Campus U.Porto #2

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ENTREVISTA

ALUMNI

CULTURA

CIÊNCIA&TECNOLOGIA

MEMÓRIA

O novo presidente do Conselho Geral da U.Porto, Artur Santos Silva (na capa), defende uma “reestruturação dos saberes dentro da Universidade” e acredita no aprofundamento do modelo fundacional das instituições do ensino superior.

Ana Aragão abre as portas das suas cidades imaginárias, que, no papel ou na tela, hiperbolizam o caos, a vertigem, a rugosidade, a amálgama e a policromia das grandes metrópoles contemporâneas.

Recordamos o fugaz mas marcante percurso artístico d’“Os Quatro Vintes”, coletivo que reuniu, no Porto, o talento criativo de Ângelo de Sousa, Armando Alves, Jorge Pinheiro e José Rodrigues.

Fomos conhecer o Laboratório de Sistemas e Tecnologia Subaquática da FEUP, onde estão a ser desenvolvidas algumas das mais inovadoras tecnologias mundiais para veículos autónomos subaquáticos e aéreos.

A pretexto dos 180 anos da Academia Politécnica, lembramos as principais razões do seu aparecimento e os seus conturbados primeiros tempos – no fundo, sintomáticos das dificuldades e contradições da primeira metade do século XIX português.

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Campus U.Porto Revista da Universidade do Porto N.º 02

DIRETOR Sebastião Feyo de Azevedo EDIÇÃO E PROPRIEDADE Universidade do Porto Serviço de Comunicação e Imagem Praça Gomes Teixeira • 4099-345 Porto Tel: 220408210 ci@reit.up.pt SUPERVISÃO EDITORIAL Eduardo Pamplona

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WHAT’S UP NOTÍCIAS SOBRE A COMUNIDADE ACADÉMICA

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ALUMNI ANA ARAGÃO

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PORTFÓLIO FACULDADE DE ARQUITETURA

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CULTURA 50 ANOS D’”OS QUATRO VINTES”

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CIÊNCIA&TECNOLOGIA LABORATÓRIO DE SISTEMAS E TECNOLOGIA SUBAQUÁTICA DA FEUP

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FORA DA CAIXA IGUANEYE

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ENTREVISTA ARTUR SANTOS SILVA

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SUB-35 MARIA INÊS ALMEIDA

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TALENTO DISTINÇÕES A MEMBROS DA COMUNIDADE ACADÉMICA

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MEMÓRIA 180 ANOS DA ACADEMIA POLITÉCNICA DO PORTO

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COMUNIDADE PROJETOS DE NUTRIÇÃO DA FCNAUP

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MASSA CRÍTICA ARTIGO DE LUÍS VALENTE DE OLIVEIRA

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LIVROS NOVAS PUBLICAÇÕES DA U.PORTO EDIÇÕES

EDIÇÃO Ricardo Miguel Gomes REDAÇÃO Anabela Santos Marisa Macedo Raul Santos Ricardo Miguel Gomes Tiago Reis APOIO MULTIMÉDIA TVU FOTOGRAFIA Egídio Santos DESIGN Rui Guimarães IMPRESSÃO Penagráfica DEPÓSITO LEGAL 419085/16


A presente edição da Campus U.Porto cumpre de forma particularmente abrangente a sua missão de comunicação com toda a comunidade académica e com públicos externos, através de uma miríade de temas que afinal refletem a história e o universo de intervenção da U.Porto: nela vão os leitores encontrar opiniões muito relevantes sobre visão e estratégia para a missão da Universidade; vão encontrar testemunhos de juventude brilhante e de futuro, de talento, em áreas diversas como a arquitetura e a biologia; vão apreciar, certamente com gosto, a memória de contributos excecionais do nosso passado centenário, em que brilharão para sempre os nossos “Quatro Vintes”; vão poder apreciar a capacidade empreendedora dos nossos jovens; vão poder ler motivos de Arquitetura, de Belas Artes, de Ciência, de Engenharia e de Tecnologia de fronteira; vão poder apreciar o que se vai desenvolvendo nas Ciências da Nutrição e usufruir de conselhos sobre alimentação saudável; vão poder revisitar uma das origens da Universidade – a sua Academia Politécnica, aprovada por decreto real de 13 de janeiro de 1837. Um conteúdo que saúdo, com um reconhecimento merecido ao trabalho do nosso grupo editorial do Gabinete da Comunicação. A entrevista de fundo é com o Doutor Artur Santos Silva, que assumiu recentemente a presidência do nosso Conselho Geral, mandato 2017-2021. O Doutor Artur Santos Silva, nosso Doutor Honoris Causa, é uma personalidade absolutamente relevante da vida pública portuguesa, uma referência da luta por valores democráticos, uma personalidade detentora de vasta experiência de gestão de grandes instituições dos domínios público, privado e fundacional, em setores tão relevantes como a banca, a universidade e a cultura. A U.Porto deve-lhe o reconhecimento da sua disponibilidade exemplar de cidadania para contribuir para o seu desenvolvimento. As opiniões que manifesta são palavras avisadas do futuro, para reflexão muito atenta, designadamente

em relação à necessidade de reestruturação da U.Porto, ao regime fundacional, ao financiamento do ensino superior, à inovação, à relação das universidades com as empresas e à ligação com o tecido social profundo representado pelas autarquias. O desafio que se coloca hoje às universidades é o de sempre: adaptar a missão e a instituição aos tempos. O que vai mudando é o contexto. Esse, é hoje o do mundo global que “encolheu” com o progresso tecnológico e, nos transportes, com a mobilidade que coloca as civilizações mais próximas do que nunca. É também o do surgimento competitivo, irreversível, das Sociedades do Conhecimento. É neste contexto que se exige a evolução reformista: primeiro, e desde logo, na área da formação académica, designadamente introduzindo conceções pedagógicas adaptadas aos tempos e aos jovens que temos por missão servir; depois, na visão, estratégia e ação para a necessária produção e translação do conhecimento; ainda, na nova exigência de dimensão social e de ligação à sociedade; finalmente, na promoção da sustentabilidade financeira. Neste último e incontornável capítulo, o subfinanciamento crónico pelo Orçamento do Estado, que perdura há cerca de oito anos, não deixa dúvidas sobre o esgotamento do modelo de organização e financiamento atual, uma situação que governos e universidades terão que encarar de frente no futuro muito próximo. Tempos de desafios e oportunidades que, malgré tout, encaro com a confiança que brota do imenso capital humano e patrimonial de que dispomos e que se projeta no reconhecido prestígio nacional e internacional e na sólida ligação social que hoje usufruímos, como aliás o conteúdo desta Campus U.Porto ilustra. Iremos conseguir… com o esforço coeso de toda a comunidade académica, a todos os níveis. Iremos ter visão e estratégia para aproveitar essas inúmeras oportunidades que se abrem ao nível da ciência, da tecnologia, da inovação, da arte e do pensamento. Continuaremos a afirmar-nos como instrumento incontornável do desenvolvimento coletivo, regional e nacional, e, sempre, como parceiro igual na Europa e no Mundo.

Sebastião Feyo de Azevedo Reitor da Universidade do Porto


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Os novos membros do Conselho Geral da U.Porto tomaram posse em outubro, depois de terem sido cooptadas as seis personalidades externas deste órgão de governo. A saber, Artur Santos Silva (presidente honorário do BPI), Francisca Carneiro Fernandes (antiga presidente do Teatro Nacional São João), José António Sousa Lameira (juiz conselheiro), Maria Geraldes (membro do Órgão de Acompanhamento das Dinâmicas

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Regionais do Norte da CCDR-N), Pedro Silva Dias (presidente do Conselho Diretivo da Agência para a Modernização Administrativa) e Sérgio Guedes Silva (presidente do G.A.S. Porto). Estas seis personalidades perfazem os 23 membros do Conselho Geral, onde figuram 12 representantes eleitos dos docentes e investigadores, quatro dos estudantes e um dos funcionários. Artur Santos Silva foi eleito, de entre

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as personalidades externas, presidente do novo Conselho Geral (ver entrevista págs. 32-37), sucedendo ao juiz conselheiro Alfredo José de Sousa. Com um mandato de quatro anos, o Conselho Geral é responsável pela eleição do reitor e, sob proposta deste, pela aprovação das linhas gerais de orientação da Universidade no plano científico, pedagógico, financeiro e patrimonial.

Fotos Egídio Santos

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Uma Universidade em crescimento: novos equipamentos para estudantes de todo o mundo, celebrações, atividades e eventos — tanta coisa a acontecer!

HONORIS CAUSA PARA PRESIDENTE ITALIANO A U.Porto atribuiu, em dezembro, o título de doutor honoris causa ao Presidente da República Italiana, Sergio Mattarella. O padrinho do doutorando foi o seu homólogo português, Marcelo Rebelo de Sousa, cabendo à professora emérita Isabel Pires de Lima o papel de elogiadora. No discurso de agradecimento, o 96.º doutor honoris causa da U.Porto enalteceu a “excelência académica” da instituição anfitriã. “A U.Porto conseguiu alcançar um louvável equilíbrio entre tradição e projeção para o futuro, pela investigação, inovação e desenvolvimento tecnológico que realiza em setores fundamentais para a economia, como a robótica, a energia, a eletrónica ou a biotecnologia marinha”.

Primeira Cátedra UNESCO

A U.Porto recebeu a sua primeira Cátedra UNESCO, cujo objeto é a proteção ambiental em África. Intitulada Life on Land (Vida na Terra), a cátedra resultou de uma candidatura do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO-InBIO) e tem como regente o coordenador científico desta instituição, Nuno Ferrand de Almeida. Com duração de quatro anos e um orçamento de 2,2 milhões de euros, a cátedra Life on Land visa a criação de uma rede colaborativa com instituições de ensino e investigação de seis países africanos (África do Sul, Angola, Cabo Verde, Moçambique, Namíbia e Zimbabué), centrada na conservação da biodiversidade e na gestão, preservação e valorização do património natural.

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O ICBAS vai instalar um centro de investigação em ciência animal na Maia, vocacionado para o estudo de espécies de médio e grande porte. Para tanto, a U.Porto e a Câmara Municipal da Maia assinaram, em dezembro, um contrato que prevê a cedência pela autarquia de um terreno com mais de 40 mil m2 para a construção, num prazo máximo de três anos, do novo centro. Trata-se de um equipamento orçado em 2,5 milhões de euros. O futuro centro de investigação do ICBAS vai melhorar as condições de investigação, ensino e prestação de serviços na área da ciência animal, além de promover o desenvolvimento de projetos em interface com as ciências médicas e o estabelecimento de parcerias com o tecido empresarial.

Medalha Amigo da Marinha

DIGITALIZAÇÃO DO ESPÓLIO DE MANUEL ANTÓNIO PINA

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A U.Porto recebeu, em novembro, a Medalha Amigo da Marinha, condecoração entregue pela Marinha do Brasil ao estandarte e ao reitor da instituição. Tratouse de um reconhecimento da especial relação da Universidade com o mar, tendo esta distinção sido atribuída pela primeira vez a uma instituição de ensino. De resto, o reitor Feyo de Azevedo salientou isso mesmo, ao afirmar que a medalha “reconhece o esforço desenvolvido pela Universidade na difusão, produção e valorização socioeconómica de conhecimento científico sobre o mar”. Já o representante da Marinha do Brasil, o contra-almirante Flávio Rocha, vê nesta condecoração uma oportunidade de “aproximar as relações entre Portugal e Brasil, não só pela ponte que o Oceano Atlântico estabelece como também pela relação com o mar que a U.Porto tem potenciado desde as suas raízes”.

Foi confiada à FLUP a digitalização do espólio pessoal e literário de Manuel António Pina, falecido em 2012. Desenhos, rascunhos de poemas, correspondência, cadernos, originais de livros e documentação variada do escritor vão ser convertidos em formato digital, com o apoio financeiro (6 mil euros) da Fundação Calouste Gulbenkian. Depois de digitalizado, o espólio de Manuel António Pina será tratado, arquivado e estudado pelo Centro de Estudos da Cultura em Portugal da U.Porto, organismo criado pela FLUP justamente para a preservação de acervos documentais relevantes para a vida cultural e literária portuguesa. Refira-se que o CECP tem a seu cargo a biblioteca de Vasco Graça Moura e foi responsável pela digitalização do arquivo de Herberto Helder.

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A arquiteta das cidades imaginárias ANA ARAGÃO

Da arquitetura que aprendeu na FAUP ficou-lhe um “reservatório de paisagens urbanas” de onde hoje transbordam desenhos e pinturas de cidades imaginárias. A ilustradora e artista plástica Ana Aragão não se debruça sobre o estirador para projetar edifícios ou infraestruturas, mas sim para criar filigranas de casinhas, prédios, igrejas, ruelas, pontes, escadarias... Assim nascem imaginários urbanos que hiperbolizam o caos, a vertigem, a rugosidade, a amálgama e a policromia das grandes metrópoles.

No princípio era o desenho. A pequena Ana Aragão (Porto, 1984) rabiscava que se fartava, não se coibindo de manifestar a sua liberdade criativa em locais menos próprios. “Os meus pais contam que, em pequenina, passava o tempo a desenhar. Há até um episódio engraçado: um dia peguei nas canetas e desenhei as paredes lá de casa. Acho que foi a minha primeira intervenção artística a sério… e rebelde!”. Mas o que poderia ser um mero desmando infantil ganhou contornos mais firmes, pois a petiza tinha mesmo jeito para o desenho e o precoce talento já não passava despercebido. Um talento que contrastava com a tenra idade de Ana Aragão, o que gerou alguns equívocos autorais: “Na escola primária, lembro-me de ter desenhado o Tweety e os professores pensarem que eu tinha passado por cima. Fiquei muito chateada. E aconteceu-me o mesmo num concurso artístico da Portugal Telecom: não me deram o primeiro prémio porque pensavam que não tinha sido eu… Acharam que não tinha idade para fazer aquela obra”. Nada que demovesse a catraia de continuar a desenhar como se não houvesse amanhã. Até porque os pais, relevando o episódio da ‘arte rupestre’ nas paredes, incentivavam a filha a expressar o seu talento artístico, tendo-a inclusivamente inscrito num curso livre de pintura. Ana Aragão recorda-se que, durante o

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curso, pintou uma cidade e o professor, fascinado, teve uma premonição. “Encontraste o tema da tua vida”, disse-lhe, entreabrindo o futuro da promissora aluna. Também no Colégio Alemão do Porto, onde seguiu a área vocacional de Pintura, Design e Arquitetura, o talento de Ana Aragão foi reconhecido e encorajado. Mas do ensino alemão a ilustradora e artista plástica retirou, sobretudo, uma noção de disciplina que ainda hoje segue. “Sou um bocadinho rígida com os horários e o cumprimento de prazos. Há a tendência nas áreas artísticas, sobretudo na arquitetura, para adiar o trabalho. E chega o momento de entrega e os trabalhos estão inacabados. Eu aprendi a ser persistente: é preciso começar e acabar. Se não ficar bem, passo ao próximo desenho. O próximo é que vai ser”.

