Campus U.Porto #0

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ENTREVISTA

ALUMNI

FORA DA CAIXA

No recém-inaugurado i3S, Alexandre Quintanilha (na capa) conta-nos como se está a sentir (bem) na pele de deputado.

O coreógrafo do momento, Victor Hugo Pontes, explica o seu percurso das belas artes às artes performativas.

Fomos conhecer a Veniam, uma das startups mais inovadoras do mundo e cujo potencial tem despertado o interesse das grandes capitais de risco.

CIÊNCIA & TECNOLOGIA

CULTURA

Procuramos desvendar um pouco do complexo mundo da genética, a partir das investigações desenvolvidas pelo grupo de José Bessa, do i3S.

Mostramos como se desenha o futuro roteiro científico da U.Porto, desde o novo Museu de História Natural e da Ciência ao Aquário da Foz.

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ENTREVISTA

ALUMNI

FORA DA CAIXA

No recém-inaugurado i3S, Alexandre Quintanilha (na capa) conta-nos como se está a sentir bem na pele de deputado.

O coreografo do momento, Victor Hugo Pontes, explica o seu percurso das belas artes às artes performativas.

Fomos conhecer a Veniam, uma das startups mais inovadoras do mundo e cujo potencial tem despertado o interesse das grandes capitais de risco.

CIÊNCIA & TECNOLOGIA

CULTURA

Procuramos desvendar um pouco do complexo mundo da genética, a partir das investigações desenvolvidas pelo grupo de José Bessa, do i3S.

Mostramos como se desenha o futuro roteiro científico da U.Porto, desde o novo Museu de História Natural e da Ciência ao Aquário da Foz.

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Campus U.Porto Revista da Universidade do Porto Nº 0

DIRETOR Sebastião Feyo de Azevedo EDIÇÃO E PROPRIEDADE Universidade do Porto Serviço de Comunicação e Imagem Praça Gomes Teixeira • 4099-345 Porto Tel: 220408210 ci@reit.up.pt COORDENAÇÃO EDITORIAL Ricardo Miguel Gomes REDAÇÃO Anabela Santos Paulo Gusmão Guedes Ricardo Miguel Gomes Tiago Reis APOIO MULTIMÉDIA TVU FOTOGRAFIA Egídio Santos DESIGN Rui Guimarães IMPRESSÃO Multiponto, S.A. DEPÓSITO LEGAL 419085/16

WHAT’S UP 04 NOTÍCIAS SOBRE A COMUNIDADE ACADÉMICA ALUMNI 08 VICTOR HUGO PONTES PORTFÓLIO 12 INAUGURAÇÃO DO I3S CIÊNCIA & TECNOLOGIA 18 INVESTIGAÇÃO GENÉTICA PELO GRUPO DE JOSÉ BESSA DESPORTO 22 CAMPEONATO DE FLOORBALL FORA DA CAIXA 24 VENIAM CULTURA 28 FUTURO ROTEIRO CIENTÍFICO DA U.PORTO ENTREVISTA 32 ALEXANDRE QUINTANILHA MUNDUS 38 MARZIA BRUNO TALENTO 42 DISTINÇÕES A MEMBROS DA COMUNIDADE ACADÉMICA MEMÓRIA 44 RUAS QUE HOMENAGEIAM A U.PORTO QUADRO DE HONRA 50 PROJETO “PORTO COM + SAÚDE” SUB-35 52 JOANA MOSCOSO LIVROS 55 NOVAS PUBLICAÇÕES DA U.PORTO EDIÇÕES


«Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”, escreveu Camões. O verso aplica-se a quase tudo na vida e também às instituições, que, por muitos méritos que revelem, devem saber reinventar-se ciclicamente. A U.Porto tem procurado ser uma instituição aberta à mudança, não deixando de preservar o que entende ser primordial e estruturante. Foi balançando entre o desejo de mudança e o respeito pelo passado que a U.Porto avançou para a renovação da revista Alumni U.Porto. Assim nasceu a Campus U.Porto, uma revista dirigida já não especialmente aos antigos estudantes, mas a toda a comunidade académica (estudantes, alumni, colaboradores, docentes e investigadores) e a públicos externos. Para além desta maior abrangência de públicos, queremos com a Campus U.Porto melhorar a qualidade dos conteúdos e do design da nossa revista, bem como aproveitar mais proficuamente as potencialidades do on-line. A Campus U.Porto apresenta um design atrativo, tem novas rubricas e mais páginas do que a anterior revista. Tudo isto resgatando o que de melhor teve a Alumni U.Porto e, naturalmente, sem deixar de dar uma grande atenção aos nossos antigos estudantes e de procurar reforçar a sua ligação à Universidade.

Uma das mudanças mais notórias desta nova revista é o seu modelo de distribuição. A Campus U.Porto é enviada para os endereços de correio eletrónico dos membros da nossa comunidade académica, sendo o on-line a sua forma de distribuição principal. Contudo, a edição impressa está disponível na Reitoria, nas faculdades, nos centros de I&D e em outros espaços da Universidade. A revista em papel pode também ser pedida ao Serviço de Comunicação e Imagem da Reitoria, através dos contactos disponíveis na ficha técnica da Campus U.Porto. Designámos esta nova revista de Campus U.Porto com o intuito de transmitir uma ideia de comunidade, de pertença, de partilha. O campus universitário é o espaço (físico e mental) de interação entre os membros da nossa comunidade académica. Aquele em que, para lá da aquisição e aplicação de competências técnico-científicas, se gera uma dinâmica de convivência sociocultural que é determinante para o desenvolvimento de um sentimento de pertença à Universidade e de identificação entre os membros da comunidade académica. Por aqui se percebe que é nossa intenção que a Campus U.Porto contribua para que a Universidade seja, cada vez mais, um território de socialização, intervenção cívica e crescimento intelectual. Atribuímos à presente edição o número zero, de forma a vincar a ideia de que se trata, antes de mais, da apresentação da nova revista à comunidade académica e à sociedade em geral. No entanto, não descorámos a qualidade e atualidade dos conteúdos. Podemos ler neste número o perfil artístico do nosso alumnus Victor Hugo Pontes, conhecer mais detalhes do roteiro museológico que a Universidade se prepara para concluir, saber como está a correr a experiência política do Prof. Alexandre Quintanilha, perceber as razões do sucesso da Veniam, compreender a investigação genética do grupo do Prof. José Bessa ou atentar no espírito solidário dos estudantes de Ciências Farmacêuticas, entre outras matérias de interesse. Esperando que aprecie a sua nova revista, desejo-lhe umas Boas Festas e um venturoso ano de 2017.

Sebastião Feyo de Azevedo Reitor da Universidade do Porto


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RECEÇÃO DOS NOVOS ESTUDANTES A sessão de receção dos novos estudantes 2016/2017 conheceu uma boa adesão, enchendo praticamente a Praça Gomes Teixeira. Pelo 2.º ano consecutivo, as principais instituições portuenses associaramse à U.Porto para proporcionar aos novos estudantes a entrada gratuita em 16 espaços culturais, como a Fundação de Serralves, a Casa da Música e a Torre dos Clérigos. Nos seus discursos de boas-vindas, o reitor Feyo de Azevedo alertou para os excessos da praxe e o presidente da autarquia, Rui Moreira, lembrou que a U.Porto é a mais importante instituição da cidade.

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what’s up

Fotos Egídio Santos

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A Praça Gomes Teixeira foi também a sala de visitas da U.Porto na receção dos estudantes internacionais. Para além da apresentação dos diferentes serviços da Universidade e da habitual mensagem de boas-vindas do Reitor, os estudantes tiveram a oportunidade de conviver durante um lanche preparado para o efeito. Só no primeiro semestre deste ano letivo, 1.319 estudantes de 88 países diferentes ingressaram na U.Porto ao abrigo de programas de mobilidade internacional. Chegaram de países tão longínquos como o Cazaquistão, a China, o Chile, o Egito ou o Vietname, embora o Brasil (409 estudantes), a Espanha (161), a Itália (127), a Alemanha (70) e a Polónia (63) continuem a ser as nações mais representadas.

