar a negação do Direito, devemos ajustá-la, adaptá-la, reeducá-la. Abandonarmos a postura de irresponsáveis por sua formação, para assumirmos a de responsáveis por sua mutação, como se fôssemos (e efetivamente o somos) seus co-autores, apenas que distanciados no tempo e no espaço do órgão legislativo.50

3 A APLICABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS SOCIAIS DO TRABALHADOR NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO Em relação à aplicabilidade das normas constitucionais, é tradicional a teoria de José Afonso da Silva no que tange à eficácia das normas jurídicas. Para o autor, as normas constitucionais podem ser de aplicabilidade imediata e eficácia plena; de aplicabilidade imediata e eficácia contida ou restringível e de aplicabilidade mediata ou eficácia limitada.51 As normas constitucionais de aplicabilidade imediata e eficácia plena são aquelas que não dependem de atuação legislativa posterior para a sua regulamentação, estando, desse modo, aptas a produzir todos os seus efeitos jurídicos. Podemos apontar as normas referentes às competências dos órgãos (CF, art. 48 e 49) e os remédios constitucionais (CF, art. 5°, LXVIII, LXIX, LXX, LXXI, LXXII, LXIII). Nas normas constitucionais de aplicabilidade imediata e eficácia contida, o legislador constituinte originário regulou suficientemente a matéria, porém possibilitou ao legislador ordinário restringir os efeitos dela. São normas constitucionais que possuem aplicabilidade imediata, mas uma lei posterior poderá conter os seus efeitos. Como exemplo, cita-se o art. 5°, inciso XIII, da Carta Republicana de 1988, que diz ser livre o exercício de qualquer trabalho, oficio ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Nesse sentido, se não houver uma lei regulamentado as profissões, toda pessoa poderá exercer livremente qualquer tipo de atividade. Por fim, classificam-se como normas de aplicabilidade mediata e eficácia limitada preceitos normativos que necessitam da atuação legislativa posterior, para que possam gerar plenamente todos os direitos e obrigações nela contidos. Os preceitos de eficácia limitada se dividem em normas de princípio institutivo e normas de princípio programático. De princípio institutivo são aquelas normas em que o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições dos órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei. Ilustra esse tipo de normas a previsão de criação do código de defesa do consumidor (CF, art. 5°, XXXII), a regulamentação do direito de greve do servidor público (CF, art. 37, 50) VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 410. 51) SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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VII), a organização administrativa e judiciária dos Territórios Federais (CF, art. 33). As normas de princípio programático são aquelas normas que dependem de legislação a serem implementadas, por meio de um programa constitucional a ser cumprido mediante a vontade constitucional. Ilustra esse tipo de norma o direito ao salário mínimo digno (CF, art. 7º, IV), o direito à moradia, ao trabalho, à segurança (CF, art. 6º). São direitos que exigem uma conduta positiva dos órgãos legislativos e administrativos na realização no Estado Social de Direito. Prosseguindo, cumpre mencionar o desafio pela efetividade dos Direitos Humanos sociais no Direito do Trabalho brasileiro. Ora, é preciso alcançar fórmulas argumentativas capazes de superar o discurso do status quo, que busca restringir a aplicabilidade dos Direitos Humanos sociais do trabalhador no Brasil.52 Nessa perspectiva, urge integrar uma estratégia de democratização social no Direito do Trabalho brasileiro, capaz de incentivar a aspiração coletiva pela aplicabilidade desses direitos, pois, como adverte Lenio Luiz Streck, “o sentido da constituição não pode continuar velado (isto porque, passados mais de 12 anos desde sua promulgação, grande parte de seu texto continua inefetivo, portanto, não descoberto)”.53 Nesse contexto, vale rememorar a preciosa lição de Ingo Wolfgang Sarlet: [...] os direitos fundamentais sociais de cunho prestacional, independentemente da forma de sua positivação (mesmo quando eminentemente programáticos ou impositivos), por menor que seja sua densidade normativa ao nível da Constituição, sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, já que não há mais praticamente quem sustente que existam normas constitucionais (ainda mais quando definidoras de direitos fundamentais) destituídas de eficácia e, portanto, de aplicabilidade.54

Dessa forma, ao intérprete e aplicador do Direito do Trabalho cabe um importante papel: o de possibilitar uma justiça social capaz de impulsionar o crescimento de um ramo juslaboral voltado para o pleno desenvolvimento da sociedade civil, pois é necessário que as amarras do direito posto, que impossibilitam o implemento da cidadania e do valor da pessoa humana no Brasil, sejam rompidas em prol de uma justiça que penetre no território dos preceitos normativos destituídos de eficácia plena e imediata. O desafio em questão precisa ser urgentemente enfrentado, pois a luta 52) Cumpre ressaltar que o mandado de injunção, previsto no art. 5º, § 1º da CF de 1988, responsável em tornar as normas constitucionais aplicáveis, não cumpre de forma satisfatória a realização dos direitos fundamentais. Este instituto, junto com a ação direta de inconstitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental, visando à tutela dos direitos fundamentais, não substanciam de forma plena e suficiente a satisfação dos Direitos Humanos Sociais na seara juslaboral, decorrente da inércia do pode público. Além disso, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão apresenta-se como um instrumento absolutamente frágil de controle das omissões inconstitucionais. 53) STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica e a tarefa da construção de uma nova crítica do direito a partir da ontologia fundamental. Revista Filosofia Unisinos, v. 3, n, 4, 2002. p. 112. 54) SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, Centro de Atualização Jurídica, n. 10, janeiro, 2002. p. 10.

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agora é pela efetividade dos Direitos Humanos sociais do trabalhador. Esse mecanismo, logicamente, decorre de políticas públicas que terão como compromisso último a consecução dos objetivos da República Federativa do Brasil e, simultaneamente, o cumprimento pelos princípios do Direito do Trabalho. Como se vê, o tema é de muita relevância. A população brasileira, já demasiadamente alijada do direito à cidadania e, por conseqüência, das necessidades básicas de sobrevivência, clama por uma justiça sensibilizada com a realidade social do Brasil. Diante dos vários comandos programáticos, os quais negam a máxima eficácia aos Direitos Humanos sociais do trabalhador, Clèmerson Merlin Clève adverte que “o ofício do jurista eticamente ligado com a práxis libertária assumirá vastas proporções, em face das inúmeras possibilidades argumentativas que poderão ser descobertas”. 55 Como assevera Jorge Luiz Souto Maior, [...] é urgente não deixar que sejam abaladas as bases fundamentais do direito do trabalho, para que se possa, urgentemente, pôr em aplicação um direito do trabalho que, efetivamente, se insira no contexto atual na real perspectiva de evitar que o trabalho humano seja explorado sem a contrapartida do social e da própria proteção da dignidade humana.56

Esse é o momento em que toda a sociedade jurídica deve atuar na luta por um Direito mais justo e por um mundo com mais esperança. Por isso, reside aqui uma dimensão humanizadora para o Direito do Trabalho, capaz de criar uma cultura jurídica plenamente favorável ao exercício do constitucionalismo social no Brasil. Assim, respeitaremos as rédeas do destino dos cidadãos vivos e dos que haverão de surgir. Segundo Jorge Luiz Souto Maior, “a função do direito e principalmente do direito social não é senão a de corrigir a realidade, atribuir efeitos obrigacionais necessários às relações sociais, para fazer valer os valores que nele foram integrados por obra da humanidade [...]”. 57 Esse é o caminho para se alcançar a aplicabilidade dos Direitos Humanos no ramo juslaboral, pois é preciso considerar que proteger o homem que vende a sua força de trabalho para sobreviver é defender a dignidade humana do homem. Consoante nos ensina Jorge Luiz Souto Maior, “à justiça do trabalho compete aplicar um direito do trabalho por inteiro e cada vez mais eficaz, até porque este é o caminho natural do direito do trabalho”. 58 É imperioso para sobrevivência do Direito do Trabalho contemplar a aplicabilidade plena e imediata dos Direitos Humanos sociais do trabalhador, a fim 55) CLÈVE, Clèmerson Merlin. Uso Alternativo do Direito e saber jurídico alternativo. ARRUDA JR, Edmundo Lima de (Org.). Lições de Direito Alternativo 1. São Paulo: Acadêmica, 1991. p. 114. 56) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de Emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 95. 57) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de Emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 87. 58) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de Emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p.112. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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de impedir que o Estado possa obstacular o exercício do direito pleno pelo cidadão, um direito que poderia ser por ele exercido não fosse a intenção desconforme do Poder Público Legislativo em constituir um ordenamento justrabalhista flexível, pronto a se adaptar às exigências empresariais de atender à volatilidade do capital financeiro internacional e a atrasar a formação do Estado Democrático e social de direito. Esse quadro precisa mudar, pois, como adverte Lenio Luiz Streck, ao se referir à crise de paradigmas e à concepção liberal-individualista-normativista do direito que obstaculiza o acontecer da constituição, “olhamos o novo com os olhos do velho, com a agravante de que o novo ainda não foi tornado visível”.59 Na proteção social obtida pelos direitos de segunda geração, fruto do ideário político denominado Estado de Bem-Estar Social, o sistema capitalista somente vivenciou a sua fase dourada porque conseguiu unir idéias de solidariedade social, liberdade política e desenvolvimento econômico.60 Ocorre que o processo de internacionalização da economia tenta descaracterizar toda a concepção tutelar do Direito do Trabalho ao dificultar a intervenção do Estado diante do essencial objetivo de promover a justiça social. Como ensina Fahd Medeiros Awad, isso é resultado da falta de proteção efetiva de um Estado capaz de identificar as diferenças e singularidades dos cidadãos, de promover justiça social, de corrigir as disparidades econômicas e de neutralizar uma iníqua distribuição tanto de renda quanto de prestígio e conhecimento.61 Conforme assevera Jorge Luiz Souto Maior, vivenciamos uma fase de “implementações de técnicas para fugir das amarras do direito social e para tornar menos nítida a exploração do capital sobre o trabalho [...]”. 62 Destarte, o desenvolvimento social passa a ser considerado um obstáculo à potencialidade da noção de mercado consumidor, conduzido pela ideologia neoliberal, pois nele o Estado já não tem por objetivo tutelar interesses sociais. É possível afirmar, ainda, que esse sistema econômico deseja a ruptura de qualquer mecanismo de garantia legal dos Direitos Humanos sociais do trabalhador, bem como o fim de todos os elementos jurídicos protetores responsáveis pela valorização do emprego no Direito do Trabalho brasileiro. Consoante nos ensina Jorge Luiz Souto Maior, “no novo paradigma destrói59) STRECK, Lenio Luiz. A Hermenêutica e a tarefa da construção de uma nova crítica do direito a partir da ontologia fundamental. Revista Filosofia Unisinos, v. 3, n. 4, janeiro-junho, 2002. p. 11. 60) A propósito de desregulamentação e flexibilização da legislação trabalhista, recomendamos a leitura de DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, Trabalho e Emprego. Entre o Paradigma da Destruição e os Caminhos de Reconstrução. São Paulo: Editora LTr, 2006, em que o tema é tratado com percuniência. 61) AWAD, Fahd Medeiros. O Problema da Eficácia dos Direitos Fundamentais. Revista da Universidade de Passo Fundo: Justiça do Direito, v. 18, n. 1, 2004, p.207. Como bem ensina o jurista, a justiça é conivente com a violação dos direitos humanos, por isso há um enorme fosso entre os problemas socioeconômicos e as leis. Segundo ao autor, não existe a finalidade de fazer valer os direitos sociais elementares dos cidadãos situados abaixo da linha da pobreza. 62) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de Emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 43.

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se a noção de uma classe de trabalhadores, que tem a consciência de que a exploração de seu trabalho constitui a força motriz de um sistema que enriquece a alguns poucos e provoca a miséria de muitos”. 63 A norma contida no art. 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988, imputa ao legislador não somente a obrigação legislativa de regulamentar ou concretizar o conteúdo das normas de conteúdo programático, mas também a de editar normas que não atentem contra o núcleo essencial do direito fundamental nelas consagrado, deformando-lhe o sentido ou a finalidade. 64 Nesse campo, portanto, onde o Estado aparece como inerte, o intérprete e aplicador do Direito do Trabalho possuem um importante papel a cumprir. E isso é perfeitamente possível, pois, como afirma Lenio Luiz Streck, citando Miguel Angel Pérez, uma constituição democrática é, antes de tudo, normativa, de onde se extraem duas conclusões: que a constituição contém mandatos jurídicos obrigatórios, e que estes mandatos jurídicos não somente são obrigatórios, mas, muito mais do que isso, possuem uma especial força de obrigar, uma vez que a constituição é a forma suprema de todo o ordenamento jurídico.65

Corroborando tal entendimento, ressalta Clèmerson Merlin Clève que “as conquistas jurídicas sempre foram alcançadas em face de concretização de uma certa idéia de direito que reivindica um lugar no espaço normativo do direito positivo”.66 Destarte, as palavras contidas na Constituição devem ser interpretadas para atender aos princípios fundamentais que norteiam uma existência digna para o homem na sociedade. Só assim será verdade admitir a sintonia existente entre os Direitos Humanos e o Direito do Trabalho no sistema jurídico brasileiro. Ora, desde o nascimento do ramo jurídico laboral, trava-se uma luta pela realização do ideário dos Direitos Humanos sociais do trabalhador no ramo juslaboral. Essa luta precisa continuar na medida necessária à efetivação dos princípios formadores da justiça social e da dignidade humana, pois o Direito deve estar sempre em construção. Como adverte Plauto Faraco De Azevedo, [...] pode-se admitir realisticamente a existência das leis injustas, por desconhecerem ou ignorarem as necessidades sociais ou por traduzirem interesses de setores, classes ou grupos sociais em detrimento do bem-comum. Pode também acontecer que a lei atenda às exigências da justiça, revelando-se entretanto, injusta sua aplicação ao caso concreto, cuja singularidade resiste a seu enquadramento legal.67

63) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de Emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 28. 64) JÚNIOR, Hermano Queiroz. Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2006. p. 134. 65) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 325. 66) CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito e os Direitos: Elementos para uma crítica do Direito Contemporâneo. São Paulo: Editora Max Limonad, 2001. p. 187. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Destarte, é preciso reconhecer a conexão existente entre os Direitos Humanos e o Direito do Trabalho como duas realidades inseparáveis. Essa conexão envolve a vida e o trabalho, a liberdade e a dignidade. Todos esses atributos são inerentes à pessoa humana e o Direito não pode afastar-se dessa realidade. Emerge, assim, rever os Direitos Humanos na qualidade de fenômeno social. Nessa esteira, urge reformular o Direito do Trabalho comprometido com o processo de redemocratização no espaço jurídico-social, por meio da interpretação constitucional sistemática e ampla a favor da aplicabilidade dos valores fundamentais sociais do trabalho na sociedade contemporânea. Fundamentado nessas idéias, expõe Vieira De Andrade que “o princípio da aplicabilidade direta vale como indicador de exeqüibilidade imediata das normas constitucionais, presumindo-se sua perfeição, isto é, a sua auto-suficiência baseada no caráter líquido e certo do seu conteúdo e sentido”.68 Essa deve ser a luta legitimadora pelo uso do bom Direito na seara juslaboral. Ante toda a exposição, é preciso atentar que o Direito do Trabalho é o ramo jurídico que melhor expressa o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, sob o símbolo da juridicidade dos direitos sociais do trabalhador. Nessa linha de pensamento, vale a pena consignar o ensinamento de Fahd Medeiros Awad de que “os direitos sociais surgiram juridicamente como prerrogativas dos segmentos mais desfavoráveis e, para que possam ser materialmente eficazes, tais direitos implicam uma intervenção ativa e continuada dos poderes públicos”.69 É essencial uma práxis libertadora cotidiana, promotora da cidadania e dos Direitos Humanos no Direito do Trabalho brasileiro, capaz de definir o valor da dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento integral de todos os seres humanos. Por isso, esse é o tempo de reproduzir um novo sentido para as palavras contidas na lei, pois a “luta pela democratização da sociedade política passa obrigatoriamente pelo direito. E que o direito como espaço de luta que é, não pode ser desprezado pelos interessados na democratização da sociedade”.70 Diante disso, como ressalta Ingo Wolfgang Sarlet, [...] a melhor exegese da norma no art. 5, parágrafo 1, de nossa Constituição é a que parte da premissa de que se trata de norma de cunho inequivocadamente principiológico, considerando-a, portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais [...]71. 67) AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 139. 68) VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina. 1987. p.211. 69) AWAD, Fahd Medeiros. O problema da eficácia dos direitos fundamentais. Revista Justiça do Direito da Faculdade de Direito de Passo Fundo. n. 1, v.18, 2004. p. 209. 70) CLÉVE, Clèmerson Merlin. O Direito e os Direitos: Elementos para uma crítica do Direito Contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 205. 71) SARLET, Ingo. A eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 247.

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Como bem assevera Hermano Queiroz Júnior, [...] o princípio da dignidade da pessoa humana há de ser considerado como o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e com fundamento nesta devem ser interpretados”72.

É pelos direitos sociais do trabalhador, advindos da concepção de Estado de Bem-Estar Social, que se encontra presente o ideário social, que consiste na proteção à dignidade da pessoa humana, pois é o trabalho regulado que revela o valor do homem na sociedade contemporânea.73 Nesse limiar, é preciso evitar um Direito que se converta gradativamente em um fator de degradação do homem que trabalha. Agora urge uma ordem jurídica que lute pelo desenvolvimento social e pelo emprego digno a todos os cidadãos. Essa deve ser a tarefa indeclinável dos Direitos Humanos no Direito do Trabalho. Nesse contexto, é preciso evitar os efeitos nefastos causados pelas distorções capitalistas na desconstituição do emprego no Direito do Trabalho brasileiro. Essa é a proposta almejada no presente ensaio, pois “o primado do trabalho e do emprego na vida social constitui uma das maiores conquistas da democracia no mundo ocidental capitalista”.74 Destarte, é necessária a afirmação de uma legislação trabalhista que reconsidere a importância do trabalho regulado na sociedade contemporânea, ou melhor, um Direito do Trabalho em condições de atender de todo às necessidades vitais do ser humano e, conseqüentemente, os Direitos Humanos sociais do trabalhador advindos de tal relação jurídica. Só assim o caráter teleológico do Direito do Trabalho será atendido. É por intermédio da relevância que se dá a relação de emprego é que o Direito do Trabalho atingirá o equilíbrio entre as forças da produção capitalista e o trabalho humano. Por essa razão, o objetivo maior da ordem justrabalhista deve ser a proteção da relação de emprego por meio da permanência do trabalhador no mercado formal de trabalho, pois só assim lhe serão assegurados todos os direitos e garantias fundamentais que o Direito do Trabalho brasileiro lhe vem proporcionando ao longo dos tempos. Conforme nos assegura Ingo Wolfgang Sarlet,

72) JÚNIOR, Hermano Queiroz. Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2006. p. 85. 73) Para um estudo mais detalhado sobre o tema Estado de bem estar social, consultar a obra organizada por Maurício Godinho Delgado e Lorena Vasconcelos Porto, sob o título O Estado de bem estar social no século XXI. São Paulo: LTr, 2007. 74) A propósito de desregulamentação e flexibilização da legislação trabalhista, recomendamos a leitura de DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, Trabalho e Emprego. Entre o Paradigma da Destruição e os Caminhos de Reconstrução. São Paulo: Editora LTr, 2007. p. 26. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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[...] os direitos adquiridos não mais podem ser reduzidos ou suprimidos, sob pena de flagrante infração do princípio da proteção da confiança (por sua vez, diretamente deduzido do princípio do Estado de Direito), que, de sua parte, implica a inconstitucionalidade de todas as medidas que inequivocadamente venham a ameaçar o padrão de prestações já alcançado. 75

Convém rememorar a importância do princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, que retrata a interação da proteção à relação de emprego com os Direitos Humanos sociais do trabalhador, visto que é fruto de conquistas da classe trabalhadora. Dessa maneira, não é permitida a negociação, quer na seara individual, quer na seara juscoletiva do trabalho, que implique a diminuição dos direitos sociais dos trabalhadores, sob pena de acarretar a violação direta do princípio em tela e de toda a principiologia que resguarda a seara laboral. A indisponibilidade ou inderrogabilidade desses direitos consistem na limitação à autonomia individual ou coletiva pela qual se impede um sujeito de efetuar total ou parcialmente atos de disposição sobre um determinado direito, salvo se para melhorar a condição do trabalhador. Por isso, todos os direitos oriundos da relação empregatícia são considerados indisponíveis. Nesse contexto, cabe ao Estado editar normas protetivas, sempre mais vantajosas e garantidoras dos Direitos Humanos sociais do trabalhador. Como bem assevera Ingo Wolfgang Sarlet, ao tratar do princípio da proibição de retrocesso social, [...] o reconhecimento e a garantia de direitos fundamentais têm sido consensualmente considerado uma exigência inarredável da dignidade da pessoa humana (assim como da própria noção de Estado de Direito), já que os direitos fundamentais constituem explicitações da dignidade da pessoa, de tal sorte que em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa. Portanto, a proteção dos direitos fundamentais, pelo menos no que concerne ao seu núcleo essencial e ou ao seu conteúdo em dignidade, evidentemente apenas será possível onde estiver assegurado um mínimo em segurança jurídica.76

Segundo o autor, Negar reconhecimento ao princípio de retrocesso social significa, em última análise, admitir que órgãos legislativos (assim como o pode público de modo geral), a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados aos direitos fundamentais e às normas constitucionais em geram, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte.77 75) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 139. 76) SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais Sociais e Proibição de Retrocesso: Algumas Notas Sobre o Desafio da Sobrevivência dos Direitos Sociais num Contexto de Crise. Revista brasileira de direito constitucional: Escola Superior de Direito Constitucional, número 4, julho a dezembro de 2004. p. 245. 77) SARLET, Ingo Wofgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p.149.

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O princípio em tela se caracteriza pela impossibilidade de reduzir as implementações de direitos fundamentais sociais já realizadas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Impõe-se a não-redução dos Direitos Humanos sociais, de modo a preservar o índice mínimo civilizatório do Direito do Trabalho. Embora não expresso de forma taxativa pelo corpo constitucional, o princípio encontra clara previsão constitucional na leitura do art. 5º, § 2º, da CF e do caput do art. 7º da CF, este enunciando os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, “sem prejuízo de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Destarte, o princípio em tela serve de esteio a reformas destrutivas da legislação social existente, sob pena de contrariar o próprio fundamento da CF/88, a proteção à dignidade da pessoa humana. Como bem ensina Jorge Luiz Souto Maior, na obra Relação de Emprego e Direito do Trabalho, A centralidade do direito do trabalho na relação de emprego, ademais, é o que tem permitido que este ramo do conhecimento jurídico, o direito do trabalho, evolua constantemente. A melhoria da condição social e econômica do empregado, cumpre não esquecer, é o princípio fundamental do direito do trabalho e com o avanço constante da normatividade trabalhista a aquisição de uma relação de emprego passou a ser sinônimo de status social e segurança [...].78

De fato, muito deve ser feito ainda no campo dos Direitos Humanos sociais do trabalhador. É imprescindível a luta pela realização do Direito do Trabalho e pela aplicabilidade plena dos Direitos Humanos nessa seara. A canção a seguir expressa a contestação das desigualdades sociais e seus versos reiteram a luta pelos direitos iguais, para que todos vivam plenamente e desfrutem a verdadeira dignidade humana. Bebida é água Comida é pasto Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comer. A gente quer comer e fazer amor. A gente não quer só comer, A gente quer prazer para aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro, A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro. A GENTE QUER INTEIRO E NÃO PELA METADE.79

78) MAIOR, Jorge Luiz Souto. Relação de emprego e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 95. 79) Canção “Comida”, dos compositores Marcelo Fromer, Arnaldo Antunes e Sérgio Brito (Titãs).

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Serviços públicos: morte ou renascimento?

Sarah Maria Linhares de Araújo Advogada e Mestre em Direito do Estado pela UFPR

1 ASPECTOS INICIAIS Atualmente, o tema “serviços públicos” traz ao debate diversas dúvidas. O instituto passa por inúmeras transformações em decorrência das modificações no modelo estatal e, atualmente, alguns chegam até a duvidar se tal instituto ainda existe. Assim, questiona-se se houve o fim, ou seja, se o instituto do serviço público morreu ou apenas transformou-se, renascendo. A expressão morte deixa bem claro o fim, enquanto renascer significa nascer de novo. Odete Medauar esclarece a transição atual no tema de serviços públicos, quando expõe que: O pesquisador, talvez, perplexo, irá defrontar-se, na bibliografia atual, com inúmeras expressões envolvendo o tema; por exemplo: serviços de interesse econômico geral, serviços de interesse geral, public utilities, serviços universais. E ficará com muitas dúvidas ante afirmações aqui e acolá de que o serviço público não mais existe, havendo somente atividades econômicas, não prevalecendo a titularidade estatal das atividades antes consideradas serviços públicos.1

A partir das lições acima transcritas, percebe-se que o serviço público reflete a evolução do Estado, noção confirmada por Marçal Justen Filho, “ (...) o conceito de serviço público deriva do tipo de Estado vigente no momento histó1) MEDAUAR, Odete. Ainda existe serviço público. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Serviços públicos e direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 30. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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rico”2. Logo, tal instituto jurídico apresenta mutações ao longo dos anos, uma vez que a sociedade é dinâmica e está em constante processo de transformação. A dúvida que paira é saber se tal transformação, que acometeu o serviço público, o destruiu ou apenas tornou-o algo um pouco diferente do que era. Para melhor compreensão da evolução, ainda que brevemente, deve-se ter uma noção de como surgiu o serviço público a fim de que se possa realizar uma comparação do passado e do presente, concluindo-se a respeito das transformações.

2 BREVE NOÇÃO HISTÓRICA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS Com as mudanças no modelo de Estado e as suas conseqüentes transformações, a sociedade foi atingida pela modernidade e, naturalmente, necessidades surgiram em decorrência das modificações. A França pode ser considerada como o berço dos serviços públicos, mas Monica Spezia Justen deixa claro que a origem do instituto é ainda mais antiga, quando retrata que “Embora o grande desenvolvimento da noção de serviço público se tenha dado na França, no período entre o final do século XIX e início do século XX, é possível buscar na Grécia antiga sua origem mais remota”.3 A França possui diversos teóricos no que se refere ao estudo dos serviços públicos e, dentre os principais, encontra-se Léon Duguit, que defende a teoria de que o Estado legitima-se pela prestação dos serviços públicos e que a solidariedade social seria o objetivo estatal quando houvesse a prestação de tais serviços4. Para além disso, Odete Medauar ao retratar a noção de serviço sob a visão francesa, destaca que “Para Duguit ‘a idéia de serviço público está na obrigação que se impõe aos governantes’; ‘Se há uma ‘puissance publique’ ela é um dever, uma função, não um direito”5. Jorge Luis Salomoni caminha no mesmo sentido, quando demonstra o pensamento de Léon Duguit, “El Estado está obligado a satisfacer las necesidades de los particulares y solamente depués, el Estado estará legitimado para mandar”6. Na doutrina francesa, portanto, a noção de serviço público, muitas vezes, se confundia com o próprio conceito de Direito Público, pois este se legitimava a partir da prestação de serviços à comunidade. Dinorá Adelaide Musetti Grotti retrata muito bem a referida identificação, quando expõe que “As teorias do serviço público desenvolvem-se no primeiro terço do século atual, com a chamada Escola do Serviço Público, chefiada por Duguit, acompanhado de perto por Jèze, Bonnard, Rolland, De Laubadère, entre outros, e foram tão amplas que algumas delas abrangiam todas as atividades do Estado”.7 2) JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 16. 3) JUSTEN, Monica Spezia. A noção de serviço público no direito europeu. Dialética: São Paulo, 2003. p. 17. 4) JUSTEN, Monica Spezia. “A noção de serviço ...”, p. 33. 5) MEDAUAR, Odete. “ Ainda existe serviço ...”, p. 31. 6) SALOMONI, Jorge Luis. Teoría general de los servicios públicos. 148-149. 7) GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria dos serviços públicos e sua transformação. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2002.p. 41-42.

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Assim, o direito público francês pautava-se na noção de serviço público. Conseqüentemente, com a mudança do modelo de Estado e com a sensível diminuição deste na prestação direta dos serviços públicos, muitos doutrinadores entendem que já não existe mais o conceito de serviço público. Tal conclusão decorre da ligação que tais doutrinadores fazem de serviço público com a prestação realizada diretamente pelo Estado. Para que se possa compreender melhor o referido instituto jurídico, devese conceituá-lo a fim de expor suas principais características.

3 CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO Diante das inúmeras mudanças que transformam o serviço público, será que é possível estabelecer um conceito fechado para serviço público? Alguns doutrinadores conceituam serviço público a partir da estrutura e funcionamento do instituto, o que pode trazer problemas no futuro, uma vez que em decorrência das modificações, por conseguinte, haverá também transformações no que se refere à estrutura e ao funcionamento do instituto em estudo, o que acabará abalando o conceito já formulado a partir de premissas tão facilmente alteráveis. Além disso, Joana Paula Batista destaca muito bem o caráter polissêmico do conceito “serviço público” e diz que De início, constatamos que a expressão serviço público é plurissignificativa. Pode denotar diferentes realidades, conforme a situação analisada. Sendo assim, a primeira dificuldade no tratamento da matéria está em definir a abrangência semântica do termo ‘serviço público8.

Dentre os vários conceitos doutrinários, aquele fornecido por Celso Antônio Bandeira De Mello é considerado como clássico e muito referenciado na doutrina brasileira: Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.9

Depreende-se, por meio da leitura do referido doutrinador, que serviço público seria aquele submetido ao regime de Direito Público. Na definição clássica de serviço público, este deve reunir três elementos necessariamente e nesse sentido, para ilustrar melhor quais são os componentes, transcreve-se lição de Adelaide Musetti Grotti: 8) BATISTA, Joana Paula. Remuneração dos serviços públicos. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 16. 9) MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 14.ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 600. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Os doutrinadores praticamente são concordes em afirmar que a definição clássica de serviço público reunia três elementos, embora se desse maior ou menor ênfase ora a um, ora a outro, dentre eles, quais sejam: 1) o subjetivo, que considera a pessoa jurídica prestadora da atividade – o serviço público seria aquele prestado pelo Estado; 2) o material, que considera a atividade exercida – o serviço público seria a atividade que tem por objeto a satisfação de necessidades coletivas; 3) o formal, que considera o regime jurídico – o serviço público seria aquele exercido sob regime de Direito Público derrogatório e exorbitante do Direito Comum.10

Se tentar se identificar o serviço público na atualidade a partir dos três elementos da doutrina clássica, grandes conflitos começam a surgir, uma vez que em diversos momentos pode-se deparar com uma atividade que é serviço público, mas não é prestado diretamente pelo Estado, descartando-se, portanto, o elemento subjetivo, que supostamente faria parte da concepção clássica de serviço público. Nesse sentido, para os doutrinadores mais clássicos que identificam o serviço público necessariamente com a prestação direta pelo Estado, quando assim não ocorrer, estar-se-á diante de outro instituto que não é serviço público, pois o elemento subjetivo necessário para a formação do serviço não estaria presente. Nesse caso, para tal ramo doutrinário, o serviço público teria morrido. Assim, muitos falam da crise na noção de serviço público e Maria Sylvia Zanella Di Pietro esclarece que: Um autor francês – Louis Corail – elaborou tese de doutoramento sobre esse tema, entendendo que os três elementos normalmente considerados pela doutrina para conceituar serviço público não são essenciais, porque às vezes falta um dos elementos e até mesmo dois.11

Logo, diante das mutações na estrutura e funcionamento do Estado, conseqüentemente, transformações ocorreram no serviço público e os três elementos fornecidos pela doutrina clássica podem não apresentar tanta relevância diante da nova realidade estatal, que pode não clamar pela necessidade conjugada dos três elementos simultaneamente. Retornando ao estudo dos elementos mais detalhadamente, veja-se que referente ao critério material, qual seja, que o serviço público tem como objetivo a satisfação de necessidades coletivas, ele é o que persiste na atualidade com maior intensidade se comparado aos demais. Ainda que se tenha o serviço público como atividade econômica, tese que será apresentada posteriormente, ele não deixa de atingir as necessidades da coletividade. O conceito fornecido por Marçal Justen Filho12 deixa muito claro o objetivo de satisfação das necessidades coletivas na prestação dos serviços público e, 10) GROTTI, Dinorá Adelaide Mussetti. “Teoria dos serviços ...”, p. 42. 11) DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 97. 12) JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 478.

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para além disso, o doutrinador também destaca as necessidades individuais. A fim de que se possa melhor compreender o assunto, transcreve-se o conceito: Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas e executada sob regime de direito público.

Quando se discorre sobre a satisfação de necessidades coletivas, observase claramente a vinculação que existe entre serviços públicos e direitos fundamentais. Ora, se o serviço público vem atender a necessidades coletivas e possui como um de seus objetivos a melhoria na qualidade de vida dos administrados, conseqüentemente, vincula-se aos direitos fundamentais. Marçal Justen Filho leciona como ocorre a ligação entre serviço público e direitos fundamentais: A atividade de serviço público é um instrumento de satisfação direta e imediata dos direitos fundamentais, entre os quais avulta a dignidade humana. O serviço público existe porque os direitos fundamentais não podem deixar de ser satisfeitos. Isso não significa afirmar que o único modo de satisfazer os direitos humanos seja o serviço público, nem que este seja a única atividade estatal norteada pela supremacia dos direitos fundamentais.13

Ainda que o Direito passe por transformações e apresente mudanças em seus institutos, ele não pode retroceder, o que é de suma relevância para a sociedade. Desse modo, quando a população consegue atingir certos direitos que são benéficos a ela, tais conquistas não podem ser desnaturadas sob pena de haver um retrocesso social. Assim, no que toca ao tema “serviços públicos”, se estes foram vislumbrados como direitos fundamentais do cidadão, nesse caso, mais especificamente, como direito do administrado, isso significa que eles não podem ser esquecidos ou tidos como inexistentes, justamente, por se tratar de uma garantia que foi conquistada. Não obstante o instituto tenha passado por transformações ao longo dos anos, na sua essencialidade ele continua a ser um direito fundamental do indivíduo, ainda que se apresente de outro modo. Daí decorre que o critério material apresenta-se como o mais relevante na atualidade, tendo em vista que ele está relacionado diretamente com os direitos e garantias dos cidadãos. Por meio dos serviços públicos, a sociedade torna-se mais igualitária e, em países como o Brasil, é por meio da prestação deles que se pode obter uma vida mais digna, trazendo nesse aspecto a idéia de justiça distributiva de Jonh Rawls.14 Idéia esta a que se filia Cristiane Derani quando preconiza: 13) Ibid, p. 480. 14) RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 54-112.

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A atribuição de poder ao ente estatal se justifica pela busca de “justiça distributiva”. Pela atribuição de determinados poderes e funções ao Estado, a sociedade pretende obter uma organização e uma atividade que busquem distribuir a riqueza social, a fim de que se alcance a generalização do bem-estar. É a finalidade da sociedade que determina a finalidade do poder público.15

A partir da prestação de determinados serviços, como saneamento básico, saúde pública, educação, entre outros, os cidadãos começam a ter uma melhoria na sua qualidade de vida, o que torna a sociedade mais equilibrada e justa, tornando-a menos desigual. Os benefícios conseguidos a partir dessa igualdade são inúmeros, inclusive para a consciência política da sociedade, já que a política não pode ser exercida ante uma sociedade, na qual a população não possui o mínimo vital. Ricardo Lobo Torres tece preciosa lição sobre o mínimo existencial: Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados.16

Sem igualdade, sem que haja uma redistribuição das riquezas, a sociedade não consegue atingir o desenvolvimento e os serviços públicos, quando bem prestados, atendendo aos direitos fundamentais, conseguem tornar a sociedade mais equilibrada, resgatando novamente a idéia de mínimo vital e seus valores. Daí a importância do estudo e do resgate principalmente da materialidade que atinge o tema, pois ainda que o instituto tenha passado por modificações na sua estrutura e funcionamento, a essência continua sendo a mesma, que é a satisfação de necessidades coletivas. Marçal Justen Filho sintetiza tal idéia, quando afirma que “Um serviço é público porque se destina à satisfação de direitos fundamentais e não por ser de titularidade estatal, nem por ser desenvolvido sob regime de direito público. Essas duas são conseqüências da existência de um serviço público”17. Por fim, o último aspecto que compõe o conceito clássico de serviço público é estar submetido ao regime de Direito Público. Celso Antonio Bandeira De Mello entende que “o segundo elemento, ‘formal’, isto é a submissão a um regime de Direito Público, o regime jurídico-administrativo, é que confere caráter jurídico à noção de serviço público. Sua importância, pois, é decisiva”.18 Apesar de o serviço público estar submetido a um regime jurídico de Direito Público, existem inúmeras outras situações em que estão submetidas ao mes15) DERANI, Cristiane. Privatizações e serviços públicos: as ações do estado na produção econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 137. 16) TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). . Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 267. 17) JUSTEN FILHO, Marçal. “Curso ...”, p. 482. 18) MELLO, Celso Antonio Bandeira. “Curso ...”, p. 604.

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mo regime e não podem ser caracterizadas como serviços públicos. Daí decorre que tentar identificar o serviço público somente a partir do seu regime é um risco, pois nem tudo que está submetido ao Direito Público é serviço público. Joana Paula Batista esclarece o que foi acima expresso: Assumindo uma postura não essencialista, vemos que a existência de determinada realidade não corresponde necessariamente ao regime jurídico tal ou qual, ou às regras a que a sua prestação irá submeter-se, mesmo porque o regime jurídico será definido por lei, é externo e não intrínseco a essa realidade. Primeiro há que se definir a natureza do instituto, depois se verifica o regime jurídico a que irá se submeter. Só aí, veremos se se trata, ou não, de serviço público.19

Além disso, Maria Sylvia Zanella Di Pietro demonstra claramente que o serviço público, no que atine ao elemento formal, pode apresentar regime jurídico total ou parcialmente público e afirma que “Para determinados tipos de serviços (não-comerciais ou industriais) o regime jurídico é de direito público (...)”20 e diferencia que “ Quando, porém, se trata de serviços comerciais e industriais, o seu regime é o de direito comum (civil e comercial), derrogado, ora mais ora menos, pelo direito público”21. Conclui-se, então, que os serviços públicos podem até apresentar parcialmente o regime jurídico de direito privado, mas tal fato não o descaracteriza como serviço público. Cristiane Derani apresenta posição sensata quanto a tal característica e demonstra adotar: (...) a posição de que não existe uma atividade que seria em si, de natureza pública ou de natureza privada. Se se procura identificar a prestação de serviço público pelo regime jurídico sob o qual ela é assegurada, com a afirmação de que serviço público é o que dispõe a lei, engajando-se num raciocínio circular de que cabe à lei dispor sobre o que seja serviço público, privilegiam-se os meios em detrimento dos fins.22

Alguns doutrinadores, como Maria João Estorninho, entendem que a utilização de institutos de Direito Privado na Administração Pública caracterizariam uma certa “fuga para o Direito Privado” e conclui que “Pode dizer-se que, na passagem do Estado Social para o Estado Pós-Social, a dualidade da ‘personalidades’ da Administração Pública agrava-se, devido à generalização da actividade administrativa jurídico-privada e, sobretudo, devido aos fenómenos de ‘fuga para o Direito Privado’23. Outros doutrinadores, como Jaime Rodriguez-Araña, demonstram que tal 19) BATISTA, Joana Paula. “Remuneração ...”, p. 29. 20) DI PIETRO, Maria Sylvia. “Direito ...”, p. 99. 21) Idem. 22) DERANI, Cristiane. “Privatizações ...”, p. 63. 23) ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da administração publica. Coimbra: Almedina, 1996. p. 79. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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transformação, qual seja, a utilização de institutos de Direito Privado deve-se às mudanças no âmbito do Estado e à introdução da eficiência no âmbito da Administração Publica24. Contudo, tal modificação não significa uma fuga ao Direito Privado, tendo em vista que na atualidade é a Constituição, lei maior de um Estado, que rege a sociedade. Nesse sentido, o referido doutrinador acaba concluindo que: En efecto, la realidad nos está mostrando hasta qué punto hoy emerge con fuerza un nuevo Derecho Administrativo como Derecho del poder para la libertad. Sólo con situarnos en el mundo del denominado del servicio público, comprobamos el alcance y la dimensión de la eclosión de una nueva regulación de corte administrativa que surge por la necesidad de preservar y asegurar el interés general en entornos abiertos a la libertad, antaño objeto de monopolio.25

Assim, observa-se que ainda que haja a utilização de institutos de Direito Privado, o serviço deverá atender ao interesse geral, pois este é o marco que regula o Direito Administrativo na contemporaneidade.

4 O SERVIÇO PÚBLICO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A Constituição Federal de 1988 inova a ordem jurídica ao estabelecer em um de seus capítulos disposições sobre a ordem econômica. Diante de um Estado, no qual o modo de produção é o capitalista, algumas regras devem ser estabelecidas a fim de que tal mercado tenha um funcionamento adequado. Nesse sentido, confirma Calixto Salomão Filho: Todo agrupamento social, por mais simples que seja, organizado ou não sob a forma de Estado que queira ter como fundamento básico da organização econômica a economia de mercado deve contar com um corpo de regras mínimas que garantam ao menos o funcionamento desse mercado, ou seja, que garantam um nível mínimo de controle das relações econômicas.26

É a partir de determinadas regras que regulam as relações econômicas que começa a se discorrer a respeito da chamada Constituição Econômica, que na compreensão de Eros Roberto Grau constitui-se no “Conjunto de preceitos que institui determinada ordem econômica (mundo do ser) ou conjunto de princípios e regras essenciais ordenadoras da economia, é de se esperar que, como tal, opere a consagração de um determinado sistema econômico”27. Nesse sentido, ao se observar a ordem econômica brasileira, alguns valo24) RODRÍGUEZ-ARAÑA, Jaime. La vuelta al derecho administrativo (a vueltas com lo privado y lo público). In: A & C – Revista de direito administrativo e constitucional. Belo Horizonte: Fórum, ano 5, n. 20, abr./ jun., 2005. p. 23-31. 25) Ibid, p. 37. 26) SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 19 27) GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 72.

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res fundamentam a sua existência, tais como a valorização do trabalho humano, livre iniciativa, existência digna, justiça social, entre outros princípios que estão elencados nos incisos do artigo 170, da Constituição Federal. Os valores que fundamentam a ordem econômica brasileira são de extrema relevância e não podem ser esquecidos sob pena de configurar em alguns casos o abuso de poder econômico. Em outras situações, algumas atividades que são exercidas sob um perfil econômico, mas que possuem sobremaneira a finalidade de atingir a função social e podem não atingir o seu objetivo final, justamente em razão da inobservância dos valores constitucionais. O estudo da ordem econômica é importante no que concerne aos serviços públicos, tendo em vista a classificação que alguns doutrinadores fazem ao instituto em análise e segundo a qual o presente ensaio se filia. Nesse sentido, Eros Roberto Grau classifica a atividade econômica de modo amplo e estrito, sendo que o serviço público compõe a atividade econômica no sentido amplo. O referido autor conclui o seguinte: “ A verificação de que o ‘gênero’ – ‘atividade econômica’ – compreende duas ‘espécies’: o ‘serviço público’ e a ‘atividade econômica’”28. Esta é uma nova visão dada ao serviço público, qual seja, de que ele é uma atividade econômica. Estar classificado como atividade econômica não significa a desnaturação do serviço público, uma vez que, conforme exposto, ele tem como finalidade a promoção em última análise do princípio da dignidade da pessoa humana. Cristiane Derani explica de forma clara como existem atividades que não estão submetidas às leis do mercado, mas são atividades econômicas: Em suma, nenhuma das atividades do Estado é estritamente de mercado, basicamente porque o interesse que move a ação não é o lucro, mas o interesse coletivo. Não obstante, pode-se constatar graus de inserção no mercado. (...) Por fim, há atividades econômicas em que nem a origem do capital está no mercado e nem o produto ofertado submete-se às leis de preferência e dos preços. São atividades destinadas a toda a população (serviços universais), cujo fornecimento deve permanecer constante (serviços permanentes), e a remuneração é calculada para a manutenção do serviço e não segundo o aumento da vantagem do investidor – permitindo-se subvenções e subsídios cruzados (tarifas). São os serviços públicos.29

Quando o Estado faz a concessão de determinado serviço público à iniciativa privada, o serviço não deixa em momento algum de ser público, devendo ser regido pelo interesse da coletividade e, conseqüentemente, deve obedecer a sua função social dentro do Estado. O agente econômico, qual seja, o concessionário, poderá até obter lucro, mas esta não será a finalidade última da prestação do serviço. Tal decorrência nada mais é que uma característica da própria materialidade do serviço público que tem como objetivo a satisfação de necessidades 28) Ibid, p. 94. 29) DERANI, Cristiane. “Privatizações ...”, p. 58-59. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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individuais e coletivas. Nesse sentido, frise-se mais uma vez o fato de que por mais que o serviço público seja vislumbrado como uma espécie que compõe a atividade econômica em sentido amplo, de acordo com a doutrina de Eros Roberto Grau; ele não seguirá os mesmos princípios do modo de produção capitalista, tampouco poderá ter como único objetivo o lucro, fato presente na atividade econômica em sentido estrito. Caso tal fato ocorresse, qual seja, o serviço público prestado tendo como único objetivo a obtenção de lucro, haveria uma instrumentalização no instituto e um retrocesso na sociedade quanto aos direitos conquistados, tendo em vista que um dos efeitos na prestação de serviços públicos é o aumento da igualdade e a promoção da solidariedade. Nesse mesmo viés, a doutrinadora Cristiane Derani30 confirma que o serviço público é realizado em razão do interesse coletivo e este, segundo a doutrinadora, é: (...), em síntese, a vontade de preservação da coesão social pelo fortalecimento dos laços da solidariedade. Portanto, é possível se referir ao princípio do interesse público (ou interesse coletivo como interesse da coletividade) sem que ele se refira a um valor específico. Trata-se de um referencial, um ideal regulador, parâmetro pelo qual se buscará pautar as decisões estatais em todas as suas instâncias orgânicas. (...) Por isso, o conteúdo do interesse coletivo comporta a solidariedade social. E a solidariedade social é conquistada no constante confronto social de ajuste e transformação das relações existentes. 31

Ora, se o serviço público for observado como meio de promover a coesão social, havendo, portanto, uma valorização maior no que se refere ao seu elemento material, as transformações pelas quais ele passou são mudanças muito mais formais, que não prejudicaram os direitos conquistados pela sociedade. Outro teórico que acaba vinculando a noção de serviço público à concepção de direitos e garantias é Marçal Justen Filho: A atividade de serviço público envolve, então, aspecto econômico na acepção de que o atendimento a essas necessidades humanas relacionadas imediatamente à dignidade da pessoa humana pressupõe a alocação de recursos escassos. Sob esse ângulo, seria necessário reconhecer que a exploração dos recursos escassos necessários ao atendimento às necessidades fundamentais envolve uma racionalidade muito mais intensa do que se passa a propósito das demais atividades. Afinal, trata-se de servir às demandas mais essenciais dos seres humanos – logo, devem ser adotadas todas as decisões que ampliem a eficiência na utilização dos recursos, propiciando a melhor satisfação para o mais amplo número de beneficiários. 32 30) Ibid, p. 55 31) Ibid, p. 53. 32) JUSTEN FILHO, Marçal. “Teoria ...”, p. 30.

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Assim, fazendo uma breve comparação entre a visão de Cristiane Derani e a do doutrinador Marçal Justen Filho, observa-se que a doutrinadora vincula serviço público à promoção da solidariedade social, enquanto o outro teórico relaciona o instituto com o princípio da dignidade da pessoa humana. Outro aspecto que deve ser salientado da doutrina de Marçal Justen Filho é a questão da eficiência. Ora, na mudança do Estado de Bem-Estar Social para o Estado neoliberal, observa-se que há uma transformação no que concerne à legitimidade estatal33. Na época do Liberalismo, para se tomar um dos modelos mais antigos do Estado Moderno, a legitimidade pautava-se na legalidade, concebiase o Estado polícia. Já no modelo do Estado de Bem-Estar Social, pode-se verificar a mudança na legitimidade que passa a ser a necessidade e em decorrência do fato, aumenta significativamente a prestação dos serviços. Nesse sentido, Marçal Justen Filho demonstra que “Não seria exagero afirmar que o Estado de Bem-Estar é o Estado do Serviço Público”34. No que se refere ao modelo do Estado neoliberal, a eficiência é a bandeira que legitima o poder e a maioria dos atos passam a ser prestados objetivando uma maior produtividade. Basta observar a mudança no modelo de Estado, que passa de burocrático para ser do tipo gerencial, buscando, assim, uma maior eficiência. No mesmo sentido, preconiza Emerson Gabardo “ (...) o modelo racional burocrático, por excelência legitimado por ‘a prioris’ e procedimentos, tornase obsoleto em comparação com a alternativa gerencial, que por não desejar ser nem liberal nem burocrática, torna-se uma ‘metáfora dos resultados’, ou, quem sabe, um ‘eufemismo’”35. A eficiência é inclusive estabelecida como princípio constitucional que rege a Administração Pública e foi inserida no texto constitucional após a Emenda Constitucional nº 19 de 199836. A referida emenda é que modificou o modelo de Estado, conforme retrata Egon Bockmann Moreira, “Nesse contexto, o Ministério da Administração Pública e a Reforma de Estado desenvolveu aquilo que se denominou de ‘reforma gerencial do Estado’. Pretendeu-se extinguir a chamada ‘Administração Burocrática’ e criar um sistema denominado ‘racionalidade administrativa’ segundo os fins”37. Tal modificação deu início ao processo de desestatização brasileira, que atinge 33) Quando se fala em neoliberalismo, deve-se ter em mente que o Brasil sequer atingiu o modelo do Estado de Bem-Estar Social, tampouco o neoliberalismo. O país apenas adota práticas neoliberais, mas não apresenta um modelo neoliberal em si. 34) JUSTEN FILHO, Marçal. “Teoria ...”, p. 23. 35) GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. p. 14. 36) “Art. 37 “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” 37) MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a lei 9.784/99. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 122. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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diretamente os serviços públicos e no que toca ao tema de desestatização ou privatização, como se queira melhor entender, Emerson Gabardo destaca que “Na retórica do sistema de gerência por resultados, a privatização é requisito da eficiência”.38 Observa-se, portanto, que a eficiência é o fundamento que legitima o processo de privatização e que terá reflexos profundos na estruturação dos serviços públicos. Contudo, tratando-se a eficiência de um princípio e sabe-se que os princípios é que norteiam a interpretação constitucional, deve-se ter cuidado a fim de que o referido princípio não seja desvirtuado e torne-se pretexto para a tomada de decisões que prejudique a sociedade. Egon Bockmann Moreira39 deixa claro o perigo existente: Atente-se para o fato de que a inserção da eficiência como princípio constitucional pode causar sérias distorções, que devem ser desde logo afastadas. No setor privado “eficiência” é a relação estrita entre objetivos lucrativos (resultados previstos) e a eficácia da atividade (excelente utilização de recursos disponíveis). O fim dessas atividades não é a estrita obediência e respeito ao cidadão.

O referido doutrinador ainda alerta que “Em um Estado Democrático de Direito, a busca primordial dos entes administrativos não é puramente a eficiência ‘stricto sensu’, mas o respeito aos cidadãos e o atendimento ao seu bemestar; a realização dos direitos fundamentais do Homem”40 e determina que “Será eficiente a Administração Pública que cumprir com excelência a lei e a moral, de forma impessoal e pública. A violação a qualquer um desses princípios implica inequívoca violação à eficiência”41. Observa-se, portanto, que uma Administração Pública eficiente é uma administração moral, que deve pautar seus atos em virtude do interesse público, buscando, desta feita, conjugar esforços para que todos os princípios previstos no artigo 37, caput, da Constituição Federal, quais sejam, da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade sejam devidamente atendidos e observados. A doutrinadora Cristiane Derani possui uma visão ainda mais ampliada do princípio da eficiência: Um Estado eficiente é aquele que sabe operar suas instituições de modo a melhor atingir seus fins. Em outras palavras, o Estado é eficiente quando a administração pública é capaz de fazer uso do poder que detém para cumprir com todas as suas funções, em perfeito atendimento aos princípios que suportam sua atividade, concretizando a finalidade máxima de generalização do bem-estar ou de distribuição eqüitativa da riqueza social por todos os integrantes da sociedade. 38) GABARDO, Emerson. “Princípio ...”, p. 69. 39) MOREIRA, Egon Bockmann. “Processo administrativo ...”, p. 125. 40) Ibid, p. 126. 41) Ibid, p. 141. 42) DERANI, Cristiane. “Privatizações ...”, p. 143.

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Este fato distancia certamente o sentido de eficiência da administração pública do sentido de eficiência econômica, que, por sua vez, terá um sentido derivado da economia neoclássica e outro diverso oriundo da economia social.42

Pode-se concluir, então, que a eficiência que rege a Administração Pública não é uma eficiência econômica, tendo em vista que, se assim fosse, muitos direitos e garantias dos cidadãos seriam desrespeitados. A eficiência no âmbito da Administração Pública deve ter como objetivo o respeito ao cidadão e ao interesse público, não devendo ser vislumbrada em momento algum como fundamento para atos que objetivem uma maior lucratividade. Já foi observado, anteriormente, que ainda que existam serviços públicos com caráter econômico, eles são diferentes da atividade econômica da iniciativa privada que não tenha a regulação estatal. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao princípio da eficiência, uma vez que ele é diferente no âmbito público se comparado ao que ocorre na esfera privada. Por fim, como exposto anteriormente, a eficiência é que fundamentou o processo de desestatização ou privatização dos serviços públicos, trazendo uma profunda modificação na estruturação do instituto em estudo.

5 CONCLUSÃO Ao final do breve estudo, pode-se concluir que o instituto dos serviços públicos passou por uma profunda transformação, mas tal fato não significa a morte do instituto, mas um renascimento deste com o fortalecimento de determinado elemento que o compõe, neste caso, o material e o enfraquecimento de outros. O renascimento do instituto dos serviços públicos nada mais é que o espelho da evolução da sociedade e a introdução do princípio da eficiência. Não se deve esquecer em momento algum que o objetivo primordial dos serviços públicos é a concretização dos direitos fundamentais e a realização da solidariedade, devendo ser prestado de um modo eficiente com fundamento na moralidade.

6 REFERÊNCIAS BATISTA, Joana Paula. Remuneração dos serviços públicos públicos. São Paulo: Malheiros, 2005. DERANI, Cristiane. Privatizações e serviços públicos: as ações do estado na produção econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002. DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da administração publica. Coimbra: Almedina, 1996. GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa va. São Paulo: Dialética, 2002. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 1988. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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A ilegitimidade da pena privativa de liberdade à luz dos fins teóricos da pena no sistema jurídico brasileiro Yvana Savedra de Andrade Barreiros Graduada em Direito (UP); Graduada em Comunicação Social - Jornalismo (PUCPR); Especialista em Língua Portuguesa (PUCPR); Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA)

1 INTRODUÇÃO De acordo com César Roberto Bitencourt1, para a ciência do Direito Penal, a afirmação de que a pena se justifica por sua necessidade é quase unânime. Ela consiste, para Muñoz Conde2, num recurso utilizado pelo Estado para coibir condutas lesivas, tornando possível a convivência em sociedade. Segundo Júlio Fabbrini Mirabete3, “perde-se no tempo a origem das penas, pois os mais antigos grupamentos foram levados a adotar certas normas disciplinadoras, de modo a possibilitar a convivência social”. No entanto, enfatiza que, nas antigas civilizações, predominava a idéia de castigo, de modo que a sanção mais freqüentemente aplicada era a de morte, e a repressão alcançava o patrimônio do infrator, bem como seus descendentes, não havendo, então, a vigência do princípio da pessoalidade das penas, que impede a penalização de outras pessoas além do delinqüente. De acordo com Mirabete4, mesmo na Grécia Antiga e no Império Romano, havia predominância das penas capitais e das sanções aflitivas, que, dentre outros suplícios, incluía os açoites e as mutilações. Porém, assevera que, mesmo nesse cenário de insensibilidade humana, Sêneca já apregoava “a idéia de que se 1) BITENCOURT. Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, v. 1. 7. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2002. p. 65. 2) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 65. 3) MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 17. ed. São Paulo : Atlas, 2001. p. 243. 4) MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 245. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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deveria atribuir à pena finalidades superiores, como a defesa do Estado, a prevenção geral e a correção do delinqüente” e “na Grécia Clássica, entre os sofistas, como Protágoras, surgiu uma concepção pedagógica da pena”. Conforme Mirabete5, a despeito desses posicionamentos isolados, a repressão penal, por vários séculos, foi exercida primordialmente por meio da pena capital, que era, no mais das vezes, executada de forma cruel. E as penas que preservavam o apenado vivo eram demasiadamente cruéis e infamantes. De acordo com Maurício Antônio Ribeiro Lopes6, foi somente no Iluminismo, período em que o Direito Penal se corporificou como ciência autônoma, que começaram a surgir preocupações efetivas sobre a função das punições, bem como sobre a legitimidade das penas. Segundo o autor, o cerne dessas preocupações era o estabelecimento de um novo racionalismo acerca da Justiça, fundado num modelo jusnaturalista de Estado e de Direito, no âmbito do qual se estabeleceu o princípio da legalidade como garantia e, na mesma esteira, a discussão acerca da função das sanções penais. Desde então, afirma Heleno Cláudio Fragoso7, a doutrina tem buscado explicar o fundamento das sanções penais por meio de teorias absolutas, relativas e unitárias, as quais gravitam em torno de duas idéias fundamentais: a prevenção e a retribuição. Contemporaneamente, a pena por excelência é a pena privativa de liberdade. Sob a perspectiva da prevenção e da retribuição, questiona-se se essa modalidade de pena, ao se sustentar sobre esses fundamentos, consegue alcançar os fins a que se propõe. Se a pena privativa de liberdade, por sua natureza, não consegue trazer como resultado a concretização de todas as finalidades a que se visa alcançar, não pode ser considerada uma modalidade de pena compatível com um sistema que busca com a aplicação de sanções penais finalidades outras, que vão além da mera retribuição, tal como o sistema brasileiro, constituído em Estado Democrático de Direito garantista.

2 OS FINS DA PENA NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO No sistema jurídico-penal brasileiro, até 1984, não havia um posicionamento legislativo explícito sobre as finalidades a serem alcançadas pela pena. A despeito dessa ausência de posicionamento legislativo, segundo Luiz Flávio Gomes8:

5) MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244. 6) LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Alternativas para o Direito Penal e o princípio da intervenção mínima. In: Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 87, n. 757, p. 402-411, nov. de 1998. 7) FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004. p. 343. 8) GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1037, 4 maio 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=8334>. Acesso em: 10 mar. 2007.

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No âmbito dogmático (teórico), com certa tradição, (quase) sempre nossos doutrinadores mantiveram-se filiados às teorias ecléticas (ou mistas ou de união ou unitárias), que unificam as idéias de retribuição (ao mal do crime o mal da pena) e prevenção, tanto geral (ameaça a todos para que não venham a delinqüir) como especial (evitar que o criminoso volte a delinqüir).

Para Gomes9, esse posicionamento doutrinário exerceu influência no Código Penal brasileiro vigente, que, com a reforma penal de 1984, adotou expressamente a teoria mista sobre os fins da pena, afirmando, assim, um duplo sentido para a pena: retribuição e prevenção. O artigo 59 do Código Penal explicita os fins a serem perseguidos pela pena, nos seguintes termos: “o juiz, atendendo à culpabilidade [...], estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime [....]”. Uma vez que a própria legislação afirma a existência de finalidades a serem alcançadas com a aplicação da pena, é importante traçar um panorama geral acerca das teorias sobre os fins da pena, a fim de que se possa constatar se a pena privativa de liberdade atinge seu escopo, respondendo assim à indagação inicial.

3 TEORIAS ABSOLUTAS De acordo com Mirabete10, as teorias absolutas ou retribucionistas “têm como fundamento da sanção penal a exigência da justiça: pune-se o agente porque cometeu o crime (punitur quia peccatum est)”. Segundo essa teoria, afirma João Mestieri11, “não se persegue com a pena nenhum fim para além da justa e proporcionada retribuição; a recuperação do delinqüente não é vista como sendo tarefa do Direito Penal, embora seja efeito desejável”. Para uma melhor compreensão da pena em sentido absoluto ou retributivo, é preciso levar em conta o modelo de Estado que lhe deu vida. A pena como retribuição deita suas raízes no Estado absolutista, que entre suas características mais significativas apresentava a identidade entre soberano e Estado, entre Direito e moral e entre Estado e religião. 12 Afirmava-se metafisicamente que o poder do soberano lhe era concedido diretamente por Deus. Assim, em vista do seu fundamento religioso, a idéia que se tinha de pena era a de um castigo com o qual se expiava o mal cometido. Isso porque, de certo modo, “no regime do Estado absolutista, impunha-se uma pena a quem, agindo contra o soberano, rebelava-se também, em sentido mais que figurado, contra o próprio Deus”.13 Com o surgimento do Estado burguês, fundado no contratualismo, o Estado passou a ser uma expressão soberana do povo, e a pena passou a ser conce9) GOMES. Funções da pena no Direito Penal brasileiro... 10) MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244. 11) MESTIERI, João. Manual de Direito Penal: parte geral. v. 1. Rio de Janeiro : Forense, 2002. p. 260. 12) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 69. 13) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 69. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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bida como retribuição a uma perturbação da ordem jurídica adotada pelos homens de forma consensual e consagrada pelas leis.14 Kant e Hegel estão entre os mais expressivos defensores das teorias retribucionistas da pena. No entanto, “é notória uma particular diferença entre uma e outra formulação: enquanto em Kant a fundamentação é a ordem ética, em Hegel, é a ordem jurídica”.15 Kant16 defendia que “a pena era um imperativo categórico, conseqüência natural do delito, uma retribuição jurídica”, pois ao mal do crime impõe-se o mal da pena, do que resulta a igualdade como elemento efetivador da justiça. Para Kant17, o castigo, além de compensar o mal, permitia a reparação moral. Assim, o castigo era imposto por exigência ética, não havendo, portanto, conotação ideológica nas sanções penais. A pena, sob a ótica da metafísica kantiana, era entendida como um fim em si mesma, visando tão somente a recompensar o mal com o mal. Conforme Zaffaroni et al.18, as teorias absolutas, cujo fundamento se encontra em Kant, tendem a retribuir para assegurar a eticidade, quando uma ação a contradiga de modo objetivo, impondo ao agente um sofrimento equivalente ao injusto praticado. A tese de Hegel, por sua vez, resume-se na máxima de que “a pena é a negação da negação do Direito”19 e, ao negar o delito, conseqüentemente, promove a afirmação do Direito20. Para Hegel, a pena encontra seu fundamento na “necessidade de restabelecimento da ‘vontade geral’, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pelo delinqüente”, o que lhe dá um caráter mais jurídico do que em Kant, que não atribui à pena qualquer finalidade, na medida em que a entende como um fim em si mesma.21 Para os partidários das teorias absolutas da pena, segundo José Cerezo 22 Mir , qualquer tentativa de atribuição de fins utilitários à pena, tais como os preventivos, caracteriza afronta à dignidade humana do delinqüente, que estaria sendo utilizado como instrumento para a consecução de fins sociais. Para Kant23, isso seria misturar o homem com o direito das coisas. De acordo com Eugênio Raul Zaffaroni et al.24, as teorias retribucionistas 14) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 67. 15) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 69. 16) Apud MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244. 17) Apud MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244. 18) ZAFFARONI et al. Direito Penal Brasileiro..., p. 115. 19) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 72 20) PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. v. 1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. p. 444. 21) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 72. 22) Apud PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro..., p. 444. 23) Apud FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 345. 24) ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 3v. 2.ed. Rio de Janeiro : Revan, 2003. p. 114.

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da pena “legitimam o confisco do conflito: tratam de racionalizar a exclusão da vítima do modelo punitivo. Por isso pretendem defender [...] um ente que não tem nunca qualquer correspondência com os direitos da vítima, mas que pertence à sociedade concebida de maneira organicista [...] ou contratualista, dependendo da amplitude do poder punitivo legitimado e conforme debilite mais ou menos o estado de direito”. Diversos doutrinadores criticam as teorias absolutas ou retributivas. Para Claus Roxin25, a retribuição tem seu fundamento no impulso de vingança, que originou historicamente a pena, de modo que não se pode considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança. Assim, entende contestável que o Estado, por meio da retribuição, promova a expiação do delinqüente a fim de compensar o mal cometido. Isso porque a idéia de uma retribuição compensadora só pode ser plausível mediante um ato de fé, já que, racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal cometido acrescentando-lhe um segundo mal, que é a pena. Juarez Cirino dos Santos26, com fundamento na doutrina de Peter-Alexis Albrecht, afirma que a crítica ao discurso retributivo indica que “a retribuição (expiação ou compensação) da culpabilidade é o fundamento metafísico da punição: retribuir um mal com outro mal pode corresponder a uma crença – e, assim, constituir um ato de fé –, mas não é um argumento democrático, nem científico”. Não é argumento democrático, “porque no Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo – e não em nome de Deus – e o direito penal tem por objetivo a proteção de bens jurídicos – e não realizar vinganças”. Também “não é argumento científico porque a culpabilidade retribuída (compensada ou expiada) se fundamenta numa hipótese indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano”27. Ressalta, nesse sentido, que “o pressuposto da liberdade de vontade foi banido de todas as ciências”, sobrevivendo apenas nas teorias jurídicas que pretendem definir o fundamento material da culpabilidade28. A despeito da pertinência das críticas apontadas, a teoria apresenta um conteúdo talional29, o que, de certa forma, imprime-lhe um caráter de justiça (no sentido tomista de dar a cada um aquilo que lhe é devido), já que há uma idéia de proporcionalidade entre a pena e o mal cometido. Essa equivalência representa um avanço em relação ao modelo de sanção penal que figurava nas antigas civilizações que se pautavam em sanções capitais e aflitivas desproporcionais em relação ao mal cometido.

25) ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. trad. Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. 3. ed. Lisboa : Vega, 1998. p. 19. 26) SANTOS, Juarez Cirino dos. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal. Disponível em: http:/ /www.cirino.com.br/artigos/jcs/realidades_ilusoes_discurso_penal.pdf. Acesso em: 21 mar. 2007. 27) SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal... 28) SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal... 29) O Talião estabeleceu penas pessoais, previamente estabelecidas e proporcionais à agressão sofrida (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral, v.1, 3. ed., São Paulo : Saraiva, 2001. p. 275). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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4 TEORIAS RELATIVAS De acordo com Fragoso30, as teorias relativas partem de uma concepção utilitária da pena, justificando-a por seus efeitos preventivos. A pena, sob essa ótica, não visa a retribuir o mal cometido e sim, de algum modo, evitar sua prática. Para os defensores das teorias relativas, a pena é entendida como um mal necessário. A função preventiva da pena, a partir de Feuerbach, divide-se em duas funções bem delimitadas: a de prevenção geral e a de prevenção especial31, sobre as quais se discorrerá a seguir.

4.1 TEORIA DA PREVENÇÃO GERAL

As teorias de prevenção geral, segundo Bitencourt32, tiveram seu desenvolvimento no Iluminismo, na passagem do Estado Absolutista para o Liberal, e não objetivavam apenas retribuir o fato delitivo cometido, mas prevenir a sua prática por meio da intimidação de todos os membros da comunidade jurídica, pela ameaça da pena. Essa teoria reconhece, “por um lado, a capacidade racional absolutamente livre do homem – que é uma ficção como o livre-arbítrio –, e, por outro, um Estado absolutamente racional em seus objetivos, que também é uma ficção”.33 Bitencourt34 destaca entre os defensores da teoria da prevenção geral autores como Beccaria, Bentham, Feuerbach, Filangieri e Schopenhauer. Dentre eles, tem especial relevo Feuerbach, que formulou a “teoria da coação psicológica”, considerada, em seu tempo, a mais inteligente fundamentação do direito punitivo. Feuerbach35 sustentava que, por meio do Direito Penal, poder-se-ia dar uma solução ao problema da criminalidade, pois a ameaça da aplicação da pena funcionaria como ferramenta destinada a evitar o cometimento de crimes, em função do temor da pena, entendido como coação psicológica cuja pretensão seria evitar o fenômeno delitivo. Conforme Bitencourt36, é possível sustentar que a prevenção geral se fundamenta sobre duas bases: a intimidação, ou seja, o uso do medo de ser punido como forma de evitar o cometimento de crimes, e a ponderação da racionalidade humana. Parte-se do pressuposto antropológico de “um indivíduo que a todo momento pode comparar, calculadamente, vantagens e desvantagens da realização do delito e da imposição da pena”. Na mesma linha, Zaffaroni et al.37, que subdividem a prevenção geral em positiva e negativa, sustentam que a prevenção geral negativa “pretende obter com a pena a dissuasão dos que não delinqüiram e possam vir a se sentir tentados a fazê30) FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 344. 31) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76. 32) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 77. 33) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 77. 34) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76 35) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76 36) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76 37) ZAFFARONI et al. Direito Penal Brasileiro..., p. 117

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lo”. No entanto, argumentam que, “com esse discurso, a criminalização assume uma função utilitária, livre de qualquer consideração ética”. Ou seja, parte-se “de uma concepção mecânico-racional do humano, como um ente que em qualquer circunstância realizaria a comparação custo-benefício”. Em suma, pressupõe-se um infrator racional “que maximiza o benefício esperado de sua conduta por sobre o custo”. No que diz respeito à prevenção geral positiva, Zaffaroni et al.38 afirmam que a mesma possui como discurso legitimador o efeito positivo que a criminalização exerceria sobre os não-criminalizados, não, contudo, “para dissuadi-los pela intimidação, e sim como valor simbólico produtor do consenso, e, portanto, reforçador de sua confiança no sistema social em geral (e no sistema penal em particular)”. Sob esse prisma, “o delito seria uma má propaganda para o sistema, e a pena seria a expressão através da qual o sistema faria uma publicidade neutralizante”. Segundo essa teoria, “uma pessoa seria criminalizada porque com isso a opinião pública seria normatizada ou renormatizada” em função do consenso que sustenta o sistema social. No entanto, argumentam que, “como os crimes de colarinho-branco não alteram o consenso enquanto não forem percebidos como conflitos delituosos, sua criminalização não teria sentido”. Ou seja, “na prática, tratar-se-ia de uma ilusão que se mantém porque a opinião pública a sustenta, e convém continuar sustentando-a e reforçando-a porque com ela o sistema penal se mantém”. Em suma, “o poder a alimenta para ser por ela alimentado”.39 Segundo a tese de Baratta, apontada por Santos40, a prevenção geral possui uma “função positiva de estabilização social normativa”, que “surge em conjunto com o direito penal simbólico, representado pela criminalidade econômica, ecológica etc., em que o Estado não parece interessado em soluções sociais reais, mas em soluções penais simbólicas, que protegeriam complexos funcionais (a economia, a ecologia etc.) – e não bens jurídicos individuais”. Santos41 acrescenta que o direito penal simbólico não tem função instrumental, ou seja, não existe para ser efetivo. Sua “função é meramente política e se exerce por meio da criação de imagens ou de símbolos que atuam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis”. Argumenta ainda que “o conceito de integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político do Estado”42. Winfried Hassemer43, por sua vez, “observa que a idéia de prevenção desprendeu-se de seu sabor terapêutico, social ou individual” para se estruturar 38) ZAFFARONI et al. Direito Penal Brasileiro..., p. 121-122 39) ZAFFARONI et al. Direito Penal Brasileiro..., p. 121. 40) SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal... 41) SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal... 42) SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal... 43) Apud CAPEZ. Curso de Direito Penal..., p. 6. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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como um instrumento de intervenção na luta contra a criminalidade. Sob essa ótica, “o delinqüente tende a converter-se num inimigo, e o direito Penal, em um direito Penal para inimigos”. Claus Roxin44 também tece críticas acerca da prevenção geral, afirmando que a teoria faz com que se castigue um indivíduo não em consideração a ele próprio, mas em consideração a outros. Para ele, mesmo que a intimidação seja eficaz, é difícil aceitar como justo que se imponha um mal a alguém para que outros não pratiquem o mal. Na mesma esteira, Gomes45, afirma que “de modo algum, pode o autor de um crime ser tomado como ‘bode expiatório’, como ‘paradigma’ (‘exemplo’) para a sociedade, como meio para se alcançar a finalidade de prevenção geral”. Nesse sentido, Wolfgang Naukce46, invocando Feuerbach, explica que a pena deve ter uma finalidade; entretanto, essa finalidade não pode contradizer a exigência de um tratamento fundado na dignidade da pessoa humana. Para que fosse possível a efetivação dessa condição, seria necessário que a prevenção geral estivesse adstrita ao âmbito da ameaça da pena, entendida como meio de intimidação do fenômeno delitivo, pois a mera intimidação não lesiona direito algum, nem converte ninguém em objeto. Contudo, se houvesse o efetivo cometimento de um delito, o castigo real a ser imputado deveria pautar-se somente na legalidade, livre de qualquer fim. Roxin47 critica também o fato de que permanece uma lacuna referente aos comportamentos que o Estado possui a faculdade de coibir e em que medida. Ressalta ainda que, como não é delimitável a duração do tratamento terapêutico-social, pode ocorrer que a medida sancionatória ultrapasse os limites plausíveis numa ordem jurídico-liberal, justamente porque a prevenção geral possui, via de regra, uma tendência a promover o terror estatal. Ou seja, “quem pretender intimidar mediante a pena tenderá a reforçar esse efeito, castigando tão duramente quanto possível”. Roxin48 observa ainda que, em muitos grupos de crimes e de delinqüentes, até então, não se conseguiu provar o efeito de prevenção geral a ser alcançado pelas penas. Ademais, os pressupostos dessa teoria não conseguem fundamentar o poder punitivo do Estado, nem limitar suas conseqüências.