ENSINAMENTOS DA FAUP O desenho, sempre o desenho, está na base da opção por Arquitetura no ensino superior. Com média de acesso de 20 valores, Ana Aragão pôde escolher uma escola de “grande reconhecimento nacional e internacional” e muito próxima de casa: a Faculdade de Arquitetura da U.Porto (FAUP). Mas “foi um tiro no escuro”, reconhece. “Eu não fazia a mínima ideia do

Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos

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“GOSTAVA QUE OS MEUS DESENHOS FOSSEM CONTENTORES DE TODAS AS COISAS POSSÍVEIS”

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Atelier de Ana Aragão em Cedofeita, no Porto.

UTOPIA DA TOTALIDADE

que era arquitetura. Não sabia o que era a secção do edifício, nem quem era Le Corbusier. Não sabia coisas muito básicas”. Mas não se deu mal na FAUP, destacando-se como a melhor aluna em sucessivos anos e conquistando vários prémios de mérito. Diz hoje que o curso lhe ensinou “a resolver problemas”. “A chave está, não no resultado, mas na forma como resolvemos os problemas, através de processos”. Além disso, aprendeu na FAUP que, “em arquitetura, não existe um certo e um errado. O mais importante é a fundamentação do projeto. Esse lado de construção de um corpo teórico que sustente o projeto interessou-me particularmente, e eu trouxe-o para a minha vida profissional”. Depois de uma experiência de mobilidade na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, entre 2006 e 2007, Ana Aragão concluiu, em 2009, a licenciatura na FAUP e seguiu para um estágio com o arquiteto Carlos Prata. Percebeu logo aí, durante o tirocínio, que talvez a sua vida profissional conhecesse outro rumo. “Estive a fazer desenhos descritivos em computador, que depois iam para a obra para orientar a construção. Embora tenha gostado da experiência, que foi enriquecedora, o desenho técnico a computador é um bocadinho estéril, seco. Falta a hesitação e o tremer da mão na relação com o papel. Era pouco emocional para mim”. Teve uma fugaz experiência de docência como monitora convidada na FAUP e no Departamento de Ar-

quitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, onde viria a frequentar o respetivo doutoramento. Ainda hesitou entre um curso de ilustração e a pós-graduação em Arquitetura, tendo-se inscrito em ambos. Mas o doutoramento em Coimbra iniciou-se mais cedo e acabou por ficar, embora só tenha completado a parte curricular do 3.º ciclo de estudos em Arquitetura. É que, entretanto, os desenhos que se entretinha a fazer nas aulas não escaparam à atenção dos colegas, que a incentivaram a expor tão singulares recriações de cidades. Ana Aragão acaba por abandonar o doutoramento e o respetivo projeto de investigação, cujo objeto de estudo era a representação do espaço urbano. Para trás ficava também a arquitetura, pelo menos na sua aceção tradicional e enquanto atividade profissional tout court. “Há muitos arquitetos que também exploram a sua veia artística. No meu caso, basta-me desenhar. O desenho, para mim, é o fim em si mesmo. Não preciso do desenho como intermediário para pensar um projeto que vai ser construído. De resto, não tenho fascínio pelo lado da construção, pela obra… No desenho há uma relação de luta, de um para um, em que o resultado só depende de mim. Eu controlo tudo, desde o início ao final”. Acresce que os edifícios projetados por grandes arquitetos nunca fascinaram Ana Aragão, que se diz “naturalmente atraída pelo lado mais obscuro, menos bonito, mais imperfeito das cidades”. Por isso, “se estiver a passear numa cidade, estou mais atenta às marcas do tempo e do uso gravadas nos edifícios, como os letreiros, os cartazes, a publicidade, os sinais de desgaste, as ruínas… Gosto de edifícios feios, por isso sou um bocadinho estranha no meio dos arquitetos”.

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Texto Ricardo Miguel Gomes

De há cinco anos a esta parte, Ana Aragão tem-se dedicado exclusivamente à ilustração e às artes plásticas, sempre “pensando as cidades como personagens”. Esta obsessão criativa pelos imaginários urbanos “aconteceu naturalmente” e não resultou de nenhuma epifania. Ana Aragão admite, contudo, que o curso de Arquitetura, “por ser muito intenso no estudo de edifícios e cidades”, lhe criou um “reservatório de paisagens urbanas”. “No momento em que tenho de desenhar, é isso [cidades imaginárias] que me sai”, explica. A candura da explicação esconde, no entanto, a complexidade dos desenhos, pinturas e tapeçarias com que Ana Aragão hiperboliza o caos, a vertigem, a rugosidade, a amálgama e a policromia das grandes metrópoles. Os seus trabalhos artísticos, quer nasçam do pincel, quer de uma simples caneta Bic, são filigranas de casinhas, prédios, igrejas, ruelas, pontes, escadarias e outros elementos urbanos numa aparente entropia. O resultado é uma mancha saturada de imagens, com várias camadas de leitura, sentidos ambíguos, informações sobrepostas e mensagens sibilinas, muitas vezes de caráter sociopolítico. “Nos meus desenhos mais emblemáticos, temos casas pequeninas que eu associo, associo, associo e, de repente, há uma forma grande, gigante. O que está lá é sempre um pensamento em torno da escala: uma relação do pequenino com o grande, da unidade com a totalidade, do local com o universal”. E há também a utopia da totalidade, uma busca bulímica pelo todo. “Gostava que os meus desenhos fossem contentores

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de todas as coisas possíveis. Como se eu pudesse fazer um inventário de todas as casas, de todos os edifícios, de todas as cidades possíveis. Um pouco como no livro de Saramago “Todos os nomes”, que é um dos meus preferidos”. Neste seu fascínio artístico pela cidade, “a obra por excelência do Homem”, Tóquio ocupa um lugar especial, porque “tem os dois mundos lá dentro: o mundo novo e o mundo antigo”. Mas o Porto é também uma contínua inspiração: “Gosto muito do caracter envelhecido, às vezes até decadente, das casas e edifícios do Porto. Traz-me inputs para o desenvolvimento da minha estética. A ideia do gasto e da decadência dos edifícios vem-me, justamente, do Porto. Não é uma cidade óbvia, mas sim uma cidade que é preciso ir descobrindo. Uma cidade que não é toda limpa, toda bonita, toda

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perfeita… Se vivesse numa cidade como Munique, os meus desenhos não teriam nada a ver com o que são”. A obra de Ana Aragão remete-nos para o imaginário de “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, livro a que “volta sempre”, assim como ao “Dicionário dos Lugares Imaginários”, de Gianni Guadalupi e Alberto Manguel. De resto, a literatura é uma das suas principais fontes de inspiração. “As palavras, pela sua ambiguidade, são um mundo que me encanta. Procuro mais as palavras como inspiração do que as próprias imagens”, garante, acrescentando que tem “muitos heróis na literatura, como José Saramago e Gonçalo M. Tavares. Se pudesse ser outra coisa, escolhia ser escritora”. As babilónicas cidades de Ana Aragão aproximam-se também do imaginário labiríntico de Maurits Cornelis Escher, cujos desenhos a artista conheceu no Colégio Alemão. “A minha linguagem, que é muitas vezes a preto e branco, vem muito de Escher. É uma referência muito importante para mim”, assim como Quino e Saul Steinberg, que “conseguem, com aparente facilidade, passar mensagens políticas através de desenhos tecnicamente incríveis”.

DEDICAÇÃO TOTAL À ARTE Durante estes últimos cinco anos, Ana Aragão conciliou as suas criações artísticas com ilustrações de natureza comercial. Trabalhou com marcas como a Porto Barros, as Tapeçarias Ferreira de Sá, a Jofebar, a Schmidt Light Metal, a Essência do Vinho, a Vista Alegre, a Porto Editora, entre outras. Também desenvolveu projetos para eventos e instituições culturais, nomeadamente a Bienal de Veneza (participação por-

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tuguesa em 2014 e 2016), o Meo Out Jazz (Lisboa), a Noite Branca (Braga), os Lugares Múltiplos (Aveiro), o Festival do Norte (Espinho) e a Casa da Memória (Guimarães). Neste momento, Ana Aragão está exclusivamente dedicada à criação artística. “Embora haja trabalhos comerciais que me dão grande liberdade e são autorais, existem sempre intermediários, negociações, prazos a cumprir… E isso tira-me disponibilidade para os trabalhos artísticos”, que, “para fazerem sentido, necessitam de tempo para experimentar e errar”. Por outro lado, “quando temos uma data-limite, acabamos muitas vezes por repetir fórmulas e processos. E eu não quero, de todo, repetir o que já fiz antes”. Referenciada pela revista Luerzer’s Archive numa lista dos 200 melhores ilustradores do mundo, Ana Aragão aposta agora na expansão do seu portfólio artístico para futuras exposições em Portugal e no estrangeiro. Refira-se que, em 2017, a artista expôs mais de 50 desenhos no Taipa Village Art Space, em Macau, numa mostra intitulada “Imaginary beings”. Anteriormente, já havia exposto a sua coleção de tapeçarias, desenvolvida em parceria com a Ferreira de Sá, na Cadeia da Relação, no Porto. Também concebeu a peça tridimensional “Via Utopia” (desenhos sobre várias camadas de vidro) para a exposição “Future frames – Do you know what tomorrow is?”, que esteve patente no showroom da Jofebar. Participou ainda em mostras coletivas: Anuárias, Coletivo Cooperativa Árvore e Get Set Art Festival.

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portfólio

Texto Ricardo Miguel Gomes

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A SIZA O QUE É DE SIZA É um dos edifícios mais emblemáticos do campus da U.Porto, ou não tivesse nascido do sortilégio criativo de Álvaro Siza. Mas nem uma obra-prima da arquitetura contemporânea escapa à usura do tempo, pelo que, em 2017, a envolvente exterior da Faculdade de Arquitetura (FAUP), no polo do Campo Alegre, foi sujeita a obras de reabilitação para repor as condições originais do conjunto arquitetónico desenhado pelo primeiro Prémio Pritzker português. Com diferentes níveis de profundidade, a intervenção centrou-se nas coberturas e paredes exteriores, eliminando os sinais de desgaste e algumas patologias da estrutura, nomeadamente fissuras. Todo este processo de reabilitação

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contou com o apoio e a monitorização do autor do edifício, garantindo-se assim que nada do projeto original era desvirtuado. A Siza o que é de Siza. A conclusão da reabilitação do edifício foi assinalada na abertura do ano letivo na FAUP, em 18 de setembro último. Encerrava assim um processo que restituiu o esplendor a um edifício fragmentado em vários volumes de linhas depuradas e janelões retangulares, com abertura panorâmica para o rio Douro.

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Texto Ricardo Miguel Gomes

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Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos

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Trata-se de um conjunto arquitetónico repartido por quase 9.000 m2 de área bruta e mais de 2.000 m2 de área suplementar, que contempla duas alas de construção convergentes a poente, na entrada principal. Do conjunto fazem ainda parte a casa e quinta do Gólgota, também recuperados por Álvaro Siza, que atualmente acolhem o Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU) e o Pavilhão Carlos Ramos (no jardim). Construído entre 1986 e 1993, o edifício da FAUP foi “uma obra (…) muito estimulante mas difícil, conflituosa por vezes”, conforme revelou Álvaro Siza em entrevista à Revista dos Antigos Alunos da U.Porto, publicada em outubro de 2003.

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Num país a preto e branco “Os Quatro Vintes” eram a cores Inspiraram-se num maço de tabaco para criar a sua “imagem de marca”. Conheceram-se na Escola de Belas Artes do Porto, precursora da FBAUP, e, como acontece na melhor das vezes, os laços ficaram para a vida. Ainda hoje, Armando Alves (que vive em Matosinhos) e Jorge Pinheiro (de arraiais postos no Estoril) se falam quase todas as semanas ao telefone… Mesmo que não haja um motivo premente para o fazer. Com Ângelo de Sousa e José Rodrigues, terminaram os respetivos cursos com nota final de vinte valores. Em 2018, assinalam-se os 50 anos da criação do coletivo “Os Quatro Vintes”.

Bernardo Pinto de Almeida recorda-se da exposição que o grupo “Os Quatro Vintes” – Ângelo de Sousa (Maputo, 1938 Porto, 2011), Armando Alves (Estremoz, 1935), Jorge Pinheiro (Coimbra, 1931) e José Rodrigues (Luanda, 1936 - Porto, 2016) – organizou, em 1971, na Galeria Zen, no Porto. O escritor, crítico de arte e professor catedrático da Faculdade de Belas Artes da U.Porto (FBAUP) tinha, então, 17 anos. A exposição abriulhe a perceção para a realidade artística que estava a nascer: “Foi uma emoção, subitamente, ver a cores. Porque o país era a preto e branco. Essa era a força dos ‘Quatro Vintes’. Traziam uma novidade que não tinha a ver com Portugal. Ainda. Nomeadamente, para a minha geração. O Miles Davis vinha a Cascais, mas o cinema do Godard era proibido. A ditadura transformava o país no Portugal dos Pequenitos. Eu ouvia os Beatles, os Rolling Stones e o Miles Davis. Líamos revistas… ‘Os Quatro Vintes’ eram isso, diretamente aqui. Não era preciso ir fora. Num país a preto e branco, ‘Os Quatro Vintes’ eram a cores. E isso era magnífico para um jovem. Entrar numa exposição deles era uma alegria. De uma frescura extraordinária!”.

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Texto Anabela Santos

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Da esquerda para direita: Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro, José Rodrigues, Armando Alves.

Eram quatro individualidades que, “tal como os Beatles, fizeram depois uma carreira à parte”. Em conjunto, apresentavam “uma certa coesão”, fruto, precisamente, da diferença no trabalho de cada um deles. “O Armando tinha deixado a pintura e fazia objetos. Minimalistas. Um misto de escultura e pintura com uma componente escultórica. Muito diferente do que fazia o Ângelo, a entrar num esquema de simplificação das obras, reduzidas ao mínimo de cor e de forma. Antes dos quadros monocromáticos. Estava a definir um campo na sua obra que dialogava muitíssimo bem com o que o Armando fazia na altura, com formas simplificadas de objetos quase escultóricos que, por sua vez, comunicavam com as peças do Jorge Pinheiro. Formas recortadas, entre a pintura e a escultura, que também, à sua maneira, dialogavam com o rigor geométrico e as inquietações do Ângelo e as pequenas esculturas do José Rodrigues, pequenas caixas em acrílico e uns desenhos subtis”. Pinto de Almeida identifica uma coesão estética, mas não formal: “A coesão vinha de serem diferentes e tocarem muito bem em conjunto”. Com trinta e poucos anos, cada um tinha um estilo muito próprio. “Eram figuras diferenciadas num Porto muito cinzento. O Ângelo, com os blusões de couro, parecia um rocker, o Armando tinha uns carros desportivos, o Zé fazia a figura do artista boémio e o Jorge era um senhor que lembrava o Mondrian, com óculos e um casaco aos quadrados. Muito elegante, sempre. Parecia que vinha de Londres”.

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Texto Anabela Santos

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Os suportes de comunicação do grupo testemunham a sua originalidade.

No seu caso, Pinto de Almeida reconhece que a influência destes artistas foi determinante para o exercício da crítica da História de Arte mas também para a experiência como estudante da FBAUP, onde todos foram professores. “O Ângelo fica até se reformar, o Jorge até ir para a Escola de Belas Artes de Lisboa, continuando a expor com regularidade, o Armando até iniciar atividade como designer e o José Rodrigues, que depois se dedicou, como escultor, à obra pública e a dirigir a Cooperativa Árvore”.