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Uma Universidade em crescimento: novos espaços, novos equipamentos para novos estudantes vindos de todo o mundo, celebrações, tanta coisa a acontecer! No concurso de acesso ao ensino superior, a U.Porto teve quase o dobro dos candidatos para as vagas disponíveis. Acresce que a U.Porto continua a ser, globalmente, a universidade com as mais altas médias de entrada no ensino superior. São da U.Porto quatro dos seis cursos com as mais elevadas classificações do concurso de acesso.

7,736 (candidatos) O Pavilhão Prof. Dr. Galvão Teles foi profundamente remodelado e está já ao dispor da comunidade académica e da cidade, depois da reabertura oficial a 20 de setembro, Dia Internacional do Desporto Universitário. Integrado no histórico complexo do Estádio Universitário, o pavilhão dispõe de 1.910 m2 destinados à prática de várias modalidades desportivas. Concluídas as negociações que permitiram reverter a posse do Estádio Universitário para a U.Porto, em 2013, foi possível avançar com a requalificação do pavilhão inaugurado em 1968. Requalificação, essa, que vem ao encontro de um dos grandes objetivos da Universidade, que é dispor de boas instalações desportivas nos três polos do seu campus: Campo Alegre, Baixa e Asprela.

A Universidade foi a primeira escolha para 7.736 candidatos, o que representa uma média de 1,9 candidatos para cada uma das 4.160 vagas disponíveis.

4,131 (estudantes colocados)

Foram colocados 4.131 estudantes, preenchendo-se assim 99,3% das vagas.

what’s up

São de 129 países os cerca de 3,400 estudantes estrangeiros que escolheram a U.Porto.

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NOVO LABORATÓRIO DE APOIO À INDÚSTRIA A FEUP, o INESC TEC e o INEGI criaram um novo laboratório de apoio à indústria transformadora. Chama-se FABTEC – Laboratório de Processos e Tecnologias para Sistemas Avançados de Produção e o seu principal propósito é apresentar soluções inovadoras às empresas, através de um processo de experimentação em learning-factory.

DOURO VINHATEIRO EM EXPOSIÇÃO NO GOOGLE A U.Porto regressou ao Google Cultural Institute – agora denominado de Google Arts & Culture – com mais um projeto que revisita o património cultural português. Desta feita, o cenário é o Alto Douro Vinhateiro e o tema “Sabrosa: Território e Património”. Trata-se de uma exposição virtual (bilingue) alojada na plataforma do Google (https://www.google.com/culturalinstitute/ beta/u/0/exhibit/7QKi4Qlq79p_LA), que resulta de um projeto desenvolvido no âmbito do mestrado em História da Arte Portuguesa da FLUP. O “sortilégio de encostas e socalcos, de vinhedos e olivais, de rios e fragas” do Alto Douro Vinhateiro “está notavelmente retratado nesta exposição virtual”, sublinhou o reitor Feyo de Azevedo na inauguração de “Sabrosa: Território e Património”.

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Com a massa crítica, a experiência industrial, o conhecimento especializado e as competências multidisciplinares das três instituições da área da engenharia, o FABTEC espera ajudar o tecido industrial a reforçar o seu perfil tecnológico e a sua intensidade de inovação.