4.2 TEORIA DA PREVENÇÃO ESPECIAL

A teoria da prevenção especial, segundo Bitencourt49, busca coibir a prática delitiva, mas de modo diferente da prevenção geral, dirigindo-se ao delinqüente, com o intuito de que ele não mais cometa crimes. 44) ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 24. 45) GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro... 46) NAUCK, Wolfgang, HASSEMER, Winfried, LÜDERSSEN, Klaus. Principales problemas de la prevención General. Trad. Gustavo Eduardo Aboso. Montevideo - Buenos Aires : B de F, 2004. p. 25. 47) ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 23. 48) ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 24. 49) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 79.

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Conforme Jescheck50, “várias correntes defendem uma postura preventivoespecial da pena. Na França, pode-se destacar a teoria da Nova Defesa Social, de Marc Ancel; na Alemanha, a prevenção especial é conhecida desde os tempos de Von Liszt, e, na Espanha, foi a Escola Correcionalista, de inspiração Krausista, a postulante da prevenção especial”. De acordo com Mir Puig51, “independentemente do interesse que possa despertar cada uma dessas correntes, foi o pensamento de Von Liszt que deu origem, na atualidade, a comentários de alguns penalistas sobre um ‘retorno a Von Liszt’”, para o qual “a aplicação da pena obedece uma idéia de ressocialização e reeducação do delinqüente, à intimidação daqueles que não necessitam resocializar-se e também para neutralizar os incorrigíveis. Essa tese pode ser sintetizada em três palavras: intimidação, correção e inocuização”. Roxin52 também tece considerações acerca da teoria da prevenção especial. Segundo ele, a teoria apresenta a possibilidade de que crimes graves não sejam punidos, caso não haja a possibilidade de reincidência do delinqüente. Nesse sentido, faz remissão aos assassinos dos campos de concentração, alguns dos quais mataram inúmeras pessoas inocentes. Muitos deles, no entanto, passaram a viver discreta e socialmente integrados, não necessitando, portanto, de ressocialização alguma e sem que existisse qualquer perigo de reincidência ante o qual devessem ser intimidados. O autor questiona se os mesmos deveriam, por esse motivo, permanecer impunes. Assim, é notório que a referida teoria não é capaz de fornecer a adequada fundamentação da necessidade da pena em tais situações. Em resumo, Roxin53 entende que a teoria da prevenção especial não pode se prestar a fundamentar o Direito Penal, pois “não pode delimitar seus pressupostos e conseqüências”, já que “não explica a punibilidade dos crimes sem perigo de repetição” e, por fim, porque “a idéia de adaptação social coactiva, mediante a pena, não se legitima por si própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia em outros tipos de considerações”. Prado54, além de questionar a aplicabilidade dessa teoria, nas hipóteses de delinqüentes ocasionais, ressalta que, se a hipótese fosse a do cometimento de um delito de pouca gravidade por um sujeito considerado perigoso, recair-se-ía fatalmente na aplicação de uma pena desproporcional ao mal cometido, o que também macula a adoção exclusiva da tese da prevenção especial. Do ponto de vista político-criminal, entretanto, segundo Bitencourt55, a prevenção especial encontra sua justificativa, uma vez que sua proposta é evitar a reincidência do delinqüente no crime. E é justamente nisso que consiste a função preventivo-especial e, de certo modo, a do Direito Penal em seu conjunto. 50) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 80. 51) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 80. 52) ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 21-22. 53) ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 22. 54) PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro..., p. 445. 55) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Isso porque, ao mesmo tempo em que, com a execução da pena, cumprem-se os objetivos de prevenção geral, ou seja, de intimidação, com a pena privativa de liberdade busca-se promover a ressocialização do delinqüente. Zaffaroni et al.56, contudo, fazem duras críticas à teoria da prevenção especial, afirmando que “hoje, através das ciências sociais, está comprovado que a criminalização secundária, entendida como a efetiva atuação repressivo-punitiva das agências estatais, deteriora o criminalizado e ainda mais o prisonizado”. Afirmam ainda, nesse sentido, que a prisão tem efeitos deteriorantes e irreversíveis, a longo prazo, sendo desse modo insustentável a pretensão de “melhorar mediante um poder que impõe a assunção de papéis conflitivos e que os fixa através de uma instituição deteriorante”57, qual seja, a prisão. Ademais, sustentam que ideologias como a reeducação, a repersonalização e a reintegração encontram-se absolutamente deslegitimadas “frente aos dados da ciência social, que utilizam como argumento em seu favor a necessidade de serem sustentadas apenas para que não se recaia num retribucionismo irracional”58. Nessa esteira, Santos59 argumenta que: O discurso da prevenção especial como correção do criminoso pressupõe a capacidade da psicologia, da sociologia, da assistência social etc., de transformar a personalidade do preso mediante trabalhos técnico-corretivos realizados no interior da prisão, segundo previsão legal: a pena deve ser aplicada conforme necessário e suficiente para prevenir o crime (CP, art. 59) e deve ser executada para permitir harmônica integração social do condenado (LEP, art. 1º).

No entanto, fazendo alusão a Michel Foucault, assevera que, “a crítica ao discurso da prevenção especial destaca o fracasso histórico do projeto técnicocorretivo da prisão, caracterizado pelo chamado isomorfismo reformista, de reconhecimento continuado do fracasso da prisão e de reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado”. Os argumentos que demonstram o fracasso da prevenção especial dizem respeito tanto à execução, quanto à aplicação da pena. Em relação à execução da pena, invocando Baratta, Santos60 afirma que a prisão produz no condenado um duplo processo de transformação pessoal caracterizado, por um lado “pela de desculturação progressiva, consistente no desaprendizado dos valores e normas próprios da convivência social” e, por outro, pelo “aprendizado forçado dos valores e normas próprios da vida na prisão: os valores e normas da violência e da corrupção”. Quanto a aplicação da pena, aponta a existência de grave tensão entre a aparência do devido processo legal e a realidade do exercício seletivo do poder de punir. 56) ZAFFARONI et al. Direito Penal Brasileiro..., p. 125. 57) ZAFFARONI et al. Direito Penal Brasileiro..., p. 125. 58) ZAFFARONI et al. Direito Penal Brasileiro..., p. 125. 59) SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal... 60) SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...

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5 TEORIAS MISTAS OU UNIFICADORAS DA PENA As teorias mistas ou unificadoras, adotadas pelo sistema jurídico penal brasileiro, conforme Bitencourt61, objetivam agrupar em um único conceito todos os fins da pena. Mir Puig62 defende que a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são distintos aspectos de um mesmo fenômeno que é a pena. Tais teorias, argumenta Puig63, atribuem ao Direito Penal a função de protetor da sociedade, e sob tal égide surgem duas linhas doutrinárias: uma cuja posição é conservadora e se apóia no Projeto do Código Penal Alemão de 1962 e cujas bases são a proteção da sociedade gerada por uma retribuição justa, e outra que ocupa uma posição progressista, na medida em que se funda no Projeto Alternativo Alemão de 1966 e cujo fundamento é a proteção de bens-jurídicos. Para a segunda corrente, a retribuição consiste apenas no estabelecimento do limite máximo de exigências de prevenção. A pena não deve, pois, exceder o merecido pelo ato praticado. Nesse sentido, Bitencourt64 afirma que “as teorias unificadoras aceitam a retribuição e o princípio da culpabilidade como critérios limitadores da intervenção da pena como sanção jurídico-penal. A pena não pode, pois, ir além da responsabilidade decorrente do fato praticado”. Ainda conforme Bitencourt65, as teorias unificadoras têm como princípio a crítica às soluções monistas, ou seja, às teses sustentadas pelas teorias absolutas ou relativas da pena, consideradas unidimensionais e portanto incapazes de abranger a complexidade dos fenômenos sociais que interessam ao Direito Penal. Bitencourt66 ainda assevera que, inicialmente, as “teorias unificadoras limitaram-se a justapor os fins preventivos, especiais e gerais, da pena, reproduzindo, assim, as insuficiências das concepções monistas da pena”; posteriormente, entretanto, passaram a procurar outras construções capazes de unificar os fins preventivos gerais e especiais, a partir dos diferentes estágios da norma, quais sejam, cominação, aplicação e execução, constituindo, assim, uma nova tese preventiva. Para Roxin67, a simples adição dessas três concepções distintas é fadada ao fracasso, na medida em que destrói a lógica imanente à concepção original de cada uma delas, aumentando o âmbito de aplicação da pena, que se converte em meio de reação apto a qualquer emprego. Afirma ainda que os efeitos de cada teoria não se suprimem entre si, mas, ao contrário, multiplicam-se. Para ele, isso sequer é aceitável teoricamente. 61) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82. 62) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82. 63) Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82. 64) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 83. 65) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 83. 66) BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 83-84. 67) ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 26. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Muños Conde68 argumenta que retribuição e prevenção são dois pólos que não podem subordinar-se um ao outro, sem coordenar-se mutuamente. Nesse sentido, entende que as teorias unificadoras têm o mérito de terem superado a excessiva parcialidade presente tanto nas teorias retributivas quanto nas preventivas, que, isoladamente, não conseguem dar conta de compreender o fenômeno da pena em sua totalidade, já que focam sua atenção em partes distintas do mesmo. Afirma, entretanto, que, qualquer teoria que pretenda compreender o fenômeno penal na sua amplitude deve enfrentá-lo a partir de um ponto de vista totalizador, para então decompô-lo, distinguindo seus diferentes aspectos. É nesse ponto que as teorias unificadoras fracassam, pois, para elas, o fundamental continua sendo a própria retribuição, a partir da qual, secundariamente, se buscam outros fins.

6 A REALIDADE DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE A idéia central da pena privativa de liberdade, conforme Fragoso69, é “de que a prisão deve promover a custódia do condenado, neutralizando-o através de um sistema de segurança, no qual se esgota o sentido retributivo da pena e, ao mesmo tempo, ressocializá-lo ou emendá-lo, através de um tratamento”. Ou seja, a pena privativa de liberdade, em tese, teria de atender a todas as suas finalidades teóricas. Entretanto, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli70 assinalam que. na prática, as penas privativas de liberdade, embora se encontrem no núcleo de todos os sistemas punitivos contemporâneos, em muitos casos se constituem em “fator criminógeno”, ou seja, a sua aplicação acaba por negar os fins teóricos a que se propõe. Deve-se ressaltar também, que as penas privativas de liberdade, são, em geral, resultantes de uma “justiça seletiva”, já que, são por elas atingidos, predominantemente, indivíduos oriundos de seguimentos sociais economicamente desfavorecidos, com menor capacidade intelectual e com menos condições, portanto, de exercer seus direitos.71 Com as penas privativas de liberdade, objetiva-se reintegrar o infrator à comunidade, todavia, é notável o fracasso do sistema prisional como meio de se alcançar tais objetivos. De acordo com Fragoso72, além de as taxas de reincidência serem expressivas, o confinamento gera efeitos devastadores sobre a personalidade humana, que acaba por se ajustar à subcultura prisional, uma vez que é insolúvel a contradição entre as funções de custódia e reabilitação. 68) CONDE. Francisco Muñoz. Introducción al Derecho Penal. 2. ed. Aboso. Montevideo - Buenos Aires : B de F, 2003. p. 73. 69) FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 356. 70) ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. p. 789. 71) ZAFFARONI; PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro..., p. 789. 72) FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 356-357.

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Santos73, nesse sentido, afirma que a pena privativa de liberdade “representa a máxima desintegração social do condenado, com a perda do lugar de trabalho, a dissolução dos laços familiares, afetivos e sociais”. No que concerne à submissão do apenado à cultura prisional, Santos74 afirma que, além de produzir deformações psíquicas e emocionais, exclui a reintegração social e realiza “a chamada self fulfilling prophecy, como disposição aparentemente inevitável de carreiras criminosas”. Sobre a origem de muitos dos problemas oriundos das penas privativas de liberdade, Fragoso75 aponta que: A reunião coercitiva de pessoas do mesmo sexo num ambiente fechado, autoritário, opressivo e violento, corrompe e avilta. Os internos são submetidos às leis da massa, ou seja, ao código dos presos, onde impera a violência e a dominação de uns sobre os outros. O homossexualismo, por vezes brutal, é inevitável. A delação é punida com a morte. Conclui-se assim, que o problema da prisão é a própria prisão, que apresenta um custo social demasiadamente alto.

Em suma, a pena privativa de liberdade, tal como aplicada no sistema brasileiro, não tem como atingir qualquer outra finalidade secundária que extrapole a órbita do mero retribucionismo.

7 CONCLUSÃO O sistema jurídico brasileiro adota a teoria mista como orientadora dos fins a serem alcançados com a penalização. Tal teoria, conforme se apresentou, entende prevenção e retribuição como diferentes perspectivas de um mesmo fenômeno, qual seja, a penalização. Entretanto, é principalmente sob esse aspecto, que as teorias unificadoras fracassam, pois tomam como ponto de partida a própria retribuição, a partir da qual, secundariamente, outros fins são perseguidos. Embora o sistema jurídico atualmente conte com alguns mecanismos cujo objetivo é evitar a privação da liberdade, dentre os quais podem ser mencionadas as penas restritivas de direito, o sursis processual e o sursis penal, apesar de todos os aspectos negativos, a pena privativa de liberdade é predominante no sistema penal brasileiro. A pena privativa de liberdade é cominada em quase todos os tipos penais e nem sempre é passível de ser substituída por alguma medida alternativa. A idéia de retribuição, embora indissociável do conceito de pena, deveria dar lugar a um maior interesse pela ressocialização, resultando numa maior efetivação das finalidades preventivas. Sob essa perspectiva, seria de suma impor73) SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba : ICPC; Lúmen Juris, 2005. p. 23. 74) SANTOS. Teoria da pena..., p. 23 75) FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 357

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tância a inclusão no sistema de um maior número de institutos que representassem alternativas à pena privativa de liberdade, que é, notadamente, a modalidade de pena com mais repercussões negativas, embora ainda seja a mais utilizada. A opção pela aplicação de institutos substitutivos da pena privativa de liberdade, certamente, proporcionaria ao sistema punitivo uma maior efetividade, sobretudo no que diz respeito à realização dos fins a serem alcançados com a penalização.

REFERÊNCIAS BITENCOURT. Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, v. 1. 7. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2002. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral, v.1, 3. ed., São Paulo : Saraiva, 2001. CONDE. Francisco Muñoz. Introducción al Derecho Penal. 2. ed. Aboso. Montevideo - Buenos Aires : B de F, 2003. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004 GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro. In: Jus Navigandi gandi, Teresina, ano 10, n. 1037, 4 maio 2006. Disponível em: <http:// jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=8334>. Acesso em: 10 mar. 2007. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Alternativas para o Direito Penal e o princípio da intervenção mínima. In: Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 87, n. 757, p. 402-411, nov. de 1998. MESTIERI, João. Manual de Direito Penal: parte geral. v. 1. Rio de Janeiro : Forense, 2002 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 17. ed. São Paulo : Atlas, 2001, p. 243. NAUCK, Wolfgang, HASSEMER, Winfried, LÜDERSSEN, Klaus. Principales problemas de la prevención General. Trad. Gustavo Eduardo Aboso. Montevideo - Buenos Aires : B de F, 2004, p. 25. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. v.1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. trad. Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. 3. ed. Lisboa : Vega, 1998. SANTOS, Juarez Cirino dos. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal. Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/ realidades_ilusoes_ discurso_penal.pdf. Acesso em: 21 mar. 2007. ________. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba : ICPC; Lúmen Juris, 2005. ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 3v. 2.ed. Rio de Janeiro : Revan, 2003. ________; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002 248

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Reflexões introdutórias sobre justiça e lealdade no Direito Tributário

André Folloni Advogado e consultor; Doutorando em Direito do Estado (UFPR);Professor de Direito Tributário e de Direito Aduaneiro (Universidade Positivo e PUCPR).

1 VALIDADE E LEGITIMIDADE Uma definição recorrente de direito é aquela que o afirma como um sistema de normas jurídicas destinadas a organizar uma sociedade. O direito seria, então, e sobretudo, uma técnica de organização social. Nesse sentido é a lição de José Juan Ferreiro Lapatza: “O Direito é uma técnica de organização social que utiliza como instrumento ‘essencial’ a norma jurídica, integrada a um ‘sistema’ que nos determina como devemos nos ‘conduzir’ em relação aos ‘demais’”1. É a mesma a definição de Hans Kelsen, para quem “O Direito é uma ordem da conduta humana. Uma ‘ordem’ é um sistema de regras. O Direito não é, como às vezes se diz, uma regra. É um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que entendemos por sistema ... O conceito de Direito ... designa uma técnica específica de organização social”2. Na definição, dois aspectos: o que é o direito – sistema de normas – e qual a finalidade do direito – organização da sociedade. Mas não basta qualquer organização social: é necessário que tal fim se realize com o mínimo de perturbação possível (Tercio Sampaio Ferraz Junior). Ausência de perturbação social é, em certo sentido, paz. Há a estrutura, portanto, e há a função: sistema de normas destinado à organização social pacífica. Estrutura e função não são elementos estranhos, contrários ou contraditórios. São complementares (Norberto Bobbio). 1) Direito tributário: teoria geral do tributo. Trad. Roberto Barbosa Alves. Barueri-SP: Manole; Espanha-ES: Marcial Pons, 2007. p. 3. 2) Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos Borges. 3. ed. 2. tir. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 5 e 8. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Em um estado democrático, o direito será tanto mais legítimo quanto mais apoio tiver da maioria, respeitando os direitos da minoria. Legitimidade é um atributo do estado, na lição de Lucio Levi, “...que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos”3. A ordem jurídica, ensina José Juan Ferreiro Lapatza, “...será tanto mais legítima quanto mais sejam aqueles que a apóiam e quanto mais respeite os que não a apóiam”4. A legitimidade, nesse sentido, diz respeito ao consentimento daqueles integrantes da sociedade para a qual se volta a norma. Mas não um consentimento “...forçado e manipulado”, nas palavras de Lucio Levi; mas um “...consenso livremente manifestado por uma comunidade de homens autônomos e independentes”, pelo que a legitimidade é um fim ainda não alcançado. É uma “...promessa, até agora sempre incompleta na sua manifestação, de uma sociedade justa, onde o consenso, que dela é a essência, possa se manifestar livremente sem a interferência do poder ou da manipulação e sem mitificações ideológicas”5. Em casos nos quais “....o Estado é percebido, na sua estrutura e nos seus fins, como estando em contradição com o próprio sistema de crenças...”, a legitimidade estará abalada6. Legitimidade e validade, então, são dois conceitos com certa independência. Uma norma, para que seja válida, não necessita ser legítima. O apoio da maioria, sem interferências ideológicas, não é requisito de validade da norma. Um decreto baixado pelo Presidente da República, e. g., pode contrariar a grande maioria da sociedade e não será, só por isso, inválido. A recíproca, contudo, não é verdadeira: para que se cogite da legitimidade de uma norma, é necessário que essa norma exista enquanto norma, o que equivale a dizer: é necessário que seja norma válida. Daí a “certa” independência mencionada. Na orientação doutrinária que vimos seguindo, válida é a norma que existe, de modo que existência e validade são termos sinônimos no que respeita à norma7. Legítima, entretanto, é a norma válida que conta com o apoio livre e consciente da maioria da sociedade na qual a norma vigora e que respeita os direitos da minoria. Outra diferença importante: um texto normativo pode ser legítimo no momento de sua edição e deixar de sê-lo posteriormente. Isso ocorrerá sempre que a maioria, que antes 3) Legitimidade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 5. ed. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 675. 4) Op. cit., p. 5. 5) Op. cit., p. 678. 6) LUCIO LEVI, Legitimidade, op. cit., p. 677. Para esse autor, a contestação da legitimidade é a atitude de modificação da ordem vigente (cf. op. loc. cit.). 7) Cf. FOLLONI, André Parmo. A hermenêutica histórica e o “processo” de dano ao erário: em homenagem a José Souto Maior Borges. Raízes Jurídicas. Curitiba, v. 2, n. 1, jan/jun 2006, p. 77-100; Considerações zetéticas: subsídios para um trabalho dogmático. Raízes Jurídicas. Curitiba, v. 1, n. 1, jul/dez 2005, p. 67-94; Constitucionalidade: presunção ou controle? Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo, n. 42, set/ 2006, p. 7-19; Precatórios judiciais e certidão negativa: Estado versus cidadania. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, n. 120, set/2005, p. 26-42; Teoria do ato administrativo. Curitiba: Juruá, 2006.

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apoiava o preceituado, deixe de fazê-lo. Contudo, nada disso atinge a validade: a norma, válida no momento de sua edição, só deixa de ser válida quando outra norma lhe retira a validade. Logo, nem toda norma válida é legítima. Essas considerações iniciais demonstram que a investigação da validade não esgota o espectro de especulações jurídicas. Demonstram, também, algo mais: a validade não deve ser entendida como um requisito suficiente para que se aceite uma norma. É requisito, em princípio, suficiente para que se aceite a norma em uma investigação dogmática; não o é, decididamente, para outros âmbitos de reflexão acerca do jurídico. Uma norma – ou uma ordem jurídica – pode ser criticamente denunciada como ilegítima, mesmo que seja válida, porque, em um sistema democrático, norma ilegítima é norma que contraria os fundamentos mais essenciais daquele sistema. Do que resulta, portanto, que à norma não basta ser válida; deve ser, também, legítima.

2 VALIDADE E JUSTIÇA Mas as considerações podem ir além: nem toda norma válida e legítima será sempre justa. À pergunta que questiona ser a justiça atributo necessário ao direito, ou apenas contingente, várias respostas são possíveis. Uma resposta seria a seguinte: norma que seja injusta causa repúdio. Esse repúdio, por sua vez, causa insatisfação nos membros da sociedade. Essa insatisfação pode levar, e freqüentemente leva, ao descumprimento da norma. Perde-se em efetividade. E se a norma é descumprida, não atinge seu fim de organizar a sociedade. Concluise que, para que o direito seja capaz de efetivamente atingir seus fins de organização social, deve ser justo, além de legítimo. A legitimidade é capaz, ensina Lucio Levi, de transformar “...a obediência em adesão”8, sendo componente necessário para a organização da sociedade com paz e sem perturbação social; o que significa dizer ser necessária para a realização do direito. O que não signifique que seja justa: pode ser que a maioria concorde com uma norma e a ela dê apoio – legitimidade – porque entenda que foi feita, e. g., por quem detinha competência para fazê-lo, ainda que descorde da justiça de seu conteúdo. O direito deve ser necessariamente justo, então, sob pena de não se realizar como ordem de organização social. Daquela definição inicial, obtém-se: o que o direito é – sistema de normas – depende de validade, mas não, obrigatoriamente, de legitimidade ou justiça; para quê o direito serve – organização social com o mínimo de perturbação possível – depende de validade, legitimidade e justiça. Reduzir a justiça à validade é um comportamento equivocado sob o ponto de vista conceitual e, além disso, revelador de uma tendência ideológica de justificação e manutenção de uma determinada ordem jurídica. Não se questionará como injusta uma ordem válida se se entender que justiça e validade são o mesmo. Perde-se, portanto, em potencialidade de crítica ao direito. Por isso, é em sentido contrário que se deve seguir: separar justiça de validade para que uma 8) Op. loc. cit. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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ordem jurídica, mesmo válida, possa ser questionada sob o ponto de vista da justiça (e da ética e da legitimidade). A equiparação da justiça à validade é uma atribuição tardia e derivada de sentido, denunciada por Hans Kelsen, que ensina precisamente o viés político de conservação da ordem jurídica que tal equiparação pode encerrar. Contudo, a separação conceitual entre validade e justiça pode ser interpretada como uma outra atitude ideológica a pretender a separação ontológica entre validade e justiça. Mas aqui se revela o erro: a separação conceitual nada tem a ver com a separação ontológica. Dizer que saúde e felicidade são conceitos diversos não significa dizer que uma pessoa não possa – ou não deva – ser feliz e saudável. Dizer que validade e justiça são conceitos diversos não implica considerar que a norma válida não possa – ou não deva – ser justa. Estamos no plano conceitual das idéias, não no plano ontológico dos entes. Confundir esses planos é distorcer inteiramente o pensamento kelseniano, como se percebe9: Libertar o conceito de Direito da idéia de justiça é difícil porque ambos são constantemente confundidos no pensamento político e não científico, assim como na linguagem comum, e porque essa confusão corresponde à tendência ideológica de dar aparência de justiça ao Direito positivo. Se Direito e justiça são identificados, se apenas uma ordem justa é chamada de Direito, uma ordem social que é apresentada como Direito é – ao mesmo tempo – apresentada como justa, e isso significa justificá-la moralmente. A tendência de identificar Direito e justiça é a tendência de justificar uma dada ordem social. É uma tendência política, não científica. Em vista dessa tendência, o esforço de lidar com o Direito e a justiça como dois problemas distintos pode cair sob a suspeita de estar repudiando inteiramente a exigência de que o Direito positivo deva ser justo. Essa exigência é evidente por si mesma, mas o que ela realmente significa é outra questão.

A exigência de que o direito deva ser justo é evidente por si mesma, diz Hans Kelsen. O Direito deve ser justo; isso é evidente. Mas o significado dessa exigência põe-se em plano diverso: o conceito de direito é um; o conceito de justiça é outro. Direito válido não é necessariamente direito justo, no plano conceitual. Mas, no plano empírico, o direito deve ser justo; o direito válido deve ser, precisa ser, é imperativo que seja justo. Conceitualmente, portanto, validade e justiça são diferentes. Se não o fossem, seriam expressões sinônimas. Não o são, contudo. Avaliar a validade de uma norma é algo diferente de avaliar sua justiça. Uma norma é válida à medida que pertença a uma ordem jurídica. Uma norma é justa à medida que corresponda ao valor “justiça”. Uma norma, por algum motivo, pode ser retirada do sistema ao qual pertence; nesse caso, será invalidada. Esse motivo é, tradicionalmente, um motivo intrínseco ao próprio sistema, sob ponto de vista normativo: a norma é contrária a outra norma e, por isso, (i) merece ser invalidada ou (ii) já o foi. No primeiro caso, e. g., a norma legal contrária à norma constitucional deve ser invalidada; no segundo caso, e. g., a norma jurisprudencial contrária à norma 9) Teoria geral do direito..., op. cit., p. 8-9. Cf., também, na mesma obra, p. 20-21.

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legal em controle concentrado de constitucionalidade invalida-a. Mas isso nada tem a ver, tradicionalmente, com a justiça daquela norma. A justiça é um valor específico, como também o são a validade e a legitimidade. Mas validade e legitimidade são valores mais objetivos em relação ao valor justiça, que é, nessa relação, mais subjetivo. Isso ocorre porque, para sustentar a invalidação ou a ilegitimidade de uma norma, há elementos objetivos – o ordenamento ou a concordância popular. Já para sustentar a injustiça de uma norma, os elementos envolvem algo de subjetividade – ela é injusta para quem o sustenta. Embora a qualificação diferenciadora não possa ser tomada em termos absolutos, pode-se afirmar que, em certa medida, justiça é algo que se sente, enquanto validade e legitimidade são algo que se observa. A percepção da justiça é, então, diferente da percepção da validade e da legitimidade.

3 JUSTIÇA À medida que cresce em subjetividade, a avaliação da justiça cresce em dificuldade. Também: à medida que cresce em subjetividade, o valor justiça cresce em vagueza e em mutabilidade. Em vagueza porque, ainda que possamos – ou pudéssemos – definir um conceito de justiça, saber quais as situações que corresponderiam a esse conceito seria uma tarefa árdua, porque dependeria de um padrão de justiça único, o que não há. Em mutabilidade porque, ainda que possamos – ou pudéssemos – definir um único padrão de justiça, tudo faz presumir que esse padrão se alteraria no tempo. Como é possível, então, dizer que algo é justo, afinal? Essa dificuldade cresce quando se percebe que o próprio conteúdo semântico da palavra “justiça” é impreciso. Felix E. Oppenheim, e. g., trata a justiça formal como sinônima de legalidade (ou, mais amplamente, validade) e a justiça material como sinônima de isonomia10. Isso leva a uma questão interessante: como a validade e a isonomia são questões estritamente jurídicas na maioria dos sistemas contemporâneos, tratar de justiça seria o mesmo que tratar de juridicidade. A justiça perde seu conteúdo próprio para se tornar ora validade, ora isonomia. Como não há um conteúdo único para a justiça, uma decisão deve ser tomada. Vejamos um exemplo: à questão que indaga se é justo que um imposto seja proporcionalmente maior para quem ganha mais dinheiro do que para quem ganha menos cabe pelo menos duas respostas: (i) sim, é justo porque quem tem mais dinheiro pode contribuir mais com o estado, que é quem deve garantir um padrão mínimo de vida a todos e, assim, aquele que tem mais não precisa do estado e pode financiá-lo a fim de garantir a subsistência daquele que tem menos; (ii) não, é injusto porque quem tem mais dinheiro o tem porque trabalha mais e melhor do que aquele que tem menos dinheiro, e não deve ser penalizado por sua eficiência, sendo mais correto exigir do que tem menos que trabalhe mais e, por si só, consiga ter mais. Quando o direito toma para si esse problema 10) Justiça. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 5. ed. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 664. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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e o decide de antemão, como ocorre naqueles países cujo ordenamento jurídico prescreve que os tributos sejam graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes, o problema deixa de ser apenas de justiça e passa a ser de validade. Um tributo em sentido contrário pode ser invalidado sem que se necessite cogitar de injustiça. Mas isso não elimina o questionamento estritamente no que concerne à justiça. Ainda que seja válida, essa norma pode eventualmente ser considerada injusta. Quem o faz, argumenta que a norma é injusta; quem considera em sentido contrário, argumenta que a norma é justa. Se essa questão, que é subjetiva, é levada ao nível unipessoal, qualquer resposta parece impossível. A norma pode ser justa para uns e injusta para outros. Mas se um determinado número de integrantes da sociedade na qual a norma vigora venham a considerá-la injusta e, em razão disso, relutem em obedecêla, a norma perde em sua capacidade de organização social com um mínimo de perturbabilidade. Procurando contornar o problema, é possível dizer que uma determinada ordem jurídica, um comportamento estatal, uma norma jurídica etc. são injustos na medida em que um determinado número de pessoas os refute em seu conteúdo substancial, não os aceite, entenda-os inadequados e contra eles se revoltem. Haverá um sentimento comum de injustiça que causará o repúdio. Haverá uma certa uniformidade de entendimento acerca da justiça ou injustiça em relação àquela questão específica. Para termos jurídicos e de convívio social, é justa uma ordem ou uma norma jurídica cujo conteúdo material conte com a simpatia – possível via para a felicidade – de um determinado número de pessoas, e o será para esse grupo de indivíduos; ao passo que será injusta uma ordem ou uma norma jurídica cujo conteúdo material cause repúdio – possível via para a infelicidade – em um determinado número de pessoas, e o será para esse grupo de indivíduos. Simpatia e repúdio são características emocionais – a justiça é determinada “...por fatores emocionais e, conseqüentemente, de caráter subjetivo...”, ensina Hans Kelsen11. Para que essas justiça ou injustiça sejam relevantes ao direito, esse “determinado” número de pessoas – que de determinado não tem nada – deve ser suficiente para causar abalo à organização social sem muita perturbação. Se apenas uma pessoa considerar a norma injusta, a norma efetivamente será injusta para aquela pessoa ou para aquele padrão de justiça, mas não interferirá na organização pacífica da sociedade. A simpatia e o repúdio precisam ser externados para que se saiba o que a sociedade pensa acerca da justiça da norma. Quais os motivos que levam à simpatia ou ao repúdio é algo que pode ser investigado, em uma pesquisa infinitamente interessante, aliás, mas que, ao que tudo indica, deve ser avaliado caso a caso. A legitimidade, então, relaciona-se com a justiça, mas com ela não se confunde: o fato de que um número qualquer de pessoas aceite uma norma torna-a legítima e, se essa aceitação for por razões de concordância substancial, concordância material e subjetiva com o conteúdo da norma, torna-a, tam11) Teoria geral do direito..., op. cit., p. 10.

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bém, justa para aquelas pessoas. O que não significa que a norma seja sempre justa, sob todos os pontos de vista e para qualquer pessoa, na precisa medida em que a justiça é um sentimento subjetivo. Será justa para aquele grupo; grupo que, quanto maior for, mais difícil tornará a argumentação no sentido da injustiça da mesma norma. Isso, evidentemente, não resolve a questão da justiça. Que todos os habitantes de um país no qual haja pena de mutilação para assaltantes concordem com essa prática e entendam-na justa não faz com que a prática seja justa sob outros pontos de vista. Alguém haverá de achar aquilo injusto. Porém, um sentimento de justiça não pode ser sobreposto a outro com pretensões de sê-lo em virtude de algum cálculo exato ou de uma insubstituível reflexão racional. O problema, portanto, permanece no plano filosófico. Mas, social e politicamente, sob o ponto de vista da comunidade, a ação só deixará de ser justa quando um número qualquer de pessoas a tenha na conta de injusta.

4 JUSTIÇA NO DIREITO PRIVADO E JUSTIÇA NO DIREITO PÚBLICO Uma ordenação jurídica é considerada “justa”, nesse sentido – sob o ponto de vista da sociedade por ela afetada, quando um determinado número de pessoas a ela submetidas atribua-lhe essa qualidade. Esse número de pessoas equivale à quantidade de indivíduos que devem aceitar a ordenação para que ela possa cumprir seus fins de organização social com o mínimo de perturbação possível. Na medida em que uma ordem jurídica respeite certos valores fundamentais comuns à sociedade na qual se aplica, e isso proporcione aceitação do ordenamento por aquela sociedade, possibilitando que o direito cumpra seus fins, então diremos que, para aquela sociedade, aquele ordenamento positivo é considerado justo. Se considerado injusto fosse, aceitação substantiva – concordância relativa ao conteúdo material normado – não haveria. Identificar quais requisitos uma norma ou um ordenamento devem ter para que sejam substancialmente aceitos pela comunidade a eles submetida é identificar as características que a norma ou o ordenamento devem apresentar para que sejam considerados justos pela comunidade a eles submetida. Essas características não parecem ser as mesmas no direito privado e no direito público, na medida em que o objeto normatizado em um é diferente, formal e substancialmente, do objeto regulado em outro. Por exemplo: é comum que se sustente que, no direito público, haja supremacia do estado nas relações jurídicas que surjam entre ele e o cidadão, quando se pressuponha que o estado, nessas relações, está a representar ou a defender o interesse público. Para quem sustenta essa posição de supremacia, teríamos que, no direito público, a posição privilegiada de uma parte na relação jurídica com a outra seria a regra, e sua ausência faria do direito público algo injusto. No direito privado a consideração é invertida: as partes na relação jurídica não estão em relação de subordinação e devem ser tratadas da mesma forma, em regra. O tratamento privilegiado é a exceção e, no mais das vezes, é considerado injusto. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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5 JUSTIÇA NO DIREITO PÚBLICO E LEALDADE Definimos como justa uma norma – ou um ordenamento – que conte com a concordância substancial daqueles aos quais a norma – ou o ordenamento – diz respeito, e ressaltamos que essa norma – ou esse ordenamento – será justa para aquelas pessoas a ela materialmente concordes. Se um número tal de pessoas manifestar essa concordância quanto ao conteúdo normatizado, então aquela norma, para aquela sociedade, será uma norma justa, em que pese possa não o ser para alguns integrantes daquela mesma sociedade ou para terceiros. A norma – ou o ordenamento – deve ser acolhida pela sociedade. Se for considerada injusta, será repudiada pelos cidadãos, o que levará ao seu questionamento ou, no final, ao seu descumprimento, o que impede que a norma – ou o ordenamento – realize seu objetivo de organização pacífica da sociedade. Identificar, de um modo mais ou menos uniforme e geral, quais as situações em que uma norma – ou um ordenamento – causa repúdio social é identificar situações nas quais a sociedade identifica injustiças. Trata-se de pesquisa de cunho sociológico que extravasa o âmbito jurídico-dogmático. Contudo, é necessário para bem compreender as normas que prescrevem a observância de valores – lealdade, boa-fé e moralidade. Porque são esses valores que “...condicionam a aceitação ou a rejeição social das normas”, no diagnóstico de Wagner Balera12. Um dos pontos mais sérios no que diz respeito ao direito público – que, paradoxalmente, é objeto de pesquisa quase exclusivamente no direito privado – é a lealdade, que deve estar presente nas relações intersubjetivas. Uma atitude desleal em uma relação pessoal leva a um sentimento de desconforto e de repúdio – de injustiça – causado pelas sensações de desrespeito, de ultraje, de afronta, de ofensa, de desconsideração. Se essa atitude é da lei ou do estado, o desconforto aumenta na medida em que a atitude vem de quem tem poder, precisamente por deter o monopólio do uso da força. O estado pode usar de força contra alguém, e isso é considerado, se nos casos juridicamente previstos, legal. Já o cidadão, por sua vez, não pode, em regra, usar da força contra o estado. O estado está em posição favorável no jogo de forças em face do cidadão. É o estado quem define as condutas permitidas, proibidas e obrigatórias – normatiza; e, em face da inobservância, pode apreender, multar, prender – sancionar. Se usa desse poder com deslealdade, está agindo com muito mais gravidade do age um cidadão quando atua de forma desleal perante outro cidadão. A hipersuficiência estatal é evidente. Aí está boa pesquisa a ser feita, que deve ser capaz de responder às seguintes questões: O que é o estado? Por quem e para quê é criado? Por que tem posição favorável perante o cidadão no jogo do poder? Por que tem o monopólio do uso da força? O que é lealdade? Confunde-se com boa-fé, moralidade, proteção da confiança, impedimento de exercício abusivo de direito, manutenção das expectativas genuinamente adquiridas? Ou é um gênero do qual todas essas manifestações são espécies? Ou a relação entre eles é de outra ordem? A lealdade 12) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 95.

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é princípio intrínseco ao ordenamento jurídico ou é extrínseco? Em que casos a atitude do estado é considerada desleal pela sociedade? Nessa última questão, podemos, de antemão, lançar algumas hipóteses: É desleal a criação de uma obrigação acessória sem que a norma que a cria tenha sua eficácia inicial suspensa por alguma vacatio legis? É desleal impor obrigações tributárias em excesso, que tornem o custo tributário insuportável pelo cidadão? É desleal dificultar a devolução de um tributo pago indevidamente? É desleal incentivar uma atividade econômica e, em seguida, revogar o incentivo ou passar a atividade para o campo da ilicitude? É desleal cobrar cada vez mais tributos para equilibrar um orçamento mal elaborado e mal executado? É desleal não cumprir os prazos estabelecidos? É desleal impor ao cidadão o ônus de documentar sua atividade econômica mediante a utilização de legislação ininteligível? É desleal impor ao cidadão legislação tributária que se altera com freqüência tal que torna inviável seu conhecimento? É desleal acentuar o rigor da fiscalização tributária sem que haja motivos objetivos para isso? É desleal impedir a empresa de exercer sua atividade econômica impondo-lhe restrições exageradas? É desleal tratar todo e qualquer contribuinte como se fosse sonegador? É desleal formular políticas tributárias e baixá-las via ato do poder executivo sem discussão com a sociedade? É desleal desconsiderar as manifestações do poder judiciário favoráveis ao contribuinte, como, e. g., continuar cobrando um tributo declarado inconstitucional ou não devolver tributo cobrado e declarado inconstitucional em controle difuso de constitucionalidade? É desleal utilizar-se da “ilegalidade eficaz” (José Souto Maior Borges), isto é, cobrar tributo ilegal na expectativa de que o questionamento por parte dos cidadãos será reduzido, como o que, então, a cobrança torna-se financeiramente superavitária13? É desleal utilizar-se de todos os recursos cabíveis e incabíveis para postergar a tutela jurisdicional favorável ao contribuinte em matérias já pacificadas? É desleal postular judicialmente de forma temerária? É desleal baixar norma interpretativa com pretensões de retroatividade para modificar entendimento estatal – jurisprudencial ou administrativo – do qual se beneficiava o cidadão e que passará à condição de tendo atuado em ilicitude, mesmo atuando, até então, segundo o entendimento estatal? É desleal alterar a Constituição para constitucionalizar tributos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal? A doutrina de direito privado costuma tratar, em estágio já avançado, das questões relativas à lealdade ao estudar a boa-fé objetiva; a doutrina de direito público, em estágio ainda intermediário, trata-as ao estudar a moralidade. Moralidade, na lição de Celso Ribeiro Bastos, aproxima-se da confiabilidade – característica da boa-fé, na forma como tratada pelo direito privado14. 13) Cf. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS. O princípio da moralidade no direito tributário. In: _____. O princípio da moralidade no direito tributário. 2. ed. São Paulo: RT; Centro de Extensão Universitária, 1998, p. 30. 14) Cf. O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 88. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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6 LEALDADE E MORALIDADE Estão nos estudos de Direito Constitucional e de Direito Administrativo, em maior quantidade e com maior qualidade, considerações a respeito de valores éticos no direito público. São naquelas disciplinas que se encontram as melhores considerações acerca da moralidade, tida por Ives Gandra da Silva Martins como “...o mais relevante princípio da Administração...”, porque “O governo que descumprir as leis não tem autoridade moral para exigir cumprimento da lei por parte de seus cidadãos, e essa lei deve ser, acima de tudo, ética, moral, justa e lícita”, sendo um “...princípio essencial”15. Tais considerações, comumente, englobam mais de um valor ético e, dentre eles, também a lealdade. É que, ensina Diva Malerbi, “...introduzida como princípio jurídico a moralidade no direito, esta direciona o comportamento do Estado e dos seus agentes, obrigando-os juridicamente, a proceder de acordo com princípios éticos [sic]”16. Embora tendo dificuldades para conceituar a moralidade – ora aproximando-a da legalidade ora da impessoalidade, ora da razoabilidade, ora da finalidade etc., como diagnostica Celso Ribeiro Bastos17 – a idéia de eticização do jurídico deve estar sempre presente. Concordando que a moralidade é a imposição de agir ético à administração pública, temos Ives Gandra da Silva Martins18. É o princípio da moralidade, ensina Celso Ribeiro Bastos, que “...integra o ordenamento jurídico positivo ao senso de justiça e ética prevalente em dado momento histórico”19. Dentre os princípios de ética e justiça, a lealdade. No direito tributário, as considerações relativas à moralidade e, no mesmo sentido, à lealdade, estão longe de ter tratamento doutrinário adequado. Lamentavelmente, é de se discordar de Diva Malerbi, ao afirmar: “A inserção da questão da moralidade administrativa no texto da Constituição de 1988, provocou, como era de se esperar, um renascimento dos estudos do dever da boa administração, bem assim a busca das dimensões éticas do Estado, especialmente nas relações travadas com os particulares em razão da tributação”20. Quanto ao direito administrativo, não opomos discordância. Contudo, cremos que é especialmente na esfera tributária que a busca das dimensões éticas do estado não alcançou, ainda, formulação doutrinária satisfatória. E essa escassez é injustificável, haja vista que “...o princípio da moralidade pública constitui-se, pois, no mais relevante 15) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 17, 18 e 20. 16) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 56. 17) “O que a doutrina tem afirmado, afigura-se-nos insuficiente para dar o mínimo de precisão ao vocábulo [moralidade] ... A dificuldade está, justamente, naquela identificação do espaço próprio da moralidade administrativa ... A moral se manifesta em expectativas e exigências de comportamento como standards, modelos ou idéias de valor e pautas de conduta” (O princípio da moralidade no direito tributário. In: IVES MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 83). 18) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 28. 19) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 90. 20) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 53.

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princípio a ser seguido pelos agentes do erário, em suas relações com o contribuinte” (Ives Gandra da Silva Martins21). Se é difícil – provavelmente impossível – precisar, em termos absolutos, o que é ou o que não é moral, é possível, por outro lado, identificar normas tidas por um determinado número de pessoas como desleais, e essa identificação depende da observação de repúdio àquelas normas. Estamos, aqui, a verificar que a correta interpretação do direito que juridiciza valores sociais de forma ampla, sem defini-los, como ocorre com a juridicização da moralidade, depende de um estudo da própria repercussão da norma no meio social. É a abertura pragmática do direito positivo às atitudes daqueles aos quais o próprio direito se volta. Concorda-se, aqui, com Celso Ribeiro Bastos22: O conceito do que seja moralidade está umbilicalmente ligado ao senso moral subjacente em determinada sociedade. Mas não é fácil tarefa a de se identificar o conteúdo desse senso moral. Os valores, de fato, são variáveis no tempo e no espaço, e nem sempre os padrões de conduta adotados pela maioria segue os valores ideais. Mas não há dúvida de que é fácil identificar pelo menos aquelas situações extremas em que, indubitavelmente, se pode afirmar que a conduta é moral ou imoral, segundo a ética da instituição.

Há que se estudar, explica o autor, o que ocorre na sociedade atingida pela norma23: O que se tem em vista ... é a própria realidade brasileira, e de outra forma não poderia ser, já que a moralidade terá essa situação como substrato apto a desenhar seu contorno mais preciso ... Cada realidade tem seus padrões próprios, e seria de difícil compreensão uma moralidade de caráter universal.

7 LEALDADE E O NOVO NO DIREITO TRIBUTÁRIO O estudo do direito tributário, ao longo dos anos, contribuiu para que uma série de garantias fosse incorporada ao direito positivo. O estudo da democracia e da república, e. g., contribuem para a positivação da legalidade; o estudo da própria legalidade contribui para que se compreenda o que deve estar, necessariamente, em lei (hipótese de incidência tributária, sujeitos da relação jurídica tributária e forma de cálculo do valor do tributo). Há, assim, uma evolução perceptível no rol de garantias tributárias. Inicialmente, legalidade, irretroatividade e capacidade contributiva; em seguida, anterioridade, seletividade e não cumulatividade. Dentre as próximas garantias a serem estudadas pela doutrina, segundo cremos, está a lealdade. Seu estudo detido deve ser capaz de contribuir com o aperfeiçoamento das garantias tributárias e, conseqüentemente, do Estado Democrático de Direito.

21) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 21. 22) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 80. 23) O princípio da moralidade no direito tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, O princípio..., op. cit., p. 82. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Quando o homem sem gravidade invade o processo penal: breves reflexĂľes sobre o juiz no processo penal brasileiro e o necessĂĄrio resgate )#Q'#)E grega Érica de Oliveira Hartmann Mestre em Direito das Relaçþes Sociais (Direito Processual Penal) pela UFPR Doutoranda em Direito do Estado (Direito Processual Penal) pela UFPR Bolsista-Doutoral em Criminologia na Faculdade de Direito de Bolonha-Italia Professora de Direito Processual Penal e PrĂĄtica Penal na Universidade Positivo Guilherme Roman Borges Doutorando e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP. EstĂĄgio-Doutoral na Faculdade de Filosofia de Patras-GrĂŠcia (*3s '7%?)- 7 # 7 7 % )-= 7 , = v 0 #)1?v+ $v %)-= # $9-'7 ). Mestre em Sociologia do Direito na UFPR. Professor de Economia da Universidade Positivo

1 O PENSAMENTO DE CHARLES MELMAN A relativamente recente entrevista do psiquiatra e psicanalista Charles Melman, publicada em 2002, intitulada “O homem sem gravidadeâ€?, revela interessantes aspectos da vida contemporânea ao mesmo tempo que baliza cientificamente o que jĂĄ hĂĄ algum tempo se tem percebido nos meios sociais: o ser humano cada vez mais sem conteĂşdo. Trata, sem dĂşvida, da triste constatação da degradação humana nos mais diferentes sentidos e com reflexos nos mais distintos âmbitos da vida. Em longas conversas com seu colega, tambĂŠm psiquiatra e psicanalista, Jean-Pierre Lebrun, diĂĄlogos esses travados entre julho de 2001 e julho de 2002, fez-se uma anĂĄlise bastante reveladora e, talvez, atĂŠ pessimista, das relaçþes sociais atualmente existentes entre os homens e sobretudo, mais especificamente, do que hoje sĂŁo constituĂ­das as pessoas. Defende a idĂŠia de que hĂĄ, atualmente, uma Nova Economia PsĂ­quica, entendida como uma nova forma de agir nos mais diversos assuntos da vida em sociedade e, apesar de afirmar que essa nova maneira de agir se origina em uma nova forma de pensar, num segundo momento bem ressalta que o ser humano pensante hoje se torna raro. Ressalta que os homens nĂŁo mais sĂŁo movidos pelas suas faltas, como quisera Freud, em verdade, sua satisfação prescinde da falta e, de

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conseqüência, segundo Melman, há o aumento expressivo dos casos de depressão, que vêm substituindo gradativamente as neuroses das quais se ocupou Freud. O homem de hoje não deixou de desejar, porém todos os desejos são tidos como legítimos e, assim sendo, legítima também se tornou a busca pela sua satisfação, custe o que custar. Em outras palavras, todos os desejos atualmente são possíveis e, portanto, alcançáveis. A liberdade, assim, é total para tudo. Deixa de existir qualquer forma de repressão ou limitação das liberdades: hoje, tudo é possível! É possível liberar-se totalmente quanto à opção sexual, seja ela qual for, é possível comprar tudo o que se desejar, ainda que se trate de algo disponível apenas do outro lado do mundo, é possível viajar para muitos lugares, basta se utilizar das facilidades das infinitas linhas de crédito, é possível ter formação universitária, ante a imensa gama de instituições hoje existentes, é possível jouir à tout prix (gozar a qualquer preço).... Aliás, o subtítulo dessa obra dialogal é suficiente para se ter exatamente a idéia defendida por Melman. O homem contemporâneo não tem outra preocupação senão satisfazer suas necessidades. Isso significa que não mais as pessoas dedicam parte de seu tempo para refletir sobre sua existência, sobre seus atos, sobre sua vida e, como um ciclo vicioso, perdem gradativamente os seus pontos de referência, já que não refletem mais. Assim, sem quaisquer parâmetros, o homem vive cada dia, sem se lembrar do ontem ou planejar o amanhã. Trata-se, portanto, de um homem sem consciência, sem aquilo que normalmente o chama para a realidade e o faz seguir por esse ou aquele caminho. Falta, assim, ao sujeito contemporâneo, responsabilidade: “O sujeito não é responsável, na medida em que sua determinação subjetiva não leva em consideração aquilo que seria uma aventura singular, de uma escolha singular, mas sim o faz participar de uma histeria coletiva. Da mesma forma, a ele parece absolutamente legítimo pensar que seu percurso, seu destino, é determinado pelas circunstâncias coletivas e exteriores. A mesma coletividade deve a ele, portanto, reparação de tudo aquilo que lhe falta, já que para ele foi assim que ele foi concebido”1. Em verdade, ressalta Melman, efetivamente preocupado, o quanto desapareceram as subjetividades, as características peculiares de muitos povos e, de uma maneira geral, das pessoas. Esteticamente são todos muito parecidos e não há qualquer preocupação acerca dos efeitos dessa massificação. Com efeito, na ânsia de serem diferentes, acabam sendo todos iguais, iludidos, porém, pela convicção de serem diferentes. Tudo hoje é muito homogêneo: os jovens do mundo todo têm os mesmos objetos de desejo, as músicas da moda são as mesmas em qualquer parte do mundo, e, ao que parece, tudo está muito bom assim como está. Vale dizer, são cada vez mais raros os protestos políticos, sociais, e até mesmo privados, seja em virtude do desacorçoamento de muitos diante de situações que não mudam nunca (veja-se a opinião popular sobre os políticos)2, seja porque atualmente a liberdade é tamanha que sequer se precisa brigar por ela. E qual(is) seria(m) a(s) causa(s) dessa mudança de atitude? Onde estaria a 1) MELMAN, Charles. L’homme sans gravité: jouir à tout prix. Paris: Éditions Denoël, 2005, p. 81 (tradução livre)

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origem de todo esse processo de desumanização da humanidade? Uma das causas apontadas por Melman é a redução da figura do pai. Por vários motivos, abordados durante vários pontos da entrevista, e desde um ponto de vista de um analista, era a figura do pai a origem da autoridade sobre os indivíduos e que servia de referência para todo o resto de suas vidas. Ocorre que atualmente, com o abandono progressivo das sociedades patriarcais, fundadas sob a autoridade do pai, os filhos deixam de ter sua referência, deixam de sofrer os traumas trazidos pela figura do pai e, mais ainda, tal figura se torna ambígua na medida em que pai e mãe atualmente passam a ter as mesmas atribuições, o que, segundo Melman, dificulta a identificação dos filhos com a figura masculina e com a feminina. Esse pai de hoje, bom homem, é motivo de risos – ele precisa da autoridade que lhe é concedida pela sociedade patriarcal3. Aliás, nas sociedades em que se abandonou a figura de um pai comum, os pais são considerados apenas visitantes noturnos sexuais e não têm qualquer poder: são apenas reprodutores da espécie. Nas palavras esclarecedoras de Melman: “Eu penso que estamos caminhando para um desaparecimento não do inconsciente, no senso freudiano, mas do sujeito do inconsciente. Haverá uma forma de inconsciente que não terá mais interlocutor. Ele não terá mais necessidade de ser reconhecido, nem mais enunciado sob o título de sujeito. Nós teremos um singular, um estranho retorno à situação pré-cartesiana, antes da aparição do ‘eu’ do cogito. Haverá vozes das profundezas, vozes diabólicas que o sujeito não mais reconhecerá como suas”4. Outra possível causa desse fenômeno, apontada por Melman, seria a globalização que faz, por exemplo, com que jovens índios chilenos, habitantes do interior do país, estejam interessados nos exatos mesmos objetos de consumo oferecidos em Xangai, no Rio de Janeiro ou em Paris, deixando de dar valor à sua própria cultura5. Na realidade, os homens são cada vez mais apátridas, vez que gradativamente abandonam suas referências históricas e junto os seus deveres de responsabilidade perante o seu povo, especialmente no que se refere ao respeito aos seus costumes. Demais disso, a publicidade e a mídia também desempenham papel importante nessa nova constituição do sujeito, a primeira ao exer-

2) Nas palavras de Melman, “Os jovens sempre foram revoltados com a injustiça social. Hoje, no entanto, eles só têm uma vontade: participar da vida social. Eles não protestam contra as injustiças. Querem apenas encontrar um meio de gozar logo os prazeres da vida social. Por outro lado, muitos cidadãos podem constatar que falta potência ao poder político diante das forças econômicas, verdadeiras ‘mestres’ da situação. Então por que se engajar na vida política se ela é impotente para corrigir as desigualdades e dificuldades da vida social? Hoje, acabaram as ideologias, as palavras de ordem e até mesmo as utopias. Os indivíduos preferem eleger pessoas que souberam gerir bem seus negócios. Não há mais confiança nos políticos.” In: A era do prazer. Disponível em http:// www.antroposmoderno.com, acesso em: 07 de mar. 2006, às 19h15min. 3) "De onde pode tirar sua autoridade, em uma família, se não do valor consensual do patriarcalismo? Um pai não pode se autorizar por si mesmo, mas apenas do patriarcalismo. E se ele tenta a qualquer preço se autoautorizar, ele necessariamente o faz pela violência, pela brutalidade, aqueles pais que, vez ou outra, são levados diante do juiz.” MELMAN, Charles. L’homme sans gravité: jouir à tout prix. Paris: Éditions Denoël, 2005, p. 152-153 (tradução livre) 4) MELMAN, Charles. L’homme sans gravité: jouir à tout prix. Paris: Éditions Denoël, 2005, p. 155 (tradução livre) 5) In: A era do prazer, disponível em: http:// www.antroposmoderno.com, acesso em: 07 de mar. 2006, às 19h15min. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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cer um papel pedagógico no sentido da liberalização dos costumes, atingindo especialmente as crianças, e a segunda porque se tornou o mais importante meio de pensar do homem, já que desaparecidos os grandes textos de referência6 e já que a importância dada ao ensino de disciplinas como as letras, a filosofia, o latim, o grego, a história, dentre outras matérias formativas, é ferida de morte pelo crescente número de ensinos profissionalizantes7. Finalmente, o direito. Ele também é atingido, segundo Melman, por essa Nova Economia Psíquica, na medida em que reconhece toda reivindicação como legítima e que deve ser satisfeita (vale dizer, todos os pedidos são juridicamente possíveis e o Estado, uma vez provocado, deve responder ao que lhe foi pedido, ante a proibição do non liquet e, na medida do possível, restaurar o mal provocado ao demandante). Os demandantes são vítimas que devem ter seu sofrimento ao menos amenizado pelo direito, como os médicos prescrevem a cura para seus pacientes8.

2 AS CONSEQÜÊNCIAS DA NOVA ECONOMIA PSÍQUICA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: A CONDUTA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL Sendo o juiz penal antes de tudo um ser humano vivente no mundo contemporâneo, evidentemente que sofre também os efeitos dessa Nova Economia Psíquica defendida por Melman e a leva, conseqüentemente, ao processo penal. Tradicionalmente, entendia-se que a função do juiz não era outra senão a atuação da lei, em nome da segurança jurídica. A ele cabia dizer a lei ao caso concreto, resolvendo-o e justificando a sua decisão sempre através de argumentos científicos e a prova dos autos. Esqueceu-se – propositadamente – por muito tempo de que o juiz é um homem e o sistema falho, ambos com suas imperfeições. Isso porque, como explica Jacinto Nelson De Miranda Coutinho, era preciso fazer acreditar em uma razão de validade universal, paradigma para todos; era preciso legitimar o discurso do Estado moderno que acabara de nascer e que defendia a igualdade entre todos em detrimento dos privilégios concedidos ao clero e à nobreza até então e, finalmente, era preciso ocultar que o Estado estava a defender os seus próprios interesses, e não ao interesse do povo, como dizia estar9. Mais recentemente, porém, tal falácia foi sendo revelada ou abandonada, por vários motivos: a) Em primeiro lugar, porque passou-se a enxergar ser a lei a expressão clara dos interesses das classes dominantes; b) em segundo lugar porque se passou a reconhecer no juiz um homem, um ser social, que tem os seus valores, suas predileções, seus preconceitos, que vive em determinado momento histórico, que tem a sua história de vida, sua inclinação política, enfim, não é – nem nunca foi 6) In: A era do prazer, disponível em: http:// www.antroposmoderno.com, acesso em: 07 de mar. 2006, às 19h15min. 7) MELMAN, Charles. L’homme sans gravité: jouir à tout prix. Paris: Éditions Denoël, 2005, p. 210. 8) MELMAN, Charles. L’homme sans gravité: jouir à tout prix. Paris: Éditions Denoël, 2005, p. 130. 9) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 42-43.

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– neutro. É, sim, um indivíduo, como já ressaltou, há muito Francesco Carnelutti10. O sistema processual penal brasileiro é inquisitório, já que o juiz é o gestor da prova11 e determina quais as provas devem ser produzidas (na maioria das vezes aquelas que vão confirmar a posição que já está inclinado a tomar no momento da decisão - se é que já não decidiu), de maneira que toda instrução é por ele delineada segundo seus interesses, sua pré-compreensão do fato (conscientes ou inconscientes). Nas palavras de Piero Calamandrei, as provas “muitas vezes servem ao juiz não para o persuadir, mas para revestir de razões aparentes uma persuasão já formada por outras vias”12. Da mesma forma, na decisão. Giuseppe Capograssi, em seu belo texto Giudizio Processo Scienza Verità, publicado em 1950, já advertia que toda a objetividade que buscava o Direito não tinha o condão de eliminar a subjetividade do homem-juiz que, ao final, deveria dar a sua última palavra, “não se sabe se com sua inteligência ou com sua vontade ou com ambos”13. De todo modo, ao decidir, faz uma escolha. “Esta escolha, que é inerente à personalidade mais secreta do juiz, encontra-se com a ação que é também pontual, e tudo acaba em qualquer coisa de único que é justamente o ato final da opção, que termina a dúvida, que põe fim à procura, que significa aquietar-se. Este ato único, enquanto tal, não é passível de ser submetido à análise e tampouco a regras”14.

10) CARNELUTTI, Francesco. Responsabilità e giudizio. Rivista di Diritto Processuale. Padova: Cedam, a. XIII, n. 1, gennaio-marzo 1958, p. 07: “Ma il giudice chi è? Un individuo, anche lui. Un altro individuo. Uno come l’altro. Un suo pari.Una parte, dunque. Ci sono degli uomini che non siano parti? (...) Il giudice, dicono i giuristi, è super partes, ma come può essere sopra le parti colui che è una parte? Il Maestro ha rappresentato agli uomini questa difficoltà, anzi questa impossibilità quando ai giudici dell’adultera ha rivolto le parole solenni: ‘chi è senza peccato lanci la prima pietra’. Poco dopo ha chiesto alla donna: ‘dove sono i tuoi giudici?’ poiché erano scomparsi”. [“E o juiz quem é? Um indivíduo também. Um outro indivíduo. Um como o outro (o imputado). Um semelhante. Uma parte, portanto. Há homens que não são partes? (...) O juiz, dizem os juristas, é super partes, mas como pode estar acima das partes aquele que é uma parte? O Mestre representou aos homens essa dificuldade, bem como essa impossibilidade quando aos juízes da adúltera disse as solenes palavras: ‘quem não tem pecados que lance a primeira pedra’. Pouco depois perguntou à mulher: ‘onde estão os seus juízes?’ vez que haviam desaparecido” (tradução livre)] 11) Ressalte-se que essa condição parece ser também aplicada, em parte, ao processo civil, diante do art. 130 do CPC: “Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”. 12) CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco. Rivista di Diritto Processuale. Padova: Cedam, v. V, 1950, p. 48: “molte volte servono al giudice non per persuaderlo, ma per rivestire di ragioni appariscenti una persuasione già formata per altre vie” (tradução livre). 13) CAPOGRASSI, Giuseppe. Giudizio processo scienza verità. Rivista di Diritto Processuale. Padova: Cedam, v. V, 1950, p. 10-11: “Dopo tutto questo, resta il giudicare nella sua parte più segreta e delicata, nel momento della decisione in cui l’uomo giudice, non si sa se con la sua intelligenza o la sua volontà o con tutto se stesso, dice l’ultima parola”. [“Depois de tudo isso, resta o julgar em sua parte mais secreta e delicada, no momento da decisão em que o homem juiz, não se sabe se com sua inteligência ou sua vontade ou ambos, dá a última palavra” (tradução livre)]. 14) CAPOGRASSI, Giuseppe. Giudizio processo..., p. 11: “Questa scelta, che è veramente inerente alla più secreta personalità del giudice, si incontra con l’azione anch’essa assolutamente puntuale, e tutto finisce in qualche coisa di unico che è appunto l’atto finale di opzione, quel decidere che è veramente la fine del dubbio, il non ricercare più, il quietarsi. Ora questo ‘unicum’, appunto perché tale, non è sottoponibile ad analisi, e quindi tanto meno a regola”. (tradução livre) RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Além disso, é preciso ressaltar que essa escolha, não raras vezes, dá-se fora do momento dado como oportuno, no processo, para tal. O ideal seria que o juiz, ao final do processo, diante de todas as provas e alegações das partes, delineasse todo um raciocínio lógico e justificativo e só então decidisse sobre o caso15, como queria Enrico Tulio Liebman16, ao afirmar que, embora o juiz pudesse decidir com base em elementos externos, o que se queria dele era uma decisão racional, passível de ser justificada, de acordo com a exigência do Estado de Direito, sob pena de se instaurar um arbítrio dos magistrados. Em verdade, Piero Calamandrei ressalta (assim como outros autores) que “é sabido que a motivação da sentença, a qual logicamente deveria nascer como premissa do dispositivo, muitas vezes é construída depois, como uma justificação a posteriori de uma vontade já fixada antes por motivos morais ou sentimentais”17. Aliás, como muito bem ressalta Nilo Bairros De Brum, “geralmente, chegado o momento de prolatar a sentença penal, o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu. Chegou a essa decisão (ou tendência a decidir) por vários motivos, nem sempre lógicos ou derivados da lei. Muitas vezes, a tendência de condenar está fortemente influenciada pela extensão da folha de antecedentes do réu ou, ainda, pela repugnância que determinado delito (em si) provoca no espírito do juiz. Por outro lado, o fiel da balança pode ter pendido para a absolvição em razão da grande prole do réu ou em virtude do fato de estar ele perfeitamente integrado na comunidade ou, ainda, pelo fato de que o delito cometido nenhuma repugnância causa ao juiz, o que o faz visualizar tal figura penal como excrescência legislativa ou um anacronismo jurídico. Sabe o julgador, entretanto, que essas motivações não seriam aceitas pela comunidade jurídica sem uma roupagem racional e tecnicamente legítima. Se declarar francamente que condena o réu em razão de seus péssimos antecedentes ou que o absolve porque é trabalhador e tem muitos filhos, sua sentença fatalmente será reformada por falta de base jurídica”18. Enrico Altavilla, em sua obra Psicologia Judiciária, ao tratar do juiz, tece considerações importantíssimas – extrajurídicas – que contribuem sobremaneira para o tema ora discutido. Assim, afirma que o juiz muitas vezes pode decidir valendo-se apenas de sua intuição19, sem qualquer ligação com elementos objetivos dos autos. Essa intuição muitas vezes é que leva ao juízo sumário feito pelo juiz no primeiro contato que faz com o caso penal, a chamada hipótese provisória, que conduz todo 15) Aliás, não por acaso, essa é exatamente a ordem estabelecida para os requisitos da sentença, constante do art. 381 do CPP. 16) LIEBMAN, Enrico Tulio. Do arbítrio à razão – reflexões sobre a motivação da sentença. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, a. VIII, n. 29, p. 79-81, janeiro-março de 1983. 17) CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco..., p. 48: “È noto che la motivazione della sentenza, la quale logicamente dovrebbe nascere come premessa del dispositivo, molte volte è costruita dopo, come giustificazione a posteriori di una volontà già fissata in precedenza per motivi morali o sentimentali” (tradução livre). 18) BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 72-73. 19) ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária: personagens do processo penal. v. II. 3. ed. Trad. Fernando de Miranda. Coimbra: Arménio Amado, 1982. O autor conceitua a intuição como sendo “uma voz que nasce do inconsciente, no qual se acumulou a nossa experiência e também a da raça, que, precedendo qualquer processo analítico de raciocínio, nos faz sentir como deve ter ocorrido um facto” (p. 511).

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o procedimento do juiz durante a persecução criminal e, muitas vezes, torna-se definitiva pela sua decisão. Ocorre que, não raras vezes, a hipótese provisória seduz o juiz, “de maneira a torná-lo daltónico na apreciação das conclusões de indagações ulteriores”20, pois seleciona alguns elementos para investigar, que nem sempre são os mais importantes, de acordo com essa primeira visão dos fatos. Eis o problema da gestão da prova se concentrar nas mãos do magistrado, portanto. Com efeito, o magistrado deixa se fascinar por uma visão primária e durante o processo vai procurar demonstrar, comprovar essa sua primeira opinião, fechando-se a todos os argumentos/elementos contrários que porventura surgirem durante a produção probatória ou em qualquer outro momento processual, esquecendo-se de que seria importante a tentativa de uma visão completa do conjunto probatório. Trata-se, de certa forma, da lógica deformada à qual faz alusão Franco Cordero, quando afirma que no sistema inquisitório o juiz, porque detentor das provas, age em um quadro mental paranóico, do primado da hipótese sobre os fatos, vale dizer, vai buscar, a qualquer preço, confirmar a sua hipótese provisória: “A solidão em que trabalham os inquisidores, jamais expostos ao contraditório, fora das tramas dialéticas, pode ser útil ao trabalho policialesco, mas desenvolve quadros mentais paranóicos. Chamamo-los ‘primado das hipóteses sobre fatos’: quem indaga segue uma, por vezes a olhos fechados; nada garante ser a mais fundada das alternativas possíveis, nem este trabalho permite autocrítica, assim como todas as cartas do jogo estão em suas mãos e foi ele mesmo quem o começou, aponta a sua hipótese”21. Destarte, a neutralidade é impossível ao juiz, como é a qualquer ser humano. Mas não se deve confundir, todavia, neutralidade e imparcialidade. A neutralidade, como se viu, estaria ligada à pessoa do juiz, que deveria se despir de seus conceitos pessoais ao exercer a atividade jurisdicional, ao passo que a imparcialidade está diretamente relacionada à posição tomada pelo juiz no processo, a qual, no entanto, em última análise, é decorrência direta da primeira, mas ambas não se confundem. Ser imparcial, assim, é oportunizar às partes as mesmas armas e procurar, dentro do possível, manter o mesmo tratamento para todos (o juiz deve permanecer eqüidistante das partes). Evidente que tal atitude pressupõe o conhecimento de que não é neutro, tentando, na medida do possível, afastar a sua hipótese provisória de regra já formada. Mas isso só faz o juiz consciente de sua condição de ser humano, antes de tudo e que por tal razão é impossível não pender para um dos lados, até mesmo sem muitas vezes entender por que. Essa imparcialidade parece muito mais viável, admite-se, no processo civil do que no processo penal, onde ela praticamente inexiste, ante a sua feição es20) ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária...p. 512. 21) CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986, p. 51: “La solitudine in cui gli inquisitori lavorano, mai esposti al contraddittorio, fuori da griglie dialettiche, può darsi che giovi al lavorìo poliziesco ma sviluppa quadri mentali paranoidi. Chiamamoli ‘primato dell’ipotesi sui fatti’: chi indaga ne segue una, talvolta a occhi chiusi; niente la garantisce più fondata rispetto alle alternative possibili, né questo mestiere stimola cautela autocritica; siccome tutte le carte del gioco sono in mano sua ed è lui che l’ha intavolato, punta sulla ‘sua’ ipotesi”. (tradução livre) RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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sencialmente inquisitorial22. Em verdade, então, como aduz Jacinto Nelson De Miranda Coutinho, a imparcialidade “funciona como uma meta a ser atingida pelo juiz no exercício da jurisdição, razão por que se busca criar mecanismos capazes de garanti-la”23, a exemplo do juiz natural. Não obstante, é preciso que se entenda que a inexistência da neutralidade e, em certa medida, da imparcialidade, não é prejudicial ao sistema jurídico contemporâneo. Como afirm a Rui Portanova24, a subjetividade do juiz não deve ser temida nessa nova maneira de ver o Direito. Ao contrário, como afirma Jacinto Nelson De Miranda Coutinho, invocando os ensinamentos de Norberto Bobbio, a democracia exige que todos conheçam as regras do jogo, inclusive no âmbito processual, de maneira que não há qualquer problema no fato do juiz se assumir ideologicamente, desde que o faça expressamente, e não se esconda atrás do véu da neutralidade e da objetividade, de forma hipócrita. Há que se realizar, também pelo juiz25, um “jogo limpo”, sem trapaças, do qual já falava Piero Calamandrei26. E conclui Jacinto Nelson De Miranda Coutinho: “O novo juiz, ciente das armadilhas que a estrutura inquisitória lhe impõe, mormente no processo penal, não pode estar alheio à realidade; precisa dar uma ‘chance’ (questionado pelo seu desejo) a si próprio, tentando realizar-se; e a partir daí aos réus, no julgamento dos casos penais. Acordar para tal visão é encontrar-se com seu novo papel”27. Também importantes são as palavras de Hans-Georg Gadamer: “Quem quer compreender um texto, em princípio, deve estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem ‘neutralidade’ com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias”28. 22) Ressalte-se, no entanto, que tal classificação é ao menos questionável diante do já mencionado art. 130 do CPC, por exemplo. 23) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito. Curitiba: Ed. da UFPR, a. 30, n. 30, 1998, p. 173. 24) PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 136. 25) CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco..., p. 51. 26) CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco..., p. 31: “Il processo non è soltanto scienza del diritto processuale, non è soltanto tecnica della sua applicazione pratica, ma è anche leale osservanza delle regole del giuoco, cioè fedeltà a quei canoni non scritti di corettezza professionale, che segnano il confine tra la elegante e pregevole maestria dello schermitore accorto e i goffi tranelli del truffatore”. [“O processo não é apenas ciência do direito processual, não é apenas a técnica de sua aplicação prática, mas é também a leal observância das regras do jogo, isto é, fidelidade aos cânones não escritos de retidão profissional, que demarcam os limites entre a elegante e valorosa maestria do preparado esgrimista e as desastrosas armadilhas do trapaceiro”(tradução livre).] 27) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz...p, 49. Grifos do original. 28) GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 405.

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Evidente que com esse reconhecimento de não ser o juiz um mero pronunciador das palavras da lei (bônus) veio junto a responsabilidade (ônus) dos magistrados, ou seja, não que essa responsabilidade por sua atividade nunca tivesse existido, mas é com a exaltação da importância do juiz, de sua independência, que a ele se dá, então, maior responsabilidade pelos seus atos, como bem ressalta o magistrado francês Antoine Garapon29. A responsabilidade dos juízes, de regra, é trabalhada sob dois aspectos: o ético-filosófico e o do juiz como agente estatal. O segundo aspecto é investigado pelos autores nas hipóteses de configuração de erro judiciário e de indenização do Estado por esse erro. Vários são os textos que abordam esse tema, sendo um dos mais conhecidos o de Mauro Cappelletti, Juízes Irresponsáveis?30. O que interessa, no entanto, imediatamente, é o primeiro aspecto, que vai estar presente diariamente na atividade do magistrado. Francesco Carnelutti, em seu belo texto Responsabilità e giudizio, traduz a idéia do que vem a ser a responsabilidade do juiz. Num primeiro momento, relembra a origem da responsabilidade, retomando o costume romano antigo de que o pai, na educação dos filhos, não se contentava com a descrição de seus propósitos, mas os fazia prometer que fariam ou deixariam de fazer determinada coisa. Essa promessa, segundo Francesco Carnelutti, fazia com que os filhos se obrigassem perante o pai, devendo fazer o possível para cumpri-la31. E a noção de responsabilidade (de todos) que contemporaneamente se tem resulta daí; ressalta, todavia, que a obrigação não vem só da expressa promessa feita ao outro, mas também se trata de uma promessa interna, feita a si mesmo, de cujo cumprimento cuida a consciência de cada um. Faz notar o Professor italiano que a responsabilidade custa caro: respeitar-se e o outro (que só é possível se houver o respeito por si mesmo) é sempre um sacrifício para o homem. Este é constantemente tentado a se esquecer de tudo e a se entregar à plena desordem da vida. E a regra, atualmente, é que as pessoas se esqueçam disso tudo, pois lembrar exige reflexão, acomodação, momentos de recolhimento praticamente impossíveis na vida contemporânea agitada. Mas é preciso lembrar, e a responsabilidade é o que pode fazer lembrar, na medida em que é o elemento que liga o homem ao seu passado, à sua cruz. “O que se chama senso de responsabilidade é isto: saber que nada poderá nos separar daquilo que fizemos da vida”32.

29) GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 253: “O aumento de poder da justiça tem como conseqüência emprestar maior importância à personalidade dos juízes, as leis não sendo mais suficientes para garantir a segurança jurídica. Qualquer reflexão sobre a justiça deve ser precedida de uma avaliação da qualidade dos homens, quer dizer, de sua escolha e de seu controle. ‘Nenhum debate sobre a independência do juiz será muito útil’, escreve Jean-Denis Bredin, ‘se não incluir uma reflexão sobre a estatura intelectual e social do juiz [...]. Oferecida a um juiz incompetente, superficial, ou ainda a um juiz socialmente maltratado, a independência seria pouca coisa, e poderia não ser mais do que um meio para a arbitrariedade, uma arma da mediocridade, no máximo um desconforto’”. 30) CAPPELLETTI, Mauro. Juízes irresponsáveis? Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: SAFE, 1989. 31) CARNELUTTI, Francesco. Responsabilità e giudizio..., p. 01. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Quanto aos juristas, estes, para o processualista italiano, entendem a responsabilidade como sujeição a outros homens, a si mesmo ou ainda à consciência. Mas o juiz, como qualquer outro homem, qualquer outro indivíduo, deve julgar um igual, em uma tarefa sobre-humana, da qual não se pode abster. Na apreciação dos casos, o primeiro entrave já se encontra no primeiro momento da longa caminhada em direção ao julgamento final, qual seja a descoberta, pelo magistrado, de como os fatos narrados no processo se deram no passado, o que é impossível até mesmo para aquele que dos fatos participou. Na seqüência, ainda na tentativa de descobrir o que houve, o magistrado deve conhecer o indivíduo envolvido, vez que só poderá valorar sua ação se conhecer os seus valores como homem. Aqui há também um problema na medida em que para se julgar um homem há de se analisar o que fez durante toda sua vida e, não obstante, o juiz deve julgá-lo naquele momento do processo, sem ter qualquer noção de como conduziria sua vida dali para frente, muitas vezes alterando um futuro que naturalmente sobreviria33. Neste sentido, então, o juiz julga como se soubesse como os fatos ocorreram, como se conhecesse o valor do agente e de sua ação, como se o indivíduo se enquadrasse em uma determinada regra jurídica34. Por isso o erro judiciário faz parte da fisiologia do processo e não da sua patologia. Parece evidente que o juiz, um ser humano, com todos os seus vícios e pré-conceitos, ao decidir um determinado caso, com todas as suas dificuldades, tem grandes chances de cometer injustiças, mas a responsabilidade deve fazer com que ele dê o melhor de si na sua atividade de magistrado. A responsabilidade, assim, é o único limite da atividade judicial. Reconhece-se ao juiz toda liberdade antes a ele negada e sabe-se, por diversas razões, que ele efetivamente possui – e exercita – um poder de vida e de morte sobre os seus jurisdicionados e, ainda, que não existem maneiras eficazes de controlar a sua atuação (seja político, seja jurisdicional, esse controle é sempre parcial). Tal constatação, porém, assusta na medida em que se verifica, como Melman o fez, serem os homens atuais irresponsáveis. Infelizmente, também é o magistrado atual um “homem sem gravidade”, que perdeu suas referências pessoais, psíquicas e inclusive jurídicas. Desde o ponto de vista jurídico, a referência primária, a constitucional, é esquecida (às vezes sequer conhecida) e instaurou-se um ambiente de reiteradas decisões e posturas inconstitucionais por parte dos juízes.

32) CARNELUTTI, Francesco. Responsabilità e giudizio..., p. 06: “Ciò che si chiama il senso di responsabilità è questo: sapere che nulla si potrà staccare da noi di quello che abbiamo fatto della vita”. (tradução livre) 33) Sobre isso, diz Francesco Carnelutti: “Per stablire la responsabilità, bisogna trovare il valore dell’azione e per trovare il valore dell’azione occorre trovare il valore dell’uomo, ma il valore dell’uomo, fin che vive, non si trova”. [“para estabelecer a responsabilidade é necessário encontrar o valor da ação, e para encontrar o valor da ação é preciso encontrar o valor do homem, mas o valor do homem, durante sua vida, não se encontra” (tradução livre)]. CARNELUTTI, Francesco. Responsabilità e giudizio...,p. 10. 34) CARNELUTTI, Francesco. Responsabilità e giudizio..., p. 12: “Il giudice giudica come se sapesse come sono andati i fatti, come se conoscesse il valore dell’agente e dell’azione, come se l’individuo fosse tutt’uno con il tipo”. (tradução livre)

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Eles não cumprem, em sua grande parte, o seu papel de guardião da Constituição e da Democracia. Eles, em sua maioria, não têm tais referências e as poucas que possuem estão corrompidas por idéias nefastas e neoliberais. Em nome da eficiência da prestação jurisdicional, que deve ser sobretudo célere, derrubam garantias que levaram séculos para se consolidar, a ver-se pela realidade diária dos Juizados Especiais Criminais, pela conduta reacionária do magistrado no interrogatório do acusado (mesmo após a reforma parcial de 2003), pela não declaração de nulidades absolutas porque entendem não ter causado prejuízo, pela decretação desnecessária de prisões preventivas (e sua manutenção), pelo desrespeito constante ao juiz natural, pelo recebimento de denúncias ineptas, pela realização da mutatio libelli do art. 384, caput, do CPP, enfim... A conduta do juiz no processo está longe de ser ideal, seja pelo desconhecimento do sistema processual, seja pela sua má-formação, sua má-constituição como homem, seja pela sua condição de “homem sem gravidade”. Há que se pensar, portanto, noutros caminhos, noutras perspectivas, noutras dobraduras, que resgatem no processo penal, mas antes mesmo na figura subjetiva do jurista, um sentido de gravidade para homem, um ambiente de austeridade, uma nova diagramação das condutas éticas nos ritos dos processos e também nos atos da vida pública e privada, para quem saiba, possa-se reformular essa nova Nova Economia Psíquica.

3 A #1'#)% (TEMPERANÇA) DOS PRAZERES E O RESGATE DE UM JURISTA CURADOR DE SI Uma reflexão vista de uma experiência do fora, como quisera a literatura de Bataille ou mesmo de Blanchot, pode em muito ajudar a reconstruir no homem contemporâneo um outro sentido existencial, com vistas à fuga do gozo a todo preço que orienta seus passos. Pensar desde uma dobra do fora, que permita correr o traço em direção à exterioridade da subjetividade atual, e, nessa medida, tentar encontrar um novo conteúdo para o homem, para o juiz, para o processo, leva essa investigação da ausência de gravidade para uma experiência diferente, que os homens já vivenciaram um dia, mas que, com os percalços da história, abandonaram com imensa facilidade: o #+ jurídico grego. Retornar ao pensamento jurídico clássico ou, mais precisamente, à experiência jurídica como prática ascética, é um motivo constante na história da filosofia como uma espécie de espontânea renovação de sua influência, significando apenas uma necessidade vital, e não uma autoridade imutável, fixa e independente do destino do homem. Não se quer, neste ensaio, de modo algum reconstruir uma forma de utopia helênica, uma construção idílida do passado acreditando em sua superioridade, apenas a reconstrução de uma visão diferente do mundo e dos homens, da qual se está há muito tempo apartado e pode ajudar a compreender uma nova perspectiva para se reformular o conteúdo do homem contemporâneo e suas subjetividades no processo. A ausência de conteúdo, a plena satisfação dos desejos e das paixões huRAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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manas, a liberdade incondicional, que deixaria atĂŠ mesmo sartrianos hesitantes, o imediatismo, os imperativos da tĂŠcnica e do resultado, a velocidade e a otimização dos raciocĂ­nios, o abandono da reflexĂŁo pela lĂłgica utilitarista, a perda da responsabilidade e da identidade, enfim, a valorização da transição e o passeio solitĂĄrio de um homem no lusco-fusco, sĂŁo configuraçþes de uma subjetividade, que embora façam parte da experiĂŞncia contemporânea, como quer a economia psĂ­quica de Melman, sĂŁo, entretanto, questĂľes que os homens gregos, guardadas as devidas proporçþes, jĂĄ se colocaram um dia, especialmente em torno do cuidado de suas prĂĄticas, de sua conduta na #¨ ?v (casa) e na %s + (cidade), aquilo que no mundo moderno se restringirĂĄ a hĂĄbito, condução da vida, costume, etc.35 Para os gregos, o sentido da vida do homem, seja numa perspectiva individual, seja no exercĂ­cio de seu sentido de I %# - s (animal polĂ­tico), como quisera AristĂłteles,36 estĂĄ intimamente ligado ao modo como o indivĂ­duo cuida de suas prĂĄticas, de suas escolhas, de seu caminho, se prefere, em suma, tornarse um homem virtuoso ou um homem incontinente. Colocam-se os gregos, portanto, desde cedo, numa variedade de reflexĂľes, a pergunta sobre a escolha pelo jouir Ă tout prix ou pela satisfação moderada dos desejos. ReflexĂŁo essa, que, tambĂŠm levam para o âmbito jurĂ­dico, a partir de investigaçþes sobre o processo grego. Dessa maneira, o homem grego sĂł seria virtuoso, e, de igual modo, sĂł faria de sua %s + um lugar de prĂĄticas virtuosas, se soubesse estabelecer os limites e o justo meio de suas escolhas na vida. Colocavam-se, portanto, o problema entre os limites e os excessos como um problema moral, fruto de uma prĂĄtica que se porta como degradação da condição humana ou como plenitude moral, como x) ) + (ascese). No horizonte da experiĂŞncia jurĂ­dica como uma experiĂŞncia moral, nĂŁo a partir da simples relação entre direito e moral, jĂĄ que a questĂŁo ĂŠ colocada noutros termos para o espĂ­rito grego (sobretudo a partir do critĂŠrio da exterioridade acentuado por AristĂłteles, em que o direito figuraria no âmbito eterno, e a moral e a religiĂŁo no foro interno),37 mas a partir do modo como o cidadĂŁo se reconhece como sujeito moral tendo em vista o exercĂ­cio das prĂĄticas judiciĂĄrias e da educação jurĂ­dica, aparece um questionamento indispensĂĄvel: como pode o jurista se constituir moralmente como um sujeito virtuoso? O que exatamente distingue um ‰ #+ jurĂ­dico virtuoso de seu oposto? Ou melhor, como reconhecer o jurista virtuoso alĂŠm do resultado justo que encontra como resposta para os confrontos jurĂ­dicos?

35) No mundo moderno, especialmente na filosofia alemĂŁ, alguns autores refletem o conceito grego de §2@H e o implementam na lĂłgica pĂłs-revolução industrial, quando o capitalismo avançava no ciclo arrighiano britânico. Hegel teoriza sobre a noção de Gewohnheit (hĂĄbito). In: HEGEL, Georg. Wilhem Friedrich. Grundlagen der Philosophie des Rechts. Berlin: FU, 1998, p. 258. Max Weber, prefere LebensfĂźhrung (a condução da vida). In.: WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft: GrundriĂ&#x; der verstehenden Soziologie. TĂźbingen: C. H. Mohr, 1972, § 10.. Karl Marx intitula de Lebensweise (sabedoria da vida). In: MARX, Karl. Das Kapital. v. 1. Berlin: Dietz, 1969, § 23. Por fim, Georg Simmel prefere o Lebensstile (o estilo de vida). In.: SIMMEL, Georg. Philosophie des Geldes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. 36) ARISTĂ“TELES, PolĂ­tica, I, 2,; ARISTĂ“TELES, Ética a NicĂ´maco, I, 5, 1097, b; I, 1169, b. D 37) ADEODATO, JoĂŁo MaurĂ­cio. Positividade e conceito ..., p. 23.

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O caminho que se abre, doravante, pressupĂľe compreender que a constituição de ‰ #+ virtuoso exige nĂŁo apenas uma %v J?â€? (educação) direcionada a esse fim, o que certamente ĂŠ indispensĂĄvel, nem tampouco apenas a compreensĂŁo das decisĂľes justas exaradas pelos )-v? (juĂ­zes) nos tribunais, mas perceber que a sua configuração ĂŠ o produto direto das escolhas cotidianas que o cidadĂŁo faz, ao longo da vida, nas mais variadas experiĂŞncias pessoais; e, como # s+ (jurista), nas mais diversas experiĂŞncias jurĂ­dicas que vivencia por suas personagens. A maneira pela qual o indivĂ­duo dirige sua experiĂŞncia normativa, ou a sua maneira de se conduzir nessa ordem de experiĂŞncias que conjugam saber, julgamento e prĂĄticas, tende a colocar o cidadĂŁo na irrefutĂĄvel escolha dos caminhos que a vida humana e a %s + lhe colocam. A questĂŁo do bom uso das normas naturalmente faz aparecer, sob aspectos gerais dos autores gregos, a constituição do uso e do fazer das normas como um campo de cuidado moral, tendente a definir ou nĂŁo o cidadĂŁo como um homem cuidadoso de si, e, logo, de um jurista curador de si. O que faz, entĂŁo, seu ‰ + jurĂ­dico nĂŁo ser apenas um ‰ #+ de escolhas justas, mas de escolhas virtuosas num campo pragmĂĄtico? A reflexĂŁo sobre as escolhas operadas pelo cidadĂŁo nas experiĂŞncias diĂĄrias pressupĂľe entĂŁo compreender que a lei grega nĂŁo ĂŠ capaz de estabelecer um cĂłdigo rĂ­gido de escolhas necessĂĄrias ou legĂ­timas para a constituição de seus hĂĄbitos e de seus costumes, mas que existe diante da atenção que se deve dispor ao outro, seja pela sua necessidade de animal polĂ­tico, seja mesmo pela compulsĂŁo que tem em estabelecer laços de amizade com vistas Ă sua realização e Ă felicidade coletiva, uma sĂŠrie de limites que configuram o espaço dentro do qual pode se debater o sujeito. Perscrutar esses limites significa, assim, colocar o sujeito entre o que o define como um jurista curador de si, e, nessa medida, de um jurista que, no bom uso das normas, constrĂłi seu ‰ #+ jurĂ­dico tambĂŠm de maneira virtuosa. Escolhas e limites fazem antever, necessariamente, uma relação entre liberum arbitrium e costumes aceitos, ou, colocando em outros termos, uma relação entre excessos e interdiçþes, excessos e transgressĂľes. Essa relação limites-excessos que pode ser experimentada pelo jurista na sua autoconstituição leva a uma relação essencial entre dominação de si e dominação sobre os outros, fundamental do ponto de vista da constituição do ‰ #+ jurĂ­dico virtuoso, jĂĄ que o jurista, ao contrĂĄrio do artista, do matemĂĄtico, do filĂłsofo, do geĂ´metra, etc., pensa o mundo clĂĄssico de acordo com a normatização de suas condutas tendo o outro como pressuposto. Nicocles coloca a questĂŁo do domĂ­nio de si como condição moral para dirigir os outros do seguinte modo: “Exerce tua autoridade sobre ti mesmo (w'3= )v/-#/) tanto como sobre os outros, e considera que a conduta mais digna de um rei ĂŠ a de nĂŁo ser escrava de nenhum prazer, e de comandar seus desejos ainda mais do que comandar seus concidadĂŁosâ€?38. Dominar os outros ou mesmo prescrever-lhe condutas exige antes a prescrição de condutas para si mesmo, logo, o tirano traz a reflexĂŁo da constituição do ‰ #+ jurĂ­dico para um campo inusitado, que ĂŠ aquele que se coloca, 38) ISĂ“CRATES, Nicocles, 29. RAĂ?ZES JURĂ?DICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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para posteriormente submeter os outros, entre submeter-se aos seus desejos prĂłprios ou comandĂĄ-los. Isso significa, de outro modo, dizer que o hĂĄbito do # C+ grego se constrĂłi na escolha que o indivĂ­duo faz dentro dessa ordem de sujeiçþes: aceitar ou renunciar aos prazeres, deixar-se levar pela ž ' + (excesso, desmedida) ou pela )#'#)E (temperança, moderação). Para os gregos, a ž ' + ĂŠ o excesso, a transgressĂŁo, a desmedida, a impetuosidade, mas tambĂŠm pode, de acordo com o modo como o sujeito dela faz uso, transformar-se em orgulho, prepotĂŞncia, arrogância (base que se encontrarĂĄ em sua construção mĂ­tica). Tudo depende sempre das escolhas, de um livre querer, do liberum arbitrium (embora essa noção de livre movimento da razĂŁo sĂł apareça sĂŠculos mais tarde com o cristianismo agostiniano e a recepção aristotĂŠlica de Boetius, e as idĂŠias de libertas adsitarbitrii),39 que tem o indivĂ­duo em medir os excessos pelos quais se deixarĂĄ levar. A ž ' + ĂŠ fruto para os gregos da incompreensĂŁo do que ĂŠ a prĂłpria condição humana diante das aventuras dos deuses e seus poderes sobre o mundo, aos quais os homens jamais podem almejar, vez que nĂŁo passam, segundo PĂ­ndaro, de uma espĂŠcie de sonho de uma sombra.40 ; +, numa ampla compreensĂŁo, evoca desde o inĂ­cio a estabilidade, para que Zeus dĂŞ aos homens a justiça e os permita viver em sociedade. ? , num sentido mais jurĂ­dico, substitui a ; + para se tornar a norma jurĂ­dica e se opor a ž ' +, que provoca, por necessidade, a vingança dos deuses. É a ž ' + que vai manifestar a %s + criar as leis e garantir os homens contra a ira dos deuses, pois ela ĂŠ o %'-# # ou o mal fundamental, raiz de todas as injustiças. Por isso, diz Ésquilo, a “medida ĂŠ melhor, traz o bom senso.â€?41 A justa medida, a moderação, aquilo que numa ampla cadeia de significantes os gregos chamam de )#Q'#)E ĂŠ o prĂŠ-requisito para que o homem se torne temperante, moderado, prudente, sabendo controlar seus apetites e seus desejos. É um estado de excelĂŞncia moral, de integridade do corpo e da mente conseguido por meio das escolhas, do domĂ­nio de si e do autocontrole. Para AristĂłteles, a )#Q'#)E sĂł pode ser alcançada pelo homem nos caminhos traçados para sua vida, e aqui certamente hĂĄ uma relação mĂ­tica com a #ÂĽ'v, com a parte do destino que lhe compete.42 O seu destino ĂŠ fazer de suas escolhas, numa justa medida, a grande escolha pelo caminho virtuoso da temperança, quer na alimentação, nos uQ'# )?v, nos atos cĂ­vicos, nas relaçþes familiares, etc.43 PlatĂŁo, mais intimista, colocava a prudĂŞncia noutros termos, como um estado de alma voltado pelo gosto primordial para o bem em oposição à ž ' + 44 e pela parte mais nobre da alma, racional, capaz de evitar com que o homem fosse escravo de seus desejos, sendo senhor de si mesmo. Levada essa compreensĂŁo 39) BOETIO, Tratado da filosofia da consolação, V, 2. 40) PĂ?NDARO, PĂ­ticas, 8, 95 e segs. 41) ÉSQUILO, AgamĂŞmnon, 373 e segs. 42) HESĂ?ODO, Teogonia, 217. 43) ARISTĂ“TELES, Ética a NicĂ´maco, II, 1104, b; 1107, b; 1117, b; 1118, a; 1147, b; e 1140, b. 44) PLATĂƒO, Fedro, 237, e; 241, a.

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ao extremo, o acadĂŞmico chega inclusive a sustentar que somente pode ser ˆ JE-J'#+ (livre), aquele que evita a provocação das paixĂľes. 45 Essa reflexĂŁo platĂ´nica ganha um sentido importante dentro do que Melman reflete sobre a liberdade total e a ausĂŞncia da falta freudiana, pois a liberdade consistiria justamente no oposto para os gregos, isto ĂŠ, apenas ĂŠ livre aquele que sabe dominar aos seus desejos e Ă s suas paixĂľes, aquele que modernamente nĂŁo vive para a satisfação total, para o abuso estĂŠtico, para a fruição desaventurada, mas o justo meio, o equilĂ­brio, enfim, a nĂŁo-submissĂŁo Ă lĂłgica da economia psĂ­quica. As leituras feitas pelos jusfilĂłsofos do sĂŠc. V e IV a.C. sobre o espaço que se constrĂłi entre a )#Q'#)E e a ž ' + encontra no mito grego a prĂłpria noção da existĂŞncia de limites para as paixĂľes dos homens, aos quais se deveria submeter para garantir o equilĂ­brio do cosmos. Esses limites foram impostos pelos deuses, e, quando ultrapassados pelos homens, levam-no Ă desmedida, ao excesso, à ž ' +. Ela ĂŠ, no modelo projetado nos tempos da IlĂ­ada e da OdissĂŠia, uma forma de ofensa aos deuses, que se perpetra por palavras, por pensamentos, por desejos desabusados, por atos. HĂĄ, portanto, uma positividade na ž ' +, que precisa ser refutada. NĂŁo pode o homem esquecer sua condição natural e querer competir com os deuses ou mesmo desejar o seu poder ou as suas qualidades. Ao seu excesso, lançam os deuses suas sançþes. Isso fica claro na tragĂŠdia euripidiana quando Hera, revoltada, lança sua raiva em Heracles, e o faz matar pensando ser inimigos os filhos e a MĂŠgara, sua mulher, por ter desejado equiparar-se aos deuses depois de realizar onze de seus trabalhos. É a sua condição de herĂłi que desafia os limites dos mortais que, ao mesmo tempo em que o leva Ă glĂłria, porque salva sua famĂ­lia de Lico, ladrĂŁo tebano, leva-o Ă desgraça, Ă ruĂ­na. Ă?ris assim traduz a necessidade de punição ao orgulho de Heracles por querer ser como os deuses: “ou os deuses de nada valerĂŁo e grandes serĂŁo os mortais, se ele nĂŁo for punidoâ€?.46 Tal como SĂłcrates tambĂŠm foi acusado, dentre outras coisas, de subverter a ordem divina,47 Heracles, nĂŁo mero mortal tal o sĂĄbio, mas herĂłi, tambĂŠm o foi, e ao invĂŠs de receber a punição do homens como SĂłcrates o recebeu, sofreu a vingança dos deuses por sua ž ' + (naturalmente aqui a ž ' + estĂĄ muito mais prĂłxima da noção de impetuosidade, embora, no fundo, represente o produto da intemperança). Ao perceber que matou a sua famĂ­lia, Heracles ĂŠ obrigado a reconhecer que a vida dos homens tem limites, e, por isso, deveria o homem fugir da ž ' + e procurar a justa medida, a #Q'#)E . Nesse sentido, ĂŠ possĂ­vel refletir que, para alĂŠm da justiça virtuosa e da eqĂźidade, o direito grego se demonstra enquanto ‰ #+ jurĂ­dico Ă medida que a experiĂŞncia no bom uso das normas se revela atravĂŠs da moderação, da capacidade de exercer um controle sobre suas aspiraçþes, sobre seus prĂłprios desejos aos prazeres e Ă s angĂşstias individuais. PlatĂŁo sustenta a )#Q'#)E como a virtude que ĂŠ melhor representada pelo povo, especialmente em se tratando de sua cidade 45) PLATĂƒO, RepĂşblica, IX, 348, d; e 430, e. 46) EURĂ?PEDES, Heracles, 841-842. 47) XENOFONTE, MemorĂĄveis, I, 1, 1.; PLATĂƒO, Apologia a SĂłcrates, 24, b – c. RAĂ?ZES JURĂ?DICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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ideal. Os homens que se dedicam excessivamente Ă ginĂĄstica acabam grosseiros, e os que apenas Ă mĂşsica o fazem, muito moles, por isso, o homem deve ser temperante, deve colocar-se entre o frio intenso e o tĂłrrido calor. Nada deve ser em demasia ‡ x u ,48 nem mesmo a liberdade.49 De outro lado, a prudĂŞncia grega em AristĂłteles parece ter um destaque ainda mais categĂłrico, vez que toda virtude ĂŠ para ele concebida como um meio entre dois extremos viciosos: ;)# -J v¤ x' )-# Âľ%J' ˆ)-¤ - + w'J- + (no meio estĂĄ a virtude)50. De qualquer modo, a experiĂŞncia jurĂ­dica sĂł pode ser bem compreendida como uma experiĂŞncia austera, ascĂŠtica Ă medida que os excessos e a temperança se colocam na constituição do ‰ #+ jurĂ­dico do cidadĂŁo grego. Por essa razĂŁo, os gregos costumam refutar os excessos, os desabusos, a insensatez, Ă satisfação plena (ao contrĂĄrio do homem sem gravidade). O homem que age sem perspectivas, sem preocupação com o equilĂ­brio, sem a prudĂŞncia necessĂĄria, age em vĂŁo, pois suas açþes nĂŁo sĂŁo capazes de gerar efeitos produtivos na conformação das virtudes dos cidadĂŁos. Diziam que o indivĂ­duo que vivia na busca de uma ação infrutĂ­fera tendia a ser impotente diante de seu feito. Seu propĂłsito se distancia e sua realização nĂŁo se consuma. Metaforicamente aduziam a incapacidade deste cidadĂŁo pela expressĂŁo: I J %vÂĽ+ %#-v ° ²' (um menino persegue um pĂĄssaro alado).51 Para os gregos, a moderação constituĂ­a um espaço de liberdade, que jamais alguĂŠm poderia retirar do cidadĂŁo. Saber bem ser moderado, cuidar de normatizar a si mesmo antes dos outros era condicionante de sua situação de liberdade na %s +. Somente o homem moderado era cidadĂŁo, no bom uso do termo para alĂŠm das margens da cidadania estrita. NĂŁo pode o jurista querer interditar a ž ' +, como nĂŁo pode, segundo Xenofonte, impedir que o homem beba alĂŠm de sua sede. Cada um deve “moderar-seâ€?.52 A moderação constitui para PlatĂŁo uma espĂŠcie de padrĂŁo cĂ­vico de temperança a ser seguido num modelo ideal de cidade, ao menos naquele sustentado diretamente no fim do penĂşltimo livro da RepĂşblica, um momento capaz de garantir a fina e a precisa relação entre o indivĂ­duo e a cidade. É atravĂŠs desta temperança que o homem grego, ao se expor na w #'9, pode dirigir, tal o filĂłsofo, o seu “governo particularâ€? (J/-# -# J ).53 O indivĂ­duo que cede Ă vigilância, ao juiz que existe em cada um dos homens (inner Richter, como aprazia Ă leitura do superego freudiano), faz das paixĂľes e do desregramento o seu cotidiano e a intemperança (w # )?v) se torna regra, levando-o a fugir daquilo que SĂłcrates ambicionava denominar num outro contexto de domĂ­nio de si (ˆ 'v-J ).54 Ser destemperado, imoderado, ĂŠ para 48) PLATĂƒO, Hiparco, 228, e.; PLATĂƒO, ProtĂĄgoras, 343, b. 49) PLATĂƒO, RepĂşblica, VII, 564, a – b. 50) ARISTĂ“TELES, Ética a NicĂ´maco, II, 1106, b. 51) ESQUILO, AgamĂŞmnon, 394; PLATĂƒO, EutĂ­fron, 4, a.; PLATĂƒO, Eutidemo, 291, b.; ARISTĂ“TELES, MetafĂ­sica, 1009, b. 52) XENOFONTE, RepĂşblica de Esparta, VI, 1. 53) PLATĂƒO, RepĂşblica, IX, 592, b. 54) PLATĂƒO, GĂłrgias, 491,d – 492, c.

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Platão o maior de todos os fracassos, “o mais vergonhoso”, o “mais desprezível”, principalmente porque se torna “inimigo de si mesmo”, deixado ao léu de seu controle e de suas virtudes. A maior vitória que pode experimentar na vida não é apenas deixar de ser um inimigo para outros na vida pública, mas controlar-se, evitar ser “vencido por si mesmo”.55 Eis a vitória por excelência, mais viva e mais robusta, dizem as Leis, que aquela da boa oratória ou dos concursos.56 Dominar a si mesmo, cuidar de si é o signo chave de compreensão das escolhas feitas pelo indivíduo ao longo da vida. Para isso, diz Heráclito, apenas o homem homologado, que se reconhece entre os extremos, sabendo falar e agir conforme a sua natureza, é capaz de buscar ( )9 ) a si mesmo, conhecer a si mesmo ( Æ )v/-s ) para bem pensar o mundo e julgá-lo corretamente.57 Por isso, está em questão no domínio de si as reflexões sobre o autoconhecimento e a sua constituição virtuosa. Jamais fugirá dos prazeres o homem que desconhece como detê-los dentro de si mesmo; jamais fugirá dos desejos o homem que se furta aos vícios e deixa de ser virtuoso. Suas fugas hão de lhe definir os seus hábitos, os seus costumes. Assim, o homem é a medida exata dos vícios e das virtudes que escolhe, das aceitações e das transgressões que suporta. Nesse sentido, Xenofonte é claro, pois afirma que o homem para ser o mais casto possível, tal Sócrates, deve, além de suportar constantemente o frio, o calor, as mais duras fatigas, sobretudo, fazer do amor à virtude e da moderação o seu hábito.58 Diz-se, então, que o #+ jurídico capaz de constituir um jurista curador de si é aquele que se constrói no equilíbrio entre os limites, na sensatez, na temperança, nas escolhas, além de justas, moderadas e homologadas. Não pode o jurista renunciar desde cedo às paixões, sem sequer indagálas, como o faz com os fatos nebulosos dos casos a que se depara em sua experiência jurídica, pois acaba por desconhecer a si mesmo, mas também não pode delas usufruir demasiadamente, levando-se pelo brilho e pelo prestígio da atividade ou pelos benefícios que ela lhe traz em relação aos demais cidadãos, porque então nem a busca por si mesmo é capaz de levá-lo à eqüidistância de si mesmo. A saída, aponta Heráclito ao jurista, é fazer o bom trato da alma e do #+ jurídico: “As forças das paixões humanas em nós, quando de todo reprimidas, tornam-se mais intensas; se se deixa, entretanto, atuarem brevemente e à certa medida, alegram-se comedidamente e satisfazem-se, e, então, purificadas, acalmam-se pela persuasão, e não pela violência. Por isso, contemplando paixões alheias na comédia e na tragédia contemos as nossas próprias paixões, fazemolas mais comedidas, purificamo-las; e nos ritos sagrados, vendo e ouvindo obscenidades, livram-nos do dano condizente às suas práticas. É, portanto, pelo bom trato de nossa alma e comedimento dos males provindos da geração, e pelo 55) PLATÃO, Leis, I, 626, d – e . 56) PLATÃO, Leis, VIII, 840, c. 57) HERÁCLITO, Fragmentos, CI; CXVI. 58) XENOFONTE, Memoráveis, II, 1. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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desprendimento e libertação das suas amarras, que se realizam essas coisas.â€?59 A renĂşncia e o ‘adeus’ aos prazeres, expulsando os desejos, habilitam o homem, segundo os atenienses, a se constituĂ­rem com sujeitos morais, temperantes, capazes de exercer sobre si mesmos o domĂ­nio necessĂĄrio de seu comportamento, e de exercerem sobre os outros na cidade ideal a experiĂŞncia mĂĄxima da virtude moral.60 Isso naturalmente exige dos juristas que no cuidado com as normas evitem construĂ­-las ou exercĂŞ-las conforme suas paixĂľes ou delas se utilizem para o benefĂ­cio prĂłprio. É preciso que saibam fugir ao espĂ­rito aristofânico de FiloclĂŞon, e deixem de buscar a realização da justiça apenas para satisfazer os desejos pessoais, pois temem constantemente os gregos que seus atos, quando frutos do excesso, sejam nĂŁo apenas a sua prĂłpria vergonha, mas a vergonha de toda uma cidade.61 Quando temperante, ĂŠ capaz o homem de tornar a cidade temperante, de maneira que as paixĂľes da multidĂŁo, os seus vĂ­cios, os seus excessos possam ser dominados pela retidĂŁo de uma minoria virtuosa.62 Os juristas assumem, nessa medida, um papel importante como jusfilĂłsofos e como artesĂŁos na construção da cidade ideal, mas nĂŁo apenas da cidade, e sim de um Estado temperante.63 O domĂ­nio dos prazeres e os desejos compreendem uma virtude do Estado por eles edificada, da qual faz parte o bom relacionamento entre as classes sociais. Trata-se de uma forma de harmonia natural e coletiva, de fazer as virtudes dos homens se coordenarem entre si. É por isso que PlatĂŁo correlaciona tambĂŠm a justiça Ă virtude, afirmando que ninguĂŠm pode ser sĂĄbio, corajoso e moderado sem ser justo. É na busca da moderação e do equilĂ­brio de cada indivĂ­duo que a cidade temperante, marcada pela prĂĄtica da justiça, constrĂłi-se como um verdadeiro argumento. Na linha socrĂĄtica, o governo de si no equilĂ­brio das partes da alma (racional e emocional) levam o homem educado e justo a demonstrar as origens tambĂŠm de um Estado justo. Por essa razĂŁo, a lei se coloca como um grande instrumento a serviço do homem para construir seu ‰#+ jurĂ­dico virtuoso, Ă medida que refreia as maiores ambiçþes do cidadĂŁo grego. HerĂĄclito neste ponto ĂŠ incisivo: ž ' + 3ÂŽ) J E u w # • %/' vA= 93J) 3'ÂŽ -° # Ă %‡' -#Âş C #/ Âľ 7+ Ă %‡' -J?3J#+ (mais do que o incĂŞndio ĂŠ necessĂĄrio apagar a ž ' +, ĂŠ necessĂĄrio o povo lutar pela lei como pelas muralhas.)64

59) HERĂ CLITO, Fragmentos, LXVIIII. wÂŹ / 9 J + -Æ w '7%? 7 %v 9-7 -Æ Âœ ÂĽ %9 - ‡ J¨' s J u v ?)-v -v )Q# 's-J'v T J¨+ ˆ ;' J ‡ v3JÂĽ+ ¤ x3' -#Âş )/ -'#/ %'#v s J u 3v?'#/) J-'?7+ ¤ w%#% '#Âş -v ¤ ˆ -JÂş J w%# 's J u %J #ÂĽ v¤ #½ %'°+ ?v w%#%vE# -v w ÂŽ -#Âş-# ‰ - 7 Ç ?s ¤ -'v Ç ?s w s-' %9 J7'#Âş -J+ ­)-v J -w #¨ JÂĽv %9 ¤ J-' I-J'v w%J' u s J ¤ w%# ?'# J T ‰ -J -#ÂĽ+ ÂŹJ'#ÂĽ+ J9 v)? - ) ¤ w #E) v) -Æ ¨)3'Æ w%# /s J - + ˆ%¤ -Æ ‰' 7 w%]v½-Æ )/ % %-#E) + 9 + J'v%J?v+ #Ă€ J - + ˆ ÂœÂĽ 5/3 + ¤ J' s- -#+ -Æ w -ÂŽ ; J) %'#)Q#/ ; 7 u½-“ v Æ E)JI+ -J w%° -Æ J) Æ ¤ w%v + 39' -w - Âş-v %'#)9 J-v 60) ARISTĂ“TELES, Ética a NicĂ´maco, II, 9, 1 109, b.; PLATĂƒO, RepĂşblica, IX, 571, b. 61) HESĂ?ODO, Os trabalhos e os dias, 240, s.. “ ¨)3E %C J7+ %# ?-#/ w v'-?vâ€? 62) PLATĂƒO, RepĂşblica, IV, 431, c-d. 63) PLATĂƒO, RepĂşblica, IV, 419, a – 445, e. 64) HERĂ CLITO, Fragmentos, XL a XLIV.

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Na tentativa de conter a ž ' + e permitir com que os homens construĂ­ssem uma cidade ideal longe de suas provocaçþes, os atenienses criaram por volta do sĂŠc. VI a.C. uma lei que procurava reprimir quaisquer atos que representassem a ž ' +, a fuga do indivĂ­duo aos limites das paixĂľes e dos costumes. Havia, inclusive, uma espĂŠcie de ação prĂłpria, a 'vQ= ž 'J7+, para levar aos )-v? da ^ )-v? (Tribunal de Heliaia – o tribunal criminal popular grego), qualquer forma de insolĂŞncia, de desonra ou de vergonha que causassem aos outros cidadĂŁos.65 Era uma forma de ação pĂşblica e nĂŁo de ação privada, o que representa que o excesso aĂ­ regulado era a transgressĂŁo dos costumes da %s +, o que naturalmente pressupĂľe que os danos ocorridos das desmedidas estavam muito alĂŠm da mera virtude individual, mas tinha em vistas a justa medida da comunidade, base necessĂĄria tambĂŠm dos laços de amizade.66 Noutro campo, o excesso se experimenta tambĂŠm entre os juristas a partir da necessidade do indivĂ­duo cuidar de sua falta de continĂŞncia, de sua ausĂŞncia de cuidado ou falta de vontade, a u '9) v, situação em que o indivĂ­duo ĂŠ incapaz de assegurar as açþes as quais entende justas. Apesar das inĂşmeras sustentaçþes de SĂłcrates, AristĂłteles ĂŠ descrente em relação a esse julgamento do justo, e condena o comportamento humano por ser cotidianamente acrĂĄtico. O que parece tecer entĂŁo o grande juĂ­zo prudente dos gregos ĂŠ a preocupação constante com a justeza, com o equilĂ­brio, com a sensatez, em todos os momentos da vida cotidiana. Agir de maneira insensata torna os homens tolos, assim o faz o jurista vaidoso, nĂŁo apenas porque sucumbem aos prazeres, mas porque sĂŁo capazes de deixar muitas vezes de vivĂŞ-los em razĂŁo da escolha inoportuna e inconseqĂźente de suas experiĂŞncias materiais. Tecmessa, mulher de Ă jax, ao perceber que a morte de seu marido deixaria angĂşstia e saudade em todos os comandantes aqueus que o ofenderam enquanto vivo, diz na tragĂŠdia sofocliana: #ÂŹ w' #¤ I v ) -w u ° 3J'#ÂĽ ‰3# -J+ #½ Š)v) %'? - + ˆ 9 Â? (quem raciocina mal e tem um bem nas mĂŁos sĂł sabe disso depois que o perdeu).67 Aqui, inevitavelmente, tal como se colocarĂĄ adiante para os gregos a questĂŁo da transitoriedade da J½ v # ?v, o tempo se torna indispensĂĄvel para a prudĂŞncia. Se o homem, o jurista perde o tempo de suas decisĂľes, de suas escolhas, nĂŁo apenas toma a decisĂŁo equivocada pela “ '9) â€?, mas porque nĂŁo poderĂĄ mais refazĂŞ-la nas mesmas proporçþes. Saber usufruir do 'C+ certo, tambĂŠm diz com a possibilidade da realização da justiça, e isso os juristas muito bem sabem com os processos e os seus tempos, mas, sobretudo, diz com Ă intemperança, com a w # )?v. De outro lado, a prudĂŞncia leva os homens a reconhecerem aquela construção da homologia heraclĂ­tica que hĂĄ pouco se investigava, em que o homem foge de seu destino pela escolha apaixonada e equivocada pela ž ' + Ésquilo e PĂ­ndaro muitas vezes condenaram por suas personagens aqueles homens que sĂŁo capazes de terem açþes insensatas e muitas vezes autolesivas ao seu status de homem e 65) ARNAOUTOGLOU, Ilias. Leis da GrĂŠcia antiga, p. 77-78. 66) ARISTĂ“TELES, RetĂłrica, 1374, b – 1375, a. 67) SĂ“FOCLES, Ă jax, 964, s. RAĂ?ZES JURĂ?DICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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cidadĂŁo grego. Costumavam usar a locução %'°+ ; -'v -? J (dar pontapĂŠ em agulhĂŁo) para indicar as pessoas imprudentes que se lançam desvairadamente na vida, desafiando, ao menos naquele momento, atĂŠ mesmo as divindades e o u? # 68 Deve o homem aceitar prudentemente o seu destino, o que nĂŁo significa de modo algum para os gregos a apatia, jĂĄ que essa era tanto por eles condenada. Aceitar o destino significa aceitar sua condição de humano, aquilo que constitui sua ?#+, sua existĂŞncia,69 de uma vida destinada a ser prudente por natureza em oposição aos animais, que cedem ao desequilĂ­brio de suas paixĂľes. Por essa razĂŁo, jĂĄ que a prudĂŞncia deve ser o seu prĂłprio destino, deve o homem passar a vida inteira a procurĂĄ-la, para construir seus valores, para formar seu carĂĄter, e, nessa medida, buscar sua prĂłpria identidade. Certamente Ă s vezes escapa aos excessos dos prazeres, Ă s transgressĂľes, mas nĂŁo pode neste caminho se deixar perder, devendo, imediatamente, corrigir a sua desmedida. Ao reparar a desarmonia, diz TirĂŠsias a Creonte na AntĂ­gona, o homem deixa de ser insensato e pode novamente se tornar virtuoso.70 Os gregos nĂŁo conheciam naturalmente o sentido de culpa e de pecado que o cristianismo descobrirĂĄ, por isso os efeitos da intemperança, se corrigidos a tempo, sĂŁo capazes de novamente conduzir o homem em direção Ă sua prĂĄtica ascĂŠtica. Mas mesmo que consiga atingir Ă felicidade provocada pela moderação, sustentam os filĂłsofos, deve contentar-se com o que jĂĄ conquistou, almejando apenas novos sonhos, mas nĂŁo querendo o mesmo atĂŠ esgotĂĄ-lo em suas possibilidades. SĂłlon diz a Creso que nĂŁo se pode afirmar seguramente que o homem ĂŠ feliz, enquanto viver, pois o homem vive de incertezas, e a felicidade alcançada pela prudĂŞncia pressupĂľe a estabilidade: “devemos olhar para o termo de cada coisa e ver como ela acabarĂĄ, pois a muitas pessoas a divindade dĂĄ um lampejo de ventura para depois aniquilĂĄla totalmenteâ€?.71 A felicidade, entĂŁo, depende de sua constante moderação. Aquele que nĂŁo sabe ser moderado, e deseja incondicionalmente tudo o que pretende, tende a perder atĂŠ mesmo o que jĂĄ conquistou, por isso HesĂ­odo dizia ;# Â? )/ %v -C+ (a metade ĂŠ maior que o todo).72 Isso significa, entĂŁo, que a busca ascĂŠtica pela prudĂŞncia, a fim de tornar o homem virtuoso ĂŠ um processo constante, jamais algo acabado. Porque o homem, como sustentava HerĂĄclito, ĂŠ vicissitude, ĂŠ mudança, ĂŠ transformação. Como nĂŁo ĂŠ possĂ­vel entrar duas vezes no mesmo rio (%#-v ĂŠ #½ ‰)- ˆ u ¤+ -ĂŠ u½-ĂŠ),73 porque as substâncias do homem e da vida jĂĄ se alteraram, tambĂŠm nĂŁo serĂĄ sempre ou definitivamente austero e prudente o homem, devendo a todo instante buscar sĂŞ-lo. Contudo, a prudĂŞncia grega tem seu espectro ampliado com a incursĂŁo de 68) ÉSQUILO, AgamĂŞmnon, 1624.; PĂ?NDARO, PĂ­ticas, 2, 94, s. 69) ARISTĂ“TELES, Ética a Eutidemo, I, 1, 1214, a.; e IV, 1215, a. 70) SĂ“FOCLES, AntĂ­gona, 1023-1027. 71) HERĂ“DOTO, HistĂłrias, I, 32. 72) HESĂ?ODO, Os trabalhos e os dias, 40.; PLATĂƒO, Leis, III, 690, e.; PLATĂƒO, RepĂşblica, V, 466, c.; LAÉRCIO, DiĂłgenes, Vida dos ..., SosĂ­crates, I, 75. 73) HERACLITO, Fragmentos, XCI.

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outro vocĂĄbulo, tĂŁo resistente e vasto na literatura, que ĂŠ Q'# =) +, uma espĂŠcie de sabedoria prĂĄtica. Conceito esse que, ao lado da prudĂŞncia romana, permite reconhecer uma ratio jĂşris especĂ­fica com que trabalhavam a realidade jurĂ­dica, embora nĂŁo houvesse particularmente um conceito de direito.74 Os antigos costumavam colocĂĄ-la num lugar de destaque entre os atributos do homem grego, aplicando ao comportamento humano do julgamento correto, diversamente da abstração da sabedoria mais teĂłrica, como sabedoria em geral ()#Q?v). Aquele pensar prĂĄtico, de que outrora se falava, constitui entre os juristas nĂŁo um dom quase divino como quiseram alguns jusfilĂłsofos, mas uma exigĂŞncia de um modelo que nĂŁo se limita Ă ;v, e sim se destina ao mundo prĂĄtico, Ă %s +, talvez a tĂŠcnica por excelĂŞncia capaz de produzir efeitos materiais sobre a conduta dos homens. Essa sabedoria prĂĄtica, que levarĂĄ os romanos a transformarem a iuris prudentia como uma ars, uma ciĂŞncia dos homens, segundo CĂ­cero,75 chama os juristas a comporem uma forma particular de moderação das suas decisĂľes e nas suas construçþes prescritivas. Acreditavam os gregos que toda ação humana deveria ter um fim, ser dirigida Ă constituição das virtudes nos outros cidadĂŁos, caso contrĂĄrio, seria uma ação insensata, inĂştil, que fugiria a toda compreensĂŁo da Q'# =) +. Sustentavam metaforicamente que o indivĂ­duo nĂŁo poderia %v'w %#-v ° Q';v' Âą'E--J (levar uma coruja a Atenas), jĂĄ que a cidade era repleta dessas aves e sua atitude seria desperdĂ­cio.76 Toda ação material deve ter um sentido nĂŁo apenas para os seus concidadĂŁos, mas antes de tudo para si mesmo. Somente a ação finalĂ­stica e pautada na prudĂŞncia ĂŠ capaz de levĂĄ-lo aquele conhecer a si mesmo, a um cuidado de si, e, nessa medida, poder tambĂŠm conhecer e julgar os outros cidadĂŁos, logo, cuidar dos outros. Enquanto a )#Q'#)E , como virtude moral aristotĂŠlica, representa o meio termo em relação aos prazeres e Ă s dores, a fuga ao gozo do objeto em si, aos vĂ­cios do mundo animal,77 a Q'# =) +, virtude intelectual, caracteriza o homem a bem deliberar sobre o que ĂŠ bom ou conveniente para ele, mas, especialmente, para deliberar sobre as coisas que contribuem para a vida boa em geral. As duas juntas complementam o homem harmĂ´nico e equilibrado, prudente nos raciocĂ­nios, nas açþes e no julgamento individual e coletivo. Dessa forma, a moderação, a prudĂŞncia, nĂŁo sĂŁo apenas o tempero das meras escolhas abstratas, mas sĂŁo fruto do modo como o indivĂ­duo conduz suas experiĂŞncias na vida. O jurista deve saber bem exercitĂĄ-la para transformar sua prĂĄtica diĂĄria numa experiĂŞncia ascĂŠtica, austera, com vistas Ă sua plenitude moral como cidadĂŁo e como jurista e desviar-se assim da satisfação total. A cada ato que procura repensar a normatividade das condutas e que sobre elas exerce um cuidado particular, a cada vez que deposita a pedra ou o disco para condenar ou absolver alguĂŠm deve o magistrado fugir ao apetite de seus desejos, de seu orgulho, de sua impetuosidade, enfim, de sua ž ' +, nĂŁo para evitar a fĂşria divina 74) ADEODATO, JoĂŁo MaurĂ­cio. Positividade e conceito ..., p. 19. 75) CĂ?CERO, Brutus, 41, 151. 76) ARISTĂ“FANES, Os pĂĄssaros, 301.; LAÉRCIO, DiĂłgenes, Vida dos ..., PlatĂŁo, 3, 47. 77) ARISTĂ“TELES, Ética a NicĂ´maco, III, 1117, b – 1119, b.

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como queria a narrativa mĂ­tica dos tempos de Homero e HesĂ­odo, mas para evitar ser desmedido, intemperante. O magistrado que julga em benefĂ­cio prĂłprio, que o faz por mero prestĂ­gio ou para receber as glĂłrias do cargo, corre longe das virtudes e de sua prĂłpria constituição ĂŠtico-subjetiva. O jurista que se deixa levar por suas paixĂľes e por seus desejos mais reclusos e egoĂ­sticos, passa ao largo do sentido polĂ­tico que desempenha e esquece sua condição de animal da %s +. Torna o produto de seu hĂĄbito desregrado, desequilibrado e desarmĂ´nico, e faz de seu ‰ #+ jurĂ­dico um modelo solitĂĄrio e desvairado. Goza da todo preço. É preciso saber correr os extremos na realização da justiça como virtude, sem perder de vista os limites e a justa medida. É preciso ser justo, ter eqĂźidade, mas, sobretudo, ĂŠ preciso fazer de sua experiĂŞncia jurĂ­dica uma experiĂŞncia ascĂŠtica. Sem Q'# =) H e distante da )#Q'#)E , nĂŁo hĂĄ cidadĂŁo virtuoso para os gregos, tampouco hĂĄ juristas curadores de si.

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O conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana

Manoel de Souza Mendes Junior Especialista e Mestre em Direito pela PUC-PR. Professor de Direito Processual Civil da Universidade Positivo e do curso de Especialização do Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Advogado em Curitiba.

Com a Constituição Federal de 1988 a dignidade da pessoa humana passa a ocupar a posição de valor supremo no ordenamento jurídico brasileiro. A dignidade, contudo, é um conceito filosófico do qual o direito se apropria, transformando-o assim também em conceito jurídico. O objetivo do presente artigo é identificar o significado jurídico que tem sido atribuído à expressão “dignidade da pessoa humana”. Coloca-se, assim, um limite à investigação, que não transbordará para a análise filosófica. Não se pode, todavia, deixar de fazer ao menos uma breve referência à concepção kantiana de dignidade, já que é adotada pela maioria dos juristas como ponto de partida para a identificação do conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana.

1 O RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PELO DIREITO Segundo Antonio Junqueira de Azevedo, aparentemente a expressão dignidade da pessoa humana apareceu, pela primeira vez, em um “contexto preceptivo”, no preâmbulo da Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945.1 A “inesquecível herança do genocídio, com milhões de vítimas e a destruição de valores morais e espirituais da Humanidade foram, entre outras, conseqüências trágicas da Segunda Guerra Mundial, provocada pelo delírio da con-

1) Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana, p. 11. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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quista de povos, pelo programa de destruição racial e pelas doutrinas totalitárias do nazi-fascismo”.2 A humanidade então “compreendeu, mais do que em qualquer outra época da História, o valor supremo da dignidade humana”;3 compreendeu, enfim, que sua própria sobrevivência exigia “a colaboração de todos os povos, na reorganização das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade humana”.4 Em virtude dessas constatações e com o objetivo de preservar as gerações futuras do flagelo da guerra (preâmbulo), mediante a manutenção da paz e da segurança internacionais (art. 1), cinqüenta e um países5 se uniram, fundando uma organização internacional que foi denominada de Nações Unidas e reafirmando sua “fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade [grifei] e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas” (preâmbulo). O art. 7° da Carta definiu como órgãos especiais das Nações Unidas uma Assembléia Geral, um Conselho de Segurança, um Conselho Econômico e Social, um Conselho de Tutela, uma Corte Internacional de Justiça e um Secretariado, enquanto seu art. 68 determinou ao Conselho Econômico e Social que criasse “comissões para assuntos econômicos e sociais e para promover os direitos humanos”. Em cumprimento ao disposto nesse artigo, o Conselho Econômico e Social aprovou o estatuto da Comissão de Direitos Humanos, por meio das Resoluções 5.1, de 16 de fevereiro de 1946, e 9.2, de 21 de junho de 1946.6 A Comissão de Direitos Humanos, cujas funções são a promoção e a proteção da dignidade humana, elaborou então o anteprojeto da Declaração Universal dos Direitos do Homem,7 o qual foi aprovada por unanimidade pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Essa Declaração reconheceu que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos (art. I) e que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (preâmbulo). 2) DOTTI, Declaração universal dos direitos do homem e notas da legislação brasileira, p. 1. 3) COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 55. 4) COMPARATO, A afirmação histórica..., p. 210. 5) Segundo o artigo 3.° da Carta, os “Membros originais das Nações Unidas serão os Estados que, tendo participado da Conferência das Nações Unidas sôbre a Organização internacional, realizada em São Francisco, ou, tendo assinado previamente a Declaração das Nações Unidas, de 1º de janeiro de 1942, assinarem presente Carta e a ratificarem, de acôrdo com o artigo 110”. Os membros originários da ONU foram os seguintes Estados: África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Bélgica, Bielo-Rússia, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, Egito, El Salvador, Equador, Estados Unidos da América, Etiópia, Filipinas, França, Grécia, Guatemala, Haiti, Holanda, Honduras, Índia, Iraque, Irã, Iugoslávia, Líbano, Libéria, Luxemburgo, México, Nicarágua, Noruega, Nova Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, República Árabe Síria, República Dominicana, Tchecoslováquia, Turquia, Ucrânia, União Soviética, Uruguai, Venezuela. O Brasil aprovou a Carta das Nações Unidas por meio do Decreto-lei n.º 7.935, de 04 de setembro de 1945. Hoje, as Nações Unidas tem 191 membros. (fonte: http://www.un.org/Overview/unmember.html. Acesso em: 20 abr. 2005). 6) COMPARATO, A afirmação histórica ..., p. 213. 7) COMPARATO, A afirmação histórica..., p. 213.

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A partir da Segunda Guerra Mundial, as Constituições de diversos Estados também passaram a reconhecer expressamente a dignidade da pessoa humana como um valor fundamental. São exemplos desse reconhecimento: a) a Constituição da República Italiana, de 1947: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opinião política, condições pessoais e sociais. É dever da República remover os obstáculos de ordem econômica e social, que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impeçam o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores nas organizações políticas, econômicas e sociais do País.” (art. 3);8 b) a Lei Fundamental (Constituição) da República Federal da Alemanha, de 1949: “A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais.” (art. 1.1); c) a Constituição da República Portuguesa, de 1976: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” (art. 1º) e “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (art. 13º, 1);9 e d) a Constituição Espanhola, de 1978: “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social” (art. 10.1).10 No Brasil, à exceção da Constituição de 1937, todas as demais Constituições do século XX referiam-se de forma expressa à dignidade humana. A Constituição de 1934 estabelecia que a ordem econômica deveria ser organizada de modo a possibilitar a todos existência digna (art. 115, caput);11 a Constituição de 1946 a todos assegurava trabalho que possibilitasse existência digna (art. 145, § ún.);12 1967 no que foi repetida pela Emenda Constitucional e a Constituição de 1967,

8) Tradução livre do original: “Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali. È compito della Repubblica rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale, che, limitando di fatto la libertà e l’eguaglianza dei cittadini, impediscono il pieno sviluppo della persona umana e l’effettiva partecipazione di tutti i lavoratori all’organizzazione politica, economica e sociale del Paese.” (fonte: http://www.quirinale.it/costituzione/costituzione.htm. Acesso em: 22 abr. 2005) 9) Fonte: http://www.presidenciarepublica.pt/pt/main.html. Acesso em: 20 abr. 2005. 10) Tradução livre do original: “La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social.” (fonte: http://www.constitucion.es/constitucion/castellano/titulo_1.html. Acesso em: 22 abr. 2005) 11) “Art. 115. A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica.” 12) “Art. 145. A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano. Parágrafo único. A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social.” RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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n.º 1, de 1969 1969,13 definia como um dos princípios da ordem econômica a valorização do trabalho como condição da dignidade humana (art. 157, II14 e art. 160, II15, respectivamente). Mesmo a Constituição de 1937 1937, a qual, como já se disse, não fez alusão expressa à dignidade humana, reconhecia a todos o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto (art. 136).16, 17 Aliás, essa relação entre a ordem econômica e a dignidade humana permanece na Constituição de 1988. Segundo o art. 170, caput da Constituição de 1988 1988, o fim da ordem econômica é “assegurar a todos existência digna”. Essa disposição deve ser interpretada a partir da distinção, feita por Eros Roberto Grau, entre a “ordem econômica (mundo do ser)”, que é o modo de ser empírico de uma determinada economia concreta, e a “ordem econômica (mundo do dever ser)”, que é a ordem jurídica da economia — nesse segundo sentido, note-se, a ordem econômica aparece como uma parcela da ordem jurídica.18 Feita essa observação, pode-se então compreender que, por meio do art. 170, caput da Constituição de 1988, a ordem econômica (mundo do dever ser) estabelece uma finalidade para a ordem econômica (mundo do ser): diz a ordem econômica (mundo do dever ser) que a ordem econômica (mundo do ser) deve ter por finalidade assegurar a todos existência digna, ou seja, que a atividade econômica19 “deve ser dinamizada tendo em vista a promoção da existência digna de que todos devem gozar”.20 Mas aqui, como se pode perceber, a dignidade da pessoa humana vincula apenas o exercício de atividade econômica. O art. 1º, inciso III da Constituição de 1988, todavia, confere à dignidade da 13) Formalmente, em 17 de outubro de 1969 os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar promulgaram uma Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967 (a Emenda n.º 1).Conforme observa José Afonso da Silva, contudo, teórica “e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova constituição” (Curso de direito constitucional positivo, p. 89). 14) “Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: (...) II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;” 15) “Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: (...) II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;” 16) “Art. 136. O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito à proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa.” 17) Os textos das Constituições brasileiras anteriores aqui mencionados foram consultados em compilação elaborada por Hilton Lobo Campanhole e Adriano Campanhole e publicada pela Editora Atlas sob o título Constituições do Brasil. 18) A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 49-53. 19) Segundo Grau, também a expressão “atividade econômica” é ambígua. Ele propõe então a utilização da expressão “atividade econômica em sentido amplo” para designar o gênero cujas espécies são a “atividade econômica em sentido estrito” e o serviço público (A ordem econômica..., p. 132-135). Na passagem transcrita, a referência é à ordem econômica em sentido amplo, que compreende a atividade econômica desenvolvida pelo Estado ao prestar serviço público (A ordem econômica..., p. 140). 20) A ordem econômica..., p. 51 e 231-232. Grifo do original.

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pessoa humana um novo status: o de princípio constitucional fundamental. Ela é então elevada ao ponto mais alto da hierarquia normativa de nosso ordenamento jurídico, deixando de informar apenas a ordem econômica e passando a orientar toda a ordem jurídica.21 A dignidade da pessoa humana, enfim, passa a ocupar a posição de valor supremo no ordenamento jurídico brasileiro.22 De acordo com José Afonso da Silva, os princípios contidos nos arts. 1º a 4º da Constituição de 1988 — dentre os quais se encontra o princípio da dignidade da pessoa humana — são princípios político-constitucionais, que representam decisões políticas fundamentais.23 José Joaquim Gomes Canotilho os denomina de princípios políticos constitucionalmente conformadores e a seu respeito afirma que são os “princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte”, nos quais “se condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição”.24 Por meio do art. 1º, inciso III da Constituição de 1988, portanto, o constituinte manifestou uma de suas decisões políticas fundamentais, que foi colocar o homem no centro do universo jurídico, de modo que o Estado exista em função do homem e não o inverso: Perante as experiências históricas de aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos), a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.25

Nesse sentido, é interessante notar que nas Constituições anteriores os elementos limitativos, que são aqueles que limitam a atuação do Estado por meio dos direitos e garantias fundamentais, vinham após os elementos orgânicos, que disciplinam a estrutura do Estado e de seus Poderes26, ordem que foi invertida na Constituição de 1988.27 Fica clara, assim, a preeminência da pessoa humana sobre o Estado no sistema da Constituição de 1988, inclusive quando se considera a “topografia” do texto constitucional. 21) Segundo Grau, pode-se dizer que a ordem jurídica compreende uma ordem pública, uma ordem privada, uma ordem econômica e uma ordem social (A ordem econômica ..., p. 43). 22) Paulo Bonavides, referindo-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, afirma que “se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados” (A dignidade da pessoa humana, p. 233). No mesmo sentido: AFONSO DA SILVA, A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, p. 94. 23) Curso..., p. 97. 24) Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1150. 25) CANOTILHO, Direito constitucional..., p. 225. 26) Sobre as diferentes categorias de elementos das constituições, ver AFONSO DA SILVA, Curso..., p. 46-47. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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2 BREVE NOTA SOBRE A CONCEPÇÃO KANTIANA DE DIGNIDADE Immanuel Kant se refere à dignidade em sua “Fundamentação da metafísica dos costumes”, obra publicada em 1785. Mas o que é a “metafísica dos costumes”? Norberto Bobbio, ao analisar os escritos jurídicos e políticos de Kant, propõe-se a responder a essa pergunta, analisando separadamente os significados que nessa expressão têm as palavras “costumes” e “metafísica”: Como “costumes” em geral Kant entende toda aquela complexidade de regras de conduta ou de leis (no sentido mais geral da palavra) que disciplinam a ação do homem como ser livre. O homem como ser analisável do ponto de vista fenomenológico está submetido às leis da natureza, que regulam a vida de todos os outros seres naturais; mas, enquanto ser livre, pertencente ao mundo inteligível, o homem foge das leis naturais e adequa (sic) suas ações a uma forma diferente de legislação: a legislação moral, que dá origem ao mundo dos costumes, em contraposição ao mundo natural, como mundo da história humana ou da civilização ou da cultura (como se diria hoje) em contraposição ao mundo da natureza. A palavra “costume” (em alemão Sitte), inclusive, corresponde ao latim mos, e ao grego ethos, dos quais derivam, seja moral ral, seja ética ética, que indicam de fato a doutrina da conduta humana, em contraposição à doutrina da natureza, ou física física. (...) Disso resulta claro que, quando Kant fala de “costumes”, pretende referirse ao objeto tradicional da ética ou filosofia moral, distinta da lógica e da física ou filosofia natural. Para se compreender o termo “metafísica”, é preciso introduzir uma distinção ulterior. Kant distingue uma parte empírica de qualquer forma de conhecimento e uma parte não-empírica ou racional racional. Somente esta se27) Na Constituição de 1824 o Título 1º tratava “Do Imperio do Brazil, seu Territorio, Governo, Dynastia, e Religião”; o Título 2º, “Dos Cidadãos Brazileiros”; o Título 3º, “Dos Poderes, e Representação Nacional”; o Título 4º, “Do Poder Legislativo”; o Título V, “Do Imperador”; o Título 6º, “Do Poder Judicial”; o Título 7º, “Da Administração e Economia das Províncias; e, por fim, o Título 8º continha “Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros”. A Constituição de 1891 dispunha em seus primeiros Títulos sobre a “Organisação Federal” (Título I), os Estados (Título II) e os Municípios (Título III), estando a “Declaração de Direitos” contida apenas no Título IV, dedicado aos “Cidadãos Brazileiros” (Secção II). Na Constituição de 1934 o Título I regulamentava a “Organização Federal, o Título II a “Justiça dos Estados, do Districto Federal e dos Territorios” e então o Título III era composto pela “Declaração de Direitos”. A Constituição de 1937, do mesmo modo, tratava primeiramente da “Organização Nacional”, o que incluía a disciplina do Poder Legislativo, do Poder Executivo (Presidente da República e Ministros de Estado) e do Poder Judiciário, para, somente em seguida, reconhecer os “direitos e garantias individuais”. Essa mesma ordem continuou se repetindo, com pequenas alterações. Na Constituição de 1946 o Título I era dedicado à “Organização Federal”; o Título II, à “Justiça dos Estados”; o Título III, ao “Ministério Público”; e então o Título IV, à “Declaração de Direitos”. Na Constituição de 1967 o Título I disciplinava a “Organização Nacional” e o Título II continha a “Declaração de Direitos”, estrutura que foi repetida pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969. Apenas com a Constituição de 1988 essa ordem se inverteu: agora, o Título I consagra os “Princípios Fundamentais”, o Título II os “Direitos e Garantias Fundamentais” e em seguida é que se passa a tratar da “Organização do Estado” (Título III) e da “Organização dos Poderes” (Título IV). Mais uma vez, os textos das Constituições brasileiras anteriores foram consultados na compilação elaborada por CAMPANHOLE e CAMPANHOLE e publicada pela Editora Atlas sob o título Constituições do Brasil.

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gunda pode receber o nome de “metafísica”. E porque tal distinção vale tanto para a física quanto para a ética (mas não vale para a lógica, que não pode ter uma parte empírica, tratando unicamente de relações formais), teremos uma física empírica e uma física racional, uma ética empírica e uma ética racional, ou, em outras palavras, uma física da natureza perto de uma metafísica da natureza, assim como uma física dos costumes. Porque a lógica não conhece tal distinção, as partes constitutivas da filosofia resultam ser cinco. A metafísica dos costumes é uma destas cinco partes, ou seja, é o estudo das leis que regulam a conduta humana sob um ponto de vista meramente racional.28

Em outras palavras, o significado da expressão “metafísica dos costumes” no pensamento de Kant é obtido a partir de algumas distinções que o autor adota. Primeiramente, tem-se que a filosofia pode se basear em princípios da exempírica por outro periência (ou a posteriori) e, nesse caso, chama-se filosofia empírica; lado, pode apoiar-se em princípios a priori, que independem da experiência e lhe são anteriores do ponto de vista lógico, e então se chama filosofia pura pura.29 A filosofia pura, por sua vez, pode ser formal, ocupando-se “da forma do entendimento e da razão em si mesmas e das regras universais do pensar em geral, sem distinção dos objectos”, denominando-se nesse caso lógica lógica; ou pode ser material, ocupando-se de “determinados objectos e das leis a que estão submetidos” e chamando-se então de metafísica metafísica.30 Quando o objeto de que a filosofia pura trata são as leis da natureza (leis da natureza que estuda a razão pura teórinecessidade) tem-se a metafísica da natureza, ca ou especulativa.31 Assim, a física (ou teoria da natureza) é composta pela física propriamente dita (empírica) e pela metafísica da natureza.32 No entanto, quando a filosofia pura se dedica às leis da liberdade (leis morais) e estuda a razão pura prática, então se chama metafísica dos costumes mes, a qual, juntamente com a antropologia prática, que é a parte da filosofia empírica material que tem por objeto aquelas mesmas leis, compõe a ética (ou teoria dos costumes).33 Pois bem, o homem pertence não apenas ao reino humano dos fins, mas também pertence, simultaneamente, ao reino da natureza — e o reino da natureza é o reino da necessidade, é um reino regido por relações necessárias de causa e efeito, no qual “tudo acontece de modo necessário ou causal, não havendo lugar para escolhas livres”.34 28) BOBBIO, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 50-51. Todos os grifos são do original. 29) KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 14. 30) KANT, Fundamentação..., p. 13-14. 31) À metafísica da natureza e, portanto, à razão pura teórica ou especulativa Kant dedicou a “Crítica da razão pura”, de 1781. Esclareça-se que Kant “emprega a palavra crítica no sentido que possuía em grego: estudo das condições de possibilidade. No caso, estudo das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro. É a análise da estrutura da razão humana enquanto atividade teórica de conhecimento” (CHAUÍ, Convite à filosofia, p. 207). 32) KANT, Fundamentação..., p. 14-15. 33) KANT, Fundamentação..., p. 14. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites, impulsos, desejos e paixões. Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da Natureza em nós, exercendo domínio sobre nós, submetendo-se à causalidade natural inexorável. Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética. A Natureza nos impele a agir por interesse interesse. Este é a forma natural do egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o que desejamos. Além disso, o interesse nos faz viver na ilusão de que somos livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas livremente por nós, quando, na verdade, são um impulso cego determinado pela causalidade natural. Agir por interesse é agir determinado por motivações físicas, psíquicas, vitais, à maneira dos animais.35

A liberdade36 somente é possível, portanto, quando o homem deixa de agir impelido por um instinto natural inato a passa a agir guiado pela razão,37 que irá formular as leis que ele deverá obedecer.38 Mas um homem só é verdadeiramente livre se ele próprio é o legislador que cria as leis a que suas ações deverão se subordinar. Desse modo, a liberdade jamais poderá ser encontrada em imperativos hipotéticos, assim entendidos aqueles que “representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira)”.39 Nesse caso, a lei seria determinada pelo objeto do desejo do homem e não pelo próprio homem — haveria, portanto, heteronomia e não autonomia da vontade.40 A lei moral, portanto, deverá ser expressa por meio de um imperativo categórico, que represente “uma acção como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”41 — e esse imperativo categórico tem a seguinte formulação: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.42 Porém, como se viu acima, um homem será verdadeiramente livre apenas se estiver sujeito a sua própria legislação. Desse modo, Kant entende que “todo o ser racional deve considerar-se como legislador universal por todas as máximas da sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas acções”.43 Em síntese, para ele vontade livre é o mesmo que vontade submetida exclusivamente à lei moral elaborada pelo próprio homem.44 34) CHAUÍ, Convite..., p. 234. A autora observa que o reino da natureza “é o reino da física, da astronomia, da química, da psicologia” (Convite..., p. 345). 35) CHAUÍ, Convite..., p. 345. Grifo do original. 36) Chauí afirma que a moral se torna objeto da metafísica exatamente em virtude da liberdade (Convite..., p. 234). 37) Não se pode esquecer que a razão é o centro da teoria do conhecimento de Kant (Convite..., p. 77). 38) KANT, Fundamentação..., p. 79. 39) KANT, Fundamentação..., p. 50. 40) KANT, Fundamentação..., p. 86. 41) KANT, Fundamentação..., p. 50. 42) KANT, Fundamentação..., p. 59. 43) KANT, Fundamentação..., p. 75.

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Marilena Chauí explica esse aspecto do pensamento de Kant da seguinte forma: A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos. Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais, tem também o poder para impô-los a si mesma. Essa imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o dever. Este, portanto, longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais alta da humanidade em nós. Obedecê-lo é obedecer a si mesmo. Por dever, damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos autônomos.45

Do imperativo categórico, Kant extrai o seguinte princípio prático: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.46 A partir desse princípio, expõe sua concepção de dignidade: A razão relaciona pois cada máxima da vontade concebida como legisladora universal com todas as outras vontades [dos outros seres racionais] e com todas as acções para connosco mesmos, e isto não em virtude de qualquer outro móbil prático ou de qualquer vantagem futura, mas em virtude da idéia da dignidade de um ser racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá. No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente valente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidades de nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade dignidade.47

existe como um fim em A dignidade é, assim, um valor íntimo do homem, que “existe si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.48

3 O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Diversos juristas partem da concepção kantiana de dignidade para a identificação do conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana. Se44) KANT, Fundamentação..., p. 94. 45) CHAUÍ, Convite..., p. 345. Grifo do original. 46) KANT, Fundamentação..., p. 69. 47) KANT, Fundamentação..., p. 77. Todos os grifos são do original. 48) KANT, Fundamentação..., p. 68. Os grifos são do original. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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gundo Ingo Wolfgang Sarlet, aliás, é “justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva — nacional e alienígena — ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana”.49,50 Dessa forma, uma primeira resposta à pergunta “para o direito, o que é a dignidade da pessoa humana?”, pode ser dada a partir da concepção kantiana de dignidade. Se toda pessoa é um fim em si mesma, então toda vez que for tratada como meio, como mero instrumento, pelo Estado ou por outra pessoa que pretenda dela se utilizar para a realização de fins próprios, isto é, toda vez que o sujeito de direitos for considerado como objeto, for “coisificado”, sua dignidade terá sido ofendida. Em outras palavras, pode-se dizer que ao “homem digno”51 contrapõe-se o “homem-objeto”. Por mais que essa explicação permita verificar, em muitos casos concretos, se houve ou não violação da dignidade da pessoa humana, ela ainda não diz 49) SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 34. O próprio Sarlet, ao buscar fornecer uma definição para a dignidade da pessoa humana, toma como ponto de partida “fórmula desenvolvida por Dürig, na Alemanha, para quem (na esteira da concepção kantiana) a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos” (p. 57-58). Também Fernando Ferreira dos Santos, ao se propor a apresentar algumas idéias sobre como deve ser entendida, juridicamente, a dignidade da pessoa humana, parte da concepção kantiana de dignidade: “o que caracteriza o ser humano, e o faz dotado de dignidade especial, é que ele nunca pode ser meio para os outros, mas fim em si mesmo. (...) E se o texto constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Não só o Estado, mas, consectário lógico, o próprio Direito. (...) Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, tendo em vista se cada pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para outros objetivos” (Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, p. 91-92). Maria Celina Bodin de Moraes, da mesma forma, ao tratar da expressão jurídica da dignidade humana afirma que “se a humanidade das pessoas reside no fato de serem elas racionais, dotadas de livre arbítrio e de capacidade para interagir com os outros e com a natureza — sujeitos, portanto, do discurso e da ação —, será ‘desumano’, isto é, contrário à dignidade humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o sujeito de direitos) à condição de objeto” (Danos à pessoa humana, p. 85). 50) Qualquer explicação que se dê para a dignidade depende de uma prévia tomada de posição acerca do que seja a pessoa a quem essa dignidade será atribuída. Fábio Konder Comparato identifica cinco etapas históricas na elaboração do conceito de pessoa, situando a filosofia kantiana na terceira dessas fases (A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 11-36). Há, contudo, quem considere superada a concepção kantiana de pessoa e, portanto, sua concepção de dignidade. O alerta é feito por Gláucia Correa Retamozo Barcelos Alves: “Atualmente, a posição kantiana não é unânime. Pelo contrário, suscita calorosas controvérsias entre os filósofos. Uma das posições mais polêmicas é a dos defensores dos direitos dos animais e partidários do respeito holístico ao meio ambiente, que sustentam que a crença na dignidade humana tem origens puramente religiosas e não racionais” (Sobre a dignidade da pessoa, p. 222-223). De fato, o pensamento de Kant pode ser criticado por seu excessivo antropocentrismo, o qual se percebe facilmente quando se recorda que para ele a dignidade é um atributo exclusivo do ser humano, o qual, em virtude de sua racionalidade, ocupa um lugar privilegiado com relação aos demais seres vivos (nesse sentido: SARLET, Dignidade ..., p. 34). Um dos autores que rejeitam a concepção kantiana de pessoa (a qual denomina de “concepção insular”) — apesar de a reconhecer como dominante — é Antonio Junqueira de Azevedo. Ele propõe substituí-la por uma concepção fundada em uma nova ética, uma ética da vida e do amor, do homem como ser integrado à natureza e para a qual a dignidade humana seja entendida não como autonomia individual ou autodeterminação, mas como qualidade de vida (Caracterização jurídica ..., p. 12-19).