CONVIVÊNCIA ESTREITA NO GRUPO No final dos anos 60, quando tudo era olhado com suspeita, o estarem juntos só por si representava um ato corajoso e “ameaçador” da ordem vigente. “É preciso dizer isto com clareza: o fascismo português foi medíocre a um ponto que ainda hoje estamos a pagar o preço. Não estamos curados do mal que nos fez. Como país”. O facto de estarem juntos, em parte, também dissolvia, ou atenuava, a força da obra de cada um. “A obra de Ângelo de Sousa, por exemplo, sofre grandes alterações durante este período”, acrescenta Pinto de Almeida. Também Armando Alves, que voltou, entretanto, à pintura, tem, nesses anos, “uma obra absolutamente fundamental para a arte portuguesa do século XX e que está longe de ter sido estudada. Serralves nunca fez esta retrospetiva. Esta justiça”. Armando Alves nasceu em Estremoz, mas estava a viver em Lisboa quando decidiu vir para o Porto. A Escola de Belas Artes do Porto tinha “uma fama e um proveito bastante superior à de Lisboa”,

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explica o artista. Sentiu-se bastante próximo dos colegas, sobretudo de José Rodrigues e Ângelo de Sousa. Mais tarde aparece, de Coimbra, Jorge Pinheiro. “Era uma dinâmica muito especial”. Desde o 1.º ano que os alunos tinham o hábito de criar ateliers fora da escola. “Acabavam as aulas e íamos para os nossos ateliers fazer experiências de pintura. Dávamos continuidade à aprendizagem da escola”. Foi, aliás, do convívio nestes ateliers que saiu a ideia de criar, em 1968, “Os Quatro Vintes”, aludindo ironicamente à marca de tabaco Três Vintes e brincando com o facto de todos se terem licenciado com média de 20 valores. “Tive o meu atelier desde o 1.º ano da escola (que só deixei há três anos) na Rua de Passos Manuel, por onde passaram também os meus colegas”, recorda Armando Alves. Foi um período de descoberta, nomeadamente da cidade. “Calcorreávamos o Porto todo a pé até altas horas da noite”. Foi assim que teve um “conhecimento intrínseco das ilhas”. Duas a três vezes por semana, lá iam até Vila Nova de Gaia. “Até ao Cabedelo e vínhamos”. Isto depois das tertúlias no Majestic, que era mais frequentado por artistas, “malta das Belas Artes”. O reconhecimento da cidade chegava depois: “O Porto noturno tem outra vivência. Havia o aspeto saudável da caminhada e pelo caminho íamos discutindo, brincando, brigando, tudo... Estabeleceu-se uma convivência muito estreita entre nós”. Para além do atelier, chegou a partilhar casa, durante três anos, com Ângelo de Sousa, nas Fontainhas, e ainda se lembra dos três

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despertadores que este colocava em sítios diferentes da casa e que disparavam com um intervalo de cinco minutos, para que se levantasse e fosse à aula das oito e meia. Mas ele “chegava sempre atrasado” (risos). Um dia, a fazer as capas do programa do Cineclube, “o Ângelo estava sentado numa cadeira, com uma prancheta no colo a gravar o seu linóleo e com uma garrafa de uísque ao lado. Foi bebendo e gravando, até que a goiva se lhe escapou e estragou o que estava a fazer. Ficou tão furioso que espetou a goiva no linóleo, na prancheta e na perna” (risos).

RUTURA NO ENSINO DAS BELAS ARTES A rutura que introduziram no ensino da Escola de Belas Artes atribuem à visão do diretor da instituição, Carlos Ramos. Isso aconteceu, por exemplo, na disciplina de Desenho de Estátua, lecionada por Armando Alves. “No meu tempo de aluno fazíamos uma dúzia de estátuas ao longo do ano, muito pouco. Então, propus fazer outros desenhos: de rua, dos jardins, das estações do ano, do nascer das plantas… Houve alunos que fizeram perto de mil desenhos durante o ano. Entusiasmavam-se com o nosso entusiasmo de professores e deu esse resultado maravilhoso de um aluno ter, no final do ano, perto de mil desenhos para apresentar e alguns de altíssima qualidade. Tudo o que propusemos, quer eu, quer o Ângelo, o Zé e o Jorge foi sempre aceite”.

cultura

Carlos Ramos “era um homem que tinha pertencido ao modernismo português”, completa Jorge Pinheiro. “Antes dele, a escola era tão académica quanto a de Lisboa, de onde eu fugi. Ele opunhase radicalmente ao espírito do ancien régime, dos anquilosados e apoiava-se nos assistentes e nos jovens. Eram o seu tabuleiro. Sem ele, nada disso tinha acontecido. Dava-nos a possibilidade de experimentar coisas novas. Quando eu fugi de Lisboa, não era possível fazer arte abstrata. Imagine isto!”. Era o academismo associado ao clima repressivo que Carlos Ramos combatia, mesmo no trato com os estudantes. “[Se] queríamos falar com o mestre Carlos Ramos, bastava procurá-lo”, afirma. “Tínhamos acesso a ele. Quando ia ao café conhecia muita gente pelo nome, mesmo aqueles que não eram alunos dele. Eram alunos da escola. Havia uma colega, a Flor Campino, que tinha pintado um gato. E ele tinha visto. Um dia, entra no café e pergunta: ‘Então, Flor, como vai o seu gatinho?’ Para um aluno, isto é gratificante”. Antes de lecionar na FBAUP, Jorge Pinheiro deu aulas na Escola Secundária Gomes Teixeira, no Porto, onde a cadeira de Desenho era o eixo central das restantes disciplinas e onde começou a gostar de ensinar. “Apareciam coisas belíssimas”. Lembra-se do Francisquinho, um menino pequenino. “Miúdo genial. Eu tinha um desenho dele, aliás tinha mais do que um, que me influenciou imenso. Fiz várias coisas com fundo verde alface… Eu ‘roubei’ aquele verde alface àquele miúdo. Ele jogava com três tons. O verde alface e outros dois arrancados àquele verde alface. Aprendi aquilo com ele.

Texto Anabela Santos

Fotos Egídio Santos

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Fotos tiradas a partir de materiais gentilmente cedidos por Armando Alves e Jorge Pinheiro.

Lembro-me de outro desenho que ele fez, que era ‘A minha casa’. Enternecedor. Sentia-se que aquele miúdo era feliz”.

DIÁLOGO COM A ARTE INTERNACIONAL “Os Quatro Vintes” expuseram na Galeria Alvarez e na Árvore, no Porto, em 1968; na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, em 1969; na Galerie Jacques Desbrière, em Paris, em 1970; e na Galeria Zen, no Porto, em 1971. O grupo terminou em 1972 “tão naturalmente como começou. Cada um continuou o seu percurso, independentemente dos outros”, conta Armando Alves. Com aquele ingrediente que mantém a união: a amizade. “No nosso caso, manteve-se ao longo destes anos todos. O Ângelo e o José já cá não estão, infelizmente, mas com o Jorge ainda hoje… Enfim, é um dos meus maiores amigos. Falamos quase todas as semanas. Às vezes sem saber o que dizer um ao outro… Ou ligo-lhe eu e não sabia o que lhe ia dizer, ou liga-me ele e não sabia o que queria. No fundo, é a necessidade de falarmos um pouco. Isso mantém-se até hoje, o que é muito bonito. E bom”. Cada um seguiu o seu percurso individual, vasta e amplamente exposto e reconhecido. José Rodrigues deixou uma Fundação com o seu nome e vasta arte pública. Ângelo de Sousa teve duas grandes retrospetivas, uma em Serralves e outra no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. O ano arrancou com a exposição “Armando Alves – 60 anos de Pintura”, na Galeria Baganha, no Porto, e

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a exposição “D’Après Fibonacci e as coisas lá fora”, projetada por Pedro Cabrita Reis para Serralves, voltou a dar visibilidade a Jorge Pinheiro, depois da retrospetiva da Gulbenkian, há 15 anos. José-Augusto França, no livro “Os Quatro Vintes”, afirma que “entre a ingenuidade de José Rodrigues e a felicidade de Armando Alves, vividas ambas, haverá a mesma distância que entre a preocupação de Jorge Pinheiro e a ironia de Ângelo de Sousa. Na verdade, tratase de quatro posições opostas duas a duas mas inconfundíveis. Se Armando Alves se satisfaz ligando projeto e realização, e Rodrigues a todo o momento supõe poder fazê-lo, Pinheiro busca metodicamente os meios ou as leis para o conseguir, enquanto Ângelo situa a sua sabedoria em não acreditar no conseguimento, perseguindo-o embora”. “Os Quatro Vintes” não lançaram nenhum movimento artístico novo, “não é a mesma coisa que os dadaístas em Zurique, ou um Cabaret Voltaire”, sublinha Pinto de Almeida. Mas “puseram Portugal a falar com a arte internacional”. E isto é História.

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HÁ MUITOS, MAS OS NOSSOS DESPERTAM A ATENÇÃO DO MUNDO

ciência&tecnologia

Há um laboratório na U.Porto que tem feito vir a Portugal especialistas da NATO, da Marinha dos EUA e de algumas das principais universidades internacionais para observar os mais recentes desenvolvimentos na área dos veículos autónomos. Porque é no Laboratório de Sistemas e Tecnologia Subaquática da FEUP que estão a ser desenvolvidas algumas das mais inovadoras tecnologias no mundo para drones.

Texto Raul Santos

Fotos Egídio Santos

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João Borges de Sousa, diretor do Laboratório de Sistemas e Tecnologia Subaquática.

Julho de 2017. Ao largo de Sesimbra, o submarino Arpão e as lanchas Hidra e Cassiopeia da Marinha Portuguesa realizam, ao longo de 11 dias, um dos mais relevantes exercícios navais da Europa. Mas, nestes exercícios, os conveses da armada nacional não são apenas ocupados por praças, sargentos e oficiais. Desta feita, e tal como vem acontecendo anualmente ao longo dos últimos oito anos, o espaço a bordo é partilhado com investigadores da U.Porto. Marinheiros e cientistas dedicam-se a testar as mais recentes versões dos drones subaquáticos e aéreos desenvolvidos pelo Laboratório de Sistemas e Tecnologia Subaquática (LSTS) da Faculdade de Engenharia da U.Porto (FEUP) em missões simuladas de guerra submarina, protecção portuária, fiscalização marítima, busca e salvamento, monitorização ambiental ou exploração hidrográfica. Operações que estes veículos, versões miniaturizadas de submarinos e aviões, conseguem realizar autonomamente, sem necessidade de piloto(s), cumprindo uma longa lista de tarefas que os seus controladores humanos definem previamente ao seu lançamento à água ou ao ar.

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Esta foi já a 8.ª edição do exercício REP (Recognized Environmental Picture), organizado conjuntamente pela Marinha Portuguesa e o LSTS. Mas, em 2017, os marinheiros e cientistas portugueses tiveram a companhia de especialistas de alguns dos mais importantes centros de investigação internacionais na área dos veículos autónomos. Nestes 11 dias do verão de 2017, especialistas do Centre for Maritime Research and Experimentation da NATO, do Naval Undersea Warfare Center da Marinha dos EUA, da Marinha Belga, da maior universidade norueguesa (Norwegian University of Science and Technology) e das universidades americanas do Hawai e de Carnegie Mellon deslocaram-se a Portugal apenas para ver em acção os drones desenvolvidos na FEUP. “Nós começamos a afirmar-nos no mapa mundial nesta área”, sublinha o director do LSTS e docente da FEUP, João Borges de Sousa – ele próprio um investigador de renome internacional na ciência de veículos autónomos, já com vários cargos de aconselhamento e orientação em universidades europeias e norte-americanas no currículo.

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Os veículos do LSTS têm demonstrado as suas capacidades em exercícios organizados conjuntamente com a Marinha Portuguesa.

NO TOPO DO MUNDO Esta deslocação em massa de militares e investigadores estrangeiros para observar o REP17 é mais uma prova cabal das capacidades extraordinárias dos submarinos e aviões autónomos desenvolvidos pelo LSTS. Contudo, o que diferencia a tecnologia do LSTS não é tanto os veículos em si mesmo, mas antes o software criado para controlar e planear as suas missões. “A nossa vantagem competitiva é precisamente o nosso software”, declara João Borges de Sousa. “Conseguimos ter o mesmo software a correr em todos veículos, sejam submarinos, aéreos ou de superfície, e todos eles conseguem comunicar entre eles e com as estações de operações em terra. E isto é uma coisa realmente única no mundo”. O software totalmente desenvolvido no LSTS tem três componentes principais: a interface de operações Neptus, capaz de correr em qualquer computador pessoal e de interagir com múltiplos veículos simultaneamente; o programa de bordo DUNE, responsável pelos controlos de navegação e actuação dos veículos; e o protocolo de comunicações IMC, que permite colocar veículos de todo o tipo e respectivos controladores em ligação permanente. É precisamente esta capacidade de colocar em comunicação permanente diferentes tipos de veículos, de qualquer construtor, que torna única a tecnologia desenvolvida pelo LSTS. Ao contrário do que acontece habitualmente, em que cada laboratório, forças armadas ou empresa fabricante de veículos desenvolve um software capaz unicamente de operar os seus próprios drones, o software do LSTS pode ser aplicado a veículos de diferentes tipologias e construtores. “Com esta solução nós podemos estar a operar na mesma rede, em simultâneo e de forma coordenada, diversos veículos submarinos, veículos de superfície e veículos aéreos”, explica João Borges de Sousa. Uma capacidade que coloca o LSTS como um dos centros mais avançados do mundo na área dos veículos autónomos, até mesmo no contexto das forças armadas dos EUA. É a colaboração de anos que o LSTS vem mantendo com a Marinha Portuguesa que despertou o interesse da NATO, dos militares norte-americanos e até mesmo da NASA. Mas é no contexto aca-

Docente da FEUP, João Borges de Sousa colabora com várias instituições internacionais na I&D de veículos autónomos.

ciência&tecnologia

démico e comercial que o laboratório da FEUP tem conseguido cimentar uma reputação internacional de excelência. E para isso muito contribuiu a estratégia que a equipa liderada por João Borges de Sousa elegeu para a distribuição do software. “Optamos por disponibilizar o nosso software como open source para aplicações não comerciais”, ou seja, como um programa de código aberto para utilização gratuita em actividades de investigação. A estratégia permitiu dar uma maior visibilidade internacional ao trabalho desenvolvido pelo LSTS e aumentar exponencialmente as colaborações do laboratório com centros de todo o mundo. “Muitos dos nossos parceiros estão a utilizar a nossa tecnologia, o que significa que, quando vêm a Portugal, ou nós nos deslocamos ao seu país, podemos começar quase imediatamente a realizar operações conjuntas. Ninguém precisa de treino adicional ou de veículos próprios para trabalhar em conjunto, uma vez que todos utilizamos as mesmas tecnologias e interfaces”, destaca João Borges de Sousa. Mas até mesmo em aplicações comerciais, a solução desenvolvida pelo LSTS tem-se afirmando internacionalmente. Neste momento, o laboratório da FEUP é já fornecedor de alguns dos principais fabricantes mundiais de veículos autónomos submarinos. “Alguns deles subcontratam-nos para utilizar o software que desenvolvemos, pelo que temos a nossa tecnologia a interagir com muitos dos veículos comerciais disponíveis”, confirma o director do LSTS. Um facto que vem comprovar que a tecnologia made in U.Porto é superior às opções actualmente existentes no mercado internacional. E que leva João Borges de Sousa a admitir que o futuro próximo do LSTS deve passar por “fortalecer a capacidade de transição da tecnologia para o mercado”. Do trabalho desenvolvido pelo LSTS nasceu já uma empresa spin -off. A OceanScan-MST, sediada no UPTEC – Parque de Ciência e Tecnologia da U.Porto, dedica-se exclusivamente à comercialização do LAUV, o modelo de veículo autónomo submarino originalmente criado no LSTS. Mas, como admite João Borges de Sousa, é agora tempo de a comercialização do software “merecer uma atenção mais especial”.

