ENTREVISTA
ALUMNI
CIÊNCIA&TECNOLOGIA
QUADRO DE HONRA
MEMÓRIA
O novo reitor, António de Sousa Pereira (na capa), não vê grandes vantagens no modelo fundacional e é crítico de algumas medidas para o ensino superior, como a norma transitória e o corte de vagas nas instituições de Lisboa e Porto.
Voluntário em missões de assistência médica em países tão inóspitos e perigosos quanto o Iraque, o Paquistão ou a Síria, o anestesista Gustavo Carona contanos como tenta aliviar as dores do mundo.
Nos últimos 25 anos, foram descobertos quase 4.000 exoplanetas. Ou seja, planetas que não estão na órbita do sol. Este fascinante campo de investigação astronómica tem conhecido interessantes desenvolvimentos na U.Porto.
Fomos conhecer Inês Guimarães, a estudante da FCUP que é a autora do primeiro canal de Youtube dedicado à matemática em Portugal. Tem mais de 66 mil subscritores e os seus vídeos combinam humor, irreverência e conhecimento.
A pretexto dos 50 anos do Jardim Botânico do Porto, recordamos um projeto cuja concretização balançou entre a pertinácia dos seus promotores, em particular de Pires de Lima, e as vicissitudes dos diferentes contextos históricos.
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ENTREVISTA
ALUMNI
CIÊNCIA&TECNOLOGIA
QUADRO DE HONRA
MEMÓRIA
O novo reitor, António de Sousa Pereira (na capa), não vê grandes vantagens no modelo fundacional e é crítico de algumas medidas para o ensino superior, como a norma transitória e o corte de vagas nas instituições de Lisboa e Porto.
Voluntário em missões de assistência médica em países tão inóspitos e perigosos quanto o Iraque, o Paquistão ou a Síria, o anestesista Gustavo Carona contanos como tenta aliviar as dores do mundo.
Nos últimos 25 anos, foram descobertos quase 4.000 exoplanetas. Ou seja, planetas que não estão na órbita do sol. Este fascinante campo de investigação astronómica tem conhecido interessantes desenvolvimentos na U.Porto.
Fomos conhecer Inês Guimarães, a estudante da FCUP que é a autora do primeiro canal de Youtube dedicado à matemática em Portugal. Tem mais de 66 mil subscritores e os seus vídeos combinam humor, irreverência e conhecimento.
A pretexto dos 50 anos do Jardim Botânico do Porto, recordamos um projeto cuja concretização balançou entre a pertinácia dos seus promotores, em particular de Pires de Lima, e as vicissitudes dos diferentes contextos históricos.
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Campus U.Porto Revista da Universidade do Porto N.º 03
DIRETOR António de Sousa Pereira EDIÇÃO E PROPRIEDADE Universidade do Porto Serviço de Comunicação e Imagem Praça Gomes Teixeira • 4099-345 Porto Tel: 220408210 ci@reit.up.pt
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WHAT’S UP NOTÍCIAS SOBRE A COMUNIDADE ACADÉMICA
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ALUMNI GUSTAVO CARONA
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PORTFÓLIO CIIMAR
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CULTURA DESENHOS DE MARQUES DA SILVA NO ATELIER LALOUX
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CIÊNCIA&TECNOLOGIA INVESTIGAÇÃO SOBRE EXOPLANETAS
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FORA DA CAIXA JSCRAMBLER
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ENTREVISTA ANTÓNIO DE SOUSA PEREIRA
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QUADRO DE HONRA INÊS GUIMARÃES
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LIVROS NOVAS PUBLICAÇÕES DA U.PORTO EDIÇÕES
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TALENTO DISTINÇÕES A MEMBROS DA COMUNIDADE ACADÉMICA
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MEMÓRIA 50 ANOS DO JARDIM BOTÂNICO
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SELFIE.COM QUESTIONÁRIO A ESTUDANTES
SUPERVISÃO EDITORIAL Raul Santos EDIÇÃO Ricardo Miguel Gomes REDAÇÃO Anabela Santos Filipe Santiago Marisa Macedo Paulo Gusmão Guedes Ricardo Miguel Gomes Tiago Reis APOIO MULTIMÉDIA TVU FOTOGRAFIA Egídio Santos DESIGN Rui Guimarães IMPRESSÃO Penagráfica DEPÓSITO LEGAL 419085/16
Este é o primeiro editorial que assino na “Campus U.Porto”, revista que passei a dirigir não executivamente enquanto reitor da Universidade, cargo que ocupo deste 27 de junho último. Entendo a “Campus U.Porto” como um veículo de comunicação da Universidade com a sua Comunidade Académica, mas também com personalidades e instituições parceiras e com a sociedade em geral. Neste pressuposto, anui em ser entrevistado para este número da revista. Parece-me fazer sentido transmitir, em forma de entrevista, aquelas que são as principais linhas estratégicas do meu reitorado e as minhas opiniões sobre questões fundamentais do ensino superior. Como é notório no texto da entrevista, não proponho uma transformação radical do funcionamento da Universidade nem ruturas profundas em relação às estratégias anteriormente seguidas. Não obstante, a atual Equipa Reitoral está a introduzir um novo modelo de governação – mais descentralizado, inclusivo e subsidiário – e a operar algumas mudanças substantivas em áreas críticas como o ensino, a investigação, a inovação, a internacionalização, a cultura ou os apoios sociais. Com a sua dupla função de divulgação e informação, a “Campus U.Porto” pode funcionar também como um meio de mobilização da Comunidade
Académica em torno de causas, valores, projetos, iniciativas… Ora, esta capacidade mobilizadora é útil no entendimento que tenho do cargo de reitor. Para mim, o reitor é um agregador de vontades e um promotor de sinergias. Deve por isso ser capaz de facilitar o diálogo entre instituições, dirigentes e membros da Comunidade Académica, fortalecendo assim a coesão interna da Universidade. O reitor tem um papel fundamental a desempenhar na Universidade, mas o seu contributo é claramente inferior ao da Comunidade Académica. O sucesso da U.Porto depende, em grande medida, da dedicação e talento da sua Comunidade Académica. Logo, a mobilização de todos (dirigentes, docentes, investigadores, funcionários, estudantes e alumni) é essencial para que a Universidade suplante os desafios de um ensino superior cada vez mais global, complexo e competitivo. Concluo este editorial apelando à cooperação e proactividade da Comunidade Académica. Gostava que todos colaborassem com a Equipa Reitoral no exigente empreendimento que temos pela frente, de modo a que a U.Porto se continue a notabilizar pela excelência. Com o esforço de todos, certamente que seremos bem-sucedidos. Desejo à nossa Comunidade Académica e aos restantes leitores da “Campus U.Porto” um ano de 2019 pleno de sucessos pessoais e profissionais. António de Sousa Pereira Reitor da U.Porto
“Agora, vamos ao trabalho!”. Foi assim que terminou o discurso de tomada de posse do 20.º reitor da U.Porto, António de Sousa Pereira (Porto, 1961) – médico formado no ICBAS, instituição onde foi estudante, docente, investigador, diretor e presidente do Conselho Científico. Mais do que “ruturas ou transformações radicais no funcionamento da Universidade”, António de Sousa Pereira promete “elevar a qualidade, competitividade e notoriedade da instituição, reorientando e consolidando o trabalho que vem detrás e implementando novas linhas de intervenção estratégica”. A nova equipa reitoral é composta pelos vice-reitores António Cardoso (Património Edificado e Desenvolvimento Sustentável), Fátima Vieira (Cultura, U.Porto Edições e Museus), Fernando Silva (Gestão de informação, Tecnologias Educativas, Qualidade e Melhoria Contínua), Hélder Vasconcelos (Relações com Empresas, Inovação e Empreendedorismo), Maria de Lurdes Correia Fernandes (Formação e Organização Académica e Relações Internacionais) e Pedro Rodrigues (Investigação, Inovação e Internacionalização). Há ainda a acrescentar os pró-reitores Joana Resende (Planeamento Estratégico), Joana Carvalho (Desporto e Qualidade de Vida), João Veloso (Promoção da Língua Portuguesa e Inovação Pedagógica), José Castro Lopes (Saúde e Bem -Estar, Apoio Social aos Estudantes e Estudantes com NEE) e Manuel Eduardo Correia (Coordenação da Universidade do Porto Digital).
what’s up
Nova Equipa Reitoral (de baixo para cima e da esquerda para a direita): Fátima Vieira, António de Sousa Pereira, Pedro Rodrigues, Maria de Lurdes Correia Fernandes e António Cardoso; João Veloso, Manuel Eduardo Correia, Helder Vasconcelos e Fernando Silva; Joana Resende, José Castro Lopes e Joana Carvalho.
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U.PORTO INTEGRA CONSÓRCIO INTERUNIVERSITÁRIO
A U.Porto é uma das instituições parceiras da Alliance for Global Health (AGH), consórcio interuniversitário e transnacional cuja formação depende ainda da candidatura que será entregue, até fevereiro, na Comissão Europeia. O AGH é liderado pela Universidade Paris-Saclay (França), muito prestigiada cientificamente, e inclui ainda três outras reputadas instituições nas ciências da saúde: a LMU Munich (3.ª universidade da Alemanha e 32.ª classificada no THE World University Rankings); a Universidade de Lund (3.ª universidade da Suécia e 98.ª no THE); e a Universidade de Szeged, na Hungria (601-800 do mundo no mesmo ranking). Inserido na European Universities Initiative, que visa testar modelos de cooperação no ensino superior europeu, o consórcio tem como propósitos promover a mobilidade de estudantes, docentes e investigadores entre as universidades parceiras e criar programas de ensino multidisciplinares conjuntos (cujo diploma será conferido pelas cinco instituições) na área da saúde.
what’s up
Casa Comum da Humanidade A U.Porto associou-se ao projeto Casa Comum da Humanidade, uma organização pioneira na promoção de um modelo de governação global dos recursos naturais da Terra. Modelo, esse, que assenta no reconhecimento do estatuto do sistema terrestre enquanto bem uno, global e intangível e na contabilização dos impactos ambientais de cada país. O objetivo é garantir a preservação das condições de habitabilidade do planeta. O docente e investigador da FDUP Paulo Magalhães concebeu o modelo jurídico de governação global dos recursos naturais que não têm fronteiras físicas, como a atmosfera, os oceanos, a biodiversidade ou o clima. Por seu turno, o físico e docente da FCUP Orfeu Bertolami criou uma fórmula científica de medição dos recursos naturais, que permite a quantificação rigorosa e abrangente dos impactos de cada país no sistema terrestre.
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Maior torneio de programação do mundo A U.Porto vai organizar, entre 31 de março e 5 de abril, a final da 43.ª edição do International Collegiate Programming Contest (ICPC) – a maior, mais antiga e mais prestigiada competição de programação informática do mundo. Depois de mais de 400 eliminatórias, que contaram com a participação de 50.000 estudantes de informática provenientes de mais de 3.000 instituições de ensino superior de 111 países, a grande final do ICPC vai realizar-se pela primeira vez em Portugal, mais concretamente na Alfândega do Porto. Cerca de 1.500 estudantes de todo o mundo vão então procurar resolver, com um único computador e num tempo limite, uma dezena de problemas de programação baseados em cenários da vida real. Para organizar o ICPC 2019, a U.Porto conta com o apoio do Município e da CCDR-N.
REABILITAÇÃO DA RESIDÊNCIA ALBERTO AMARAL
COMEÇAR A DAR AO PEDAL Foram simbolicamente entregues 20 das 265 bicicletas (convencionais e elétricas) da participação da U.Porto no projeto nacional U-Bike. A cerimónia contou com as presenças do ministro do Ambiente e da Transição Energética, João Pedro Matos Fernandes, do secretário de Estado Adjunto e da Mobilidade, José Mendes, do reitor António de Sousa Pereira e da pró-reitora Joana Carvalho. Na ocasião, o reitor lembrou como é importante “promover a bicicleta como meio de transporte válido, económico, ecológico e saudável”. Acessíveis a toda a comunidade académica (estudantes, docentes e funcionários) mediante candidatura, as bicicletas do U-Bike são também um “fator de indução de estilos de vida mais saudáveis”, considera António de Sousa Pereira.
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A U. Porto lançou o concurso público para a empreitada de reabilitação da Residência Alberto Amaral, uma obra que permitirá recuperar mais de uma centena de quartos atualmente encerrados por falta de condições de habitabilidade. Com previsão de arranque até ao final de 2019, os trabalhos não obrigam ao encerramento da residência e representam um investimento de cerca de 2,5 milhões de euros. Situada na Rua D. Pedro V, junto à FLUP (Polo III), a Residência Alberto Amaral é a maior das nove residências da U.Porto, disponibilizando à comunidade estudantil 332 quartos. Contudo, cerca de um terço (112) do total de quartos está encerrado devido a danos causados por infiltrações estruturais no edifício.
Médico ao serviço de um mundo melhor GUSTAVO CARONA
Diz-se movido pela “vontade de conquistar o mundo através da medicina”. E, de facto, parece não haver distâncias, guerras, sequestros, etnicidades ou contingências que demovam Gustavo Carona de representar, em países em emergência humanitária, “as pessoas que se preocupam”. Para este alumnus da FMUP, ainda “mais importante do que salvar vidas é passar a mensagem dos que acreditam que os seres humanos são todos iguais”. Neste pressuposto, tem-se aventurado em missões de assistência médica em locais tão inóspitos e perigosos quanto o Iraque, o Paquistão ou a Síria. Sempre com um cachecol do FC Porto na mochila, vai colecionando histórias dramáticas que relata em conferências, blogues e livros. Porque “O Mundo Precisa de Saber”.
Por um capricho do destino, Gustavo Carona já nasceu virado para o mundo. A biografia do futuro médico anestesista e voluntário de ajuda humanitária regista Toronto como local de nascimento. Em 1980, os seus pais estavam circunstancialmente emigrados no Canadá e, por isso, só dois anos depois Gustavo Carona veio para o Porto. “Abre-me os horizontes sentir que uma parte de mim é de outra parte do mundo”, diz a propósito de um acontecimento que já pressagiava a sua atual vida de andarilho. Mas verdadeiramente determinante para o percurso de Gustavo Carona foi um desgosto sentido aos 15 anos, em plena adolescência. Na altura, ficou a saber que teria de abandonar o bodyboard, devido a um problema nas costas. “Foi essa frustração, essa dor, essa impotência, que me fizeram querer ajudar outras pessoas. Deu-se aí o clique de querer ser médico para ajudar os outros”, confessa.
alumni
Decidiu então empenhar-se a sério nos estudos para entrar em Medicina. E foi bem-sucedido: “Uma pessoa aprende muito com a dor e com a frustração, se souber canalizá-las na direção certa. E eu tive essa sorte. Foi uma aprendizagem ver como o meu maior desgosto me orientou para um caminho de que gosto e tenho orgulho”. Logrou assim ingressar na Faculdade de Medicina da U.Porto (FMUP), “a sua maior conquista”, terminando a respetiva licenciatura em 2004. Mais tarde, em 2011, concluiu a especialidade de Anestesiologia e, em 2014, complementou a sua formação com a subespecialidade de Cuidados Intensivos, ambas no Hospital de São João, no Porto. Tudo parecia encaminhar-se para uma carreira médica igual a tantas outras. Mas ainda antes da especialização, Gustavo Carona preferiu tomar um caminho alternativo. Numa viagem turística a Moçambique, com 20 e poucos anos, sentiu-se “francamente incomodado pela
Texto Ricardo Miguel Gomes
Fotos Egídio Santos
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‘EU POSSO SER MAIS IMPORTANTE, MAIS ESPECIAL, MAIS MÉDICO, SE ESTIVER NOUTRO LOCAL DO PLANETA’
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Nas missões humanitárias, o exercício da medicina é feito em condições muito precárias (fotos gentilmente cedidas por Gustavo Carona).
pobreza, por uma tão grande disparidade de realidades. Foi uma pequena epifania: era preciso canalizar alguma da minha energia para essa diferença de mundos. E à medida que o meu percurso na medicina ia aumentando, sentia que os meus conhecimentos em alguns pontos do planeta valiam ouro. É também uma sensação de algum egoísmo: ‘eu posso ser mais importante, mais especial, mais médico, se estiver noutro local do planeta’”.