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o que é a dignidade, para o direito. Sarlet propôs-se a fazê-lo. Afirmou então que a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.52

A análise dessa definição permite identificar os direitos que compõem o núcleo conceitual53 do princípio da dignidade da pessoa humana. Primeiramente, se a dignidade é um atributo intrínseco do ser humano que expressa seu valor absoluto,54 uma qualidade que é reconhecida em todos os homens, então todos são iguais e, como consta da definição, merecedores do mesmo respeito e consideração. Portanto, a dignidade implica o direito a um tratamento igualitário igualitário, no direito de não receber tratamento discriminatório.55 Em segundo lugar, a dignidade pressupõe a autonomia, o poder de autodeterminação do homem, isto é, a liberdade para tomar as decisões essenciais relativas a sua própria existência, para realizar seu projeto existencial e alcançar a felicidade.56 Segundo Canotilho, o princípio material subjacente à idéia de princípio antrópico que acolhe a idéia prédignidade da pessoa humana é o “princípio moderna e moderna da dignitas-hominis (Pico della Mirandola) ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual (plastes et fictor)”.57 Esse aspecto do princípio da dignidade da pessoa humana concretiza-se, claramente, por meio dos direitos fundamentais de 51) A expressão “homem digno” aparece aqui para designar o homem cuja dignidade é respeitada e não em oposição a um suposto “homem indigno”, isto é, um homem desprovido de dignidade, posto que, sendo a dignidade um atributo essencial da pessoa humana, todos a têm. 52) SARLET, Dignidade..., p. 59-60. 53) Karl Engisch, após esclarecer que conceitos jurídicos indeterminados são aqueles conceitos “cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos”, afirma, citando Phillip Heck, que nesses conceitos podem-se distinguir um núcleo conceitual e um halo conceitual. E explica: “Sempre que temos uma noção clara do conteúdo e da extensão dum conceito, estamos no domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito” (Introdução ao pensamento jurídico, p. 208-209). 54) Essa é, segundo Sarlet, a concepção ontológica da dignidade, isso é, uma concepção que considera a dignidade como qualidade inerente ao ser humano (Dignidade..., p. 53.). 55) Segundo Bodin de Moraes, a forma de violação por excelência do direito à igualdade “traduz-se na prática de tratamentos discriminatórios, isto é, em proceder a diferenciações sem fundamentação jurídica (ratio), sejam elas baseadas em sexo, raça, credo, orientação sexual, nacionalidade, classe social, idade, doença, dentre outras” (Danos..., p. 90). 56) Segundo Afonso da Silva, o “conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade” (Curso ..., p. 236). 57) CANOTILHO, Direito constitucional..., p. 225. Grifos do original. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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primeira geração,58 que são exatamente os direitos da liberdade, manifestando-se tanto por meio dos direitos civis quanto dos direitos políticos.59 A idéia de liberdade a que aqui se refere, dessa forma, alcança, nas palavras de Sarlet, não só a participação nos destinos da própria existência (liberdade civil), mas também a participação nos destinos da vida em comunhão com os demais seres humanos (liberdade política).60 Em terceiro lugar, o princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos o respeito à vida e à integridade físico-psíquica físico-psíquica, a proteção contra “todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano”, como consta da definição de Sarlet. Não poderia ser diferente. Quando a Constituição coloca a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental está, em outras palavras, estabelecendo sua intangibilidade; ora, essa intangibilidade não atinge apenas a dignidade, mas também a pessoa a quem ela é atribuída. Desse modo, o princípio impõe aos particulares o dever de respeitar a pessoa humana em todas as suas dimensões e ao Estado, além desse dever de respeito, confere ainda o dever de protegê-la.61 Aqui surge questão interessante: a dignidade da pessoa humana a protege apenas de atos praticados pelo Estado e por outros particulares ou também a protege dela própria? Em outras palavras, a dignidade da pessoa humana é renunciável? A doutrina, de forma geral, afirma que não, considerando que a dimensão defensiva do princípio constitui-se inclusive em um limite à autonomia da vontade.62 Caso peculiar ocorrido em 1991 na França, na cidade de Morsang-surOrge, ao qual se refere o “acórdão do atirador de anões” (arrêt du lanceur de nains), proferido pela Câmara de Contencioso Administrativo do Conselho de 58) Segundo Bonavides, os direitos fundamentais de primeira geração são os direitos da liberdade, que “têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico”; os direitos fundamentais de segunda geração, que têm por fundamento o valor da igualdade, são os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos; os direitos fundamentais de terceira geração, assentados sobre a fraternidade e tendo por destinatária toda a humanidade, compreendem o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação; por fim, os direitos fundamentais de quarta geração, que surgem com a “globalização política na esfera da normatividade jurídica”, são o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo (Curso de direito constitucional, p. 562-572). 59) Os direitos civis são, na terminologia da Constituição brasileira, os direitos individuais. Aliás, segundo Afonso da Silva, a classificação dos direitos fundamentais que decorre de nosso direito constitucional positivo leva à identificação de cinco categorias: a) direitos fundamentais do homem-indivíduo, ou direitos individuais (também chamados de liberdades civis ou de liberdades-autonomia); b) direitos fundamentais do homem-membro de uma coletividade, ou direitos coletivos; c) direitos fundamentais do homem-social, ou direitos sociais; d) direitos fundamentais do homemnacional, ou direitos à nacionalidade; e e) direitos fundamentais do homem-cidadão, ou direitos políticos (também chamados de liberdades políticas ou de liberdades-participação (AFONSO DA SILVA, Curso ..., p. 186-187). 60) Segundo Miguel Reale, o direito fundamental de liberdade deve ser entendido “como poder autônomo de ser e agir na esfera privada (liberdade civil) e na esfera pública (liberdade política)” (REALE, Lições preliminares de direito, p. 268). 61) SARLET, Dignidade ..., p. 53. 62) Nesse sentido, por exemplo, NOBRE JÚNIOR, O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 244-247; SARLET, Dignidade..., p. 41.

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Estado daquele país em 27 de outubro de 199563, bem ilustra o reconhecimento judicial da irrenunciabilidade da dignidade da pessoa humana. O caso foi assim resumido por Alexandre dos Santos Cunha: Em linhas gerais, o caso em tela pode ser assim relatado: duas prefeituras departamentais francesas baixaram decretos proibindo a apresentação de um novo tipo de diversão pública, que se constituía num jogo em que o público era convidado a atirar, utilizando-se de um canhão de pressão, um anão à distância. Aquele que conseguisse arremessá-lo a uma distância maior, ganhava o jogo. A motivação de ambos os decretos era a proteção da dignidade da pessoa do anão, que era tida por aviltada, e não o risco de vida que poderia representar, uma vez que todos os requisitos de segurança eram respeitados. No entanto, os promotores do jogo, em litisconsórcio com o anão que nele atuava, buscaram, pela via do contencioso administrativo, a anulação dos decretos, com base na proteção do livre exercício profissional. Apesar de derrotados na primeira instância, que outorgou ao anão uma pensão mensal no valor do salário que recebia para participar do espetáculo, como forma de compensar a proibição de sua atividade profissional, este recorreu ao Conselho de Estado. Fundamentava o pedido de revisão da sentença de primeiro grau no fato de que não desempenhava aquela profissão apenas pela necessidade financeira, mas porque gostava do que fazia e sua atividade era um instrumento de socialização. Ou seja, no direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade. No entanto, o Conselho de Estado confirmou a sentença de primeiro grau. Patrick Frydmann, commissaire du gouvernement, escreveu literalmente nos autos: ‘O respeito da dignidade humana, conceito absoluto que é, não poderia cercar-se de quaisquer concessões em função de apreciações subjetivas que cada um possa ter a seu próprio respeito. (...) Por sua natureza mesma, a dignidade da pessoa humana está fora do comércio’.64

Cunha, entretanto, entende que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, que integra o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, não pode ser relativizado, exceto quando interferir diretamente em direitos de outrem. Por esse motivo, condena o posicionamento da jurisprudência francesa, o qual, em sua opinião, é totalitário.65 Por fim, o princípio da dignidade da pessoa humana assegura a todos o direi63) Antonio Junqueira de Azevedo utiliza o mesmo exemplo, mas para ilustrar violação do direito à igualdade, pois em sua opinião haveria no caso do lançamento de anões ato discriminatório no campo contratual (Caracterização ..., p. 24). 64) Dignidade da pessoa humana, p. 249-250. 65) Diz o autor: “o mínimo que se pode dizer desse tipo de posicionamento é que ele é totalitário, em uma de suas piores acepções possíveis: o nazismo. Acusar de totalitarismo a decisão do Conselho de Estado francês, e toda a doutrina que o ampara, é negar expressamente o seu fundamento de constitucionalidade, uma vez que a tutela da dignidade da pessoa humana, como vimos, surge, no ordenamento jurídico daquele país, como, de resto, em todos, justamente como instrumento posto pelo Direito com o escopo de proteger o indivíduo dos totalitarismos. No entanto, tem amparo esse posicionamento em Celso Lafer, em sua notável análise do fenômeno totalitário, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. Para Lafer, ‘o totalitarismo representa uma proposta de organização da sociedade que almeja a dominação total dos RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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to a uma existência material mínima, mínima isto é, o direito às condições materiais mínimas que são necessárias para uma existência humana física, intelectual e espiritualmente digna.66 Esse aspecto do princípio se manifesta em duas dimensões. Em uma dimensão protetiva protetiva, estabelece limites à possibilidade de atingir a esfera patrimonial das pessoas, que não podem ser privadas dos meios materiais necessários a uma existência digna.67 Diversas das hipóteses de impenhorabilidade previstas pelo Código de Processo Civil (arts. 648 e 649), bem como a impenhorabilidade do bem de família instituída pela Lei n.º 8.009, de 29 de março de 1990, são justificadas por essa dimensão do princípio: O objetivo central que comanda todas as impenhorabilidades é o de preservar o mínimo patrimonial indispensável à existência decente do obrigado obrigado, sem privá-lo de bens sem os quais sua vida se degradaria a níveis insuportáveis. Não se trata de excluir da responsabilidade executiva os próprios direitos da personalidade, porque estes nada têm de patrimonial e, por si próprios, não são suscetíveis de qualquer constrição jurisdicional executiva; são declarados impenhoráveis certos bens sem os quais o obrigado não teria como satisfazer as necessidades vitais de habitação, alimentação, saúde, educação, transporte e mesmo lazer, nos limites do razoável e proporcional — esses, sim, direitos da personalidade. A execução visa à satisfação de um credor, mas não pode ser levada ao extremo de arrasar a vida de um devedor.68

Em uma dimensão prestacional prestacional, impõe ao Estado o dever de propiciar às pessoas, por meio de prestações positivas, o mínimo existencial. Nessa dimensão, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana é concretizado por meio de direitos sociais, os quais, segundo Afonso da Silva, são “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”.69 Esse mínimo existencial, segundo Ana Paula de Barcellos, é composto pelos seguintes direitos sociais:70 a) educação fundamental fundamental,71 que tem a duindivíduos. (...) Trata-se de um regime que não se confunde com a tirania, nem com o despotismo, nem com as diversas modalidades de autoritarismo, pois se esforça por eliminar, de maneira historicamente inédita, a própria espontaneidade — a mais genérica e elementar manifestação da liberdade humana’. (...) O right to be let alone, o direito de livre desenvolvimento da personalidade, isento de interferência dos julgamentos morais por parte da opinião pública, ou de restrição estatal, é elemento constitutivo e essencial da dignidade humana, fundamento do direito privado e do Estado de Direito. Não pode nunca ser relativizado, a não ser caso interfira diretamente em direitos de terceiros, sob pena de, pela busca do bem absoluto, cairmos no terror. Parece-me ter sido exatamente esse o caso, quando do julgamento do Conselho de Estado” (Dignidade ..., p. 251-253). 66) BARCELLOS, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, p. 197. 67) NOBRE JÚNIOR, O direito brasileiro..., p. 247-248. 68) DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 340. Grifo do original. 69) AFONSO DA SILVA, Curso..., p. 289. 70) A educação, a saúde e a assistência aos desamparados são expressamente reconhecidas como direitos sociais pelo art. 6º da Constituição Federal.

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ração mínima de oito anos e objetiva a formação básica do cidadão72 e que, segundo Barcellos, deve ser prestada de modo a assegurar condições de real aproveitamento para o aluno, incluindo, quando necessário, material didático, transporte e alimentação;73 b) saúde básica básica,74 compreendendo as “prestações de saúde de que todos os indivíduos necessitaram — como o atendimento no parto e o acompanhamento da criança no pós-natal75 —, necessitam — exemplificativamente o saneamento básico e o atendimento preventivo em clínicas gerais e especializadas, como cardiológica, ginecológica etc. — ou provavelmente hão de necessitar — e.g.: o acompanhamento e controle de doenças típicas da terceira idade, como a hipertensão, o diabetes etc.”; c) assistência aos desamparados desamparados, que envolve as “condições mais elementares que se exigem para a subsistência humana: alimentação, vestuário e abrigo”;76, 77 e Justiça pois sem ele não há como exigir do Estado as prestações d) acesso à Justiça, positivas necessárias à satisfação dos três direitos anteriores.78 Em síntese, portanto, podem ser identificados quatro direitos que integram o núcleo conceitual do princípio da dignidade da pessoa humana: a) direito à igualdade; b) direito à intangibilidade da vida e da integridade psicofísica; c) direito à liberdade; e d) direito ao mínimo existencial.79 Dessa conclusão, aliás, 71) A Constituição Federal reconheceu expressamente que a educação, que tem por objetivos o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205), é um direito público subjetivo (art. 208, § 1º c/c inc. I). A esse respeito, assim dispõe o art. 5º, caput da Lei n.º 9.394/ 96: “O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo”. 72) Art. 32, caput da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional (Lei de Diretrizes e Bases – LDB). 73) Segundo o art. 208, inciso VII da Constituição Federal o “dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde”. 74) O art. 196 da Constituição Federal dispõe que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. 75) Nesse sentido, o art. 227, § 1º, inciso I da Constituição Federal determina ao Estado que promova programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, devendo aplicar percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil. 76) A moradia é hoje reconhecida expressamente pela Constituição Federal como um direito social (art. 6º, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 26, de 14 de fevereiro de 2000). 77) A assistência aos desamparados também é prestada pelo Estado por meio do fornecimento dos recursos pecuniários minimamente necessários à subsistência de pessoas que se encontram involuntariamente desempregadas (arts. 7º, II e 201, III), dos idosos e das pessoas portadoras de deficiência, nesses dois últimos casos desde que haja a comprovação de que não possuem “meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (art. 203, V). O programa de seguro-desemprego, que tem como uma de suas finalidades “prover assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado em virtude de dispensa sem justa causa, inclusive a indireta, e ao trabalhador comprovadamente resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo”, foi regulado pelos arts. 2º a 8º-C da Lei n.º 7.998, de 11 de janeiro de 1990 (a citação é do art. 2º, inciso I, com a redação dada pela Lei n.º 10.608, de 20 de dezembro de 2002); o benefício de prestação continuada foi disciplinado pelos arts. 20 e 21 da Lei n.º 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social). 78) BARCELLOS, A eficácia jurídica ..., p. 260-301. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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não destoam, de uma forma geral, as propostas apresentadas pelos demais autores que se dedicaram ao tema.80

REFERÊNCIAS AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. _____. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Rio de Janeiro, Revista de Direito Administrativo, v. 212, abr.-jun. 1998, p. 89-94. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 797, mar. 2002, p. 11-26. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais nais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BARCELOS ALVES, Gláucia Correa Retamozo. Sobre a dignidade da pessoa. In: MARTINS-COSTA, Judith. (org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 213-229. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 4. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: humana uma leitura civilconstitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. 79) Desses, o art. 5º, caput da Constituição Federal reconhece expressamente os direitos individuais à vida, à liberdade e à igualdade, os quais considera invioláveis. O direito à incolumidade física e psíquica é um direito fundamental implícito (CF, art. 5º, § 2º), o qual se deduz da proibição, contida no art. 5º, inciso III da Constituição Federal, de submeter a pessoa a tortura ou a tratamento desumano ou degradante (FERREIRA FILHO, Direitos humanos fundamentais, p. 100). 80) Para Edilson Pereira Nobre Júnior o princípio leva às seguintes conseqüências: “a) reverência à igualdade entre os homens (art. 5º, I, CF); b) impedimento à consideração do ser humano como objeto, degradando-se a sua condição de pessoa, a implicar na observância de prerrogativas de direito e processo penal, na limitação da autonomia da vontade e no respeito aos direitos da personalidade, entre os quais estão inseridas as restrições à manipulação genética do homem; c) garantia de um patamar existencial mínimo” (O direito brasileiro ..., p. 240). Azevedo, por sua vez, sintetiza seu pensamento da seguinte forma: “a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana e dá origem, em seqüência hierárquica, aos seguintes preceitos: 1 – respeito à integridade física e psíquica das pessoas; 2 – consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; e 3 – respeito às condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária” (Caracterização..., p. 25). Já Bodin de Moraes apresenta a seguinte tese: “O substrato material da dignidade assim entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral — psicofísica —, da liberdade e da solidariedade” (Danos à pessoa humana, p. 85). Como se pode perceber, à exceção desta última autora, no ponto em que entende que o princípio da solidariedade é uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, todos os demais elementos indicados nos trechos transcritos coincidem com os direitos que foram identificados como integrantes do núcleo conceitual do princípio da dignidade da pessoa humana a partir da definição proposta por Sarlet.

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_____. A dignidade da pessoa humana. In: _____. Teoria constitucional da democracia participativa. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 230-234. CAMPANHOLE, Hilton Lobo; CAMPANHOLE, Adriano. Constituições do Brasil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2000. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2002. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do direito civil. In: MARTINS-COSTA, J. (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 230-264. DINAMARCO, Cândido. Rangel. Instituições de direito processual civil civil. v. 4, 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. DOTTI, René Ariel. Declaração universal dos direitos do homem e notas da legislação brasileira. Curitiba: JM, 1998. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista Machado. 9. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004. FERREIRA DOS SANTOS, Fernando. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos, 1999. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2001. NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro, Revista de Direito Administrativo, v. 219, jan.-mar. 2000, p. 237-251. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

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Linhas sobre o estatuto das legislações interna e externa na filosofia prática de Kant

Roberto Wu Doutor em Filosofia pela PUC-RIO, Mestre em Filosofia pela UFPR e professor da disciplina de Filosofia Jurídica na Universidade Positivo

Pelo que antecede podemos agora explicar-nos facilmente como sucede que, ainda quando nos representamos sob o conceito de dever uma sujeição à lei, possamos achar não obstante simultaneamente uma certa sublimidade e dignidade na pessoa que cumpre todos os seus deveres. Pois enquanto ela está submetida à lei moral não há nela sublimidade alguma; mas há-a sim na medida em que ela é ao mesmo tempo legisladora em relação a essa lei moral e só por isso lhe está subordinada. Kant, I. Fundamentação da metafísica dos costumes.

A filosofia prática de Kant gravita em torno de três obras célebres: Fundamentação da metafísica dos costumes (1783), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1796-97), sendo as duas primeiras da fase crítica. Schopenhauer (2001, p. 22) havia avaliado pejorativamente os textos posteriores aos da chamada fase crítica, particularmente as Primeiras razões metafísicas da doutrina da virtude, segunda parte da Metafísica dos costumes, que se segue à “deplorável” (segundo Schopenhauer) Doutrina do direito, que só poderia ser justificada pela “influência da fraqueza da idade”. A simples conciliação entre direito e ética na Metafísica dos costumes teria retirado a radicalidade da noção de moralidade tal qual aparece na Fundamentação, na medida em que neste último há um desnível considerável entre o uso pleno da razão na determinação da autonomia da vontade, expressa nas ações por dever (aus Pflicht), por oposição à mera adequação prudencial na conformidade ao dever (pflichtmäßig). Respeito à lei (Achtung fürs RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Gesetz) e valor moral (moralische Werth) foram na Fundamentação e assim permaneceram na Metafísica dos costumes, critérios alheios ao campo jurídico. Apesar disso, a Metafísica dos costumes tende a apresentar o comportamento moral, descrito nessa obra como ético, como uma atitude possível ao lado do comportamento prudencial por obediência às leis jurídicas, quando, na verdade, na Fundamentação, o papel verdadeiramente racional estava circunscrito às ações com valor moral1. Se não há uma contradição entre moral e direito, pelo menos há um enfraquecimento do papel prático da razão ao contemplar ações baseadas em imperativos hipotéticos como racionais. Há, portanto, a indicação de uma mudança no papel da razão no domínio prático no intervalo entre essas obras. Por outro lado, outros intérpretes têm defendido a filosofia jurídica de Kant como o complemento necessário da legislação meramente interna da razão (BECKENCAMP, 2003, 2006; ZINGANO, 1989; JORGE FILHO, 2005). Assim, Kant teria percebido a necessidade de uma legislação externa para normativizar objetivamente as relações inter-subjetivas. Nessa perspectiva, tanto a Fundamentação quanto a Crítica da razão prática nada mais seriam do uma primeira parte do sistema prático de Kant, a ética, que se complementaria com a sua filosofia sobre a política, o direito e a história. O objetivo desse artigo é apresentar a dificuldade de conciliação entre a ética (ou a moralidade subjetiva tal qual aparece nos textos críticos) e o direito no campo prático, a partir da contraposição dos textos do período crítico, em que a moral é ressaltada como elemento prático essencial, e os textos ulteriores, em torno da Metafísica dos costumes. O texto pretende apontar alguns pontos de tensão em relação ao problema da liberdade no âmbito prático, na medida em que este se divide em ética e direito, nomeadamente nos casos jurídicos apresentados por Kant. O texto encerra indicando algumas alternativas de interpretação em relação aos problemas internos da filosofia prática kantiana.

1 RAZÃO E RESPEITO À LEI Assim como há dificuldades na transição da análise da liberdade transcendental para a liberdade moral, apontada por vários estudiosos (ALMEIDA,1997; BECK, 1966), também a compatibilidade das liberdades no âmbito prático, a saber, a liberdade moral ou interna e a liberdade política ou externa possuem características que podem ser vistas, ora como complementares, ora como antagônicas. Nesse sentido, o campo prático das investigações de Kant tem sido freqüentemente negligenciado em relação ao seu caráter sistemático, de modo que juristas lêem a Doutrina do direito sem prestar a devida atenção à sua unidade com a moral, e filósofos da moral esquecem a contrapartida jurídica (GOMES; MERLE, 2007). 1) Kant utiliza preferencialmente o termo moral e seus derivados para designar aquilo que além de conforme ao dever é por dever na Fundamentação da metafísica dos costumes, apesar de no prefácio se referir à antiga divisão da filosofia entre física, ética e lógica. Já na Metafísica dos costumes, Kant divide o campo dos costumes ou moral em ética e direito, a primeira sendo exclusivamente o domínio da legislação interna e o segundo como o âmbito daquilo que também pode ser objeto de legislação externa.

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Dentre os diversos pontos controversos, central é a noção de liberdade e a sua problemática disparidade na sua acepção interna e externa. Para discuti-la, apresenta-se inicialmente o conceito de dever tal qual se encontra na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, para o exame dos elementos constitutivos de sua possibilidade, destacando as noções de universalidade, incondicionalidade, necessidade, lei, autonomia e respeito. Em seguida, esses termos serão contrapostos às exigências da Doutrina do direito. Finalmente, tanto a moral quanto o direito serão analisados na perspectiva do uso regulativo da razão. É possível traçar um paralelo entre as filosofias teórica e prática de Kant a partir da pergunta fundamental que subjaz a ambas, a saber, se são possíveis juízos sintéticos a priori. Não se trata mais da possibilidade da ciência, mas das condições de possibilidade do dever. Não são tarefas divergentes, visto que ambas surgem do propósito kantiano de uma revolução copernicana que limita o uso da razão, ao mesmo tempo em que permite que essa faculdade desenvolva aquilo que lhe é mais próprio, o que é possível e exigido no campo prático (Segundo Prefácio à Crítica da Razão Pura, KANT, 1985). A Dialética Transcendental demonstrou que a razão estaria proibida de exercer uma função constitutiva, sob a qual ela se enredaria inevitavelmente em contradições insolúveis. Assim, a busca da unidade do ponto de vista do eu, isto é, da alma (psicologia racional), da causa não causada, ou seja, do mundo (cosmologia racional) e da totalidade, de Deus (teologia racional), não seria um objetivo alcançável, embora a razão seja levada inelutavelmente à aparência de conseguir atingi-lo. Nesses três casos, o que se percebe é a busca incessante da razão ao máximo de unidade na tarefa de totalizar os conceitos metafísicos fundamentais. Se isso não é possível na razão teórica, no âmbito da constituição de objetos, sob o risco de se recair em antinomias e paralogismos, na razão prática, a busca de uma unidade que dê sentido à diversidade de ações permanece como tarefa fundamental, já que a idéia, conceito próprio da razão, não tem nenhuma função constitutiva, apenas regulativa. Na análise da moralidade, a razão procura a unidade da ação. O dever é a unidade necessária pela qual a totalidade dos fenômenos humanos pode ser regulada em vista de uma idéia prática. O dever é definido na Fundamentação como a “necessidade da ação por respeito à lei” (KANT, 1978, p. 114). A razão é a condição de possibilidade do dever enquanto faculdade que aspira à máxima universalidade e totalidade no direcionamento dos caracteres empíricos em função do incondicionado. Num ente que é tanto racional quanto sensível, a razão tem por função não apenas demonstrar que é possível o dever, mas produzir o dever, agindo e determinando o princípio do querer para que se torne vontade boa, de modo que a máxima da ação seja incondicionada. É notória a distinção oferecida por Kant na Fundamentação entre as diferentes formas de ações em relação ao dever. O critério fundamental é o princípio do querer, de modo que uma ação conforme ao dever por interesse egoísta ou por inclinação não possui na máxima que a originou o puro respeito à lei. Apenas a ação originada pela vontade boa é que levaria a uma ação incondicionada, a única RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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com valor moral. Esta vontade boa, entretanto, não está no âmbito das disposições naturais do homem, mas deve ser produzida pela razão. Se na filosofia especulativa teórica a razão estava proibida de constituir objetos, na filosofia prática, ela podia exercer a sua verdadeira função, qual seja, a de regular as ações ao postular princípios que norteiem a conduta humana. Essas ações não seriam reguladas por um arbítrio qualquer e sim por máximas que uma vez universalizadas não se contradiriam, podendo tornar-se princípios de conduta para a humanidade. A possibilidade da universalização, somada ao princípio do querer incondicionado, fornece os elementos que permitem compreender o imperativo categórico, nas suas diversas formulações, como critério de valor moral para as ações. A ação incondicionada que pode ser universalizada é aquela que toma o outro ser humano como um fim em si mesmo e nunca como meio para se atingir alguma outra finalidade. A postulação do reino dos fins é a culminação do constructo kantiano sobre a moralidade que surge do interesse da razão. O ser humano desenvolve a sua faculdade mais alta quando atinge a capacidade de postular para si mesmo a sua lei e de se fazer obedecer, tornando-se autônomo. Dos elementos centrais para a exposição da filosofia moral kantiana, cumpre examinar mais detalhadamente alguns deles. Como mencionado, Kant define o dever como a necessidade de uma ação por respeito à lei. De acordo com essa definição, só poderia ser denominado de dever aquilo que obedecesse aos critérios de necessidade e de respeito à lei. O critério de necessidade pode ser interpretado na Fundamentação como a incondicionalidade. Se no mundo físico/natural as leis contêm em si uma necessidade, as leis morais trazem consigo também uma necessidade, porém interna e originada pelo próprio sujeito. Essa necessidade é postulada pela razão que, por meio do imperativo categórico, ordena ao próprio sujeito que aja incondicionadamente. O segundo critério, o respeito à lei, exige ser mais bem precisado. Na nota 10 da Fundamentação, Kant explica que “o objeto do respeito é portanto simplesmente a lei, quero dizer, aquela lei que nos impomos a nós mesmos, e no entanto como necessária em si. (...) Todo respeito por uma pessoa é propriamente só respeito pela lei (...)” (1978, nota 10, p. 115). Através dessa nota, cujo sentido é claríssimo, Kant delimita o objeto do respeito como sendo a lei, de modo que o respeito à outra pessoa é sempre derivada do respeito essencial em relação à lei que aquela pessoa nos dá o exemplo. Na medida em que é pela lei e não pela pessoa, a subordinação do sujeito por meio do respeito tem um critério universal e racional, não passível de arbitrariedades, não sendo nem contingente nem particular. Assim, o respeito se distingue de outros sentimentos como o medo que possuem a peculiaridade de serem resultados de influências externas sobre a vontade. O respeito, embora seja sentimento, é um sentimento moral resultante da razão do próprio sujeito sobre a sua vontade, tornando-a uma vontade boa. Para desenvolver um pouco mais o conceito de respeito, é preciso que se faça uma remissão à Crítica do juízo. Esta obra que trata da possibilidade do juízo aborda dois sentimentos estéticos: o belo e o sublime. Apesar da tendência a identificar a Crítica do juízo ao teor meramente teleológico e estético, é impor304

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tante que se ressalte as relações que Kant estabelece entre esses sentimentos e a moralidade, nos momentos decisivos de sua exposição. Na medida em que se constitui em sistema filosófico, as partes que o compõem devem naturalmente se harmonizar entre si, se entrelaçando coerentemente. De acordo com Kant, os juízos de gosto e os juízos morais são semelhantes, na medida em que não contribuem para o conhecimento teórico de nenhum objeto, mas são fins em si mesmo. É nesse sentido que se deve buscar a interpretação da seguinte observação: “belo é o símbolo do moralmente bom” (2008, B 258). Ora, de que modo se pode compreender essa proposição, senão na relação entre o desinteresse e a incondicionalidade? Como é sabido, Kant distingue entre o agradável e o belo, sendo o primeiro um juízo particular movido por um interesse subjetivo, enquanto o segundo reivindica para si a necessidade da universalização sem nenhum interesse. Só está apto a apreciar o belo aquele que julga desinteressadamente. Da mesma forma, só está apto a agir moralmente aquele que age incondicionadamente, tendo por princípio do querer a vontade boa e não um interesse egoísta. É expressivo que se refira nos seguintes termos sobre a relação entre o belo e o moralmente bom, visto que todo sentimento de belo eleva o indivíduo a um patamar superior: “o ânimo é ao mesmo tempo consciente de um certo enobrecimento e elevação sobre a simples receptividade de um prazer através de impressões dos sentidos (...)” (2008, B 258). O sentimento de sublime, por sua vez, caracteriza-se pela inadequação da faculdade da imaginação de representar um determinado fenômeno grandioso. Enquanto em relação ao belo, o ânimo se encontra tranqüilo, em relação ao sublime, o ânimo se sente movido pela impressão desse fenômeno. O sublime corresponde ao máximo esforço da imaginação para representar um dado fenômeno, a sua inadequação para tal tarefa gera esse sentimento estético específico. O dado importante para os nossos objetivos presentes é que Kant se refere a essa disparidade da seguinte forma: “o sentimento de inadequação de nossa faculdade para alcançar uma idéia, que é lei para nós, é respeito” (2008, B 96). Ora, como visto anteriormente, o respeito é unicamente respeito em relação à lei, de modo que o paralelo imediato é que o sentimento de sublime implica em sentimento de respeito; em ambos os casos, trata-se do máximo esforço da imaginação em representar uma idéia que não é completamente abarcável. A subordinação frente ao que a razão percebe como grandioso leva o sujeito a experimentá-lo mediante um sentimento de respeito. Se o belo implica no ânimo sereno na sua fruição, o sublime leva a um sentimento de desprazer que surge da impossibilidade de abarcar completamente o fenômeno. Nesse sentido, Kant conclui sobre a função moral desses sentimentos estéticos: “o belo prepara-nos para amar sem interesse algo, mesmo a natureza; o sublime, para estimá-lo, mesmo contra nosso interesse (sensível)” (2008, B 115). Esse sentimento de inadequação que se experimenta no sublime é análogo ao sentimento de respeito, na medida em que se baseia na percepção de um certo desprazer na impossibilidade de abarcar algo mais elevado. Nesse sentido, Kant afirma na Crítica da razão prática que “o respeito pela lei moral é o único e ao mesmo tempo indubitável motivo moral, do RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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mesmo modo que este sentimento não se dirige a algum objeto senão a partir desse fundamento” (KANT, 2002, A 139); ou seja, é o sentimento de inadequação frente a algo mais elevado que está na origem e é fundamento de toda ação moral. Esta inadequação que acompanha o respeito é expressa na Crítica da razão prática como uma espécie de dano ao valor próprio, um estado de humilhação ou de desprazer (2002, A 139) frente à lei moral. Entretanto, nesta mesma Crítica, Kant afirma algo sobre o respeito que pode levar a dificuldades interpretativas. Como visto anteriormente na nota 10 da Fundamentação, o objeto do respeito é unicamente a lei, e só num sentido derivado é que se pode afirmar do respeito pelas pessoas. Porém, na Crítica, Kant afirma que “respeito sempre tem a ver somente com pessoas e nunca com coisas” (2002, A 135), o que contradiz pelo menos num primeiro momento a afirmação da Fundamentação. É certo que se pode fazer um esforço hermenêutico buscando uma coerência entre as afirmações na medida em que toda lei moral se refere a pessoas, mas, de todo modo, uma indefinição quanto ao conteúdo do respeito persiste.

2 DA LEI MORAL À LEI JURÍDICA Na Metafísica dos costumes, na primeira parte intitulada Doutrina do direito, Kant define obrigação (Verbindlichkeit) como sendo “a necessidade de uma ação livre sob um imperativo categórico da razão” (2007, p. 35). Em sentido estrito, obrigação é sempre obrigação moral, no sentido estabelecido na Fundamentação, já que a obrigação moral é a razão legislando-se a si mesma mediante a fórmula do imperativo categórico. Entretanto, na mesma Doutrina do direito, Kant afirma que “leis obrigatórias (verbindenden Gesetze) para as quais é possível haver uma legislação externa são chamadas de leis externas (leges externae) em geral” (2007, p. 37), ou seja, o direito pode obrigar também por leis externas. Mas, que estatuto tem essas leis externas que se pretendem obrigatórias quando, na verdade, a única obrigação descende do imperativo categórico formulado pela razão? Costuma-se diferenciar o campo moral do campo jurídico em Kant através dos critérios de autonomia e heteronomia. Kant define a autonomia da vontade como sendo “aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei” (1978, p. 144) e heteronomia “quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal” (1978, p. 145). Bobbio, dentre outros, identifica autonomia somente com a moral e a heteronomia com o direito, na medida em que neste último, o móbil da ação é estranho à razão. Se o direito é identificado com a heteronomia, então o direito não pode obrigar, ou melhor dizendo, as leis externas não podem obrigar, visto que são externas. Na Crítica da razão prática, Kant diz que “a autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres conformes a elas: contrariamente, toda a heteronomia do arbítrio não só não funda obrigação alguma mas, antes, contraria o princípio da mesma e da moralidade da vontade” (2002, A58). 306

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Se a heteronomia não funda obrigação alguma, então as leis jurídicas não obrigam, visto que são legislação externa. Nesse mesmo espírito, Bobbio afirma que “de minha parte acredito que se a questão da heteronomia é resolvida sustentando-se que a vontade jurídica é heterônoma, deve-se resolver a questão do âmbito do hipotético sustentando-se que os imperativos jurídicos são hipotéticos” (1997, p. 65). Se essa interpretação procede, então, de acordo com as definições dadas acima, as leis jurídicas enquanto imperativos hipotéticos não podem obrigar, visto que apenas o imperativo categórico da razão o faz. Nesse mesmo sentido, encontram-se, na Crítica da razão prática, vários outros trechos que confirmam a obrigação como circunscrita à moralidade, dentre os quais: “a máxima do amor de si (prudência) apenas aconselha; a lei da moralidade ordena. Há, porém, uma grande diferença entre aquilo que se nos aconselha e aquilo para o qual somos obrigados” (2002, A 65). A dificuldade de conciliar o âmbito moral ou ético com o jurídico, passa despercebido por vários intérpretes, como Soraya Nour que escreve que “Direito e ética têm em comum o dado objetivo da legislação, a lei, fundada na noção de liberdade como autonomia, que no direito é a ‘faculdade de não obedecer a nenhuma lei externa senão àquelas às quais possa dar meu consentimento’” (NOUR, p. 21). Não há comunidade entre direito e ética visto que pertencem a princípios diversos; enquanto no primeiro pressupõem-se leis externas que podem ser consentidas ou não, pelos mais variados motivos, no segundo, não há a referência a leis externas, visto que a autonomia implica a auto-legislação, o que contradiria a fonte legislativa externa. Se é assim, direito é heteronomia, mesmo quando consente com leis externas, e ética, autonomia. Como visto anteriormente, a grande diferença entre os dois é o princípio do querer correlativo ao imperativo categórico da razão. Se houve assentimento mas por motivos outros que o respeito à lei, não se deve conceber propriamente tal situação de autonomia, e sim heteronomia2. Esta divisão aparece na Doutrina do direito da seguinte forma: “essa legislação que faz de uma ação um dever, e também faz deste dever o motivo (Triebfeder), é ética. Porém, a legislação que não inclui o motivo do dever na lei e, assim, admite um motivo distinto da idéia do próprio dever, é jurídica” (2007, p. 41). Se o motivo é distinto da idéia do próprio dever, isso significa que o sujeito busca o motivo do dever em qualquer outro ponto que não no próprio dever demonstrado pelo imperativo categórico da razão, o que é a definição de heteronomia.

3 O PROBLEMA DA LIBERDADE A liberdade é definida de duas formas na Doutrina do direito. Enquanto nas obras críticas a liberdade prática é a autonomia (liberdade positiva), na Metafísica dos costumes, a liberdade é também definida como liberdade externa (liberdade negativa). Segundo Kant: “a liberdade (a independência de ser constrangido pela 2) De acordo com Beck (1966, p. 197): “a consciência da lei moral e não a obediência a ela é a evidência da liberdade no sentido positivo”.

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escolha alheia), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes” (2007, p. 53). Kant apresenta aqui o conceito de liberdade externa, correlata com a possibilidade da legislação externa, um conceito de liberdade que pouco se diferencia de formulações jusnaturalistas. Essa definição de liberdade, que não pressupõe absolutamente nenhuma racionalidade no sentido definido pelas Críticas, constitui-se numa liberdade inata, sendo o único direito inato e fonte de todos os outros direitos. A função do Estado é assegurar esse direito que, automaticamente, possibilitaria os outros direitos derivados. A liberdade inata e exterior compõe-se do equilíbrio das várias liberdades – entenda-se a liberdade política aquela garantida pela constituição e pelo soberano – que devem ser protegidas e ao mesmo tempo limitadas, como condição para um ambiente político livre. Nesse sentido, Kant apresenta uma de suas teses mais controversas: rebelar-se significa destruir esse equilíbrio e perder esse único direito natural. Para Gomes, “o respeito à ordem jurídica vale mesmo que a ordem seja injusta, pois o contrário implicaria volta ao estado de natureza, em que não há leis externas e ao qual o homem tem o dever de nunca voltar” (2007, p. 83). O argumento kantiano é conservador, mas nada que Hobbes ou Locke já não houvessem antecipado: leis injustas ainda são melhor que nenhuma lei, poucos direitos são melhor do que direito algum. Portanto, a rebelião é uma hipótese completamente recusada por Kant, pois seria contraditória com o direito fundamental da liberdade externa, visto que a ordem jurídica que a garantiria seria destruída. Por isso, Kant afirma que “não cabe a um povo perscrutar, tendo qualquer propósito prático em vista, sobre a origem da autoridade suprema à qual está submetido, isto é, o súdito não deve raciocinar (vernünfteln), em termos práticos, a respeito da origem dessa autoridade, como um direito ainda passível de ser questionado (ius controversum) no tocante à obediência que a ele deve (...)” (2007, p. 131). Sobre isso, Kant acrescenta no §49, Observação geral, A: “esses raciocínios sutis são completamente despropositados e, ademais, ameaçam perigosamente o Estado” (2007, p. 131). Mas não eram justamente a razão e o raciocínio os componentes essenciais da autonomia? Não era precisamente a liberdade essencial de autolegislação o critério de ação mediante o qual todos os aspectos práticos da realidade prática podiam ser mensurados? Comparem-se esses trechos da Doutrina do direito com o opúsculo de 1783, Resposta à pergunta: que é o esclarecimento? Para este esclarecimento, porém nada mais se exige senão liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. (1985, a 484)

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No texto de 1783, escrito, portanto, no período crítico, o teor do texto de Kant é frontalmente oposto. No lugar da defesa do Estado vigente, Kant enfatiza o uso irrestrito da liberdade – o uso público da razão em todas as questões. Justamente, a época do Aufklärung deveria se caracterizar pela investigação racional em todos os âmbitos, sem a qual, haveria a regressão a uma época supersticiosa e absolutista. Nesse texto, o lema do Sapere aude! não encontra limitação alguma e em relação a nenhuma matéria. Na Doutrina do direito, entretanto, temos que um povo não pode oferecer qualquer resistência ao poder legislativo soberano do Estado que fosse compatível com o direito, uma vez que uma condição jurídica somente é possível pela submissão à sua vontade legislativa geral. Inexiste, por conseguinte, direito de sedição (seditio), e menos ainda de rebelião (rebellio), e menos do que tudo o mais existe um direito contra o chefe do Estado como pessoa individual (o monarca), de atacar sua pessoa ou mesmo sua vida (monarchomachismus sub specie tyrannicidii), sob o pretexto de que abusou de sua autoridade (tyrannis). Qualquer tentativa neste sentido é alta traição (proditio eminens) e quem quer que cometa tal traição tem que ser punido com nada mais do que a morte, por haver tentado destruir sua pátria (parricida). (2007, p. 133, §49, Observação geral, A.)

Não há, desse modo, direito de resistência; muito pelo contrário, já que Kant defende o “dever que tem um povo de tolerar até o que é tido como um abuso insuportável da autoridade suprema” (2007, p. 133, §49, Observação geral, A). Há quem justifique essa posição ao afirmar a derivação das leis jurídicas do imperativo categórico; na medida em que seriam baseadas nesta, elas seriam necessariamente leis justas – leia-se leis que garantiriam a coexistência de liberdades e, portanto, seriam obrigatórias. Kersting, por exemplo, chega a afirmar que “cada dever de direito é sempre um dever ético indireto” (KERSTING, 1993, 176), de modo que todas as leis jurídicas estariam legitimadas eticamente, visto que o critério para o estabelecimento das leis jurídicas seria o imperativo categórico. Por outro lado, outros intérpretes têm enfatizado a fissura entre ética e direito, como Willaschek (1997, p. 230) que afirma corretamente que “Kant em lugar algum realmente diz que o princípio do direito pode ser derivado ou é baseado no imperativo categórico. A lei moral e o imperativo categórico não são sequer mencionados nos parágrafos A-E da ‘Introdução à Doutrina do direito’, em que Kant introduziu o princípio do Direito”. O que é digno de nota é que nem a primeira interpretação, a que afirma a derivação das leis jurídicas da lei moral ou do imperativo categórico é inequívoca, nem a segunda, a que afirma a completa independência. Ambas são controversas e apresentam lacunas na sua concepção – lacunas que não podem ser preenchidas completamente, já que originam de problemas e indefinições localizadas no próprio texto kantiano. O grande problema da primeira interpretação é que Kant nunca estabeleceu uma relação direta entre o imperativo categórico e as leis jurídicas. Pode-se pressupor isto, na medida em que as leis jurídicas têm a função de proporcionar a coexistência da liberdade de todos segundo uma lei universal. Como se sabe, a lei universal no campo prático é resultado do uso legislativo da razão, o que RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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implicaria que a lei universal derivaria do imperativo categórico. Não há, entretanto, nenhuma afirmação direta no texto kantiano que comprove de maneira definitiva essa tese, e a própria divisão da Metafísica dos costumes em uma Doutrina do direito por distinção à Doutrina das virtudes acaba por favorecer a leitura de uma cisão entre direito e ética. Por outro lado, a segunda interpretação também não deixa de ser problemática, pois o simples fato da lei moral e do imperativo categórico não serem mencionados na “Introdução à Doutrina do direito” não implica na sua exclusão do rol de conceitos fundantes. Por fim, indica-se um último elemento conflitante na relação entre ética e direito que é a noção de “conflito de deveres”. Kant nega enfaticamente que possa haver algo como um conflito de deveres, o que corroboraria a primeira interpretação – se as leis jurídicas estão fundadas no imperativo categórico, não há realmente um conflito de deveres: Um conflito de deveres (collisio officiorum, s. obligationum) seria uma relação recíproca na qual um deles cancelasse o outro (inteira ou parcialmente). Mas visto que dever e obrigação são conceitos que expressam a necessidade prática objetiva de certas ações, e duas regras mutuamente em oposição não podem ser necessárias ao mesmo tempo, se é um dever agir de acordo com uma regra, agir de acordo com a regra oposta não é um dever, mas mesmo contrário ao dever; por conseguinte, uma colisão de deveres e obrigações é inconcebível (obligationes non colliduntur). Entretanto, um sujeito pode ter numa regra que prescreve para si mesmo dois fundamentos de obrigação, sendo que um ou outro desses fundamentos não é suficiente para submeter o sujeito à obrigação (rationes obligandi non obligantes), de sorte que um deles não é dever. Quando dois fundamentos tais conflituam entre si, a filosofia prática diz não que a obrigação mais forte tem precedência (fortior obligatio vincit), mas que o fundamento de obrigação mais forte prevalece (fortior obligandi ratio vincit). (2007, p. 37)

Essa resposta parece não dissolver todas as reticências. Caso se tome como objeto um Estado real (e não ideal), fatalmente as leis jurídicas entrarão em conflito, em maior ou menor grau, com as leis morais. Num caso extremo, em que um tirano assume o poder, esse conflito seria ainda mais acentuado. Ora, como se sabe, Kant rejeita enfaticamente o direito de resistência no período pós-crítico, o que parece apenas levá-lo a contornar o problema sem resolvê-lo. Nesse sentido, Guido de Almeida oferece uma solução pressupondo a derivação das leis jurídicas do imperativo categórico: Mas se a idéia de um Estado político tem sua raiz numa exigência moral (todas as leis que se podem pensar como derivadas de um Estado político correspondendo a essa idéia), logo todas as leis positivas, terão o mesmo status que as leis do Direito natural, isto é, terão de ser pensadas como especiûcações de leis morais. Mais ainda: mesmo se, numa hipótese contrária, a noção de um Estado político tivesse de ser introduzida, não no quadro de uma Metafísica moral, baseada em princípios a priori, mas no quadro de uma Antropologia moral, que tem a ver unicamente com as condições empíricas que podem favorecer ou dificultar a aplicação dos princípios a priori da

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Moral e do Direito, mesmo assim, as leis positivas teriam de ser pensadas como necessariamente subordinadas a leis morais, embora não derivadas delas, e isso pela simples razão de que não pode haver, como argumenta Kant na Introdução da MC [Metafísica dos costumes], um verdadeiro conflito de deveres, uma vez que ações exigidas por regras opostas não poderiam ser igualmente necessárias. (ALMEIDA, 2006, p. 219)

Kant se baseia, portanto, na lei da não-contradição para justificar a impossibilidade de um conflito de deveres, já que princípios opostos não podem ser ambos verdadeiros. Mas, caso se pense a obediência à ordem jurídica como sendo um dever, pode-se admitir a hipótese dessa ordem jurídica servir a interesses pessoais do soberano e provocar injustiça; nesse caso, se a ordem jurídica provocar um mal, a qual dever é preciso se submeter, a obediência à ordem jurídica ou à lei moral que ordena a consideração da humanidade como um fim em si mesmo?

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A conciliação entre a ética e o direito não é evidente na filosofia de Kant, apesar de inúmeros filósofos apontarem o direito como complemento necessário à ética. Tal ocorre pela pressuposição desses intérpretes da coerência interna relativa ao sistema filosófico kantiano, mas o próprio filósofo, ao afirmar a complementaridade desses dois âmbitos que compõem o mundo prático, não chegou a justificar suficientemente a relação entre os dois; antes, o que se percebe é a divisão do âmbito prático em dois campos, o interno e o externo, porém sem a mediação necessária. Conceitos absolutamente definidores do ser humano enquanto sujeito racional no sentido prático, como respeito e autonomia (no seu sentido preciso e radical), não desempenham nenhuma função decisiva na exposição do mundo jurídico. É certo que o direito tem uma função fundamental nas relações intersubjetivas, sendo, portanto, elemento essencial nas sociedades. O reconhecimento kantiano do papel do direito no âmbito prático não é o que se questiona aqui, afinal, o filósofo de certa maneira dá continuidade à tradição jusnaturalista que vê a constituição como um contrato social que deve assegurar direitos naturais (no caso do Kant, um direito fundamental que é a liberdade na sua acepção externa). O que se aponta é que a adoção dessa perspectiva jusnaturalista é incompatível com o papel atribuído à razão prática na Fundamentação e na Crítica da razão prática, qual seja, a de autolegislar e obedecer a esta autolegislação por mero respeito à lei. Esta autolegislação é autonomia - a única liberdade prática que é levada em consideração nessas obras do período crítico. A conciliação entre liberdades externas não é sequer mencionada como tarefa prática essencial. Se a Fundamentação (Grundlegung) é o embasamento do edifício teórico que vem a ser construído, então o projeto de um edifício prático obrigatoriamente tem que estar alicerçado no respeito pela lei e no uso pleno da razão prática. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Mandados constitucionais de criminalização: uma análise da questão sob a ótica do Direito Penal nacional Rui Carlo Dissenha Advogado. Doutorando em Direitos Humanos na USP. Mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel na UFPR. Diplôme Supérieur de l’Université pela Univesité Paris II Panthéon-Assas, França. LLM in Public International Law with International Criminal Law Specialization pela Leiden University, Holanda. Bolsista doutoral do governo brasileiro na Università di Bologna. Professor de Direito Penal da Universidade Positivo.

INTRODUÇÃO Não me deixo dissuadir a respeito desta tese de filosofia estatal e penal pelo simples fato de que o Tribunal Constitucional alemão até agora não tenha desenvolvido uma teoria específica da limitação do legislador penal, mas se contentado em recorrer à teoria geral dos direitos fundamentais e ao princípio da proporcionalidade, avaliando o direito penal com base nestes parâmetros extraordinariamente frouxos. Pelo contrário, pode-se demonstrar que a recusa do Tribunal Constitucional Alemão em reconhecer a limitação do direito penal por meio do princípio da proteção de bens jurídicos está entre as suas mais lamentáveis falhas, que não deve ser em caso algum tomada como modelo por outros Estados de Direito Democrático-liberais: primeiramente – como já demonstrei em detalhes noutra sede e aqui em breve resumo – o princípio se ancora na concepção básica do contrato social, que está pressuposto em toda e qualquer constituição e, portanto, também na Lei Fundamental alemã, concepção essa que duzentos anos antes da Lei Fundamental já fora trazida pelo direito penal por Beccaria e desenvolvida por Hommel, Feuerbach e Birnbaum, encontrando-se, assim, num nível fundamental de reflexão, que antecedeu a todo constitucionalismo na Alemanha e que constitui a base histórica deste. Em segundo lugar, justamente o desprezo do princípio da proteção de bens jurídicos e a utilização do direito penal para fins políticos aleatórios no Terceiro Reich deveriam evidenciar a necessidade de restrições à utilização desse instrumento1.

As relações entre Direito Penal e a Constituição Federal são íntimas. Desta decorrem alguns limites e fundamentos para aquele e, como modelo 1) SCHÜNEMANN, Bernd. “O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005, p. 09-37. p. 14-15. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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inicial de fundamentação de toda a ordem jurídica nacional, a Carta Magna certamente dita alguns parâmetros que devem obrigatoriamente ser seguidos pelo Direito Penal e pelos seus aplicadores. Tais limites são encontráveis em diversos momentos. Ao reconhecer os direitos individuais e plasmá-los no texto constitucional, a Constituição Federal indica exaustivamente os limites do poder punitivo do Estado: não são permitidas penas infamantes e corporais, o processo penal deve garantir ao indivíduo o direito ao devido processo, é certa a sua inocência até que se prove o contrário através da sentença condenatória transitada em julgado, etc. Esses são apenas alguns dos muitos mandamentos determinados pela Lei Maior ao Direito Penal. Mas há outros menos evidentes e tão importantes quanto: o Estado é obrigado a garantir a educação, a saúde e a segurança do cidadão; é obrigado, também, a manter um sistema judicial eficiente e cumpridor das regras; deve garantir a ordem econômica, a ordem financeira e o meio ambiente; deve proteger o cidadão no seu direito à moradia e deve garantir o uso social da propriedade, apenas para lembrar-se de mais alguns outros deveres ao Estado que não são diretamente ligados ao Direito Penal, mas que lhe informam e lhe trazem conseqüências mediatas importantes. O objetivo do presente trabalho se vincula a uma singela análise da figura dos assim chamados mandados constitucionais de criminalização. Segundo a doutrina mais abalizada, trata-se de ordenações constitucionais que obrigariam o legislador infraconstitucional a criar tipos penais referentes a determinados bens jurídicos eleitos já pelo constituinte como essenciais à garantia do cidadão e que tirariam o seu fundamento dos próprios direitos fundamentais. Na forma expressa ou implícita no texto constitucional, ditas ordenações buscariam a proteção dos direitos fundamentais através da função preventiva e dissuasória que se agrega à pena usada como exemplo. Assim, discutir-se-á, ainda que de forma brevíssima, a viabilidade desses mandados constitucionais de criminalização frente aos fundamentos do Direito Penal nacional. Em um primeiro momento, debatem-se os fins e objetivos do Direito Penal brasileiro, centrando a discussão principalmente nos objetivos desse ramo do Direito e na sua vinculação com os direitos fundamentais. A partir dessa base, a discussão que se segue é referente à figura do bem jurídico, especialmente a sua importância e qual é o papel do legislador no seu reconhecimento. Na segunda parte do trabalho a discussão se centra essencialmente sobre a adequação da figura dos mandados constitucionais de criminalização e os já apresentados fundamentos do Direito Penal. Inicialmente, todavia, apresentase o que são tais mandados e quais as suas características básicas e espécies, dando-se conta, sobretudo, da sua função. Em seguida, os mesmos são discutidos à luz dos já referidos princípios e fundamentos do Direito Penal e dos bens jurídicos. Ao final, apresentam-se alguns pontos em uma conclusão que pretende retomar as idéias principais do presente trabalho e incluir outras de que depende o fechamento do debate. Evidentemente, a complexidade do tema não permite o seu esgotamento. Inegavelmente, o debate envolve aspectos de diversos ramos do Direito, mor314

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mente o Direito Constitucional e o Direito Penal, porções que tradicionalmente desafiam os operadores e estudiosos do Direito e que lançam diuturnamente novos desafios à sua ciência. Daí a singeleza deste trabalho que tem a pretensão não de responder aos questionamentos que possam surgir nos embates que seguem nas próximas páginas, mas de permitir surgirem outros questionamentos quiçá ainda mais complexos e profundos. Atingindo-se um mínimo desse objetivo inicial, o esforço despendido nesta pesquisa já terá valido a pena.

CAPÍTULO I – AS BASES DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 1 ESCLARECIMENTOS SOBRE O DIREITO PENAL BRASILEIRO: 1.1 Fins e objetivos do Direito Penal brasileiro;

Uma definição clássica do Direito Penal, e que parece ser compartilhada pela quase totalidade dos autores que escrevem sobre o tema, o aponta como sendo o “conjunto de normas, valores e princípios jurídicos que desvaloram e proíbem a prática de delitos e associam a eles, como pressuposto, penas e/ou medidas de segurança, como conseqüência jurídica2”. Disso se verifica que o ponto central da definição de Direito Penal é efetivamente a possibilidade de imposição, pelo Estado, de uma pena ou uma medida de segurança. Dessa forma, é o diferencial sancionador, apesar de se tratar a pena sempre de um mal em si à sociedade3, o fiel que caracteriza o Direito Penal4. Como conteúdo, esse ramo do direito tem dois focos principais: tanto é o conjunto das leis penais (a legislação penal) quanto é o sistema de interpretação desse conjunto de leis (o assim chamado saber do Direito Penal)5. Assim, convém lembrar que a porção formal do Direito Penal é o conjunto de todo o aparato legal que compõe a instrumentalização da aplicação dessas sanções: desde as normas constitucionais que estabelecem os limites e os princípios básicos a serem seguidos pelo legislador penal até a mais simples portaria que, dentro da competência de quem a lança, estabeleça de alguma forma a regulamentação de ordem penal. Passa, evidentemente, pelas leis penais – em especial o Código Penal – que criam crimes, definem penas e estabelecem as regras pelas quais se dará o reconhecimento de um delito. Os objetivos do Direito Penal são um assunto mais disputado, embora de extrema importância. A busca por esse objetivo é essencial: nas palavras de Zaffaroni, “somente respondendo à interrogação acerca do objeto que se deve

2) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 38. 3) PAGLIARO, Antonio. Principi di Diritto Penale: parte generale. 8. ed. Milano: Dott. A Giuffrè Editore, 2003. p. 12-13. 4) ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general – tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoria Del Delito. Madrid: Civitas, 2003. p. 41. 5) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 77. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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atribuir à legislação penal, dentro de nosso Estado de Direito, no marco dos princípios constitucionais e internacionais, será possível criticar a lei positiva e indicar como se poderia adequá-la melhor a este objetivo e também interpretar esta lei de forma coerente com tal objetivo (...)6”. Vertentes criminológicas em especial discutem os objetivos desse ramo do Direito e lhe dão uma feição mais ou menos autoritária de acordo com os fundamentos que adotam. De regra geral, e sem esquecer a contestação de uma parte tarimbada da doutrina7, que inclusive aponta a existência de “finalidades” e “funções” do Direito Penal8, mas deixando de mencioná-la pela absoluta falta de tempo para tanto, os objetivos do Direito Penal são bem resumidos por Zaffaroni ao apontá-los como a segurança jurídica e a defesa social9 de acordo com os efeitos da sanção: no primeiro caso, a pena serve como exemplo à sociedade (prevenção geral); no segundo, a pena objetiva o delinqüente (a prevenção especial). Convém explicar os conceitos usados pelo autor, o que se faz a seguir: Se o direito é um instrumento que permite a coexistência humana através da introdução de uma ordem coativa que impede o estado hobbesiano de “bellum omnium contra omnes” e protege entes (os bens jurídicos) que são importantes ao homem, então a “função de segurança jurídica não pode ser entendida, pois, em outro sentido que não o da proteção de bens jurídicos (direito), como forma de assegurar a coexistência10”. Assim, lesões a bens jurídicos (a vida, o patrimônio, etc.) implicariam sanções a outros bens jurídicos dos autores (a liberdade, o patrimônio, por exemplo), sempre, evidentemente, de uma forma comedida de acordo com os princípios da humanidade e da dignidade humana. No que toca à defesa social, imaginando-se que o “social” não corresponda a uma concepção transpersonalista na qual se constrói uma sociedade separada e superior ao homem (um Leviatã, assustador e autoritário que assume vida em separado dos indivíduos que o compõe e que acaba levando a um Estado 6) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 82. 7) Veja-se, por exemplo, a opinião de Juarez Cirino dos Santos. Segundo o autor, além do objetivo declarado do Direito Penal (a proteção do bem jurídico), existiriam os objetivos reais do ramo que poderiam ser resumidos como a manutenção do sistema de produção econômico atual baseado na exploração da mais-valia do trabalho das classes menos favorecidas por um grupo poderoso economicamente e, por isso mesmo, detentor do capital. DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. Segunda edição. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. Ver também, do mesmo autor, A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 8) As “finalidades” são aquilo para o que o Direito Penal teria sido desenhado: a proteção dos bens jurídicos, a contenção da violência estatal, a prevenção da vingança privada e a garantia dos envolvidos no conflito penal. Já as “funções” são aquilo para o que o Direito Penal é usado: além da proteção de bens jurídicos (a função legítima), serve para a promoção exagerada de bens jurídicos – função promocional – e para aplacar a ira da população – a sua função simbólica. Evidentemente, essas duas últimas são funções ilegítimas do Direito Penal, mas que vem sendo aplicadas reiteradamente em um Estado que padece da falta de uma política criminal adequada. GOMES, Luis Flávio. Direito Penal: parte geral. São Paulo: RT, 2003. p. 20 e seguintes. 9) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 83 e seguintes. 10) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 84.

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autoritário), mas à sociedade como as relações de coexistência entre os indivíduos (nada, portanto, nem o Estado, lhes é superior), então a defesa social é a defesa da coexistência humana. Se a segurança jurídica é a garantia da coexistência humana, e o social se confunde com essa mesma coexistência humana, então os conceitos de segurança jurídica e defesa social são absolutamente superpostos11. Ademais, ainda segundo Zaffaroni, o conceito de “defesa” nada mais é do que a “segurança”, pois não se presta a proteger os bens jurídicos que já foram lesionados, mas apenas aqueles que o serão no futuro. Concluindo: a defesa social bem entendida não pode ser algo distinto da segurança jurídica, salvo que se entenda a primeira em sentido organicista ou antropomórfico e a segunda como um conceito puramente formal, ambas as pretensões que desembocam em uma legislação que aniquila os direitos humanos, por desconhecimento de todos os limites à sua ingerência12.

Finalmente, convém trazer as palavras de Fiandaca e Musco: secondo la concezione a tutt’oggi dominante nella scienza penalistica, il diritto penale constribuisce tendenzialmente ad assicurare le condizioni essenziali della convivenza, predisponendo la sanzione più drastica a difesa dei beni giuridici: tali sono comunemente definiti i beni socialmente rilevanti considerati, in ragione della loro importanza, meritevoli di protezione giuridico-penale13.

1.2 DIREITO PENAL E OS DIREITOS HUMANOS

Assim, parece evidente que o Direito Penal, na sua pretensão de proteger as relações sociais, tem como objetivo principal o indivíduo – de outra forma imaginando-se, arrisca-se a temerária possibilidade de se entender o Direito Penal como instrumento de uma política totalitária. Daí a direta vinculação do Direito Penal aos direitos humanos: se todo o Direito deve seguir os parâmetros ditados pelos direitos fundamentais, então, mais ainda a sua porção mais violenta se deve a eles submeter. Afinal, nas palavras de Prado, “ os direitos fundamentais – individuais, sociais, coletivos ou difusos – plasmados no texto constitucional são a fonte e o meio propulsor de inovações e alternativas, visando a uma ordem jurídica materialmente justa14”. Ora, o controle social – em busca da segurança jurídica – exercido pelo Estado através do Direito Penal é sempre informado por uma ideologia que poderá ser mais ou menos liberal de acordo com os diversos elementos que 11) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 86. 12) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 87. 13) FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penal: parte generale. 4. ed. Bologna: Zanichelli editore, 2004. p. 04. 14) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996, p. 62. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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informem a base da sociedade15. Aliás, é por isso que durante séculos se puderam justificar inominadas condutas sob o véu da legalidade e da justiça. De qualquer forma, esse controle social parece ter andado adiante ao estabelecer, após os horrores da Segunda Guerra Mundial, um núcleo mínimo de garantias positivadas que serviriam de Norte para que o controle social se desenvolvesse de acordo com parâmetros mínimos de segurança. Desde então muito se evoluiu nesse sentido: grande parte das sociedades contemporâneas adotou esse núcleo mínimo de direitos e outra parte desenvolveu-o sobremaneira. Daí o surgimento de uma série substanciosa de tratados internacionais que pretendem garantir o indivíduo estabelecendo diversos direitos humanos e que deve ser sempre seguida pelo Direito: “nessa linha de raciocínio, a interpretação conforme a Constituição implica uma correção lógica de proibição de qualquer construção interpretativa ou doutrinária que seja direta ou indiretamente contrária aos valores fundamentais16”. Pois bem, esse parece ser o ponto de partida, desenvolvido nos últimos sessenta anos, para os sistemas de controle social adequados. É certo que violações aos direitos humanos ainda há, mas parece sintomático da força desses direitos a tentativa dos próprios violadores de fundamentar os seus atos em uma ou outra (ainda que esdrúxula) interpretação desse paradigma. De qualquer forma, é de valor lembrar que o sistema penal é parte desse sistema de controle social e que, portanto, também ao atual paradigma parece estar submetido: a proteção dos direitos humanos é base e fundamento do sistema penal e sua porção mais sensível. Certo, é apenas uma pequena parte desses sistemas de controle na medida em que de todos os controles possíveis o Direito penal é o último a ser chamado (do que se infere que sua importância não é tanto grande como se pensa17). Mas isso não o afasta da obrigação de seguir o mínimo parâmetro determinado pelos Direitos Humanos. Nas palavras de Prado, o conteúdo essencial desses direitos fundamentais – limite dos limites – ‘assinala uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar, delimita um terreno que a lei limitadora não pode invadir sem incorrer em in15) Aqui, é interessante ler as palavras de Zaffaroni: “O âmbito do controle social é amplíssimo e, dada sua protéica configuração e a imersão do investigador no mesmo, ele nem sempre é evidente. Este fenômeno de ocultamento do controle social é mais pronunciado nos países centrais do que nos periféricos, onde os conflitos são mais manifestos. De qualquer modo, inclusive nos países periféricos, o controle social tende a ser mais anestésico entre as camadas sociais mais privilegiadas e que adotam os padrões de consumo dos países centrais”. Esse controle social, é importante lembrar, se exerce de maneira reticular: não é fruto apenas das estruturas oficiais e explícitas, como o sistema penal e a polícia, mas também é produzido pelos órgãos que compõem a própria estrutura social natural, tais como a família, a religião, a educação, etc. Daí que “quem quiser formar uma idéia do modelo de sociedade com que depara, esquecendo esta pluridimensionalidade do fenômeno de controle, cairá em um simplismo ilusório”. In: ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 61-62. 16) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 61. 17) ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 68.

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constitucionalidade18. (...) Não se pode esquecer jamais que a pessoa humana não é um objeto, um meio, mas um fim em si mesmo e como tal deve ser respeitada19.

Daí a existência de uma série de princípios que, reconhecidos pela Carta Magna nacional como reconhecidos são por constituições de muitos outros Estados contemporâneos e pelos tratados internacionais em geral, servem de Norte e limitação à atuação punitiva do Estado. A título de ilustração, veja-se a legalidade (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal), a irretroatividade da lei penal mais grave e a retroatividade da lei penal mais benéfica (artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal), a humanidade (artigo 5º, inciso XXLVII, da Constituição Federal), a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal), a ampla defesa e o contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal), dentre vários outros.

1.2.1 Direito Penal e Direitos Humanos: uma relação conflituosa?

Embora alguns autores, dado o sucesso alcançado pela busca da proteção dos direitos humanos especialmente na esfera internacional no último século, apontem a proteção dos direitos fundamentais como “novo paradigma” para o Direito Penal20, é certo que o Direito Penal desde há muito – na verdade, desde a sua origem – se preocupa com a proteção desses bens 21 e acompanha a evolução do conceito e as suas assim chamadas “gerações” 22. Afinal, sendo o Direito Penal uma parte do Direito – talvez a mais antiga – construída a partir de uma evolução histórica liberal que busca, por isso mesmo, proteger o indivíduo de forma ampla e irrestrita, não se pode imaginar que esse ramo se encontre em desacordo com os direitos humanos. Mesmo porque, afinal, os direitos humanos, uma vez expressos na Constituição Federal, irradiam-se para todo o sistema e por todo ele devem ser aplicados. Leia-se, nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “esses direitos-liberdades, graças ao reconhecimento, ganham proteção. São garantidos pela ordem jurídica, pelo Estado. Isto significa passarem a gozar de coercibilidade. Sim, porque, uma vez reconhecidos, cabe ao Estado restaurá-lo coercitivamente se violados, mesmo que o violador seja órgão ou agente do Estado”23. Mais do que isso, “O Estado social da democracia se distingue, em suma, do Estado

18) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 57. 19) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 57-58. 20) GONÇALVES, Luiz Carlo dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p.65. 21) Veja-se, nesse sentido, a conhecida contribuição da histórica obra do Marquês de Beccaria, “Dos Delitos e das Penas”. 22) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 101 e seguintes. 23) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 31. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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social dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, na sua feição jurídico-constitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade24”. Isso é, pela hierarquia constitucional, válido para absolutamente todos os ramos do direito nacional. Sabe-se, inclusive, que é no ramo do Direito Penal que tais abusos são sentidos de forma mais sensível. O dia-a-dia é recheado de exemplos dessa natureza e casos de violação de direitos fundamentais pelas autoridades estatais grassam nos jornais. Por tratar justamente dos direitos mais importantes do homem – a liberdade, a vida, a segurança – o Direito Penal está acorrentado à manifestação dos direitos humanos. A condenação a uma pena de reclusão ou de detenção, como direta limitação do direito à liberdade, está limitada ao mínimo indispensável, e sempre colocada sob critérios importantíssimos de manutenção da dignidade do condenado. De outra forma não poderia ser. O Direito Penal é construído sobre uma experiência histórica de limitação do Estado. Decorrências diretas do Iluminismo25, as regras penais não têm outro objetivo que não proteger o indivíduo: primeiro, das lesões provocadas por outros iguais a ele (é a garantia que dá a existência do Estado às regras estabelecidas no contrato social); depois, da própria arbitrariedade do Estado (que, ao fazer valer as regras de convivência celebradas entre os indivíduos, age com a necessária violência para tanto). Assim, restam poucas dúvidas do caráter protetor do Direito Penal em favor do indivíduo e desfavor do Estado. Mas é de se perguntar de que forma se constrói o Direito Penal como limitador das condutas dos indivíduos em proteção a eles mesmos. Aqui, porção complicada da análise do tema, evidentemente parece residir o maior debate referente aos mandados constitucionais de criminalização.

1.2.2 O Direito Penal mínimo

É importante lembrar que o papel do Direito é efetivamente resolver os conflitos surgidos na sociedade. Como lembra o exemplo de Hulsman, apontado por Zaffaroni26, todavia, há sempre várias formas de resolver uma questão que rompa o tecido da ordem social, sendo o Direito Penal apenas uma delas e, também, como se disse, a mais contundente e drástica27. Assim, o Estado, ao escolher o meio penal para exercer o seu controle 24) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 233. 25) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 104. 26) Um dos cinco estudantes que moram em uma república, em um acesso de fúria, golpeia e quebra o aparelho de televisão comum. Cada um dos quatro colegas adota uma postura no que se refere ao acontecido: um deles pretende a punição, outro a reparação, o seguinte uma terapia e o último, uma conciliação. In: ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 59. 27) FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penal: parte generale. 4. ed. Bologna: Zanichelli editore, 2004. p. 04.

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social, deve ser cuidadoso e criterioso. Afinal, “porque é altamente incontroverso que a utilização do poder estatal não se legitima apenas por um objetivo final elogiável, devendo ser idônea e necessária, não podendo provocar mais danos do que benefícios28”. Assim, de tudo o que se apontou até agora, e sendo o Direito Penal uma ingerência violenta pelo Estado na vida pessoal do cidadão, parece claro que deve ser usado como instrumento último, sob o risco de que se converta o controle social em domínio do indivíduo, passando-se do natural e necessário Estado Democrático de Direito ao perigoso controle totalitário. Afinal, a forma de ingerência penal é diferente do restante do Direito. Note-se que essa porção do controle social punitivo institucionalizado29, que se manifesta objetivamente na legislação penal, difere do restante do sistema de controle social institucionalizado pela forma da sanção que adota. Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli, “a pena se distingue das restantes sanções jurídicas (distinguindo-se, assim, a legislação penal das restantes legislações: civil, comercial, trabalhista, administrativa, etc.) porque procura conseguir, de forma direta e imediata, que o autor não cometa novos delitos, enquanto as restantes sanções jurídicas têm uma finalidade primordialmente ressarcitória ou reparadora30”. A necessidade de uso comedido do Direito Penal, portanto, merece lembrança porque o uso exagerado do Direito Penal “tráz em seu bojo uma violência aos direitos humanos31”. Se pretende, a pena, atuar na alma do indivíduo – com todas as perigosas conseqüências dessa prática – não pode pretender ir para além do necessário sob o risco grave de uma ingerência indevida do Estado na esfera da liberdade do cidadão. O Estado deve proteger bens jurídicos para, assim, promover a segurança da população, mas não pode usar de qualquer meio para isso, e certamente não pode pretender moldar o cidadão sob determinado padrão. Ademais, são bastante conhecidos os riscos graves da inflação penal32 que produz exageradamente leis penais de resultados duvidosos. Nesse sentido, Puig aponta que: “para proteger os interesses sociais, deve o Estado esgotar outros meios menos lesivos antes de recorrer ao Direito penal, que nesse sentido deve constituir uma arma ‘subsidiária’, uma ultima ratio. Tendo em vista uma adequada política social, deve-se preferir, antes de tudo, a utilização de meios desprovidos de caráter sancionador. Assim, as sanções não penais: civis (...) e adminis28) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005. p. 09-37, p. 20. 29) ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 69. 30) ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 85. 31) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 109. 32) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 108 e 113

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trativas (...). Somente quando nenhum dos meios anteriores for suficiente, estará legitimado o recurso à pena ou à medida de segurança. Importa destacá-lo especialmente ante a tendência do Estado social a uma excessiva intervenção e a uma fácil ‘fuga ao Direito penal33". É dessas características que surgem os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade no Direito Penal (ou, como Cirino os classifica, todos sob um mesmo signo, o princípio da “lesividade34”). Se o Direito Penal é apenas parte do ordenamento jurídico (porque a proteção de bens jurídicos não se realiza apenas através do Direito Penal), deve ele também cooperar na proteção de bens jurídicos, mas sendo o último recurso. Daí se entende que sua atuação é fragmentária e subsidiária: como última “ratio”, só atua de forma parcial (protegendo apenas alguns bens jurídicos) e apenas quando nada mais funcionar (quando outros meios jurídicos – políticas de inclusão, sanções civis, regulações administrativas, etc. – não derem conta da proteção). É a própria proporcionalidade, de caráter constitucional e inerente ao Estado de Direito, que implica essas características: “como el Derecho penal posibilita las más duras de todas las intromisiones estatales em la libertad Del ciudadano, solo se le puede hacer cuando otros médios menos duros no prometan tener um exito suficiente35”.