Texto Raul Santos

Fotos Egídio Santos

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A tecnologia desenvolvida no LSTS permite colocar diferentes tipos de drones a trabalhar em conjunto.

VEÍCULOS DE GUERRA E PAZ

O navio hidrográfico NRP Almirante Gago Coutinho em ação num dos vários exercícios realizados pela Marinha e o LSTS.

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O LAUV, acrónimo para Lightweight Autonomous Underwater Vehicle, foi o primeiro desenvolvimento de destaque do LSTS, criado em 1997 como uma unidade de investigação interdisciplinar, constituída por especialistas de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, Engenharia Mecânica e Ciências de Computadores da U.Porto. O submarino autónomo, com menos de 2 metros de comprimento e um máximo de 35 quilos de peso, é capaz de ser transportado por apenas uma pessoa e de ser lançado à água em terra ou a bordo de uma embarcação. Tem-se afirmado como uma solução fiável, económica e simples de operar em missões de pesquisas oceanográficas e hidrográficas e de segurança e vigilância. É ainda o LAUV, numa versão actualizada, que serve de base às operações e exercícios subaquáticos em que participa o LSTS. Mas ao submarino juntam-se agora vários tipos de veículos autónomos aéreos criados no mesmo laboratório, cujo último modelo – o X8 Delta Wing – apresenta uma envergadura de asas de 2,12 metros e um peso máximo de 3,5 quilos. Foram estes os veículos utilizados no exercício REP17, que tanta atenção internacional trouxe a Portugal em Julho do ano passado. Com a colaboração da Marinha Portuguesa, a equipa do LSTS pôde demonstrar como os veículos submarinos conseguem comunicar com múltiplos veículos de superfície e aéreos – e vice-versa –, de forma a transmitirem dados entre si e a coordenarem as suas missões. “Uma das operações mais sensíveis para a Marinha [que dispõe já de veículos autónomos submarinos próprios, desenvolvidos em cooperação com o LSTS] são as chamadas operações de guerra de minas”, explica João Borges de Sousa. “Mas associada a esta área temos também as operações de defesa portuária, operações de busca e salvamento, operações ligadas a controlo de poluição ou de segurança e fiscalização marítima”, acrescenta. Contudo, apesar da colaboração da Marinha Portuguesa ter sido preciosa para o desenvolvimento dos sistemas criados pelo LSTS, as finalidades destes não se resumem a ações militares. É no cam-

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po da hidrografia e da oceanografia que os veículos e software do laboratório da FEUP mais se têm destacado internacionalmente. Para além de várias missões de levantamento topográfico do fundo do mar, de reconhecimento de correntes ou de acompanhamento de migrações e comportamentos de espécies marinhas ao largo da costa portuguesa, o LSTS já realizou algumas destas operações em águas internacionais. Assim acontecerá em Junho de 2018, quando o laboratório da FEUP liderar uma campanha oceanográfica nos EUA, a bordo do navio de pesquisa do Schmidt Ocean Institute, instituição fundada pelo CEO da Google, Eric Schmidt. “A bordo do Falkor vamos estar a operar em simultâneo até 8 a 9 veículos submarinos em operação simultânea, para além de veículos de superfície e aéreos”, especifica João Borges de Sousa. Por conseguinte, “o desafio será coordenar todos estes veículos a operar simultaneamente”. Ao largo de San Diego, a equipa do LSTS vai novamente testar a capacidade dos seus sistemas, agora com o propósito de estabelecer um novo método de observação das condições e interacções das correntes oceânicas com diferentes tipos de veículos. Uma campanha que se prolongará ao longo de 20 dias, a bordo de um dos mais avançados navios hidrográficos do mundo, e que certamente irá elevar ainda mais o estatuto de referência internacional do laboratório liderado por João Borges de Sousa.


Andar na rua como se fosse na praia Incubada no UPTEC PINC, a inovadora marca de calçado Iguaneye venceu, em 2017, o 9.º Prémio Nacional Indústrias Criativas. O projeto que trouxe o designer francês Olivier Taco e a sua família de Paris para o Porto quer pôr tudo a andar… como se fosse na praia. O segredo está na aplicação de um material muito flexível e confortável, os elastómeros sintéticos, e na personalização dos modelos. Andar descalço em ruas de areal extenso… Isto, sim, seria o ideal, diz-nos Olivier Taco… Como no filme de Cédric Klapisch Peut-être (1999). Num apartamento de Paris, o relógio mostra os segundos a aproximarem-se do minuto zero. As garrafas de champanhe explodem sem abafar a música e, entre plumas e confettis, a câmara segue Arthur (Romain Duris), a personagem principal, da sala até outros espaços mais reservados. Na casa de banho, pouco depois da meia noite, o teto desaba e a areia começa a invadir o espaço. A aventura começa do outro lado do buraco no teto. Arthur entra noutra dimensão do tempo e do espaço, onde se vê o último andar dos edifícios, as ruas foram inundadas de areia e a cidade é uma praia gigante onde se poderia andar descalço na rua. Ora, na vida real, as ruas não são praias. “O mundo não é sempre doce e acolhedor”, acrescenta o designer francês. É necessário proteger os pés. “Mas esta ferramenta tem de ser minimal. O mais próximo possível do ideal”. Proteger os

pés, sem lhes retirar a sensação de pisar o chão. Está aqui particularidade da Iguaneye. É um produto minimalista, com um lugar próprio no mercado: permite caminhar como se o pé estivesse descalço, em qualquer lugar. Nascido em Paris há 40 anos, no mesmo hospital de Édith Piaf, Olivier Taco achava graça à disciplina de Química, quando andava no liceu. Ao processo químico por detrás dos materiais. Depois pensou na diversidade de texturas, tecidos, materiais e cores usados na criação de modelos de sapatilhas… Aos 14 anos queria fazer sapatilhas. Entrou num curso de Química de Materiais, da Universidade Pierre et Marie Curie, mas cedo percebeu que o seu caminho não ia continuar por ali. Inscreveu-se na Escola Nacional de Desenho (ENSCI/Les Ateliers). Encontrou ateliers para plástico, metal e madeira, onde dava realmente para tocar e transformar os materiais. “Foi o paraíso. Nunca me senti a trabalhar. Cinco anos e meio e foi sempre um jogo”. Pensou em desenhar uma sapatilha, mas achou que para

fora da caixa

Texto Anabela Santos

Fotos Egídio Santos

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Olivier Taco, o criador da Iguaneye.

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começar seria melhor uma sandália. “Gosto dos projetos minimalistas. Com poucos materiais”. Foi assim que criou um chinelo, inspirado nos chinelos japoneses. “O projeto chamava-se TABI, que é o nome destas meias com o dedão separado. Fiz vários protótipos. O último foi com uma tira dos dedos até ao calcanhar. Foi a prequela”. Trabalhou em alguns estúdios e, graças a uma encomenda específica para fazer um capacete de equitação, aprendeu a fazer o cooperate design do início até ao fim (desenvolver nome, marca, logotipo e produto). Num verão, comprou um sapato de windsurf. Cortou-o, fez umas costuras e criou um novo protótipo de onde emergiu a ideia de caminhar como se estivesse descalço. Queria proporcionar uma espécie de dupla pele. Protetora. Tal como fazem os índios da Amazónia, que mergulham o pé na borracha.

CAMPANHA DE CROWDFUNDING Quando, em 2012, desenvolveu uma campanha de crowdfunding na Kickstarter, plataforma online para a obtenção de financiamento, já o produto tinha os materiais definidos e já era da cortiça portuguesa que se faziam as palmilhas da Iguaneye. Embora o produto fosse todo feito em França. O cenário mudou no dia em que recebeu um telefonema de um responsável de uma empresa portuguesa há 40 anos no mercado, e que produz solas para grandes marcas europeias de calçado: a Prócalçado, de São Paio de Oleiros, Santa Maria da Feira. Do outro lado da linha alguém estava disposto a arcar com as despesas da sua deslocação até ao Porto. “Foi uma sorte enorme porque eu precisava de um parceiro industrial que ajudasse a iniciar o processo. Os moldes, a produção...”. Fecharam o contrato. Algum tempo depois, a proximidade física começou a fazer sentido e foi contratado como designer da empresa, sendo-lhe permitido continuar a trabalhar no seu projeto. Estavam criadas as condições para que fizesse as malas e, com a família, mudasse de país. Já em Portugal, decide concorrer à Escola de Startups do Polo das Indústrias Criativas (PINC) do Parque de Ciência e Tecnologia da U.Porto (UPTEC), onde a marca se encontra hoje incubada. No início achou que talvez aquilo não fosse bem para ele. “Por não ser eficiente nas áreas de gestão, faturação, vendas… No fundo por não ser um real businessman”. Depois, percebeu que, afinal, já sabia algumas coisas. “A lutar estes anos todos, deu para aprender”.

fora da caixa

Texto Anabela Santos

Fotos Egídio Santos

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REPRESENTAR PORTUGAL EM COPENHAGA Já em 2017, aventurou-se e venceu o 9.º Prémio Nacional Indústrias Criativas, na categoria Arquitetura e Artes Visuais. Para além dos 15 mil euros que recebeu para aplicar no projeto, a Iguaneye ainda representou Portugal na Creative Business Cup, que se realizou em novembro, em Copenhaga, e que confrontou projetos de diversas nacionalidades na área da economia criativa. Recorrendo aos mesmos produtores locais, sendo as palmilhas em cortiça natural da Vega Industries, empresa da Trofa que já está no mercado dos componentes para a indústria do calçado há mais de 25 anos, Olivier Taco levou para Copenhaga um protótipo novo. Oferecendo uma opção ainda mais minimalista (cobre apenas o calcanhar e o dedo grande do pé), esta sandália apresenta um reforço de cortiça. “Estou muito grato por representar Portugal. Sou francês e representei Portugal”.

Os tamanhos que disponibiliza vão do 34 ao 43, embora o objetivo seja a produção de sandálias até ao número 45. O calçado é feito com elastómeros sintéticos (produto à base de borracha) e pode ser personalizado. Há nove cores à disposição, tanto para o sapato como para as palmilhas, que, sendo em cortiça, absorvem a transpiração. Além disso, a própria sandália já tem um sistema que permite a entrada de ar. Atualmente, o calçado está à venda online e tem distribuidores na Áustria, Noruega, Tailândia e no Japão, onde o agente local abriu uma loja Iguaneye em Tóquio. O que não é estranho, se pensarmos que a sandália original surgiu precisamente do Tabi, modelo de chinelo japonês.

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Artur Santos Silva “A REESTRUTURAÇÃO DOS SABERES DENTRO DA UNIVERSIDADE TEM DE ESTAR NA AGENDA” O novo presidente do Conselho Geral da U.Porto é uma das grandes figuras do Portugal pós-25 de Abril, não apenas pelo seu papel na modernização do sistema financeiro mas também pela sua intervenção em diversas instituições de referência, particularmente na área da cultura. Fundador do BPI, de que é presidente honorário, Artur Santos Silva notabilizou-se ainda na presidência da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 2012 e 2017. Iniciou a sua carreira como assistente de Finanças Públicas e Economia Política na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde se licenciou em 1963. Passou fugazmente pela política como Secretário de Estado do Tesouro, no atribulado V Governo Provisório de Pinheiro de Azevedo, e foi vice-governador do Banco de Portugal. Integrou a administração da Fundação de Serralves, presidiu ao Conselho de Fundadores da Casa da Música e liderou as Comemorações do Centenário da República, honrando os pergaminhos republicanos da família. Tem vasta experiência no meio académico, quer como docente, quer como dirigente. Defende uma maior “racionalidade no desenho do sistema de ensino superior e de investigação”, sem prejuízo do papel das instituições no “combate à desertificação” do interior. No caso da U.Porto, considera que a “reestruturação dos saberes dentro da Universidade tem de estar na agenda”, o que implica verificar se há “massa crítica que justifique a autonomia que uma faculdade pressupõe”.

entrevista

Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos

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O que é que o motivou a aceitar a presidência do Conselho Geral da U.Porto, depois de já ter exercido o mesmo cargo na Universidade de Coimbra? O trabalho que tive como presidente do Conselho Geral da Universidade de Coimbra estimulou-me a repetir o desafio. A experiência foi de facto muito gratificante. A Universidade de Coimbra foi onde me formei e trabalhei como assistente e, mais tarde, como professor convidado. Já a U.Porto é a universidade da minha cidade. É uma universidade com um peso enorme na vida do país e uma voz muito forte como instituição do ensino superior. Os seus centros de ciência, tecnologia e inovação têm um grande impacto na sociedade e na economia. Portanto, foi uma honra, para mim, ter sido convidado [para o Conselho Geral]. Parto para o exercício deste cargo com esperança. O que é que a sua experiência pessoal e profissional pode trazer ao cargo? Aquilo que posso trazer é uma experiência importante de gestão, quer como executivo no BPI e na Fundação Calouste Gulbenkian, quer como não executivo no grupo Jerónimo Martins. Tenho também experiência em órgãos de governo de intuições culturais, como a Fundação de Serralves e a Casa da Música. Fui ainda presidente da COTEC, uma associação que visa justamente aproximar as empresas das universidades. Onde poderei ser mais útil é no desafio da Terceira Missão [serviços à comunidade], em que muito acredito, e também na inovação, investigação e internacionalização. Estas vão ser as prioridades do novo Conselho Geral? Como presidente do Conselho Geral, não posso dizer que há prioridades. Mas eu acredito muito na Terceira Missão. Além do papel que têm na translação do conhecimento para a economia, entendo que as universidades podem fazer muito na prestação de serviços à sociedade e na interação com outras instituições. Basta vermos a qualidade da comissão que estudou o incêndio de Pedrogão, na qual houve um grande envolvimento de personalidades dos nossos sistemas do ensino superior e da investigação. As universidades deviam ser o principal recurso do Estado na preparação de políticas. O que é que podemos esperar do novo Conselho Geral? O que eu espero é que as pessoas que participam no Conselho vejam, sobretudo, o que são os desafios e problemas da Universidade, e que não pensem nos seus interesses específicos. Estou falar dos docentes, colaboradores e estudantes, uma vez que os elementos externos, em princípio, não estão ligados a interesses específicos da Universidade. Os membros do Conselho Geral devem ter presente que a sua missão é, no essencial, supervisionar e aconselhar, apenas decidindo, para além da eleição do reitor, sobre a gestão estratégica e provisional – plano e orçamento anuais. As decisões cabem, fundamentalmente, ao reitor. Espero, por isso, que se consiga um bom relacionamento com o reitor e com o Conselho de Curadores, porque estamos todos a trabalhar com o mesmo objetivo.

entrevista

“A U.Porto é a universidade da minha cidade. É uma universidade com um peso enorme na vida do país e uma voz muito forte como instituição do ensino superior. Os seus centros de ciência, tecnologia e inovação têm um grande impacto na sociedade e na economia. Portanto, foi uma honra, para mim, ter sido convidado [para o Conselho Geral]”.