TIROCÍNIO EM MOÇAMBIQUE Regressou, por isso, a Moçambique (Namaacha) em 2009 para a sua primeira experiência de ajuda humanitária, em representação dos Médicos do Mundo Portugal e no âmbito de um projeto na área do VIH/ Sida. “Senti-me muito especial. Foi só um mês, uma introdução à medicina humanitária, durante as férias. Fui dar uma ajudinha… Estava prestes a acabar a especialidade e percebi que poderia ser mais médico em zonas ainda mais necessitadas e com impacto maior. Isso fez-me procurar uma organização que preenchesse os meus sonhos”. E essa organização foi os Médicos sem Fronteiras, a maior ONG independente na área da saúde, que tem
acolhido Gustavo Carona em missões humanitárias desde 2009: República Democrática do Congo (Masisi), 2009; Paquistão (Timergara), 2011; Afeganistão (Lashkar Gah), 2012; Síria (Idlib), 2013; República Centro-Africana (Bangui), 2016; Iraque (Mossul), 2017; República Centro-Africana (Bangui), 2017; República Democrática do Congo (Goma), 2018; Burundi (Bujumbura), 2018. Paralelamente, Gustavo Carona integra, desde 2014, o Serviço de Medicina Intensiva do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde vive. Garante que não perde tempo a pensar em tudo aquilo de que abdica (tranquilidade, conforto, carreira, estabilidade familiar, etc.) para se entregar a missões humanitárias em zonas do mundo flageladas pela pobreza, violência, abandono e catástrofes naturais. “Penso só no próximo passo: ‘Vou fazer mais uma [missão] e depois logo se vê se quero continuar ou não’. Mas a vontade de conquistar o mundo através da medicina não parou de aumentar”, explica Gustavo Carona, que diz ser “guiado pelas emoções nas decisões mais importantes”. Mas o que leva Gustavo Carona a largar tudo e a fazer a mochila com o seu inseparável cachecol do FC Porto, que simboliza as suas origens? “Não tenho dúvidas de que a minha motivação humanitária é importante, mas há também uma vontade muito grande de conhecer e compreender o mundo”. E logo acrescenta que, “como médico, sentir que salvei uma vida é fantástico. Acontece que, na minha visão mais global sobre o assunto, isto acaba por ser um pormenor. A nossa grande
missão é aquilo que nós representamos, mais do que aquilo que fazemos. E nós representamos as pessoas que se se preocupam; os que acreditam que os seres humanos são todos iguais. Num mundo com cada vez mais clivagens de cor, de religião, de culturas, de fronteiras, nós mostramos que a solução não é cavar um fosso maior ou fazer um muro mais alto. A solução é percebermos que temos mais em comum do aquilo que nos separa”. A nobreza destes ideais é ainda mais impressiva se tivermos em conta o carrossel de perigos e sacrifícios, carências e limitações, emoções e sentimentos que Gustavo Carona experimenta no dia a dia das missões. “Há locais onde as regras de segurança são de tal forma restritivas que não podemos sair de casa e ter grandes diversões”. De resto, o trabalho em países com tantas debilidades nos cuidados de saúde tem de ser necessariamente intenso e extenuante. “Como anestesista, acontece-me estar a trabalhar 24 sobre 24 horas. E a probabilidade de me chamarem, a qualquer hora, para ir ao hospital é grande. Estamos num ambiente de tensão, por vezes a ouvir tiros e bombas, mas sempre conectados com o que se está a passar no hospital – o que é muito diferente da realidade em Portugal. Lá, não dá para desligar”. Importa ter consciência de que Gustavo Carona esteve em missão em algumas das zonas mais perigosas do mundo, sendo confrontado, não só com os dramas humanos de um cenário de guerra e a precariedade das condições hospitalares, como também com ameaças sérias à sua integridade física. Contudo, relativiza os riscos: “Não tenho as características de herói. Sou muito científico e acredito nas probabilidades. E a probabilidade de uma pessoa como eu morrer numa zona de conflito é muito menor do que ser vítima de um crime numa grande cidade europeia”. Isto porque “a gestão dos riscos é feita de uma forma muito profissional” pelo staff das missões. “Mas, claro, quando sinto o chão a
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Fotos Egídio Santos
Textos Ricardo Miguel Gomes
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São frequentes as missões humanitárias em cenários de guerra, com riscos para a própria vida dos médicos
(fotos gentilmente cedidas por Gustavo Carona).
estremecer fico assustado. Tive vários momentos de puro medo”. Além dos bombardeamentos, pende sobre os voluntários internacionais o risco de sequestro. Aliás, dois dias depois de ter regressado da Síria, em 2013, recebeu a notícia de que os seus cinco companheiros de casa em Idlib haviam sido raptados. Ainda assim, quando está em missão, Gustavo Carona deixa-se viver “num mundo encantado” em que só pensa nos doentes. “A ansiedade antes de ir causa-me mais perturbação do que quando lá estou, em que não me sinto dominado por pensamentos negativos. Sinto-me de tal forma especial que as minhas motivações ultrapassam claramente os meus medos”.
SÍRIA, A MISSÃO MAIS MARCANTE Acrescenta a propósito que “os maiores desafios não são os riscos para a nossa segurança”, mas sim “a gestão de pequenos conflitos interpessoais no hospital ou mesmo em casa. Às vezes é difícil viver e trabalhar com as mesmas pessoas. Até porque é um regime muito fechado e com muitas emoções, muita intensidade, em que nós não temos para onde fugir”. Outro dos desafios é superar a etnicidade. Há mundividências culturais e civilizacionais, nomeadamente em países islâmicos, que parecem aberrantes aos olhos de um ocidental, com a agravante de condicionarem o exercício da medicina. No Paquistão, em 2011, num mês em que já tinham morrido 10 mulheres com hemorragias periparto, era necessário fazer uma cesariana para resolver um caso simples mas que, sem intervenção cirúrgica, seria fatal. Como é regra naquele país, foi pedida autorização ao marido para proceder à cesariana e este recusou liminarmente, alegando que depois comprava outra mulher. A mãe e o bebé morreriam nas mãos impotentes dos médicos, entre eles o anestesista português. Apesar da frustração, Gustavo Carona não se deixa enlear na tentação do ativismo. “Temos de ser profissionais de saúde e concentrarmo-nos nisso. Não podemos querer que as pessoas pensem da mesma forma que nós. Claro que há sociedades cuja organização esbarra em alguns momentos nos direitos humanos, o que para mim não é negociável nem sujeito a interpretações. Acontece que, se caímos no erro de sermos ativistas além de médicos, provavelmente não vamos ser nem uma coisa nem outra. Deixar as nossas opiniões saírem é a forma mais fácil de termos um bi11
lhete de regresso, o que vai pôr em causa o projecto [humanitário] e a própria credibilidade da organização”. Na sua atividade de voluntário, Gustavo Carona teve “a sorte de conhecer países absolutamente fantásticos e muito desafiantes do ponto de vista humanitário”. Mas destaca três missões como as mais marcantes: Masisi (República Democrática do Congo), Timergara (Paquistão) e Idlib (Síria). Em Masisi, viveu a sua “primeira missão a sério”. “Foram quatro meses completamente desligado da civilização, com muito pouco contacto com o mundo exterior, nomeadamente com a família. É um local muito intenso, uma zona de conflito. Muitas vidas dependiam do meu trabalho e eu senti que estava no centro do mundo”. A missão em Timergara foi “talvez a que mais tenha mexido com a minha estrutura de ser humano, porque senti que estava noutro planeta” devido à “cultura repressiva” do país. “É uma zona com muitos ataques suicidas e uma das mais pobres do mundo. Um desafio humanitário enorme”. “Mas a Síria conseguiu surpreender-me sobremaneira”, mesmo depois de “já ter visto muita coisa e sobrevivido, do ponto de vista emocional, com alguma facilidade. Muito mais do que os doentes que salvamos e os que não conseguimos salvar, na Síria é todo um país, todo um povo, em sofrimento coletivo. Não é por ver sangue que fico chocado. Fico chocado é por ver tanta gente a sofrer, tantos filhos órfãos, por é ver doenças que já não existiam, como a poliomielite ou epidemias de
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cólera. As pessoas lá já não têm forma de trabalhar, de levar as crianças à escola…”, conta Gustavo Carona. Uma vez em Portugal, este tropel de histórias, experiências, emoções, afetos ganha a urgência da partilha. Gustavo Carona não se poupa a esforços para transmitir aos outros, aos que só conhecem a realidade do subdesenvolvimento através do filtro dos media, o pungente quotidiano das populações dos chamados “Estados falhados”. “É enfadonho dizer que já morreram 5 ou 6 milhões de pessoas na República Democrática do Congo. Mas, se eu contar algumas das histórias que me passaram pelas mãos, as pessoas ficam alerta e são capazes de ‘empatizar’ com aquele caso. Tento contar a História contando histórias. Procuro fazer com que as pessoas tenham os seus olhos e o seu coração no sítio em que eu já tive os meus”. Com este intuito, participa com frequência em conferências, escreve regularmente na sua página do Facebook e no blogue “Apenas um Médico” e já publicou dois livros. O primeiro, intitulado “1001 Cartas para Mossul” (2017), reúne cerca de 250 missivas enviadas por desconhecidos a um povo em sofrimento; o segundo, “O Mundo Precisa de Saber” (2018), relata episódios impressionantes das missões humanitárias de Gustavo Carona. Depois de ter passado o último Natal no Burundi, naquela que foi a sua 10.ª missão, Gustavo Carona prepara-se para partir, em 2019, para o Iémen (Mokha) e a Palestina (Gaza).
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Textos Ricardo Miguel Gomes
Fotos Egídio Santos
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A ESPIRAL ONDE SE FAZ INVESTIGAÇÃO MARINHA É já uma referência da arquitetura portuguesa deste século e está a ganhar projeção internacional, tendo conquistado o Prémio Edifício do Ano 2017 do site especializado Archdaily (categoria de Arquitetura Pública) e o prémio AZ (promovido pela revista norte-americana Azure) para melhor edifício comercial ou institucional com mais de 1.000 m2. Com mais de 19.000 m2 de área de construção, 18.500 m3 de betão e 4.000 toneladas de aço, o novo Terminal de Cruzeiros de Leixões sobressai pela sua imponente estrutura espiralada, que faz lembrar uma escultura monumental. Para este impacto ótico, muito contribui o revestimento da espiral com cerca de um milhão de azulejos brancos fabricados pela Vista Alegre.
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Mas o novo terminal, que foi considerado um dos três melhores portos mundiais de cruzeiros pelos Seatrade Awards 2015, não é apenas uma plataforma de embarque e desembarque de passageiros. No interior do edifício funciona também o CIIMAR – Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental, associação sem fins lucrativos dedicada à divulgação e produção científicas, à inovação e ao desenvolvimento tecnológico na vanguarda do conhecimento sobre os oceanos. A azáfama própria da investigação científica é grande nos laboratórios e gabinetes (com fachadas de vidro que permitem escrutinar o interior) que o edifício acolhe e que, diariamente, são frequentados por cerca de 200 pessoas: os mais de 100 investigadores permanentes do CIIMAR, bem como um número elevado de estudantes de doutoramento e mestrado.
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Fotos Egídio Santos
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Textos Ricardo Miguel Gomes
Fotos Egídio Santos
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Textos Ricardo Miguel Gomes
Fotos Egídio Santos
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Na cave do edifício está instalado um biotério, onde se criam e mantêm organismos aquáticos para fins experimentais. Este equipamento é fundamental às atividades do CIIMAR nas áreas da Contaminação Ambiental, Aquacultura e Biotecnologias Marinhas. O CIIMAR está integrado no Laboratório Associado CIMAR (Centro de Investigação Marinha e Ambiental) e muitos dos seus investigadores estão ligados a unidades orgânicas da U.Porto, em particular a FCUP e o ICBAS.
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Os desenhos parisienses de Marques da Silva Logo após a conclusão dos estudos, em Paris, a primeira (e grande) encomenda de Marques da Silva foi a Estação de São Bento (18961916). Obra que deslocou o centro da cota baixa da Ribeira para a cota alta, junto à Praça da Liberdade, assinalou a chegada do caminho de ferro ao centro da malha urbana e refletiu a sua interpretação sobre a cultura arquitetónica da época. Eclética, a impressão digital de Marques da Silva está espalhada pelo Norte do país, traduz ambição internacionalista e, acima de tudo, a modernidade da matriz parisiense já presente nos desenhos que o arquiteto, enquanto estudante, produziu no Atelier Laloux. Os desenhos chegaram às mãos de Ana Freitas ainda enrolados e com a “sujidade superficial” que os anos foram acumulando. Foi ela que os resgatou, uniu, devolveu a cor e trouxe à luz do dia. Alguns “nunca tinham sido submetidos a uma intervenção de restauro, mas outros apresentavam intervenções muito antigas que tiveram de ser removidas”. Todos eles, ressalva, “únicos e com diferentes particularidades”. A procura das melhores metodologias, tendo sempre em vista uma “intervenção mínima”, revelou um “antes” e um “depois” muito “gratificante”. Enquanto uns constituíram um verdadeiro desafio, como foi o caso do “Monumento de Afonso de Albuquerque”, pela dimensão e mau estado de conservação”, outros relevaram dados interessantes sobre o caráter de urgência com que foram desenvolvidos. A técnica em Conservação e Restauro da Unidade de Gestão de Documentação e Informação da Reitoria da U.Porto revela que “um dos desenhos possuía, no seu verso, uma outra obra, um cartaz relativo a umas festas religiosas”. Marques da Silva utilizou “o verso do seu desenho de aluno para realizar um esboço de um cartaz de uma romaria. O acondicionamento desta peça implicou um sistema que permitisse que ambos os desenhos ficassem visíveis”. Ou seja, “alguns desenhos foram utilizados (o seu verso) como paletas”. Os trabalhos relativos à reformulação da Gare do Porto “apresentam duas assinaturas”, uma enquanto ‘Eléve de Mr. Laloux’ e outra como Marques da Silva, arquiteto diplomado pelo governo
cultura
Textos Anabela Santos
Fotos Ana Freitas /FIMS
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francês. A primeira encontra-se encoberta pela segunda. Grande parte destes trabalhos “aguarelados” está delimitada por uma fita de tonalidades verde, oxidada, ainda com vestígios dourados que terá, possivelmente, resquícios de folha de ouro. Período decisivo quer para a prática profissional, quer para a pedagógica, enquanto professor e diretor da Escola de Belas-Artes do Porto, o conjunto documental foi objeto de um estudo detalhado pela arquiteta Clara Veiga Vieira (O percurso formativo de José Marques da Silva na École Nationale et Spéciale des Beaux-Arts (18901896), Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010) e constituiu a base para uma exposição que decorreu de março a junho de 2018, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, produzida pela Fundação Instituto Arquiteto Marques da Silva (FIMS), com orientação de Joaquim Pinto Vieira e desenho expositivo de Ivo Poças Martins. A exposição deu a conhecer 62 de um total de 78 desenhos que a FIMS tem em seu poder, realizados entre 1890 e 1896. São desenhos alinhados com a mentalidade e a cultura arquitetónica francesa oitocentista e respetivas “condições políticas, económicas e sociais”, que definiram tendências e garantiram o “desenvolvimento tecnológico nas ciências, na engenharia e na arquitetura, ao longo de todo o séc. XIX”.