2 A FIGURA DO BEM JURÍDICO 2.1 A importância do bem jurídico no sistema penal brasileiro Como bem se sabe, o indivíduo é o ponto de partida do Direito e, em especial, do Direito Penal36. E de outra forma não poderia ser: sendo o centro de produção e o sentido único e último da existência, o indivíduo é fundamentalmente a célula mater a dar subsídio para toda a construção da sociedade, do Direito e, em especial, do Direito Penal. Já se tratou anteriormente de que a compreensão da sociedade como uma entidade antropomórfica é um risco pelas portas que abre para a violência. Assim, o único sentido possível para a sociedade é como uma compreensão etérea de todos das relações entre indivíduos – aí não se arrisca perder o foco no ser humano quando se pretenda construir o próprio Direito. Daí ser esse a única base possível para o Direito e, em especial, para o Direito Penal, Nas palavras de Prado, em uma concepção democrática, o ponto de partida do Direito Penal é dado pelo conceito de pessoa. O cidadão, o indivíduo, considerado como pessoa ‘(...) é o protagonista da política e da história e, portanto, do direito, uma das manifestações típicas da política e da história, se não mesmo 33) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 94. 34) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. p. 25-26. 35) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 66. 36) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 116/117.

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a mais típica (...). Numa sociedade democrática aberta, ou seja, autenticamente democrática, as pessoas surgem em primeiro plano por força de uma regra ético-jurídica que a eleva acima de qualquer valor absoluto e determinante de toda decisão, de modo que não pode ser degradada a um mero meio em vista de um fim a realizar. A pessoa goza assim duma esfera de autonomia própria que não pode ser tocada ou agredida, sem se abalarem as bases da própria convivência37.

Pois bem, a construção desse direito fundamentado na figura do indivíduo somente se pode dar através do reconhecimento de interesses desse indivíduo na consecução do Estado. Ou seja: só há sentido no direito – e, assim, também no Direito Penal – se usar-se a figura central do indivíduo para que se defina o que deve ou não ser protegido. É esse o motivo pelo qual, por exemplo, não se podem buscar, através do Direito, os fins da “sociedade”, mas apenas os fins do homem em sociedade. Esse conceito é tradicional e essencial no Direito Penal que se aplica nos dias de hoje. Segundo Toledo, “bem, em um sentido muito amplo, é tudo o que se nos apresenta como digno, útil, necessário, valioso. (...) Os bens são, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de ‘valor’, isto é, coisas materiais e objetos imateriais que, além de serem o que são, ‘valem’. Por isso são, em geral, apetecidos, procurados, disputados, defendidos, e, pela mesma razão, expostos a certos perigos de ataques ou sujeitos a determinadas lesões38". Desse ponto em diante fica fácil entender que a noção de bem jurídico é exatamente o reconhecimento de que determinado ente, ou bem, ou valor, é importante para o desenvolvimento do homem em uma época em específico. O Estado, assim, estabelece um juízo positivo de valor sobre determinado elemento essencial ao desenvolvimento do homem39 e a proteção da sua dignidade, capturando essa idéia (cria a norma) e materializando-a em um tipo penal (estabelece a lei). Prado, novamente, apresenta essa idéia, dizendo que “em um Estado de Direito democrático e social a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucional, quando socialmente necessária. Isto vale dizer: quando imprescindível para assegurar as conduções de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade – verdadeira presunção de liberdade (Freiheitsvemutung) – e da dignidade humana40”. Evidentemente, nem todos os bens jurídicos selecionados pelo Direito merecem a tutela penal (veja-se, acima, a fragmentariedade penal). Afinal, “que o Direito penal só deva proteger ‘bens jurídicos’ não significa que todo ‘bem jurídico’ tenha que ser protegido penalmente, nem que todo ataque a bens jurídicos penalmente tutelados deva determinar uma intervenção do Direito penal. Ambas as coisas se oporiam, respectivamente, aos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade. O conceito de ‘bem jurídico’ é, pois, mais amplo do que o de ‘bem jurí37) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 57. 38)TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 15. 39) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 56. 40) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p.51-52. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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dico-penal41". Assim, é certo que não se pode confundir “bem jurídico” com “bem jurídico penal”, mas quando esse bem jurídico é eleito pelo Direito Penal como digno de proteção, declara-se o seu altíssimo grau de valor e cria-se a figura do bem jurídico penalmente protegido. É esse conceito que dá base à materialidade de um delito: porque existe a idéia de um bem que merece proteção é que se entende adequada a resposta penal ao sujeito que, de alguma forma, provoca danos ou riscos de danos a tais bens preciosos à sociedade. Esse é o sentido material do delito e afasta justamente o Direito Penal da punição meramente formal. Em suma, só existe sentido na criminalização e na aplicação de uma sanção se existirem danos ou riscos de danos ao bem jurídico. De outra forma o Direito Penal estaria sendo aplicado apenas como instrumento de conformação da sociedade (aqui entendida no seu sentido antropomórfico) e não como protetor de reais lesões à convivência social. É certo que existe grande debate sobre a questão do bem jurídico e, em especial, sobre sua natureza42. Todavia, também é certo que, embora algumas tendências se tenham lançado no sentido de prescindir desse conceito, no atual ponto de evolução do Direito Penal contemporâneo a figura do bem jurídico é sustentáculo de toda a doutrina43. Nas palavras de Cirino, “...consideradas todas as limitações e críticas, o conceito de bem jurídico, como critério de criminalização e como objeto de proteção, parece constituir garantia política irrenunciável do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, nas formações sociais estruturadas sobre a relação capital/trabalho assalariado, em que se articulam as classes sociais fundamentais do neoliberalismo contemporâneo44”. É por isso que Mir Puig, a partir de uma análise do alcance de um Estado social e democrático de Direito, aponta que os bens jurídicos são o fundamento e limite do “ius puniendi” do Estado, afirmando que “o Direito penal de um ‘Estado social’ não deve respaldar mandados puramente formais, valores puramente morais, ou interesses não fundamentais que não comprometam seriamente o funcionamento do sistema social45". Enumera, ainda, o autor, que são apenas os próprios cidadãos aqueles que podem decidir quais os objetos que demandam a proteção do Direito Penal a título de bens jurídicos; finalmente, a figura do Estado de Direito em conjunto com a idéia da legalidade material (e não apenas formal) determina que “os distintos objetos cuja lesão possa determinar a intervenção penal se concretizem de forma bastante diferenciada em um catálogo de bens jurídicos específicos, correspondentes aos distintos tipos de delito, sem que baste uma referência a cláusulas gerais como ‘perturbação da ordem social’, ‘prejuízo social’ etc.46". 41) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 95. 42) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 62. 43) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 66. 44) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 16/17. 45) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 97. 46) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 97.

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Na esteira da proporcionalidade já mencionada, finalmente, convém lembrar que “por essa doutrina, a caracterização do injusto material advém da proeminência outorgada à liberdade pessoal e à dignidade do homem na Carta Magna, o que importa que sua privação só pode ocorrer quando se tratar de ataques a bens de análoga dignidade; dotados de relevância ou compatíveis com o dizer constitucional ou, ainda, que se encontrem em sintonia com a concepção de Estado de Direito democrático47”. Daí, por exemplo, se poderia concluir, a partir dessa apontada necessidade do bem jurídico para o sistema penal, que, segundo a doutrina penal mais moderna, seria nula uma lei penal que não proteja um bem jurídico. Afinal, em um Estado de Direito, não se podem admitir normas penais que punam questões morais ou ideológicas (incluídas as religiosas) sem alguma repercussão ou danosidade social – e, portanto, de caráter material. Mais do que isso, um Estado Democrático de Direito obriga-se, por definição, a proteger as posições discrepantes minoritárias e as suas materializações48.

2.2 A IMPORTÂNCIA DO LEGISLADOR NA ESCOLHA E SELEÇÃO DO BEM JURÍDICO

Apontada a importância do conceito de bem jurídico penalmente relevante, convém agora tratar da sua escolha na miríade de bens jurídicos reconhecíveis no corpo social. No sistema de um estado fundado na tripartição de poderes, o legislador é o responsável pela escolha desses bens jurídicos. Ou seja, o legislador, animado pelos valores que existem na Constituição e que, portanto, dão-lhe as cores para o seu trabalho, percebe o anseio da sociedade e, assim, estabelece os bens jurídicos que darão origem às futuras incriminações49. Atende, assim, os anseios criminalizadores da sociedade, mas sempre o faz, evidentemente, como se viu anteriormente, sobre a base constitucional50. De outra forma não poderia ser sob o risco de uma escolha defeituosa que poria em riscos os próprios interesses do indivíduo. Um exemplo pode calhar: ainda que a maioria da população, movida por qualquer motivo que seja, entenda pertinente e pretenda que se aprove a pena de morte para diversos crimes que lhe causem repulsa, é certo que legislador algum no Direito nacional poderá atender a esse pedido da população por conta de um limite expresso na Constituição Federal que impede a adoção da pena de morte. Afinal, como se sabe, a vontade popular nem sempre é sábia. Desde que se abandonou o jusnaturalismo puro, o Direito é uma construção histórica51. Cada sociedade tem seus interesses e esses interesses se convertem em comandos que se alteram com o passar das décadas, o que se de47) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 68. 48) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 63. 49) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 67. 50) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 66. 51) FASSÒ, Guido. Storia della filosofia del diritto. Roma: Laterza, 2003. p. 91. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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monstra em uma base inegavelmente empírica. Nas palavras de Reale Júnior, “o sistema de valores que preside o modo de ser, ou seja, a unidade espiritual que constitui a realidade cultural, transmite-se de geração em geração, sofrendo mutações contínuas. O homem, no dizer de Ortega Y Gasset, não tem natureza, tem história, sendo que o passado, a experiência anterior, deságua e forma o presente, pois somos hoje a conseqüência do que já havíamos sido52”. Mudando a sociedade, que se constrói historicamente, mudam também os seus interesses. Afinal, não se pode ignorar que as individualidades da realidade humana modificam-se com o volver do tempo – de outra forma, fica faltante o tal senso histórico. Assim, como conseqüência mudam os bens jurídicos e, especialmente, mudam os bens jurídicos que merecem proteção penal. Um exemplo gritante: até há pouco tempo punia-se o adultério, crime revogado apenas com a disposição de lei nova em 200553. Nesse tocante, leia-se, novamente, Prado: “O conceito material de bem jurídico reside, então, na realidade ou experiência social, sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituinte, depois do legislador ordinário. Trata-se de um conceito necessariamente valorado e relativo, isto é, válido para um determinado sistema social e em um dado momento histórico-cultural. Isto porque seus elementos formadores se encontram condicionados por uma gama de circunstâncias variáveis imanentes à própria condição humana. Esta característica – relatividade – baseia-se ‘no fato de que a avaliação dos círculos de conduta delitiva deve estar conectada à necessidade de garantia e às representações de valor da sociedade nas situações históricas singulares54".

Em seguida, o autor complementa com as palavras de Bettiol, apontando que o “bem jurídico está intimamente ligado às concepções ético-políticas dominantes e portanto assume significado diverso e conteúdo diverso com a mudança do tempo e do ambiente55”. Daí a necessidade de que, com base nos fundamentos gerais estabelecidos pelo texto constitucional, alguém substitua o constituinte no futuro. Alguém apto a compreender os matizes do tempo e da época em que se vive e seja capaz de traduzi-los na lei. Ou seja, por conta da evidente historicidade do Direito, é o legislador a pessoa capaz de reconhecer, em determinado momento histórico, os valores que interessam à sociedade e, sob a bússola da Constituição, determinar a proteção de tais valores sob a forma da lei penal. Afinal, esse reconhecimento dos valores importantes demanda um fundamento humano: não se pode esperar que uma Constituição rígida seja capaz de compreender e de levar em consideração todos os parâmetros sociais futuros. O constituinte pode até reconhecer o fundamento da socie-

52) REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: RT, 2000. p. 17. 53) Lei n. 11.106/2005. 54) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 73. 55) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 73.

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dade no momento da elaboração do texto constitucional, mas não poderá prever o que lhe aguarda o futuro e como andará a sociedade nos tempos que virão. Assim, “...o direito institucionaliza, via comandos normativos, o proibido e o permitido, que inconscientemente e em latência já atuavam de certo modo no meio social. O Estado (legislador) como centro de poder, ao estabelecer as normas, sobre o impulso das influências sociais e históricas, mas, instaurando os seus comandos, nestes as absorve e supera, definindo-as em função de situações concretas56”. Em resumo, duas idéias não podem deixar de ser lembradas. A primeira delas é a noção de que o bem jurídico é essencial para o sistema penal contemporâneo porque lhe serve de fundamento, além de dar as bases de garantia do cidadão e da própria atuação do Estado, especialmente através do Direito Penal, sempre de forma subsidiária e fragmentada. É certo que existe controvérsia acerca do conceito, do conteúdo, do alcance e da forma do bem jurídico, mas também é certa, ainda, a sua imprescindibilidade. A segunda idéia que parece certa é a de que o inegável caráter histórico do Direito implica a necessidade de um agente apto a reconhecer a variação dos parâmetros sociais que indicam quais os bens jurídicos que efetivamente importam para o Direito, mormente para o Direito Penal, selecionando-os e plasmando-os em leis penais.

CAPÍTULO II – OS MANDADOS CONSTITUCIONAIS E O DIREITO PENAL BRASILEIRO 2.1 OS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO

Aos cinco de outubro de 1988 promulgava-se a atual Constituição Federal Brasileira. Uma espetacular evolução no sistema constitucional nacional, esse documento representou a retomada de um progresso sensível na construção de um Estado Democrático de Direito. Além dos diversos dispositivos em que abraça alguns dos mais modernos instrumentos constitucionais já desenvolvidos pelo Direito, a atual Carta Magna é um exemplo de sistema avançado de proteção dos Direitos Humanos abarcando em seu âmago uma vasta gama de direitos fundamentais que lhe servem de supedâneo e base sem, entretanto, fechar as portas para outros direitos humanos que venham a ser reconhecidos57. Mais do que isso, a Constituição de 1988 aponta caminhos para o desenvolvimento do Estado brasileiro e cria as condições para o pleno desabrochar dos direitos fundamentais em vários planos, especialmente pela incorporação de alguns princípios gerais direcionadores da sociedade58. Faz isso em diversos momentos, mormente quando determina os princípios fundamentais nos seus primeiros artigos. Mas, além disso, em diversos capítulos do seu longo texto, de56) REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: RT, 2000. p. 19. 57) LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 14. 58) LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 13. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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senvolve os princípios apontados detalhando-os e esmiuçando as diretrizes a serem adotadas pelo estado brasileiro e, especialmente, pelo legislador nacional. Veja-se, por exemplo, o que acontece com as definições relativas ao meio ambiente ou à ordem econômica e à proteção do consumidor, dentre tantos outros exemplos possíveis. Como não poderia ser diferente, a Constituição de 1988 também se preocupa com o aspecto penal. Mais evidentemente, aponta uma série de princípios importantes ao Direito Penal e que devem ser seguidos à risca tanto pelo aplicador do direito quanto pelo legislador. Exemplos bem claros: a adoção da legalidade e da humanidade, do devido processo legal, da irretroatividade das leis penais e da retroatividade da lei mais benéfica, dentre vários outros. Aliás, em alguns momentos a Carta Magna parece ir bastante além da adoção de simples princípios direcionadores. Para parte da doutrina, existiriam imperativos constitucionais que tornariam obrigatória a criminalização de determinadas condutas. Esses imperativos constitucionais, que pela natureza das normas constitucionais seriam inafastáveis, estariam presentes em vários momentos do texto constitucional e contaminariam a atuação do legislador.

2.2 DEFINIÇÃO E NATUREZA

Alguns autores indicam que seria possível reconhecerem-se experiências normativas que determinavam a existência de mandados constitucionais de criminalização há longa data. Nesse sentido, conforma apontado por Gonçalves59, seriam as normativas máximas americana de 1787, brasileira de 1824 e argentina de 1854, ao imporem a criminalização de atos, como a pirataria, a falsificação de moedas e certas formas de escravidão. Ainda segundo o mesmo autor, essa tendência teria sido mais recentemente reiterada na experiência constitucional alemã pós-Segunda Guerra, e, mais, também na interpretação da lei penal daquele país. Dita experiência teria sido repetida pela Espanha, em julgado de 198360. Todavia, mais recentemente, a discussão mais contundente do tema foi efetivamente, e novamente, provocada pelo posicionamento do Tribunal Constitucional alemão em 1993 acerca da Lei de Ajuda Familiar à Gestante alemã. Dita normativa permitia a realização do aborto até as doze primeiras semanas após a concepção e foi entendida como inconstitucional porque violaria a ampla proteção da vida determinada pela Constituição alemã. Segundo o autor, teriam sido essas as experiências reconhecedoras da “obrigação tácita de criminalização de condutas61”. Dita obrigação, assim, com seus fundamentos no princípio da proporciona59) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 54 e 141 e seguintes. 60) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 56. 61) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 135.

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lidade, determinaria obrigações diretas ao legislador que, nesse tocante, perderia a liberdade que normalmente tem de estabelecer se deve ou não legislar penalmente: a Constituição, a partir de imperativos próprios, impõe ao legislador – aqui, aparentemente, mera máquina legisladora – que crie o tipo legal conforme apontado pela Carta Magna. Afinal, ditos mandados trariam “decisões constitucionais sobre a maneira como deverão ser protegidos os direitos fundamentais. A atuação do legislador no sentido de promover a proteção desses direitos recebe um elemento de vinculação. Ele pode até valer-se de outros instrumentos, mas a previsão de sanções penais perde seu caráter de subsidiariedade e torna-se obrigatória (...) razões de conveniência, oportunidade, política criminal ou outras não podem ser invocadas para justificar a omissão em dar cumprimento à Lei Magna62”. Tais mandados de criminalização, portanto, pela posição do texto constitucional na hierarquia de normas brasileiras, teriam natureza de imperativo normativo que impele o legislador à tipificação de condutas.

2.3 A IMPORTÂNCIA DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO

Segundo parte da doutrina, os mandados de criminalização seriam responsáveis pela plena garantia dos direitos fundamentais. Afinal, seriam sinais evidentes da obrigação de proteção positiva de tais direitos pelo Estado. S e r i a esse um novo paradigma dos objetivos e dos limites do Direito Penal, imposto por uma nova visão da proteção dos direitos humanos na esfera internacional, mormente pela existência de duas dimensões nesse tocante: a subjetiva e a objetiva. No que se refere àquela, o Estado é obrigado a reconhecer que os indivíduos e grupos têm certos direitos intocáveis; no tocante a esta, diz respeito à obrigação para os Estados de efetivamente proteger tais direitos63. Em outras palavras, o Estado, por imperativo mesmo da esfera internacional, estaria obrigado a agir positivamente, ativamente, produzindo a proteção dos direitos humanos – e não mais, apenas, reconhecendo-os e abstendo-se de violá-los. Importariam, ainda, nessa dimensão objetiva da proteção, a obrigação ao Estado de impedir as violações de direitos fundamentais não apenas pelo governo ou seus agentes, mas também pelos particulares. Na medida em que são esses direitos fundamentais “regras de imposição de deveres, em geral ao Estado, de implementação e desenvolvimento dos DH64”, estaria indicada a obrigação do próprio Estado de atuar positivamente no sentido de impedir qualquer espécie 62) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 139. 63) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21. 64) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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de violação de direitos humanos, ainda que proveniente de particulares. Assim, por conta dessa “eficácia irradiante dos direitos humanos65”que lhes ensejaria um alcance horizontal, da obrigação assumida pelo Estado de proteção desses direitos decorreriam, ao que tudo parece indicar, a necessidade de criminalização das condutas lesivas a esses direitos mais importantes e, é claro, a aplicação de tais regras de ordem criminal. Esse, portanto, grosso modo, o fundamento de existência dos mandados de criminalização na Constituição Federal. E mais, haveria inclusive duas outras conseqüências importantes decorrentes do reconhecimento da existência desses mandados de criminalização: a possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão, no caso da falta de lei penal determinada pelo texto constitucional; e a inconstitucionalidade de lei posterior tendente a descriminalizar aquela conduta objeto da ordem criminalizadora.

2.4 OS FUNDAMENTOS DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO

Segundo os defensores desses mandados constitucionais, a criminalização de condutas lesivas aos direitos fundamentais, decorrência obrigatória dos mandados constitucionais de criminalização, seria o corolário da proteção desses mesmos direitos justamente porque somente essa atuação criminalizante do Estado seria capaz de alcançar a esfera privada e permitir uma ampla proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, Gonçalves indica vários bens jurídicos que são protegidos adequadamente, e nas suas maiores extensões, com a tutela criminal. Veja-se, por exemplo, que “a proibição do racismo e a mensagem no sentido de sua criminalização, por igual, versam sobre o direito fundamental à igualdade e à dignidade da pessoa humana66”. O principal objetivo perseguido pelos defensores da existência dos mandados constitucionais de criminalização é aquele produzido pela figura da prevenção geral, indicada como aquela função atribuída da pena criminal que “tem por objetivo evitar crimes futuros mediante uma forma negativa antiga e uma forma positiva pós-moderna67”. Alcança na forma negativa a idéia da intimidação penal (o desestímulo do criminoso pela ameaça da pena) e na forma positiva, a reintegração do sistema punitivo (a aplicação da pena ensejaria, para alguns68, a reconstrução da confiança no sistema punitivo – a fidelidade jurídica – e da confiança do cidadão no ordenamento jurídico; para outros69, serviria à afirmação da validade da norma penal violada pela demonstração da validade da norma, recuperando, assim, as expectativas normativas70). A tipificação das condutas ensejaria a proteção indireta dos bens jurídicos

65) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 45/46. 66) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 159. 67) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. p. 460. 68) Tal como Claus Roxin e os seguidores do Funcionalismo Sistêmico moderado. 69) Especialmente Günther Jakobs e seus seguidores. 70) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. p. 462/463.

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pela criação de uma consciência geral de atuação da norma penal capaz de impedir condutas futuras atentatórias aos direitos humanos. Nesses termos, “a tipificação penal é tida como essencial para que se realize o efeito dissuasório ou preventivo contra a conduta atacada71”. Ou seja, com o nome de “efeito carona”72, os mandados constitucionais de criminalização buscam evitar aquilo que os autores de Direito Penal Econômico, com base em Sutherland, já trataram como efeitos “ressaca” e “espiral”: a prática de um crime por uma pessoa permite que outras se espelhem na conduta e passem a praticá-la também73. O Direito Penal, através da criminalização das condutas e a punição dos agentes, teria a capacidade de frear esse efeito pela imposição da função dissuasória da pena. Para Ramos, inclusive, a função dissuasória da sanção penal estaria sendo reconhecida mesmo na jurisprudência internacional, especialmente nos julgados da Corte Interamericana de Direitos do Homem, ao afirmar que “esse dever de prevenção consiste, para a CIDH, no conjunto de todos os meios de natureza legal, política, administrativa e cultural que promova a proteção de DH e assegura que todas as violações sejam consideradas e tratadas como atos ilícitos, os quais, como tais, acarretam punição dos responsáveis e na obrigação de indenizar as vítimas74”. Desse “dever de prevenção” não escaparia a obrigação de criminalizar para proteger. Mais do que isso, segundo entende o mesmo autor, “para que os DH sejam emancipatórios e universais é necessário que os autores das violações sejam punidos para que seus exemplos não se propaguem ou para que não repitam a conduta em futuras ocasiões75”. Dessa forma, não se trataria de vingança ou retribuição: a repressão das condutas criminais que lesionam os direitos humanos é corolário da sua própria proteção: daí a proibição de uma insuficiência do Direito Penal nessa seara. Somente assim, através da punição dos violadores dos direitos humanos é que se poderia 71) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21. 72) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 25. 73) O efeito “ressaca” se caracterizaria porque, num mercado altamente competitivo, quem primeiro delinqüe obriga os outros a fazer o mesmo para poderem competir – um criminoso pressiona indiretamente outro a tornar-se criminoso; enquanto o efeito “espiral” seria apresentado pelo fato de que cada participante desse efeito “ressaca” torna-se o centro de uma nova ressaca, daí o efeito “espiral”, efeito que é potencializado pelo fato do autor em potencial ser consciente do número enorme de delitos econômicos, dos resultados e da benignidade das penas previstas em lei. BAJO FERNANDEZ, Miguel. Derecho penal económico: desarrollo económico, protección penal y cuestiones político-criminales. In: Hacia um derecho penal económico europeo. Madrid: Boletin Oficial Del Estado, 1995. Também, SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Reflexões sobre o delito econômico e sua delimitação. In: Revista dos Tribunais n. 775, Maio de 2000, 89º ano (432-448). 74) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 22. 75) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 23. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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garantir o tratamento isonômico, pois evita a punição setorizada (mormente os desfavorecidos) da população, e o respeito ao Estado de Direito.

2.5 ESPÉCIES DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO

Podem-se reconhecer basicamente duas espécies de mandados de criminalização: os mandados de criminalização expressos e os implícitos. Aqueles decorreriam de determinações explícitas existentes na Constituição Federal impelindo o legislador à criação de tipos penais. Estes seriam reconhecíveis a partir de uma análise sistemática do texto constitucional e, especialmente, da sua vinculação aos direitos humanos tanto no plano nacional quanto na esfera internacional.

2.5.1 Mandados Constitucionais Expressos de Criminalização

Esta parece ser a espécie menos controversa de mandados constitucionais de criminalização – afinal, mesmo alguns autores geralmente contrários à existência desses mandados entendem que a Constituição efetivamente os abraça e, por explícita que é não poderia ter sua existência negada. Todavia, é necessário lembrar que existe uma parte consistente da doutrina que nega a existência mesmo dessa espécie de mandado de criminalização76. Afinal, se a Constituição for entendida sob um aspecto eminentemente garantista, afirmam, certamente não poderia pretender criminalizar condutas deixando – às bases de um Direito Penal mínimo e fundamentadamente garantidor do indivíduo – ao legislador criminal escolher que condutas devem ser criminalizadas. De qualquer forma, o diferencial dessa espécie de mandado de criminalização é a manifestação evidente no texto da Constituição Federal. Efetivamente, da leitura de alguns pontos da Carta Magna parecem surgir ordens ao legislador ordinário que de forma imperativa impõem-lhe a obrigação de criminalizar – obrigação essa que não poderia ser afastada porque, como se sabe, trata-se de ordem que provém do ápice do sistema normativo cujo desrespeito ensejaria a pecha da inconstitucionalidade. Afinal, como é bem lembrado por Gonçalves, “os mandados de criminalização só se justificam num sistema no qual a supremacia constitucional e a separação dos poderes – sempre apontados como requisitos essenciais desta forma de Estado – se apresentem de maneira efetiva e não apenas formal77”, como é o nosso sistema constitucional atual. De qualquer forma, ainda que se possa discutir a ocorrência da ordenação criminalizadora em alguns pontos razoavelmente duvidosos do texto constitucional (o que enseja a existência de posições “ampla” e “restrita” de reconhecimento desses mandados), pareceria certo que em outros momentos ela seria mais evidente. Gonçalves aponta essas ocorrências na Constituição Federal de 198878: 76) Dessa porção da doutrina, talvez a manifestação mais evidente seja a de PASCHOAL, Janaina Conceição. In: Constitucionalização, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. 77) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 153.

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artigo 5º, incisos XLI, XLII, XLIII, XLIV; artigo 7º, inciso X; artigo 225, §3º; artigo 224, §4º; e artigo 243, parágrafo único.

2.5.2 Mandados Constitucionais Implícitos de Criminalização

Condição mais controversa, todavia, se guarda aos assim chamados mandados constitucionais de criminalização implícitos. Muito natural: em uma doutrina habituada à figura do Direito Penal como ultima ratio legis e como manifestação da limitação à atuação do direito de punir do Estado, é bastante difícil admitir que o texto constitucional imponha o dever de criar crimes de modo não claro ou não explícito. De qualquer forma, os autores que entendem existentes tais mandamentos constitucionais fundamentam-nos em grande parte nos mesmos raciocínios apresentados anteriormente e que sustentariam os mandados constitucionais expressos, mas especialmente na proibição da insuficiência na proteção penal de direitos fundamentais decorrente justamente da vinculação do texto constitucional à proteção de tais direitos – tanto no âmbito nacional quanto internacional. De qualquer forma, tais mandados consistiriam naqueles “deveres de criminalizar as condutas de violação aos direitos fundamentais fundados tão-somente na menção ao direito protegido em determinado tratado internacional de direitos humanos79”. Seu berço seria fundamentalmente a dupla dimensão da proteção dos direitos humanos, conforme se vem reconhecendo na experiência internacional. Nesse tocante, especial empurrão à idéia foi dado pelo Tribunal Constitucional Alemão80 ao julgar, conforme já mencionado anteriormente, a questão do aborto. Em austero resumo, desenvolveu o conceito de que o uso do Direito Penal é imprescindível à proteção dos direitos fundamentais quando outros ramos do Direito não dêem conta de uma eficiente proteção. Da mesma forma se têm reconhecido as idéias que fundam a existência de tais mandados nos julgados de tribunais internacionais de direitos humanos. Vejam-se, por exemplo, conforme aponta Ramos81, os casos Velazquez Rodriguez, Villagrán Morales e Genie Lacayo na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Também a Corte Européia de Direitos Humanos, ainda que em julgamento razoavelmente antigo (26 de Março de 1985) decidiu nesse sentido, indicando a legislação holandesa como insuficiente para os parâmetros das obrigações criminalizadoras assumidas pelo Estado, o que implicou a Holanda modificar o seu sistema penal e indenizar as vítimas em caso de proteção insuficiente de delitos contra a liberdade sexual come78) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 158. 79) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 36. 80) Decisão da Corte Constitucional Alemã relacionada como BVerfGE 88, 203, 1993. 81) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 37 e seguintes. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tidos contra uma jovem deficiente mental (caso X and Y v. The Netherlands 82). Outros casos da Corte Européia que poderiam ser mencionados em sentido próximo, ainda que não exatamente o mesmo tema, seriam os casos Osman v. UK83 e Siliadin v. France 84. Isso, aliás, parece ter sido efetivamente adotado pelo Estado brasileiro. Por conta de algumas obrigações internacionais assumidas, o legislador nacional efetivamente alterou o sistema penal e incluiu tipos específicos, estabeleceu modificações processuais, aumentou penas e criou dispositivos punitivos próprios atendendo aos tratados internacionais aos quais se vinculou – outra saída não teria, na verdade, sob pena de acabar mesmo sendo responsabilizado na esfera internacional pelo descumprimento de tratados85. Exemplos são os casos da criminalização da tortura (com a edição da lei 9455/97 o Brasil atende especialmente às determinações da Convenção da Tortura), da discriminação racial e os “ hate crimes” que lhe são conexos (vejam-se a lei 7716/89 e as alterações ao Código Penal determinadas pelas leis 9459/97 e 10741/03), da violência contra a mulher (da Convenção de Belém do Pará decorreu o tratamento específico destinado à violência doméstica (lei 10886/2004) e à violência doméstica contra a mulher (Lei n. 11.340/2006 – a famosa “Lei Maria da Penha”), e a já antiga criminalização do genocídio (criação da lei 2889/56, provocada pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948).

2.6 UMA ANÁLISE DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO SOB A LUZ DAS BASES DO DIREITO PENAL BRASILEIRO Cumpre agora tratar dos mandados constitucionais de criminalização dentro do sistema penal brasileiro. O que se pretende, neste momento, é uma avaliação sobre a existência ou a inexistência de harmonia entre o conceito dos mandados de criminalização e os objetivos e fundamentos do Direito Penal nacional. Evidentemente que se trata de uma análise de enorme complexidade que poderia verter litros de tinta e muito papel. Todavia, não se pretende exaurir o tema, mas apenas apontar a relação entre os temas sob dois aspectos básicos: pretende-se (1) discutir se a existência dessas ordens constitucionais estão de acordo com o que busca o Direito Penal (apresentado anteriormente); e (2) debater os mandados sob a luz do conceito de bem jurídico.

82) OVEY, Claire; WHITE, Robin C.A. Jacobs & White: The European Convention on Human Rights. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 234. 83) European Court of Human Rights, case of Osman v. The United Kingdom. N. 87/1997/871/1083. Judgement: 28/10/1998. Disponível em: http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm &action=html&highlight=osman%20%7C%20v.%20%7C%20UK&sessionid=9576869&skin=hudoc-en. Acesso em: 22 jun. 2008. 84) European Court of Human Rights, case of Siliadin v. France. Application n. 73316/01. Judgement: 26/07/2005. Disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html& highlight=siliadin%20%7C%20v%20%7C%20france&sessionid=9576869&skin=hudoc-en. Acesso em: 22 jun. 2008.

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2.6.1 O problema dos fins do Direito Penal e os Mandados Constitucionais de Criminalização.

Já se disse que o objetivo principal do Direito Penal é o homem. Discorreuse, ainda que brevemente, sobre a relação desse ramo do Direito com os direitos humanos que dão extensão à dignidade do indivíduo e a serventia do ramo penal como limitador da garantia do cidadão. Mais, apontou-se que o Direito Penal visa à segurança jurídica e que tal conceito se confunde com a proteção social na medida em que os dois conceitos devem ser entendidos como desenvolvidos dentro da idéia de sociedade como o todo das relações entre os indivíduos. Essa importância do indivíduo no Estado Democrático de Direito se vê no reconhecimento mesmo de que os direitos humanos são um grupo de direitos anterior à própria norma, anterior à própria Constituição. Nesse sentido, leia-se Afonso da Silva: Ela [a doutrina] emprega a expressão garantias constitucionais em três sentidos: (1) reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais; assim, a declaração de direitos seria simplesmente um compromisso de respeitar a existência e o exercício desses direitos, ‘que não provêm de lei alguma, senão diretamente da qualidade e dos atributos naturais do ser humano’; parte-se da idéia de que os direitos preexistem à Constituição, que não os cria nem outorga, reconhece-os apenas e os garante; é uma idéia vinculada à concepção do direito natural ou da supra-estatalidade dos direitos fundamentais; (2) ‘prescrições que vedam determinadas ações do poder público’, ou ‘formalidades prescritas pelas Constituições, para abrigarem dos abusos do poder e das violações possíveis de seus concidadãos os direitos constitutivos da personalidade individual’; (3) ‘proteção prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia’ ou ‘recursos jurídicos destinados a fazer efetivos os direitos que assegura86.

Dessa forma, pelo fato de que o texto constitucional reconhece (e não tem a pretensão de “criar”) os direitos fundamentais, é certo que são anteriores à própria Constituição. Isso está evidente, ademais, a partir do texto constitucional que logo no seu início (inciso III do artigo primeiro) aponta a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro. Esse mesmo raciocínio, obviamente, se aplica ao Direito Penal que, como todo normativo referente às regras penais (e, assim, envolve normas constitucionais tanto quanto legislação infraconstitucional) está também sujeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. Mais do que isso, na esteira do que apresentou acima Afonso da Silva, e se o 85) Essa responsabilidade internacional do Estado existe e é amplamente reconhecida. Neste sentido, RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade Internacional por Violação de Direitos Humanos. Rio de Janeiro/ São Paulo: Renovar, 2004. No que toca ao complicado tema da responsabilidade criminal do Estado no plano internacional, apesar de se tratar de tema sobre o qual o debate renasceu a partir da Segunda Guerra Mundial (DUGARD, John. “Criminal Responsibility of State”. In BASSIOUNI, Cherif (ed.), International Criminal Law, vol I (239-253). New York: Transnational Publishers, Inc., 1999, p. 240), trata-se de espécie de responsabilidade do Estado que definitivamente não é pacificamente reconhecida. 86) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 186. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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sistema legal como um todo serve à dignidade da pessoa humana como ordem ao Estado para que garanta o indivíduo, o Direito Penal somente pode ser visto como um direito de garantias. Esse é o cerne da idéia da Constituição Federal como limite ao direito de punir do Estado, e não como seu fundamento. Sobre essa base, o “ius puniendi” não se funda na Constituição, mas, sim, em algo que lhe é anterior e que é necessário para que se possa dar total vazão à garantia do indivíduo e, em especial, à dignidade da pessoa humana. Esse direito é inerente ao “pactum subiectionis” e não surge da Constituição Federal que somente se presta a limitá-lo, declarando-o como existente e desenhando-o dentro dos parâmetros necessário à garantia das liberdades de que não se abriu mão em favor do Estado. Veja-se que a Constituição Federal é muito mais um limite ao poder do Estado (aqui incluído o poder de punir) do que um limite ao indivíduo. Nesse sentido, novamente, Afonso da Silva: Postulavam, até, que se introduzissem aí deveres individuais e coletivos. Não era isso que queriam, mas uma declaração constitucional de deveres, que se impusessem para o povo. Ora, uma Constituição não tem que fazer declaração de deveres paralela á declaração de direitos. Os deveres decorrem destes na medida em que cada titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do outro, bem como o dever de comportar-se, nas relações inter-humanas, com postura democrática, compreendendo que a dignidade da pessoa humana do próximo deve ser exaltada como a sua própria. Na verdade, os deveres que decorrem dos incisos do art. 5º, têm como destinatários mais o Poder Público e seus agentes em qualquer nível do que os indivíduos em particular. A inviolabilidade dos direitos assegurados impõe deveres a todos, mas especialmente às autoridades e detentores do poder87.

Imaginar, diferentemente, a Constituição Federal como fundamento do direito de punir é dar ao Estado total poder de dizer aquilo que pode reprimir – é retornar ao mesmo positivismo que ensejou o surgimento dos Estados totalitários que confundiam os ideais de justiça com aquilo que se encontrava plasmado no texto constitucional. Abre-se a porta ao desmando do Estado e à possibilidade de que, através de interpretações abertas do texto constitucional, entenda-se necessário criminalizar condutas aceitas socialmente ou convenientes ao desenvolvimento do indivíduo, mas danosas ao interesse estatal. Vira, então, o Estado o objetivo central do Direito, e não mais o indivíduo. E escancara-se a porta de vez ao Leviatã – aqui tomado mais como o monstro bíblico do que o Estado de Hobbes. Outro ponto que merece menção é justamente a razão apontada como fundamento para a existência dos mandados de criminalização, conforme apresentado anteriormente: a necessidade da prevenção geral provocada pela pena que ensejaria um efeito dissuasório e preventivo88 evitando-se, assim, 87) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 195. 88) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21.

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outras práticas lesivas aos bens protegidos penalmente. É inegável que o efeito existe e que o Estado dele se usa reiteradamente, o que é, inclusive, defendido por parte da doutrina penal que o entende necessário para reafirmar, segundo um Direito Penal pós-moderno89, “expectativas normativas”90. É justamente o que justifica a adoção de uma legislação drástica e com altas penas, como hoje se vê no Direito Penal nacional. Resta perguntar se essa função é adequada ao Estado Democrático de Direito que se busca. E nesse sentido, a resposta parece ser negativa. Há muito que se critica a tese da prevenção geral no Direito Penal contemporâneo e, especialmente, na Criminologia Crítica moderna, como sustentáculo de um Estado pré-totalitário. Em primeiro lugar, não há qualquer prova de que a prevenção especial efetivamente funcione. Para uma parte da doutrina, seu mecanismo de funcionamento, aliás, tem suas raízes na doutrina criminal do século XVII (Feuerbach) e se fundamenta na idéia do livre arbítrio, ou seja, na idéia, indemonstrável, de que o homem escolhe livremente entre cometer ou não o crime, na tensão da escolha liberta entre o bem e o mal91. Pressupondo-se o livre arbítrio – uma idéia de cunho muito mais religiosa do que científica – ignora-se que o homem está sujeito a outras pressões internas e externas. Ou seja, ignorar-se-ia que o homem é levado ao cometimento do crime por uma miríade de fatores de ordem psicológica, econômica, social, familiar, sexual, etc. Mais do que isso, a pena como prevenção geral não explica o motivo pelo qual se pune, de forma que é apenas mais um instrumento de controle do Estado. Ora, aqui o objetivo da pena não é o fato praticado, mas fatos futuros, por isso não pune o crime, mas crimes outros, que sequer foram praticados ainda. E não esclarece o âmbito do criminalmente punível. Cumpre apontar, também, que a pena como prevenção geral como instrumento de controle usado pelo Estado caracteriza-se como poderoso meio de terror estatal. Na busca pela prevenção de crimes futuros, a tendência do Estado é aumentar sanções quanto se entenderem insuficientes as penas já estabelecidas e estabelecer novos crimes quando os antigos não derem conta do recado. Quando o Estado precisar de uma forma de controle da sociedade e, portanto, do indivíduo, usará a pena como instrumento de terror por conta do medo que ela pode impor ao indivíduo. Nas palavras de Roxin, “así, por lo menos la prevención general negativa, se encuentra siempre ante el peligro de convertirse en terror estatal. Pues la idea de que penas más altas y más duras tengan un mayor efecto intimidatorio ha sudo históricamente (a pesar de su probable inexactitud) la razón más frecuente de las penas ‘sin medida92". Aliás, essa é a maior crítica que fazem à função de prevenção geral do Direito 89) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 459. 90) Assim, por exemplo, a doutrina de Gunther Jakobs. 91) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 456. 92) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 93. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Penal os autores que acreditam na capacidade ética do ser humano. Para Zaffaroni93, por exemplo, que fundamenta a dignidade do homem justamente na sua capacidade de escolha entre o bem e o mal94 e rechaça o posicionamento determinista segundo o qual o homem não escolhe livremente, entendimento que lhe arrancaria justamente o seu indicador de humanidade, o maior problema da prevenção geral é justamente a sua correlação fácil com um Estado autoritário – e os riscos disso decorrentes. Na mesma toada, haveria ainda outros problemas, mas merece especial atenção a questão da seletividade. A um Direito Penal que atende aos interesses seletivos de uma estrutura de poder e lhe serve como instrumento de controle social (como este sob o qual se vive) a figura da prevenção geral e suas pretensões moralizantes é extremamente conveniente. Não é necessário, acredita-se, desenvolver ainda mais os riscos do assim chamado “Direito Penal do Terror” porque a era militar brasileira vivida depois do Golpe de 1964 já parece ser lembrança histórica suficiente. Todavia, ainda se pode lembrar que o terror da pena, por pior que possa se apresentar, não parece ter o condão de diminuir a criminalidade. O exemplo da Lei dos Crimes Hediondos parece evidente95: apesar de estar em vigor desde 1990 (importante notar que se entendeu que sua criação veio por “determinação” da própria Constituição Federal), alguém ousaria afirmar que essa espécie de criminalidade diminuiu no país? Apresentando essa arriscada tendência, Cademartori aponta que “o que se observa é que os poderes do Estado têm-se voltado para uma legislação de emergência visando a resolver de forma imediata os problemas estruturais da economia. Com o êxito, às vezes efêmero, dos planos econômicos que se têm sucedido em nosso país, surge um novo tipo de legitimação, que é chamado aqui ‘legitimação pela eficácia. (...) Temos assim largas maiorias apoiando e legitimando o governo de plantão. Isso vem a confundir princípio da maioria com a idéia de democracia96" Finalmente, a adoção da pena como prevenção geral atenta a dignidade humana na medida em que é aplicada não com fins ao criminoso, mas, sim, à sociedade – o seu objetivo não é ele, mas os outros97, e daí ROXIN apontar que “asimismo, la objeción de que un castigo con fines preventivos atenta contra la dignidad humana tiene más peso en la prevención general que en la prevención especial98”. Em conclusão, convém mencionar que a existência de mandados constitucionais de criminalização não se justifica sob o ponto de vista nem do seu objetivo 93) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. Especialmente, nessa porção, p. 93 e seguintes. 94) Convém citar o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. A identificação da condição de homem com a capacidade de escolher entre o bem e o mal seria justamente o seu maior distintivo como tal. 95) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 459. 96) CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2007. p. 231. 97) SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 460. 98) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 93.

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maior (a prevenção geral) e nem do seu fundamento (a necessidade de proteção dos direitos humanos). No primeiro argumento, os mandados de criminalização criam o risco de um terrorismo estatal que condiz muito mais com um Estado totalitário do que com um Estado Democrático de Direito. No que toca à proteção dos Direitos Humanos, a Constituição deve ser vista como limite do poder de punir do Estado justamente como garantia dos direitos fundamentais que lhe são anteriores tanto quanto é o próprio direito de punir: se o direito de punir do Estado está em contradição com os interesses do indivíduo, é a Constituição o instrumento normativo hábil a regular esse confronto. Não pode, assim, a Constituição, criar obrigações de criminalização porque essas surgem justamente desse conflito original do qual a Carta Magna é o compromisso de convivência. Qualquer outro raciocínio apresenta o Direito Penal não como última “ratio”, mas como “prima ratio” lesionando, assim, a sua subsidiariedade, a fragmentariedade, a ofensividade e a necessidade como princípios informadores do Direito Penal99. Colocar esse fundamento do Direito Penal em xeque é arriscar as garantias do cidadão e, como conseqüência, a segurança conquistada a duras penas pelo indivíduo. E aqui vale novamente citar Cademartori: Por último, deve-se salientar que o garantismo oferece travejamento teórico para a única atitude coerente com uma postura verdadeiramente democrática para juristas e cidadãos, num momento em que o vento ‘neoliberal’, em nome de mudanças e da idéia de progresso, quer varrer as conquistas da razão iluminista no campo político, apresentando-se como ‘o novo’: uma atitude conservadora, qual seja a de lutar pelo Estado Constitucional de Direito como obra construída durante séculos pela tarefa civilizatória da sociedade ocidental. A tarefa neste momento é a da resistência frente ao absolutismo das maiorias e do mercado. (...) Como diz Ferrajoli, a carência de limites para o poder econômico e para o poder político equivale a formas de absolutismo perigosamente convergentes que contradizem o paradigma do Estado Constitucional de Direito, provocando um [sic] regressão pré-moderna à lei do mais forte100.

2.6.2 O problema da relação entre o bem jurídico e os mandados constitucionais de criminalização

Já se discutiu neste trabalho acerca da importância do conceito de bem jurídico para o Direito Penal. Ainda que de forma superficial, tentou-se demonstrar que se trata de um conceito essencial para a garantia do cidadão e para a própria aplicação escorreita das normas penais. Assim, a partir desse ponto, o que se pretende agora é discutir a questão dos mandados constitucionais de criminalização sob o ponto de vista dessa idéia central da ciência penal. Da mesma forma que o “ius puniendi”, também os valores selecionados pelo legislador para ser objeto de proteção criminal não dependem diretamente de de99) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 85. 100) CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2007. p. 236. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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terminações da Constituição Federal. Esses bens são um todo existente na sociedade e, captados pelo legislador a partir de parâmetros reconhecidos como princípios do Direito Penal e dos anseios populares, são elevados à condição de bens jurídicos penalmente protegidos. Nos termos de Schünemann, “a teoria da legitimação do direito penal, ou, vista da perspectiva inversa, dos limites impostos ao legislador na formulação do direito penal, está fundada em condições fundamentais suprapositivas de qualquer poder estatal legítimo e constitui, portanto, a premissa tácita de qualquer Estado de Direito Democrático-liberal, pouco importando se um tal Estado a consagrou na constituição de modo expresso ou não101”. Não se pode pensar diferentemente. Ainda que se entenda existente no sistema nacional uma constituição de caráter dirigente, ela não é capaz de suplantar a fluidez social e estar preparada de forma ampla a reconhecer todos os anseios da comunidade a que se aplica – é por isso que estabelece parâmetros, princípios e diretrizes sem dizer, tanto quanto possível, como se deva portar o legislador. Segundo Paschoal102, é justamente essa a vantagem da teoria material da Constituição: “a influência dos valores sociais sobre a norma fundamental, seja quando de sua elaboração, ou quando da sua aplicação, constitui uma das façanhas da teoria material da Constituição, a qual, segundo Gomes Canotilho, pretende conciliar a legitimidade material ‘que aponta para a necessidade de a lei fundamental transportar os princípios materiais informadores do estado e da sociedade’ com a abertura constitucional, que, por sua vez, implica que a ‘constituição deve possibilitar o confronto e a luta política dos partidos e das forças políticas portadores de projectos alternativos para a concretização dos fins constitucionais”. Mais do que isso, essa seleção pelo legislador e não pela Constituição serve tanto para permitir o uso do poder punitivo do Estado apenas para a evitação de danos sociais quanto para impedir que o Estado se use do Direito Penal com fins de, por exemplo, impor formas de vida através da “consolidação coativa de uma determinada ideologia103”. É permitir o risco da arbitrariedade pelo Estado “sendo, por essa razão, questionável qualquer incursão que pretenda tomar a idéia de bem jurídico penal para justificar não a limitação, mas o alargamento do poder punitivo estatal104”. Assim, as determinações existentes na Constituição e que se travestem de imperiosas ordens ao legislador criminal não são “o que” ele deve criminalizar – já que a Constituição não tem a capacidade de adaptação necessária a tanto – mas, sim, “como” ele deve criminalizar. Traduzem-se, portanto, em uma política 101) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005, p. 09-37. p. 14. 102) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 84. 103) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005, p. 09-37. p. 13. 104) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 48.

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criminal: o conjunto de aspirações gerais que devem animar o legislador. Aspirações essas que são maiores do que ordens de criminalização. Dizem respeito a, por exemplo, determinações de ordem educacional, princípios limitadores da punição, fundamentos para o sistema carcerário, distribuição adequada de renda, cooperação social no combate ao crime, investimentos adequados no sistema judiciário e penitenciário, composição de um Ministério Público eficiente e de uma Defensoria ativa, etc. São esses os limites insuperáveis105 (máximos e mínimos) do legislador na criação de tipos e na seleção dos bens jurídicos: os elementos da política criminal adotada pelo Estado. Finalmente, outro problema se encontra na pretensão de existirem mandados de criminalização no texto constitucional. A sua existência afastaria a discricionariedade do próprio legislador criando, assim, um campo onde a criminalização seria obrigatória e, mais, ensejaria, se não existisse, a assim chamada “mora inconstitucional106”, passível dos mecanismos constitucionais de controle. Nesses termos, parece que pouco haveria para o legislador fazer que não repetir e esclarecer a norma constitucional. Ora, essa idéia afasta a necessidade e o papel fundamental do legislador. Se é verdade que a Constituição, estática como é, não é capaz de acompanhar todas as modificações sociais, é imprescindível que o legislador torne a norma constitucional aplicável. O seu papel, nesse tocante, é humanizar o texto da Carta Magna: é permitir que se ilumine a norma com a compreensão humana e que se a deixe permeável ao indivíduo, fazendo-o parte do processo de criação do Direito. De outra forma, a norma permanecerá cega e surda à dinâmica social e se tende a afastar cada vez mais do seu objeto, o indivíduo. É por isso que se deve entender que “...o bem jurídico preexiste à construção normativa, sendo objeto da escolha do legislador enquanto valor digno de tutela seja penal, seja no âmbito administrativo107”. Apontam Fiandaca e Musco que: Pur nei limiti predetti, lo sforzo definitorio non è tuttavia privo di utilità. Invero, nei tempi più recenti, l’elaborazione teorica há posto soprattutto l’accento sul carattere non statico, ma ‘dinamico” degli oggetti della tutela penale. Il altri termini, il bene giuridico, nel senso del diritto penale, non equivale semplicemente a uma cosa o a um interesse dotato di valore in se stesso; nella realtà o beni giuridici esistono soltanto, se e nella misura in cui sono ‘in funzione’, cioè producono effetti utili nella vita sociale. Da questo pundo di vista, i beni non sono entità intangibili che pretendono una tutela assoluta, dal momento che in determinati casi può risultare utile addirittura sacrificarne qualcuno, in vista 105) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005, p. 09-37. p. 23. 106) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 296. 107) REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no direito penal econômico: uma terceira via entre o crime e a infração administrativa?. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 7, n. 28, outdez 1999, p. 121. Citado por PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 46. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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del perseguimento do altri vantaggi sociali: cio spiega come mai la tutela penale sia spesso ‘frammentaria’ (...), si riferisca cioè solo a determinate forme di aggressione al bene assunto ad oggetto di protezione108.

É o legislador o indivíduo capaz de aplicar essa política criminal sob um viés humanitário. É ele, e não o texto constitucional que, justamente por garantia do cidadão, é rígido o suficiente para impedir modificações às pressas, que é capaz de entender a historicidade do direito e da sociedade. É o legislador que tem a possibilidade de compreender o que muda no seio social, quais os novos anseios e quais os antigos. O que demanda proteção, o que não pede por ela e, finalmente, aquilo que requer a mais violenta proteção do Direito: a tutela penal. Assim, não parece ser correto escolher a priori qual o caminho adequado a ser seguido pela sociedade através do estabelecimento inexorável da necessidade de criminalização, mas, sim, tentar entender qual é o caminho melhor que deve ser trilhado pelo fluxo social – do que só é capaz o legislador por ser um ente vivente e capaz de julgamentos: “de qualquer maneira, parece-me que as contingências históricas que fazem com que em um círculo cultural se divinize o álcool e se demonize o haxixe, enquanto noutro se faça o contrário, devem ceder lugar a uma estratégia orientada segundo a periculosidade do entorpecente, que pode e deve levar em conta também a capacidade de sedução dos cidadãos médios e a sua possível transformação numa nova e adicional fonte de perigo109”. Em resumo, convém lembrar que tanto porque o conceito de bem jurídico é essencial para o Direito Penal quanto porque o é o papel do legislador, não parece adequado reconhecer a existência de mandados constitucionais de criminalização no texto constitucional. Afinal, o Direito Penal contemporâneo não se encontra em estágio que admita o abandono do conceito de bem jurídico penalmente protegido. E, mais do que isso, não é possível abandonar o intérprete social em que se constitui o legislador na sua escolha porque não é capaz, o texto constitucional, de lhe substituir o posto.

CONCLUSÃO De nossa parte consideramos que a opção de responder à violência sistematicamente exercida contra os direitos humanos com a violência inerente às sanções penais é totalmente equivocada. Isso tem se tornado consciência comum da maioria dos estudiosos do direito penal que questionam os discursos repressivos e mostram-se preocupados com as conseqüências socialmente perversas da lógica punitiva. A sanção penal, além de prejudicar as camadas sociais desfavorecidas, alimenta o círculo vicioso da violência social, tornando-se um instrumento de dominação que não pode nem deseja

108) FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penal: parte generale. 4. ed. Bologna: Zanichelli editore, 2004. p. 05. 109) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005, p. 09-37. p. 36.

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tutelar efetivamente os bens jurídicos da maioria da população. Dessas constatações de falência do modelo penal decorrem os apelos de superação da lógica da punição e retribuição que se multiplicam no Brasil nos últimos anos110.

O texto que inicia essa conclusão segue na linha da fundamentação do presente trabalho. Não se pode ignorar que, em geral, a moderna Criminologia e o Direito Penal contemporâneo reconhecem a excessiva violência e inadequação do sistema penal vigente. Afinal, é ele evidentemente antidemocrático na medida em que a repressão penal se lança de forma principal contra as classes menos favorecidas que são aquelas, justamente, que têm seus direitos fundamentais corriqueiramente violados. Assim, usar o fundamento da proteção dos direitos humanos para a criação de mais figuras criminosas ou para o recrudescimento de penas (vide a figura dos crimes hediondos e dos crimes contra o meio ambiente), a partir do texto constitucional, é um instrumento que se lança, paradoxalmente, justamente contra aquelas pessoas que precisam de maior proteção aos seus direitos fundamentais. Como se percebe, trata-se de tema complexo. A proteção dos bens jurídicos no sistema nacional é assunto de extrema relevância. Também o é, porque tem diretas relações com a proteção dos direitos fundamentais, o próprio Direito Penal e os seus fundamentos. Assim, não há outra saída que não fazê-los conversar em harmonia. Para tanto, é essencial que se verifiquem os pontos de contato (e são muitos, senão todos) e se resolvam as possíveis incongruências. Do que se viu neste trabalho, contudo, alguns pontos merecem menção expressa. É certo que o Direito Penal é instrumento de garantia dos Direitos Humanos. Vê-lo como mera manifestação do direito de punir do Estado é certamente uma visão menor do que aquela que o tema merece: como conjunto de normas e princípios que servem a regular a manifestação do direito penal subjetivo, é evidente que o Direito Penal é um composto muito maior que alcança os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito. Assim, garante o indivíduo de várias formas. Em primeiro lugar, como é mais óbvio, ao determinar os limites do ius puniendi. Mas também garante o indivíduo ao apontar, ao legislador (tanto o constituinte quanto o legislador infraconstitucional), quais e quantos são os bens jurídicos que merecem proteção penal, tudo sob a égide da garantia da dignidade da pessoa humana, a fonte principal da normatização de um Estado Democrático de Direito. Parece evidente que há, efetivamente, no texto constitucional, tratamentos indicativos de criminalização. As indicações expressas são evidentes: ninguém pode negar a materialidade de uma norma como aquela descrita no artigo 5º, inciso XLIII do texto constitucional. Todavia, não parece, do que se leu neste trabalho, que tenha sido a melhor técnica do constituinte tomá-las como “mandados”. Afinal, como defendeu Paschoal, sendo a mesma linha que se adota neste trabalho, a 110) DIMOULIS, Dimitri. O art. 5º, § 4º, da CF: dois retrocessos políticos e um fracasso normativo. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús. Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005. (107-119) p. 111. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Constituição Federal é limite e não fundamento do Direito Penal111. Se o Direito é necessariamente histórico, o que não parece ser disputado, é certo que também a escolha dos bens jurídicos é algo que depende do momento da positivação. Se a Constituição se adianta nesse trabalho de escolher bens jurídicos a serem protegidos penalmente, o que é tradicionalmente reservado ao legislador por conta da sua capacidade de aerar o Direito com o espírito do novo, então ela vincularia toda a ordem jurídica futura a uma criminalização eterna, tornando o sistema pesado, imutável e, finalmente, não histórico. Mais do que isso, violaria o próprio sentido do Direito Penal como última ratio na medida em que não há mais lugar para a subsidiariedade desse ramo do Direito: é ele, agora, a primeira escolha do legislador – é um direito de prima ratio. Nas palavras de Paschoal, “não é admissível que em um momento se pregue que o Direito Penal deva ser o último recurso do qual o Estado lançará mão, e, em momento imediatamente posterior, postule-se que o Estado deverá dele se valer ainda que não represente a melhor forma de tutela112”. Importa mencionar, ainda, que reconhecer ordens de criminalização na Constituição indicam ainda a possibilidade de criação de um Direito Penal de cunho exageradamente repressivo e meramente simbólico113, como acontece com a figura dos crimes hediondos e com os crimes contra o meio ambiente. Aquela é um mal per si: a violência da legislação referente aos crimes hediondos em nada diminuiu a criminalidade nacional e só serviu para que se restringissem direitos e ga111) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 79. 112) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 85. 113) Sobre o caráter simbólico do Direito Penal, convém ler Santos, em uma hipotética conversa entre os seus “segmento pragmático do ego e a instância crítica do superego”: “mas existem coisas ainda piores – por exemplo, o conceito de prevenção geral positiva surge com o advento do direito penal simbólico, representado pela criminalização daquelas áreas definidas como situações sociais problemáticas (a economia, a ecologia, a genética etc.), em que o Estado não parece interessado em soluções sociais reais, mas em soluções penais simbólicas: protege complexos funcionais – a economia, a ecologia etc. –, nos quais o homem não é o centro de gravidade do direito, mas simples portador de funções jurídico-penais, segundo a tese de Baratta. Esse direito penal simbólico não tem função instrumental – não existe para ser efetivo – , apenas função política de criação de símbolos ou imagens na psicologia do povo, para produzir efeitos de legitimação do poder político e do próprio direito penal. A legitimação do poder político ocorre pela ostentação de eficiência repressiva, que garante a lealdade do eleitorado e reproduz o poder – o lastimável apoio de partidos populares a projetos de leis repressivas no Brasil é explicável por sua conversibilidade em votos. A legitimação do direito penal é simbólica, mas também instrumental: é simbólica porque problemas sociais recebem soluções penais, com satisfação meramente retórica à opinião pública; é instrumental porque revigora o direito penal como programa desigual de controle social seletivo, dirigido contra favelas e bairros pobres das periferias urbanas, especialmente contra a força de trabalho marginalizada do mercado, sem função na reprodução do capital e já punida pelas condições de vida. Aliás, o discurso eficientista da prevenção geral positiva – também conhecido como integração/prevenção – está na origem da redução das garantias constitucionais de liberdade, igualdade, presunção de inocência e outras do processo penal – cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de Direito em estado policial. Enfim, o discurso da prevenção geral positiva escamoteia a relação da criminalidade com estruturas de desigualdade das sociedades modernas, instituídas pelo direito e garantidas pelo poder do Estado”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Novas hipóteses de criminalização. Artigo na internet, disponível em http://www.cirino.com.br/artigos/ jcs/novas_hipoteses_criminalizacao.pdf. Acesso em: 22 jun. 2008.

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rantias do cidadão durante décadas de vigência, ao ponto do próprio Supremo Tribunal Federal reconhecer-lhe, depois de mais de quinze anos, a inconstitucionalidade de certos dispositivos114. No caso dos crimes ambientais, ainda que se reconheça a importância do bem jurídico envolvido, é certamente duvidoso que se precisem punir diversas condutas que estão tipificadas na lei115. Não se esqueça do problema apontado por parte da doutrina que defende116 que não seria possível descriminalizar condutas sem se incorrer em inconstitucionalidade – ou seja, estamos obrigados a conviver eternamente com alguns erros do legislador... Vale lembrar, também, que encontrar tais mandados implícitos no texto constitucional pode resultar de um exercício perigoso de interpretação. É a porta aberta para desmandos do Estado e para a criação de um Direito Penal de cunho totalitário, violento, controlador e simbólico, o que arrisca todo o desenho que se quer dar, unanimemente, ao texto constitucional que fundamenta o Estado nacional. A interpretação do texto constitucional pode ensejar riscos graves. Referindo-se à idéia de ordem pública, Silva traz uma importante lembrança: Mas aí se põe uma petição de princípio, já que a ordem pública requer definição, até porque, como dissemos de outra feita, a caracterização de seu significado é de suma importância, porquanto se trata de algo destinado a limitar situações subjetivas de vantagem, outorgadas pela Constituição. Em nome dela se têm praticado as maiores arbitrariedades. Com a justificativa de garantir a ordem pública, na verdade, muitas vezes, o que se faz é desrespeitar direitos fundamentais da pessoa humana, quando ela apenas autoriza o exercício regular do poder de polícia. Ordem pública será uma situação de pacífica convivência social, isenta de ameaça de violência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a prática de crimes. Convivência pacífica não significa isenta de divergências, de debates, de controvérsias e até de certas rusgas interpessoais. Ela deixa de ser tal quando discussões, divergências, rusgas e outras contendas ameaçam chegar às vias de fato com iminência de desforço pessoal, de violência e do crime117.

Mais focado no tema que se debate neste trabalho, Schünemann parece fazerlhe coro ao dizer que “... a utilização do direito penal não pode ser legitimada por meros desconfortos que ameacem o indivíduo ou meras imperfeições da organização social118”.

114) STF, Pleno, HC 82959/SP - SÃO PAULO, HABEAS CORPUS, Relator Min. Marco Aurélio Mello, julgamento em 23/02/2006. 115) Nas figuras típicas da lei n. 9605/98 encaixam-se condutas idílicas como catar e guardar lenha no quintal de casa para acender uma lareira (art. 46 e seu parágrafo único) ou, simplesmente, pisar culposamente na planta ornamental do vizinho (art. 49). Sobre comentários a essa legislação, ver REALE JÚNIOR, Miguel. Meio Ambiente e Direito Penal Brasileiro. In: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. v. 2, ano 2, n. 2, janeiro-junho de 2005. São Paulo: RT, 2005. Ainda, LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 95 e seguintes. 116) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 166. 117) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 753-754. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Assim, parece melhor entender, como desenvolve Paschoal, que a Constituição, no calor dos debates característicos de uma fase tumultuada da história brasileira, entendeu adequado dar indicações ao legislador de que poderia criminalizar determinadas condutas, mas apenas como compromisso carregado de historicidade119. Aliás, dá-lhe razão Schünemann: “a teoria da legitimação do direito penal, ou, vista da perspectiva inversa, dos limites impostos ao legislador na formulação do direito penal, está fundada em condições fundamentais suprapositivas de qualquer poder estatal legítimo e constitui, portanto, a premissa tácita de qualquer Estado de Direito Democrático-liberal, pouco importando se um tal Estado a consagrou na constituição de modo expresso ou não120”. Ou também é possível, para os mais audaciosos, que se recorra à existência das normas constitucionais inconstitucionais – ponto, esse, muito mais debatido, mas defensável. Não importa. O que não se pode abrir mão é do inarredável compromisso da Carta Magna brasileira com o Estado Democrático de Direito e com a garantia do cidadão. Se existe risco – e como se viu, existe – de que a interpretação de existência de mandando constitucionais de criminalização podem vir a ser “ovos de serpente”121, é melhor que não se lhes reconheça a existência. Tanto melhor: a inexistência de tais ordens constitucionais não implica a falta de proteção do cidadão; já a sua ocorrência implica tal risco. Afinal, não é porque não existem mandados constitucionais de criminalização que estará o indivíduo desprotegido, pois o legislador, constrangido pelo compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana (artigo primeiro da Constituição Federal), na medida de uma política criminal coerente122, está obrigado a criminalizar o que seja necessário para dar maior alcance a essa mesma dignidade. O reconhecimento desses mandados, diferentemente, implica um caráter autoritário, violento e repressivo ao texto constitucional que aponta o Direito Penal, em alguns casos, como primeira arma a ser apontada contra o cidadão. Esse raciocínio, quando se vive à sombra de experiências com Estados autoritários, não parece uma adequada interpretação constitucional. Não se esqueça jamais das imagens formidáveis dos terríveis Atos Institucionais. Finalmente, entende-se necessário lembrar-se de mais uma decorrência 118) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005. p. 09-37, p. 18. 119) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003, p. 102 e seguintes. 120) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005. p. 09-37, p. 14. 121) FRANCO, Alberto Silva. Do princípio penal da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Coimbra Editora, n. 6, 1996. p. 179-180. Apud PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 86. 122) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 53, 2005. p. 09-37, p. 23.

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do reconhecimento dos mandados constitucionais de criminalização. Vê-los no texto constitucional é imaginar que o Estado determina criminalizações porque já reconhece, “ab ovo”, o constituinte, que o Direito é incapaz de proteger bens jurídicos através de outros instrumentos como, por exemplo, a educação ou políticas de inclusão social. Reconhece o constituinte, assim, de forma arrogante, além da sua incapacidade e da sua obsolescência, a incapacidade do próprio cidadão. Nesses termos, conclui-se com as palavras de Schünemann: Enquanto uma tal fraqueza tiver sua raiz numa desvantagem social, cumpre a meu ver que se reconheça, fundado na moderna expansão da teoria liberal clássica do contrato social no sentido do Estado social, não apenas um direito, mas até mesmo um dever do estado de proibir a exploração de tais desvantagens sociais e de criminalizá-la, na falta de outros meios eficientes. Não é de se ignorar, porém, que com isso o direito penal se torna a ultima ratio de uma política social fracassada123.

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Estado e readequação de suas funções: o contexto brasileiro

Safira Orçatto Merelles do Prado Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Romeu Bacellar e Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-PR; Mestra em Direito do Estado pela UFPR; Professora de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Universidade Positivo. Advogada em Curitiba.

INTRODUÇÃO A evolução histórica a partir da Modernidade nos demonstra que a estrutura da Administração Pública varia de acordo com a concepção política de Estado. No Estado Absolutista, a estrutura administrativa era vista como um patrimônio do rei soberano, o que acarretava a falta de controle das relações e do exercício de poder. O modelo burocrático de Administração Pública surge com o Estado Liberal justamente como um meio de coibir os desmandos dos monarcas, substituindo o modelo patrimonialista que vigorava até aquele momento. No Estado Social, a burocracia firma-se como instrumento de controle e racionalidade do poder e de supedâneo para o aumento de funções atribuídas ao ente estatal. Com a contestação deste modelo a partir da década de 80 do século XX, calcada na concepção neoliberal de Estado, surge o modelo gerencial de Administração Pública. No Brasil, a evolução histórica ocorreu de modo diverso. Neste artigo, como referenciais para demonstrar este fenômeno foram utilizadas as lições de Max Weber em relação a sua teorização sobre burocracia, cuja construção deu-se a partir da análise da sociedade ainda no início do século passado. Em relação ao modelo gerencial, o marco teórico adotado foi Luiz Carlos Bresser Pereira, pela simples razão de ter sido o responsável pela implementação deste modelo no Brasil. Como teóricos das concepções de Estado, foram utilizadas as lições de Keynes sobre o Estado Social e de Hayek, sobre o modelo neoliberal, por serem os precursores destes temários. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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1 O ESTADO SOCIAL E O MODELO BUROCRÁTICO O Estado Social caracterizou-se pela intervenção na economia, assumindo funções que até então eram prestadas pela iniciativa privada. Na área social, passou a prestar serviços públicos de forma direta e, em sua concepção protecionista, a regulamentação aumentou continuadamente.1 A faceta de “Estado - empresário” foi impulsionada, basicamente, em razão de três justificativas: falta de interesse da iniciativa privada em determinadas áreas; alto custo de projetos e, ainda, a segurança nacional em relação a setores considerados estratégicos. Neste caso, foi implementada a política de monopólios estatais. A vertente providencial foi evocada mundialmente como conseqüência das duas Grandes Guerras Mundiais que assolaram o século XX. A necessidade da população pela prestação de serviços públicos era premente. Dessa forma, diversas empresas estatais foram criadas com esta finalidade. Jorge Rubem Folena de Oliveira destaca o aumento da funções estatais nesse período histórico, com a difusão do Welfare State: “.... cumpre realçar que a ação estatal passou a contemplar tanto os serviços públicos propriamente ditos, como também, e principalmente a partir daí, os serviços peculiares da atividade econômica empresarial: empreendimentos comerciais e industriais.” 2 A vocação intervencionista do Estado se completou no campo das regulamentações. Por lei, seja em sentido amplo ou em sentido estrito, “o Estadoprotecionista concede, estipula, proíbe, obriga e redistribui.”3 John Keynes, considerado como o grande teórico do Estado Social, defendia a intervenção estatal na economia com a finalidade de geração de desenvolvimento e estabilidade social e econômica. Com a Crise de 1929, elaborou a chamada “equação keynesiana”, uma teoria que buscou dar solução a um Estado que sofria dos “males” da alta taxa de desemprego. Duas idéias foram marcantes nesta teorização formulada por Keynes: a necessidade de o Estado incentivar os investimentos e a sua intervenção, por meio de políticas fiscais e de controle da taxas de juros, para aumentar a abertura de novos postos de trabalho e a propensão ao consumo. De forma simplificada, esta é a equação keynesiana.4 Keynes também propôs um verdadeiro pacto social entre as classes mais abastadas e as subalternas, com a nítida intenção de implementar uma verdadeira redistribuição de renda no plano social.5 Toda essa teorização proposta por Keynes 1)CASTRO, Paulo Rabello de. A reengenharia do Estado brasileiro: rumo ao sociocapitalismo. In: SOUZA, Hamilton Dias de; CASTRO, Paulo Rabello de. A reengenharia do Estado brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p.50. 2) OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena de. O Estado empresário. O fim de uma era. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 34, n.134, p.297-309, abr./jun.1997. p.299. 3) CASTRO, Paulo Rabello de. Op. cit., p.56. 4) KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Atlas, 1982. p.53 5) Este pacto consistia na aceitação, pelas classes mais abastadas, da redistribuição de parte do lucro com a finalidade de se buscar a paz social, tendo como conseqüência a regularidade na produção, garantia de recuperação dos investimentos e a aceitação dos representantes das classes subalternas, ou seja, os partidos políticos e os sindicatos. KEYNES, John Maynard. Op. cit.,p. 53-55.