Que caracterização faz da U.Porto? Quais são, para si, as fragilidades da instituição e as suas principais forças? Visto de fora, a ideia que tenho da U.Porto como instituição de formação superior é muito positiva. Na minha atividade profissional no setor financeiro, tive de recrutar muita gente e a maior parte, na primeira fase, eram pessoas que tinham concluído as suas formações, em especial, nas faculdades de Economia e Engenharia da U.Porto. A qualidade dos recursos humanos na nossa estrutura, neste caso a norte do país, foi sempre muito elevada. Na investigação, a U.Porto tem tido um papel da maior relevância, interagindo com as empresas no processo de inovação e conseguindo captar importantes recursos europeus. Considero, aliás, que a escola internacionalmente mais prestigiada do ensino superior português é a Faculdade de Arquitetura da U.Porto. E fragilidades? Não digo que haja fragilidades, mas há seguramente muito a fazer para uma maior colaboração entre instituições dentro da Universidade, bem como entre a Universidade e outras instituições do ensino superior e de investigação. Com mais massa crítica, mais especialização, mais parcerias, podemos ter ainda melhores resultados no sistema de investigação. Aí, a U.Porto já deu um grande exemplo, quando uniu no i3S o INEB, o IPATIMUP e o IBMC.

MODELO FUNDACIONAL DEVE SER MANTIDO Quais são os desafios que hoje se colocam à U.Porto? A reestruturação da U.Porto, quer ao nível da sua função formativa, quer ao nível da investigação, constitui o desafio mais importante da instituição. Em concreto, a reestruturação dos saberes dentro da Universidade tem de estar na agenda prioritária. Tenho dificuldade em perceber por que não foi aprovada a fusão entre a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Medicina Dentária, por exemplo. E há outras áreas em que devemos ponderar mais seriamente a escala exigida, para saber se temos massa crítica que justifique a autonomia que uma faculdade pressupõe. Temos de aprofundar o estudo das economias de escala, para saber o que podemos conseguir com um outro tipo de organização interna, com uma melhor utilização das infraestruturas comuns e com uma maior normalização de processos. Os dois objetivos centrais nesta matéria devem ser a redução de custos e a melhoria da qualidade dos processos.

Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos

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A U.Porto foi uma das três primeiras universidades a adotar o modelo fundacional, em 2009. No entanto, os compromissos que o modelo pressupunha, nomeadamente financeiros, nunca chegaram a ser cumpridos pelo Estado. Assim sendo, acha que a Universidade deve abandonar o modelo fundacional? Parece-me muito vantajoso o modelo fundacional, apesar de não ter funcionado com todas as suas virtualidades. As universidades, mesmo que não sejam fundações, devem ter muito mais autonomia e horizontes de funcionamento mais alargados. Estou em crer que os pressupostos financeiros e de autonomia do modelo fundacional vão ser cumpridos. Considerando o sucesso do país na redução do défice e da dívida pública em relação ao PIB, espero que haja visão da parte dos nossos políticos para que se possam definir como prioridades a educação e a cultura. Com estas duas prioridades, o país tem muito a ganhar.

“A reestruturação da U.Porto, quer ao nível da sua função formativa, quer ao nível da investigação, constitui o desafio mais importante da instituição. Em concreto, a reestruturação dos saberes dentro da Universidade tem de estar na agenda prioritária”.

O Governo comprometeu-se a manter inalterado, até 2019, o valor do financiamento das universidades pelo Orçamento do Estado. Considerando o crescimento económico do país, não estava já na altura de aumentar o financiamento às universidades? Espero que, se o país continuar este caminho de disciplina financeira, sejam dados mais sinais. O acordo apenas trouxe a garantia de estabilidade no apoio do Estado às universidades, mas acredito que, até 2020, haja condições para tornar mais claro que está a ser dada prioridade à educação e à cultura. O maior sucesso das políticas públicas [em Portugal], neste século, foi o salto na ciência. Mas não houve a mesma política de apoio em relação ao ensino superior. Ora, os países mais bem-sucedidos no ensino superior e na ciência são aqueles que deram igual importância aos dois fatores. Não pode haver um tratamento dual, sobretudo num país como o nosso em que são muito poucas as instituições de investigação fora do sistema universitário. O grupo de trabalho nomeado pelo Governo para avaliar a implementação do regime fundacional defendeu que as universidadesfundação devem ficar fora do perímetro orçamental do Estado. Concorda com esta ideia? Acho que esse é caminho. Mas sou realista: continuamos sujeitos a um controlo apertado da Comissão Europeia. Tem de haver uma relação de moral suasion entre as universidades-fundação e o Governo. Por isso defendo um sistema próximo do inglês, em que há um conselho de financiamento do ensino superior público que permite que as universidades discutam com uma instituição independente do Governo o orçamento para os seus planos anuais e estratégicos. Este sistema permite distinguir o trigo do joio: são dados mais apoios às universidades que têm melhores performances e é-se mais severo e exigente com aquelas que revelam pior desempenho. Pegando no exemplo inglês, sabemos que o ensino superior no Reino Unido recebe avultadas verbas de mecenas. O fundraising é uma área em que a Universidade deve apostar? Penso que é uma das missões fundamentais dos dirigentes da Universidade, e sobretudo do reitor, aumentar a capacidade de fundraising. Nas universidades lá fora, os reitores ocupam muito tempo nesta missão e dispõem de adequadas estruturas de apoio. Na área da cultura, temos aqui no Norte duas instituições, Serralves e Casa da Música, que fizeram aquilo que ainda não se conseguiu fazer a sul: fundações que mobilizam o tecido empresarial e o poder local como fundadores e financiadores.

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“Vejo que há hoje um tecido empresarial mais robusto, com empresas em melhores condições de serem bemsucedidas nas relações com as universidades. Espero que o tecido empresarial ganhe mais sentido mecenático na relação com os sistemas de educação e de investigação, na cultura e também na área social”.

Temos, portanto, de valorizar mais as atitudes de mecenato das nossas empresas. Vejo que há hoje um tecido empresarial mais robusto, com empresas em melhores condições de serem bemsucedidas nas relações com as universidades. Espero que o tecido empresarial ganhe mais sentido mecenático na relação com os sistemas de educação e de investigação, na cultura e também na área social.

REDESENHAR O SISTEMA DE ENSINO SUPERIOR Num país pequeno como o nosso, faz sentido existirem 14 universidades públicas e 15 institutos politécnicos? Concentrando recursos e fundindo instituições, o ensino superior não ganharia eficiência, massa crítica e escala internacional? As universidades e politécnicos do interior têm tido um papel muito importante no combate à desertificação. O nosso país é excessivamente assimétrico: temos 80 a 90% dos recursos humanos qualificados no litoral. Portanto, tudo o que seja atrair e fixar recursos humanos no interior é fundamental para uma sociedade mais equilibrada, menos desigual e mais justa. Mas tem de haver mais racionalidade no desenho do sistema de ensino superior e de investigação. O ensino superior deve ser repensado a partir de uma agenda que nos desafie a construir um sistema com maior capacidade de atração de estudantes e docentes estrangeiros. Para tal, devíamos ter um ensino superior mais identificado com áreas de especialidade. Este processo de reconfiguração do ensino superior partiria das instituições ou do Estado? Acho que deve partir das instituições com o apoio do Estado. O Estado devia ter um conselho para o ensino superior que tivesse esse papel e que agregasse pessoas que, no fundo, representariam todos os stakeholders: não só pessoas das universidades mas também do exterior, nomeadamente do mundo empresarial, que possam contribuir para a consagração de melhores práticas. As universidades são importantes ao desenvolvimento do país não apenas por formarem capital humano, mas também pela valorização económica do conhecimento. Acha que a capacidade de produzir conhecimento das universidades tem sido devidamente valorizada e rentabilizada em termos económicos? Estamos ainda muito longe disso. O número de investigadores a trabalhar em empresas ou para empresas ainda é menos de metade dos valores da zona euro. Na zona euro, os valores médios são perto de 50%, e nós temos 25% de investigadores a trabalhar em empresas ou para empresas. E se só considerarmos os doutorados a tempo inteiro, os valores são substancialmente

entrevista

Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos

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mais baixos. Portanto, temos de adotar políticas que valorizem, nas carreiras académicas, o papel dos investigadores nas empresas. Mas também temos de estimular as empresas a recorrerem aos investigadores e unidades de investigação para lhes resolverem problemas. Da parte das empresas, há abertura para colaborarem mais com as universidades? Dou-lhe dois exemplos que facilmente confirmam isso. A COTEC tem um grupo de 250 PME inovadoras em que não há uma que não tenha relações estreitas com o sistema científico e tecnológico. Outro exemplo é a balança tecnológica: em 2000, nós exportávamos 30% do que importávamos em bens de média e alta intensidade tecnológica. Hoje, temos uma balança equilibrada. É uma evolução extraordinária num período muito curto. Agora, essas relações [das empresas com universidades e centros de I&D] têm de ser ainda mais intensas. Mas o salto [científico e tecnológico] em Portugal foi muito grande e, naturalmente, não pôde ser imediatamente absorvido pela sociedade.

NACIONALIZAR OS BANCOS COM PROBLEMAS A Europa foi confrontada com a crise das dívidas soberanas, que teve consequências dramáticas para o sistema financeiro. No caso português, e tendo em conta a sua experiência de banqueiro, o que é que falhou para que a banca sofresse tão forte abalo? Internamente, o que falhou foi o rigoroso respeito pela lei e a violação de valores éticos por parte das instituições [financeiras] mais significativas, com raríssimas exceções. Instituições que revelaram também incompetência, ao assumirem uma excessiva exposição a empresas do setor imobiliário. Externamente, houve políticas que falharam. As decisões sobre o tratamento da dívida soberana da área do euro foram um desastre, assim como as políticas de austeridade da troika para desalavancagem do sistema financeiro. No caso português, foram impostos objetivos de desalavancagem para cinco anos. Mas, ao fim de um ano, esses objetivos, em vez de serem imperativos, passaram a ser indicativos. E três meses depois desapareceram. Entretanto, já imensas empresas, que tinham sofrido políticas de crédito restritivas, haviam desaparecido.

serem grandes instituições: nacionalização e valorização em três a cinco anos para depois vender. Portanto, devia ter sido feito aquilo que foi recomendado pelo Banco de Portugal mas que o Governo não quis: aumentos de capital pelo Estado, para normalizar financeiramente as instituições, e a seguir nomear uma administração que as recuperasse e privatizasse.

“Temos de adotar políticas que valorizem, nas carreiras académicas, o papel dos investigadores nas empresas. Mas também temos de estimular as empresas a recorrerem aos investigadores e unidades de investigação para lhes resolverem problemas”.

E Banco de Portugal? Acha que esteve à altura da gravidade dos acontecimentos, designadamente na resposta aos problemas do BES e do Banif? O BES, o BANIF, a CGD e, antes disso, o BPN… Acho que, atendendo aos resultados objetivos, os supervisores não foram bemsucedidos. Mas hoje, com a bateria de meios informáticos disponíveis, se não houver ética e respeito pela lei e se se sonegar informação aos supervisores, estes não podem atuar adequadamente. Mas também os auditores tiveram responsabilidades significativas em muitos casos. Perante a gravidade dos problemas, as medidas de resolução foram a melhor opção? Não se deviam ter nacionalizado os bancos com problemas, como se fez em Inglaterra, por exemplo? Do meu ponto de vista, deveria ter sido feito como em Inglaterra: nacionalização e, quando se tratasse de uma instituição de pequena dimensão, a privatização logo a seguir. No caso de

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Na sequência da crise financeira, o CaixaBank realizou uma OPA sobre o BPI. De um ponto de vista emocional, custou-lhe que o projeto da sua vida tivesse este desfecho? Não foi uma surpresa. Na altura em que aconteceu, era a única solução possível pela maneira inadequada como o BCE nos obrigou a desconsolidar um investimento muito importante em Angola. Investimento, esse, num banco que é considerado modelar, com uma gestão de riscos muito prudente e uma rentabilidade muito boa. Refiro-me ao Banco de Fomento Angola, que, até então, tinha permanentemente depositado no BPI um significativo excedente de liquidez. Houve erros por parte do BCE, mas o grande problema é que a economia portuguesa não gerou poupança orientada para as instituições financeiras. Quando nasceu, o BPI tinha uma base acionista em que 72% do capital era português. Há cinco anos, a base acionista estável portuguesa já só detinha 6% do capital. A maior parte dos acionistas fundadores foi saindo e investindo nas suas próprias empresas, porque houve uma valorização muito grande do investimento que fizeram no BPI. E eu considero isso normal. Não respondeu à minha pergunta: custou-lhe este desfecho do banco? O que eu ambicionei, quando criei a instituição, era que fosse uma entidade de capital português, como demonstra a geografia acionista inicial. Mas a situação [económica] do nosso país e as políticas europeias mudaram dramaticamente, bem como o mapa bancário europeu. Quando a instituição foi fundada, os nossos acionistas estrangeiros proporcionaram-nos know-how e abriram-nos a porta aos mercados de capitais internacionais. Os acionistas estrangeiros que entraram a partir dos anos 90, em geral, deram um apoio de grande importância ao desenvolvimento do banco. Esta incapacidade da economia portuguesa para gerar investidores fez com que a banca seja hoje maioritariamente controlada por capital estrangeiro, em particular espanhol. Esta situação não é um risco, tendo em conta que os bancos são fundamentais para o financiamento das empresas? Aquilo que me parece decisivo é que os investidores sejam da área do euro, estando por isso sujeitos às regras que impõem que a avaliação de riscos seja rigorosa e que a conversão do aforro em crédito seja orientada para empresas e famílias cujo risco merece ser financiado. Reconheço que, hoje, a UE dispõe de um sistema de supervisão mais poderoso e que, espero, venha a ser mais eficaz.


Maria Inês Almeida UM REGRESSO A PORTUGAL COROADO DE ÊXITOS

“A ciência só funciona se tivermos ideias inovadoras”. Talvez esta seja a máxima de Maria Inês Almeida, investigadora no i3S que, com 34 anos, já trabalhou nos EUA, fez voluntariado em São Tomé e Príncipe e, só no último ano, conquistou três prémios científicos: a Medalha de Honra L’Oréal Portugal para

as Mulheres na Ciência de 2017, o 1.º lugar no BfK IDEAS 2017 (em conjunto com a sua equipa) e, mais recentemente, o reconhecimento pela autoria do artigo científico da Faculdade de Medicina da U.Minho mais vezes citado, entre os papers publicados há cinco anos.

Vimaranense de gema e curiosa desde miúda, Maria Inês Almeida sempre se interessou por biologia e por “perceber o funcionamento do corpo humano”. Já sabia que queria ser investigadora, antes sequer de ter conhecido a biologia molecular, área que lhe tem valido um forte reconhecimento. Aos 22 anos partiu para o mundo para realizar o estágio da licenciatura em Biologia Aplicada, que concluiu na Universidade do Minho. O primeiro destino foi a Holanda, mais concretamente o Leiden University Medical Center, onde publicou um dos seus primeiros artigos científicos.