cultura
DESENHO AO SERVIÇO DO PROJETO Num dos maiores centros mundiais artísticos e arquitetónicos da época, Marques da Silva percebeu, afirma Clara Vieira, “o que é importante desenhar no atelier e levar para a obra para ser executado”. Soube conjugar arquitetura, escultura e pintura e trouxe, de regresso a Portugal, a necessidade de se manter atualizado em relação ao que ia acontecendo na Europa, como a construção da Casa de Serralves viria a confirmar. Sem nunca trair a sua filiação beaux-arts, soube alinhar-se com as aspirações da sociedade, nomeadamente os sistemas de produção industrial que estavam a surgir. Este sentido de compromisso foi, de resto, o motor da sua prática pedagógica nos períodos em que assumiu a direção da Escola de Belas Artes do Porto (1913/14; 1916/1918; 1929/39). Tinha o desenho como instrumento central do projeto e motor da sua prática pedagógica. Focado em transmitir processos metodológicos estáveis, capazes de reagir às solicitações da prática profissional, manteve uma ligação muito próxima com diferentes gerações de arquitetos que reinventaram a prática da arquitetura portuense.
Textos Anabela Santos
Fotos Ana Freitas /FIMS
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Restauro do desenho de Marques da Silva para o concurso “Monumento a Afonso de Albuquerque”.
Os desenhos que melhor representam a atividade de José Marques da Silva na escola das Beaux-Arts e no ateliê Laloux são, acrescenta Clara Vieira, os desenhos de teoria da arquitetura. Mais do que uma “ferramenta descritiva do objeto arquitetónico”, os desenhos passaram a integrar um “conjunto compositivo de projeto”, englobando “a paisagem envolvente e a vida de quem a habita. Sugerem-nos atmosferas e espaços hipotéticos, onde o homem se move e habita. Contam uma história”. A cor assume um caráter criativo, de “originalidade e engenho”. Mais do que analisar processos construtivos ou iconográficos, o estudo permitiu identificar “um novo processo conceptual que, de forma involuntária e inconsciente, fundamenta uma nova época na arquitetura. (…) Marques da Silva adquiriu em Paris uma metodologia de projeto que conseguiu utilizar da melhor forma na Estação de São Bento. Poucos arquitetos da época estavam tão bem preparados como ele para um projeto daquela dimensão”. De acrescentar que, para além dos desenhos, fazem parte deste núcleo outros objetos como livros franceses, apontamentos, fotografias tiradas em festas da escola, ementas de jantares organizados pelo ateliê Laloux, enunciados de provas e duas memórias descritivas sobre o projeto final de curso (Une Gare Centrale). 23
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Desenho para o concurso “Monumento a Afonso de Albuquerque” que foi alvo de meticuloso trabalho de limpeza, tratamento e recuperação pela FIMS.
O estudo permitiu identificar o vasto leque de assuntos abordados nos trabalhos académicos, “desde pontes, fontanários, jazigos ou tribunas alegóricas, até edifícios de grande dimensão com programas extensos e complexos como hotéis, escolas ou quarteirões de habitação”. São trabalhos que nos permitem perceber a “versatilidade” exigida aos estudantes da época, “cuja ação foi fundamental na progressiva tarefa de reconhecimento de uma nova visão arquitetónica que iria marcar a viragem do século e definir as bases da arquitetura do início do século XX”. No fundo, testemunham todo o processo evolutivo da sua aprendizagem na École des Beaux-Arts, em Paris.
FUNDAÇÃO ZELA PELO ACERVO DO ARQUITETO Marques da Silva nasceu no Porto, na rua de Costa Cabral, e, no ano letivo de 1881-1882, com 12 anos, entrou na Academia Portuense de Belas Artes. Terminou a formação em 1887-1888 e preparou-se para o Concurso para pensionista de estado em países estrangeiros na classe de arquitetura, que iria ter lugar na Academia Real de Belas Artes de Lisboa. Foi excluído, mas graças à ajuda da família consegue, ainda assim, entrar na École des Beaux-Arts e ser discípulo de Victor Laloux, o arquiteto da Siège Central du Crédit Lyonnais (Paris, 1904-1913) e da Gare d’Orsay – obra inaugurada em 1900, que constitui uma referência de modernidade, tendo conseguido congregar os principais desafios então colocados à engenharia e à arquitetura. Foi neste ecossistema cosmopolita, fervilhante de projetos inovadores e desejoso de progresso que tomou consciência de práticas de projeto inovadoras, novas metodologias, técnicas e perspetivas multidisciplinares dos projetos de arquitetura que permitiam fazer face às cada vez mais criativas exigências de construção. Em 1896, depois de 14 anos de estudos académicos, regressou ao Porto como arquiteto diplomado pelo Governo francês. Com todas as dificuldades técnicas e exigências funcionais de um es-
cultura
A FIMS trata, preserva e estuda o acervo do arquiteto Marques da Silva.
paço com grandes dimensões, agarrou o projeto da Estação de São Bento com uma nítida aposta na modernidade. A obra que assinalou a chegada do caminho de ferro ao centro da cidade e veio reconfigurar a paisagem urbana obrigou à demolição do Convento de São Bento de Avé-Maria e da sua igreja. Na sequência da Estação, a Avenida dos Aliados foi o projeto urbano que consolidou as novas centralidades. Como arquiteto municipal, Marques da Silva coordenou a implementação dos projetos que a configuraram, para além de ter desenhado alguns dos seus edifícios. A partir do legado da sua filha e genro, foi constituída pela U.Porto a FIMS, com sede na própria casa-atelier do arquiteto, cujo principal objetivo é a preservação, tratamento, estudo e divulgação de registos e arquivos de arquitetura. Foi nesse âmbito que a FIMS promoveu o restauro dos desenhos de José Marques da Silva pertencentes ao período da sua formação em Paris, concluído, no que se refere às peças desenhadas, em 2017. Marques da Silva e Ventura Terra, da segunda geração de estudantes de arquitetura da Academia Portuense, foram os únicos a ser admitidos na École des Beaux-Arts de Paris como alunos em primeira classe, a obter o Diploma de Arquiteto pelo Governo francês e a frequentar o ateliê de Victor Laloux. Sobre o percurso de Ventura Terra já se tinha feito uma exposição, sobre Marques da Silva não. Por não ter sido pensionista do Estado, ao contrário de arquitetos como Ventura Terra ou Adães Bermudes, Marques da Silva não estava obrigado a enviar periodicamente ao Estado os relatórios e trabalhos académicos, o que significa que estes ficaram na sua posse e integram o arquivo da FIMS. “Estas imagens são as imagens do arquiteto”, diz-nos Joaquim Pinto Vieira, no texto que acompanhou a primeira apresentação pública do conjunto, no CCB. “As projeções geométricas são construções matemáticas expressas em imagens. Só há 300 anos o homem as utiliza, mas o património da arquitetura sempre existiu. A arquitetura, esse património construído que nos diz que a natureza, não só a vegetal, aí parou, era a razão de ser de Marques da Silva”.
Textos Anabela Santos
Fotos Ana Freitas /FIMS
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Os desenhos estão disponíveis para consulta na Fundação, mediante agendamento prévio, e no arquivo digital - plataforma AtoM - em: http://arquivoatom.up.pt/index.php/frequencia-do-atelier-de-victor-laloux%20 e http://arquivoatom.up.pt/index.php/processosde-provas-escolares. A Casa de Serralves (1925), o Teatro Nacional de São João (19101920), a conclusão do Palácio do Conde de Vizela (1920-1923), o Edifício das Quatro Estações (1905), os Liceus Alexandre Herculano (1914-1930) e Rodrigues de Freitas (1919-1933), o bairro operário de “O Comércio do Porto” (1899) – que enfrentou a questão do alojamento popular na cidade (grande tema em debate na época) –, sedes de empresas, bancos e companhias de seguros, grand-magazins portuenses e várias casas de habitação unifamiliares são algumas das suas obras que marcaram a configuração urbana da cidade. Também em Guimarães ergueu edifícios marcantes como a Sociedade Martins Sarmento (1903-1908), o Mercado Municipal (1927-1947) e o Santuário da Penha (1930-1947), assim como em Braga o Edifício das Obras Públicas (1905). Conciliando a modernidade parisiense (que, através de viagens, contacto com colegas, encomenda de livros e catálogos, manteve sempre presente) com a identidade e as exigências socioculturais (mais conservadoras e progressivamente mais funcionais e para uso massificado) do contexto portuense, Marques da Silva foi consolidando, de forma muito própria e particular sabedoria, esta tensão e dicotomia que transformou em comunhão. Desenvolveu um modelo de cidade em permanente processo dialético de transformação, aplicado a diferentes encomendas, dinâmicas e programas socioeconómicos. Soube colocar a arquitetura ao serviço do contexto identitário local e respondeu às exigências do “novo homem”, do início do século XX, com a construção do que, ainda hoje é, o “admirável mundo novo” portuense.
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José Marques da Silva, Un hôtel de voyageurs, 1895. Alçado principal, tinta-da-china e aguarela sobre papel, 64x130,5cm. Fundação Marques da Silva, FIMS/JMS/3155.
José Marques da Silva, Une loggia à l’extrémité d’une galerie, 1893. Planta, corte e alçado principal, tinta-da-china e aguarela sobre papel, 112,5x76,5cm. Fundação Marques da Silva, FIMS/JMS/3160.
Em busca do planeta gémeo… Numa galáxia (não) muito distante… existirão planetas semelhantes à Terra, orbitando outras estrelas que não o sol. Outrora um sonho inalcançável, encontrá-los está hoje cada vez mais perto graças aos investigadores do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (CAUP + CAAUL) que, ao longo da última década, se vêm posicionando na linha da frente da ‘corrida’ aos exoplanetas.
Quando, no passado mês de setembro, o espectrógrafo ESPRESSO começou a enviar os primeiros dados a partir do Very Large Telescope (VLT) do Observatório Europeu do Sul (ESO), instalado em pleno deserto de Atacama, no Chile, Nuno Cardoso Santos, Sérgio Sousa e Susana Barros respiraram de alívio a mais de 10 mil quilómetros de distância. Afinal, foi o culminar de uma década de trabalho no desenvolvimento daquele em que a comunidade científica deposita parte das suas es-
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peranças em descobrir o que há não muito tempo parecia impossível: um planeta semelhante à Terra e potencialmente habitável. Capaz de albergar vida como a conhecemos. Esqueça o “Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Úrano, Neptuno e – o agora proscrito - Plutão” que aprendeu a cantar na escola. Neste “novo” universo há também o TrES-2b, o Kepler-16b, o Wasp-12b, entre milhares de outros mundos que estão a ser desvendados a dezenas de anos-luz da Terra.
Textos Tiago Reis
Fotos Egídio Santos / ESO
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Imagem artística do espectrógrafo Expresso a receber a luz dos quatro telescópios do Very Large Telescope do ESO.
Very Large Telescope, instalado no Observatório do Paranal, no Chile.
Para “vê-los”, olhe para o céu numa noite estrelada. Agora imagine que, à volta de cada um desses cem mil milhões de “sóis” que povoam a Via Láctea, ocultos sob a sua luz, orbitam planetas mais ou menos parecidos com o nosso. Nuno Cardoso Santos habituou-se a fazê-lo ainda em miúdo, quando criou o seu próprio telescópio para “procurar a origem da vida”. Hoje, é a ele que cabe comandar a equipa de investigadores do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), que, ao longo da última década, se vem afirmando na linha da frente da ‘corrida’ aos exoplanetas. Perdão? “Todos os planetas que orbitam outras estrelas que não o sol”. O primeiro foi detetado em 1995 pelo astrofísico suíço Michel Mayor (ver caixa), que viria a orientar o doutoramento de Nuno Cardoso Santos no Observatório Astronómico de Genebra. Foi ali que descobriu o “seu” primeiro planeta, em 1999. Desde então, já lhes perdeu a conta. “Quando comecei, havia quatro ou cinco conhecidos. Cada novo planeta era uma festa e os que se descobriam eram gigantes, como Júpiter. Hoje, para fazer uma festa, é preciso algo especial”. Como por exemplo? “Descobrir planetas cada vez mais parecidos com a nossa Terra, que é no que estamos hoje a trabalhar”.
GUIA PARA “CAÇAR” PLANETAS No “estamos” cabem os 20 investigadores – incluindo 10 estudantes de doutoramento, na sua maioria estrangeiros – que habitam a ‘estação espacial’ do Centro de Astrofísica da U.Porto (CAUP), base da linha de investigação do IA dedicada à “deteção e caracterização de outras Terras”. Desde 2008, terão saído dali “contribuições diretas” para a descoberta de 500 dos cerca de 4.000 exoplanetas atualmente identificados. Mas não sem antes serem “filtrados” por supertelescópios e sondas especiais. Na verdade, é mais difícil do que parece. “Nós não conseguimos ver o planeta em si, porque basicamente a luz da estrela ofusca o planeta”, explica Nuno Cardoso Santos. Em alternativa, são as estrelas a dar as pistas. “Existem duas técnicas principais de deteção. Uma delas é a das velocidades radiais, em que usamos a espectroscopia e o efeito Doppler para medir a velocidade e a oscilação da estrela. Se essa variar de forma periódica, é porque anda à volta de alguma coisa”, explica o investigador. A outra é a “técnica dos trânsitos, que permite determinar a variação do brilho da estrela a cada órbita do planeta, quando este lhe passa à frente”. Junte-se as duas e “temos a massa e o raio dos planetas, que são fundamentais, não só para os detetar, como para estimar a sua composição química e, em alguns casos, começar a estudar a sua atmosfera”. É essa a tarefa a que Susana Barros se dedica desde que regressou ao Porto, após dois pós-doutoramentos em Belfast e Marselha, onde se especializou na caracterização de exoplanetas. À sua conta conhecem-se mais de 30, fruto do trabalho desenvolvido com alguns dos mais famosos ‘caçadores de planetas’ do mundo, como a sonda espacial Kepler, ou o espectrógrafo HARPS. “Hoje sabemos que a maior parte destes planetas são rochosos como a Terra e, para os mais pequenos, já é possível determinar se têm água líquida, atmosfera, e até se tem anéis ou luas”, diz. Mas há surpresas pelo caminho. Como o recém-descoberto K2-229 b que, tendo um tamanho idêntico ao da Terra, possui uma composição química diferente da observada na estrela-mãe. Tal como o nosso Mercúrio. “Isto mostra como os exoplanetas podem ajudar-nos a compreender a formação do nosso próprio Sistema Solar”, aponta a investigadora. Por agora, porém, “descobrir um planeta do tamanho da Terra que possa conter água já será um grande passo!”. Os candidatos a ‘gémeo’ da Terra perfilam-se. Será Kepler-438b, um planeta com tamanho e temperaturas semelhantes ao nosso, situado a uns longínquos 470 anos-luz? Ou Gliese 667 Cc, que será capaz de abrigar água em estado líquido? Ou então os nossos ‘vizinhos’ Proxima Centauri b e Ross 128b, localizados a menos de dez anos-luz? Aceitam-se apostas, mas, para Nuno Cardoso Santos, qualquer uma é arriscada. “A verdade é que ainda não encontramos uma espécie de sósia da Terra”, avisa. Mas quando isso
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Textos Tiago Reis
Fotos Egídio Santos / ESO
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Representação artística do Gliese 667 Cc, um planeta com 4,39 vezes a massa da terra e capaz de abrigar água em estado líquido.