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serviu de fundamento para o Estado Social implementar as mais diversas políticas publicas, com ênfase na intervenção estatal na economia, na prestação direta de serviços públicos e na regulamentação incisiva em determinados setores. Para Canotilho e Vital Moreira, o Estado Social tinha em sua base antropológica comum “o homem como pessoa, como cidadão e como trabalhador, o que aponta não apenas para o reconhecimento da dignidade humana e da autonomia individual perante o Estado (...). Mas também para a inserção do homem livre num processo democraticamente comunicativo e para a garantia existencial do indíviduo nos planos econômico, social e cultural.”6 Vivian Cristina Lima, fazendo referência à teoria da filtragem constitucional proposta por Paulo Ricardo Schier, definiu o alcance institucional atingido pelo Estado Social: “No plano constitucional ocidental, esse Estado Social encontrou satisfação através de toda uma plêiade de direitos alcançados à categoria de normas constitucionais geradoras de direitos públicos subjetivos, orientando a elaboração de programas de governo e disciplinando, sobretudo, a interpretação do direito a partir de uma releitura pautada pelo filtro da constituição”.7 Com o aumento quantitativo das atribuições do Estado Social, a sua estrutura cresceu na mesma proporção. Como forma de manutenção do controle de todo o aparato e regulamentação, o modelo burocrático de Administração Pública consolida-se no Estado Social. O modelo de aparelhamento estatal organizado burocraticamente é composto por diversos órgãos, estabelecidos em uma estrutura composta também por cargos. Estes, por sua vez, distribuem-se por meio de quadros de carreira. A hierarquia é estabelecida desta forma no modelo burocrático, o que facilita o autocontrole da Administração. Nas palavras de Weber: “os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores.”8 Conseqüentemente, ocorreu uma completa separação entre o quadro de servidores administrativos e os meios de administração e também entre o cargo e o seu detentor. Neste caso, a pessoa detentora do cargo passou a ser responsabilizada por seus atos. Tudo no intuito de coibir o patrimonialismo na Administração Pública. Aliás, para ser detentor de um cargo no modelo burocrático, é obrigatória a aprovação em concurso público. Ele serve de supedâneo para o princípio da especialização do funcionalismo, assegurando à Administração Pública a contratação dos melhores profissionais. O princípio da isonomia também é observado, visto que garante a todos a possibilidade de concorrer a um cargo público, desde que preen6) CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos de Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991. p.352. 7) LIMA, Vivian Cristina. Administração Pública Contemporânea: o usuário de serviço público e a dignidade da pessoa humana. Curitiba, 2004. 216f. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 18. 8) WEBER, Marx. Burocracia. In ____. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963. p.230. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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chidos os requisitos legais. A alusão de Celso Antonio Bandeira de Mello a este princípio ocorre da seguinte forma: “No texto constitucional há, ainda, algumas referências a aplicações concretas deste princípio, como ocorre no art. 37,II, ao exigir que o ingresso em cargo, função ou emprego público depende de concurso público, exatamente para que todos possam disputar-lhes o acesso em plena igualdade.”9 Ao funcionalismo lhe são asseguradas diversas prerrogativas, que têm como finalidade possibilitar o exercício das funções públicas de forma independente. São remunerados mensalmente, de acordo com a hierarquia e atribuições do cargo. Dessa forma, é possível concluir que o modelo burocrático foi adotado como instrumento de garantia de liberdade para aquele que exerce a função pública, nos termos da legislação elaborada pelos representantes políticos. Isso permitiu que toda atividade administrativa fosse fiscalizada pela população, com o direcionamento da atuação dos agentes estatais.10 Em que pese a necessidade de concurso público, Weber prevê a possibilidade de funcionários nomeados, mas desde que seja para cargos de caráter eminentemente político. No entanto, destaca a possibilidade destes funcionários serem menos preparados: Quando a necessidade de administração pelos especialistas é considerável, e os seguidores dos partidos têm de reconhecer uma ‘opinião pública’ intelectualmente desenvolvida, educada e livre, o uso de funcionários sem habilitações prejudicará o partido que ocupe o poder, nas próximas eleições. Naturalmente, isso tem mais probabilidade de ocorrer quando os funcionários são nomeados pelo chefe. (...) Portanto, as eleições populares do chefe administrativo e também de seus subordinados habitualmente põem em risco a qualificação do funcionário, bem como o funcionamento preciso do mecanismo burocrático.11

O outro pilar do modelo burocrático é a procedimentalização, o que possibilita um controle de meio dos atos da Administração, calcado no princípio da legalidade. A institucionalização de procedimentos traz como conseqüência a previsibilidade, o que orienta o cidadão em sua formação de condutas. Para Romeu Felipe Bacellar Filho: A procedimentalização do agir administrativo, isto é, a fixação de regras para o modo como a Administração deve atuar na sociedade e resolver os conflitos configura, assim, condição indispensável para a concretização da democracia. Sem a fixação do procedimento administrativo, impossibilitase qualquer relação estável entre Administração e cidadãos, onde cada um saiba até onde vai o poder do outro e como este poder será exercido. (...) O procedimento administrativo não deixa de ser um modo de domesticação do exercício do poder da Administração Pública.12

9) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.104. 10) SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na Administração Pública: o direito de reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.100-101. 11) WEBER, Marx. Op. cit., p.235.

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Associada à legalidade e à procedimentalização, a instituição da documentação também serviu como fator decisivo para implementação da previsibilidade na Administração Pública. Weber, em breves palavras, sintetiza toda a sua teorização sobre a administração burocrática: Precisão, velocidade, clareza, conhecimento dos arquivos, continuidade, discrição, subordinação rigorosa, redução do atrito e dos custos de material e pessoal – são levados ao ponto ótimo da administração rigorosamente burocrática, especialmente em sua forma monocrática. Em comparação com todas as formas colegiadas, honoríficas e avocacionais de administração, a burocracia treinada é superior, em todos esses pontos.13

No entanto, no Brasil o modelo burocrático sofreu diversos desvirtuamentos, o que acabou transformando o termo “burocracia” em algo pejorativo, muitas vezes sendo entendido como sinônimo de ineficiência. É o que se confere a seguir.

1.1 A REALIDADE BRASILEIRA

A implantação de um Estado Social, em terras brasileiras, não passou de uma mera tentativa. Lenio Luiz Streck destaca que nos países de modernidade tardia14, dentre eles o Brasil, o assim denominado Welfare State não passou de um simulacro, onde as promessas da modernidade continuam descumpridas. Mesmo assim, acredita na possibilidade da construção de políticas públicas a partir do Pacto Constituinte de 1988.15 A tentativa de implementação do Estado Social no Brasil se deu por meio da criação de empresas públicas, instrumentos utilizados pelo Estado para intervenção direta na economia e prestação de serviços públicos. Antes mesmo de entrar em vigor o Decreto-Lei nº 200/6716, várias empresas estatais já haviam sido constituídas. Dentre elas, destaca-se: Banco do Brasil, em 1808; Instituto de Resseguros Nacional (IRB), em 1939; a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), 12) BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998. p.130-131. 13) WEBER, Marx. Op. cit., p.249. 14) O autor defende também a adoção de uma “Teoria da Constituição Adequada a Países de Modernidade Tardia”, que nada mais é do que uma teoria constitucional adequada aos países periféricos, com a finalidade última de implementar as promessas da modernidade. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais Sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2, p.257-301, maio/ago. 2003. p.276. 15) Ibid., p.278. 16) O Decreto Lei n. 200/67 é considerado como o marco legislativo que implementou a descentralização da Administração Pública no Brasil. A partir deste momento, as empresas estatais já criadas passaram a fazer parte da Administração Indireta, sob a forma de Empresas Públicas ou Sociedades de Economia Mista. As primeiras são constituídas integralmente por recursos da pessoa de direito público que a criou e tem adotam podem adotar qualquer forma societária, inclusive a unipessoal, permitida apenas para elas. Já as Sociedades de Economia Mista surgem como uma conjugação de recursos públicos e particulares com a maioria do capital votante pertencente ao Estado. Quanto à forma societária, só é possível adoção da forma de sociedade anônima. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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em 1941; a Companhia Vale do Rio Doce, em 1943; a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, em 1945; a Fábrica Nacional de Motores, em 1946; a PETROBRAS, em 1953, a NOVACAP, em 1956; a RFFSA, em 1957; a ELETROBRÁS, em 1961; a EMBRATUR, em 1966. Na década seguinte foram criadas a Caixa Econômica Federal, em 1970, e a EMBRATEL, em 1972. Dessa forma, do início da década de 30, até o final da década de 80 do século XX, a quantidade de empresas estatais chegou ao montante de 361, isso apenas no âmbito federal. Pedro Paulo de Almeida Dutra, com base no estudo de Paulo Roberto Motta, enumerou os fatores que influenciaram a criação das empresas do Estado, classificando-os em quatro grupos: Fatores de natureza econômica econômica: promover o progresso socioeconômico. Insere-se nesse contexto a criação das empresas produtoras de aço e energia, além dos bancos e das empresas de serviço público; Fatores de natureza política: política por razões de estratégia e de vantagens monopolíticas foram criadas as empresas estatais para assegurar o controle de indústrias consideradas como vitais para a segurança do país. Como ex., a criação da Petrobrás e das empresas dos setores de transporte e comunicações; Fatores de natureza administrativa administrativa: são secundários para a criação das empresas estatais. Mesmo assim, o surgimento de tais empresas contribuíram para descentralizar a administração, tendo em vista a grande extensão geográfica do território brasileiro, além de possibilitar maior flexibilidade e autonomia em relação a administração direta; Fatores de natureza social social: a finalidade era produzir bens e serviços para as populações de mais baixo nível de renda. Como exemplo, o BNH ficou encarregado de construir unidades habitacionais destinadas ao menos favorecidos. 17 (grifos nossos)

Em que pese os fatores apresentados, como condicionantes para a criação de empresas estatais, não tardou para que as conseqüências do aumento desordenado do aparelhamento estatal brasileiro surgissem. “A inflação crescente e desequilíbrio orçamentário crônico erodiram paulatinamente a capacidade do Estado de prestar serviços.”18 Ainda, fatores do contexto mundial também contribuíram para a falência do setor público no Brasil, como é o caso da Crise do Petróleo de 1973. Já a implantação da burocracia em nosso país teve origem com a criação do Departamento Administrativo de Serviço Público, o DASP, em 1938. O objetivo da criação deste órgão era a reorganização e a racionalização dos procedimentos administrativos efetuados pelo setor público. Na década de 60 ocorre a descentralização da Administração Pública. O Decreto-Lei nº 200/67 a divide em Direta e Indireta. O art. 4º, I, estabelece que a 17) DUTRA, Pedro P. de A. Controle de empresas estatais. São Paulo: Saraiva, 1991. p.28. 18) CASTOR, Belmiro Valverde Jobim. Fundamentos para um novo modelo do setor público no Brasil. In: SOUZA, Hamilton Dias de; CASTRO, Paulo Rabello de. A reengenharia do Estado brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p.147.

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primeira se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios. Já o inciso II do mesmo artigo estabelece que a Administração Indireta compreende as Autarquias, as Empresas Públicas, as Sociedades de Economia Mista e as Fundações Públicas, todas dotadas de personalidade jurídica própria. No entanto, a criação da Administração Indireta serviu apenas de fuga do Regime Jurídico Administrativo para o regime de direito privado. Isso porque, em relação às empresas estatais, não se aplicava totalmente o regime de direito público. Dessa forma, pelas empresas estatais contratava-se sem concurso público, bens e serviços sem licitação, além do fato de que nessa época o endividamento público brasileiro ocorria sem a aprovação do Senado Federal.19 Em que pese à instituição dos concursos públicos, a tão necessária profissionalização da Administração Pública não se efetivou no contexto brasileiro. Exemplo disso é o desvirtuamento da figura dos cargos comissionados, que na burocracia weberiana deveriam ser utilizados apenas em relação a funções de caráter político. Como é público e notório, os cargos em comissão são utilizados como “moedas de troca” entre os detentores do poder, mais precisamente nas épocas eleitorais. Belmiro Valverde Jobim Castor ilustra de forma concisa a maneira como se alastrou a crise na estrutura administrativa do Estado brasileiro: O clientelismo inchou de maneira desordenada os quadros humanos do Estado; o corporativismo criou privilégios injustificáveis para alguns extratos de funcionários das estatais à custa do contribuinte como os generosos fundos de pensões e de seguridade, o populismo aposentou precocemente milhões de pessoas graças às leis de favorecimento ou a simples ausência de controle previdenciário; e a corrupção disseminada em todos os níveis gerou uma relação espúria entre o Estado contratador e comprador de um lado e seus fornecedores e empreiteiros de obras de outro. A soma dessas patologias encareceu brutalmente o custeio estatal sem contribuir para a ampliação dos serviços essenciais.20

É em razão desses motivos que ainda hoje as garantias dos servidores públicos são vistas como verdadeiros privilégios. E burocracia é vista como sinônimo de ineficiência, e que serve para auxiliar a corrupção. Todavia, não se pode associar burocracia à ineficiência. O que se pode é associar a realidade brasileira à ineficiência, e não à burocracia weberiana. Mesmo que a implementação do Estado Social tenha se restringido a uma simples tentativa, além do desvirtuamento do modelo burocrático no Brasil, o tema “reformar é preciso” também entrou em pauta na agenda política brasileira. A implementação de uma concepção regulatória / gerencial foi proposta como a solução de todos os problemas. 19) SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Administração Pública: apontamentos sobre os modelos de gestão e tendências atuais. In: GUIMARÃES, Edgar (coord). Cenários do Direito Administrativo: Estudos em homenagem ao Professor Romeu Felipe Bacellar Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.40. 20) CASTOR, Belmiro Valverde Jobim.Op. cit., p.148. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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2 A CONCEPÇÃO REGULATÓRIA DE ESTADO E A PROPOSTA GERENCIAL Já no final da década de 70, o Estado Social começou a entrar em crise. O aumento das funções estatais acabou por comprometer a qualidade da prestação dos serviços públicos, além de trazer como conseqüência o agigantamento da estrutura administrativa estatal. Os déficits das contas públicas chegaram a níveis exorbitantes. Outros fatores também contribuíram para a crise desse modelo estatal. O fenômeno da globalização impôs um processo de rompimento de barreiras geográficas, políticas, econômicas, sociais e culturais21, em que a perspectiva local já não assume a mesma importância. Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Paulo Rabello de Castro afirmam que a globalização do final do século XX ultrapassa todas as experiências históricas, sendo a mais ampla e diversificada, implementando a Revolução das Comunicações: As comunicações emergem do intercâmbio: de produtos, de serviços, de dados, de imagens, até de sentimentos. Comunicar-se é abrir-se. Uma ‘abertura’ tem vários significados, mas o mais comum e talvez mais poderoso é o comércio. Indivíduos trocam, regiões intercambiam, países comerciam. O comércio florescente é manifestação da liberdade humana, por isso terá sido tão controlado pelos poderes políticos nas várias passagens da história. No século XX conhecemos o protecionismo, antônimo da abertura comercial, cujo apogeu nos anos 30 teve seus catastróficos resultados na Segunda Guerra Mundial.22

Além da globalização, logo após a Segunda Grande Guerra Mundial, o neoliberalismo serviu de reação ao intervencionismo e ao caráter prestacional do Estado de Bem-Estar.23 No entanto, tal concepção consolidou-se efetivamente com o final da Guerra Fria e com a queda do comunismo soviético. Dessa forma, desapareceram os motivos que serviam de sustentáculo para manutenção do Estado Social, já que ele servia de contraponto à política soviética. A teorização proposta por Friedrich Hayek, a partir de sua obra “O Caminho para Servidão”, serviu de mote propulsor para a criação de um movimento neoliberal, combativo às premissas do Estado de Bem-Estar. Ele afirmava que, se o capitalismo continuasse financiando esse modelo estatal, permaneceria uma profunda relação de dependência do cidadão em relação ao Estado. Aquele não buscaria mais o emprego. A conseqüência imediata seria a falência do sistema.24 21) MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; CASTRO, Paulo Rabello de. O futuro do Estado: do pluralismo à desmonopolização do poder. In MARTINS, Ives Gandra da Silva (org). O Estado do futuro. São Paulo: Pioneira, 2000. p.52. 22) Id. 23) Entretanto, nesta época o capitalismo intervencionista estava no auge. Por isso é que as idéias de Hayek não pareciam muito verossímeis. Ele defendia que o novo igualitarismo deste período, promovido pelo Estado de Bem Estar destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Enfim, a desigualdade era necessária. ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: _______, et al. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p.10.

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Francis Fukuyama endossa a tese neoliberal ao afirmar que: ... a democracia liberal continua a ser a única aspiração política coerente que se espalha por diferentes regiões e culturas em todo o mundo. Além disso, os princípios liberais na economia – o <<mercado livre>> - alastraram e conseguiram produzir níveis de prosperidade material sem precedentes, tanto nos países industrializados como naqueles que, no final da segunda guerra, faziam parte do empobrecido Terceiro Mundo.25

Para Vivian Cristina Lima, o neoliberalismo serve de fundamento para o desprezo à justiça social e impõe uma desigualdade material entre os homens, impedindo a identidade de tratamento e impondo a necessidade de se adotarem medidas afirmativas para a satisfação dos princípios da igualdade e liberdade.26 Dessa forma, as políticas neoliberais em diversos países acabaram por implementar uma nova concepção estatal, a regulatória27, transferindo para a iniciativa privada a execução de atividades econômicas, bem como a prestação de serviços públicos. Com a reassunção de suas atividades, ou seja, as de caráter econômico, a iniciativa privada passa a ser novamente a propulsora da economia. Esse declínio da intervenção do Estado na economia tem como pressuposto a consagração do princípio da subsidiariedade. Com efeito, a subsidiariedade foi usada como parâmetro para a redefinição das atividades do Estado, da conformação do seu papel com o da iniciativa privada no final do século XX. Silvia Faber Torres sintetiza em poucas palavras o momento de reconfiguração do Estado, com a concretização do princípio da subsidiariedade: A subsidiariedade, portanto, regula a intervenção estatal na economia, cabendo-lhe fixar pautas que orientem uma relação harmônica entre a ordem econômica espontânea e a ação do Estado, a qual, saliente-se, não é por ela vedada, mas limitada à correção de distorções em nome do bem comum e da promoção da justiça. Ela inverte, de fato, a tendência à economia dirigida e à planificação há muito prevalecentes e afasta, ainda, o Estado de atividades comerciais e industriais que, ao lado dos serviços públicos stricto sensu, foram intensamente assumidas nas últimas décadas.28 24) HAYEK, Friederich A. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. A miragem da justiça social. São Paulo: Visãok, 1985. v.2, p.3. 25) FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Lisboa: Gradiva, 1992. p.15 26) LIMA, Vivian Cristina. Op. cit., p.33. 27) O instituto da regulação tem sua origem na Inglaterra, mas foi nos Estados Unidos que se consolidou como instituto jurídico. Neste país, a regulação das chamadas public utillities começou na segunda metade do século XIX, com a criação de diversas agências e edição de vários marcos legais. No restante dos países, a regulação ganhou ênfase com a Reforma do Estado no final da década de 80. MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Agências reguladoras. Barueri: Manole, 2003. p.55. 28) TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no Direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.152. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Paulo Rabello de Castro afirma que o princípio da subsidiariedade significou, em muitos casos, tornar subsidiária a ação dos governos locais à ação dos próprios cidadãos, assim como subsidiária a ação do governo central em relação às demais esferas do poder.29 Além dessas tendências decorrentes do princípio aludido, destaca-se também idéia de reestruturação do aparelho estatal por meio das privatizações, calcadas em motivos financeiros, políticos e jurídicos. 30 No âmbito financeiro, destaca-se a necessidade de diminuição de gastos públicos com empresas estatais deficitárias. Juridicamente, busca-se a implementação de formas de gestão privada dos serviços públicos, sem os rigorosos controles impostos à administração pública. Os motivos políticos estão consignados com presença da ideologia neoliberal que propugna pela substituição do Estado pela iniciativa privada, em razão da maior aptidão desta última em gerir as atividades econômicas. Marcel Bursztyn afirma que em relação a este aspecto: cabe assinalar que a ‘revolução neoliberal’, ainda que na aparência se valha do desmantelamento de Estado, busca, na verdade, a conquista do mesmo, como forma de viabilizar a construção de um outro Estado: onde o mercado substitua as formas de mediação entre os diferentes atores sociais; onde o econômico substitua o social; onde a concorrência substitua a cooperação; onde o Eu substitua o nós.31

No Brasil, a Constituição de 1988 reafirmou os contornos do novo papel do Estado: limitou a sua intervenção direta no domínio econômico segundo os imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo e outorgou às empresas públicas e sociedades de economia mista o mesmo tratamento dispensado às entidades privadas32. Em relação ao serviço público, a Constituição Federal em sua versão original reafirmou o dever do Poder Público de prestá-los, além de possibilitar que os particulares o façam, sob o regime de concessão ou permissão (art.175). No entanto, a redação original de alguns dispositivos constitucionais impunha o regime de monopólio em relação a alguns serviços (como, por exemplo, às telecomunicações)33. 29) CASTRO, Paulo Rabello de. Op. cit., p.65. 30) LINHARES, Marcel Queiroz. O Estado social e o princípio da subsidiariedade: reflexos sobre o conceito de serviço público. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 32, n. 33, p. 209 – 223, 2000. p. 219. 31) BURSZTYN, Marcel. Introdução à crítica da razão desestatizante. Revista do Serviço Público, Brasília, ano 49, n.1, p. 141 – 163, jan./mar. 1998. p. 155. 32) “Nessa perspectiva o programa de privatização questiona o papel do Estado de bem estar, redimensiona as intervenções do Estado, evocando uma limitação de seu papel na busca da redefinição da fronteira entre as atividades públicas e privadas”. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Sociedade de Economia Mista & Empresa Privada: estrutura e função. Curitiba: Juruá, 1999. p. 158. 33) A redação original era: “Art.21 – Compete à União: XI – explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob o controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado através da rede pública de telecomunicações explorada pela União;”

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Na década seguinte a da promulgação da nova Constituição da República, acompanha-se o início da Reforma do Estado no Brasil, com a Medida Provisória nº 155/90, logo convertida na Lei 8031/90, consolidando-se o Programa Nacional de Desestatização Brasileiro. Esta Lei, por sua vez, sofreu diversas adaptações por Medidas Provisórias, resultando na sua revogação e substituição pela Lei 9491/97. Igualmente como reflexo da política de redimensionar o ente estatal, as Emendas Constitucionais nº 6, nº 8 e nº 9 extinguem o monopólio da União em relação ao petróleo e às telecomunicações, abrindo o caminho para a presença da iniciativa privada nacional e do exterior em relação a estas atividades. Finalmente, a Emenda nº 19 de 4 de junho de 1998 objetiva a implementação da Reforma do Aparelho do Estado, dando nova redação a diversos dispositivos constitucionais. Após as privatizações, que foram utilizadas como instrumento para o redimensionamento da estrutura estatal brasileira, foram criadas as agências reguladoras com a finalidade de controlar e regulamentar a prestação de serviços públicos e o exercício de algumas atividades econômicas que até então o Estado exercia diretamente. Com as privatizações, a regulação aumenta a cada instante. Isso porque, quando os serviços eram prestados diretamente pelo Estado, dificilmente ele próprio iria limitar, restringir a sua própria atividade. Com a delegação dos serviços públicos, o ente estatal se vê na obrigação de normatizar este novo meio prestacional, até mesmo como forma de garantir a sua legitimidade perante a população.34 A partir dessa transferência, o Estado buscou assumir o seu novo papel, o de regulador, fiscalizando, regulamentando e até mesmo mediando conflitos referentes às atividades prestadas pela iniciativa privada. Para isso foram criadas as agências reguladoras, que no âmbito federal35 são as seguintes: ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), ANP (Agência Nacional do Petróleo), ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ANS (Agência Nacional de Saúde), ANA (Agência Nacional de Águas), ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e ANCINE (Agência Nacional de Cinema). Além da criação das agências, procurou-se dinamizar a estrutura administrativa brasileira com a implementação de um modelo gerencial. Para Luiz Carlos Bresser Pereira, responsável pela implementação da Reforma ao menos no âmbito federal, as funções do Estado se distinguem em três áreas de atuação: as atividades exclusivas do Estado, os serviços sociais e científicos e a produção de bens e serviços para o mercado. Como atividades típicas devem ser entendidas as que são exercidas por meio de monopólio, como, por exemplo, as funções de legislar e de julgar, a arrecadação de impostos, o poder de polícia, etc.36 34) MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Op. cit., p.52. 35) Os estados - federados também detém competência para criar agências reguladoras.Vide o exemplo do Rio de Janeiro (Lei Estadual nº 2868/97). 36) PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A Reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Cadernos MARE da reforma do Estado. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997. p.13. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Outras atividades, como implementação da educação, saúde, previdência social, são vistas como atividades exclusivas do Estado em razão dos recursos orçamentários que envolvem, mas que não são essencialmente monopolistas. Por tais motivos, essas atividades deverão ser exercidas por entidades públicas não-estatais, sem fins lucrativos, voltadas para o interesse público, mas que não fazem parte da Administração Pública. Segundo o autor supracitado, “a reforma do Estado nesta área não implica em privatização, mas em ‘publicização’ - ou seja, em transferência para o setor público não estatal”.37 A terceira área de atuação do Estado - a produção de bens e serviços para o mercado - deve sofrer o processo de privatização, visto que não há mais justificativas para a manutenção das empresas estatais, pois “ficou definitivamente claro que a atividade empresarial não é própria do Estado, já que pode ser muito melhor e mais eficientemente controlado pelo mercado do que pela administração.”38 As chamadas atividades auxiliares, também denominadas de atividades meio do Estado, como limpeza, vigilância, transporte, serviços técnicos de informática, deverão ser terceirizadas, devendo haver licitação pública já que a contratação se dará com terceiros. Destarte, a estrutura administrativa gerencial se configuraria da seguinte forma: O primeiro setor corresponderia ao núcleo estratégico, formado pelo Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público. Exercem atividades exclusivas de Estado, como formulação de leis e de políticas públicas. O segundo setor abarcaria as agências executivas39 e as agências regulado40 ras . Também exercem atividades exclusivas de Estado, mas fazem parte da Administração Indireta, possuindo personalidade jurídica própria, de direito público. Finalmente o terceiro setor, composto por entidades públicas não-estatais, ou seja, entidades constituídas sob o regime de direito privado, mas que prestam atividades públicas, sem fins lucrativos. A partir da distinção das áreas de atuação do Estado e da reestruturação setorial, a reforma prevista pela Emenda Constitucional nº 19 procurou dinamizar a Administração Pública brasileira, transformando-a de burocrática em gerencial. Dessa forma, é possível enumerar como características desta proposta de estruturação administrativa pública: Orientação da ação do Estado para o cidadão cliente; Ênfase no controle dos resultados por meio dos contratos de gestão, em vez do controle dos procedimentos; 37) Ibid., p.25. 38) Ibid.,p. 24. 39) No âmbito federal são regulamentadas pela Lei n. 9.649/98 e Decretos n. 2.487 e n. 2.488, ambos de 02.02.98. São autarquias e fundações que podem receber a qualificação de “Agencia Executiva”, desde que se enquadrem aos requisitos do Ministério a qual a entidade está vinculada. Isto possibilita um maior grau de autonomia em relação ao desempenho de suas funções. 40) São autarquias em regime especial, com maior ou menor grau de autonomia (depende do Ministério a que está vinculada), com a função de regular a prestação de serviços públicos, bem como a execução de algumas atividades econômicas consideradas estratégicas.

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Fortalecimento das chamadas “carreiras de Estado”; Criação de secretarias formuladoras de políticas públicas, como unidades descentralizadas para execução de tais políticas (agências executivas); Transferência dos serviços sociais e científicos para o setor público não estatal; Adoção de diversos tipos de controle de forma cumulativa (controle social, contratos de gestão e da formação de “quase-mercados”); Terceirização das atividades auxiliares; Criação de agências reguladoras com a finalidade de controlar e regulamentar as atividades econômicas e sociais que até então o Estado exercia diretamente.41

Com a Reforma Aparelho do Estado, buscou-se o redimensionamento da máquina administrativa, voltando o ente estatal para o exercício de suas funções típicas, de forma mais eficiente, e resguardando também ao cidadão maiores possibilidades de participar das decisões que envolvam os interesses do Estado. É nesse contexto que se insere a privatização das empresas estatais, como um dos instrumentos para implementação da reforma estatal brasileira. Com a economia de gastos em relação a recursos humanos42 e também com o dinheiro da venda das empresas estatais, acreditava-se em um “reequilíbrio” das contas públicas e posteriormente, na visualização de um Estado regulador mais forte e eficiente, atendendo de forma mais adequada às necessidades dos “cidadãos - clientes”.

2.1 A REALIDADE BRASILEIRA

Como conseqüência das mais diversas alterações econômicas, políticas e sociais, a concepção de Estado Social foi questionada, assim como o modelo de estrutura burocrática a ele correspondente. No Brasil não foi diferente, em que pese à implementação do Estado Social ter se restringido a uma mera tentativa, acompanhado do desvirtuamento do modelo burocrático. No entanto, em vez de se buscar a implementação de um verdadeiro Estado Social, associado a mecanismos que coíbam o desvirtuamento da administração burocrática, preferiu-se o desmantelamento estatal e a adoção de políticas que no mais das vezes acabam por tornar mais miseráveis os que já o são. Adriana da Costa Ricardo Schier descreve a forma como deveria ocorrer a Reforma em nosso país: ... em vez de se reestruturar o Estado para que pudesse vir a ser uma instituição que efetivamente assegurasse os mínimos direitos capazes de garantir a sobrevivência digna dos cidadãos, preferiu-se, mais uma vez, na história, conceder tal tarefa ao mercado, à iniciativa privada. Optou-se, então, pela diminuição do Estado em relação ao atendimento de demandas sociais. Con41) PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Op. cit.,p. 42. 42) Em busca da eficiência na Administração Pública e também da contenção de gastos, a Emenda nº 19 trouxe a possibilidade do servidor público perder a sua estabilidade por insuficiência de desempenho (art. 41, § 1º, III da CF), ou por excesso de quadros (art. 169 da CF). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tudo, sem embargo de seu enfraquecimento em relação às preocupações sociais, o Estado torna-se mais ‘forte’ em outros aspectos, sendo altamente repressivo com os movimentos sociais e estando sempre pronto a garantir o livre mercado, salvando, se necessário for, instituições privadas.43

Com a venda das empresas estatais, o Estado brasileiro deixou de intervir diretamente na economia e delegou a prestação de serviços públicos à iniciativa privada. Assim, foi necessária a criação de entes reguladores com a finalidade de regular os setores até então estatizados. No Brasil, as agências reguladoras foram criadas após o término das privatizações, o que pode ser considerado como um dos maiores erros ocorridos durante o Programa de Desestatização. Primeiramente, era necessário criar regras, regular os setores a serem desestatizados, para, em seguida, efetuar as vendas e as concessões, nos termos da nova regulação. Entretanto, não foi isso o que ocorreu, e o que se constata é um total descrédito em relação aos entes reguladores.44 Isso porque os contratos de concessão foram assinados logo em seguida às vendas das estatais prestadoras de serviços públicos, antes, portanto, da criação da maioria das agências. O que se depreende a partir de então é uma verdadeira crise de legitimidade destes entes, já que estão impossibilitados de exercer, por exemplo, o controle tarifário de alguns serviços essenciais, como decorrência da garantia contratual pactuada na concessão. Outro fracasso verificado na regulação brasileira foi a adoção de um modelo que não condiz com a realidade de nosso país. Simplesmente transplantou-se o modelo americano de regulação, como se vivêssemos em realidades idênticas. Em relação à proposta gerencial de estruturação administrativa pública, pode-se afirmar que não é possível a adoção plena deste modelo. E ainda, em diversos momentos, é possível observar o modelo burocrático de gestão.45 No entanto, cumpre asseverar que algumas alterações ocorreram, em especial a mutação da noção de serviço público, trazendo como conseqüência direta a alteração de seu regime jurídico, o que vem ocasionando uma verdadeira fuga do direito público para o privado.46 Também surgiram novos institutos jurídicos, como, por exemplo, o con43) SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Administração Pública .... p.43. 44) Em pesquisa publicada na Folha de São Paulo, de 12 de março de 2003, foi constatada a insatisfação da população com relação ao desempenho das agências reguladoras. Segundo o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), responsável pela elaboração da pesquisa, a própria instituição enfrentou dificuldades para avaliar os 40 critérios necessários para análise do desempenho das agências e de outros órgãos reguladores. Isto ante a falta de informações fornecida pelos próprios entes. As notas atribuídas variavam de 0 a 3 (muito ruim), 3,1 a 5 (ruim), 5,1 a 7 (regular), 7,1 a 9 (bom), 9,1 a 10 (muito bom). A pesquisa foi elaborada por 12 técnicos e consultores do IDEC durante um ano. Foram avaliadas sete entidades: ANEEL (5,8 - regular), ANATEL (4,6 - ruim), ANS (2,7 - muito ruim), ANVISA (5,6 - regular), Banco Central (2,6 - muito ruim), INMETRO (5,1 - regular) e Secretaria de Defesa e Agropecuária (2,9 - muito ruim). As principais queixas dos usuários/consumidores foram: falta de transparência dos órgãos ao tomar decisões para fiscalizar e regulamentar o setor em que atuam; necessidade de facilitar o acesso de informações ao usuário/consumidor; falta de ouvidorias ou de acesso à elas; falta de controle sobre as tarifas cobradas; falta de punição aos concessionários que prestam de forma inadequada o serviço público. 45) SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Administração Pública... p.49-50.

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trato de gestão, além de observarmos a ascensão de uma espécie de “Administração Pública Paralela”47, o que corresponde ao Terceiro Setor. Ainda, cumpre asseverar que, em razão da delegação de serviços públicos à iniciativa privada, cada vez mais vislumbra-se o cidadão como um cliente do Estado, levando-se em conta apenas o prisma do usuário enquanto consumidor.48 Isso porque a orientação da gestão dos serviços públicos para o lucro pode gerar graves violações aos direitos fundamentais do cidadão. Tal orientação deve importar na mudança da adequação, continuidade, eficiência, modicidade tarifária, enfim, da qualidade do serviço público. Este é, portanto, o maior desafio da atual configuração regulatória e gerencial do Estado brasileiro: a garantia e a concretização dos direitos fundamentais consagrados pela Carta Constitucional de 1988.

CONCLUSÕES Com o agigantamento da estrutura estatal, em razão da quantia de funções assumidas, o Estado de Bem-Estar entrou em crise no final da década de 70. A partir desse momento, buscou-se uma reestruturação administrativa, associada a uma redefinição das funções estatais. Aquela concepção de Estado deu lugar à feição regulatória, com a substituição da forma de gestão burocrática para a forma de gestão gerencial. Para tanto, as privatizações foram utilizadas como um dos instrumentos para implementação da Reforma do Estado. No Brasil não foi possível constatar a completude do Welfare State. Concomitantemente, a forma de gestão burocrática foi desvirtuada da concepção concebida por Weber. A feição regulatória de Estado, implementada para solucionar os problemas apresentados pelo modelo anterior, não vem sendo suficiente para atender aos cidadãos. Em relação à proposta gerencial de estruturação administrativa pública, pode-se afirmar que não foi possível a adoção plena desse modelo. Aliás, o que se constata a partir da reformulação é apenas e tão-somente uma verdadeira fuga do Direito Público para o Direito Privado, sob a justificativa da necessidade de o Estado buscar auxílio dos particulares para o cumprimento das demandas sociais. Além do mecanismo referido, as políticas neoliberais vêm impondo ao Estado apenas a feição de gestor e regulador, o que nos países de Terceiro Mundo vem ocasionando o distanciamento da legitimidade da existência do aparelhamento estatal, qual seja a promoção dos Direitos Fundamentais. 46) ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1996. p.355. 47) Nomenclatura atribuída por: BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p.20. 48) LIMA, Vivian Cristina. Op.cit., p.43

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Estado, ordem social e privatização: as terceirizações ilícitas da administração pública por meio das organizações sociais, OSCIPs e demais entidades do “terceiro setor” Tarso Cabral Violin Professor de Direito Administrativo da Universidade Positivo; Coordenador e Professor da Pós-Graduação em Direito do Terceiro Setor da Universidade Positivo; Mestre em Direito do Estado pela UFPR; Autor do livro “Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica”, pela editora Fórum; Advogado e Consultor Jurídico em Licitações e Contratos Administrativos, Terceiro Setor e Direito Administrativo.

O Estado Social de Direito representou, até a presente fase histórica, o modelo mais avançado de progresso, a exibir a própria evolução espiritual da espécie humana. A Constituição Brasileira de 1988 representa perfeitamente este ideário, que, todavia, entre nós, jamais passou do papel para a realidade. Celso Antônio Bandeira de Mello No Brasil, da década de 90 do século XX até a atualidade, sejam nos Governos federal, estaduais ou municipais, verificamos uma tendência de desresponsabilização do Estado na execução direta de atividades sociais e repasse destas responsabilidades principalmente para entidades do chamado “terceiro setor”. Será que esta ação é compatível com a Constituição da República? Qual é o papel do Estado e das organizações não-governamentais – ONGs – na prestação dos serviços sociais? As organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs – podem ser utilizadas para terceirização/privatização de atividades executadas pelo Estado? São questões como estas que pretendemos analisar no presente estudo.1,2 1) O termo “privatização” utilizado em sentido amplo, conforme DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública, 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 25. 2) Muitos temas tratados neste trabalho são analisados com mais profundidade em nossa obra VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum, 2006. Recomendamos leitura, ainda, de MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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1 A OBRIGAÇÃO DO ESTADO NA PRESTAÇÃO DIRETA DOS SERVIÇOS SOCIAIS A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece uma divisão em ordem econômica e ordem social. Com relação à ordem econômica, fica mais claro o caráter de subsidiariedade do Estado na prestação direta de atividades econômicas. Ou seja, sem adentrarmos na questão do serviço público (art. 175), as atividades econômicas apenas poderão ser exploradas diretamente pelo Estado quando necessárias aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173), além é claro dos casos de monopólio da União (art. 177).3 Entretanto, quando analisamos a ordem social tratada a partir do art. 193 a situação se inverte, pois a Constituição é clara ao responsabilizar o Estado como ator importante - e talvez principal - na questão social, principalmente na educação, saúde e assistência social. Preliminarmente, o próprio art. 193 dispõe que a ordem social objetiva o bemestar social e a justiça social, deixando claro o caráter social - e não neoliberal - de nossa Constituição, que busca um Estado do Bem-Estar Social.4 Celso Antônio Bandeira de Mello entende que a Constituição de 1988 “apresenta-se como uma estampada antítese do neoliberalismo” o que “arrasa liminarmente e desacredita do ponto de vista jurídico quaisquer veleidades de implantação, entre nós, do ideário neoliberal”.5 3) Sobre o princípio da subsidiariedade ver VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. 4) Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello “o Estado Social de Direito representou, até a presente fase histórica, o modelo mais avançado de progresso, a exibir a própria evolução espiritual da espécie humana. A Constituição Brasileira de 1988 representa perfeitamente este ideário, que, todavia, entre nós, jamais passou do papel para a realidade. É verdade que nos recentes últimos anos o Estado Social de Direito passou, em todo o mundo, por uma enfurecida crítica, coordenada por todas as forças hostis aos controles impostos pelo Estado e aos investimentos públicos por ele realizados. Pretenderam elas reinstaurar o ilimitado domínio dos interesses econômicos dos mais fortes, tanto no plano interno de cada País quanto no plano internacional, de sorte a implantar um não-abertamente confessado ‘darwinismo’ social e político. Este movimento estribou-se em uma gigantesca campanha publicitária denominada ‘globalização’, que preconizou um conjunto de providências concretas representativas do chamado ‘neoliberalismo’. É bem de ver, todavia, que tal movimento não passa, na História, de um simples ‘soluço’, e já começa a se despedir”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 49-50. Sobre o Estado Social ver VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. 5) É lapidar a análise do autor sobre o neoliberalismo: “Compreende-se que pessoas alheias ao meio jurídico e ignorantes das bases em que se assenta a República defendam a aplicação em nosso Direito de lineamentos e instituições típicas do neoliberalismo, supondo que aquilo que é proposto como bom pela propaganda externa – e que certamente o é para os interesses dos países cêntricos, de suas multinacionais, e para a especulação financeira internacional – é bom para o Brasil, e deve ser de imediato aqui aplicado, como fez com incontido entusiasmo o Governo que assolou o País entre janeiro de 1995 e final de 2002. Já as pessoas do meio jurídico, ao defenderem, como se possíveis fossem ao lume de nosso Direito, posições antitéticas a tudo o que consta da Constituição, e não apenas no que diz respeito a questões relacionadas com a ordem econômica, deixam à mostra um humilhante servilismo mental, típico dos povos subdesenvolvidos, que orgulhosamente exibem, na crença de que são modernos, de que estão up to date com o que é difundido pelos países cêntricos, notadamente Estados Unidos, a partir de idéias gestadas, grande parte delas, na Inglaterra durante o período da sra. Tatcher. Chega a ser grotesco a tentativa que alguns fazem – convictos de que assim se revelam evoluídos e atualizados – de assimilar nosso Direito a modelos plenamente compatíveis com as ordens constitucionais alienígenas, mas inteiramente inadaptados à nossa. Deste

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Discorreremos sobre vários dispositivos constitucionais os quais, a nosso ver, obrigam uma atuação direta do Estado na ordem social. As ações na área da seguridade social (saúde, previdência e assistência social) competem ao Poder Público e à sociedade (art. 194).6 Ou seja, nesta área em nenhum momento a Constituição define que é a sociedade a principal responsável na execução das políticas. A saúde é um dever do Estado e sua execução deve ser feita pela Administração Pública ou pela sociedade, sendo que uma das diretrizes é a participação da comunidade. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada, que participa de forma complementar ao sistema único de saúde, com a preferência de entidades filantrópicas e sem fins lucrativos e sendo vedados auxílios e subvenções a empresas com fins lucrativos (arts. 196-199).7 Na área da saúde fica claro que o Estado deve ser responsável por executar diretamente os serviços, sendo possível, sem a necessidade de concessão ou permissão, que entidades privadas, sejam do mercado (empresas com fins lucrativos) ou do “terceiro setor” (entidades sem fins lucrativos), prestem este serviços. De qualquer forma, a participação da comunidade poderá se dar na execução direta de serviços de saúde, mas também por meio da fiscalização e cobrança das políticas, por meio, por exemplo, de conselhos gestores da política da saúde com participação popular.8 José Afonso da Silva é claro ao interpretar que a Constituição obriga que o Estado preste os serviços de saúde, pela Administração Pública direta ou por suas entidades da Administração Pública indireta.9 teor são as exortações quase que infantis em prol de uma ‘exegese evoluída de nosso Direito Constitucional’, que enseje propiciar amplo poder normativo às agências reguladoras, ou para a submersão da idéia de serviço público a bem da economia de mercado e livre concorrência. Não se sabe que acrobacia exegética será capaz de dar ao dispositivo transcrito um sentido consentâneo com as aspirações dos nossos arautos jurídicos embasbacados com os ares modernos do neoliberalismo”. Obra citada, p. 763-764. Sobre o neoliberalismo ver VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. 6) “Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. 7) “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...) III - participação da comunidade. Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”. 8) Maria Sylvia Zanella Di Pietro aduz: “É importante realçar que a Constituição, no dispositivo citado, permite a participação de instituições privadas ‘de forma complementar’, o que afasta a possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado serviço. Não pode, por exemplo, o Poder Público transferir a uma instituição privada toda a administração e execução das atividades de saúde prestadas por um hospital público ou por um centro de saúde; o que pode o Poder Público é contratar instituições privadas para prestar atividades-meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, como os inerentes aos hemocentros, realização de exames médicos, consultas etc.; nesses casos, estará transferido apenas a execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde, mas não sua gestão operacional”. Obra citada, p. 243. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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A previdência social também será de responsabilidade do Estado, e a previdência privada terá caráter complementar (arts. 201 e 202).10 Para a esfera federal do Poder Público cabe apenas a coordenação e a edição de normas gerais sobre a assistência social, sendo que as esferas estaduais e municipais do Estado serão responsáveis pela execução dos programas, cabendo também às entidades beneficentes e de assistência social, com a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (art. 204).11 Ou seja, os Estados e os Municípios deverão executar políticas na área da assistência social, que também poderão ser efetivadas pelas entidades sem fins lucrativos de interesse público. A educação é um dever do Estado e da família e será promovida com a colaboração da sociedade, sendo livre à iniciativa privada, fiscalizada e autorizada pelo Poder Público (art. 205-213).12 No caso da educação, a Constituição é ainda mais incisiva em definir que serão o Estado e a família os principais atores na execução de políticas, e a sociedade será uma colaboradora. O papel da sociedade de colaborador na questão da educação, em nosso ordenamento jurídico, não pode, de forma alguma, transformar a sociedade civil, as entidades do “terceiro setor”, como principais atores ou mesmo como únicos responsáveis na prestação dos serviços educacionais. Neste caso, é clara a subsidiariedade da sociedade civil na prestação destes serviços, e não do Estado. Maria Sylvia Zanella Di Pietro aduz que a gestão democrática do ensino público citada na Constituição “significa a participação do particular na gestão e não a transferência da gestão ao particular”.13 José Afonso da Silva salienta que o Estado deve prestar diretamente os serviços de educação, e 9) SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 768. 10) “Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (...) Art. 202. O regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar”. 11) “Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. 12) “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; (...) VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; (...) Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: (...) II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. (...) Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. (...) § 2º - As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio financeiro do Poder Público”. 13) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 245.

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como exceção o repasse de recursos para entidades privadas, ao entender que “a preferência constitucional pelo ensino público importa que o Poder Público organize os sistemas de ensino de modo a cumprir o respectivo dever com a educação, mediante prestações estatais” e que “faculta-se, por exceção, dirigir recursos públicos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”.14 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o poder público promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, com a colaboração da comunidade (arts. 215 e 216).15 Também verificamos neste caso a questão do papel de colaborador da sociedade, e não de principal ator. É dever do Estado fomentar o desporto (art. 217).16 Talvez seja a área do desporto a única que a Constituição define o Estado com o papel de fomentador, e não de executor. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas (art. 218).17 Nesta área o Estado também tem a função de promoção direta, não apenas de incentivo. Nesse sentido, José Afonso da Silva: “promover significa, neste contexto, realizar, por si próprio, aquelas tarefas, especialmente por meio de suas universidades e institutos especializados”.18 Na área de comunicação social, deve ser respeitado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão (art. 223).19 A Constituição obriga que o Estado preste diretamente serviços de radiodifusão, não podendo esta área ficar apenas sob a responsabilidade da iniciativa privada, seja com ou sem fins lucrativos.20 Impõem-se ao Poder Público e à coletividade a defesa e preservação do meio ambiente (art. 225).21 Definição, portanto, de responsabilidade conjunta nesta área. 14) SILVA, José Afonso da. Obra citada, p. 790. 15) “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. (...) Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. 16) “Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:” 17) “Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.” 18) SILVA, José Afonso da. Obra citada, p. 817. 19) “Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.” 20) Celso Antônio Bandeira de Mello entende que com relação aos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens o Estado é obrigado a prestar por si ou por criatura sua (“o Estado não pode se ausentar de atuação direta”), em face ao princípio a complementaridade. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Obra citada, p. 667 e 668. 21) “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.” RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Com absoluta prioridade os direitos da criança e do adolescente devem ser assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado. O Estado deve promover programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais (art. 227).22 Nesta área as responsabilidades são distribuídas, ficando preponderantemente apenas a questão da saúde para a prestação direta do Estado às crianças e aos adolescentes. Também é de responsabilidade conjunta o amparo ao idoso (art. 230).23 Com relação aos índios, cabe ao Estado, e mais especificamente à União, demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens dos primeiros moradores das Américas.24 Celso Antônio Bandeira de Mello aduz que os chamados serviços públicos sociais, como saúde, educação, previdência social e assistência social (serviços públicos não-privativos), assim como os serviços de radiodifusão sonora de sons e imagens devem ser desempenhados pelo Estado, sendo lícito os particulares desempenhá-los independentemente de concessão, mas “o Estado não pode permitir que sejam prestados exclusivamente por terceiros”.25 Entendemos que o Estado tem um papel importante na execução direta de serviços sociais como educação, saúde, assistência social, etc. É permitido que a iniciativa privada preste estes serviços, que serão fiscalizados e em alguns momentos autorizados pelo Poder Público, mas é obrigatório que o Estado tenha o seu aparelhamento para prestação direta dos serviços sociais. Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que “não tem fundamento jurídico, no direito brasileiro, a terceirização que tenha por objeto determinado serviço público como um todo”.26 Assim, não é possível, por exemplo, que determinado município repasse toda a gestão da educação ou saúde pública para entidades do “terceiro setor”.27 Tratando das organizações sociais, mas com posição também aplicável às OSCIPs, Celso Antônio Bandeira de Mello entende que “no art. 196 a Constituição prescreve que a saúde é ‘dever do Estado’ e nos arts. 205, 206 e 208 configura a educação e o ensino como deveres do Estado, circunstâncias que o impedem de se despedir dos correspondentes encargos de prestação pelo processo de trans22) “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:” 23) “Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.” 24) “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” 25) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Obra citada, p. 666, 668 e 782. 26) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 239. 27) Sobre os serviços públicos sociais ver VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica.

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passá-lo a organizações sociais”. Uma vez que os serviços sociais são não-exclusivos (ou não-privativos) do Estado, não cabe a concessão ou permissão de serviços públicos. O autor citado aduz que “como sua prestação se constitui em ‘dever do Estado’, conforme os artigos citados (arts. 205, 206 e 208), este tem que prestá-los diretamente. Não pode eximir-se de desempenhá-los, motivo pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos deveres constitucionais aludidos pela via transversa de ‘adjudicá-los’ a organizações sociais. Segue-se que estas só poderiam existir complementarmente, ou seja, sem que o Estado se demita de encargos que a Constituição lhe irrogou”.28,29

2 A TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA O termo terceirização pode ser utilizado em sentido amplo, quando define a introdução de um terceiro no desenvolvimento de uma atividade do Estado, englobando, por exemplo, as concessões de serviços públicos, que repassam a própria gestão de todo o serviço público. Neste trabalho utilizaremos a expressão em sentido estrito, para definir a vinculação de terceiros à execução material, não implicando a transferência da gestão de serviço público.30 É importante ressaltar que o que se terceiriza é a prestação de serviços de atividade-meio, e não a disponibilização de mão-de-obra. Segundo Dora Maria de Oliveira Ramos: A empresa de colocação de mão-de-obra, assumindo uma atitude de exploração do trabalho alheio, intermedia a relação entre patrão e empregado, subtraindo uma parte da remuneração deste. Por equiparar ‘trabalhador’ e ‘mercadoria’, é prática repudiada pela doutrina e jurisprudência. A vedação de intermediação de mão-de-obra prestigia princípios ligados à moral, que objetivam desestimular a exploração do homem pelo homem. Na Administração Pública, acresça-se que a contratação de pessoal exige a realização de concurso público (artigo 37, II, da Constituição Federal).31

Sobre terceirização, o Enunciado nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho – TST, dispõe o seguinte: I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). 28) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Obra citada, p. 232. 29) Sobre as organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs, ver VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. 30) Sobre o tema ver RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Terceirização na Administração Pública. São Paulo: LTr, 2001, p. 55. 31) RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Obra citada, p. 58-59. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-06-1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993). (Grifo nosso.)

Assim, tanto no âmbito privado quanto na Administração Pública, é possível a contratação de serviços ligados à atividade-meio do tomador do serviço, sendo ilícita simples locação de mão-de-obra, com a existência de pessoalidade e subordinação direta, assim como também é contrário ao ordenamento jurídico a terceirização de atividades-fim. Enfim, a terceirização na Administração Pública apenas será lícita se as atividades repassadas para terceiros forem relativas às atividades-meio do órgão ou entidade estatais, e ainda se inexistente a pessoalidade e a subordinação direta (lembrando que normalmente a doutrina trabalhista ainda acrescenta a onerosidade e não-eventualidade ou continuidade). Dora Maria de Oliveira Ramos exemplifica a contratação de professores para uma escola ou de médicos para um hospital como terceirização ilícita, pois há o repasse de atividades-fim do tomador ao terceirizado. A própria autora informa que não há lei expressa que impeça a terceirização na atividade-fim do terceirizante, mas afirma que a Justiça estabelece esta condição como presunção relativa de que, nesta situação, haverá fraude aos direitos dos trabalhadores.32 Para não caracterizar a pessoalidade, na terceirização lícita, para a Administração Pública, independe qual a pessoa física que irá exercer as atividades. Para ser caracterizada a subordinação direta, é necessário que o administrador público dirija os serviços diretamente, dando ordens aos empregados da empresa terceirizada e submetendo-os ao seu poder disciplinar. Para Dora Maria de Oliveira Ramos na terceirização ilícita “o prestador nada mais faz do que colocar o trabalhador à disposição do tomador do serviço”.33 Maria Sylvia Zanella Di Pietro ainda aduz que “se o tomador do serviço escolhe o trabalhador, dá ordens diretas a ele e não à empresa, exerce sobre ele o poder disciplinar, aplicando-lha penalidades; se a empresa contratada se substitui mas os trabalhadores continuam, o que ocorre é fornecimento de mão-de-obra, porque estão presentes a pessoalidade e a subordinação direta”.34 A terceirização ilícita realizada por empresas privadas gera o vínculo em32) RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Obra citada, p. 71. 33) Ibid, p. 66-67. 34) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 233.

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pregatício, e para a Administração Pública, como o vínculo apenas pode se dar, como regra, por concurso público (art. 37, II, CF), gera responsabilização, como, por exemplo, a caracterização de improbidade administrativa dos responsáveis, ressarcimentos por prejuízos aos cofres públicos, etc. Di Pietro, ainda, observa: “O que a Administração Pública não pode fazer é contratar trabalhador com intermediação de empresa de prestação de serviços a terceiros, porque nesse caso o contrato assume a forma de fornecimento de mão-de-obra, com burla à exigência de concurso público”.35,36

3 A TERCEIRIZAÇÃO POR MEIO DAS ENTIDADES DO “TERCEIRO SETOR” Além da questão de que o Estado é um ator fundamental na prestação direta de serviços sociais, segundo nossa Constituição de 1988, outro ponto que deve ficar claro é que qualquer repasse de atuações do Estado para o “terceiro setor” apenas pode ocorrer com relação às atividades-meio das entidades estatais. Seria a chamada terceirização lícita já tratada. Quando a Administração Pública firma um acordo de vontade com terceiros para que estes exerçam alguma atividade para o Poder Público, seja por meio de contratos administrativos, convênios, contratos de gestão, termos de parceria, ou qualquer outra denominação, isso será denominado terceirização.37 Entendemos que qualquer terceirização a ser realizada pela Administração Pública, independentemente do instrumento a ser utilizado, apenas será lícita se o objeto for a execução de alguma atividade-meio do órgão ou entidade estatal.38 Não há sentido que se entenda que não pode a Administração Pública ter35) Ibid, p. 233. 36) Art. 37 da Constituição: “II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;”. As exceções para a contratação de servidores sem concurso público é a contratação de comissionados, nos termos do próprio inc. II, e de temporários, conforme o inc. IX do art. 37. 37) Sobre o tema ver VIOLIN, Tarso Cabral. A terceirização ou concessão de serviços públicos sociais. A privatização de creches municipais. In: Informativo de Direito Administrativo e Responsabilidade Fiscal – IDAF nº 13, agosto/2002, Curitiba: Zênite. 38) Note-se que muitos entes da Administração Pública vêm firmando parcerias com o “terceiro setor” para fugir dos limites com gastos de pessoal fixados na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000). Ora, qualquer terceirização com o intuito de substituição e servidores deve ser contabilizada como despesas com pessoal, nos termos do parágrafo 1º do art. 18 da LRF: “Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência. § 1. Os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como “Outras Despesas de Pessoal”. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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ceirizar atividades-fim do Estado para a iniciativa privada, por meio de contratos administrativos regidos pela Lei 8.666/93, por se considerar esta prática como burla ao concurso público, e permitir a terceirização de atividades-fim para entidades do “terceiro setor” por meio de convênios, contratos de gestão com organizações sociais e termos de parceria com OSCIPs. As normas que tratam dos convênios, dos termos de parceria com as OSCIPs (Lei 9.790/99) ou dos contratos de gestão com as organizações (Lei 9.637/98), em qualquer momento alteram o ordenamento jurídico brasileiro no sentido de permitirem que o Estado repasse atividades próprias, serviços sociais, para o “terceiro setor”. Gustavo Justino de Oliveira e Fernando Borges Mânica ressaltam “que a OSCIP deve atuar de forma distinta do Poder Público parceiro, ou seja, deve ser clara a separação entre os serviços públicos prestados pela entidade pública e as atividades desenvolvidas pela OSCIP (...) impedindo-se, assim a caracterização de uma forma ilegal de terceirização de serviços públicos. Afinal, o termo de parceria é instrumento criado para que entidades do terceiro setor recebam incentivo para atuar ao lado do ente público, de maneira distinta dele, e não para que substitua tal ente, fazendo as vezes do Poder Público”.39 Note-se que todos os instrumentos citados são possíveis de serem utilizados para fins de fomentar o “terceiro setor”, que é um dos papéis do Estado. Di Pietro defende o papel de fomentador do “terceiro setor” pelo Estado, mas aduz que a extinção de órgãos ou entidades estatais e a paulatina diminuição da prestação de serviços sociais pelo Estado, apenas com o incentivo da iniciativa privada por meio das parcerias “em muitos casos, poderá esbarrar em óbices constitucionais, já que é a Constituição que prevê os serviços sociais como dever do Estado e, portanto, como serviço público”.40 Walter Claudius Rothenburg também entende ser ilícito repassar para organizações sociais, para a gerência e prestação ampla dos serviços de saúde, por ser esta uma atribuição típica do Estado, assim como que na área da educação devem ter universidades mantidas pelo próprio Estado, sendo possível a contratação com a iniciativa privada de serviços ancilares.41 39) OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de, MÂNICA, Fernando Borges. Organizações da sociedade civil de interesse público: termo de parceria e licitação. In: Fórum administrativo – Direito Público, ano 5, nº 49. Belo Horizonte: Fórum, mar/2005, p. 5209-5351. 40) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 264 e 269. Sobre a fuga do regime jurídico administrativo e as parcerias, a autora ainda indaga: “qual a razão pela qual a Constituição estabeleceu normas sobre licitação, concurso público, controle, contabilidade pública, orçamento e as impôs para todas as entidades da Administração Pública? Será que as impôs porque se entendeu que elas são essenciais para proteger a coisa pública ou foi apenas por amor o formalismo? E se elas são essenciais, como se pode conceber que, para escapar às mesmas, se criem institutos paralelos que vão administrar a mesma coisa pública por normas de direito privado, inteiramente à margem das normas constitucionais?”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 296. Ver ainda VIOLIN, Tarso Cabral. uma análise crítica. Sobre fomento ver ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros, 2003. 41) ROTHENBURG, Walter Claudius. Algumas considerações sobre a incidência de direitos fundamentais nas relações do Estado com empresas e Organizações Sociais. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de (Coord.). Terceiro Setor, Empresas e Estado; novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 107.

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CONCLUSÕES Diante de todo o exposto, entendemos o seguinte: 1. Nossa Constituição de 1988 é uma Constituição Social, que na ordem social obriga a atuação direta do Estado dos serviços sociais, nas áreas da educação, saúde, assistência social, etc.; 2. Não é possível que, por exemplo, prefeituras terceirizem toda a gestão da saúde e educação para entidades do “terceiro setor” qualificadas como organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs; 3. Ao contrário das atividades econômicas tratadas na ordem econômica da Constituição, nas quais a participação do Estado pode ser considerada como subsidiária, os serviços sociais devem ser prestados pelo Poder Público, de forma democrática, fiscalizados pela sociedade civil, que também deve participar na formulação de políticas, por meio, por exemplo, dos conselhos gestores de políticas públicas; 4. A iniciativa privada, com fins lucrativos (mercado) ou sem fins lucrativos (“terceiro setor”), também pode prestar estes serviços, até com o fomento do Estado - de preferência para o “terceiro setor” -, mas não como resultado da desresponsabilização do Estado na prestação direta destas atividades; 5. A Administração Pública apenas pode terceirizar suas atividades-meio (execução material), seja utilizando-se de contratos com empresas e entidades do “terceiro setor”, convênios com o “terceiro setor”, contratos de gestão com organizações sociais e termos de parceria com OSCIPs; 6. Não pode o Poder Público firmar um contrato, convênio ou termo de parceria com entidades do “terceiro setor”, seja para repassar atividades-fim, a gestão de todo um aparelho público prestador de serviços públicos sociais, ou mesmo disponibilizar mão-de-obra, sob pena de caracterização de burla ao princípio constitucional do concurso público; 7. Assim, a disponibilização de professores para escolas públicas ou de médicos para hospitais públicos não poderá ocorrer por meio de contratos, convênios, contratos de gestão ou termos de parceria, com empresas, associações de utilidade pública, organizações sociais, OSCIPs, cooperativas; 8. Mesmo se condizente com a atividade-meio da Administração Pública, não poderá a terceirização tratada neste estudo servir para disponibilização de pessoal com a caracterização de pessoalidade e subordinação direta.

REFERÊNCIAS BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de, MÂNICA, Fernando Borges. Organizações da sociedade civil de interesse público: termo de parceria e licitação. In: Fórum administrativo – Direito Público, Público ano 5, n. 49. Belo Horizonte: Fórum, mar/2005, p. 5209-5351. ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros, 2003. RAMOS, Dora Maria de Oliveira. Terceirização na Administração Pública. São Paulo: LTr, 2001. ROTHENBURG, Walter Claudius. Algumas considerações sobre a incidência de direitos fundamentais nas relações do Estado com empresas e Organizações Sociais. In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de (Coord.). Terceiro Setor, Empresas e Estado; novas fronteiras entre o público e o privado. Belo Horizonte: Fórum, 2007. SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. VIOLIN, Tarso Cabral. A terceirização ou concessão de serviços públicos sociais. A privatização de creches municipais. In: Informativo de Direito Administrativo e Responsabilidade Fiscal – IDAF n. 13 13, agosto/2002, Curitiba: Zênite. VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

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A possibilidade de usucapião dos bens pertencentes às sociedades de economia mista

Cristina Malaski Almendanha Acadêmica de Direito da Universidade Positivo

1 INTRODUÇÃO A pretensão do presente trabalho é estabelecer um parâmetro entre a possibilidade de usucapião dos bens pertencentes às sociedades de economia mista e o princípio da função social da propriedade urbana. Sob esse aspecto, cumpre, então, destacar a situação fática vivenciada por acadêmicos, professores e profissionais da área de Psicologia, Serviço Social e Arquitetura, envolvidos no Projeto de Extensão Direito e Cidadania. Referido projeto visa proporcionar às comunidades envolvidas - Vilas Eldorado, Nova Conquista e Esperança -, a conquista de seus direitos por intermédio da regularização fundiária de suas áreas. O projeto Direito e Cidadania é coordenado pela ONG Terra de Direitos, tendo por parceiros a Ambiens Sociedade Cooperativa, o Conselho Regional de Serviço Social e as universidades Positivo, UFPR e PUCPR, sendo conveniado com o Ministério das Cidades e com a Caixa Econômica Federal. As famílias envolvidas com a atuação do projeto, ocupam, desde a década de 80, um grande conjunto de ocupações localizadas na Cidade Industrial de Curitiba (CIC) - denominado Bolsão Sabará -, contando com aproximadamente 20 mil pessoas, que, em sua maioria, sempre manifestaram interesse na regularização de sua situação perante o poder público municipal. A área ocupada pelas famílias das três comunidades referidas é de propriedade da empresa Curitiba S/A, uma sociedade de economia mista, fato que merece algumas considerações, em vista das divergências existentes quanto à classificação dos bens de referidas sociedades.

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2 A TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE: DO ESTADO MODERNO À FUNÇÃO SOCIAL 2.1 DA PROPRIEDADE INDIVIDUAL

Historicamente falando, Laura Beck Varela1 afirma que, no Brasil, a propriedade privada formou-se a partir da propriedade pública, isto é, do patrimônio da Coroa Portuguesa, que detinha o domínio das terras conquistadas. A autora assevera que o usucapião, as cartas das sesmarias e as posses sobre as terras devolutas eram as três formas jurídicas de transferência do patrimônio público para o privado. As sesmarias eram concessões dominiais, de origem pública por serem patrimônio da Coroa Portuguesa -, e representavam uma forma de domínio revestida de diversos deveres jurídicos aos cessionários, entre eles, por exemplo, a obrigação de cultivo de determinados produtos e limites quanto à criação de animais, entre outros. Nesse sentido, as sesmarias consistam em formas de propriedade não-absoluta, condicionada à obrigatoriedade de cultivo e vigoraram no Brasil até 1822, quando uma Resolução de 17 de julho daquele ano extinguiu o regime sesmarial. Varela informa que a Lei nº 601 - Lei de Terras - de 1850 constituiu grande marco na história da propriedade privada brasileira, de modo que seu regulamento, do ano de 1854, ofereceu as bases legislativas para a disciplina jurídica do direito de propriedade, nos moldes liberais, como um direito absoluto, exclusivo, perpétuo, exercido sob limites precisos e não mais condicionado pelos deveres característicos de domínio das sesmarias. Cortiano Junior, citando Luis Edson Fachin2, afirma que a história do direito sempre foi representada pela história da garantia da propriedade e que as sociedades se estruturam conforme a legitimidade das relações de apropriação dos bens. Segundo o autor, a propriedade, por ter um valor socialmente paradigmático, tornou-se objeto de estudo de filósofos, economistas e cientistas políticos, de modo que se passou a ter um discurso proprietário. Nas palavras do autor “um determinado modelo de propriedade torna-se em princípio do direito moderno”, fazendo com que a concepção de propriedade, baseada numa organização social e política racional-individualista ocupasse o “centro do universo jurídico”. Carlos Frederico Marés3 ensina que John Locke (1632-1704) foi o grande pensador da propriedade contemporânea, anotando que antes dele a civilização cristã entendia a propriedade como uma utilidade, sendo que após as contribuições de Locke a sociedade passou a ver o instituto como um direito subjetivo independente. Locke, segundo afirma Marés, teria retomado a idéia de que a origem ou o fundamento da propriedade seria o trabalho humano. 1) VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade, construção de um Direito. In: A reconstrução do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 749. 2) FACHIN, Luis Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 71. 3) MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 184.

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Especificamente no direito brasileiro, o Código Civil de 1916 (art. 524, caput) estampava a propriedade absoluta, como símbolo do poder econômico e político, de modo que ao proprietário era assegurado o uso e o gozo do bem, cabendo-lhe reaver a propriedade contra quem injustamente a detivesse ou possuísse.

2.2 DA FUNÇÃO SOCIAL

Laura Beck Varela4 afirma que o direito de propriedade é um direito subjetivo, que tem por escopo o cumprimento de uma função social. Todavia, segundo a autora, existe uma visível incompatibilidade entre os conceitos de função social e de direito subjetivo, traduzida pela oposição entre dever e liberdade e entre direito civil renovado e direito civil oitocentista. Nesse sentido, o direito proprietário, conforme anota Varela, deve ser compreendido na dimensão de sua historicidade, com observância do binômio construção/reconstrução. A reconstrução do direito da propriedade, segundo a autora, possui sua essência na função social. Nas palavras de Varela: “A propriedade, portanto, além de ser um direito individual, está condicionada pelo princípio da função social, princípio informador de toda a ordem econômica nacional”. No entendimento da autora, o direito de propriedade configura um “poder-função” e, seguindo essa mesma linha de raciocínio, Fábio Konder Comparato5 o caracteriza como um “poder-dever positivo”. Nesse sentido é que deve ser interpretado o parágrafo primeiro do art. 1.228 do Código Civil, o qual prevê, expressamente, que a propriedade, embora tida como plena e exclusiva pelo art. 1.231 do mesmo diploma legal, deve cumprir suas finalidades econômicas e sociais. Segundo Varela, essa inserção de deveres na essência do direito de propriedade é que o caracterizaria como um poder-dever, consubstanciado em um direito-função. O art. 5º, incisos XXII e XXIII da Constituição Federal, declara o direito à propriedade, agregando-lhe, logo em seguida, a exigência do cumprimento de uma função social. Eroulths Cortiano Junior6, em alusão ao entendimento de Orlando Gomes7, afirma que a função social não se confunde com a imposição de limites ao exercício do direito de propriedade, destacando, ademais, que tal direito deixou de ser individualístico. O autor considera que a dita função social representa uma ruptura do discurso proprietário, já que contemporaneamente o operador do direito deve analisar a situação concreta que lhe é apresentada, para então adequar o direito em abstrato às modificações por que passa cada comunidade. 4) VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade, construção de um Direito. In: A reconstrução do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 763/788. 5) COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. In: Revista de Direito Mercantil, v. 63, p. 79. 6) JUNIOR. Eroulths Cortiano. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 150. 7) GOMES, Orlando. A função social da propriedade. Coimbra, número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. 2. 1989, p. 1989. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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O autor também considera que o surgimento do Estado Social ocasionou verdadeira ruptura com o tradicional modelo de propriedade do Estado Liberal (propriedade individual e intocável), fazendo com que se visualizasse seu uso de forma funcional, isto é, de maneira que levasse em conta os interesses da coletividade. Cortiano Junior, desta vez recorrendo às idéias de Pietro Barcellona8, informa três pretensões do Estado Social: a igualdade material e não meramente formal, o reconhecimento da subjetividade social, no lugar da subjetividade abstrata e o princípio da solidariedade e da intervenção do Estado na economia. O autor afirma que a partir destes pressupostos foram renovados os institutos jurídicos da propriedade e da autonomia contratual. Os postulados referidos, segundo Barcelonna, seriam os responsáveis pelas novas relações entre Estado e sociedade, as quais resultaram numa nova realidade econômica, principalmente no tocante à distribuição de renda e ao uso dos bens (que deixou de ser egoístico). Frise-se, a título elucidativo, que o Estado tido por Social padece de conceituação pacificada no ordenamento jurídico pátrio. Afinal, a Constituição Federal de 1988 não deixou clara se a intenção do Estado brasileiro era de representar um Estado liberal ou, talvez, neoliberal ou, ainda, apenas e tão-somente um Estado Democrático de Direito, como consta, efetivamente, no preâmbulo e no art. 1º do texto constitucional. De qualquer forma, afastadas as discussões acerca da verdadeira identidade do Estado Brasileiro, já que não constituem objeto do presente trabalho, adota-se, aqui, a terminologia de Estado Social. O Novo Código Civil, de 2002, manteve, em seu art. 1.228, o direito do proprietário de usar e gozar da propriedade, exigindo, todavia, que esta cumpra sua finalidade econômica e social (§ 1º). O mesmo artigo, em seu parágrafo 4º, assim dispõe: § 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

Referido dispositivo, meramente exemplificativo, expressa, de forma inequívoca, a preocupação do legislador infraconstitucional em dar efetividade à função social da propriedade, preconizada no texto constitucional. Analisando o conceito de propriedade, da maneira como concebido na modernidade, e da forma como hoje é visto, é possível afirmar que a principal mudança decorre da função social que lhe foi agregada. A propriedade, antes relacionada ao poder político e econômico, inserida num contexto em que o direito era extremamente patrimonialista e individualista, passa a representar um direito subjetivo, informado por princípios constitucionais, como o da igualdade e o da dignidade da pessoa humana, dependente, acima de tudo, do exercício de uma função social. 8) BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Madrid: Trotta, 1996, p. 115.

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3 A POSSE COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Laura Beck Varela considera a existência de três significados da posse: 1) conteúdo de certos direitos, como os da propriedade, do usufruto e da habitação; 2) requisito para aquisição de direitos reais e 3) posse “per se”, não subordinada a nenhum direito e não configurando requisito para sua aquisição. A autora destaca a duplicidade da natureza jurídica da posse, a qual seria, ao mesmo tempo, um fato e um direito. A posse, segundo Varela, não se reduz a mero conteúdo, conseqüência ou presunção do direito de propriedade, sendo, ao revés, condição determinante de alguns direitos, no sentido de que não só o proprietário tem o direito de possuir possuir. Laura Beck Varela anota que a posse e a propriedade são institutos autônomos, amparados por princípios constitucionais distintos, enfatizando, ainda, que apesar de a Constituição Federal não assegurar, de forma explícita, o direito à posse, ela indubitavelmente tutela o instituto quando da necessidade de obter finalidades específicas, como a concretização do princípio da função social da propriedade propriedade. Ainda segundo a autora, pode-se afirmar que a proteção da posse funciona como presunção iuris tantum do resguardo do direito proprietário, representando um complemento para o conteúdo da propriedade. A posse, sozinha, não encontra sentido no ordenamento jurídico pátrio, só encontrando utilidade na tarefa de proteger a propriedade. A tutela possessória, segundo afirma Varela, também engloba o não-proprietário, ou seja, aquele que possui, mas não tem o título de proprietário. Além disso, é importante destacar as formas legalmente admitidas para a aquisição da propriedade, ou melhor, para a concretização da função social da propriedade.

4 FORMAS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE A Constituição Federal, por excelência, o Código Civil de 2002 e o Estatuto das Cidades constituem verdadeiros instrumentos de garantia da função social da propriedade propriedade. O usucapião, assim como o parcelamento compulsório e a desapropriação, representam algumas das formas de aquisição da propriedade, representando, também, modos de concretização da função social a ela inerente. Veja-se o disposto no art. 4º do Estatuto das Cidades: Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: (...) V – institutos jurídicos e políticos: a) desapropriação b) servidão administrativa; c) limitações administrativas; d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; e) instituição de unidades de conservação; f) instituição de zonas especiais de interesse social; g) concessão de direito real de uso; h) concessão de uso especial para fins de moradia; RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios compulsórios; j) usucapião especial de imóvel urbano urbano; l) direito de superfície; m) direito de preempção; n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; o) transferência do direito de construir; p) operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária; r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos; s) referendo popular e plebiscito (grifo nosso).