Depois de um breve regresso a Portugal, onde começou o doutoramento em Ciências da Saúde, surgiu uma nova oportunidade internacional. Em 2009, partiu para um dos maiores e melhores hospitais de tratamento do cancro do mundo, no Texas, EUA. Foi no MDAnderson Cancer Center que conheceu e foi orientada por George Calin, pioneiro no mundo na área dos RNA não codificantes. Durante os cerca de três anos em que esteve fora, curiosamente nunca chegou a trabalhar com portugueses. Reconheciam-na pelas competências, pela capacidade científica e pelo espírito de integração. Ficavam “admirados pelo que sabemos e aprendemos na formação de base”, garante a investigadora.

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Textos Marisa Macedo

Fotos Egídio Santos

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O que são RNA não codificantes? No genoma humano, apenas uma pequena parte consegue codificar proteínas. O restante, considerado “lixo”, tinha uma função até há pouco desconhecida. Sabe-se, agora, que parte do DNA pode dar origem a moléculas de RNA não codificante (non-coding RNAs), capazes de desempenhar um papel relevante em diferentes funções celulares e de causar impacto em diversas doenças. São estas moléculas que assumem uma função fundamental na regulação da expressão dos genes e que podem ajudar na regeneração de tecidos, nomeadamente na regeneração óssea.

L’Oréal: 2.700 cientistas em 115 países Nos últimos 18 anos, os programas científicos desenvolvidos pela L’Oréal em parceria com a UNESCO já apoiaram a carreira de mais de 2.700 cientistas em 115 países. Na edição de 2017, foram premiadas, em Portugal, quatro cientistas, cujos projetos de investigação foram avaliados por um júri presidido pelo investigador e deputado Alexandre Quintanilha.

DO I3S À MEDALHA L’ORÉAL O regresso definitivo deu-se em 2013, ano em que integrou o laboratório de Mário Barbosa, no INEB – Instituto de Engenharia Biomédica. Em 2016, com a abertura do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, de que o INEB é uma das instituições fundadoras, passou a realizar a sua atividade científica naquele que é o maior centro de I&D da U.Porto. Mudança que trouxe “fusão de conhecimentos, recursos e equipamentos”. Foi no INEB que Maria Inês Almeida começou a trabalhar no projeto onde se propõe explorar uma (grande) parte do ADN (que se julgava ser lixo), para conseguir regenerar o tecido ósseo. O objetivo é desenvolver terapias que ajudem na regeneração de tecidos, modelando o microambiente de forma a restabelecer a homeostasia em caso de doença ou lesão. Na atual equipa de investigação, a jovem investigadora do i3S está a desenvolver alternativas de tratamento para melhorar o tempo de recuperação e a qualidade de vida de doentes que sofram, por exemplo, fraturas ósseas ou tenham doenças como a osteoporose. A este trabalho não ficou indiferente o júri da Medalha de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência. O prémio, que valeu a Maria Inês Almeida um reconhecimento nacional e internacional e 15 mil euros de financiamento, é atribuído desde 2004, e conta com o apoio da Comissão Nacional da UNESCO e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). O objetivo é apoiar e motivar jovens cientistas em início de carreira a prosseguir projetos relevantes na área da saúde ou do ambiente. “Tudo o que chega é bom, mas não é suficiente”. Por detrás da paixão de Maria Inês Almeida pela investigação está sempre o desconforto com a precariedade da profissão em Portugal. Nunca teve um contrato de trabalho e sempre foi bolseira, sem benefícios do Estado e com a permanente sensação de instabilidade. “É mais fácil desenvolver uma carreira científica no estrangeiro, não só pelo financiamento e recursos disponíveis mas também pela estabilidade. Os projetos são pensados a longo prazo, o que não acontece em Portugal, onde as políticas estão sempre a mudar”. Apesar de todas estas contigências, Maria Inês Almeida quis voltar ao país onde nasceu e ser investigadora. “Um período fora é bom para abrir horizontes com outras culturas, formas de trabalhar e mentalidades. Quando regressamos, trazemos algo novo”. Antes do regresso definitivo, fez uma pausa na carreira científica. “Sempre quis fazer um período de voluntariado. Após o doutoramento foi a altura ideal”. Durante seis meses, esteve em São Tomé e Príncipe com a Associação Leigos para o Desenvolvimento, a dar apoio a dois projetos de empreendedorismo com mulheres. Hoje, é graças ao apoio do grupo de investigação do i3S – Microenvironments for New Therapies – que tem conseguido resultados muito “positivos e promissores” no estudo sobre os RNA não codificantes e a sua aplicação no tratamento de doenças. “A ciência só avança se houver colaboração. Ninguém faz nada sozinho: precisamos sempre de mentores e investigadores que nos apoiem”. Maria Inês Almeida reconhece, aliás, que “sem o apoio de toda a equipa, e em particular das colegas Susana Santos e Andreia Silva, ambas do grupo de investigação do i3S, este trabalho não seria possível”.

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Textos Marisa Macedo

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Recém-mamã É natural de Guimarães e foi na Universidade do Minho que se licenciou em Biologia. Gosta de passar os tempos livres a passear ao ar livre, pela montanha ou pelo campo, adora jardins e é fã de jazz e blues. Tem o sonho de visitar o Irão e de morar no Japão. Neste momento, o projeto da sua vida é a família, pois acaba de ser mãe pela primeira vez. A nível profissional, Maria Inês Almeida quer continuar a explorar novas terapias que contribuam para cura ou melhoria da qualidade de vida dos doentes.

O QUE FALTA A PORTUGAL? “Muita da investigação que é feita no nosso país é de excelência! O que falta a Portugal é ser conhecido por isso e ter políticas científicas estáveis e de longo prazo”. Como muitos dos seus pares, a investigadora do i3S sabe que é difícil percecionar o que é feito em ciência e acredita que deve ser feito um esforço de divulgação dos trabalhos desenvolvidos, especificamente para a comunidade não cientifica e não académica. Mas também não esquece a precariedade da carreira. “Há muita gente que desiste… Vivemos numa incerteza, não sabemos como é o futuro. A ideia morre a meio porque muitas das vezes ficamos sem financiamento”. Ainda assim, Maria Inês Almeida acredita no potencial da ciência portuguesa e vê um futuro na maré positiva que atravessa o mundo empresarial. “Portugal está a investir muito na translação da investigação para o mercado, precisamente porque gera circuito económico”. Confessa, aliás, que é uma área onde se vê a trabalhar nos próximos anos: aplicar o espírito “curioso” de investigadora no desenvolvimento de soluções inovadoras para as empresas, mas sem esquecer a importância da investigação básica como um motor essencial para o desenvolvimento.

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PEDRO GIL VIEIRA VENCE PRÉMIO SACKLER BOLSA DE 1,5 M€ PARA PEDRO LEÃO

Foto DR

Pedro Gil Vieira, alumnus e professor afiliado da FCUP, foi um dos dois vencedores da edição 2018 do prestigiado Prémio Internacional Raymond e Beverly Sackler em Física, pelo seu inovador trabalho em Teoria Quântica de Campo. O físico do Instituto Perimeter de Física Teórica (Canadá) e do International Centre for Theoretical Physics – South American Institute for Fundamental Research (Brasil) foi o primeiro cientista português a receber o galardão atribuído pela Universidade de Telavive (Israel), no valor de 100 mil dólares. Refira-se que o Prémio Sackler distingue, em anos alternados, investigadores nos domínios da Física e da Química com menos de 40 anos.

Pedro Leão, investigador FCT no CIIMAR e alumnus da FCUP, ganhou uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação no valor aproximado de 1,5 milhões de euros. Trata-se de uma bolsa para jovens investigadores (starting grant) e servirá para financiar, durante cinco anos, o desenvolvimento do projeto FattyCyanos, que visa a incorporação e modificação de ácidos gordos em produtos naturais de cianobactérias. Com este projeto, a equipa liderada por Pedro Leitão espera descobrir novos produtos naturais e novas enzimas presentes num grupo de bactérias fotossintéticas, as cianobactérias.

Foto DR

GALA DA INOVAÇÃO CELEBRA TALENTO

JOANA LOUREIRO RECEBE PRÉMIO AMERICANO DE GENÉTICA

Constança Paúl, Jorge Lira e Adélio Mendes foram os homenageados da Gala da Inovação 2017, que decorreu em outubro no Museu do Carro Elétrico. Mais de 250 convidados participaram na celebração promovida pela U.Porto Inovação e pelo Gabinete Alumni da Universidade. Criada com o objetivo de homenagear o talento da U.Porto, a Gala da Inovação distinguiu, nesta última edição, a investigadora do ICBAS Constança Paúl, pelo seu trabalho na área do envelhecimento ativo e saudável, o alumnus da FAUP e orfeonista Jorge Lira, pelo seu papel na valorização da gaita de foles mirandesa, e o professor catedrático e investigador da FEUP Adélio Mendes (na foto), pela sua notável carreira científica em interface com o tecido empresarial.

talento

Joana Loureiro, estudante de doutoramento do i3S, venceu a edição 2017 do Charles J. Epstein Trainee Award for Excellence in Human Genetics Research, atribuído pela Sociedade Americana de Genética Humana. É, de resto, o primeiro investigador português a conquistar este prémio. A investigadora viu assim reconhecida a qualidade do seu trabalho de descoberta da mutação responsável pela ataxia espinocerebelosa SCA37, uma doença neurodegenerativa incurável que afeta famílias em Portugal. Os resultados desta investigação, que pode abrir portas a medicamentos e tratamentos para a doença, foram parcialmente publicados, em 2017, na revista American Journal of Human Genetics.

Foto i3S

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Maria de Sousa, professora catedrática jubilada do ICBAS e professora emérita da U.Porto, foi agraciada, em novembro, com o Prémio Universidade de Lisboa 2017, que distingue personalidades com relevantes contributos para a ciência, a cultura e a projeção internacional do país. O júri presidido pelo reitor da U.Lisboa, António Cruz Serra, e do qual faziam parte Paulo Macedo, Teresa Patrício Gouveia e Guilherme de Oliveira Martins, entre outros, decidiu premiar Maria de Sousa não apenas pelo seu currículo científico e académico, mas também pela sua faceta “humanista que cultiva o gosto pelas artes, pela história e pela poesia”. Maria de Sousa notabilizou-se internacionalmente como autora de artigos científicos fundamentais para a definição da estrutura funcional dos órgãos do sistema imunológico. É licenciada em Medicina pela U.Lisboa, foi bolseira da Gulbenkian nos Laboratórios de Biologia Experimental em Mill Hill (Londres) e doutorou-se em Imunologia na Universidade de Glasgow (Escócia). Passou ainda pelos EUA, onde dirigiu o Laboratório de Ecologia Celular do Instituto Sloan Kettering de Investigação em Cancro, em Nova Iorque. Em 1985, fundou o mestrado em Imunologia do ICBAS.


ACADEMIA POLITÉCNICA DO PORTO

FILHA DO SETEMBRISMO

Aproveitando o recente passar dos 180 anos da criação da Academia Politécnica, aqui se lembram as principais razões do seu aparecimento e os seus conturbados primeiros tempos, afinal simbólicos das dificuldades e contradições visíveis na história da primeira metade do século XIX português. De facto, esta escola industrial nasce no calor de um movimento revolucionário, o de setembro de 1836, para se finar às mãos de outro, o de outubro de 1910.

Na história da U.Porto e das instituições suas antecessoras são os elementos de continuidade os de mais fácil apreensão, até pela comodidade de imaginar uma escola que, fora do tempo político e social, se vai transformando e modernizando, num inexorável e natural aperfeiçoamento. Mas basta debruçar-nos sobre a história da Academia Politécnica para nos ser dada uma imagem bem diferente: afinal, nasce no calor de um movimento revolucionário, o de setembro de 1836, para se finar às mãos de outro, o de outubro de 1910.

UM PAÍS DE TANGA O final da guerra civil, em 1834, com a vitória das forças liberais agregadas em torno de Pedro de Bragança sobre as absolutistas, não significou a formação de um consenso político entre as diferentes fações do liberalismo. Pelo contrário, a Carta Constitucional que este outorgara em 1826 e que lutou para impor como documento-base da monarquia constitucional será rapidamente colocada em causa pelo movimento revolucionário de setembro de 1836 e substituída, embora também por não muito tempo, pela mais radical, e anterior, Constituição de 1822. Apesar de se ter alcançado uma (relativa) paz, estava-se em 1834 à beira da bancarrota. Os problemas do país vinham de longe e eram muito diversos: as debilidades que o mantiveram à margem da revo-

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Texto Paulo Gusmão Guedes

Fotos Egídio Santos

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Roda de Barlow, 1903, Coleção de Física do MHNC-U.Porto.

lução industrial, as invasões francesas, que o devastaram, o protetorado inglês que o menorizava politicamente e cerceava industrial e comercialmente, a perda do monopólio mercantil com a sua mais importante colónia, o Brasil, e, depois, a sua independência. A estes, a guerra acrescentara uma imensa dívida pública, contraída maioritariamente nas praças europeias pelos beligerantes. Usando as palavras de um político atual, não só o país estava “de tanga” como a tanga estava “no prego”. A venda das propriedades expropriadas em 1834 às corporações religiosas e militares não produziu o esperado retorno económico, uma vez que as terras foram maioritariamente pagas com títulos de dívida ou, então, a título de indemnização. Por outro lado, em vez de promover a formação de uma alargada classe de proprietários, esta venda favorece a concentração da terra na grande burguesia fundiária, que tem poder económico para arrematar os terrenos. Mas não será do meio rural que surgirá a revolta. Em situação dominante para influenciar o poder, os grandes comerciantes nacionais e estrangeiros de importação/exportação e os grandes agricultores que produzem para exportação estão dependentes dos interesses ingleses. A incerteza relativamente aos termos de negociação, a partir de 1835, do tratado comercial que substituiria o desfavorável tratado de 1810, “pelo qual o mercado nacional tinha sido praticamente entregue sem defesa à indústria e ao comércio ingleses” 1, extrema as posições da pequena e média burguesia comercial e industrial. A manipulação das eleições de julho de 1836 para as cortes em favor do governo fará, num ambiente politicamente tenso, o resto. A 9 de setembro do mesmo ano, em Lisboa, serão estes grupos sociais que, em conjugação com setores populares e com o apoio de forças militares, forçam a monarquia a adotar a constituição vintista e a nomear um governo “de esquerda”. A sequência de eventos será confusa e rapidamente cambiante – como, aliás, muitos dos eventos da primeira metade de 1800 –, mas a prioridade dada ao desenvolvimento industrial, reduzindo a dependência da Inglaterra, e, concomitantemente, a necessidade de tarifas alfandegárias protecionistas estarão entre as principais linhas de afirmação dos setembristas, e serão expressão das exigências das classes industriais – fabricantes, artífices e operários. Assim se entende melhor a importância da abundante legislação nesta área de Passos Manuel, figura central dos primeiros governos setembristas, conjuntamente com o visconde de Sá da Bandeira. Como Ministro do Reino, produzirá até meados de 1837 diversos diplomas que procuram estruturar um ensino vocacionado para a indústria e para o desenvolvimento das infraestruturas fundamentais ao funcionamento de um mercado interno. Assim se cria o ensino liceal em novembro de 1836, incorporando cadeiras que se pretendiam de aplicação prática, como as de Princípios de Física,

Primeiro programa de estudos da Academia Politécnica, 1838, Fundo Antigo da U.Porto.