Observatório do Paranal, no Chile.
acontecer, a equipa do IA quer estar na primeira fila. “Há 10 anos definimos uma estratégia que envolvia a participação e, se possível, uma posição de liderança nos grandes projetos internacionais nesta área. E é aí que estamos hoje”.
O CÉU É O LIMITE O ESPRESSO é um deles. “É o primeiro projeto em que temos uma participação ao mais alto nível, o que nos permitiu liderar todo o processo de conceção do espectrógrafo, desde o desenho até à construção do instrumento, e agora, a exploração”. E se tudo correr como previsto pelos vários astrofísicos e especialistas em instrumentação do IA envolvidos, “vai permitir-nos atingir um nível de precisão nunca antes alcançado, e com isso descobrir e medir pela primeira vez a massa de planetas que são verdadeiramente parecidos com a Terra”. Já para Sérgio Sousa, um dos cérebros por detrás do software que vai analisar os dados enviados pelo ESPRESSO, implicará também algumas viagens ao Chile, com estadia incluída numa das 230 noites em que o IA terá direito a usar os telescópios do VLT. A receita repete-se com vista para as estrelas. “O que vamos fazer é caracterizar as estrelas para retirar informações sobre os planetas. E, a partir daí, tirar pistas sobre como é que eles se formaram e evoluíram”. Mas há mais. Já na primavera de 2019 será lançado para o espaço o satélite CHEOPS, uma missão da Agencia Espacial Europeia (ESA) em que o IA volta a assumir um forte papel. “O CHEOPS não vai procurar planetas. Vamos olhar para as estrelas que sabemos terem planetas e tentar determinar com mais precisão o tamanho desses planetas para poder caracterizá-los”, explica Sérgio Sousa. E a lista continua. Também em 2019, o ESPRESSO passará a ter a companhia do NIPS, um outro espectrógrafo em cuja construção
Sérgio Sousa, Susana Barros e Nuno Cardoso Santos.
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Representação artística do LHS 1140b, um exoplaneta rochoso situado a 39 anos-luz da terra.
o IA participa. O foco da equipa já está, entretanto, na liderança do consórcio para o desenvolvimento do HIRES, um espectrógrafo ainda mais potente do que o ESPRESSO, a integrar no European Extremely Large Telescope (E-ELT), o revolucionário supertelescópio do ESO que entrará em funcionamento em 2024. Num horizonte ainda mais longínquo está também o PLATO, a ambiciosa missão da ESA que, a partir de 2026, vai procurar descobrir planetas semelhantes à Terra com condições para o aparecimento de vida. Em resumo, “há um investimento fortíssimo, que nos garante que nos próximos 10 anos vai haver grandes resultados”, projeta Nuno Cardoso Santos. Até porque, em plena ‘guerra das estrelas’, todos querem ser os primeiros a cortar a meta. “A competição é muita, mas como falamos de projetos que envolvem milhões de euros, na maior parte dos casos são consórcios de países e grupos que de-
cidem juntar-se”. Foi esse o espírito que, em 2015, levou à criação do IA, resultado da fusão do CAUP com o Centro de Astronomia e Astrofísica da Universidade de Lisboa (CAAUL). “Desde 2007 que havia colaborações muito estreitas e a partir de dada altura ficou claro que não havia razão para estarmos a trabalhar de forma separada”. Três anos depois, o balanço não podia ser melhor. “Foi um ganho muito grande porque nos permite ter 70% da comunidade científica na área em Portugal a falar a uma só voz”. Estará o planeta gémeo ao virar da esquina? Haverá vida para lá da Terra? Por enquanto, as perguntas ainda esbarram no “talvez”. Mas, para Nuno Cardoso Santos, o ‘caminho das estrelas’ é irreversível. “Há 25 anos suspeitávamos que a nossa Terra não estava sozinha no universo, mas não tínhamos qualquer evidência. Hoje sabemos que há outras Terras potencialmente habitáveis. Resta-nos encontrá-las”.
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Fotos Egídio Santos / ESO
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“OS RESULTADOS ALCANÇADOS PELA EQUIPA DO PORTO SÃO EXCELENTES” Em 1995, Michel Mayor entrou para a história da astronomia ao descobrir o primeiro planeta “extrassolar” conhecido a orbitar uma estrela semelhante ao sol: o 51 PEgasi b. Em entrevista à CAMPUS U.Porto, o astrónomo suíço e professor emérito da Universidade de Genebra destaca o “progresso extraordinário” registado desde então, elogia o trabalho desenvolvido pela equipa do ‘pupilo’ Nuno Cardoso Santos e lança pistas para o futuro da investigação na área.
Como recorda o caminho que o “levou” até ao 51 PEgasi b.? Essa descoberta tem duas origens. Desde logo, o surgimento de novos espectrógrafos com uma precisão tal que abriu a possibilidade de procurarmos por “companheiros” de massa muito baixa (anãs castanhas e planetas gigantes) de estrelas do tipo solar. Por outro lado, foi a continuação lógica da investigação que vínhamos fazendo sobre os mecanismos de formação estelar. Foi assim que, em abril de 1994, iniciei com um dos meus alunos de doutoramento [Didier Queloz] um programa para procurar exoplanetas. Surpresa: detetámos uma estrela [Pegasi] com um possível planeta com cerca de metade da massa de Júpiter, mas com um período orbital de apenas 4,2 dias. Isto era uma aparente contradição em relação ao paradigma de formação de planetas gigantes, por isso decidimos repetir as medições em julho do ano seguinte. A estabilidade da variabilidade da velocidade da estrela foi suficientemente convincente para submetermos a descoberta à Nature. O que é que essa descoberta representou na altura? Foi o começo de um novo capítulo para a astronomia e para a compreensão da diversidade dos sistemas planetários que nos rodeiam. Um capítulo com novas descobertas todos os meses.
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Quase 25 anos depois, já são conhecidos cerca de 4.000 exoplanetas e muitos outros estarão na forja. O que sabemos hoje sobre estes mundos? O progresso nas últimas duas décadas tem sido extraordinário. Hoje, temos a certeza de que a maior parte das estrelas que vemos no céu são hospedeiras de sistemas planetários. Por outro lado, com a evolução nas técnicas de deteção, conseguimos estudar a física dos exoplanetas e a sua constituição interna, ao ponto de ser possível detetar moléculas nas suas atmosferas. Por fim, descobrimos a enorme diversidade de sistemas planetários no universo, o que constitui um desafio para o estudo da formação planetária.
Como perspetiva o futuro da investigação nesta área? O futuro passará por tentarmos encontrar planetas tipo-Terra na chamada zona habitável [região onde é mais provável um planeta rochoso poder ter água líquida] de estrelas do tipo solar. Atualmente, já temos candidatos hospedados por estrelas de massa muito baixa (o que coloca dificuldades ao desenvolvimento hipotético de vida). O próximo passo será detetar “biomarcadores” na atmosfera desses potenciais candidatos, o que é muito difícil se considerarmos a diferença de luminosidade entre a estrela e o seu planeta. É um objetivo ambicioso (mas fascinante) que poderá demorar décadas a alcançar.
Foi orientador de doutoramento do Prof. Nuno Cardoso Santos. Continua a acompanhar o trabalho dele? Obviamente, até porque os resultados alcançados pela equipa do Porto na última década são excelentes. Destacaria os importantes estudos feitos sobre a ligação entre a composição química das estrelas e a frequência dos exoplanetas nelas hospedados (o Nuno recebeu o Prémio Viktor Ambartsumian por este importante conjunto de estudos), cuja compreensão é essencial para percebermos os mecanismos de formação dos sistemas planetários. De resto, têm-se destacado no desenvolvimento de espectrógrafos para a deteção de novos exoplanetas.
Estamos “condenados” a encontrar vida fora da Terra? Será a vida um “imperativo cósmico”? Uma pergunta vertiginosa…
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Está “a fazer história” no admirável mundo novo da internet, garante um dos seus cofundadores. E não faltam razões para corroborar esta opinião. A Jscrambler, startup de cibersegurança sediada no UPTEC, foi pioneira na proteção da integridade dos códigos dos browsers e é líder mundial em produtos de segurança para aplicações em JavaScript. As suas soluções são vendidas para mais de 100 países (45 mil utilizadores) e foram adotadas pelos colossos internacionais da banca, seguros, telecomunicações, gamming, e-commerce, softwarehouses ou media. Alavancada em 2018 com um investimento série A, a empresa está a crescer em vendas, faturação e capital humano.
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Textos Ricardo Miguel Gomes
Fotos Egídio Santos
Pedro Fortuna, CTO da Jscrambler.
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Malware, probing, worms, spywares, exploits, spoofing, mail bomb, smurf, sniffing, scamming, clonagem, phishing, bots… O jargão geek vai-se imiscuindo no vocabulário corrente, à medida que os ciberataques se tornam mais frequentes. São as dores do crescimento vertiginoso das tecnologias web, em relação às quais há uma progressiva dependência de cidadãos, instituições e empresas. Embrenhadas em redes que interligam toda a sorte de dispositivos eletrónicos, as sociedades contemporâneas são perpassadas por uma sensação de vulnerabilidade. Em causa está o acesso indevido a dados informáticos, colocando em risco a nossa segurança, património e privacidade. A crescente ubiquidade tecnológica explica o potencial de negócio da cibersegurança, área a que se dedica a Jscrambler, uma das empresas-âncora do UPTEC – Parque de Ciência e Tecnologia da U.Porto. A startup fundada por Pedro Fortuna (CTO) e Rui Ribeiro (CEO), ambos alumni da FEUP, é líder mundial em soluções de segurança para aplicações (web e móveis) baseadas em JavaScript, uma das linguagens de programação mais populares no mundo. A Jscrambler foi, aliás, pioneira na proteção da integridade dos códigos JavaScript, através de sofisticadas técnicas de autodefesa e ofuscação. Sediada no browser (programa de navegação na net), a solução da Jscrambler converte códigos Javascript e HTML em sím-
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bolos sem significado, impedindo a sua compreensão sem comprometer a execução das funções previstas. Desta forma, as aplicações ganham resiliência face à adulteração maliciosa, à engenharia reversa e ao roubo de propriedade intelectual. Além de salvaguardar a integridade da aplicação contra modificações nos códigos, tecnologia pela qual a empresa é conhecida no mundo, a Jscrambler oferece ainda soluções para detetar e reverter qualquer tipo de adulterações nas páginas web. Ou seja, as webpages são monitorizadas e, caso se identifiquem adulterações não detetáveis pelo utilizador (através de vírus ou plug-ins, por exemplo), o programa atua em tempo real, evitando situações como os falsos formulários para roubar dados. Os dois produtos, um de code integrity e o outro de webpage integrity, “funcionam em conjunto e o objetivo, em agregado, é garantir a integridade da aplicação. Caso ocorra alguma anomalia na aplicação, ela é reportada em tempo real a quem a desenvolveu, permitindo-lhe reagir também em tempo real. Se se perceber que uma password foi capturada, por exemplo, o dono da aplicação fica a saber disso em dois ou três segundos. E nesse instante pode bloquear a conta, impedindo que se façam transferências”, explica Pedro Fortuna.
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AUDITMARK SERVIU DE INCUBADORA Mas este nível de sofisticação tecnológica não foi atingido num pestanejar de olhos. Na génese da Jscrambler esteve a empresa AuditMark, criada em 2008 por Rui Ribeiro e que, dois anos depois, passou a contar com a colaboração a tempo inteiro de Pedro Fortuna. Dedicada ao desenvolvimento de tecnologia para descobrir fraudes em campanhas de marketing online, a AuditMark deu aos dois engenheiros uma maior familiaridade com a linguagem JavaScript, a única que funciona nos browsers. “A ideia [da Jscrambler] nasceu dentro da AuditMark, fruto da necessidade. Nós pensámos em proteger o código do browser para uso próprio”. Por isso, “a AuditMark foi o primeiro cliente da Jscrambler. Fazíamos técnicas para recolher informação no browser, que nos permitiam verificar se era um humano que estava a navegar ou algum código automatizado a fazer fraude”. Foi aí que “constatámos que no mercado não havia nada com o nível de sofisticação e proteção que idealizávamos. E começámos a trabalhar internamente nisso. Nós, na AuditMark, já tínhamos background de segurança e algumas ideias do que poderia ser uma solução para proteger o código [do browser]”, recorda Pedro Fortuna. O projeto Jscrambler seria, entretanto, burilado no mestrado integrado em Redes e Serviços de Comunicação da FEUP, que o CTO estava então a frequentar.
A solução de proteção do código começou a ser disponibilizada, em versão beta (gratuita), em abril de 2010. “Era ainda muito cedo para este tipo de tecnologia, mas já havia pessoas que tinham essa necessidade e aplicações que precisavam de ser protegidas. Para nós, começou a ser gradualmente evidente que o JavaScript ia explodir, que a sua utilização ia ser cada vez maior. E tínhamos um felling de que haveria necessidade de proteger o código que corria no browser, que de outra forma ficaria exposto e os dados poderiam ser capturados, como hoje acontece quase todos os dias”, conta Pedro Fortuna. Em 2013, dá-se um acontecimento game-changer. Já com a sua 3.ª versão no mercado, o produto premium da Jscrambler é tema de um artigo na TechCrunch. A startup de cibersegurança foi, muito provavelmente, a primeira empresa portuguesa a ser alvo de atenção editorial por parte deste portal de referência na área das tecnologias. Resultado: a faturação da Jscrambler duplicou de um mês para o outro. Pedro Fortuna e Rui Ribeiro decidiram, então, focarse na Jscrambler, que, em 2014, absorve a estrutura da AuditMark, cuja atividade é entretanto suspensa. O passo seguinte foi procurar seed funding para alavancar a empresa, tendo os cofundadores fechado, no início desse ano, uma ronda de investimento (menos de um milhão de euros) com a Portugal Ventures (sociedade de capital de risco pública), no âmbito do programa Call for Entrepreneurship. Hoje, a Jscrambler tem como clientes algumas das maiores empresas mundiais nos setores da banca, seguros, telecomunicações, gamming, e-commerce, softwarehouses e media, sobretudo. Por razões de confidencialidade, Pedro Fortuna não identifica as empresas clientes mas calcula que as soluções de cibersegurança da empresa tenham cerca de 45 mil utilizado-
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Textos Ricardo Miguel Gomes
res e sejam comercializadas para mais de 100 países. O mercado dos EUA representa 45% da faturação e a Europa 32%, sendo os clientes portugueses “uma migalha”. “Nunca nos focámos no mercado doméstico. Quando iniciámos a AuditMark, estávamos em plena crise e o que fazia sentido era fazer tecnologia lá para fora. Quando se trabalha em inovação e tecnologia, temos de pensar quem são os earlier adopters. E Portugal não é earlier adopter de um produto como o nosso”, justifica o CTO da empresa.