O artista que quer tudo ou um pouco mais VICTOR HUGO PONTES

É ator, bailarino, coreógrafo, encenador, realizador, cenógrafo, assistente de encenação e tudo. Uma espécie de artista renascentista que, em permanente frenesim criativo, reparte o seu talento por várias disciplinas performativas, tendo como matriz as belas-artes. Victor Hugo Pontes não tem parança. O seu génio é sublimado (e suado) pela vertigem do trabalho. Muito trabalho. Tal como Cristiano Ronaldo, que pôs a dançar num anúncio publicitário e com cujo perfecionismo se identifica. Para muitos será difícil conceber que Victor Hugo Pontes, cujo trabalho artístico facilmente associamos a sofisticação e cosmopolitismo, tenha tido a sua primeira experiência na dança num rancho folclórico, quando era ainda criança. Mas, preconceitos à parte, a verdade é que, como diz aquele que é um dos mais importantes corégrafos portugueses da atualidade, o rancho “era uma das formas possíveis de fazer dança”. Designadamente em Guimarães, onde nasceu em 1978, e que, na década de 1980, era ainda uma cidade longe de ambicionar ser capital europeia da cultura. “Eu gostava de dançar e fazer ballet era praticamente impossível. Financeiramente não era de todo possível. E também não me sentia capaz de fazer ballet numa cidade um bocadinho fechada, em que seria o único rapaz no meio das raparigas”. Mas foi nessa Guimarães ainda conservadora e sem o viço cultural de hoje que Victor Hugo Pontes descobriu o teatro. E logo pela mão experiente de Moncho Rodriguez, encenador galego que cresceu no Brasil mas tem desenvolvido a sua carreira em Portugal, dirigindo várias companhias importantes, como o TEP. O pai de Victor Hugo Pontes teve, na altura, um gesto verdadeiramente providencial, ao entregar ao filho adolescente um folhe-

to anunciando um curso de teatro orientado por Moncho Rodriguez. “’Isto é para ti’, disse-me ele. E sem dúvida que aquilo era para mim. Ele nem sabia o que me estava a dar! E hoje já não se lembra desta história”, recorda, divertido, Victor Hugo Pontes. O curso era ministrado na recém-criada ODIT – Oficina de Dramaturgia e Interpretação Teatral, atual Teatro Oficina, e consumiu os tempos livres de Victor Hugo Pontes, então estudante de Arte no ensino secundário. “A certa altura, eu já anda lá das seis da tarde à meia-noite e também aos sábados e domingos. O curso era muito exigente e funcionava como uma espécie de companhia”. Os primeiros espetáculos em que Victor Hugo Pontes participou tiveram lugar em espaços alternativos, como antigas fábricas, seguindo o conceito site-specific. Tratava-se de performances que fugiam aos cânones do teatro, ao ponto de deixarem o imberbe Victor Hugo Pontes um pouco confuso. “Era dos mais novos, e quando nos punham a improvisar, confesso que, na maior parte das vezes, não sabia o que estava a fazer. Fazia igual ao que os outros estavam a fazer, para que ninguém percebesse”. Victor Hugo Pontes colaborou com o ODIT até sair de Guimarães e chegou a andar em digressão com a companhia durante três meses, no Brasil.

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Fotos Egídio Santos

Texto Ricardo Miguel Gomes

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“PORQUE QUERO TUDO, OU UM POUCO MAIS, SE PUDER SER, OU ATÉ SE NÃO PUDER SER” Álvaro de Campos