O parcelamento e a edificação compulsórios consistem em instrumentos passíveis de utilização pelos Municípios como forma de impor aos proprietários de imóveis urbanos a destinação social dos imóveis, em consonância com o disposto no Plano Diretor municipal. O Poder Público municipal estimula o proprietário, por exemplo, a construir ou a dar qualquer outra utilização ao imóvel, garantindo-se, assim, o uso social da propriedade. Quanto à desapropriação para fins de reforma urbana, cumpre transcrever o disposto no art. 182, § 4º, incisos I, II e III da Constituição Federal: § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais (destaquei).

A desapropriação prevista nesse dispositivo constitui exceção ao disposto no art. 5º, XXIV da Carta Magna, o qual prevê que a indenização será efetuada mediante prévia e justa indenização em dinheiro. A exceção se justifica pela necessidade de atribuir concretude ao princípio constitucional da função social, ou seja, o proprietário que não atender às condições previstas nos art. 5º e 7º da Lei nº 10.257/01, será penalizado com a desapropriação.

4.1 DO USUCAPIÃO COLETIVO DE IMÓVEL URBANO E DO ESTATUTO DAS CIDADES No tocante ao instituto do usucapião, o professor Luiz Edson Fachin9 anota que, depois de consumado, o direito já está incorporado ao patrimônio do usucapiente, constituindo-se em efeito da posse. O usucapião consumado e reco9) FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 25/66.

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nhecido judicialmente legitima a posse que lhe deu causa, gerando a aquisição de um direito real. O professor assevera que, não obstante tal consumação seja progressiva, ocorrendo com o passar do tempo, proferida a sentença declaratória, a determinação judicial opera efeitos retroativos à data do início da posse. Citando o entendimento do professor Armando Roberto Holanda Leite, Fachin acrescenta que o usucapião tem sido instrumento jurídico a serviço da redução dos males que surgem da acumulação egoísta de grandes áreas improdutivas. Como já mencionado, o usucapião, individual ou coletivo, consoante se depreende da leitura dos artigos 183 da Constituição Federal e, mais especificamente, do conteúdo dos artigos 1.196 a 1.224 do Código Civil, é considerado um efeito da posse. O art. 1.196, por exemplo, assim dispõe: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Desse modo, traçando um paralelo entre o disposto no texto constitucional e no Código Civil, e a situação das famílias atendidas pelo Projeto Direito e Cidadania, cumpre informar que para o reconhecimento do direito dessas pessoas foram intentadas ações judiciais de usucapião coletivo de imóvel urbano, instituto que será abaixo analisado. Tupinambá do Nascimento10 observa que a política de desenvolvimento urbano, prevista no art. 182 da Constituição Federal, foi implementada por meio da edição da Lei nº 10.257/2001, denominada Estatuto das Cidades, em que se criou, para o meio urbano, o usucapião especial urbano, com prescrição aquisitiva qüinqüenal para a população de baixa renda. O usucapião especial de imóvel urbano está entre os instrumentos elencados pelo Estatuto das Cidades para garantir a efetividade da política urbana no Brasil. O art. 10 de referido Estatuto assim dispõe: Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta mequadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua tros quadrados moradia moradia, por cinco anos anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. (grifo nosso)

A Lei nº 10.257/2001 estabelece, ainda, em seu art. 12, quem são os legitimados para a propositura da ação de usucapião especial urbano, explicitando a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público no feito. Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana: I – o possuidor possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente; II – os possuidores possuidores, em estado de composse; III – como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que 10) NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Posse e Propriedade. 3 ed. Porto alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 156/157. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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explicitamente autorizada pelos representados. § 1 o Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público. § 2o O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis. (grifo nosso)

Nas ações de usucapião coletivo a associação de moradores, legalmente constituída, devidamente autorizada pelos moradores e dotada de personalidade jurídica própria, é parte legítima para figurar no pólo ativo da demanda, como substituto processual. O trâmite processual da ação em comento obedecerá ao rito sumário, nos termos do art. 14, e a parte autora será beneficiada pela gratuidade da justiça, tanto na fase processual, como perante o cartório de registro de imóveis. O instituto do usucapião coletivo é declarado pelo juiz, mediante sentença, e serve como título a ser registrado no cartório de registro de imóveis. A sentença deverá conter, nos termos do mesmo art. 10, em seu parágrafo 3º, a atribuição de uma mesma fração ideal de terreno a cada possuidor, sendo irrelevante a dimensão do espaço que cada um ocupe, salvo acordo coletivo entre os condôminos, estabelecendo diferentes frações ideais. Pode-se dizer, com isso, que o Estatuto das Cidades representa um dos mais importantes meios de efetivação da função social da propriedade no ambiente urbano. Em tempo, vejamos o que diz a redação de seu art. 1º: urbana de que tratam os arts. 182 e Art. 1o Na execução da política urbana, 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei Lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, cidadãos bem como do equilíbrio ambiental. (grifo nosso)

Relativamente ao caso concreto das comunidades abrangidas pelo Projeto Direito e Cidadania, cumpre ressaltar que a área objeto das ações de usucapião urbano coletivo pertence a uma sociedade de economia mista, razão pela qual se faz necessária, também, a análise acerca dos institutos que envolvem essa forma de sociedade.

5 DA NATUREZA JURÍDICA DA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA A Constituição Federal, em seu artigo 173, reservou à lei a tarefa de estabelecer o estatuto jurídico das empresas públicas, das sociedades de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou que prestem serviços. Além de cuidar do estatuto das sociedades de economia mista, de suas subsidiárias e das empresas públicas, a lei deve dispor sobre a função social de tais empresas e sobre a forma de controle de suas atividades pelo Estado e pelos cidadãos. 388

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Cumpre destacar que o inciso II, do art. 173, prevê que a lei é quem disporá sobre a sujeição da sociedade de economia mista ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. A lei também deve dispor sobre licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, constituição e funcionamento dos conselhos administrativos e fiscais, bem como sobre a responsabilidade dos administradores. Outro aspecto importante deste dispositivo (art. 173) é a redação do seu § 2º, segundo o qual as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado. Na conceituação do Professor Celso Antonio Bandeira de Mello11, uma sociedade de economia mista: Há de ser entendida como pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei, como um instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes dessa sua natureza auxiliar da atuação governamental, constituída sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de sua Administração indireta, sobre remanescente acionário de propriedade particular.

Márcia Carla Pereira Ribeiro12 anota que uma das formas de atuação do Estado na economia se dá por meio da sociedade de economia mista, em que se verifica, como já dito, a integração, numa só pessoa jurídica, de capital público e privado. O professor Rubens Requião13, em seus ensinamentos, destaca que o Decreto-lei nº 200, alterado pelo Decreto-lei nº 900, de 29/09/69, definiu a sociedade de economia mista como: “a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para o exercício de atividade de natureza mercantil, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertença, em maioria, à União ou à entidade da Administração indireta”. Nas palavras de José EdwaldoTavares Borba14, “a economia mista é uma sociedade anônima ajustada, de modo permanente, a objetivos de interesse público, sem descurar, naturalmente, as pretensões dos acionistas privados”. Dito isso, é possível afirmar que todas as relações inerentes à sociedade de economia mista são reguladas por regras de direito comercial e civil e demais leis extravagantes dessa natureza. Afinal, quando o Estado recorre à sociedade anônima para assumir a administração dos serviços públicos, sozinho ou juntamente com particulares, sujeita-se, de imediato, à lei que rege a atividade das sociedades anônimas. Desse modo, o poder público passa a atuar no mercado como se fosse uma sociedade privada, abandonando suas prerrogativas oficiais. 11) MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito Administrativo. 22. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 183-184. 12) RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Sociedade de economia mista e empresa privada. Curitiba: Juruá Editora, 2001. 13) REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 2º v. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 40. 14) BORBA, José Edwaldo Tavares. Sociedade de economia mista e privatização. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1997, p. 7. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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6 DOS BENS QUE PODEM SER USUCAPIDOS Para que possamos afirmar a possibilidade de usucapião dos bens pertencentes às sociedades de economia mista é preciso, antes e de forma bastante breve, definir como se dá a divisão dos bens no nosso Código Civil. O art. 98 e seguintes do referido diploma legal assim prevêem: Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado privado. Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. alienados obArt. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, servadas as exigências da lei. (grifo nosso)

O art. 98, acima transcrito, esclarece que todos os bens não pertenparticulares, centes a pessoas jurídicas de direito público interno são particulares sujeitando-se, portanto, às regras do direito privado. Já da análise do contido no art. 102 torna-se imperioso reconhecer que os bens que não pertençam às pessoas jurídicas de direito público interno estão aptos a ser usucapidos. Referido dispositivo é bastante claro no que concerne à proteção dos bens públicos contra usucapião. Entretanto, no que se refere aos bens pertencentes às sociedades de economia mista, que, como o próprio nome diz, não possuem capital 100% público, não há qualquer proteção legal contra o instituto em comento.

7 CONCLUSÃO Da leitura do art. 102 é possível extrair a certeza de que os bens da sociedade de economia mista, por serem privados, como adiante será demonstrado, podem ser usucapidos. De acordo com o autor José EdwaldoTavares Borba15os bens móveis ou imóveis das sociedades de economia mista, mesmo tendo sido, originariamente, bens públicos, ao serem transferidos para o ativo da empresa tornam-se 15) BORBA, José Edwaldo Tavares. Sociedade de economia mista e privatização. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1997.

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bens privados, passando a ser disciplinados pela legislação privada. O poder público, ao adotar a forma de empresa, insere-se no âmbito dos negócios, tornando-se empresário. Desse modo, os atos e contratos das empresas estatais são os mesmos das outras empresas - não estatais -, regendo-se pelas mesmas regras, conceitos e princípios. A jurisprudência pátria tem entendido pela possibilidade de usucapião de bens pertencentes às sociedades de economia mista. A título elucidativo, cite-se a ementa da decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça16: USUCAPIÃO. Sociedade de Economia Mista. CEB. O bem pertencente à sociedade de economia mista pode ser objeto de usucapião. Precedente. Recurso conhecido e provido. (Proc. REsp 120702/DF; RECURSO ESPECIAL 1997/0012491-6. Rel MIN. RUY ROSADO DE AGUIAR Órg. Julg QUARTA TURMA Data Julg. 28/06/2001. Data Publicação/Fonte DJ 20.08.2001 p. 468). (grifo nosso).

A seguir, outros julgados nesse sentido17: AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEL PERTENCENTE À SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. COHAB. DISCUSSÃO ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO BEM. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA QUE NÃO DESEMPENHA ATIVIDADE ECONÔMICA INERENTES AO REGIME JURÍDICO DE DIREITO PÚBLICO. SUJEIÇÃO AO DIREITO PRIVADO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. SATISFAÇÃO DOS REQUISITOS DO ART. 183 DA CARTA MAGNA. INCIDÊNCIA DO § 3º DO ART. 515 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SENTENÇA REFORMADA. Se a sociedade de economia mista atua no APELAÇÃO PROVIDA. “Se mercado econômico, ela é carecedora das prerrogativas inerentes ao regime jurídico de direito público, devendo atuar em igualdade de condições com os particulares. Logo, o pedido para usucapir o imóvel é possível uma vez que a Cohab está sujeita ao regime jurídico de direito privado” privado”. “De acordo com o parágrafo 3º do art. 515 do Código de Processo Civil, acrescentado pela Lei 10.5352/2001, que permite ao Tribunal julgar desde logo a lide, nos casos de sentença de extinção do processo sem julgamento do mérito quando a causa estiver apta para imediato julgamento, deve ser tutelado o pleito inicial, uma vez que, estando demonstrados de maneira satisfatória os requisitos constitucionalmente exigidos para a obtenção do domínio de imóvel urbano, é medida imperiosa o seu deferimento”. (Órgão Julgador: Sexta Câmara Cível (extinto TA) Acórdão Comarca: Londrina Processo: 0180483-5 Rec: Apelação Cível Rel: Maria José de Toledo Marcondes Teixeira Revisor: Paulo Habith Julg: 24/06/2003. Decisão: Unânime Dados da Publicação: DJ: 6429. (grifo nosso). AÇÃO DE USUCAPIÃO - BEM DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA - DISCUSSÃO ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO BEM - BENS DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA QUE DESEMPENHAM ATIVIDADE ECO16) Resp nº 120702/DF; Recurso Especial 1997/0012491-6. Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Órgão Julgador QUARTA TURMA. Data julg. 28/06/2001. 17) Apelação Cível 0180483-5. 6ª C.C. TA/PR. Julg. 24/06/03.DJ. 6429; Apelação Cível 0240998-1. 9ª C.C. TA/PR. Julg. 02/03/04. DJ. 6588; REsp 37906-ES. Julg. 29/10/97. DJ. 15/12/97.

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NÔMICA NÃO SÃO PÚBLICOS - POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO SATISFAÇÃO DOS REQUISITOS DO ART.550 DO CÓDIGO CIVIL - APLICAÇÃO DO § 3º DO ART.515 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PROVIMENTO DA APELAÇÃO. I – RELATÓRIO (Órgão Julgador: Nona Câmara Cível (extinto TA) Acórdão Comarca: Curitiba Processo: 0240998-1 Rec: Apelação Cível Rel: Luiz Sérgio Neiva de L Vieira Revisor: Antônio Renato Strapasson Julg: 02/ 03/2004 Decisão: Unânime Dados Pub: DJ: 6588). (grifo nosso)USUCAPIÃO. BEM PERTENCENTE A SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. “ANIMUS DOMINI”. MATERIA DE FATO. BENS PERTENCENTES A SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA PODEM SER ADQUIRIDOS POR USUCAPIÃO. DISSONANCIA INTERPRETATIVA INSUSCETIVEL DE CONFIGURARSE TOCANTE AO ANIMUS DOMINI DOS USUCAPIENTES EM FACE DA SITUAÇÃO PECULIAR DE CADA CASO CONCRETO. SUMULA 07/STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO, EM PARTE, PELA DIVERGENCIA JURISPRUDENCIAL, MAS IMPROVIDO. (REsp 37906 / ES ; RECURSO ESPECIAL. Rel MIN. BARROS MONTEIRO. Órg. Jul. QUARTA TURMA Data Julg. 29/10/1997. Data da Publicação DJ 15.12.1997 p. 66414 RSTJ vol. 105 p. 313) (grifo nosso).

Tecidas as considerações pretendidas, cumpre finalizar o presente trabalho ratificando a afirmação que deu início ao presente estudo: a possibilidade de usucapião dos bens pertencentes às sociedades de economia mista. Pelo que foi exposto é perfeitamente defensável o usucapião de bens que pertençam a sociedades acima referidas. Afinal, estando a sociedade de economia mista inserida no mercado e atuando como se fosse uma empresa privada, desprovida, inclusive, de prerrogativas oficiais - inerentes apenas às pessoas de direito público interno -, é certo que suas relações serão reguladas pelo direito privado, de modo que o exercício do direito de propriedade sobre os bens que possua não pode isentar-se da tutela privatista. Isso significa dizer que, nos casos em que haja o exercício da posse mansa e tranqüila de centenas de famílias carentes sobre terrenos pertencentes, originalmente, às sociedades de economia mista e em desuso por seus proprietários, o direito destas famílias deve ser observado observado. Por fim, em relação ao projeto Direito e Cidadania é oportuno informar que foram ajuizadas, perante as Varas da Fazenda Pública e junto à 19ª Vara Cível de Curitiba (processo nº 275/08), demandas judiciais de usucapião especial coletivo de imóvel urbano, por meio das quais pretende-se obter o reconhecimento do direito à prescrição aquisitiva das respectivas propriedades, garantindo-se o direito à moradia adequada para as famílias que ali se estabeleceram há anos. Em homenagem aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade igualdade, deve ser afastado o direito proprietário da sociedade que não fez cumprir a função social do bem imóvel que possuía, resguardandose o direito de milhares de pessoas que se utilizaram de terra ociosa para ali estabelecer seu lar. Afinal, a redistribuição de terras é a forma mais efetiva de aplicação dos princípios constitucionais aqui referidos e dos direitos fundamentais inerentes a cada indivíduo. Uma sociedade justa, humana e igualitária começa a ser construída a partir de situações como a que envolve a atuação do Projeto Direito e Cidadania. Pleitear, perante o Poder Judiciário, a aplicação da lei e buscar, nas próprias comunidades, o envolvimento dos moradores na tarefa de reco392

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nhecimento e defesa de seus direitos é aliar a teoria à prática, tornando possível a efetivação de direitos que não podem ficar só no papel.

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Aspectos gerais da Justiça Militar Estadual no Brasil

Elisangela de Paula e Silva Policial Militar. Pós-graduanda pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (Fempar). Bacharel em Direito pela Universidade Positivo. Licenciada em Letras pela UFPR.

INTRODUÇÃO Muitos foram os fatores que motivaram a elaboração de um estudo voltado à Justiça Militar. Um deles é a falta de conhecimento sobre o assunto por parte de operadores do direito e da sociedade como um todo, com ênfase para algumas figuras que se destacam no meio político e na mídia, por insistirem em criticá-la, sem cunho científico, baseando-se no senso comum. O outro é a necessidade de defender uma Justiça especializada que, assim como outras, tem por escopo proporcionar a prestação jurisdicional, com o devido fundamento legal e vivência jurídico-histórica que possui e lhe proporciona respaldo para continuar atuando. Na realidade, neste intuito de defender e dar a conhecer, há a verdadeira intenção de proporcionar a aqueles que desejam opor críticas, que o façam com conhecimento de causa. Para cumprir com este objetivo, apenas os aspectos gerais terão que ser abordados, tendo em vista que o aprofundamento em quaisquer dos inúmeros temas, não seria proveitoso. Além disso, o escasso material doutrinário existente revela que, ao buscar conhecer os meandros da Justiça Militar, o que normalmente se encontrará é de conteúdo voltado à Justiça Militar da União. Seja porque a jurisdição sobre todo o território nacional assim o faça parecer – de que os poucos doutrinadores a ela se dedicam –, seja porque a idéia do militarismo esteja diretamente ligada somente às Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica). Em conseqüência disso, apesar da natureza deste trabalho não permitir uma especificidade muito grande, será enfatizado o âmbito da Justiça Militar Estadual. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Isso se faz necessário também, quando o raciocínio se volta para o fato de que as atividades dos policiais e bombeiros militares estão tão próximas à população, ou seja, é o cidadão comum que acaba sendo, via de regra, o sujeito passivo dos crimes militares praticados por policiais. As Polícias Militares são forças auxiliares do Exército e seus integrantes estão igualmente sujeitos à hierarquia e à disciplina, pilares do militarismo. Por esta proximidade com a sociedade em geral e também com a comunidade jurídica – afinal advogados, juízes, promotores e desembargadores estão sujeitos às lides no âmbito militar – é que este trabalho visa atingir sua finalidade, fornecendo elementos básicos para que quaisquer destes profissionais, quando requisitados, consigam desempenhar seu papel por ter ao menos noções da sistemática da Justiça Militar. Assim como todo o ordenamento jurídico, a Justiça Militar sofre alterações. E uma das mais significativas ocorreu recentemente com a ilustre reforma do Judiciário. A Emenda Constitucional nº 45/04 trouxe mudanças significativas que, por oportunidade, serão também consideradas. Enfim, tudo se pauta na vontade de despertar interesses pela Justiça Castrense para que novas discussões surjam e com elas uma profusão de trabalhos sobre este tema.

1 CONSIDERAÇÕES GERAIS 1.1 AS ORIGENS DA JUSTIÇA MILITAR

A dinâmica das ciências, inclusive do Direito, exige uma constante atualização por parte daqueles que se dispõem a estudá-las. No entanto, para que se possa entender esta dinâmica, os porquês das alterações que sofrem as leis e as orientações doutrinárias e jurisprudenciais, é primordial que o estudo se inicie pelo conhecimento das suas origens. No caso da Justiça Militar, vislumbrar suas raízes é mais do que entender os rumos que ela tem tomado ao longo de muitos anos, é também desmistificar equívocos, como por exemplo, o de que a Justiça Militar Brasileira é oriunda do período da Ditadura Militar (1964-1984)1. Há estreita ligação entre a existência de exércitos e da legislação militar. Desde a Antiguidade, estes exércitos eram constituídos para defesa e expansão territorial e evidências históricas remetem à sua existência. No entanto, segundo José da Silva Loureiro Neto, “foi em Roma que o Direito Penal Militar adquiriu vida própria, considerado como instituição jurídica”2. Ronaldo João Roth faz uma compilação de diversos autores em seu estudo monográfico3 e em resumo expõe que a luta pelo expansionismo, por terras ará1) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 5. 2) LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 19. 3) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 6.

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veis e pelas águas, nos remetem ao surgimento dos primeiros exércitos quatro mil anos antes de Cristo, na Suméria, na Mesopotâmia e no Egito. Na Grécia, a qualidade de cidadão estava diretamente ligada à de militar, constituindo caráter permanente do que se pode chamar de primeiro estado militar organizado. No entanto, as principais características de um exército, quais sejam, a ofensividade e a disciplina militar, surgiram em Roma, sendo citada inclusive, como tendo um verdadeiro povo de soldados, tanto na paz como na guerra. Assim Roma, ao expandir suas conquistas pela Europa, serviria de paradigma sob os dois aspectos que interessam ao direito como um todo e à esfera penal militar, na legislação e na arte militar, respectivamente4. Ronaldo João Roth5 assevera que o “Direito Castrense surgiu da necessidade de disciplinar as relações entre os militares, segmento esse imprescindível à formação dos povos da Antiguidade...”, e que “são exatamente as peculiaridades relativas aos militares que estabelecem o grau de necessidade da existência do Direito Militar, cujos deveres são muitos em relação aos dos civis, regendo-se, daí, por um Estatuto próprio”. A propósito do termo castrense, a Cap. QOEM6 Maria Roseli Tesser, diz que “o articulista Ferolla ensina que os acampamentos militares eram designados como “Castros” ou “Castrum”, e daí a caracterização como “Justiça Castrense” àquela que se fazia aplicar naqueles locais, tendo tal designação permanecido viva até nossos dias, sendo utilizada para referenciar os órgãos componentes da Justiça Militar”7. Prosseguindo neste mesmo sentido, ou seja, das antigas necessidades de se estabelecerem normas especiais aos exércitos, Ronaldo João Roth, cita Edgard de Brito Chaves Júnior8, que justifica a instituição de uma Justiça Especial, remontando inclusive a Napoleão, que já dizia: “A disciplina é a primeira qualidade do soldado; o valor é apenas a segunda”, ou seja, ele vê nas características especiais que deve ter o militar, como militar e cidadão, na atuação diferenciada que também deve ter diante das situações que enfrenta, inclusive com a previsão dos tempos de guerra, resulte na necessidade de uma “Justiça pronta, enérgica, severa, diferente da do tempo de paz”.

1.2 O SURGIMENTO DA JUSTIÇA MILITAR NO BRASIL

O surgimento da Justiça Militar no Brasil tem relação direta com a sua existência em Portugal e o descobrimento do Brasil, revelando-se mais estreitos os laços que unem estes dois países, conforme menciona Gualter Godinho: 4) LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 20. 5) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 7. 6) Capitão do Quadro de Oficiais do Estado Maior da Brigada Militar. Disponível em: http:// www.brigadamilitar.rs.gov.br. Acesso em: 11 ago. 2007. 7) TESSER, Maria Roseli. A competência cível da Justiça Militar Estadual em Decorrência da Emenda Constitucional nº 45. Disponível em: http://www.jusmilitaris.com.br. Acesso em: 04 jul. 2007. 8) CHAVES JÚNIOR, Edgard de Brito. Escorço Histórico da Justiça Militar in Revista de Estudos & Informações, TJMG, 2001, n. 08, p. 12/18, in ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 8. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Originários ambos de atos régios. O Conselho de Guerra em Lisboa, transfixado no Supremo Tribunal Militar português, por decreto de D. João IV, de ll de dezembro de 1640, e o Conselho Supremo Militar e de Justiça, atual Superior Tribunal Militar, criado por Alvará do Príncipe Regente, Fernando José de Portugal, futuro D. João VI, de 1º de abril de 1808 1808. Tiveram, como traço comum de união, o Regimento de 22 de dezembro de 1643, expedido por Alvará do primeiro monarca referido. Tais circunstâncias, que tornaram o atual Superior Tribunal Militar do Brasil o primogênito da Judicatura Nacional Nacional, demonstram ser indissolúvel o liame que aproxima as duas Superiores Cortes Castrenses.9 (grifou-se)

José da Silva Loureiro Neto10 defende, no entanto, que “a primeira legislação militar no Brasil refere-se aos Artigos de Guerra do Conde de Lippe, aprovados em 1763”, que “foram inspirados nos Artigos de Guerra da Alemanha, que remontavam aos da Inglaterra de 1621, de Gustavo Adolfo. Compunha-se de vinte e nove artigos, compreendendo as penas de arcabuzamento, expulsão com infâmia, morte, cinqüenta pancadas de espada de prancha, etc.” Porém, a criação efetiva da Justiça Militar no Brasil, segundo Ronaldo João 11 Roth , foi por ocasião da vinda da Família Real para o país, através do ato soberano, o Alvará de 1º de abril de 1808, baixado por D. João VI, que criou a Segunda Instância – o Conselho de Justiça Supremo Militar, atual Superior Tribunal Militar, situação mantida até hoje – da estrutura existente na época, os Conselhos de Guerra e as Juntas Militares, existentes desde o descobrimento, conforme o modelo português. Apesar do Alvará datar de 1808, a previsão constitucional da Justiça Militar, considerada como órgão do Poder Judiciário só foi efetivada em 1934, conforme Octávio Augusto Simon de Souza12. Tal como citado também por Jorge César de Assis, pois este coloca que “a Carta Imperial de 25 de março de 1824, foi a mais omissa de todas as Constituições em relação à Justiça Militar”13, não enumerando sequer o Poder Judiciário. Segundo ele ainda, a Constituição de 1891 não fez menção à Justiça Militar na composição do Poder Judiciário, mas tratou em seu art. 7714, constitucionalizando o foro militar, sem exclusão dos militares estaduais, cujo fato o leva a crer que o legislador estava também considerando os componentes das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares. 9) GODINHO, Gualter. Do Direito e da implantação da Justiça Militar no Brasil. In: Revista Direito Militar, 1996, n. 2, p. 11/12. In: ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. 10) LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 21. 11) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 11 e 15. 12) SOUZA, Octavio Augusto Simon de. A Justiça Militar e a EC 45/2004. Disponível em: http:// www.jusmilitaris.com.br/?secao=doutrina&cat=1. Acesso em 29 jun. 2007. 13) ASSIS, Jorge César de. Justiça Militar Estadual. Curitiba: Juruá, 1992. p. 40-41. 14) Art. 77 Os militares de terra e mar terão foro especial nos delitos militares, § 1º Esse foro compor-se-á de um Supremo Tribunal Militar, cujos membros serão vitalícios, e dos Conselhos necessários para a formação da culpa e julgamento dos crimes. § 2º A organização e atribuição do Supremo Tribunal Militar serão reguladas por lei.

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1.3 A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO

A Justiça Militar lato sensu é uma justiça especializada que, assim como todo o Poder Judiciário, está estruturada em federal e estadual, no entanto, esta divisão possui algumas peculiaridades. Em virtude disso, algumas considerações devem ser feitas, tendo em vista que o intuito deste trabalho é voltar-se para a chamada Justiça Militar Estadual. Segundo Guilherme de Souza Nucci15, não é obrigatório que uma justiça especial como a Justiça Militar, que cuida de matérias específicas, possua regras próprias de direito material e processual, no entanto, por certo que esta legislação existe e é aplicável às duas esferas, federal e estadual, quais sejam, o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001/69) e o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei 1.002/69), diferindo apenas em algumas questões. Primeiramente, de forma sucinta, é preciso colocar que “a Justiça Militar Federal tem como jurisdicionados os militares das Forças Armadas e os civis que venham a praticar crimes militares e as Justiças Militares Estaduais têm como jurisdicionados os policiais e bombeiros militares que venham a praticar crimes militares”16. São órgãos da Justiça Militar Federal, em tempo de paz, o Superior Tribunal Militar (STM), que é o órgão da 2.ª instância de toda a Justiça Militar Federal, e os Conselhos de Justiça e os Auditores, como órgãos de 1.ª instância, que atuam nas “auditorias” (chama-se auditoria ao estabelecimento onde os auditores e os conselhos de justiça se reúnem para as suas atividades jurisdicionais; equivale, também, à Vara). Nesse sentido é que a lei a emprega. Auditor é o Juiz Togado que integra os Conselhos de Justiça.17

As auditorias possuem sede nas respectivas Regiões, como se observa a seguir, e têm jurisdição mista, ou seja, conhecem dos feitos relativos à Marinha, Exército e Aeronáutica18. REGIÕES MILITARES: 1ª Região – Espírito Santo e Rio de Janeiro Sede da Auditoria: Rio de Janeiro-RJ 2ª Região – São Paulo Sede da Auditoria: São Paulo-SP 3ª Região – Rio Grande do Sul Sede da Auditoria: Porto Alegre 4ª Região – Minas Gerais Sede da Auditoria: Juiz de Fora-MG 15) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 69. 16) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 26. 17) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, v. 2. 25. ed. São Paulo, Saraiva, 2003. p. 82-83. 18) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, v. 2. 25. ed. São Paulo, Saraiva, 2003. p. 83. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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5ª Região – Paraná e Santa Catarina Sede da Auditoria: Curitiba-PR 6ª Região – Bahia e Sergipe Sede da Auditoria: Salvador-BA 7ª Região – Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas Sede da Auditoria: Recife-PE 8ª Região – Amapá, Maranhão e Pará Sede da Auditoria: Belém-PA 9ª Região – Mato Grosso e Mato Grosso do Sul Sede da Auditoria: Campo Grande-MS 10ª Região – Ceará e Piauí Sede da Auditoria: Fortaleza-CE 11ª Região – Distrito Federal, Goiás e Tocantins Sede da Auditoria: Distrito Federal 12ª Região – Acre, Amazonas, Rondônia e Roraima Sede da Auditoria: Manaus-AM19 O órgão de 1º grau, conforme já mencionado, é representado pelo Conselho de Justiça, formado por quatro juízes militares e pelo Juiz-Auditor, este assim chamado ainda apenas na esfera da União, pois uma das alterações da Emenda Constitucional nº 45/04 foi o tratamento dado ao juiz togado, agora chamado de Juiz de Direito. As alterações feitas pela Emenda, bem como a composição dos Conselhos de Justiça, serão tratadas no capítulo que se refere à Justiça Militar Estadual. A Justiça Militar Federal não sofreu alterações com a Emenda Constitucional nº 45/04, no entanto, Sidney Eloy Dalabrida20 informa que, por ocasião da sua aprovação, retornou ao Senado a PEC nº 29, que amplia a competência desta Justiça para permitir-lhe também o controle jurisdicional sobre as punições disciplinares militares. Ele faz esta observação em meio à reflexão a respeito da simetria que deve envolver as normas constitucionais inerentes à Justiça Militar Federal e Estadual, pois resultam dos próprios fins perseguidos, uma vez que afetam a bens jurídicos comuns. Conforme ensina Tourinho Filho21, o Superior Tribunal Militar é órgão de 2º grau da Justiça Militar Federal, incumbindo-lhe analisar os recursos provenientes dos órgãos desta mesma Justiça, nos termos do art. 6º da Lei de Organização Judiciária Militar da União (Lei nº 8.457, de 04/09/1992). O Superior Tribunal Militar é composto, atualmente, de quinze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal. São três Ministros escolhidos dentre ofici19) Informações disponíveis em: http://www.stm.gov.br. Acesso em 23 jul. 2007. 20) DALABRIDA, Sidney Eloy. A competência constitucional da Justiça Militar: Questões controvertidas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 56, Novembro/Dezembro 2005. p. 33-34. 21) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, v. 2. 25. ed. São Paulo, Saraiva, 2003. p. 226.

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ais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira. Outros cinco Ministros são civis, também nomeados pelo Presidente da República e escolhidos dentre brasileiros maiores de trinta e cinco anos. Destes cinco, três são escolhidos dentre advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional. Outros dois são escolhidos dentre Juízes-Auditores e membros do Ministério Público da Justiça Militar.22

1.4 PREVISÃO CONSTITUCIONAL E SURGIMENTO DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL

Pioneira no assunto, a Constituição de 1934 “consagrou uma seção inteira, a seção V, à Justiça Militar”23, segundo Jorge César de Assis, ao lembrar também que, em relação à Justiça Militar Estadual, os legisladores constituintes de 1824, 1891, 1934 e 1937, deixaram de especificar seus órgãos componentes. “Sob o ponto de vista da Justiça Militar Estadual, a Constituição mais importante foi a de 1946, em cuja vigência foram promulgados diplomas legais, que forçaram o pronunciamento do Excelso Pretório, ensejando a manifestação dos doutos e despertando a atenção para os estudos da Justiça Militar.”24 Outra abordagem sobre esta questão vem de Ronaldo João Roth25, pois assegura que a estruturação da Justiça Militar dos Estados se deu com uma norma inserida na Constituição de 1934, que conferia à União competência privativa para legislar sobre a organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados, e a partir desta norma foi editada a Lei nº 192, de 1936, que criou efetivamente a Justiça Militar nos Estados. E muitas foram as alterações nos diplomas constitucionais, ora repetindo o texto anterior, ora fazendo pequenas alterações, principalmente em relação à Justiça Militar Estadual, que alternou entre a previsão de Tribunais Militares nos Estados e abolição destes tribunais especiais, fixando competência recursal somente aos Tribunais de Justiça, para enfim prever o constituinte de 1988, que a criação estaria condicionada ao efetivo das polícias militares superior a vinte mil integrantes. Relação esta que se confirma na opinião de alguns autores, dentre eles Jorge César de Assis26, ao dizer: “Justiça Militar Estadual sugere de plano Polícia Militar e Corpo de Bombeiro Militar”; e a juíza Nelma Celeste Sousa Silva Sarney, também desta opinião que reflete: Daí se depreende que a Polícia Militar e Justiça Militar são duas organizações ou instituições públicas, imprescindíveis à manutenção da ordem jurídica, geratriz insofismável da harmonia e da paz social, tão almejadas 22) Disponível em: http://www.stm.gov.br/institucional/composicao_corte.php. Acesso em: 18 ago. 2007. 23) ASSIS, Jorge César de. Justiça Militar Estadual. Curitiba: Juruá, 1992. p. 42-43. 24) ASSIS, Jorge César de. Justiça Militar Estadual. Curitiba: Juruá, 1992. p. 43. 25) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 24. 26) ASSIS, Jorge César de. Justiça Militar Estadual. Curitiba: Juruá, 1992. p. 23. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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por todos nós que nos consideramos pessoas de bom gosto. E, embora pertençam a diferentes Poderes do Estado: uma ao Executivo, e outra ao Judiciário, ambas interrelacionam-se e se interdependem, pois não se pode conceber Polícia Militar sem Justiça Militar e, muito menos, esta sem aquela que lhe é o verdadeiro suporte existencial.27

Eis que, finalmente para tentar justificar, através de um raciocínio lógico, a existência de uma Justiça especializada para o processo dos policiais militares, Jorge César Assis cita o magistrado mineiro Laurentino de Andrade Filocre: a. A disciplina militar é elemento psicológico de condicionamento do comportamento (do indivíduo, do grupo), que faz como que o emprego das armas, se faça nos limites e na forma da lei; b. A violação de tais princípios, representa risco para a sociedade e para o império do Direito; c. A justa aplicação do Direito Disciplinar é a base de segurança da Nação, entretanto; d. A proteção à disciplina não esgota os fins do ordenamento jurídicomilitar, e por isso; e. Todos os bens que concorrem para higidez das polícias militares, sua eficácia e controle, devem receber igual tutela; e f. Por conseguinte, para a aplicação de um direito tão diferenciado, com objetivos tão específicos, se faz mister uma justiça especial, a Justiça Militar Estadual.28

2 JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL 2.1 CONSELHOS DE JUSTIÇA MILITAR

“O Conselho de Justiça é o órgão julgador de Primeira Instância, que irá julgar os processos instaurados, absolvendo ou condenando os réus”29. Existem dois tipos de Conselho, o Conselho Permanente de Justiça e o Conselho Especial de Justiça, formados por um juiz-auditor e quatro juízes militares. A composição e a competência dos Conselhos estão dispostas nos arts. 15 ao 29, da Lei nº 8.457, de 04 de setembro de 1992, que organiza a Justiça Militar da União e regula o funcionamento de seus serviços auxiliares. Os juízes militares que comporão o Conselho Permanente serão sorteados dentre os oficiais, e atuarão junto às auditorias por período trimestral30, com competência para processar e julgar os réus que sejam praças, com ou sem gra27) COSTA, Nelma Celeste Sousa Silva Sarney. A Justiça Militar do Estado do Maranhão. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano IV, n. 24, Julho/Agosto 2000. p. 6-7. 28) ASSIS, Jorge César de. Justiça Militar Estadual. Curitiba: Juruá, 1992. p. 21. 29) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 28. 30) Art. 21 O sorteio dos juízes do Conselho Permanente de Justiça é feito pelo Juiz-Auditor, em audiência pública, entre os dias 5 (cinco) e 10 (dez) do último mês do trimestre anterior, na presença do Procurador e do Diretor de Secretaria.

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duação (soldado, cabo, sargento, subtenente e aspirantes a oficial). Para o julgamento de oficiais até o posto de coronel, inclusive, será então formado um Conselho Especial de Justiça, composto por sorteio realizado dentre os oficiais de posto mais elevado ao do acusado, ou igual, desde que de maior antiguidade31, e atuará somente naquele processo. Apesar de destinados aos processos da Justiça Militar Federal, a mesma estrutura é utilizada na Justiça Militar Estadual, conforme explica Célio Lobão32, ao colocar que a única referência à Justiça Militar Estadual está no art. 6º do Código de Processo Penal Militar, não havendo outras normas reguladoras nem no Código, nem na Lei de Organização Judiciária Militar. O referido artigo 6º, do CPPM dispõe que: “Obedecerão às normas processuais previstas neste Código, no que forem aplicáveis, salvo quanto à organização de Justiça, aos recursos e à execução de sentença, os processos da Justiça Militar Estadual, nos crimes previstos na Lei Penal Militar a que responderem os oficiais e praças das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares”. Assim, conclui Célio Lobão que “à Justiça Militar estadual aplica-se a lei de organização judiciária do respectivo Estado, embora com observância da estrutura dos órgãos julgadores da Justiça Militar de primeira instância, por imposição da lei federal”33. Logo, nas auditorias militares estaduais devem funcionar o Conselho Permanente e os Conselhos Especiais, aos moldes da Lei nº 8.457/92 e do Código de Processo Penal Militar, a exemplo do disposto nos artigos 399 a 403, sobre a instalação do Conselho de Justiça, que menciona inclusive, no artigo 400, um dos atos solenes peculiares da Justiça Militar, que é o compromisso legal prestado pelos juizes militares: “Prometo apreciar com imparcial atenção os fatos que me forem submetidos e julgá-los de acordo com a lei e a prova dos autos”34. A Emenda Constitucional nº 45/04 trouxe duas inovações no que tange aos Conselhos de Justiça, no entanto, só foram feitas no âmbito estadual, conforme afirmam alguns doutrinadores, entre eles Ronaldo João Roth que, tratando do tema, enfatiza “que nenhuma alteração houve com relação à Justiça Militar da União”35. 31) Art. 23 Os juízes que integrarem os Conselhos Especiais serão de posto superior ao do acusado, ou do mesmo posto e de maior antiguidade. 32) LOBÃO, Célio. Aplicação do Código de Processo Penal na Justiça Militar Estadual. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano VII, n. 43, Setembro/Outubro 2003. p. 11. 33) LOBÃO, Célio. Aplicação do Código de Processo Penal na Justiça Militar Estadual. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano VII, n. 43, Setembro/Outubro 2003. p. 11. 34) Art. 400. Tendo à sua direita o auditor, à sua esquerda o oficial de posto mais elevado ou mais antigo e, nos outros lugares, alternadamente, os demais juízes, conforme os seus postos ou antigüidade, ficando o escrivão em mesa próxima ao auditor e o procurador em mesa que lhe é reservada — o presidente, na primeira reunião do Conselho de Justiça, prestará em voz alta, de pé, descoberto, o seguinte compromisso: “Prometo apreciar com imparcial atenção os fatos que me forem submetidos e julgá-los de acôrdo com a lei e a prova dos autos.” Esse compromisso será também prestado pelos demais juízes, sob a fórmula: “Assim o prometo.” 35) ROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a Reforma Constitucional da Justiça Militar estadual e seus efeitos. Disponível em http://www.jusmilitaris.com.br. Acesso em 29 jun. 2007. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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No âmbito penal militar estadual, segundo Célio Lobão36, a primeira mudança foi a denominação do então Juiz-Auditor para Juiz de Direito e a atribuição da presidência dos Conselhos de Justiça, antes conferida ao Oficial Superior, no Conselho Permanente de Justiça, ou o mais antigo, de posto mais elevado que o dos demais juizes militares, nos Conselhos Especiais: Art. 125 (...) (...) § 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes. (...) § 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito direito, processar e julgar os demais crimes militares.

Sobre a nova atribuição da presidência dos conselhos, Eliezer Pereira Martins37, advogado especialista em direito militar, diz que, na ordem de votação revogada, preconizada pelo artigo 435 do CPPM, o juiz de direito votava primeiro e o presidente por último, o que influenciava o voto dos demais juizes militares. Segundo ele, o voto do juiz togado conduzia os demais a votarem como ele – salvo exceções de alguns militares que ousavam divergir e até motivar seu voto – por motivos como o reconhecimento de que o juiz togado possui qualidades técnicas e experiência jurídica, sendo assim seguro acompanhá-lo, o que levava à prevalência do seu entendimento, para o bem ou mal. Elizer Pereira Martins38 esclarece ainda que, a respeito das dúvidas que possam surgir sobre o juiz de direito votar por primeiro ou por último, a resposta encontra fundamento na regra que ordena os votos, qual seja, a de que deve ser iniciada pelo juiz de menor autoridade, para que não sofra influência do de maior autoridade, confirmando, segundo ele, que quem sempre deteve a maior autoridade foi o juiz togado, posto que influenciava os juizes militares. Ressalta também que, ao prestar os esclarecimentos porventura necessários, previstos no artigo 434 do CPPM39, o juiz togado 36) LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário A Competência da Justiça Militar. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/ Dezembro 2004. p. 9-11. 37) MARTINS, Eliezer Pereira. A ordem de votação nos conselhos permanentes e especiais na primeira instância da Justiça Militar federal e estadual, pós-reforma do Judiciário. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 58, Março/Abril 2006. p. 7. 38) MARTINS, Eliezer Pereira. A ordem de votação nos conselhos permanentes e especiais na primeira instância da Justiça Militar federal e estadual, pós-reforma do Judiciário. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 58, Março/Abril 2006. p. 8. 39) Art. 434 Concluídos os debates e decidida qualquer questão de ordem levantada pelas partes, o Conselho de Justiça passará a deliberar em sessão secreta, podendo qualquer dos juizes militares pedir ao auditor esclarecimentos sobre questões de direito que se relacionem com o fato sujeito a julgamento.

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deverá fazê-lo abstendo-se de qualquer elemento de sua convicção íntima. A respeito das demais alterações, Célio Lobão40 afirma que a competência da Justiça Militar permaneceu inalterada com a Reforma, no entanto, a modificação operou-se na competência interna do Juízo Militar, que foi definida como competência constitucional dos Conselhos de Justiça e singular do Juiz de Direito. Também colocado por Sidney Eloi Dalabrida41, Promotor de Justiça, que diz que a competência singular do juiz de direito será expressa e explícita, enquanto que a dos Conselhos de Justiça será residual e implícita. O Juiz de Direito atuará singularmente em alguns processos e como Presidente e Relator naqueles que serão submetidos ao Conselho de Justiça, sendo que, como Relator, “tem poderes de instrução, de disciplina, de impulsão, além da competência para a prática de atos decisórios em procedimentos cautelares que recaem sobre a coisa (arts. 199 a 219 do CPPM), além de outros”42. Na opinião de Sidney Eloy Dalabrida43, o processo perante o juízo monocrático deverá, em princípio, funcionar como no processo penal comum – integração, por analogia – uma vez que não há razão para obedecer ao rito ordinário programado para o colegiado, dispensando, vez que injustificada perante o juiz togado, a fase de debates orais, apresentando em seu lugar as alegações escritas. Desta alteração, Octavio Augusto Simon de Souza44 entende que a Justiça Militar deverá tirar o melhor proveito possível, pois ao ganhar tempo com julgamento monocrático, receberá os créditos pela celeridade. Na opinião de Célio Lobão, serão julgados singularmente pelo Juiz de Direito, os crime militares praticados por militar estadual contra civil, se for cometido em local sob administração militar ou praticado em serviço, pressupostos do art. 9º, II, b, c e d do CPM, que segundo ele são: Homicídio culposo (art. 206 do CPM); lesão corporal (arts. 209 e 210 do CPM); maustratos (sic), se o fato não for crime mais grave (art. 213 do CPM); constrangimento ilegal (art. 222 do CPM); ameaça (art. 223 do CPM); seqüestro ou cárcere privado (art. 225 do CPM); estupro (art. 232 do CPM); atentado violento ao pudor (art. 233 do CPM); furto (art. 240 do CPM); 40) LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário A Competência da Justiça Militar. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/ Dezembro 2004. p. 9-11. 41) DALABRIDA, Sidney Eloy. A competência constitucional da Justiça Militar: Questões controvertidas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 56, Novembro/Dezembro 2005. p. 29. 42) LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário A Competência da Justiça Militar. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/ Dezembro 2004. p. 9-11. 43) DALABRIDA, Sidney Eloy. A competência constitucional da Justiça Militar: Questões controvertidas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 56, Novembro/Dezembro 2005. p. 31. 44) SOUZA, Octavio Augusto Simon de. Juiz eleito Presidente do Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, para o biênio 2006/2007, em entrevista para a revista Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano IX, n. 56, Novembro/ Dezembro 2005. p. 5. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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roubo e latrocínio (art. 242, caput e §§ 1º, 2º e 3º, do CPM); extorsão e extorsão mediante seqüestro (arts. 243 e 244 do CPM) apropriação indébita (art. 248, do CPM); abuso de pessoa (art. 252 do CPM); receptação (art. 254 do CPM); dano (art. 259 do CPM).45

Importante ressaltar que o crime de concussão (art. 305 do CPM), segundo Célio Lobão46, será de competência do Conselho Permanente de Justiça Militar, uma vez que o sujeito passivo imediato é a administração militar estadual, sendo o civil o sujeito passivo mediato. Apesar de não haver desencontros neste entendimento, vale lembrar que este é um dos crimes com grande incidência no âmbito da Justiça Militar Estadual do Paraná, representando 16% dos processos entre os anos 2002 e 2006; juntamente com o extravio de armamento, crime previsto no art. 265, que representou 17% neste mesmo período; seguido da lesão corporal, 15%; prevaricação e deserção, 6% cada um; peculato, 5%; corrupção passiva, 4%; e outros 43 crimes que corresponderam aos outros 31%.

2.2 SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO: COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS Não é incomum ouvir na comunidade jurídica, principalmente de advogados, que o segundo grau de jurisdição no âmbito da Justiça Militar é atribuído tão-somente ao Superior Tribunal Militar ou, ainda, que recursos contra decisões dos Tribunais de Justiça dos Estados e dos Tribunais Militares sejam igualmente de competência do STM. Na maioria dos Estados, em matéria processual militar, o segundo grau de jurisdição é exercido pelos respectivos Tribunais de Justiça e os recursos contra as suas decisões devem ser interpostos no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso. A maior dúvida fica por conta dos três estados que possuem os Tribunais de Justiça Militar, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo. No entanto, de igual forma, das decisões destes Tribunais também cabem recursos ao STF e ao STJ. Sobre a competência recursal dos Tribunais de Justiça Militar observe-se o contido em seus Regimentos Internos:

Art. 9º – Ao Presidente do Tribunal compete: XVIII – decidir sobre o cabimento de recursos extraordinários e especiais e, no caso de deferimento, mandar encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal e/ou ao Superior Tribunal de Justiça Justiça, nos termos da lei; CAPÍTULO VI DOS RECURSOS AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SEÇÃO I 45) LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário A Competência da Justiça Militar. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/ Dezembro 2004. p. 9-11 46) LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário A Competência da Justiça Militar. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/ Dezembro 2004. p. 11.

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DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO E ESPECIAL Art. 150 – Das decisões proferidas em última ou única instância pelo Tribunal Militar caberá, nos termos da legislação vigente, recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal ou recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça Justiça. Art. 151 – Os recursos extraordinário e especial serão admitidos nos casos previstos na Constituição Federal e serão recebidos na forma prescrita pela lei federal que os regulem. (...) Art. 153 – Da decisão que negar seguimento aos recursos caberá agravo de instrumento, no prazo de cinco dias, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça Justiça, conforme o caso. SEÇÃO II DO RECURSO ORDINÁRIO Art. 154 – Das decisões denegatórias de hábeas-córpus ou mandado de segurança proferidas pelo Tribunal Militar, caberá, nos termos da Constituição e da Lei Federal, recurso ordinário ao Superior Tribunal de Justiça Justiça. (grifou-se)47 Capítulo VII Dos Recursos para o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça Seção I Do Recurso Ordinário Art. 155 155. O recurso ordinário, das decisões denegatórias de habeas corpus e mandado de segurança originários, deverá ser interposto nos próprios autos no prazo legal, contados da intimação do despacho, por petição dirigida ao Presidente, com as razões do pedido de reforma. Parágrafo único único. Os autos subirão, logo depois de lavrado o termo de recurso, com os documentos que o recorrente juntar à sua petição, e com os esclarecimentos que ao Presidente do Tribunal ou ao Procurador de Justiça parecerem convenientes. Seção II Do Recurso Extraordinário e do Recurso Especial (...) Art. 157 157. Protocolada a petição na Secretaria, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe vista pelo prazo de dez dias para apresentar contra-razões. § 1º - Com as contra-razões ou sem elas, findo aquele prazo, os autos serão conclusos à presidência para, em cinco dias, admitir ou não o recurso. Admitido, o recurso subirá ao Superior Tribunal de Justiça Justiça. § 2º - Os recursos ordinário, extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo. § 3º - Concluído o julgamento do recurso especial, serão os autos remetidos ao Supremo Tribunal Federal Federal, para apreciação do recurso extraordinário, se este não estiver prejudicado. § 4º - O recurso especial não está sujeito a preparo no Tribunal, cumprindo ao recorrente recolher, somente, as despesas de remessa e de retorno, no prazo de dez dias.

47) Regimento Interno do Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em http:// www.tjm.rs.gov.br. Acesso em: 03 jul. 2007. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Seção III Do Agravo de Instrumento Art. 158. 158 Cabe agravo de instrumento contra o despacho do Presidente que não admitir o recurso ou que, o admitindo, não lhe dê seguimento, devendo ser interposto no prazo de cinco dias, contados da publicação do despacho, e será instruído com as peças indicadas pelo agravante e, obrigatoriamente, com cópia da decisão recorrida, certidão da respectiva intimação e a procuração outorgada ao advogado do agravante, salvo se outra instruir a petição de agravo. Art. 159 159. Protocolado o agravo na Secretaria, o agravado será intimado, na forma prevista no art. 527, III, do CPC, para contra-razões. Com ou sem estas, os autos serão conclusos à presidência. Mantida a decisão agravada, o Presidente determinará o envio do agravo ao Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal Federal. (grifou-se)48

2.3 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04 E OS REFLEXOS NA JUSTIÇA MILITAR

A chamada Reforma do Judiciário foi concebida para atender a diversos interesses, alguns notórios, como a tentativa de melhorar a lentidão da Justiça, outros nem tanto, como os das pressões de multinacionais que, com o intuito de investir no país, buscavam mais segurança na execução de seus contratos, conforme afirma Célio Lobão49. No entanto, ele mesmo acredita que, apesar da flagrante deficiência, as alterações pertinentes à Justiça Militar Estadual foram positivas, principalmente por atribuir-lhes a competência de conhecer de ações judiciais contra atos disciplinares militares, desafogando as Varas de Fazenda Pública estaduais. Sidney Eloy Dalabrida destaca três inovações feitas ao texto Constitucia) a inserção do juiz de direito como órgão de prional pela Emenda 45/04: “a) meiro grau da Justiça Militar Estadual; b) a competência que foi reservada, com exclusividade, ao juiz de direito para, singularmente, julgar os crimes militares praticados contra civis; c) a ampliação da competência da Justiça Militar Estadual para o processo e julgamento das ações judiciais contra atos disciplinares militares”50. Rodrigo Tadeu Pimenta de Oliveira considera alteração significativa também a “expressa ressalva da competência do Tribunal do Júri quando a vítima for civil”51.

48) Regimento Interno do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo. Disponível em http:// www.tjm.sp.gov.br. Acesso em: 03 jul. 2007. 49) LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário A Competência da Justiça Militar. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/ Dezembro 2004. p. 9-11. 50) DALABRIDA, Sidney Eloy. A competência constitucional da Justiça Militar: Questões controvertidas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 56, Novembro/Dezembro 2005. p. 28. 51) OLIVEIRA, Rodrigo Tadeu Pimenta de. Reflexos da emenda constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, nas Justiças Militares Estaduais. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/Dezembro 2004. p. 12.

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Art. 125 (...) (...) § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (grifei)

Lembrando que a competência do Tribunal do Júri já era aplicada desde a edição da Lei nº 9.299/96, que alterou o Código Penal Militar e que era tida, até então, como inconstitucional por diversos autores Inconstitucionalidade que, no entanto, não foi reconhecida pelo STF, conforme conclusão de Paulo Frederico Cunha Campos52, a partir da leitura da ADIn 1.494-DF, rel. orig. Ministro Celso de Mello, rel. para ac. Ministro Marco Aurélio, 9.4.97. Paulo Frederico Cunha Campos53, oficial e membro da Corregedoria da Polícia Militar da Bahia, em artigo sobre a Emenda 45, de junho de 2005, entendeu que as alterações pouco beneficiaram a Justiça Militar Estadual. Com exceção da inclusão das expressões “efetivo militar” e “militares do Estado” e da atribuição da competência às Varas de Fazenda Públicas para julgar os atos disciplinares, ele não viu com bons olhos as demais alterações. Principalmente, a fixação de competência ao juiz togado, para julgar os militares quando a vítima for civil. Segundo ele, esta mudança fere o Princípio Constitucional da Isonomia, pois os militares federais a ela não foram submetidos e desrespeita o fundamento que justifica a existência da Justiça Militar, qual seja, o julgamento do militar feito por seus pares. Ao contrário de Octavio Augusto Simon de Souza54 que, conforme dito anteriormente, acredita que a Justiça Militar Estadual se beneficiará desta alteração, ao atribuir maior celeridade aos atos processuais, melhorando ainda mais a prestação jurisdicional.

2.4 A ATUAÇÃO CIVIL DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL PÓSREFORMA DO JUDICIÁRIO

Conforme já mencionado, uma das mais significativas inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004 foi a ampliação da competência da Justiça Militar Estadual para o processo e julgamento das ações judiciais contra atos disciplinares militares, o que, conforme Sidney Eloy Dalabrida55, Promotor de Justiça, promoveu uma ampliação substancial da competência material da Justiça Militar Estadual. 52) CAMPOS, Paulo Frederico Cunha. A Justiça Militar e a Emenda Constitucional nº 45. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, nº 710, 15 jun. 2005. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6811. Acesso em: 27 jul. 2007. 53) CAMPOS, Paulo Frederico Cunha. A Justiça Militar e a Emenda Constitucional nº 45. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, nº 710, 15 jun. 2005. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6811. Acesso em: 27 jul. 2007. 54) SOUZA, Octavio Augusto Simon de. Juiz eleito Presidente do Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, para o biênio 2006/2007, em entrevista para a revista Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano IX, n. 56, Novembro/ Dezembro 2005. p. 5. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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À época da publicação da emenda, o advogado e professor Rodrigo Tadeu Pimenta de Oliveira56 fez breves considerações e questionamentos sobre as alterações e considerou esta a mais polêmica, capaz de inúmeras interpretações, o que de fato vem ocorrendo. Ele apenas fez as seguintes ponderações: a) os atos militares a serem apreciados deverão ser revestidos de caráter “disciplinar”, como exemplo as punições com advertência, detenção, repreensão, exclusão a bem da disciplina, etc, resultantes de processos administrativos/sindicâncias e também dos Conselhos de Disciplina e de Justificação; b) os reflexos da exclusão, como ressarcimentos e indenizações, deverão ser apreciados em sua totalidade em uma única ação, visto ser injusto e fugir ao escopo da reforma, qual seja o de solucionar a morosidade da Justiça, exigir que o interessado ingresse com outra ação no Juízo Cível; c) em conseqüência desta novel situação, deverão ser admitidos o mandado de segurança, habeas data, ações cautelares, tutelas antecipatórias e recursos cíveis57. A respeito de a competência ser afeta à questão estritamente disciplinar, o Superior Tribunal de Justiça decidiu: CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 56.941 - SP (2005/0196322-7) RELATORA : MINISTRA LAURITA VAZ AUTOR: CAROLINA CIRIACO ARAGÃO ADVOGADO : LUSINAURO BATISTA DO NASCIMENTO RÉU: ESTADO DE SÃO PAULO SUSCITANTE: JUÍZO DE DIREITO DA 2A AUDITORIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO SUSCITADO: JUÍZO DE DIREITO DA 8A VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE SÃO PAULO - SP EMENTA CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL. EXONERAÇÃO. ESTÁGIO PROBATÓRIO. ATO ADMINISTRATIVO. REINTEGRAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO COMUM ESTADUAL. DECISÃO Vistos etc. Trata-se de conflito de competência suscitado pelo JUÍZO DE DIREITO DA 2.ª AUDITORIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO em face do JUÍZO DE DIREITO DA 8.ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE SÃO PAULO, nos autos de ação de anulação de processo administrativo disciplinar cumulada com condenação em reintegração de cargo ajuizada por CAROLINA CIRIACO ARAGÃO em desfavor do ESTADO DE SÃO PAULO. A ação foi inicialmente distribuída para a 8.ª Vara da Fazenda Pública do 55) DALABRIDA, Sidney Eloy. A competência constitucional da Justiça Militar: Questões controvertidas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 56, Novembro/Dezembro 2005. p. 28. 56) OLIVEIRA, Rodrigo Tadeu Pimenta de. Reflexos da emenda constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, nas Justiças Militares Estaduais. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/Dezembro 2004. p. 13-14. 57) OLIVEIRA, Rodrigo Tadeu Pimenta de. Reflexos da emenda constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, nas Justiças Militares Estaduais. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/Dezembro 2004. p. 13-14.

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Estado de São Paulo, tendo o MM. Juiz declinado de sua competência, ao fundamento de que “Houve alargamento da competência absoluta da Justiça Militar estadual, em razão da matéria, por força da nova redação que a EC n.º 45/04 deu ao artigo 125, § 4º, da Constituição Federal. Agora, compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar as ações relativas a atos disciplinares militares, entre as quais se inclui aquela que tem por objeto a declaração de nulidade do ato de demissão, com reintegração aos quadros da Polícia Militar. Trata-se de exceção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis, prevista no artigo 87 do Código de Processo Civil” (fl. 123) O MM. Juiz de Direito da 2.ª Auditoria Militar Estadual igualmente declarou-se incompetente e suscitou o presente conflito, nos seguintes termos, litteris : “No caso concreto a Administração Militar entendeu insatisfeitas as condições de trabalho da requerente na fase do estágio probatório e, portanto, concluiu que a mesma não preenchia os requisitos de confirmação. Por tal motivo a exonerou das fileiras da Corporação. Tal ato (a exoneração), apesar de ser ‘ato administrativo’, não pode ser considerado como ‘ato disciplinar’ posto que não possui caráter sancionatório, não sendo pena disciplinar. O ato de desligamento não constitui, conseqüentemente sanção sujeita aos princípios informadores do Poder Disciplinar. É mero ato hierárquico da administração pública policial militar, dentro de sua exclusiva competência discricionária (que, evidentemente, não se confunde com arbitrariedade), face ao permissivo legal. A autora tinha mera expectativa e era demissível ad nutum, sem a necessidade de maiores rigores formais, uma vez que a apreciação de que trata o texto legal é livre por parte da autoridade competente.” (fl. 127) O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 135/136, opinando pela declaração da competência da Justiça Comum Estadual. É o relatório. Decido. Com razão o Juízo Suscitante. Nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares , ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças .” (sem grifo no original) Na hipótese em apreço, constata-se que a exoneração da Autora não se deu em virtude de punição pela prática de ato disciplinar, mas em decorrência da inabilitação em estágio probatório, razão pela qual não se insere o presente feito na competência da Justiça Castrense. Nesse entendimento, colaciono o seguinte julgado desta Corte: “Justiça Militar estadual (competência). Ato administrativo (exoneração). Reintegração (pedido). 1. O que compete à Justiça Militar estadual é processar e julgar as ações judiciais contra atos disciplinares militares (EC nº 45/04). 2. Não lhe compete, em conseqüência, ação contra ato administrativo, na qual se alega achar-se a exoneração em estágio probatório viciada por ilegalidade e abusividade, e na qual, também em conseqüência, pleiteiase reintegração. 3. Conflito conhecido, declarada a competência do suscitado.” (CC 54.553/ SP, 3ª Seção, Rel. Min. NILSON NAVES, DJ de 06/02/2006.) RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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No mesmo sentido, vejam-se ainda os seguintes julgados prolatados em hipóteses análogas: CC 50.283/SP, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ de 18/05/2006; CC 54.558/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 19/04/ 2006; CC 56.938/SP, Rel. Min. NILSON NAVES, DJ de 19/12/2005. Ante o exposto, com fundamento no art. 120, parágrafo único, do Código de Processo Civil, CONHEÇO do conflito para DECLARAR competente o JUÍZO DE DIREITO DA 8.ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE SÃO PAULO - SP, ora suscitado. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 18 de maio de 2006. MINISTRA LAURITA VAZ Relatora CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 62.263 - SP (2006/0080818-6) RELATOR: MINISTRO FELIX FISCHER AUTOR: CESAR MEDEIROS ADVOGADO: PAULO LOPES DE ORNELLAS RÉU: FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO SUSCITANTE: JUÍZO DE DIREITO DA 2A AUDITORIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO SUSCITADO: JUÍZO DE DIREITO DA 7A VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE SÃO PAULO - SP DECISÃO Cuida-se de conflito negativo de competência estabelecido entre o Juízo da 2ª Auditoria da Justiça Militar de São Paulo, suscitante, e o Juízo da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, suscitado, em demanda na qual o autor, Policial Militar, pretende a reversão da condição de agregado para o serviço ativo da Polícia Militar com o respectivo pagamento de soldos, desde a data da efetivação de prisão decorrente de processo administrativo disciplinar pela acusação de latrocínio. O Juízo suscitado declinou de sua competência, ao argumento de que a pretensão do autor enquadra-se em demanda judicial contra atos disciplinares militares, atribuída à Justiça Militar em razão da Emenda Constitucional nº 45/2004 (fl. 184). Por seu turno, o Juízo suscitante entendeu que o pedido do autor é apenas para que ele passe da condição de agregado para o serviço público ativo da Polícia Militar do Estado de São Paulo, uma vez que se encontra preso no Presídio Militar Romão Gomes e responde a processo criminal na Justiça Comum e, em conseqüência disso, o pagamento dos respectivos soldos devidos desde a data da efetivação da sua prisão, razão pela qual faleceria competência à Justiça Militar para processar e julgar o feito. (fls. 187-188) Em parecer, a d. Subprocuradoria-Geral da República opina pela declaração da competência da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, ora suscitado. É o relatório. Decido. Pelo que se tem dos autos, o autor pretende o restabelecimento da sua condição de servidor ativo dos quadros da Polícia Militar de São Paulo, mediante agregação (art. 80 da Lei 6.880/80), e o pagamento dos soldos relativos ao período em que se efetivou a sua prisão, conforme relatado. Como disposto no bem lançado parecer ministerial “a agregação não constitui ato disciplinar, mas sim ato administrativo vinculado por expressa disposição constitucional.” A propósito, esta Corte já decidiu que falta competência à Justiça Militar

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para apreciar feitos relativos a reintegração de pessoal que não digam respeito à exoneração decorrente de punições disciplinares. Nesse sentido: “JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL (COMPETÊNCIA). ATO ADMINISTRATIVO (EXONERAÇÃO). REINTEGRAÇÃO (PEDIDO). 1. O que compete à Justiça Militar estadual é processar e julgar as ações judiciais contra atos disciplinares militares (EC nº 45/04). 2. Não lhe compete, em conseqüência, ação contra ato administrativo,na qual se alega achar-se a exoneração em estágio probatório viciada por ilegalidade e abusividade, e na qual, também em conseqüência, pleiteiase reintegração. 3. Conflito conhecido, declarada a competência do suscitado” (CC 54.553SP, 3ª Seção, Rel. Min. Nilson Naves, DJU de 06.02.06) No mesmo sentido: CC nº 54.520, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJU de 07.03.06; CC nº 56.968, da minha relatoria, DJU de 27.03.06; CC nº 48.694, Rel. Min. Paulo Medina, DJU de 19.10.05. Ante o exposto, conheço do conflito e declaro competente para julgamento do feito o Juízo Comum Estadual, ora suscitado. P. e I. Brasília (DF), 02 de junho de 2006. MINISTRO FELIX FISCHER Relator

Em clara defesa à alteração consubstanciada, Sidney Eloy Dalabrida diz que: A ampliação da competência da Justiça Militar Estadual para o processo e julgamento de causas de natureza cível, envolvendo atos disciplinares militares, atende ao critério da especificidade da jurisdição, da racionalidade da sua distribuição, na medida em que atribui a um órgão da jurisdição especial, com qualificação própria, a análise de temas que exigem conhecimento específico da esfera de poder de onde emanam. Ademais, o entrelaçamento quase sempre existente entre crimes militares e transgressões disciplinares desaconselha completamente o modelo de dualidade de jurisdição até então em vigor.58

Considera também que tem havido um completo descaso com os princípios que sustentam as instituições militares e que a Justiça Comum, por desconhecêlos, julgava os conflitos sem distinção dos valores, principalmente entre a relação jurídica administrativa comum e a relação jurídico-administrativa militar59. Apesar de transcorridos mais de dois de vigência desta alteração, suas conseqüências ainda não tomaram rumo certo no Estado do Paraná. Tramitam no Tribunal de Justiça mais de 10 processos de Conflito Negativo de Competência entre a Vara da Auditoria Militar Estadual e as Varas de Fazenda Pública. 58) DALABRIDA, Sidney Eloy. A competência constitucional da Justiça Militar: Questões controvertidas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 56, Novembro/Dezembro 2005. p. 33. 59) DALABRIDA, Sidney Eloy. A competência constitucional da Justiça Militar: Questões controvertidas. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 56, Novembro/Dezembro 2005. p. 34. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Há inúmeras posições que influenciam nestas questões e utilizando-se do resumo de um caso concreto, buscou-se demonstrar o problema que aqui se apresenta, em virtude desta dissonância de entendimentos sobre a imediata aplicabilidade das inovações trazidas pela EC 45/04. Determinado policial militar foi julgado por uma Vara Criminal da Justiça Comum por cometimento do crime capitulado no art. 157, § 2º, incisos II e V do Código Penal e absolvido. Em virtude disto, foi submetido a Conselho de Disciplina e excluído da Corporação. O Conselho de Disciplina, regulado pela Lei Estadual nº 6.961, de 28 de novembro de 1977, é o processo administrativo disciplinar competente para verificar das condições de permanecer nas fileiras da Corporação os policiais militares que: Art. 3º É submetido ao Conselho de Disciplina, o policial-militar referido no artigo 2º que for: I – acusado oficialmente de ter: a) procedido incorretamente no desempenho de função orgânica; b) conduta irregular; c) praticado ato que afete o pundonor policial-militar ou comprometa o decoro da classe; II – afastado do cargo, na forma da legislação vigente, em virtude de procedimento incompatível ou por demonstrar inaptidão para o exercício de funções policiais-militares; III - condenado por crime comum ou militar, de natureza dolosa, em sentença definitiva, à pena restritiva de liberdade; IV – filiado a partido político ou associação assemelhada, suspensos ou dissolvidos por Lei, ou que exerçam atividades nocivas à Segurança Nacional, bem como em favor deles preste serviços, angarie valores, realize propaganda de suas doutrinas ou empreste qualquer colaboração pessoal, sempre de forma dolosa.

Por ter sido absolvido do crime que lhe fora imputado, o policial ajuizou ação declaratória de nulidade de ato administrativo (pressuposto determinante de reversão à função pública), postulando pela reintegração ao cargo e condenação do Estado do Paraná ao pagamento dos vencimentos desde o ato de expulsão. Entretanto, a lide que envolve o policial e o Estado tem sido objeto de discussão, sem adentrar no mérito da questão, apenas se discute a competência e se resume aos seguintes fatos: Em 29 de agosto de 2005, a representante do Ministério Público, atuante da Vara de Fazenda Pública, propugnou pela absoluta incompetência daquele Juízo, com base nas alterações de competência feita pela Emenda Constitucional nº 45/ 04, e ressalta os §§ 4º e 5º, do art. 125: Art. 125. (...) (...) § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente

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decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. § 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares. (grifou)

Alegando ainda tratar-se de matéria processual de aplicação imediata, não se podendo falar em prorrogação de competência, visto que é indeclinável e improrrogável. Inconformado com o parecer, em 03 de maio de 2006, o advogado do Requerente, construiu um pensamento para alegar que a competência é da Vara de Fazenda Pública, em virtude do interesse da Fazenda Pública do Estado, vez que pede a condenação ao pagamento de indenização ao autor, bem como de recondução às fileiras da Polícia Militar, ressaltando que a competência da Auditoria Militar do Estado é para o julgamento de crimes militares. Em abril de 2006, a Procuradoria do Estado, se manifesta pela reforma da decisão do Juízo da 3ª Vara de Fazenda Pública, que encaminha os autos à Justiça Militar Estadual, alegando que é falso o pressuposto de que exista no Paraná uma Justiça Militar, pois jamais fora criada, subsistindo somente, no âmbito da Justiça Comum Estadual, uma Vara Especializada. Sustenta ser facultado aos Estados-Membros a criação da Justiça Militar, ao cumprir o requisito da parte final do § 3º do art. 125, qual seja, o de possuir efetivo na polícia e bombeiro militares, superior a vinte mil integrantes, “não só para a criação do Tribunal Militar, mas sim para a criação da própria Justiça Militar”. Art. 125. (...) § 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes.

Também ressalta que não há Justiça Militar estruturada no Estado do Paraná, uma vez que o Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Paraná, no seu art. 2º, não lhe faz qualquer referência. Sendo mencionada somente nos artigos 93 e 108, o que decorreria de “equívoco de mera técnica legislativa”. Assim sendo, só seria incompetente a Justiça Comum Estadual, se houvesse Justiça Militar estruturada e regulamentada na esfera estadual. Finalmente, conclui que “a estrutura do Judiciário Paranaense está assentada na consideração de que ações como a do presente caso (que são centenas, sem exagero!) são de competência das Varas de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba (que são quatro). Remeter, de uma hora para outra, sem qualquer preparação, os processos para a Vara da Auditoria Militar, é criar um tumulto que somente vai prejudicar as partes e a própria administração da Justiça”. Ressalta, RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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ainda, que a “declaração de incompetência da Justiça Comum sem que haja órgão jurisdicional militar efetivamente instalado e operando” presta um desserviço à função jurisdicional e manifesta-se finalmente pela competência da Vara de Fazenda Pública. Sem mais ponderações, simplesmente acatando a posição inicial da Representante do Ministério, em 14 de dezembro de 2006, a Juíza de Direito Substituta remete os autos à Vara da Auditoria Militar. Contra esta decisão, em janeiro de 2007 o Defensor interpõe recurso de agravo por instrumento, alegando de plano que a julgadora decidiu em desacordo com a doutrina e jurisprudência. Concorda com a manifestação da Procuradora do Estado, alegando que a Vara da Auditoria Militar é uma vara especializada da Justiça Comum e não se trata de Justiça Militar propriamente dita e complementa que Pelo critério de fixação de competência na lei de organização e divisão judiciárias, às Varas da Fazenda Pública compete (em razão da pessoa e da matéria) conhecer e julgar as causas em que for interessada a Fazenda Pública do estado ou do Município, bem assim suas autarquias e sociedades de economia mista e para certas ações privativas destes entes públicos, tais como ação de desapropriação, demolitória e mandados de segurança.