FAZER HISTÓRIA NA INTERNET A liderança mundial da Jscrambler deve-se, na opinião de Pedro Fortuna, ao pioneirismo das soluções que a empresa desenvolve e comercializa. “Os nossos competidores, apesar de copiarem uma ou outra coisa, estão sempre um passo atrás. Tenho a convicção de que estamos a fazer história. Um dia, vamos olhar para trás e ver que nós tivemos no epicentro de uma série de técnicas e tecnologias que foram necessárias para a internet evoluir. E isso enche-nos de orgulho”, confessa, acrescentando que “a estratégia tem sido não copiar os outros. Queremos ser nós a inventar”, tendo, para isso, três a cinco informáticos dedicados a atividades de I&D. Ainda assim, as soluções da Jscrambler não são infalíveis. “Em segurança, nada é infalível. Nem o que há hoje nem o que haverá amanhã. Tudo o corre no client-side [do lado do cliente] é, por definição, inseguro. E hoje vivemos num universo tecnológico em que, cada vez mais, as
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aplicações correm no client-side. Mas nós oferecemos uma estrutura que torna o ataque, se não impossível, pelo menos impraticável. Além disso, informamos em tempo real o que está a acontecer, dando assim capacidade de reação para encontrar soluções e mitigar os problemas”. Em março de 2018, a Jscrambler recebeu 1,9 milhões de euros de investimento em série A. A operação foi liderada pela Sonae IM, sociedade de capital de risco do grupo homónimo, e pela Portugal Ventures. “Foi um passo natural: a empresa está em crescimento e precisava de mais pessoas. [A entrada de capital] é sobretudo para fazer crescer a equipa [têm atualmente cerca de 30 colaboradores] e assim fazer crescer as vendas. Com uma equipa técnica maior, conseguimos entregar funcionalidades de forma mais rápida e temos mais para vender. Há outra parte das vendas que não tem a ver com o crescimento da equipa, mas sim com a presença em feiras. Há feiras que nos custam 50 mil euros”. Há até a perspetiva de contratar pessoas para o escritório de São Francisco, que, por ora, serve apenas de base de apoio às múltiplas deslocações que os cofundadores fazem ao “epicentro” do principal mercado da empresa, os
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EUA. De resto, “com o crescimento da nossa equipa é natural que se abram mais escritórios com country managers, em países onde vendemos mais ou que identifiquemos potencial. Mas o centro de operações vai-se manter no UPTEC, principalmente o product manager, o product development, a I&D…”, garante Pedro Fortuna. A Jscrambler vive “um período de transição de uma empresa SaaS [Software as a Service], em que qualquer pessoa ia ao site e pagava por um produto, para uma empresa enterprise, que faz vendas a empresas maiores, com outro tipo de necessidades, outras preocupações e valores mais altos”. Por isso, “a faturação está a crescer de ano para ano e tem atingido o break -even. Temos feito, de há um ano para cá, entre 1 e 10 milhões de euros de faturação. Este ano [2018] é bastante positivo em termos de crescimento. Ainda há pouco tempo fizemos a nossa maior venda de sempre, a um banco sul-americano. As coisas estão risonhas”, acredita Pedro Fortuna.
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De resto, prevê-se um crescimento dos negócios na área da cibersegurança. “Tende a haver um maior equilíbrio entre o ritmo de evolução da segurança [informática] e as inovações de usabilidade. As empresas mais vulneráveis não vão ter tantos negócios. Há já um rating, como o económico, de segurança das empresas”. Este contexto abre boas perspetivas para a Jscrambler, que deseja “continuar a deixar a sua marca na segurança aplicacional, em tecnologias web”.
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António de Sousa Pereira Reitor da U.Porto
NORMA PARA CONTRATAÇÃO DE BOLSEIROS “É BEM-INTENCIONADA MAS É UM MAU PROCESSO” Empossado no final de junho, o novo Reitor da U.Porto não pretende introduzir ruturas no modo de funcionamento da instituição, durante o seu mandato. Ainda assim, António de Sousa Pereira quer que os processos no interior da Universidade sejam geridos de forma mais célere e próxima dos destinatários. Quanto à relação entre unidades orgânicas, preconiza novas formas de colaboração e interdisciplinaridade, designadamente ao nível do 1.º ciclo. É cético em relação a processos de fusão entre faculdades, preferindo “passos intermédios” como a formação de consórcios e agrupamentos. Não vê grandes vantagens no modelo fundacional (prefere um “regime de autonomia reforçada” semelhante ao das unidades de I&D) e é crítico de algumas medidas do Governo para o ensino superior, como a norma transitória para a contratação de bolseiros e o corte de vagas nas instituições de Lisboa e Porto. Está a trabalhar para encontrar “soluções imediatas” para a escassez de alojamento universitário e aguarda a definição de um modelo de sustentabilidade financeira para o renovado Museu de História Natural e da Ciência.
entrevista
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Veja o vídeo da entrevista em http://tv.up.pt/premiums/102
Na sua candidatura a reitor prometeu uma “governação descentralizada, inclusiva e subsidiária”. Em que é que se vai traduzir este modelo de governação? Nos últimos anos, foram tomadas algumas decisões no sentido de centralizar processos. E, claramente, há coisas que não estão a correr bem; processos que estão a demorar demasiado tempo, como as aquisições. Portanto, temos de ver onde estão os entraves e encontrar soluções, sendo certo que hoje é percetível que há processos que são melhores executados ao nível das unidades orgânicas – e não ao nível dos serviços centrais. O que está aqui em questão não é acabar com os SPUP [Serviços Partilhados da U.Porto], mas sim modificar o seu modelo de funcionamento, tornando-o mais eficaz e amigo das pessoas. Quanto a questões mais ligadas à vida académica, há algumas decisões tomadas centralmente que ignoram as idiossincrasias das unidades orgânicas. É preciso tratar de forma idêntica aquilo que é idêntico, mas ter também o cuidado de tratar de forma diferente aquilo que é diferente. E isso faz-se descentralizando os processos e, mais até, ouvindo as pessoas diretamente envolvidas, para que os seus inputs sejam incorporados nos regulamentos e no modo de funcionamento da Universidade. Disse ainda que gostava que se “esbatessem os muros entre Faculdades”. Como é que se reforça a colaboração entre unidades orgânicas? Ao nível da investigação, as fronteiras há muito que foram esbatidas. Hoje, na maioria das unidades de investigação estão envolvidas múltiplas faculdades. Mas temos consciência de que há unidades de investigação de dimensão reduzida e que beneficiarão se se fundirem com unidades afins, para criar massa crítica e se tornarem mais competitivas na obtenção de financiamento. Ao nível dos 2.º e 3.º ciclos, também é prática corrente a colaboração entre unidades orgânicas. São maioritários os programas doutorais que envolvem múltiplas unidades orgânicas. Mas ao nível do 1.º ciclo, isto ainda não é prática corrente. A regra é os 1.ºs ciclos estarem sediados numa só unidade orgânica – e é aí que tem de ser feita uma grande revolução interna. Temos que formar profissionais para estarem aptos a desempenhar profissões que nem sequer se imagina quais são. Portanto, há que lhes dar uma formação o mais abrangente possível: ter a preocupação de incluir uma componente de ciências sociais e humanas nas tecnologias e ter alguma componente de história das tecnologias e das ciências [exatas] nas ciências sociais e humanas. Esta mistura produzirá profissionais mais competitivos no mercado. Falou de fusões de unidades de investigação. Não se justificará também a fusão de algumas faculdades para que ganhem escala, massa crítica e multidisciplinaridade? Se assim o quiserem. Agora, os estatutos preveem passos intermédios. Antes das fusões, gostaria que se fizessem consórcios e agrupamentos de unidades orgânicas. E, se resultar daí uma vantagem óbvia, então, sim, avançar para fusões. Pôr as fusões como objetivo imediato causa mais problemas do que arranja soluções. A tentativa de fusão entre a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Medicina Dentária correu mal e deixou feridas abertas, que importa curar antes de avançar com outras experiências idênticas.
entrevista
Ao nível da investigação, as fronteiras há muito que foram esbatidas. Hoje, na maioria das unidades de investigação estão envolvidas múltiplas faculdades.
Uma das suas ideias-chave é colocar o estudante no centro do processo de ensino e investigação. O que é que isto significa em concreto? Significa que os estudantes não são todos iguais e, portanto, não podem ser tratados como uma massa amorfa. Os estudantes têm ritmos de aquisição de conhecimento diferentes e, dentro do possível, cada um deles deve ter um tratamento diferenciado. As grandes universidades do mundo instituíram um sistema de tutorização, em que cada estudante tem um tutor que define o seu percurso académico em função das competências que vai adquirindo. É evidente que isto é dispendioso. Não temos capacidade para enveredar por sistemas deste tipo. Mas podemos flexibilizar o processo de ensino-aprendizagem, no sentido de o adaptar a diferentes velocidades de aquisição de competências e conhecimentos dos estudantes. Não me choca que um estudante que não tenha especiais competências para provas orais possa responder numa prova escrita, se isso não for crítico. Ou que um estudante que tenha ansiedade numa prova escrita possa fazer uma prova oral.
SOLUÇÕES DE CURTO PRAZO PARA O ALOJAMENTO Uma das grandes preocupações dos estudantes é encontrar alojamento na cidade. Sendo certo que a oferta habitacional privada não vai aumentar tão cedo, como espera a U.Porto contribuir para minorar o problema do alojamento dos estudantes? A falta de alojamento para os estudantes da U.Porto é um fenómeno novo. Não era previsível há alguns anos, quando sobravam quartos nas residências universitárias. Não se fizeram projetos para residências novas porque era manifestamente desnecessário: havia quartos em excesso. Mas, agora, a solução para o problema do alojamento não pode ser pensada apenas para o médio/longo prazo. Há que avançar com soluções imediatas; e é nesse sentido que estamos a trabalhar. E que soluções são essas? Estamos à procura de alojamentos que sejam fácil e rapidamente convertíveis em alojamento universitário, a fim de resolver problemas prementes. Temos investidores dispostos a fazer investimentos na criação de alojamento universitário, só que querem passar o risco para a Universidade. Não nos interessa assumir um compromisso, numa parceria público-privada, para construir residências universitárias que só ficarão concluídas daqui a três anos ou quatro anos. Vamos, por isso, tentar arranjar soluções no curto prazo, que não serão as melhores – serão as possíveis. Alugar quartos a terceiros para depois realugá-los a estudantes? Não há muito mais hipóteses neste momento. Temos alguns projetos deste tipo a ser estudados, para conseguirmos, com brevidade, um aumento significativo dos quartos para estudantes. E o Governo, o que deveria fazer? Aumentar o complemento de alojamento? Da parte do Governo tem de haver uma abordagem múltipla: por um lado, aumentar o complemento de alojamento [nas bolsas] e, por outro, criar um ambiente fiscal favorável ao aluguer a estudantes. O Governo deveria trabalhar as duas vertentes, mas, em boa verdade, não é evidente que esteja a trabalhar em alguma.
Textos Ricardo Miguel Gomes
Fotos Egídio Santos
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Está decorrer um processo de expansão da oferta museológica da U.Porto, que inclui o renovado Museu de História Natural e da Ciência, no edifício da Reitoria. Em que ponto é que está esta obra? Quando cheguei aqui, pedi o plano estratégico para o museu e o planeamento financeiro. E constatei, com surpresa, que não existem. De forma que solicitei aos responsáveis que me entregassem um documento de planeamento estratégico e financeiro do museu, para analisarmos e validarmos. Em termos de obras, ainda estamos longe de ter a intervenção no museu concluída. Então, o projeto está em stand by? Não, está a decorrer de acordo com a velocidade com que se têm obtido os financiamentos. É importante que se diga que tem havido uma contribuição muito importante da Reitoria quer para o museu, quer para a Galeria da Biodiversidade. Anualmente, a comparticipação tem sido de mais de um milhão de euros de fundos próprios. Agora, isto não é suficiente para manter em funcionamento o museu, nem pouco mais ou menos. Por isso, é preciso saber quem vai pagar o resto. Sem isso, não se conseguem abrir as portas do museu.
MODELO FUNDACIONAL TEM POUCAS VANTAGENS A U.Porto foi uma das três primeiras universidades a adotar o modelo fundacional, em 2009. No entanto, os compromissos que o modelo pressupunha, nomeadamente financeiros, nunca chegaram a ser cumpridos pelo Estado. Assim sendo, não acha que a Universidade devia abandonar o modelo fundacional? Isso é uma decisão que não me compete a mim, isoladamente. Como as coisas estão atualmente, vejo pouquíssimas vantagens no modelo fundacional. É óbvio que o Estado nunca cumpriu o contrato-programa que fez com as universidades-fundação. Há algumas vantagens na contratação em regime de direito privado de técnicos e funcionários, mas não existe de todo na contratação de docentes. Portanto, aquilo que existe é muita vontade de começar a tornar público este descontentamento e “empurrar” o Governo para tomar decisões. E uma das decisões que pode tomar é avançar para um regime de autonomia reforçada, um pouco à imagem do que já fez para as unidades de investigação. Em termos de regras do código de contratação pública, quando se trata [da aquisição] de materiais e equipamentos destinados a unidades de investigação temos hoje algumas facilidades. A pergunta que se coloca é se isso não devia ser alargado às universidades como um todo, para permitir que tivessem uma gestão mais ágil e rápida. Estamos hoje com muita dificuldade em acompanhar o mercado e as empresas com toda a burocracia que temos.
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Como as coisas estão atualmente, vejo pouquíssimas vantagens no modelo fundacional. É óbvio que o Estado nunca cumpriu o contrato-programa que fez com as universidadesfundação. Há algumas vantagens na contratação em regime de direito privado de técnicos e funcionários, mas não existe de todo na contratação de docentes.