Vista panorâmica da exposição Virtus Unita Fortius Agit: Academia Polytechnica, 1837-1911, que esteve patente na Reitoria da U.Porto no final de 2017.

de Química e de Mecânica aplicados às Artes e Ofícios ou de História Natural dos três Reinos da Natureza aplicados às Artes e Ofícios. Quase na mesma altura, surge o Conservatório de Artes e Ofícios de Lisboa e, um pouco mais tarde, o do Porto, para “instrução prática em todos os processos industriais”. Finalmente, em janeiro de 1837, as Academias Politécnicas de Lisboa e Porto. Não será do verbo legislativo de então que as instituições nascerão plenamente formadas – infelizmente, a realidade será muito mais crua. No que diz respeito ao Porto, o Conservatório de Artes e Ofícios aparentemente nunca funcionará, e as muitas dificuldades encontradas na instalação da Academia Politécnica descrevem-se abaixo…

DE UMA ACADEMIA A OUTRA A primeira administração setembrista exigira quase imediatamente o juramento por todos os funcionários públicos da Constituição de 1822. Essa determinação teve como resultado que, na Academia Real da Marinha e Comércio do Porto, criada em 1803 por D. João VI, 13 dos cerca de vinte professores que aí prestavam serviço foram demitidos a 19 de outubro. Também a nomeação de novo diretor não foi imediata por sucessivas recusas, mas João Baptista Ribeiro, lente de Desenho, parece ter sido uma escolha particularmente feliz, como veremos. Rapidamente foram nomeados no-

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Texto Paulo Gusmão Guedes

Fotos Egídio Santos

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João Baptista Ribeiro, retrato a carvão por Guilherme António Correia, 1869, Fundo Antigo da U.Porto.

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Modelo didático de máquina a vapor, 1888, Coleção do Museu da FEUP; massas de mercúrio, 1880, e microscópio invertido, 1886, Coleção de Física do MHNC-U.Porto.

durante o cerco do Porto (1832-33), havia sido instalado no edifício da Academia, e por lá se eternizava, fosse transferido para o convento de S. João Novo. Até então, com a exceção de duas, as aulas eram dadas em casas alugadas. Mas o edifício da Academia, aliás partilhado com o Colégio dos Órfãos, estava em muito mau estado, e só poderia ser ocupado após a realização de obras, que o governo não pagava. Nomeado, entretanto, primeiro diretor da Politécnica, João Baptista Ribeiro adiantou o dinheiro do seu bolso. Como as salas de que dispunha não eram suficientes, o expedito diretor ocupou uma das duas salas atribuídas no mesmo edifício à Sociedade de Ciências Médicas e Literatura — de que fazia parte Alexandre Herculano —, ignorando os seus protestos; de seguida, tentou apropriar-se de salas pertencentes ao Colégio dos Órfãos, desta vez sem sucesso. A 1 de junho de 37, o governo Sá da Bandeira-Passos Manuel cai. Não é ainda o fim do setembrismo no poder, mas Passos Manuel não voltará a exercer funções governativas. Sá da Bandeira sim, mas entretanto fora nomeado lugar-tenente da rainha nas províncias do Norte por ocasião da revolta cartista “dos marechais”, e a sua chegada parece aliviar o sufoco financeiro da Academia. Note-se que os professores da Academia já não recebiam salário há um ano e que as obras precisavam de continuar a ser financiadas. Então como agora, era preciso bater às portas certas: João Baptista Ribeiro recorre a Sá da Bandeira, que faz o dinheiro aparecer para a continuação das obras e para o reembolso das somas avançadas pelo diretor. Feitas as obras, podia-se iniciar o ano letivo. E assim sucedeu a 6 de novembro de 1837: matricularam-se 120 estudantes.

OS PRIMEIROS TEMPOS vos professores pelo governo. A 13 de janeiro de 1837, Passos Manuel assina o decreto que reforma a Academia, efetivamente transformando-a em Politécnica. Se diversas valências formativas anteriores se mantêm (oficiais de marinha, pilotos, comerciantes, agricultores, artistas…), estamos contudo perante uma escola que se pretende que seja primordialmente uma escola de formação de engenheiros e, também, de diretores de fábricas; afinal, uma escola industrial. O processo de transformação foi verdadeiramente confuso: ainda a Academia Politécnica não tinha iniciado o seu primeiro ano letivo – o que só ocorrerá em novembro de 1837 – e já algumas das disciplinas do novo plano educativo estavam em funcionamento, enquanto outras aguardavam a nomeação de docentes. Como a 15 de março de 1837 já se considera a Academia Politécnica “instalada” e definitivamente finada a Academia da Marinha e do Comércio, o ano letivo de 36-37 iniciou-se, então, com um determinado plano de estudos e acabou com um diferente (e incompleto) plano de estudos, numa escola que já não era a mesma em que os estudantes se tinham inscrito inicialmente. Mas talvez, na prática, as diferenças não fossem muitas para os que se encontravam a frequentar esse ano. As instalações eram, também, um grande problema. Em dezembro de 36, João Baptista Ribeiro tinha conseguido que o hospital que,

Cronómetro, 1910, Coleção de Física do MHNC-U.Porto.

Não deixa de ser impressionante – dir-se-ia quase militante, na exatidão com que procuraram corresponder aos objetivos do legislador – a forma como os professores da nascente Politécnica, organizados no Conselho Académico, lidaram com o difícil problema de ter um número limitado de cadeiras (e, claro, a falta de docentes para as lecionarem ou assistirem) para garantir uma pluralidade de formações técnicas. A lei que instituía a Academia Politécnica estabelecia 11 cadeiras, mas no primeiro ano letivo, que se iniciou a 6 de novembro de 1837, apenas foi possível organizar oito, e destas, duas não tiveram inscrições. O sistema que se desenhou, publicado em 1838, já com as 11 cadeiras, era complexo: uma cadeira podia ser anual, bienal ou trienal e conter uma grande diversidade de matérias. Um curso era realizado pela hábil composição de um puzzle de cadeiras completas e matérias isoladas de cada cadeira. Assim, era possível que diferentes partes de uma mesma cadeira fossem cursadas em diferentes anos. Algumas disciplinas eram, ainda, frequentadas na Academia de Belas Artes. Por exemplo, o curso de diretores de fábricas tinha a seguinte estrutura: 1.º Ano: 1.ª cadeira (Aritmética, Álgebra, Geometria, Geometria descritiva, Trigonometria) + Desenho de figura e paisagem, na 4.ª cadeira. 2.º Ano: 2.ª cadeira (Álgebra, Geometria analítica, Trigonometria esférica, Cálculo diferencial e integral, etc.) + 8.ª cadeira (Física elementar e suas principais aplicações)

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Texto Paulo Gusmão Guedes

Fotos Egídio Santos

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Disco ótico de Hartl e acessórios, 1909, e interruptor eletrolítico de Wehnelt, 1909, Coleção de Física do MHNC-U.Porto.

Modelo de geometria descritiva, 1868, Coleção do Museu do ISEP.

3.º Ano: 3.ª cadeira (Geometria descritiva e suas principais aplicações, Mecânica dos sólidos e fluidos e suas principais aplicações) + Botânica, na 10.ª cadeira + Desenho de paisagem pelo natural, na 4.ª cadeira. 4.º Ano: Zoologia e Mineralogia, na 7.ª cadeira + 9.ª cadeira (Química e Artes químicas) + Desenho de máquinas, ornatos e decorações, na 4.ª cadeira. 5.º Ano: Economia industrial, na 11.ª cadeira; Arquitetura civil, na Academia de Belas Artes. Com este sistema, a que se adicionava ainda a necessidade de aprovação em matérias liceais (o Liceu Nacional do Porto era uma secção da Politécnica), foi então possível oferecer a grande variedade de formações desejada, organizadas em duas classes: umas mais exigentes e com maior carga teórica, como as dos engenheiros (de minas, construtores de navios, geógrafos e de pontes e estradas), e outras mais elementares e com aplicação prática imediata, como as dos artistas e agricultores. O programa curricular então publicado incorporava ainda uma segunda parte de “Exercícios”, que, com uma introdução sobre as virtudes da articulação entre teoria e prática, constituía um verdadeiro programa pedagógico, com os objetivos de cada cadeira, a forma de conduzir aulas e atividades práticas e os exercícios a realizar pelos estudantes. Refletindo sobre este folheto de 31 páginas, não pode ficar senão a impressão de que os professores estavam bem cientes da importância do edifício educativo cuja construção se lhes pedia.

Nota 1 Cabral, Manuel Villaverde, O Desenvolvimento do Capitalismo Industrial em Portugal no Século XIX, A Regra do Jogo, Lisboa, 1981. Para saber mais: Basto, Artur de Magalhães, Memória Histórica da Academia Politécnica do Porto, Universidade do Porto, Porto, 1937, reimpressão em 1987. Disponível em: https://www.fc.up. pt/fa/index.php?p=nav&f=books.0138.0 Serén, Maria do Carmo, e Pereira, Gaspar Martins, “O Porto Oitocentista”, in História do Porto, dir. Luís A. de Oliveira Ramos, Porto Editora, Porto, 1994. Cordeiro, José Manuel Lopes, História da Indústria Portuense, Volume 1 – Dos finais do século XVIII a 1852, Edições Afrontamento, Porto, 2017.

TEORIA E PRÁTICA Corresponderia este aturado planeamento à expressão prática que se idealizava? Mal equipada e mal instalada (as queixas relativas à desadequação dos espaços e dos equipamentos atravessarão quase todo o resto do século), subfinanciada, qual teria sido o impacto dos formados pela novel escola (para além de prover os quadros do Estado) no tecido industrial? O panorama não era brilhante: se a atividade industrial nacional

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terá sido favorecida pelo estabelecimento das pautas aduaneiras protecionistas de 1837, no Porto o crescimento será mais quantitativo que qualitativo, mantendo-se intocada a estrutura dominante de unidades fabris de pequena dimensão, assim como o recurso à produção “a domicílio”, não realizada na própria unidade fabril. Nem nas maiores unidades do principal setor de atividade, o têxtil – seda, algodão, lanifícios –, se registam importantes avanços na mecanização ou na introdução da energia a vapor, tecnologias que chegam tarde e em pouco número. Estamos ainda maioritariamente perante uma produção de mão de obra intensiva, dirigida sobretudo para o mercado interno, de qualidade discutível face aos produtos ingleses e por isso pouco exportada. Retrato diferente apresentava então Lisboa, com as suas unidades industriais de maior dimensão e mais ampla difusão de máquinas a vapor: em 1845, a capital do país já tinha 26, quando no Porto só funcionavam quatro. Lisboa era indiscutivelmente o centro industrial do país. Contudo, em alguns setores, como o da metalurgia, o mais avançado tecnicamente, já no Porto dos anos 40 se fabricava equipamento industrial ligado à tecnologia do vapor, e até se exportava. Mas casos como este são isolados e pouco consequentes, e muitos projetos industriais ambiciosos morrem no berço, ou têm vida curta, por falta de capital ou viabilidade, dificuldades de produção, desentendimentos entre sócios… Não é este, ainda, o arranque industrial sonhado pelos setembristas, nem, parece, o tempo certo para se poder assistir aos efeitos da formação Politécnica no setor industrial local. Mas nesse sentido trabalham docentes da Academia, como José Vitorino Damásio, José Parada Leitão ou José António de Aguiar, conscientes de que as soluções para o atraso industrial não podiam estar dependentes do protecionismo alfandegário, mas residiam de forma importante na formação: a dos quadros superiores, certamente, mas também a dos “artistas”, ou seja, dos técnicos ou operários especializados que pudessem acompanhar a desejada modernização industrial. Mas esta modernização, com as necessárias mudanças na estrutura e composição das unidades fabris, far-se-á esperar.


Nos últimos três anos, a U.Porto aplicou mais de 2 milhões de euros de financiamento internacional em projetos ligados à educação alimentar. Munimo-nos de tachos e avental e fomos provar a receita para um país mais saudável na hora de escolher o que pôr no prato.

À mesa com a U.Porto A magia começa a fazer-se mal o azeite toca o fundo da travessa, onde já o esperam a cebola, o alho às rodelas, o bacalhau e as batatas. Segue-se uma ida ao forno pelo tempo suficiente para, num tacho à parte, burilar um “cocktail” de fibra e fitonutrimentos à base de alho picado, azeite, broa de milho, couve-galega e feijão-frade. Esquecemo-nos do sal? Não. E o coração agradece. O bacalhau com migas da família Figueiredo está pronto a servir. Tempo de preparação: 50 minutos. Mas, em frente às câmaras, tudo acontece em cinco minutos, o tempo que Patrícia Padrão e o conhecido chef Hélio Loureiro precisam para desvendar mais uma dose de “Nutriciência”, o programa de televisão que deve o nome ao projeto que, nos últimos dois anos, “navegou” pelo país para promover a literacia nutricional junto das famílias portuguesas. A receita prima pela inovação. Comece por juntar crianças dos 3 aos 5 anos e respetivos pais e educadores numa espécie de “Facebook da alimentação saudável”. Ali, os educadores encontram dicas úteis sobre nutrição e alimentação, ao passo que os pais são desafiados para missões como plantar uma horta em casa, ou partilhar versões saudáveis de receitas típicas da sua região. Já os mais novos podem aceder

a jogos interativos em que aprendem a fazer escolhas alimentares corretas com a ajuda de super-heróis disfarçados de frutos e hortícolas, e vilões em forma de donuts, saleiros ou açucareiros. A brincar a brincar, “estamos a ajudar a prevenir e a combater a principal causa de morte em Portugal, que são as doenças cardiovasculares”, nota Patrícia Padrão, nutricionista e professora da Faculdade de Ciências da Nutrição da Alimentação da U.Porto (FCNAUP). A estratégia não podia ter sido mais bem-sucedida. Entre 2015 e 2017, o projeto liderado pela Faculdade de Letras da U.Porto (FLUP), em parceria com Faculdade de Engenharia (FEUP), a FCNAUP, a União das Misericórdias Portuguesas ou a Santa Casa da Misericórdia do Porto, mobilizou mais de 1.500 famílias e 3.000 crianças de norte a sul do país. No mesmo período, a plataforma registou milhares de uploads, incluindo centenas de receitas propostas pelas famílias. “Dor de cabeça” foi selecionar as 30 receitas “saudáveis e à portuguesa” – entretanto reunidas em livro – que, ao longo de 2017, deram sabor às manhãs de sábado na RTP1. O critério, revela Patrícia Padrão, “foi escolher as melhores do ponto de vista nutricional e que também revelassem a identidade da gastronomia nacional”.

Diz-me o que comes…

Os números saíram com estrondo em março de 2017. Seis em cada 10 portugueses são obesos ou pré-obesos. Por outro lado, abusamos no consumo de açúcar, sal, álcool, carne, lacticínios e refrigerantes, esquecendo as frutas, os vegetais e os cereais. Pior. Não compensamos os erros à mesa com a prática de exercício físico. O cenário negro é pintado pelo Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF), um projeto liderado por Carla Lopes, investigadora de Faculdade de Medicina (FMUP) e do Instituto de Saúde Pública da U.Porto (ISPUP), do qual resultou o mais completo retrato sobre práticas alimentares e atividade física dos portugueses desde 1980.