No Tribunal, excepcionalmente, foi negado o seguimento. Segundo o desembargador Leonel Cunha, um dos poucos a decidir desta maneira, a inexistência de Tribunal Militar no Estado não é critério que informa sobre a existência ou não da Justiça Militar. Esta é exercida em primeiro grau pelo Juiz-auditor e pelo Conselho de Justiça Militar e em segundo grau pelo Tribunal de Justiça, que estará exercendo a função típica da Justiça Militar. Alude que, a exemplo da maioria dos Estados Membros, o Paraná não possui o Tribunal de Justiça Militar, e apesar de já ter cumprido o requisito exigido pelo § 3º do art. 125 da CF, que autoriza a sua criação (a PMPR possui um efetivo de 20.237 policiais militares – Lei 14.851-05), “o número de demandas não justifica, ainda, a criação de uma estrutura própria em segundo grau”. Ou seja, tal estrutura poderá ou não ser independente dentro da estrutura do Poder Judiciário dos Estados, por meio dos Códigos de Organização e Divisão Judiciárias. Então, ele traz a lume a evolução legislativa ao longo do tempo, de que forma as alterações nas leis estaduais, os Códigos de Organização e Divisão Judiciárias e a própria Constituição Estadual trataram desta matéria desde 1968, para finalmente concluir que “no Estado do Paraná, a Justiça Militar é exercida em primeiro grau pelo Juiz de Direito da Vara da Auditoria Militar e Conselho de Justiça Militar e, em segundo grau, pelo Tribunal de Justiça”, e que apesar de não ser objeto do agravo a questão sobre a estrutura e recursos disponíveis da Vara da Auditoria da Justiça Militar, em atender ao volume de demandas que seria distribuído com a alteração de competência proposta pela Emenda Constitucional nº 45/2004, tal argumento não é suficiente para determinar a competência das Varas de Fazenda nesta e noutras questões semelhantes. Lembra também que a Emenda Constitucional nº 16/2005, feita ao art. 108 da Consti416

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tuição do Estado do Paraná já incorporou esta modificação de competência material havida. Que a discussão das ações disciplinares junto às Varas de Fazenda desvirtua a finalidade delas e que impunha ao magistrado um estudo que já é dominado pelo Juízo da Auditoria, visto que afeta à atividade militar e que a própria emenda 45 determinou que a apreciação seja feita pelo juiz singular, que possui prerrogativas e garantias funcionais, pois o Conselho é formado por oficiais de menor posto ou antiguidade que o Comandante da Polícia Militar, que via de regra é a autoridade coatora. Enfatiza finalmente que, “trata-se de modificação de competência ratione materiae e, portanto, absoluta. Norma de caráter processual, de ordem pública, aplicável desde logo, inclusive para as demandas ajuizadas antes da vigência da referida Emenda Constitucional”, para negar seguimento ao recurso e manter a decisão da magistrada em determinar a remessa dos autos à Vara da Auditoria da Justiça Militar. Assim, em 27 de abril de 2007, o representante do Ministério Público do Estado do Paraná, que atua na Auditoria Militar exara em seu parecer, que a jurisdição, em sintonia com a norma constitucional, ainda não está estabelecida material e formalmente aqui no Paraná, e que nos Estados onde não há Tribunal Militar, poderiam ser criadas varas especializadas para julgar as ações judiciais contra atos disciplinares e os efeitos materiais deles decorrentes, assim como as varas especializadas já existentes, que conhecem os crimes militares, ou seja, “instituir competência mista à Vara Criminal Militar; ou afinal, criar uma Vara Cível Especializada para conhecer de toda e qualquer matéria em que haja interesse da Administração Militar Estadual, no pólo ativo ou passivo”. Logo, a posição é de que a Justiça Militar do Paraná não detém competência para conhecer a matéria. E complementa, ainda, que a resolução do problema não está na mera redistribuição dos processos, o que causaria desgaste e conseqüente ineficácia do trabalho final. Na seqüência, no dia 7 de maio de 2007, o Juízo da Vara da Auditoria da Justiça Militar Estadual acolheu o conflito negativo de competência e determinou a remessa dos autos ao Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná. Com isso, observa-se que o interessado terá que aguardar pela decisão, para então ter a devida prestação jurisdicional. Disso tudo se pode concluir que, apesar da riqueza jurídica dos posicionamentos, os problemas de ordem prática, e física até, desta questão, não estão sendo solucionados no Estado do Paraná. Esta problemática não tem sido verificada nos demais estados. No Rio Grande do Sul, por exemplo – apesar de melhor estruturada por possuir Tribunal Militar e por isso aparentemente não ter os problemas apontados do Judiciário paranaense –, segundo informações do próprio Tribunal de Justiça Militar, a alteração já está sendo plenamente aplicada. Sendo que só houve divergência por parte de uma das Turmas do Tribunal de Justiça, no sentido de determinar se as ações que já tramitavam na Justiça Comum deveriam lá terminar e não serem remetidas ao Juízo Militar. No entanto, atualmente, as novas ações estão, à totalidade, sendo ajuizadas na Justiça Militar do Estado. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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3 A ATUAÇÃO PENAL DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL 3.1 COMPETÊNCIA

Ao estabelecer critérios para determinar a competência da Justiça Militar Estadual o juiz-auditor da Justiça Militar de São Paulo, Ronaldo João Roth60, estabelece apenas o critério constitucional do § 4º, do art. 125 da CF, “processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”, texto ainda sem alteração61, mas suficiente para esclarecer que, para este autor, assim como muitos outros a competência se esgota no critério ratione legis, que considera este fundamento constitucional e remete ao art. 9º, do Código Penal Militar, que define quais são os sobreditos crimes militares. De igual forma, sobre a competência das Justiças Especiais, didaticamente leciona Tourinho Filho62 “que a Justiça Militar Estadual processa e julga os integrantes da Polícia Militar (Polícia Militar, Polícia Rodoviária Militar Estadual e Bombeiros Militares) nos crimes definidos em lei”, quais sejam, os previstos no art. 9º do CPM, que podem ser propriamente militares – quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos – ou impropriamente militares – quando tipificados no CPM, mas com igual definição na lei penal comum, praticados pelos agentes e/ou situações previstas pelo art. 9º. José da Silva Loureiro Neto faz uma breve construção doutrinária a respeito dos critérios já adotados na classificação dos crimes militares63. Em princípio, os critérios eram de duas naturezas, ratione materiae, em que as infrações são objeto de disposições especiais, e ratione personae, que “compreende aquelas infrações somente cometidas por militares, em razão das obrigações particulares que lhes incumbem nessa qualidade”64. Posteriormente, também os critérios ratione loci, que define que crimes militares são os praticados em lugar sujeito à jurisdição militar (quartéis, navios e aeronaves militares) e ratione temporis, como os praticados em tempo de guerra, estado de sítio, etc. E resume nas palavras de Ricardo Calderón (1944: 53), os motivos pelos quais preferiu o legislador optar pelo critério da ratione legis, em precisar que os crimes militares são aqueles definidos em lei, “as dificuldades que se apresentavam para 60) ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as peculiaridades do juiz militar na atuação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. 61) A atual redação do § 4º do art. 125, da CF, determinada pela Emenda Constitucional nº 45/2004 é “compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”, no entanto, a alteração significativa, que diz respeito à questão dos atos disciplinares é objeto de tópico específico neste trabalho, no que concerne à competência civil da Justiça Militar estadual. 62) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, v. 2. 25. ed. São Paulo, Saraiva, 2003. p. 84-87. 63) LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 31-33. 64) LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 31-33.

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elaborar um conceito completo e imutável de crime militar foram fixadas em normas a fim de evitar definições incompletas ou deficientes, incapazes de aplicação prática, que somente os conduziam ao erro, ou à insuficiência, ou à contradição”65. Nesse sentido, o doutrinador em Direito Penal Militar Jorge César de Assis66 cita o autor do Anteprojeto do Código Penal Militar, Professor Ivo D’aquino, para “conceituar o ‘crime militar’, em si, o legislador adotou o critério ratione legis; isto é, ‘crime militar’, é o que a lei considera como tal. Não define: enumera. Não quer isto dizer que não se haja cogitado dos critérios doutrinários ratione personae, ratione loci, ou ratione numeris (sic)67. Apenas não estão expressos. Mas o estudo do art. 9º do Código revela que, na realidade, estão todos ali contidos. (Revista de Informação Legistaliva, jul./set. 1970, p. 100).” Para Jorge César de Assis68, ainda que a doutrina estabeleça os critérios ratione materiae, “em que se exige que se verifique a dupla qualidade militar – no ato e no agente”; ratione personae, que são aqueles que levam em consideração a qualidade de militar do sujeito ativo; ratione temporis, os que são praticados em determinada época, como em tempo de guerra; ratione loci, que considera o lugar do crime, em regra local sujeito à administração militar; ele próprio conclui que, na realidade, a classificação se faz pelo critério da ratione legis, aquele que o Código Penal expressamente enumera no art. 9º.

3.1.1 O artigo 9º do Código Penal Militar

Este artigo trata especificamente dos crimes militares em tempo de paz e, antes de iniciar o estudo, fazem-se necessárias duas ressalvas. A primeira é de que o objetivo deste trabalho é voltar-se ao processo penal militar, todavia esta referência à legislação material é essencial, tendo em vista que a determinação da competência, conforme o já mencionado § 4º do art. 125 da CF, faz-se em razão da definição dos crimes militares. A segunda ressalva é de que não serão explorados os crimes militares em tempo de guerra, previstos no art. 10, do CPM, vez que não se trata de situação comum e que as diferenças remetem principalmente ao tempo (de guerra) e a alguns dispositivos especialmente previstos no próprio Código como tal. A própria Constituição faz breve menção aos crimes propriamente militares, em seu art. 5º, LXI69, portanto, inicialmente é mister reforçar a distinção entre crime militar próprio e crime militar impróprio, ou seja, conforme Jorge César de Assis70, conhecer os significados dos termos específicos contidos no art. 9º do CPM, e assim os define: 65) LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 31-33. 66) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 35. 67) Ao invés de numeris, talvez o autor quis dizer muneris, por ser em razão da função. 68) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 35. 69) Art. 5º (...): LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (grifou-se) 70) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 37. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Crime Militar – é toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares. Distingue-se da transgressão disciplinar porque esta é a mesma violação, porém na sua manifestação elementar e simples. A relação entre crime militar e transgressão disciplinar é a mesma que existe entre crime e contravenção penal. Crime Militar Próprio – são chamados crimes propriamente militares aqueles cuja prática não seria possível senão por militar, porque essa qualidade do agente é essencial para que o fato delituoso se verifique. Crime Militar Impróprio – são aqueles que estão definidos tanto no Código Penal Castrense quanto no Código Penal Comum e, que, por um artifício legal tornam-se militares por se enquadrarem em uma das várias hipóteses do inc. II do art. 9º do diploma militar repressivo. Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial; II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado; b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito a administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração, ou a ordem administrativa militar; f) (Revogado pela Lei 9.299/1996);

A expressão “por militar em situação de atividade” talvez seja a mais importante e utilizada quando da verificação, por parte das polícias militares, para a abertura do Inquérito Policial Militar. Uma referência importante faz o Cap. QOPM71 Élio de Oliveira Manoel, em seu Manual de Polícia Judiciária Militar, ao afirmar que “muitos Comandantes determinam a instauração de IPM em circunstâncias que não justificam este tipo de procedimento. É imperiosa uma análise preliminar profunda do fato, visando verificar se ele se reveste de indícios de crime militar ou de crime comum, ou ainda de mera transgressão disciplinar”72. Para tanto, os Oficiais a quem competem a instauração de procedimentos, delegados de polícia e os próprios policiais e bombeiros militares devem ter conhecimento sobre as regras de competência a fim de verificarem se determinado crime é de competência da Justiça Militar ou não, à guisa de evitarem procedimentos desnecessários ou em duplicidade. Para Jorge César de Assis, “a atividade de polícia judiciária, no âmbito das polícias militares, cresceu em proporções geométricas, eis que a atividade poli71) Capitão do Quadro de Oficiais da Polícia Militar do Paraná. 72) MANOEL, Élio de Oliveira. Manual de Polícia Judiciária Militar. Curitiba: ATP, 2005. p. 36.

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cial, pelos riscos e situações difíceis que enfrenta, possibilita a ocorrência de delito por parte de seus integrantes”73. Isto criou o que ele chama de crime militar em razão do dever jurídico de agir, ou seja, o policial militar que, de folga, à paisana, se vê obrigado a intervir em situação de flagrância e, utilizando-se de seu armamento particular, “comete fato delituoso por ter se colocado em serviço”.74 Situação que na prática é bastante comum, tem embasamento legal na própria Constituição, art. 144, § 5º, nos artigos 301 do CPP e 243 do CPPM75. Até a Constituição de 1988, a ampliação do conceito de crime militar em relação às polícias militares era um problema. Segundo Jorge César de Assis76, o art. 42 da Carta Magna pôs fim à discussão ao estabelecer que “os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos: a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar; b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício da função inerente ao seu cargo; c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras; d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função da natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Jorge César de Assis escreve que é a lei que determina que o militar da reserva ou reformado seja equiparado ao militar da ativa quando integrado à Administração Militar, e remete ao art. 12 do CPM: “O militar da reserva ou reformado, empregado na administração militar, equipara-se ao militar em situação de atividade, para o efeito da aplicação da lei penal militar”77. 73) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 39-40. 74) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 40. 75) CF Art. 144 (...) § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. CPP Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. CPPM Art. 243. Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja, encontrado em flagrante delito. 76) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 39. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Afirma Jorge César de Assis78, ainda, que crime contra as Instituições Militares são os que afetam a sua organização, administração, patrimônio destinado à sua finalidade e bens que lhes são sujeitos. Vale lembrar ainda uma questão que envolve mais uma peculiaridade em relação à Justiça Militar Estadual e à Justiça Militar Federal, qual seja a possibilidade de esta julgar civis que cometem crimes militares, enquanto aquela não. Tratando deste tema, Jorge César de Assis79 acredita que o art. 125, § 4º da CF acabou por criar uma divergência ao estabelecer que a competência da Justiça Militar Estadual se restringe a processar policiais e bombeiros militares nos crimes definidos em lei, ao contrário da competência extensiva da Justiça Militar Federal, que pune os crimes militares não importando quem os cometa. Sendo que é possível verificar justamente nas hipóteses de crimes contra as instituições policiais militares, bem como ao seu patrimônio e administração. Contudo, cabe ressaltar, também, que o autor menciona que, além destes, a outra possibilidade de o civil praticar crime militar é o cominado no art. 183 do CPM, a insubmissão contra o serviço militar80. Parágrafo único. Os crimes de que tratam este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.

Este parágrafo foi acrescentado pela polêmica Lei 9.299/96 e será tratado em tópico específico tendo em vista a sua importância.

3.2 OUTROS CRITÉRIOS QUE ESTABELECEM COMPETÊNCIA

Além do estabelecido pela Constituição e pelo Código Penal Militar, existem outros dispositivos legais concernentes à competência no âmbito penal militar. São critérios importantes, alguns deles bastante utilizados, que devem ser conhecidos por aqueles profissionais do Direito que almejam um conhecimento mínimo sobre o Direito Penal Militar. São eles: Lei nº 9.299/96 9.299/96, que alterou “dispositivos dos Decretos-Leis números 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969, Códigos Penal Militar e de Processo Penal Militar, respectivamente”, em especial o parágrafo único do art. 9º do CPM, a ser tratado em tópico específico, conforme já mencionado. Lei nº 9.055/95 9.055/95, que “dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências”. Esta, devido às polêmicas causadas na época e os seus posteriores efeitos, também será abordada mais detalhadamente. Súmula 06 do STJ – “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de polícia

77) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 39. 78) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 39. 79) ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 42-43. 80) Art. 183. Deixar de apresentar-se o convocado à incorporação, dentro do prazo que lhe foi marcado, ou, apresentando-se, ausentar-se antes do ato oficial de incorporação.

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militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade”. Dois motivos ensejaram um estudo mais aprofundado a respeito desta norma que estabelece competência. Primeiro, o número significativo de acidentes de trânsito com viaturas e segundo, as divergências a respeito de sua aplicabilidade. Súmula 53 do STJ – “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”. Esta súmula confirma uma das diferenças entre a Justiça Militar Estadual e a da União, qual seja, a de que somente a segunda poderá processar e julgar civil. À Justiça Militar Estadual não é possível, nem mesmo neste caso, em que o infrator responderá como se tivesse praticado crime contra o patrimônio de qualquer outro órgão. Súmula 75 do STJ – “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal”. Apesar de entendimentos divergentes, não se trata de um crime com muita incidência, nem tampouco desperta muito interesse na doutrina em produzir material a respeito. Súmula 78 do STJ – “Compete à Justiça Militar processar e julgar policial de corporação estadual, ainda que o crime tenha sido praticado em outra unidade federativa”. Súmula 90 do STJ – “Compete à Justiça Militar processar e julgar o policial militar pela prática de crime militar, e à Comum pela prática de crime comum simultâneo àquele”. Súmula 172 do STJ – “Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço”. Esta súmula remete à Lei nº 4.898/65 e praticamente não enseja dúvidas sobre sua aplicabilidade para processar e julgar os militares, vez que a própria lei os enumera como sujeitos ativos do crime.

3.2.1 Lei 9.299/96

Esta lei de apenas três artigos nasceu em meio a uma grande polêmica e provocou bruscas alterações na Justiça Militar, tudo em decorrência de ditos anseios da população, mas que ainda não se concluiu se lhe beneficiou ou não. A advogada Ane Graciele Hansel81 indaga se a sociedade foi beneficiada com as seguintes alterações: à alínea “c”, do inciso II, do art. 9º do CPM foi acrescentada a expressão “... ou atuando em razão da função” e suprimiu a figura do assemelhado82 como sujeito passivo, sendo que esta alteração, segundo ela, não gera controvérsias, se o militar estiver atuando em razão da função, ainda que fora de serviço, será julgado pelo foro militar; A revogação da alínea “f” do mesmo inciso II, do art. 9º do CPM trouxe, segun81) HANSEL, Ane Graciele. A alteração de competência preconizada pela Lei 9.299/96. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano V, n. 27, Janeiro/Fevereiro 2001. p. 29-34. 82) Art. 84 do CPPM: “Considera-se assemelhado o funcionário efetivo, ou não, dos Ministérios da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, submetidos a preceito de disciplina militar, em virtude de lei ou regulamento.” RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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do ela, importante mudança, pois não se exige mais que um militar, que cometa um crime com arma da corporação ou qualquer material bélico, seja julgado pela Justiça Militar, mas sim pela Justiça Comum, e exemplifica que, se um policial militar matasse um vizinho, por motivo de ordem pessoal, o crime seria considerado militar pelo simples fato de se ter utilizado da arma de propriedade da entidade militar; Em relação às alterações ao Código de Processo Penal Militar, prossegue a advogada, o caput do art. 82 foi simplesmente adequado à alteração da legislação material, ou seja, “O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz: ...”. No entanto, a inclusão do § 2º “Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum” gerou debates e até uma ADIn, ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL, que entendiam que a elaboração do Inquérito Policial nos casos mencionados deveriam ser elaborados pela Polícia Civil e não pela Polícia Judiciária Militar. O STF na ADIn, por maioria de votos, indeferiu o pedido de liminar acerca da inconstitucionalidade do § 2º (D.J.U., n.75, de 22.04.1997, p. 14332, Seção 1), permitindo que os crimes dolosos contra a vida de civil, praticados por militares, sejam apurados por Inquérito Policial Militar. Assim, estes são remetidos às auditorias, vão conclusos ao Juiz, que dará vista ao Ministério Público, que se manifestará sobre a incompetência da Justiça Militar. Já com o parecer, os autos irão conclusos ao juiz, que neste caso declinará da competência, determinandolhes a remessa à Justiça Comum Estadual. Ainda, poderá o juiz de ofício declarar a incompetência do Juízo, nos termos do art. 147, do CPPM83. E ressalta ainda que, à época da edição da lei, os processos concernentes à matéria que já tramitavam junto às Auditorias Militares Estaduais foram remetidos à Justiça Comum Estadual; Mas, na opinião da advogada84, a mais significativa mudança instituída pela Lei n. 9.299/96 foi, sem dúvida, a inclusão do parágrafo único ao art. 9º do Código Penal Militar. Inúmeros são os argumentos contra e a favor da subtração da competência da Justiça Castrense para processar e julgar os militares que cometem crimes dolosos contra a vida de civil, em favor da Justiça Comum. Os argumentos favoráveis à lei são, via de regra, ligados ao senso comum, do ponto de vista da sociedade que se viu à mercê de policiais criminosos e que viram na edição da Lei, em 1996, a solução para a impunidade que acreditavam, e ainda acreditam, imperar no meio policial. O outro argumento, também favorável à lei, é em relação ao corporativismo, devido ao julgamento ser feito por órgão colegiado formado pelos próprios militares, e nesta seara militam inclusive operadores do direito em franca ofensa à dignidade do Juiz Auditor, do Representante do Ministério Público, do Defensor Público e dos advogados, todos civis, profissio83) Art. 147, do CPPM: Em qualquer fase do processo, se o juiz reconhecer a existência de causa que o torne incompetente declará-lo-á nos autos e os remeterá ao juízo competente. 84) HANSEL, Ane Graciele. A alteração de competência preconizada pela Lei 9.299/96. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano V, n. 27, Janeiro/Fevereiro 2001. p. 29-34.

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nais de carreira, tão competentes e conhecedores do ordenamento jurídico, como aqueles que atuam na Justiça Comum. Isso sem mencionar ainda que em 24 Unidades da Federação, dentre estas o Distrito Federal, o 2º Grau de Jurisdição é exercido pelos Tribunais de Justiça dos Estados. Paulo Frederico Cunha Campos85 lembra que, acreditam os leigos no assunto, as decisões dos Conselhos de Justiça tendem à parcialidade, ao corporativismo para beneficiar os réus e por isso clamam pela extinção da Justiça Militar. Na prática, segundo ele, isso não ocorre e a presença dos juízes militares se justifica pela sua capacidade de examinar as peculiaridades da vida castrense, principalmente nos crimes propriamente militares. A Lei nº 9.299/96 é, como lembra a advogada Ane Graciele Hansel86, fruto de forte pressão política e social, decorrência de fatos na época envolvendo policiais militares. Sendo que os de maior repercussão nacional foram os da Casa de Detenção de São Paulo, o de Corumbiara em Rondônia e o de Eldorado de Carajás, no Pará. Lembrando também que o deputado federal Hélio Bicudo foi na época o maior defensor da Lei e utilizou-se de pressupostos que hoje são facilmente comprovados que não se tratava da solução prometida. Ele afirmava que os policiais militares tinham a certeza da impunidade quando saíam às ruas e que a violência policial ocorria pela ausência de um julgamento civil e que deveria haver a supressão total da Justiça Militar. Em artigo publicado no Jornal do Brasil em 17.05.0487, Hélio Bicudo se posiciona pela retirada total da competência da Justiça Militar Estadual de processar e julgar os policiais militares por todos os crimes cometidos contra civis, e que o projeto da Lei 9.299/99 assim o previa, mas somente os dolosos contra a vida passaram para a competência da Justiça Comum, graças ao que ele chama de “lobby das PMs”, junto ao Senado Federal e que esta questão já havia sido levantada na Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993. Hélio Bicudo esclarece ainda que não se trata de extinguir-se a Justiça Militar Federal, que tão bem cumpre com suas atribuições, mas “tão-somente retirar da competência da Justiça Militar das PMs delitos que, acobertados pelo manto da impunidade, se constituem em verdadeiro incentivo para a violência policial.”88 Sobre a tese da impunidade rebateu Getúlio Corrêa de que criminoso algum está preocupado com a justiça que o julgará, seja ela especial ou comum, ou nas palavras de Ane Graciele Hansel “se o criminoso comum não se preocupa com o 85) CAMPOS, Paulo Frederico Cunha. A Justiça Militar e a Emenda Constitucional nº 45. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, nº 710, 15 jun. 2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6811. Acesso em 27 jul. 2007. 86) HANSEL, Ane Graciele. A alteração de competência preconizada pela Lei 9.299/96. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano V, n. 27, Janeiro/Fevereiro 2001. p. 29-34. 87) BICUDO, Hélio. Crimes de policiais militares. Disponível em: http://portal.prefeitura.sp.gov.br/portal/cidadania/cmdh/artigos/0016. Acesso em: 09 maio 2007. 88) BICUDO, Hélio. Crimes de policiais militares. Disponível em: http://portal.prefeitura.sp.gov.br/portal/cidadania/cmdh/artigos/0016. Acesso em: 09 maio 2007. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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tipo de justiça ao praticar o crime, não se pode esperar que o policial militar se preocupe”. Já em relação à truculência policial, que de plano deve ser repudiada por qualquer um, ela também remete à opinião de Getúlio Corrêa: Entende Getúlio Corrêa, que as críticas contrárias à Justiça Militar ocorrem pelo desconhecimento da mesma, e que, na verdade, houve uma crise de vedetismo, na ânsia de se aprovar um projeto de interesses político-ideológicos, não se podendo aceitar as críticas contra os magistrados da Justiça Militar, como se eles aplaudissem os atos de violência policial praticados contra o cidadão.89

E quanto ao questionamento que se fez quando da edição da Lei, em 1996, por Getúlio Corrêa, em artigo publicado no Jornal do Brasil, indagando se a sociedade seria beneficiada, hoje, mais de dez anos depois, já é possível responder fazendo as mesmas indagações que Ane Graciele Hansel fez em 2001, ou seja, o índice de criminalidade entre policiais militares baixou? O cidadão está mais seguro? Ane Graciele Hansel90 conclui afirmando que a competência para julgar tais crimes deveria ser da Justiça Militar e, mais, que o corporativismo que se verifica é em favor da instituição militar e não em favor do réu de forma isolada; que os julgamentos na seara castrense são feitos por profissionais idôneos e preparados para tal e que não são menos justos do que os agora feitos pelo Júri Popular e finaliza que ao contrário das promessas do legislador, não foi a sociedade beneficiada concretamente com a supressão de parte da competência da Justiça Militar, até porque, a maioria dos policiais militares não cometem crimes, mesmo sabendo que serão punidos por ela. E, se existem criminosos, eles o são independentemente de sua profissão e do tipo de Justiça que é competente para seu julgamento. O Militar é, em regra, um auxiliar do Poder Judiciário, não podendo ser tratado como criminoso, e sim, como militar.91

Célio Lobão92 acrescenta, nesta perspectiva, que a redação do parágrafo único do art. 9º é inconstitucional, ainda que a inconstitucionalidade não seja reconhecida pelos Tribunais. Ele coloca e analisa que a alteração do texto deveria ser para ao menos manter a competência da Justiça Militar Federal para processar e julgar os integrantes das Forças Armadas nos crimes de homicídio doloso con89) HANSEL, Ane Graciele. A alteração de competência preconizada pela Lei 9.299/96. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano V, n. 27, Janeiro/Fevereiro 2001. p. 29-34. 90) HANSEL, Ane Graciele. A alteração de competência preconizada pela Lei 9.299/96. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano V, n. 27, Janeiro/Fevereiro 2001. p. 29-34. 91) HANSEL, Ane Graciele. A alteração de competência preconizada pela Lei 9.299/96. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano V, n. 27, Janeiro/Fevereiro 2001. p. 29-34. 92) LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário A Competência da Justiça Militar. Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano IX, n. 50, Novembro/ Dezembro 2004. p. 8.

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tra civil. Segundo ele, a destinação das Forças Armadas é a proteção do território nacional, do espaço aéreo brasileiro e das águas territoriais, contra aqueles que neles penetram ilegalmente, principalmente no espaço aéreo, invadido por traficantes e contrabandistas. Defende também outra exceção que é a de foro especial ao policial militar que comete crime em confronto com bando de criminosos com estrutura de milícia fortemente armada, o que não é incomum atualmente. Sobre esta inconstitucionalidade, recentemente a alteração feita pela Emenda Constitucional nº 45, no § 4º do art. 125 da CF, veio, segundo Ronaldo João Roth93, a constitucionalizar o disposto na Lei 9.299/96, que era, segundo ele, considerada de duvidosa constitucionalidade até então, vez que fez a ressalva da competência do júri, nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil. Outro aspecto em que a declinação de competência impõe, de certa forma, prejuízo à sociedade é quanto à celeridade processual. Como bem lembrou o Ministro do Superior Tribunal Militar, Flavio Flores da Cunha Bierrenbach94, o STM é, dentre os Tribunais Superiores, o mais célere, ou seja, aquele que dá a melhor prestação jurisdicional à população, uma vez que o crime não deve cair no esquecimento. De igual forma isto se observa no âmbito das Justiças Estaduais que, por ser justiça especializada e ter um público restrito, mais rapidamente proporciona o retorno àqueles que foram vítimas dos abusos cometidos por policiais e, sob este aspecto, encaminhar os autos à Justiça Comum tem demorado sobremaneira para que se alcance solução. Um exemplo próximo é do julgamento de um Oficial da Polícia Militar do Paraná, que teve ampla repercussão na imprensa, ter acontecido somente no ano de 2006, sendo que o fato ocorreu no ano de 1996 e o acusado permaneceu todo este tempo – e ainda permanece pois a sentença ainda não transitou em julgado – no serviço ativo da Corporação. Enquanto isso, no Juízo Militar do Paraná, atualmente, todo e qualquer processo é instruído e julgado no prazo médio de dois anos.

3.2.2 Lei 9.099/95 – Juizados Especiais

A não-aplicabilidade da Lei 9.099/95 no âmbito da Justiça Militar é ponto pacífico, doutrinária e jurisprudencialmente, além de expressas previsões legais como a Súmula 09 do STM, “A Lei 9.099/95 não se aplica na justiça militar da União” e a Lei n. 9.839/99, de 27 de setembro de 1999, que acrescentou o artigo 90-A à Lei 9.099/95, “As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”, vedando-lhe expressamente a aplicação. Jorge César de Assis esclarece de forma brilhante e pontual, em anexo denominado “A Lei 9.099/95 e sua Inaplicabilidade na Justiça Militar”, ao seu Comentários ao Código Penal Militar95, os motivos desta posição, considerada majoritária, mas nem por isso menos polêmica. 93) ROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a Reforma Constitucional da Justiça Militar Estadual e seus efeitos. Disponível em http://www.jusmilitaris.com.br. Acesso em: 29 jun. 2007. 94) Em palestra proferida na Abertura da Semana de Iniciação Científica, realizada em 08 de março de 2007, no Centro Universitário Positivo – UNICENP. 95) ASSIS, Jorge César de. Anexo I – A Lei 9.099/95 e sua inaplicabilidade na Justiça Militar. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 283-298. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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Para Jorge César de Assis96, a lei dos Juizados Especiais é totalmente incompatível com a Justiça Militar, pois, já de plano, seu art. 1º dispõe que os Juizados Especiais Cíveis e Criminais são órgãos da Justiça Ordinária, como ressalta, justiça ordinária é justiça comum e a Justiça Militar é justiça especial. Relembra ainda que a defesa por parte de alguns doutrinadores, quanto à aplicabilidade da lei dos Juizados Especiais, levou a Comissão Nacional de Interpretação da Lei 9.099/95, em reunião realizada em 27.10.1995, concluir em Súmula o seguinte: Segunda – São aplicáveis pelos juízos comuns (estadual e federal, militar e eleitoral, imediata e retroativamente, respeitada a coisa julgada, os institutos penais da Lei 9.099/95, como a composição civil extintiva da punibilidade (art. 74, parágrafo único), transação (arts. 72 e 76), representação (art. 88) e suspensão condicional do processo (art. 89).

A crítica feita pelo autor versa justamente pela especialidade da legislação militar e seu caráter peculiar, que são os meandros da vida na caserna. Porém, naquele mesmo sentido, Jorge César de Assis97 cita, ainda, Ada Pelegrini Grinover e decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em favor da aplicabilidade do art. 88 da Lei 9.099/95, nos crimes de lesões corporais culposas e leves dolosas, que exigem a representação do ofendido. Dois são os pesados argumentos utilizados pelo autor. Primeiro, em apoio à citada Promotora de Justiça carioca Carla Rodrigues de Araújo, que pondera que em regra os crimes militares são de ação pública incondicionada (art. 29 do CPPM), não existindo, portanto, o instituto da representação na legislação castrense, consistindo apenas na notícia-crime. O outro importante argumento de Jorge César de Assis está relacionado às peculiaridades da vida militar, pautada na hierarquia e disciplina. Questiona como viabilizar a representação por parte de recrutas, que sofrem lesões em instrução, contra superior hierárquico seu? E transacionar acerca de valores tão importantes nas Forças Armadas e Polícias Militares. E mais, como retirar do Representante do Ministério Público, que atua nas auditorias a condição de dominus litis, quando lesões são provocadas culposamente por militares em inaceitáveis brincadeiras com armas de fogo, permitindo intromissões indevidas na seara da Justiça Castrense. Ao tratar da suspensão condicional do processo, ele aponta o enfraquecimento das instituições militares diante da impunibilidade gerada e incentivo à quebra da disciplina se, por exemplo, o militar que desrespeita símbolo nacional, crime previsto no art. 161, do CPM, com pena de detenção de um a dois anos, fosse agraciado com a suspensão, argumentando que “cada tipo penal militar possui características próprias que os diferem dos crimes comuns, com os quais não podem ser nivelados, pois naqueles, a ofensa atinge simultaneamente a Instituição”98. 96) ASSIS, Jorge César de. Anexo I – A Lei 9.099/95 e sua inaplicabilidade na Justiça Militar. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 283-284. 97) ASSIS, Jorge César de. Anexo I – A Lei 9.099/95 e sua inaplicabilidade na Justiça Militar. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 284-286. 98) ASSIS, Jorge César de. Anexo I – A Lei 9.099/95 e sua inaplicabilidade na Justiça Militar. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 286-288.

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Descabidas também se fazem a composição civil e a transação penal, previstas nos arts. 72 e 76, da 9.099/95, respectivamente, por ausência de penas restritivas de direitos e multa, na legislação penal militar99. Entretanto, quanto a esta posição de Jorge César de Assis, da total incompatibilidade da aplicação de pena restritiva de direito e aplicação de multa, necessário se faz comentar que no âmbito da Justiça Militar Estadual do Paraná estes institutos são amplamente verificados nas sentenças aplicadas. O então Juiz-auditor José Carlos Dalacqua, bem como outros que ali atuam esporadicamente, por analogia à legislação comum, neste caso a Lei 9.714/98, aplicam-na em praticamente todas as hipóteses possíveis, cujas condições benéficas também têm sido adotadas pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Para concluir que os efeitos da aplicação da Lei 9.099/95 seriam nocivos à estrutura das Forças Armadas e das Polícias Militares, Jorge César de Assis explica que o “entendimento de que há casos em que o interesse da Pátria ou das Instituições Militares (Forças Armadas e Polícias Militares) está acima dos próprios fundamentos destes institutos e, assim, o processo deve seguir seu rumo e a pena deve ser sempre executada para servir de exemplo e dissuadir a repetição do crime”100. Em que pese a todos os argumentos da doutrina, da jurisprudência e, principalmente, da legislação, ainda há problemas que norteiam as hipóteses de aplicação da Lei dos Juizados Especiais. Primeiramente, porque até a edição da sobredita Lei n 9.839/99, que lhe vedou expressamente a aplicação na Justiça Militar, neste ínterim ela era parcialmente aplicada (institutos da representação e suspensão do processo) gerando com isso coisa julgada, conforme estudo de Ronaldo João Roth em artigo da Revista de Direito Militar101. Em decorrência desta aplicação é comum serem opostas no foro militar exceções de coisa julgada e de litispendência. Segundo ele, a verificação, principalmente do crime militar impróprio é que enseja a confusão dos operadores do direito e com isto o problema da vinculação ou não da Justiça Castrense quando da aplicação dos referidos institutos. Ronaldo João Roth desenvolve o seu posicionamento com base na possibilidade da extinção da punibilidade, decorrente de coisa julgada, por sentença prolatada por juiz incompetente e conclui102: A Justiça Castrense, que é uma Justiça Especializada, tem competência constitucional e legal para apreciar crimes militares, portanto, a apreciação destes pela Justiça Comum caracteriza atos inexistentes e não permite a formação da coisa julgada. 99) ASSIS, Jorge César de. Anexo I – A Lei 9.099/95 e sua inaplicabilidade na Justiça Militar. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 288-289. 100) ASSIS, Jorge César de. Anexo I – A Lei 9.099/95 e sua inaplicabilidade na Justiça Militar. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 290. 101) ROTH, Ronaldo João. Coisa Julgada: Lei n. 9.099/95, Juizado Especial Criminal e a Competência da Justiça Militar. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano X, Número 59, Maio/Junho 2006. p. 35-40. 102) ROTH, Ronaldo João. Coisa Julgada: Lei n. 9.099/95, Juizado Especial Criminal e a Competência da Justiça Militar. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano X, Número 59, Maio/Junho 2006. p. 35-40. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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A coisa julgada somente ocorre quando a decisão judicial seja proveniente de órgão judicial competente, segundo a Constituição Federal, logo, se o Juizado Especial Criminal aprecia matéria que refoge ao âmbito de sua competência legal e constitucional, suas decisões, no caso de crimes militares, não alcançam aquele feito, porquanto são de incompetência absoluta. Nas hipóteses de incompetência constitucional, segundo a melhor doutrina, os atos praticados são inexistentes, não podendo sequer ser aproveitados nem mesmo os atos não-decisórios. A decisão de extinção de punibilidade é decisão definitiva ampla e não julga o mérito principal objeto da ação, isto porque não absolve e nem condena, logo, ainda que tenha a mesma existido, perante o Juizado Especial Criminal, nenhum obstáculo acarretará para apreciação do mesmo fato pela Justiça Militar.

A relevância de toda esta explanação a respeito da aplicabilidade da Lei nº 9.099/95, no âmbito da Justiça Militar é que, segundo Ronaldo João Roth e a própria experiência na Justiça Militar Estadual do Paraná mostram, são comuns os casos em que os Juizados Especiais lavram o Termo Circunstanciado em situações de evidente competência da Justiça Militar e, mais, dão prosseguimento normal ao feito, aplicando-lhes todos os seus institutos. É essencial que os militares, sujeitos ativos destes crimes, e os seus defensores tenham pleno conhecimento desta inaplicabilidade, ainda que mais benéfica para o acusado, tendo em vista que a mesma matéria poderá vir a ser apreciada pelo Juízo competente, causando-lhes transtornos e às vezes até o cumprimento de sanção que será declarada totalmente inválida.

3.2.3 Súmula 6 do STJ – Crimes de Trânsito Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de polícia militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade.

Os acidentes de trânsito já não comovem ou assustam a mais ninguém, tão corriqueiros que o são e, mais comum do que se possa imaginar, são os acidentes envolvendo viaturas policiais. O Juiz do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, Fernando Pereira103, constatou que no período em que exerceu as funções de Subcomandante e Chefe do Estado-Maior da Polícia Militar do Estado de São Paulo, entre o mês de abril de 2002 e dezembro de 2004, a causa morte de policiais em serviço foi maior em acidentes de trânsito com viaturas da Corporação que em confronto com marginais. Constata-se, ainda, que a grande maioria dos casos fica restrita ao âmbito administrativo, cujo resultado é somente o ressarcimento de prejuízos financeiros causados aos terceiros envolvidos, mas, por vezes, a integridade física de alguém é atingida, podendo ser terceira pessoa militar ou civil. 103) PEREIRA, Fernando. Crimes de trânsito e a competência da Justiça Militar Estadual (Palestra proferida no dia 07 de dezembro de 2006, por ocasião do Seminário Nacional sobre Direito Militar, realizado na cidade de São Paulo). Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME. Florianópolis/SC, Ano X, n. 62, Novembro/Dezembro 2006. p. 9-15.

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São duas hipóteses diversas e que recebem tratamento diferenciado pela Justiça para o julgamento da causa. A primeira, que envolve somente militares, autor e vítima (s), será julgada pela Justiça Castrense, ao passo que, se o ofendido for civil, o julgamento será feito pela Justiça Comum, utilizando-se das previsões legais do Código Penal Militar e do Código de Trânsito Brasileiro. No entanto, existe uma discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito desta questão. Benevides Fernandes Neto, Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo e Bacharel em Direito104, defende que “o conflito aparente de normas em relação aos crimes automobilísticos cometidos por militares da ativa, na direção de veículos automotores, tendo como vítimas outros militares, devem ser, hodiernamente, analisados sob a ótica do Código de Trânsito Brasileiro e não mais sob a égide do codex castrense”, baseado principalmente nas seguintes questões: de acordo com o princípio da especialidade, o Código Penal Militar está nesta posição em relação ao Código Penal, bem como o Código de Trânsito Brasileiro, ao apresentar figuras típicas dos crimes automobilísticos, ainda que a edição do CTB, Lei nº 9.503/97, de 23.09.1997, seja posterior ao Decreto-Lei nº 1001, de 21.10.1969, que instituiu o Código Penal Militar, pelo critério cronológico e especializante – principalmente ao acrescentar o elemento especializante “na direção de veículo automotor”. E acrescenta ainda que: - o CTB, em seu artigo 291, determina a aplicação das normas gerais do CP e do CPP, no que não dispuser de modo diverso, bem como, no que couber, a Lei nº 9.099/95; neste sentido, temos que a lesão corporal culposa comporta a aplicação dos institutos da representação, composição civil, da transação penal e a suspensão condicional do processo, fato que não se verifica diante da aplicação do CPM ao referido delito, uma vez que no delito castrense a ação penal é pública incondicionada, exceção feita aos crimes capitulados nos artigos 136 a 141, e não se lhe aplica os institutos da Lei nº 9.099/95 por expressa vedação legal, o que configura uma situação extremamente prejudicial ao militar; - em relação ao homicídio culposo se constata, em princípio, que o quantum da pena poderia ser mais prejudicial ao militar, porém, existe a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito, nos termos dos artigos 43 e 44 do CP, o que não se verifica em relação ao CPM, uma vez que as referidas penas não fazem parte do rol taxativo do seu artigo 55; - em termos de política criminal, a adoção do CTB consagrará a aplicação da lei mais benéfica ao réu e, sem dúvida nenhuma, assoberbará a supremacia dos direitos e garantias fundamentais, sem afrontar os princípios constitucionais da hierarquia e da disciplina.105

Com o intuito de defender a revisão da Súmula nº 06 do STJ, para que a 104) FERNANDES NETO, Benevides. Uma nova visão sobre a Súmula 06 do STJ. Disponível em http:// www.jusmilitaris.com.br. Acesso em: 29 jan. 2007. 105) FERNANDES NETO, Benevides. Uma nova visão sobre a Súmula 06 do STJ. Disponível em http:// www.jusmilitaris.com.br. Acesso em: 29 jan. 2007. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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competência para julgar os delitos decorrentes de acidente de trânsito seja de competência da Justiça Comum em todas as hipóteses, inclusive quando as vítimas forem outros militares, a fim de efetivar direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, incluindo os militares estaduais e federais. Levando em consideração os mesmos argumentos já mencionados, Fernando Pereira, Juiz do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo106, apresenta a posição divergente daquele Tribunal, de que a Súmula 06 do STJ está superada. Para tanto menciona que o Supremo Tribunal Federal, por duas ocasiões, uma no ano de 1991 e outra no ano de 1999, decidiu que a competência para julgar policial militar que, em patrulhamento preventivo, dirigindo viatura, veio a causar lesões corporais em vítima civil, era da Justiça Militar Estadual, e que ambas as decisões tiveram como fundamento o art. 125, § 4º da Constituição Federal, que estabelece a competência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar policiais militares nos crimes militares definidos em lei, e também no art. 9º, inciso II, alínea “c”, do Código Penal Militar, que considera crime militar aqueles previstos no referido Código e os igualmente previstos na lei penal comum, quando praticados “por policial militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil”. O magistrado concorda que não é possível vislumbrar a aplicação do Código de Trânsito Brasileiro em detrimento de norma constitucional tão clara e amparada pela legislação ordinária, qual seja o Código Penal Militar, em face do interesse público, e não sob argumento de que as penas cominadas sejam menores que as previstas na legislação comum, pois esta prevê benefícios como a substituição das penas privativas de liberdade pelas penas restritivas de direito, não previstas no Código Castrense. A respeito destas substituições, conforme já dito, que no caso do Estado do Paraná, os policiais militares estão recebendo os benefícios da substituição das penas privativas de liberdade, que vêm sendo corriqueiramente aplicados na Justiça Militar Estadual, na forma da Lei Comum nº 9.714/98. Fernando Pereira107 defende ainda que, apesar de argumentos de que o CTB é legislação especial perante o Código Penal Comum, por tratar do assunto de maneira específica, de igual maneira o é o Código Penal Militar, “cujo texto, como um todo, tem o sentido de especialização em razão da sua própria existência no contexto jurídico do país”, e salienta também que no âmbito do Superior Tribunal Militar já está pacificado o entendimento da não-aplicação dos arts. 302 e 303, do Código de Trânsito Brasileiro, quando subsistir situação prevista no art. 9º do Có106) PEREIRA, Fernando. Crimes de trânsito e a competência da Justiça Militar Estadual (Palestra proferida no dia 07 de dezembro de 2006, por ocasião do Seminário Nacional sobre Direito Militar, realizado na cidade de São Paulo). Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano X, n. 62, Novembro/Dezembro 2006. p. 9-15. 107) PEREIRA, Fernando. Crimes de trânsito e a competência da Justiça Militar Estadual (Palestra proferida no dia 07 de dezembro de 2006, por ocasião do Seminário Nacional sobre Direito Militar, realizado na cidade de São Paulo). Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis/SC, Ano X, n. 62, Novembro/Dezembro 2006. p. 9-15.

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digo Penal Militar e conclui: que a Súmula 6 do STJ, não mais subsiste diante das decisões do STF e do STM; e que os referidos artigos do CTB só poderão ser aplicados quando o militar não estiver em serviço, nem atuando em razão da função. Necessário mencionar que, na Justiça Militar Estadual do Paraná, à totalidade, os Inquéritos Policiais Militares que tratam de acidente com viatura policial, envolvendo vítima civil, são remetidos à Justiça Comum.

4 O PROCESSO PENAL MILITAR NA ESFERA ESTADUAL 4.1 Investigação preliminar e ação penal O processo penal militar apresenta algumas peculiaridades em relação ao processo penal comum. Assim, tendo em vista que este trabalho se destina aos aspectos gerais, é mister fazer considerações a respeito destas peculiaridades, que porventura causem dúvida ou estranheza num primeiro contato do profissional do direito com a matéria. O inquérito policial é o “procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria”108. Tendo como objetivo precípuo formar o convencimento do Ministério Público. Além do Código de Processo Penal, diversas leis extravagantes estipulam prazos diferenciados para conclusão do inquérito. No caso do Inquérito Policial Militar o prazo é de 20 dias, se o réu estiver preso, ou 40 dias, prorrogáveis por mais 20 dias, se o réu estiver solto109. Ainda sobre a colheita de provas na fase do inquérito, Guilherme de Souza Nucci ressalta a cautela do Código de Processo Penal Militar, que em seu art. 297 traz: “O juiz formará convicção pela livre apreciação do conjunto de provas colhidas em juízo (...)” (grifou)110. No Processo Penal Militar, toda ação será pública e incondicionada, nos termos do art. 29 do CPPM: “A ação penal é pública e somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público Militar111”. 108) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 75. 109) CPPM Art 20. O inquérito deverá terminar dentro em vinte dias, se o indiciado estiver preso, contado esse prazo a partir do dia em que se executar a ordem de prisão; ou no prazo de quarenta dias, quando o indiciado estiver solto, contados a partir da data em que se instaurar o inquérito. 1º Este último prazo poderá ser prorrogado por mais vinte dias pela autoridade militar superior, desde que não estejam concluídos exames ou perícias já iniciados, ou haja necessidade de diligência, indispensáveis à elucidação do fato. 2º Não haverá mais prorrogação, além da prevista no § 1º, salvo dificuldade insuperável, a juízo do ministro de Estado competente. Os laudos de perícias ou exames não concluídos nessa prorrogação, bem como os documentos colhidos depois dela, serão posteriormente remetidos ao juiz, para a juntada ao processo. Ainda, no seu relatório, poderá o encarregado do inquérito indicar, mencionando, se possível, o lugar onde se encontram as testemunhas que deixaram de ser ouvidas, por qualquer impedimento. 3º São deduzidas dos prazos referidos neste artigo as interrupções pelo motivo previsto no § 5º do art. 10. 110) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 76. 111) Apesar da referência do Código ao Ministério Público Militar, este somente atua no âmbito da Justiça Militar da União. Na Justiça Militar Estadual atuam os representantes do Ministério Público, que são das carreiras dos Estados.

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Logo, caberá ao Representante do Ministério Público oferecer a denúncia, com base nos Inquéritos Policiais Militares ou outros procedimentos administrativos que vierem a fornecer elementos suficientes. Estes procedimentos são normalmente oriundos das corregedorias ou outros órgãos administrativos, que tomam conhecimento de irregularidades praticadas por policiais militares, e na hipótese de indícios de crime, remetem ao Ministério Público, que poderá baixá-lo para a Administração Militar para diligências, instauração de IPM ou oferecer denúncia. Na seqüência, os trâmites se assemelham à Justiça Comum. O juiz receberá a denúncia e marcará a audiência de interrogatório. Ou ainda, caso decida não recebê-la, fundamentará sua decisão e remeterá os autos à Procuradoria Geral de Justiça.

4.2 ALEGAÇÕES PRELIMINARES. ROL DE TESTEMUNHAS

O art. 395 do Código de Processo Penal determina que, após o interrogatório, o Defensor deverá, no prazo de 03 (três) dias, oferecer alegações escritas, as chamadas alegações preliminares ou defesa prévia, e arrolar as testemunhas. Segundo Guilherme de Souza Nucci112, esta é a primeira peça escrita produzida pela defesa, no entanto, em regra os advogados não adiantam suas teses neste momento, limitando-se a alegar a inocência do réu e oferecer o rol de testemunhas. Para o processo penal militar o Defensor poderá, no prazo de quarenta e oito horas, opor exceções, conforme o preconizado no artigo 407, do CPPM. Art. 407 407. Após o interrogatório e dentro em quarenta e oito horas, o acusado poderá opor as exceções de suspeição do juiz, procurador ou escrivão, de incompetência do juízo, de litispendência ou de coisa julgada, as quais serão processadas de acordo com o Título XII, Capítulo I, Seções I a IV do Livro I, no que for aplicável. Parágrafo único. Quaisquer outras exceções ou alegações serão recebidas como matéria de defesa para apreciação no julgamento.

O CPPM proporciona a liberdade de indicar as testemunhas em qualquer momento da instrução criminal, não podendo exceder o prazo do § 2º do art. 417, que é de cinco dias após a oitiva da última testemunha da denúncia. Dessa forma, se por desconhecimento o advogado proceder conforme o processo comum e, porventura, apresentar as alegações preliminares e arrolar testemunhas, o ato será perfeito. No entanto lhe é permitido acompanhar o resultado da audiência de inquirição das testemunhas da denúncia, para só então arrolar as de defesa mais convenientes à defesa do acusado. Tal prerrogativa inclusive pode ser desta forma utilizada, visto que o número de testemunhas é de apenas 03 (três) (Art. 417, §§ 2º e 3º do CPPM), ao contrário do processo penal comum, em que podem ser arroladas até 08 (oito) testemunhas (Art. 398 do CPM). 112) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 395.

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Art. 417 417. Serão ouvidas, em primeiro lugar, as testemunhas arroladas na denúncia e as referidas por estas, além das que forem substituídas ou incluídas posteriormente pelo Ministério Público, de acordo com o § 4º deste artigo. Após estas, serão ouvidas as testemunhas indicadas pela defesa. 1º Havendo mais de três acusados, o procurador poderá requerer a inquirição de mais três testemunhas numerárias, além das arroladas na denúncia. 2º As testemunhas de defesa poderão ser indicadas em qualquer fase da instrução criminal, desde que não seja excedido o prazo de cinco dias, após a inquirição da última testemunha de acusação. Cada acusado poderá indicar até três testemunhas testemunhas, podendo ainda requerer sejam ouvidas testemunhas referidas ou informantes, nos termos do § 3º. 3º As testemunhas referidas, assim como as informantes, não poderão exceder a três. Art. 398 398. Na instrução do processo serão inquiridas no máximo oito testemunhas de acusação e até oito de defesa defesa. Parágrafo único. Nesse número não se compreendem as que não prestaram compromisso e as referidas.

Então, se até a oitiva das testemunhas da denúncia, o Defensor não indicar as da Defesa, será intimado para que cumpra a fase do art. 417, § 2º, do CPPM.

4.3 ART. 427 CPPM X ART. 499 CPP

Esta é uma fase processual semelhante. Após a inquirição da última testemunha, tanto no processo penal comum como no processo penal militar há uma fase destinada às diligências. No processo penal comum, segundo Guilherme de Souza Nucci113, a praxe forense denomina de “fase do art. 499”. Ele chama a atenção para a contagem do prazo, de apenas 24 horas, e diz que a forma colocada no dispositivo legal, se aplicada literalmente, pode caracterizar o cerceamento de defesa. Ao contrário, o artigo 427 do CPPM concede o prazo de 5 dias em cartório. Na prática, Guilherme de Souza Nucci114 expõe que o juiz determina o cumprimento das fases dos arts. 499 e 500, assim o cartório abre vista ao promotor e após intima a defesa para regularização do feito. Os autos seguirão conclusos ao juiz com ou sem formulação de pedido, no entanto, se já tenha sido determinado o cumprimento das duas fases e não tenha sido pleiteada nenhuma diligência, o cartório prossegue para a fase do art. 500. De igual forma se procede no juízo militar. Entretanto, o CPPM não restringe que o pedido das diligências se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução como no processo comum. Segundo Guilherme de Souza Nucci115, caso se verifique que se trata de prova que poderia ter sido produzida na fase de instrução, o pedido poderá ser indeferido pelo magistrado. Outra peculiaridade do processo penal militar é a possibilidade de determinação de ofício e fixação de prazo prevista no parágrafo único, do 427: “Ao 113) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 832-833. 114) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 832-833. 115) NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 832-833. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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auditor, que poderá determinar de ofício as medidas que julgar convenientes ao processo, caberá fixar os prazos necessários à respectiva execução, se, a esse respeito, não existir disposição especial”.

4.4 ALEGAÇÕES FINAIS. ART. 428 CPPM X ART. 500 CPP

No entanto, após as diligências não basta afirmar a semelhança do art. 428 com o art. 500 do processo penal comum, pois algumas considerações devem ser feitas. Afinal são duas as possibilidades de procedimento por parte do Representante do Ministério Público e do Defensor nesta fase do processo penal militar. Em se tratando de crimes, cuja competência para julgar seja atribuída ao Conselho Permanente de Justiça Militar, o Ministério Público e a Defesa devem apresentar os memoriais e proceder à sustentação oral em plenário. No entanto, na prática, devido ao acúmulo de serviço por parte do Representante do Ministério Público e, principalmente, quanto aos Defensores, para não adiantarem suas teses de defesa, proporcionando à parte contrária conhecê-las antecipadamente e assim preparar-se, eles apenas manifestam o direito de expor suas alegações oralmente em plenário por ocasião do julgamento. Esta alternativa tem embasamento legal no artigo 433 do CPPM, o qual estatui que a palavra será dada para sustentação da alegações escritas ou de outras alegações116. Porém, com a atribuição do julgamento pelo Juízo Singular, feito com a Emenda Constitucional nº 45/2004 ao inserir o § 5º ao art. 125 da CF, as alegações finais, nos processos-crime em espécie, deverão ser apresentadas por escrito, tal como no processo comum, para que em seguida os autos sejam conclusos ao Juiz, que prolatará a sentença, como coloca Jorge César de Assis117, que diz carecer “de sentido que as alegações escritas sejam debatidas em plenário perante apenas o Juiz de Direito”. E ainda, conforme Octavio Augusto Simon de Souza118, Juiz Corregedor-Geral da Justiça Militar e então Vice-Presidente do Tribunal Militar do Rio Grande do Sul, que afirma que, apesar de romper com uma tradição bicentenária, qual seja, o julgamento oral e solene, o julgador já possui o conhecimento das provas do processo, não sendo necessária a sustentação para seu convencimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A Justiça Militar Brasileira é um assunto pouco conhecido na comunidade jurídica. Em conseqüência, a proposta deste trabalho consistia em expor seus aspectos gerais de maneira ampla e abrangente sem, no entanto, torná-lo super116) Informações colhidas através de questionamento verbal junto à Vara da Auditoria Militar do Estado do Paraná e ao Representante do Ministério Público. 117) ASSIS, Jorge César de. A Reforma do Poder Judiciário e a Justiça Militar. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano IX, n. 51, Janeiro/Fevereiro 2005. p. 24. 118) SOUZA, Octavio Augusto Simon de. A Emenda 45 no Tribunal Militar do Rio Grande do Sul. Direito Militar – Revista da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, Florianópolis, Ano IX, n. 53, Maio/Junho 2005. p. 8.

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ficial, elegendo os temas e a profundidade com que seriam tratados, apenas o suficiente para proporcionar ao leitor propriedade e segurança para discuti-los. Assim, o passo inicial foi dirimir quaisquer dúvidas a respeito da sua origem e fundamentação legal. Nas Considerações Gerais, além dos motivos que justificam a sua existência, a estreita ligação com os exércitos e as histórias de dominação sobre os povos, foram abordadas a evolução e a legitimidade, com ênfase na sua criação no Brasil, as previsões nos textos constitucionais e também a distinção entre as esferas federal e estadual da Justiça Militar. Provando que, ao contrário do que se pensa, não se trata de justiça de exceção, nem tampouco suas bases remontam ao regime militar. Foi grande a preocupação, ao longo de todo o trabalho, em explicar conceitos e procedimentos sui generis, com o intuito de fornecer as informações necessárias ao entendimento dos demais assuntos tratados. Assim, no Capítulo 2, procurou-se abordar a temática da Justiça Militar Estadual sob um aspecto amplo, demonstrando o funcionamento dos Conselhos de Justiça Militar, a atuação dos Tribunais e os reflexos sofridos recentemente com as alterações da Emenda Constitucional nº 45/04. No que tange às alterações sofridas em decorrência da Emenda 45, constatou-se que os posicionamentos são muitos e divergentes. Com relação à principal delas, a atuação civil da Justiça Militar Estadual, também objeto do Capítulo 2, verificou-se que a matéria tem recebido tratamento desigual no país e sofrido com a afronta a um dos principais objetivos da Reforma do Judiciário, qual seja a celeridade processual. Os processos, essencialmente no Paraná, têm esbarrado em questões de cunho prático, que dizem respeito à estrutura, levando à morosidade, devido aos inúmeros conflitos negativos de competência suscitados pela Vara da Auditoria Militar e as Varas de Fazenda Pública. Apesar da riqueza do direito militar no âmbito administrativo, a delimitação deste trabalho foi no direito penal militar, mais especificamente no processo penal militar. Sendo que, as principais dúvidas e divergências que norteiam este tema estão relacionadas à competência, entre Justiça Militar e Justiça Comum, logo, um capítulo inteiro foi dedicado ao tema. Além de uma elucidação constante sobre quem são os destinatários destas normas especiais e quais atos praticam para que venham a ser processados e julgados pela Justiça Castrense. Finalmente, no Capítulo 4, foi dada uma visão geral sobre as peculiaridades do processo penal e as questões que justificam a manutenção de sua existência ou não. Ou seja, ainda que poucas diferenças sejam apontadas, elas encontram respaldo na principal justificativa de existência da Justiça Militar, qual seja a do julgamento do militar por seus pares, uma vez que conhecem os meandros da vida na caserna e têm melhores condições de avaliar o teor de certas atitudes. Este foi também, segundo alguns autores, um dos pontos positivos em transferir para a Justiça Militar a competência para processar e julgar a as ações decorrentes de atos disciplinares, decorrente da já mencionada mudança implantada pela Emenda Constitucional nº 45/04. Outro estopim motivador deste trabalho foi o de chamar a atenção dos profissionais do direito, principalmente advogados, para um ramo pouco explorado, pratiRAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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camente desconhecido, mas com uma clientela vasta e que por vezes se mostra insatisfeita com a qualidade dos serviços prestados. São milhares os profissionais das Forças Armadas e das Polícias Militares, ativos e inativos, sujeitos ao direito militar. Somente em São Paulo, por exemplo, o efetivo da Polícia Militar supera os 95 mil integrantes, conforme afirma o procurador de Justiça Luís Daniel Pereira Cintra119. Luís Daniel Pereira Cintra menciona ainda a vultosa importância do direito militar, “eis que regula milhões de fatos e relações jurídicas no âmbito das Forças Armadas e das Polícias Militares em todo o território brasileiro”120, lembrando que o direito militar já foi disciplina obrigatória no 5º ano do curso de Direito entre 1925 e 1930 e que atualmente há enorme escassez de doutrina sobre Direito Penal Militar e Direito Administrativo Disciplinar Militar. Enfim, a Justiça Militar é o que a Revista Mercado & Negócios Advogados chamou de “Um segmento de muitas oportunidades”. Na reportagem, Dayse Alvarenga121 expõe que o número de ações é grande e que se mostra um filão de mercado para os advogados. Ela revela que, somente no Rio de Janeiro, as três forças, Marinha, Exército e Aeronáutica juntas, contam com aproximadamente 100 mil militares, e também que existem escritórios especializados que já possuem cerca 70% de sua clientela formada por policiais militares, e recebem mensalmente valores que a própria categoria autoriza o desconto em folha de pagamento, na ordem de R$ 12 a R$ 17, para utilizar-se dos serviços quando necessário, além dos free-lancers. Enfim, tendo em vista a efetiva existência desta Justiça especializada – aliás a primeira delas, que apesar de encontrar-se perfeitamente inserida no Poder Judiciário, ao lado da Justiça do Trabalho, por exemplo, sequer enriquece o currículo do curso de Direito – e as inúmeras carreiras que podem ser seguidas, seja de advogado, membro do Ministério Público Militar ou promotor de justiça, juiz-auditor, é que este trabalho logrou demonstrar a importância da Justiça Militar Brasileira.

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Resenha de livro

Por Guilherme Roman Borges

FOUCAULT, Michel Raymond Roussel. Paris: Gallimard, 1963.

A obra Raymond Roussel,1 editada em 1963 pela Gallimard, na coleção Le Chemin, trata-se de uma obra de valor único em toda a bibliografia de Michel Foucault, em virtude, sobretudo, da temática literária que ascende em sua pesquisa. É o momento em que Foucault vai lentamente deixando sua perspectiva da psicologia para trás, e começa a antever os horizontes das palavras e do discurso, que fará parte de suas orientações a partir da metade da década de sessenta. Entretanto, não se trata de um rompimento total, já que a sua obra havia sido esboçada em Folie et Déraison, quando Foucault se propôs a reescrever o discurso da loucura a partir de sua própria linguagem; e os textos de Roussel serviam-lhe ao propósito. A loucura de Roussel, se verdadeira ou não, tal como defendera mas não a curara seu psiquiatra Janet, permitiu a Foucault reeditar a vida deste autor, que não receberá, embora tenha lutado incessantemente, o acolhimento do público.2 Foucault inicia seu estudo argumentando o fato de Roussel aparentemente respeitar a ordem das cronologias em sua obra – começa tratando de temas da juventude e segue em linha reta até a maturidade, refletida, para o autor, nas Nouvelles Impressions d’Afrique. Mas isto não ocorre no que se refere à distribuição do discurso e ao seu espaço interior: eles têm sentido contrário e, num primeiro plano, e em grandes caracteres, o procedimento organiza os textos iniciais; em seguida, em estágios mais cerrados, alguns mecanismos são apenas indicados, como ocorre nas Nouvelles Impressions d’Afrique e no Locus Solus.3 Mas é ao final de sua vida apenas que Roussel resolve estender a sua obra e, diante dela, tenta, em seu último livro, Comment j’ai écrit certains de mes livres, publicado somente após a sua morte (póstumo e secreto), de certa forma, explicar o que fez durante toda sua vida, tal como afirma Foucault na seguinte passagem do primeiro capítulo: “O ‘comment’ inscrito por Roussel na frente de sua obra final e reveladora nos introduz não apenas no segredo de sua linguagem, mas no segredo de sua relação com tal segredo, não para nos guiar aí, mas para nos deixar pelo contrário desarmados, e num embaraço absoluto quando se 1) FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. (trad. Manoel Barros da Motta e Vera Lucia Avellar Ribeiro) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. 147p. 2) FOUCAULT, Michel. Pourquoi réédite-t-on l’œuvre de Raymond Roussel? Un précurseur de notre littérature moderne. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 1 Paris: Gallimard, 1994. p. 421-424. 3) Há uma versão do primeiro capítulo de Raymond Roussel em francês, publicada no verão de 1962, em Lettre Ouverte, e reproduzida na coletânia Dits et Écrits, sob a seguinte referência: FOUCAULT, Michel. Dire et voir chez Raymond Roussel. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). v. 1 Paris: Gallimard, 1994. p. 205-215. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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trata de determinar esta forma de reticência que manteve o segredo nesta reserva de um golpe desatado.”4 Porém, embora, ao que parece, a intenção de Roussel tenha sido a de fornecer parâmetros que simplificassem a leitura de seus textos, que desvendassem o seu segredo, o que se pode concluir, segundo Foucault, é que ou o segredo é irreconhecível, ou apenas tornou ainda mais difícil o seu acesso. O livro oculta muito mais do que desvela a sua revelação prometida, ele oculta, com o pretexto de revelar (como Roussel já havia feito em outros de seus textos), “a verdadeira força subterrânea de onde jorra a linguagem.”5 E a linguagem de Roussel, para Foucault, é oposta à palavra iniciática. Vale dizer, ela não aponta na direção de que existe um segredo. Pelo contrário, ela aponta no sentido da incerteza em existir um segredo, em não existir nenhum, ou existirem vários e, caso existam, quais são. Ele não promete nada. De qualquer forma, a obra, na opinião de Foucault, “impõe sistematicamente uma inquietude informe, divergente, centrífuga, orientada não para o mais reticente dos segredos, mas para o desdobramento e a transmutação das formas mais visíveis: cada palavra é, ao mesmo tempo, animada e arruinada, preenchida e esvaziada pela possibilidade de que haja uma segunda – esta ou aquela, ou nem uma nem outra, mas uma terceira, ou nada”6. A partir destas considerações iniciais, Foucault parte para uma análise mais pormenorizada da obra de Roussel, apontando, de início, as figuras que de uma forma geral vão estar sempre presentes na obra do autor, quais sejam, aprisionamento e liberação, exotismo e criptograma, suplício pela linguagem e salvação por esta mesma linguagem, soberania das palavras cujo enigma constrói cenas mudas... Além disso, atenta para o fato de que Roussel, de regra, sempre vai utilizar-se de uma série de palavras idênticas que dizem coisas diferentes, com significados diferentes. A ambigüidade das palavras é bastante utilizada, não só como recurso, mas também como limite. Por isso é que Foucault entende que a experiência de Roussel situa-se num “espaço tropológico” do vocabulário, isto é, um espaço em que as palavras não nascem enquanto figuras canônicas, mas, sim, em verdade, abre-se um verdadeiro vazio na linguagem, completamente suscetível de armadilhas. E as figuras que ele constrói neste vazio são o que Foucault chama de “inverso metódico das figuras de estilo”7. A linguagem utilizada por Roussel sempre procura dizer duas coisas com as mesmas palavras, com um impiedoso círculo que reconduz necessariamente as palavras ao seu ponto de partida. Por exemplo, em seus textos, muitas vezes a frase inicial abre vários círculos no tempo e no espaço que, após, torna-se também a frase final – a frase epônima se repete. E, entre este início e este fim, algo de importante se produz no estatuto da linguagem, alguma coisa indecisa e difícil de situar. E, além de uma linguagem ambígua, Roussel muito se utiliza da repetição. 4) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 02. 5) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 06. 6) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 09. 7) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 13.

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Mas não apenas de mera repetição, senão que repetição fundada em pequenas diferenças que induzem paradoxalmente à identidade. A rima tem aqui papel importante. Trata-se de verdadeiro metagrama, que pode ser perfeitamente observado em Chiquenaude, no qual não só o jogo de palavras semelhantes é muito bem utilizado, mas também o já mencionado retorno à frase inicial. A técnica de Roussel, seu procedimento, no entanto, renova-se ou evolui, como se pode observar a partir das Nouvelles Impressions d’Afrique. As frases homônimas não mais se localizam no início e no final do texto, mas sim estão nele inseridas. Há lacunas entre as palavras. Assim, seu objetivo agora é organizar, de acordo com um discurso menos aleatório, o mais inevitável dos acasos. A frase epônima é desconhecida e o retorno não há mais – ela está pulverizada. O acaso serve a destruir e reconstruir as palavras. A linguagem aleatória e necessária de Roussel, neste sentido, como toda linguagem literária, revelase como uma “destruição violenta da satisfação cotidiana, mas matém-se indefinidamente no gesto hierático deste assassinato”, e “como linguagem cotidiana, ela repete sem trégua, mas esta repetição não tem como sentido recolher e continuar; ela guarda o que repete na abolição de um silêncio que projeta um eco necessariamente inaudível”8. Como resultado, então, têm-se máquinas de reprodução que ocultam muito mais do que mostram o que devem mostrar. “Visibilidade irradiante onde nada é visível”9. São máquinas bifurcadas e maravilhosas, pois repetem numa linguagem absolutamente compreensível e coerente, uma linguagem que em verdade é muda e destruída ou, ainda, repete apenas por imagens uma história com sua longa narrativa – o “sistema ortogonal de repetições”10. Em suma, o que se diz é que todos os aparelhos de Roussel (aí compreendidas as maquinarias, as figuras de teatro, as reconstituições históricas, entre outros) são, de uma forma mais ou menos visível, com mais ou menos densidade, não apenas repetições de sílabas ocultas ou figurações de uma história a descobrir, senão que a imagem de seu próprio procedimento, aferível apenas com a leitura de seu último texto, Comment j’ai écrit certains de mes livres, em verdade a última de suas máquinas, capaz de tornar visível todas as outras utilizadas durante toda a sua obra. Para Foucault, Roussel não é apenas o engenheiro destas máquinas todas, mas é também as próprias máquinas. E estas máquinas “não fabricam o ser, elas mantêm as coisas no ser”11. E mais: elas transformam as narrativas de Roussel numa linguagem simplificada tal qual a que se encontra nos contos infantis e tal proximidade com o extraordinário aproxima Roussel de um de seus ídolos, Julio Verne. Além disso, estes aparelhos, encenações, adestramentos e proezas exercem em Roussel duas grandes funções míticas: unir e reencontrar (há figuras que unem, há figuras que reencontram e há, entre elas, um verdadeiro curto-circuito pelo seu entrecruzamento), que dão origem a dois grandes espaços míticos: “o 8) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 38. 9) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 43. 10) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 44. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008

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espaço rígido, barrado, involucrado, da pesquisa, do retorno, do tesouro (é o espaço dos Argonautas ou do labirinto), e o espaço comunicativo, polimorfo, contínuo, irreversível da metamorfose, ou seja, da mudança à vista, dos percursos instantaneamente transpostos, das afinidades estranhas, das substituições simbólicas (é o espaço da besta humana)”12. Para Roussel, enfim, a metamorfose sempre teve por objetivo fazer triunfar a vida ou enganar a morte, embora acabe repetindo, como sói acontecer, também o seu contra senso, ou seja, a passagem da vida para a morte. Há textos, porém, que não fazem parte daqueles aos quais se referiu Roussel em seu último livro. Há textos absolutamente estranhos ao procedimento. São cinco textos publicados entre a época Chiquenaude e a época Impressions: dois deles (l’Inconsolable e les Têtes de Carton), ao que parece, escritos antes de estruturado o procedimento, e três deles (la Vue, la Source e le Concert) escritos quando já funcionava o mecanismo da repetição. Não obstante, não se pode negar que a linguagem de Roussel foi sempre dupla, com rima, com (em verso) ou sem procedimento (em prosa). Isso não implica dizer, todavia, que estes outros textos não foram submetidos a um outro procedimento: a ausência do procedimento pode significar a presença de um outro (ou outros) procedimentos, mas também pode significar a ausência de qualquer um deles. O que é certo é que com o conhecimento do procedimento se pode identificar tudo aquilo que a ele não pertence. Diante disso, assevera Foucault sobre a linguagem de Roussel: “não é que sua linguagem tivesse querido ocultar alguma coisa; é que, de um extremo ao outro de sua trajetória, ela encontrou sua constante morada no duplo oculto do visível, e no duplo visível do oculto. Longe de fazer, como a fala dos iniciados, uma divisão essencial entre o divulgado e o esotérico, sua linguagem mostra que o visível e o não-visível indefinidamente se repetem, e que esse desdobramento do mesmo dá à linguagem seu signo: o que a torna possível desde a origem entre as coisas, e o que faz com que as coisas só sejam possíveis através dela”13. No penúltimo capítulo do livro, dedica-se Foucault a um exame detalhado do livro Nouvelles Impressions d’Afrique, também, segundo ele, alheio ao procedimento, porém em verso. Na verdade, constituem o repetido nascimento das antigas e são novas porque mais jovens que as primeiras, uma vez que acabam por contar o nascimento destas. Para terminar, Foucault encerra suas considerações afirmando que Roussel criou sua própria geometria (as coisas, as palavras, o olhar, a morte, o sol e a linguagem) e tornou possível que dele se falasse a partir de sua própria linguagem. “Ele abriu à linguagem literária um estranho espaço, que se poderia dizer lingüístico, se dela ele não fosse a imagem invertida, a utilização sonhadora, 11) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 63. 12) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 67. 13) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 105. 14) FOUCAULT, Michel. Raymond ..., p. 147.

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encantada e mĂ­tica. Se isolamos a obra de Roussel desse espaço (que ĂŠ o nosso), nĂŁo mais podemos reconhecer nela nada alĂŠm das arrojadas maravilhas do absurdo, ou floreados barrocos de uma linguagem esotĂŠrica, que quereria dizer ‘outra coisa’. Se, ao contrĂĄrio, a reintegramos, Roussel aparece tal como definiu a si prĂłprio: o inventor de uma linguagem que sĂł diz de si, uma linguagem absolutamente simples em seu ser desdobrado, de uma linguagem da linguagem, encerrando seu prĂłprio sol em seu desfalecimento soberano e centralâ€?14.

Guilherme Roman Borges Doutorando e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP. EstĂĄgio-Doutoral na Faculdade de Filosofia de Patras-GrĂŠcia (*3s '7%?)- 7 # 7 7 % )-= 7 , = v 0 #)1?v+ $v %)-= # $9-'7 ). Mestre em Sociologia do Direito na UFPR. Professor de Economia da Universidade Positivo.

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