O congelamento das propinas, o encerramento de vagas no Porto e em Lisboa, a regularização dos precários e a norma transitória para os bolseiros vieram criar mais dificuldades económicas às instituições do ensino superior? Da verba disponível para reforço orçamental às universidades, houve a decisão de a distribuir entre as várias instituições de forma proporcional à massa salarial. Isto quer dizer que universidades que tinham sistemas de avaliação razoavelmente exigentes estão hoje bem. Universidades que tinham sistemas de avaliação altamente facilitistas estão hoje mal, porque o dinheiro que irão receber não chega para pagar os salários com os aumentos que vão ter de fazer. Qual é o caso da U.Porto? As contas estão equilibradas. O dinheiro que vem para revalorizações remuneratórias está em linha com a nossa previsão de aumentos salariais. Da mesma forma que as previsões de dinheiro para o decreto-lei 57 [norma transitória para a contratação de bolseiros] está em linha com o que pensamos gastar nesses contratos. E relativamente à regularização dos precários? Aí a questão é mais complicada… ou não tem complicação nenhuma. Se não forem feitas as reuniões com o Ministério para decidir quais os requisitantes que têm direito a ver o seu contrato regularizado, a questão não se coloca porque não há ninguém para regularizar nos precários. Se entretanto avançarem as reuniões com o Ministério e tiverem o mesmo resultado que tiveram noutras universidades, aí o caso pode ser mais complicado. [Isto] porque foi assumido pelo Governo que os precários não representavam um acréscimo de custos para as instituições, visto que já estavam lá a trabalhar. Esqueceram-se que, no caso das universidades, muitos desses precários são pagos por bolsas ou projetos de investigação. [Logo], passando [esses precários] para a esfera da Universidade como trabalhadores regulares, [os seus salários] tornam-se despesa da instituição. Portanto, podemos estar aqui a falar de um acréscimo de necessidades orçamentais de alguns milhões de euros. O ministro Mário Centeno já comunicou, de forma aparentemente irredutível, que o aumento do orçamento para precários é zero. Por isso, podemos estar na iminência de um problema. Há universidades que já têm este problema. Nós, como temos o processo atrasado, não sabemos qual vai ser o verdadeiro impacto… Em suma, a integração dos precários parece-me pertinente, mas o processo de regularização não é feliz e a falta de garantias de financiamento pelo Ministério causa alguma perplexidade. Considera que estas medidas são uma violação do acordo assinado entre o Governo e as universidades para manter inalterado, até 2019, o valor do financiamento ao ensino superior? No nosso caso, os reforços [orçamentais] quer para as revalorizações, quer para os bolseiros estão em linha com aquilo que vai ser a nossa despesa. Nos dois casos, não há uma violação do acordo que foi estabelecido. No caso dos precários, se realmente nos obrigarem a avançar com a contratação de pessoas que não são pagas pela Universidade sem o correspondente reforço orçamental, aí claramente estamos perante uma violação grave do acordo por parte do Governo.
entrevista
NORMA TRANSITÓRIA “PODE CAUSAR DISTORÇÕES”
O ministro Mário Centeno já comunicou, de forma aparentemente irredutível, que o aumento do orçamento para precários é zero. Por isso, podemos estar na iminência de um problema. Há universidades que já têm este problema.
Os reitores têm-se mostrado relutantes em aplicar a norma transitória, que permite transformar bolsas de investigação em contratos de trabalho. Também tem reservas em relação à norma transitória? A norma transitória é bem-intencionada mas é um mau processo. A integração dos bolseiros deve ser feita em colaboração com as universidades e em função das suas necessidades, promovendose igualmente a contratação de docentes. Com a norma transitória, uma faculdade, em abstrato, pode ter necessidade de contratar docentes ou até mesmo investigadores na área do conhecimento A. Mas, como os bolseiros estão na área do conhecimento J, vão ter de contratar pessoas nessa área, de que não estão carentes. E continuam com áreas deficitárias. As universidades têm um corpo docente envelhecido e desadequado às necessidades em termos de cargas horárias. E, de repente, os contratos que têm de fazer não são para resolver nenhum dos problemas de docência, mas sim para contratar investigadores em áreas que não são deficitárias. Para a U.Porto, a prioridade é contratar docentes, e não tanto investigadores? Na U.Porto, essa questão não se coloca de uma forma tão pertinente como noutras instituições porque uma grande parte da sua estrutura de investigação é autónoma. [Logo], o cumprimento do decreto-lei 57 vai ser feito de forma autónoma à Universidade. Ou seja, nos laboratórios associados e nas unidades de investigação é que se vão efetuar muitos destes contratos – e, em boa verdade, estas estruturas não têm necessidade de docentes. Agora, há universidades em que o número de bolseiros a contratar ao abrigo do decreto-lei 57 é extremamente elevado. E aí, sim, pode causar distorções no processo de ensino.
Textos Ricardo Miguel Gomes
Fotos Egídio Santos
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Disse que a Universidade tem um corpo docente envelhecido. Há, portanto, necessidade de o renovar… Temos de encontrar mecanismos para ultrapassar isto. Um dos mecanismos que estou a estudar – e que provavelmente irei propor ao Governo – é que, a partir da idade legal de reforma, a Universidade suporte apenas a diferença entre o vencimento em exclusividade e aquilo que pagaria a Segurança Social. Ou seja, um professor de 67 anos de idade receberia X da Segurança Social e a Segurança Social, apesar dele estar a trabalhar e já ter idade para estar reformado, pagaria à Universidade o valor da sua reforma e a Universidade colocaria o excedente para lhe pagar o ordenado na totalidade. Utilizaríamos esse dinheiro que a Segurança Social lhe deveria estar a pagar [como reforma] para contratar gente nova, permitindo assim que, num período de alguns anos, houvesse uma sobreposição e integração entre os [docentes] mais velhos e os mais novos. Isto seria uma boa ajuda para rejuvenescer o quadro das universidades.
Uma coisa é ganhar vagas, outra é ganhar estudantes. Não adianta nada aumentar o número vagas se depois não têm estudantes para as ocupar. Gostava de saber quantos dos estudantes colocados no interior na realidade vão ficar nessas universidades, ou se, ao fim de algum tempo, se vão matricular numa privada em Lisboa ou no Porto.
Ainda a propósito da norma transitória, não acha que é um contrassenso estimular a integração de investigadores nas universidades quando há escassez de doutorados nas empresas? Há uma desvalorização grande da formação académica ao nível do nosso tecido empresarial. E não é só dos doutorados: é, até, ao nível dos licenciados. É um problema de mentalidade? É… Mas, se calhar, também existe essa mentalidade porque as universidades se têm encerrado nas suas “torres de marfim” e não têm falado muito com as empresas. Nós também temos de dar alguns passos para que as empresas percebam que ter quadros altamente diferenciados é importante ao seu desenvolvimento e crescimento. Aquilo a que assistimos hoje até é um bocadinho indigno: recém-licenciados – por exemplo, nas áreas tecnológicas
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– que vão trabalhar [para as empresas] e, se ganharem mil euros, é uma festa. Não podemos ter um país desenvolvido com esta desvalorização da formação académica. E isto passa-se também com os doutorados, que são menosprezados por algumas empresas. Isto levou ao entendimento, por parte da generalidade dos doutorados, de que a única hipótese que têm de conseguir um emprego é nas universidades e institutos de investigação. [Ora], as universidades e institutos de investigação não têm capacidade para absorver todos os doutorados do país. Há aqui um grande trabalho a fazer para que, por um lado, os empresários percebam a importância de terem quadros altamente diferenciados e, por outro, os doutorados tenham a perceção de que vão ter de colocar os seus conhecimentos não ao serviço da investigação [universitária], mas sim ao serviço das atividades económicas. Manifestou-se muito crítico em relação ao encerramento de vagas no Porto e em Lisboa. Sabe-se hoje que as instituições das duas cidades perderam 1066 vagas e as restantes ganharam 1080. Perante estes números, qual é o verdadeiro impacto da medida? Não sei qual é o verdadeiro impacto… Uma coisa é ganhar vagas, outra é ganhar estudantes. Não adianta nada aumentar o número vagas se depois não têm estudantes para as ocupar. Gostava de saber quantos dos estudantes colocados no interior na realidade vão ficar nessas universidades, ou se, ao fim de algum tempo, se vão matricular numa privada em Lisboa ou no Porto. Nesta altura, não sabemos quantos estudantes ganhou de facto o interior. O que sabemos é que há um conjunto de estudantes que poderiam ter sido colocados em Lisboa e no Porto, que tinham capacidade de os receber. Foram privados de ficar colocados nas suas primeiras opções. Essa é uma realidade em relação à qual tenho as maiores dúvidas, até em termos de legalidade constitucional. Como é que então se garante a sustentabilidade das instituições do interior? Não certamente com esta medida. Têm de ser outro tipo de estímulos, que façam com que os estudantes tenham vontade de ir para o interior – e não obrigá-los a ir! A sustentabilidade do interior não pode, no limite, ser feita à custa de fechar [vagas em] Lisboa e Porto. As instituições de ensino superior enfrentam uma redução de estudantes, que se vai manter, numa percentagem muito grande, nos próximos anos. Percebo que, para o interior, a existência de ensino superior é absolutamente fundamental para a manutenção das economias locais. Agora, acho que há exercícios de racionalização a fazer no próprio interior. Se calhar, é altura de pensar que a rede [do ensino superior] no interior cresceu de uma forma que é desadequada há real necessidade daquelas regiões. A solução tem de passar por outro tipo de alternativas, mais pensadas, mais estruturadas… Eventualmente, levando a que haja ofertas no interior diferenciadas das que existem no litoral, por forma a atrair determinado tipo de estudantes.
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Textos Marisa Macedo
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A YOUTUBER QUE SÓ PENSA EM NÚMEROS
Podemos encontrá-la no Youtube, tem 20 anos e faz vídeos divertidos sobre matemática. “Extrovertida, maluca e divertida”. É assim que se define a “MathGurl”. Entre as aulas da licenciatura de Matemática na Faculdade de Ciências da U.Porto (FCUP), Inês Guimarães dedica o seu tempo livre a produzir vídeos que combinam a diversão com números, fórmulas ou geometria. Natural da cidade que lhe dá o apelido, Guimarães, a jovem estudante da U.Porto soma mais de 66 mil subscritores e mais de 1,5 milhões de visualizações no primeiro canal de Youtube português sobre matemática: “MathGurl”. Começou a partilhar conteúdos em 2015 e, a partir deste hobby, abalançou-se noutros projectos lúdico-pedagógicos, tendo inclusivamente publicado o livro “Desafios Matemáticos que te vão Enlouquecer”. Desde os 13 anos que dedica muita da sua jovem vida à matemática. Sempre gostou mais de números, mas foi no 7.º ano do 3.º ciclo que o caso se tornou mais “sério”. “Um professor levou-me a esforçar-me mais e, no ano seguinte, comecei a participar nas Olimpíadas da Matemática”. A partir daí, a matemática tornou-se uma “paixão”. Nas férias de verão, entre o 8.º e o 9.º ano, passou o tempo a resolver problemas e contas. Atreve-se, aliás, a considerar este período como a melhor época da sua vida. Sempre gostou de ajudar os colegas a esclarecer dúvidas e chegou, inclusivamente, “dar aulas” durante o ensino secundário. Desde cedo começou a procurar mais informação e a descobrir mais sobre matemática e divulgação científica. Para Inês Guimarães, “se as pessoas vissem a matemática como uma forma
Inês Guimarães é estudante da FCUP e a autora do primeiro canal de Youtube dedicado a matemática em Portugal. Tem mais de 66 mil subscritores e os seus vídeos lúdico-pedagógicos combinam humor, irreverência e conhecimento. Aos 20 anos, já lançou um livro (com o sugestivo título “Desafios Matemáticos que te vão Enlouquecer”) e sabe bem o que quer do futuro: “Aprender o mais possível e a vida toda!”.
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de entretenimento, talvez gostassem mais”. Antes do canal de Youtube, criou a página de Facebook “Vamos todos fazer de conta que isto é divulgação matemática”. Foi assim, entre desafios, piadas e vídeos “gravados com a webcam”, que Inês Guimarães começou a comunicar a sua paixão. Do Brasil chega uma grande parte do apoio. Um professor, do canal “Matemática Rio”, descobriu o projeto quando Inês tinha pouco mais de 50 subscritores. No Brasil “já está mais instituída a utilização do Youtube para consumir ciência”, mas, no nosso país, isso ainda não acontece. “Os alunos em Portugal só estudam porque são forçados para um teste ou para a escola”. Da nomeação para “Melhor Canal de Ciência e Tecnologia” do YouFest Awards à participação numa conferência TEDx, passando pelo convite para ser oradora no Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Matemática, Inês Guimarães considera que o trabalho que tem desenvolvido lhe traz “muitas oportunidades”.
DO YOUTUBE PARA AS ESCOLAS A partir do canal “MathGurl”, Inês Guimarães tem conquistado alguns projetos fora do mundo digital. “A Raiz do Problema” dá nome a uma iniciativa que visa ajudar os estudantes do 9.º ano e do ensino secundário a saberem mais sobre matemática. O espetáculo-palestra, que junta Inês e o cantor Paulo Sousa, combina conversas e músicas compostas em conjunto sobre diferentes temas de matemática.
Por se tratar de um projeto promovido por uma empresa privada de inovação em educação, Betweien, a iniciativa não está disponível em todas as escolas. Aquelas que aderem têm o apoio das câmaras municipais, mas “os municípios não estão sensibilizados para as questões da matemática. Há muitos projetos ligados à área social ou cultural – promoção de atividades ligadas ao teatro, música ou cinema, ou que tenham um objetivo de promover a igualdade de género e o combate à violência no namoro – mas não há muito interesse pela matemática”, garante. Está incutido na sociedade que a matemática “é difícil e um pesadelo”. “O que tento fazer é juntar entretenimento e matemática. É um assunto sério, mas não tens de encarar de forma tão formal”, sublinha a youtuber.
Inês Guimarães é estudante da licenciatura de Matemática da FCUP.
Mais recentemente, Inês publicou o seu primeiro livro. “Desafios Matemáticos que te vão Enlouquecer” é uma obra “para todos, mas recomento mais a partir dos 12/13 anos”. Com uma linguagem “muito jovem, descontraída e atual”, Inês quer que os leitores se “divirtam a ler o livro e percebam que a matemática é uma área muito vasta, dinâmica e nem sempre tem de ser encarada de forma fúnebre”. A ideia é precisamente ajudar a resolver desafios matemáticos de vários tipos, abordando assim a geometria, a lógica, a aritmética e a álgebra.