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Textos Tiago Reis

Fotos Egídio Santos

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DA MODA À CIÊNCIA Não há como negar. “Comer bem” está na moda. E se for “saudável”, tanto melhor. Provamo-lo quando somos tentados à conversão às dietas vegan, alcalinas ou… do Paleolítico. No bê-á-bá da nouvelle cuisine saudável cabem ainda produtos sem glúten, batidos detox e tudo o mais que passar na censura dos rótulos nutricionais. Como explicar o fenómeno? “Por um lado, há um aumento da evidência científica que aponta para a importância central da alimentação na nossa qualidade de vida. Além disso, hoje aspiramos a viver até aos 80 ou 90 anos, ou seja, temos uma sensibilidade maior para a importância da alimentação na nossa vida e, sobretudo, na nossa doença. Estamos a falar da diabetes, de cancros, das doenças cardiovasculares e todo um conjunto de patologias relacionadas com o que comemos. Tudo isto faz com que as pessoas olhem para a alimentação como um medicamento”, explica Pedro Graça, professor da FCNAUP e diretor do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (ver caixa). A academia está atenta. Dos seis projetos made in U.Porto que receberam financiamento internacional através do Programa EEA Grants – Iniciativas em Saúde Pública 2009-2014, quatro estão ligados à alimentação. Só para o “Nutriciência” vieram 340

mil euros de um bolo de mais de 2 milhões de euros, cuja fatia maior – mais de 800 mil euros – foi repartida por dois projetos direcionados para a melhoria do estado nutricional dos idosos (PRONUTRISENIOR e o Nutrition UP 65). Pelo meio, chegaram 710 mil euros para concretizar o mais completo retrato alguma vez feito sobre o que comemos em Portugal (ver caixa). Para seguir o rasto da “revolução alimentar” em curso rumamos à FCNAUP, berço de alguns dos mais inovadores projetos desenvolvidos em Portugal na área da educação alimentar. É o caso da novíssima Roda da Alimentação Mediterrânica. Ou do “Coma melhor, poupe mais”, mote do Massive Online Open Course (MOOC) criado em 2016, em parceria com a Reitoria e a Direção-Geral da Saúde, e que já ajudou milhares de pessoas a comer de forma mais saudável e barata. Aos cursos de culinária saudável promovidos na cozinha experimental da faculdade perde-se a conta, sendo também ali que encontramos os «Amigos Hortícolas», o programa que, todos os anos, leva os estudantes da FCNAUP às escolas do Grande Porto para aí desenvolverem ações de educação alimentar junto de crianças e jovens. E a lista con-

Para fazê-lo foi necessário mobilizar dezenas de nutricionistas e investigadores sob a égide de um consórcio internacional em que entraram também a FCNAUP e a Faculdade de Desporto (FADEUP). “Não nos limitamos a estudar os aspetos nutricionais e comportamentos alimentares. Fomos ao ponto de perceber as embalagens que as pessoas usam, as formas de cozinhar… Isto permitir-nos-á chegar a coisas que até agora não tinham resposta”, apresenta Carla Lopes. Ainda em avaliação, os dados obtidos a partir de mais de 6.500 entrevistas trouxeram algumas surpresas à investigadora. A “elevada taxa de obesidade nos idosos” foi uma delas. “Outro problema é a quebra no consumo de frutos e hortícolas que se verifica na adolescência,

em oposição ao que acontece com os refrigerantes”. Ainda assim, a coordenadora do Grupo de investigação em Epidemiologia Nutricional e da Obesidade da Unidade de Investigação em Epidemiologia do ISPUP – EPIUnit desdramatiza os números. “Há aspetos que têm vindo a melhorar, sobretudo quando nos comparamos com outros países. Agora há que continuar as intervenções junto dos grupos mais vulneráveis “, aponta. O desafio esconde um recado.“ A Universidade tem capacidade para fazer mais e melhor investigação do que qualquer serviço de saúde. Falta-nos é, por vezes, a oportunidade de intervir diretamente no terreno”.

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Pedro Graça

“A Universidade tem que ter mais impacto lá fora”

É um dos rostos principais do combate à obesidade em Portugal e acumula, desde 2016, a docência na FCNAUP com a coordenação da Plataforma Nacional contra a Obesidade e o cargo de Diretor do Plano Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), iniciativa da Direção-Geral da Saúde que tem como missão melhorar o estado nutricional da população portuguesa. Pedro Graça traça o raio-x do que comemos e deixa o recado para dentro da U.Porto. Nunca como hoje se terá falado tanto em alimentação saudável. Mas a realidade mostra que continuamos a cometer muitos erros a nível alimentar. Como explica este paradoxo? O que acontece é que temos uma população que é um misto de sabedoria e de ignorância. Hoje encontramos pessoas que leem tudo sobre nutrição e que sabem imenso de química e de nutrientes, mas que, se forem comprar um peixe ao mercado, não conseguem distinguir duas variedades e acabam por fazer opções erradas. Isto é um desafio para quem comunica sobre nutrição.

Desde 2005, a FCNAUP já organizou mais de 40 cursos de culinária saudável, destinados a públicos variados. Álvaro Siza é Prémio Pritzker, o galardão mais prestigiado da arquitetura mundial.

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Textos Tiago Reis

Fotos Egídio Santos

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Quais são os principais desafios que vivemos nesta área? O primeiro passa por termos serviços de saúde capacitados para intervir com qualidade. Temos que ter mais nutricionistas no terreno, mas também enfermeiros e médicos que saibam de nutrição. O segundo desafio é capacitar o cidadão numa era em que a informação nos chega de forma descontrolada. Hoje vamos ao Google ou ao Facebook e estamos a abrir uma caixa de Pandora onde pode estar tudo e mais alguma coisa. Isto obriga-nos a ser mais criativos a comunicar com as pessoas. E, finalmente, temos que intervir sobre os ambientes, tornando-os propícios à implementação de hábitos de alimentação saudável. Em que camadas da população é prioritário intervir? Há um público centralíssimo que inclui as mulheres grávidas a as crianças nos primeiros anos de vida. É nessa fase que se definem os gostos, as preferências, e se determina, inclusive, a obesidade. Depois temos os idosos, que serão a população dominante nos próximos anos.

Como avalia o trabalho desenvolvido pela U.Porto neste domínio? A U.Porto tem feito um trabalho importante nos últimos anos, mas o grande desafio passa por transformar o know-how que se gerou entre portas em know-how que seja utilizado no exterior. Ou seja, temos que perceber se as escolas, hospitais, autarquias, mas também a indústria e a restauração estão a aproveitar o conhecimento que produzimos. A Universidade tem um papel importantíssimo em informar as pessoas, mas, para cumprir esse desígnio, tem que ter mais impacto lá fora. Por onde passa esse caminho? Coordenação, estratégia e investimento. Coordenação para nos articularmos com o exterior, mas também dentro da Universidade, capitalizando competências em áreas que vão da nutrição às ciências da educação e, cada vez mais, às tecnologias e às ciências da comunicação. Temos de ter uma estratégia para definir um caminho. E, claro, precisamos de investimento que garanta a sustentabilidade desse trabalho.

Patrícia Padrão, professora da FCNAUP.

Promover a alimentação saudável é um dos principais objetivos dos workshops da FCNAUP.

tinua. “Este é um pilar enraizado na identidade da escola e que vem na linha do trabalho iniciado por Emílio Peres [fundador da FCNAUP]”, justifica Maria Daniel Vaz de Almeida. Docente na faculdade há mais de 30 anos, esteve na criação da primeira Roda dos Alimentos, em 1977. Quatro décadas depois, coube-lhe liderar o PRONUTRISENIOR, o projeto que, entre 2015 e 2016, se propôs melhorar o estado nutricional de um grupo de idosos de Vila Nova de Gaia. Para isso, os nutricionistas aliaram-se a geógrafos da FLUP num trabalho que implicou avaliar “tudo o que diz respeito à alimentação e às condições de vida dos idosos”, incluindo o “mapeamento de todas as estruturas (lares, centros de dia, mas também cafés, restaurantes, mercearias) que influenciam a sua alimentação”. O alerta não tardou. “Os idosos mostram um grande distanciamento em relação ao que comem. Muitas mulheres passam uma vida a cozinhar e, a certa altura, soltam o «grito do Ipiranga». Nos homens, há muitos que nunca sequer aprenderam a cozinhar”, aponta Vaz de Almeida. A pensar nisso, foram produzidos materiais educativos, dirigidos aos profissionais de saúde que lidam com os idosos, mas pensados, sobretudo, para que estes “tenham nas suas mãos o poder de mudar a sua alimentação”.

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Assim nasceram, por exemplo, a Dona Gertrudes e a Dona Albertina, protagonistas de vários vídeos que, através do humor, chamam a atenção para os problemas alimentares que atingem aquela população. “Falamos de desnutrição, mas também de desidratação, que é uma das principais causas de confusão mental ou agressiva”, remata a docente. Foi com uma realidade semelhante que se deparou o Nutrition UP 65, outro projeto da FCNAUP que, de 2015 a 2017, viajou por Portugal para avaliar o estado nutricional dos nossos idosos. No caminho, descobriu que quase metade (44%) têm excesso de peso, sendo ainda alarmantes as elevadas taxas de desnutrição, desidratação e défice de vitamina D. A resposta foi massiva e incluiu uma ação de formação que, durante um ano, chegou a mais de 600 profissionais de unidades de saúde do Alto Minho a Angra do Heroísmo. Para o terreno foi ainda enviada uma rede de voluntários a quem coube dar formação básica em alimentação saudável aos idosos e respetivos cuidadores. Já em finais de 2017, o Nutrition UP 65 inspirou a primeira edição do curso de Culinária Saudável UP65 da FCNAUP, destinado a pessoas com mais de 65 anos.

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A “charneira” entre a Universidade e as Empresas

* No dia 1 de dezembro, o engenheiro, professor universitário, gestor e político Luís Valente de Oliveira foi alvo de uma homenagem organizada pela U.Porto, AEP e Fundação de Serralves. Mais de 300 convidados assinalaram os 80 anos de vida de uma figura notável da cidade e do país.

A nossa vida colectiva está a experimentar mudanças grandes fruto, especialmente, das mudanças tecnológicas. Essas observam-se em todos os sectores mas, nos domínios da comunicação e da informação, elas são realmente radicais, alterando profundamente os comportamentos e também os conhecimentos que são descobertos a cadência não experimentada anteriormente. Por isso, todas as instituições têm de considerar como normal a sua adaptação contínua que deve ser permanente. Se não o for, os saltos descontínuos originam habitualmente perdas que seriam evitáveis se a mudança fosse incorporada como representando a normalidade.

Vem isto a propósito das relações da Universidade com o mundo das empresas. Há muitos anos elas praticamente não existiam, no nosso País, e as instituições de investigação não consideravam como importante o estabelecimento de laços de cooperação entre as duas partes. Entretanto, formaram-se muitos investigadores, em Portugal, que são tidos como competentes e, mesmo, muito bons no que toca à chamada investigação de base. Onde a pesquisa se revela insuficiente é nas suas inter-relações com o tecido produtivo ou, em domínios como a medicina, nas suas aplicações clínicas. Ora, tanto o progresso económico como o bem-estar material dos nossos concidadãos dependem muito da forma e do ritmo como se aplicam os novos conhecimentos ou como se orientam as capacidades de investigação para a resolução de problemas tecnológicos ou de questões práticas que melhorem as nossas condições de vida. Aliás, não é fácil encontrar meios para focar todas as energias na investigação fundamental sem ir buscar uma boa parte deles às aplicações que, entretanto, se revelarem sucessos que gerem resultados tangíveis que entrem no circuito. Um dos grandes desafios a que a Universidade Portuguesa tem de responder, nos nossos dias, respeita, por isso, à constituição de interfaces entre as instituições de investigação e as empresas ou os serviços que possam extrair vantagens dos novos conhecimentos que se vão descobrindo, de modo a gerar novos meios que assegurem o financiamento de todo um sistema misto de investigação fundamental e suas aplicações. Nessas circunstâncias, poder-se-á acompanhar o ritmo a que muitos outros progridem. Os que mais investem na Ciência fazem-no correntemente com taxas de 60% de meios oriundos do sector privado, leia-se, empresas e serviços. Mas isso reclama as tais instituições de “charneira” em que temos de nos aplicar para que tudo funcione eficazmente. Prof. Luís Valente de Oliveira

Texto na antiga ortografia.

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MECÂNICA DOS SOLOS – CONCEITOS E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Manuel de Matos Fernandes U.Porto Edições, volume 1, 5.ª edição (estendida aos solos não saturados), Porto, novembro 2017 (497 p.)

O REI E A LEI – ESTUDOS DE HISTÓRIA INSTITUCIONAL DA IDADE MÉDIA PORTUGUESA (1279-1521) Armando Luís de Carvalho Homem U.Porto Edições, Estudos / Ciências Sociais e Humanas, 3, 1.ª edição, Porto, setembro 2017 (447 p.)

A obra – que corresponde à primeira parte do curso de Mecânica dos Solos lecionado pelo autor, na FEUP – combina uma apurada preocupação pedagógica com um tratamento rigoroso e aprofundado da matéria. Isto torna-a recomendável não só para quem inicia o estudo da Mecânica dos Solos, mas também para profissionais de engenharia. As obras e os solos portugueses são frequentemente invocados para ilustrar as explicações e os conceitos apresentados. Em relação às quatro edições anteriores, a presente edição inclui mais um capítulo que é dedicado aos solos não saturados, tema de grande relevância e cuja abordagem, em termos científicos, conheceu nos anos mais recentes um notável progresso.

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Um volume que recolhe 13 estudos que representam parte da produção do autor entre 1994 e 2011, incidindo sobre a legislação régia (e pontualmente concelhia) dos séculos XIII-XVI, complementada com abordagens a historiadores fundamentais nas problemáticas em apreço. A obra é, de resto, uma homenagem ao historiador Carvalho Homem, professor catedrático da FLUP recentemente aposentado. No prefácio, a medievista Maria Helena Cruz Coelho considera que “a contribuição das investigações de Carvalho Homem sobre as sociedades políticas, as instituições, o poder e a legislação régia, a historiografia, as tradições académicas (…) serão reptos motivadores para progressão criativa das gerações futuras de historiadores”.

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A “RENASCENÇA PORTUGUESA” – PENSAMENTO, MEMÓRIA E CRIAÇÃO Vários autores U.Porto Edições, Série Para Saber, 51, 1.ª edição, Porto, dezembro 2017 (692 p.)

Trata-se de um conjunto reflexões que abrem horizontes sobre as influências exercidas por algo que se tornou um verdadeiro movimento cultural, cujo alcance e significado não pode reduzir-se a um campo fechado e exclusivo. A “Renascença Portuguesa” foi um impulso fundamental na vida cultural do século XX, indispensável à compreensão dos diversos caminhos que foram abertos e seguidos pelos intelectuais mais significativos da contemporaneidade. Um audacioso desígnio serviu de denominador comum aos participantes na “Renascença”: “viabilizar uma democracia lusitana”, que fizesse emergir o “homem novo” e o “homem livre”. O tempo veio a revelar que tal objetivo mobilizador se tornaria muito mais perene e influente do que se esperaria – começando pelo sentido poético de Teixeira de Pascoaes, passando pela lucidez política e social de Proença, Cortesão e Sérgio (depois reunidos na “Seara Nova”) e findando na linha modernizadora de Pessoa e de tudo o que Orpheu representará.

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