“QUERO APRENDER O MAIS POSSÍVEL E A VIDA TODA!” “1,1, 1+1=2 (…)”. É desta forma que a “MathGurl” começa aquele que é o vídeo mais popular do seu canal de Youtube. Durante pouco mais de sete minutos, Inês Guimarães discorre sobre a “Sequência de Fibonacci”, somando perto de 185 mil visualizações. “Este vídeo trouxe uma grande parte dos meus seguidores. O Youtube começou a incluí -lo nos ‘recomendados’, e a verdade é que este é um dos temas mais falados no mundo da matemática”. Com temas mais simples ou mais complicados, Inês Guimarães encontra sempre uma forma de lhe dar uma nova interpretação. O modo divertido e descontraído como comunica com o público é o segredo do seu sucesso nas plataformas digitais. “O meu objetivo é motivar as pessoas a encararem a matemática de forma diferente”. E a missão cumpre-
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se quando recebe mensagens positivas dos seguidores. Para Inês, não é fácil convencer os mais jovens a gostar de matemática, principalmente porque estão formatados com a ideia preconcebida de que é “difícil”. “Eu tento passar a mensagem de que aprender coisas é ‘fixe’. É importante que os mais novos tenham um pensamento crítico. [Devemos] questionar e fazer o que nos apaixona, seja ou não a matemática.” Ainda que seja um hobby que concilia com a vida na faculdade, Inês Guimarães prepara cada conteúdo ao mínimo detalhe. Por norma, grava os vídeos durante o fim de semana, na cidade berço. As ideias surgem de forma espontânea, por sugestões dos seguidores e também pelos professores da faculdade. Muitas das vezes pedem-lhe vídeos sobre “a matéria da escola ou da faculdade”, mas também sobre divulgação científica, como a história do cálculo, o paradoxo do aniversário ou o problema de Monty Hall. A partir daí, alinha as ideias numa espécie de guião, desconstrói os conceitos e junta-lhes o humor, entusiasmo e irreverência que a caracterizam. Os pormenores, como adereços, piadas e até a agenda do dia (por exemplo, vestir o equipamento das Quinas quando a Seleção Nacional venceu os jogos no Mundial de 2018) fazem de “MathGurl” um dos canais de Youtube mais conhecidos em Portugal. “Por que razão escolhemos sempre a fila mais lenta?”, “Pedro Nunes, o Cristiano Ronaldo da Matemática”, “O Textos Marisa Macedo
número PI e as melhores PI-adas”, “As abelhas sabem matemática?” ou “Como é que o Pai Natal consegue?” são alguns dos vídeos de “MathGurl”. Sempre soube que queria estudar matemática, e as recomendações dos colegas, o espaço e o ambiente tornaram evidente a escolha da FCUP. “Aqui querem mesmo saber dos alunos! E as únicas coisas que melhorava eram o tempo e a forma como abordamos os temas. Por vezes, gostava de ver os temas explicados ao pormenor: como, o quê e por que razão vamos estudar aquele assunto”. Nos corredores da Faculdade, há muitos professores que a reconhecem. “Fico receosa do que possam pensar. Mas acho que a maioria deles gosta e até me dão sugestões!”. A finalista da licenciatura de Matemática da FCUP não sabe o que lhe reserva o futuro, mas, enquanto conseguir, “o canal de Youtube é para continuar”. Há algumas ideias que ainda tem na gaveta e que gostava de aplicar em breve: apostar em temas mais “sérios e educativos”, abordar as pessoas na rua sobre temas ligados à matemática, entrevistar professores da área, entre outras. Dentro ou fora do palco do Youtube, Inês Guimarães vai continuar a fazer o que mais gosta. “Quero aprender o mais possível e a vida toda! Quero sentir que não é conhecimento colado a saliva!”. Além dos projetos criativos que desenvolve no Youtube, Inês Guimarães gosta de caminhar e andar de bicicleta. Como livro preferido indica “O Trémulo da Carriça”, “um retrato psicológico do mundo rural português do século passado” (descrição do site Wook) escrito pelo urologista Carlos Salgado Guimarães. O apelido não é coincidência: trata-se do pai da youtuber, embora Inês garanta que o parentesco não influencia o seu gosto pela obra em causa. Na música, a predileção de Inês vai para o compositor e pianista francês Claude Debussy, bem como para as bandas sonoras. “Interstellar” (2014), de Christopher Nolan, é o seu filme de culto, enquanto Islândia e Nova Zelândia são os seus destinos turísticos de sonho. À mesa prefere sushi ou… os cozinhados da mãe. A família, gastronomia à parte, é de resto a sua grande inspiração, embora destaque também, como figura de referência, o matemático Leonhard Paul Euler. Fotos Egídio Santos
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ELETRÓNICA – UMA VISÃO DE PROJETO
Pedro Guedes de Oliveira e Dinis Magalhães Santos U.Porto Edições, 1.ª edição, Porto, julho 2018 (824 p.)
UMA COISA CHAMADA HERMENÊUTICA Ricardo Namora U.Porto Edições, 1.ª edição, Porto, julho 2018 (196 p.)
PARÁFRASE E CONCORDÂNCIA DE ALGUMAS PROFECIAS DE BANDARRA, SAPATEIRO DE TRANCOSO João Carlos Serafim (edição crítica e estudo) U.Porto Edições, 1.ª edição, Porto, agosto 2018 (319 p.)
A obra reúne conhecimentos essenciais de eletrónica para engenheiros eletrotécnicos, tanto do ponto de vista dos dispositivos como dos sistemas. Comportamento dos semicondutores, amplificadores operacionais, eletrónica digital, retroação e estabilidade, conversão digital-analógica e analógica-digital, eletrónica de potência e ruído são alguns dos temas abordados neste livro da autoria de dois reconhecidos especialistas em Engenharia Eletrotécnica: Pedro Guedes de Oliveira e Dinis Magalhães Santos. “Eletrónica – uma visão de projeto” dirige-se sobretudo a estudantes de licenciatura e mestrado, podendo funcionar como texto base a ser ministrado em três ou eventualmente quatro semestres. Como o título indica, o livro propõe uma abordagem de projeto, sendo por isso de extrema utilidade para quem, na sua vida profissional, tiver de projetar circuitos e sistemas eletrónicos com alguma complexidade.
À superfície, o termo hermenêutica é relativamente fácil de usar, uma vez que remete para capacidades gerais da espécie humana, como as de interpretar, explicar ou traduzir expressões de sentido. No entanto, o facto de o seu modo de funcionamento ser dúplice (ele inclui tanto operações gerais quanto exercícios singulares) arrasta essa consideração de senso comum para um terreno altamente problemático e, por isso mesmo, fascinante e exigente. Este ensaio aspira, assim, a radiografar historicamente esse estado latente de ambivalência entre preceitos gerais e manifestações particulares da hermenêutica. Neste pressuposto, é dada especial atenção ao modo como a história da hermenêutica (desde Hermes a Santo Agostinho, passando pelos românticos alemães e pelos grandes pensadores do século XIX, como Chladenius, Ast, Wolf e, sobretudo, Schleiermacher) supôs uma refração do campo até se chegar ao conceito estrito de “hermenêutica literária”, consubstanciada pelos diversos formalismos do século XX.
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Trata-se da primeira edição ad hoc de trovas atribuídas ao famigerado sapateiro beirão. O processo inquisitorial em que se sentenciara o silêncio do poeta e a censura dos versos ocorrera já há 62 anos, em 1541. As trovas escolhidas e comentadas e as notícias, tantas vezes mitificadas, sobre o autor e o texto – as cópias profusas, as leituras generalizadas, os exemplares divergentes, as deturpações, os acrescentos, as manipulações... – fazem com que estejamos perante uma obra fundamental para o estudo do fenómeno bandárrico. Servindo-se de um conhecimento sólido sobre a vida e a obra de D. João Castro, João Carlos Serafim aclara no estudo introdutório, por um lado, a relação dos textos com aquilo que se pode saber do enigmático prototexto e, por outro, a congeminência e as motivações que levaram a esta outra apropriação das trovas – em Paris, no final de 1603, na “clandestinidade”... – ao serviço de um sebastianismo latente, ortodoxo, antifilipino com que o autor estava comprometido e que, por estes anos, centrava as suas expectativas no pretenso rei D. Sebastião – aparecido em Veneza no verão de 1598, a sofrer, então, as agruras da previdente justiça espanhola.
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MELHOR TESE EUROPEIA HACKER MAIS VALIOSO DO MUNDO André Baptista, investigador do INESC TEC e mestre em Segurança Informática pela FCUP, foi considerado o Most Valuable Hacker (hacker mais valioso) na H1-202, a maior competição de hackers do mundo. Durante a competição, que decorreu em Washington (EUA), participantes de todo o mundo testaram a segurança do website e software da empresa Mapbox. André Baptista encontrou cinco vulnerabilidades e destacou-se pela originalidade na procura de bugs (erros de software), tendo por isso conquistado os 7.300 euros do prémio em disputa. A H1-202 foi organizada pela HackerOne, plataforma que recruta hackers para tornar a internet mais segura.
Margarida Carvalho, antiga estudante do Doutoramento em Ciência de Computadores da FCUP e investigadora do INESC TEC, foi distinguida com o EURO Doctoral Dissertation Award, prémio para as melhores teses de doutoramento europeias na área da investigação aplicada. Pela primeira vez, tão prestigiada distinção coube a um cientista português. Defendida em 2016 com o título “Computation of equilibria on integer programming games”, a tese de Margarida Carvalho cruza duas áreas científicas, a otimização combinatória e a teoria dos jogos, tendo em vista a aplicação da matemática na resolução de problemas concretos, como, por exemplo, a organização de programas de transplante de rins.
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PATOLOGISTA MAIS INFLUENTE DO MUNDO
LEÃO DE OURO PARA SOUTO DE MOURA
Fátima Carneiro, Professora Catedrática da FMUP e diretora do Serviço de Anatomia Patologia do Centro Hospitalar São João, foi considerada a “patologista mais influente do mundo” pela reputada revista científica The Pathologist. Os 100 patologistas de todo o mundo consultados pela revista destacaram, não só as qualidades clínicas e científicas de Fátima Carneiro na sua área de especialidade, mas também a capacidade de liderança desta investigadora do Ipatimup/i3S. Licenciada em Medicina pela FMUP em 1978, Fátima Carneiro é autora de mais de 250 artigos científicos, sendo particularmente relevantes as suas investigações sobre o cancro gástrico. Foi presidente da Sociedade Europeia de Patologia (2011-2013) e, em Portugal, coordenou a Rede Nacional de Bancos de Tumores (2008).
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Eduardo Souto de Moura, professor catedrático convidado da FAUP, foi premiado na 16.ª Bienal de Arquitetura de Veneza com o Leão de Ouro, que distingue o melhor participante na exposição internacional do evento. O arquiteto portuense concorreu em Veneza com o projeto de recuperação da Herdade de São Lourenço do Barrocal, nos arredores de Reguengos de Monsaraz, que foi reconvertida num hotel de luxo. Nesta edição da Bienal de Veneza, o vencedor do prémio Pritzker 2011 participou ainda na exposição que representava Portugal no evento: Public Without Rhetoric, com curadoria de Nuno Brandão Costa e Sérgio Mah.
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Teresa Lago foi eleita secretária-geral da União Astronómica Internacional (UAI), a maior organização de astronomia do mundo. Para o mandato que termina em agosto de 2021, a antiga docente da FCUP e fundadora do CAUP – Centro de Astrofísica da U.Porto promete promover a inclusão, não só de género, mas de diferentes culturas no seio da UAI. Teresa Lago terá também a responsabilidade de liderar as comemorações dos 100 anos da organização, em 2019. Doutorada em Astronomia pela Universidade de Sussex, no Reino Unido, Teresa Lago desenvolveu muita da sua atividade docente e científica na U.Porto. Hoje, é considerada uma figura de referência mundial nos domínios da astronomia moderna e da astrofísica.
O jardim suspenso GRANDEZA E MISÉRIAS DO “BOTÂNICO DO PORTO” Se em diversos capítulos da história da U.Porto encontramos projetos esquecidos, planos alterados, intenções fortes que embatem com a realidade dos (curtos) financiamentos e com a inconstância das decisões políticas, é talvez no Jardim Botânico do Porto que encontramos uma das mais amplas ilustrações de um destes convolutos processos. Em 2018, decorre meio século da abertura ao público do jardim botânico que se criou no Campo Alegre: boa altura para revermos uma história onde se encontra, de um lado, a forte vontade dos seus promotores; do outro, as vicissitudes dos acontecimentos, geralmente com direções opostas.
O Jardim Botânico do Porto é uma das propriedades mais distintas da Universidade, parcialmente instalada na zona do Campo Alegre, onde à sofisticação da antiga burguesia comercial e industrial que ocupou com as suas espaçadas casas, jardins e quintas de recreio este planalto sobranceiro ao Douro se sucedeu a atividade da instituição universitária pública, atraindo diariamente milhares de pessoas a faculdades e centros de investigação. O jardim botânico que hoje podemos visitar é, em grande parte, resultado da persistência do médico e naturalista Américo Pires de Lima (1886-1966). Mas, até lá, entre longas germinações e desastrados transplantes, já muito sucedera: o seu antecessor, o primeiro jardim botânico, o da Academia Politécnica, também não tivera vida fácil. Embora, na vaga das reformas setembristas, a sua criação estivesse prevista no próprio diploma fundador da Academia (1837), e até mesmo antes, num decreto emitido apenas 14 dias após a revolução de 36 – bom exemplo da hiperatividade legislativa de Passos Manuel –, não passará verdadeiramente do papel senão em 1865.
NA CERCA DO CONVENTO Na história da sua criação, também nos aparece outra pessoa providencial: Francisco de Salles Cardoso, capitão da marinha seduzido pelo ensino politécnico, onde, após nove anos de carreira, ascende em 1859 a regente da 10.º cadeira da Academia (que incluía a Botânica) e logo, por inerência, a diretor do ainda então inexistente Jardim Botânico. Nem todo o mérito será seu. É verdade que, antes, fora preciso encontrar terreno e fundos para a construção. O terreno, clamavam os académicos desde 1837, queriam um que havia ali bem pertinho da Politécnica e da Escola Médico-Cirúrgica, na cerca do Convento dos Carmelitas. E conseguiram-no, mas não rapidamente: o terreno deste convento vítima da lei de extinção das
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ordens religiosas regulares de 1834 e desde então ocupado pela Guarda Nacional do Porto (e, após a dissolução desta em 1847, pela Guarda Municipal) só será efetivamente dividido entre a Academia, a Escola Médico-Cirúrgica, a Guarda Municipal e a Ordem Terceira do Carmo bastante depois: apenas em 1952, momento em que é concedida a posse administrativa do terreno às diversas instituições. Agora só faltava o dinheiro. Passados cinco anos, é finalmente atribuído um orçamento para permitir o arranque da instalação do jardim. Segue-se um período de alguma desorientação, uma vez que o antecessor de Salles Cardoso na regência da cadeira de Botânica, o barão de Castelo de Paiva, autor dos primeiros planos de implantação do Jardim Botânico, está frequentemente ausente. Em 1855, sofrendo de problemas respiratórios para os quais lhe aconselham tratamento nas ilhas, muda-se definitivamente para a Madeira, a partir da qual terá a felicidade de, observando e catalogando a flora e fauna da Macaronésia, acrescentar as suas descobertas às do numeroso grupo de cientistas oitocentistas que tentava dar sentido à diversidade das formas de vida. Interessante personagem, a de Castelo de Paiva: liberal exilado, médico, naturalista, literato, benfeitor, morrerá da mesma afeção a que dedicou a sua tese de doutoramento: a tuberculose.
O CABO DOS TRABALHOS Mas Castelo de Paiva, como dissemos, está ausente, e Salles Cardoso, até 1859, é só seu substituto. Parece que João Batista Ribeiro, diretor da Academia Politécnica desde a sua fundação, e que se eterniza no cargo mesmo para além da sua jubilação (1853), terá querido tomar em mãos próprias a construção do jardim, executando a obra planeada por Castelo de Paiva sem ouvir o diretor interino. Como infeliz resultado, executam-se algumas obras inconsequentes e desperdiça-se dinheiro. Talvez pelo mesmo
Textos Paulo Gusmão Guedes
Fotos Egídio Santos / Jardim Botânico do Porto
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À direita, a fachada principal da Galeria da Biodiversidade (antiga Casa Andresen); em baixo à direita, o zimbório do edifício; em baixo, vista aérea do Jardim dos Jotas e da estufa desértica e tropical desenhada por Franz Koepp.
Família Andresen, onde se inclui o patriarca João Henrique Andresen e a sua filha, a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, cuja obra contém várias referências ao que é hoje o Jardim Botânico do Porto.
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motivo, Francisco Salles – que refere em 1861 o estado de abandono do jardim –, parece ter tido alguma dificuldade em assumir a sua plena direção, só o conseguindo em 1864 e iniciando então as obras finais de infraestruturação (reconstituição de muros, movimentação de terras, divisões de terrenos, etc.) que permitirão o início do cultivo de plantas no final do ano seguinte e o seu enriquecimento em espécies nos anos posteriores: aquisições, recolhas locais, ofertas de horticultores e do Jardim Botânico da Ajuda. A planta do jardim que foi executada já não é a de Castelo de Paiva, mas uma revisão: pretende-se, naquele terreno apertado, constituir um “recinto onde dispostos segundo uma ordem natural se encontrem no máximo número os tipos de géneros das famílias naturais para o estudo da Fitografia”(1), ou seja, para permitir o estudo dos tipos, das espécies e da morfologia externa dos vegetais. Mas também se pensa que pelo menos uma parte do jardim será dedicada ao livre gozo do público. Nos anos 70, o Jardim Botânico está consolidado e é assim descrito pelo seu 1.º oficial, Joaquim Casimiro Barbosa:“Atualmente está o jardim dividido em quatro socalcos. O primeiro, em frente da praça Duque de Beja [atual jardim do Carregal], forma um pequeno jardim de recreio, com grupos de plantas sem ordem científica. No segundo, vedado com grades de ferro, está estabelecida a escola metódica, segundo o método de De Candolle. O terceiro constitui um pequeno arboretum com árvores e arbustos de por-
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tes diversos, dispostos sem ordem científica. As coníferas encontram-se no quarto socalco, onde, pela parte posterior, há uma pequena feteira com fetos indígenas e alguns exóticos de ar livre. Por baixo deste socalco há também um pequeno pântano, destinado à cultura de plantas próprias destes terrenos. Contém hoje 1300 espécies vegetais, distribuídas por 138 famílias naturais.”(2) O pequeno jardim vivia! Certamente cumprindo a sua função de apoiar a formação em Botânica, mas também já apertado pelos estrangulamentos orçamentais que impediam a conclusão de obras, a contratação de pessoal, a manutenção. Enfim, nada fora do vulgar, também nos nossos tempos. Mas registam-se referências elogiosas ao espólio natural deste jardim e ao seu estado de conservação.
MORTE ANUNCIADA Jardim dos Catos e Suculentas.
No final dos anos 90, na sequência de empréstimos contraídos para finalizar as obras no edifício da Academia, o Governo ganha o direito a alienar o terreno caso existisse conveniência para os interesses do Estado. Francisco Salles (feliz ou infelizmente) não tem conhecimento do negócio, uma vez que morrera em 1891. A Espada de Dâmocles cairá rapidamente: em 1903, a mesma Guarda Municipal que impedira a sublevação republicana de 1890 outorga-se mais espaço e ocupa o Jardim Botânico da Academia Politécnica do Porto. É o seu fim. Ensaia-se um transplante de espécies para o jardim da Cordoaria e rapidamente se abandona a ideia. É mesmo o fim. E o tempo passa: também chega ao fim a monarquia e depois a primeira república – não sem, entretanto, ser criada em 1911 a U.Porto e, dez anos depois, o Instituto de Investigação Científica de Botânica, de onde sairá o próximo combatente, que tinha nove anos quando o jardim da Politécnica se transformou nas hortas, cavalariças e picadeiro da Guarda Municipal: Américo Pires de Lima.
Textos Paulo Gusmão Guedes
Fotos Egídio Santos / Jardim Botânico do Porto
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Áreas a retirar ao Jardim Botânico pela execução dos acessos à Ponte da Arrábida (CMP, DSUOGU). A solução a azul implicava uma entrada direta na cidade a partir da ponte e seria particularmente danosa para a frente do Jardim Botânico, mas já representava uma solução obsoleta. A vermelho, o traçado corresponde muito aproximadamente ao que foi construído. Repositório da U.Porto, Arquivo Digital: www.repositorio.up.pt.
À direita, duas fotos da fachada sul da Casa Andresen, sendo a imagem cimeira referente à atual Galeria da Biodiversidade e ao Jardim do Roseiral; em baixo, o núcleo das palmeiras.
Planta do Jardim Botânico da Academia Politécnica do Porto (de Francisco Salles Cardoso, retirado de Decima Cadeira da Academia Polytechnica e Jardim Botanico. Livro 1.º 1868-1883). Cortesia de Ana Catarina Antunes.
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NA QUINTA DOS ANDRESEN – VIRTUDES E PROBLEMAS Para Pires de Lima, diretor do Instituto de Botânica que de tal forma fora marcado pelo trabalho de Gonçalo Sampaio que o seu nome lhe será apenso em 1935 (Instituto de Botânica Dr. Gonçalo Sampaio), a criação de um jardim botânico será um desígnio de vida. Depois da consideração de outras possibilidades, como o Palácio de Cristal, a sua escolha recairá sobre a Quinta do Campo Alegre, propriedade da família Andresen colocada à venda em 1937, após a morte da idosa ocupante da casa, Joana Andresen. A extensa propriedade permitiria, argumentava Pires de Lima, a instalação não só de um jardim botânico, mas de campos de jogos, e mesmo dos observatórios astronómico e meteorológico. Na casa, poderia acomodar-se o museu de história natural, libertando o edifício central. Jardins e arvoredos formavam “um núcleo excelente, que apenas era necessário completar e organizar cientificamente”. Efetivamente, os seus ocupantes anteriores, João da Silva Monteiro e, depois, João Henrique e Joana Andresen, elementos de destaque entre a burguesia comercial e industrial do Porto do entardecer do séc. XIX, tinham povoado a quinta e os jardins com diversas espécies e cultivado variadas plantas exóticas nas estufas. Com pareceres favoráveis de altas instâncias, as coisas parecem inicialmente bem encaminhadas, mas afinal o processo demorará longos anos. É que o território do Campo Alegre também interessava a outros. Era a zona escolhida para receber uma nova ponte sobre o Douro, que desembocaria em território de caráter monumental, moderno centro urbano do Porto ou “centro cívico”, como pretende o arquiteto italiano Giovanni Muzio que, a partir de 1940, trabalha com a autarquia para desenvolver um plano urbanístico que incide em particular nesta área. Ora, a concretização do plano de Muzio implicaria a impossibilidade de
Para saber mais O livro “Jardim Botânico do Porto, 150 anos de Culto pelas Plantas”, de Teresa Andresen e Ana Catarina Antunes, editado este ano na coleção “Arte e Ciência” do Museu de História Natural e da Ciência da U.Porto, reúne muita da informação disponível a este respeito. Pilhámo-lo liberalmente para a escrita deste artigo, e todas as notas a ele se referem. Para quem quiser conhecer em detalhe as alterações (e as ideias a elas subjacentes) do território onde o Jardim Botânico hoje se implanta, recomendamos: Ramos, Sílvia Cristina Teixeira (2017), Campo Alegre Cidade: da sua longa metamorfose. Tese de Doutoramento em Arquitetura: Teoria, Projeto, História pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Referência em https://repositorio-aberto.up.pt/ handle/10216/110376
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a Universidade aí se estabelecer. Não surpreende, então, a lentidão das decisões administrativas. Espera-se para se saber como será. Mas, afinal, os projetos de urbanização serão abandonados e em 1949 a propriedade será adquirida pelo Estado, sendo dada a sua posse definitiva à U.Porto no início do ano seguinte. Havia luz verde, mas um grande problema se mantinha – como seria a propriedade afetada pelas vias de acesso à ponte, cuja construção era certa? Pires de Lima tem, para já, outros problemas para resolver, uma vez que doze anos de abandono tinham alterado muito o perfil da quinta: tinha sido retirado “tudo quanto era portátil e representava valor, incluindo arbustos preciosos e outras espécies existentes no jardim”(3); sem vigilância, a quinta era alvo de pilhagem pela vizinhança, as estufas estavam destruídas, as instalações de abastecimento de água inutilizadas. Quinta, jardins e estufas estavam transformados em matagal, com o palacete em também lastimoso estado após o ciclone de 1941: janelas partidas, chuva no seu interior. A este, acresciam os habituais problemas: escassez do orçamento, falta de pessoal. O orçamento, para já, só dava para a contratação de um guarda-jardineiro, por isso recorre-se ao trabalho de internados na Tutoria da Infância para a limpeza do terreno. Espera-se a intervenção da Direção dos Edifícios Nacionais para recuperar o palacete. Faz-se o que se pode. Perto do final de 1951, é oficializada a criação do Jardim Botânico e dotado o quadro do Instituto de Botânica com pessoal destinado ao Jardim. Extraordinariamente, é autorizada a contratação de pessoal técnico extraquadro “nacional ou estrangeiro”. E técnicos serão contratados logo em 1952, com destaque para o arquiteto paisagista alemão Karl Franz Koepp. Os quinze anos em que exercerá a sua atividade deixarão marca no jardim, elaborando e concretizando, em cooperação com Pires de Lima, um plano que dá a forma básiTextos Paulo Gusmão Guedes
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Jardim do Xisto, desenhado por Franz Koepp.
ca ao jardim que hoje conhecemos. Algum financiamento parece existir: as obras no palacete permitem a transferência do Instituto de Botânica em 1953, constroem-se estufas, conservam-se e adaptam-se os jardins envolventes da casa, que são enriquecidos com novas espécies, criam-se jardins de raiz, levantam-se e recuperam-se muros. Entretanto, no sul da propriedade, na zona de pinhal, tinham-se também iniciado em 1950 os trabalhos de construção do estádio universitário. São suspensos em 53: os acessos à ponte da Arrábida, que voltavam à ordem do dia, ainda indefinidos, eram o motivo.
EPÍLOGO
Notas
A UM TIRO DA PONTE Desaparecida a ideia do “centro cívico”, as vias de acesso à ponte ganham nos planos de urbanização dos anos 50 e 60 a importância primordial de eixos de distribuição do tráfego rápido – seja regional, seja de acesso à cidade. E o traçado escolhido para a via serpenteava entre o Jardim Botânico e o estádio universitário, dividindo o terreno e obrigando a medidas de minimização do seu impacto, entre as quais a construção de vedações e a sustentação de taludes. Poderia, apesar de tudo, ter sido pior. Como medida de compensação pelo terreno perdido, atribui-se a quinta Burmester ao Jardim Botânico, pelo que parece ser possível sonhar com a união destes jardins que se abriam para a rua do Campo Alegre (Andresen e Burmester), derrubando os antigos muros e condenando a travessa de Entrecampos, que separava as propriedades. Passado mais de meio século, podemos continuar a sonhar o mesmo. O Jardim Botânico do Porto abrirá ao público em 1968, 18 anos após entrar na posse da Universidade – processo tão longo talvez não autorizasse uma inauguração formal de que, aliás, não temos registo. Entretanto, a Pires de Lima, falecido em 1966, suceder53
-se-ão na direção primeiro Manuel Joaquim Ferreira e depois Arnaldo Rozeira. Karl Franz Koepp sairá em 1967, aparentemente insatisfeito com as suas condições contratuais, sendo substituído por Renato Dantas Barreto, que continuará a executar os planos definidos pela dupla Pires de Lima/Koepp.
1, Andresen, Teresa e Antunes, Ana Catarina (2018), Jardim Botânico do Porto, 150 Anos de Culto pelas Plantas, col. Arte e Ciência, ed. Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, p.35. 2, Idem, p.38. 3, Idem, p.210. 4, Idem, pp.189-190.
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A história do Jardim Botânico do Porto, obviamente, chega aos nossos dias (e outras vicissitudes sofreu que aqui não se contam), mas relendo a conceção de Pires de Lima para este espaço, é talvez possível dizer que objetivos de agora e de então não são muito diferentes. Pires de Lima sonhava com um jardim com função educativa – para a formação universitária, para os estudantes dos ciclos básicos e secundário, para o público em geral. Percebia que a existência de um jardim botânico era uma marca do nível de desenvolvimento cultural de uma cidade e que era necessário preservar grandes espaços naturais face à densificação da construção, o que constituía um imperativo da “higiene citadina”. Mas também estava ciente de que, na sua paixão pela construção deste espaço verde, se encontrava em contra corrente face às tendências da investigação sua contemporânea: nas suas palavras, “os progressos vertiginosos da Química levaram os médicos a abandonar os produtos naturais, para utilizar, de preferência, os medicamentos obtidos por síntese. O pêndulo oscilou exageradamente para o extremo oposto. Numerosas plantas medicinais, altamente gabadas pelos nossos antepassados, foram paulatinamente abandonadas como inúteis. Há muitos anos que no meu espírito se levantou a convicção de cada vez mais arreigada, de que o abandono sistemático, indiscriminado e não justificado cientificamente, de muitos produtos vegetais constituiu um erro grave, que deve ser corrigido”(4).
Selfie.com O que faltou na U.Porto no ano passado e o que condições devem ser melhoradas em 2019?
Ana Lúcia Vieira
Rafaela Rafael
Ciências do Meio Aquático (ICBAS)
Medicina Veterinária (ICBAS)
Ana Raquel Sousa
João Soares
Ciências do Meio Aquático (ICBAS)
Medicina Veterinária (ICBAS)
No ano que passou havia pouco espaço na cantina. Principalmente no primeiro semestre, quando vinham os estudantes de Bioengenharia ter aulas no ICBAS. (Ana Lúcia)
Sobretudo o calendário escolar. Devia ser mais apropriado para as necessidades de cada faculdade, porque pode levar a uma sobrecarga excessiva para os estudantes, na época de exames. Também o estado de manutenção dos edifícios precisa de muita melhoria. (João Soares e Rafaela Rafael)
A biblioteca é demasiado pequena para duas faculdades juntas (o ICBAS e a FFUP). Acho que deviam fazer mais espaços de estudo, porque a biblioteca enche rapidamente. (Ana Raquel)
Lara Lopes
Domingos Deque
Ciências da Comunicação (FLUP/FEUP/FBAUP/FEP)
Física e Química em Contexto Escolar (FCUP/FEUP)
Está a precisar de algumas obras. Já vi pessoas a caírem aqui [FLUP] e é perigoso. Além disso, podiam ser feitas mais atividades para a integração dos alunos de mobilidade. Tenho reparado que, se não forem os grupos académicos, a própria faculdade não tem mecanismos para o fazer.
O que eu gostaria que melhorasse era a unificação da Universidade. Eu frequento um curso que é lecionado em duas faculdades: Ciências e Engenharia. A grande dificuldade que se vive é a questão da mobilidade. No final do semestre, o balanço é muito dispendioso.
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Textos Filipe Santiago
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