A IMPORTÂNCIA DAS BELAS ARTES Por esta altura, o que era um deslumbramento juvenil pela arte tornou-se vocação consciente. Mas instalou-se a dúvida quanto à disciplina artística. “Não sabia se queria Pintura, Escultura, Design… Queria Belas-Artes. Um bocadinho de cada”. E havia ainda a atração pela fotografia, “uma coisa que me dava muito prazer”, e, claro, o fascínio pelo teatro. Vivia então um dilema pessoano: “quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser”. A solução encontrada foi frequentar, em simultâneo, o curso de Teatro do Balleteatro Escola Profissional e o curso de Pintura da Faculdade de Belas Artes da U.Porto (FBAUP), o que o obrigou a mudar-se para a Invicta. “Achei que era o melhor dos dois mundos. Fui fazer os dois cursos, adiando por mais algum tempo a decisão [sobre o futuro profissional]”. A escolha da FBAUP fez-se por acreditar que “a escola tinha os melhores professores” e “era mais reconhecida do que a [homóloga] de Lisboa”. Mas, já depois de um período de mobilidade Erasmus na Norwich School of Art and Design, em Inglaterra, durante o 4.º ano, Victor Hugo Pontes percebeu que a Pintura não era a sua expressão artística de eleição. “Dei-me conta de que pintar é um ato extremamente solitário, eu e a tela”. Ora, “eu gosto imenso de falar e estar envolvido com outras pessoas, e de envolver o meu próprio corpo”. Considerando o percurso posterior de Victor Hugo Pontes na dança e no teatro, sobretudo, poderia pensar-se que o curso de Pintura teve pouco impacto na sua carreira artística. Nada de mais errado: “A formação que tive nas Belas Artes foi extremamente importante. Às vezes estou a começar um trabalho e tenho imagens que me lembram coisas que me diziam os meus professores de Pintura. Faço muitas analogias com as artes plásticas. Mesmo a explicar aos bailarinos, o meu léxico é muitas vezes do universo das artes plásticas”. Aliás, nos espetáculos procura “trabalhar a luz como um diretor de fotografia”, devido justamente ao que diz ser a sua “consciência plástica”. Ainda antes de concluir o curso de Pintura da FBAUP, Victor Hugo Pontes começa a lecionar no Balleteatro e a trabalhar com os alunos nos seus projetos performativos, ficando responsável pela cenografia e pela realização de vídeos. “Dar aulas permitiu-me experimentar com os alunos. A partir do que eles me davam, alterava os exercícios à minha maneira. E assim acabei por construir a minha linguagem”.

O MENINO DANÇA?

Apesar de ensinar, Victor Hugo Pontes manteve a sua “sede de aprender”, colecionando formações na área do teatro e da dança. Ao curso do Teatro Universitário do Porto, ainda no tempo de estudante, somam-se os cursos de Pesquisa e Criação Coreográfica do Fórum Dança (2002), de Encenação de Teatro pela companhia inglesa Third Angel, na Fundação Calouste Gulbenkian (2004), e do Projet Thierry Salmon – La Nouvelle École des Maîtres, na Bélgica e em Itália (2006). Este último curso, dirigido pelo iconoclasta encenador Pippo Delbono, “foi muito importante pela confiança que ele tinha em mim. Para ele [Delbono], eu era o líder do grupo. Os outros tinham de fazer como eu fazia”.

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Texto Ricardo Miguel Gomes

Outro momento providencial na carreira de Victor Hugo Pontes foi o convite da encenadora Isabel Barros para integrar um espetáculo de dança, em 2012, no Teatro Rivoli. Ora, Victor Hugo Pontes não tinha nem formação nem experiência em dança. Mas tinha, garante, “uma fisicalidade própria”. E já depois do espetáculo, com o curso de Pesquisa e Criação Coreográfica, ganhou autoconfiança. “Durante o curso do Fórum Dança, a professora Margarida Bettencourt fez-me acreditar que eu conseguia fazer a técnica Cunningham com o meu corpo, com as minhas limitações, fazendo à minha maneira. Isto mudou tudo, porque a partir daí comecei a acreditar que era possível”. E foi. Logo a seguir, em 2003, Victor Hugo Pontes seria convidado a criar um espetáculo de dança para o Festival da Fábrica, no Porto. Chamou-lhe Puzzle e deu imediatamente azo a outro convite para outro espetáculo, Voz Off (2003), desta vez no Planetário do Porto, com o qual ganhou o Concurso Jovens Criadores na categoria de Dança. A partir de então, a dança passou a ocupar um lugar central no seu trabalho e é na coreografia que a sua linguagem artística melhor se concretiza. “Digo sempre que nunca decidi aquilo que queria ser. A vida é que foi decidindo por mim e as situações fizeram com que tomasse decisões. Se há 15 anos me dissessem que ia ser coreógrafo, eu não acreditava”. E, além de coreógrafo, é ator, bailarino (ou “interprete”, como prefere dizer), encenador, realizador (vídeo), cenógrafo e assistente de encenação. Pelo menos. O trabalho como assistente de encenação não se revelou nada despiciendo neste percurso artístico. Victor Hugo Pontes foi, durante dois anos, o braço direito de Nuno Cardoso, um dos mais importantes encenadores portugueses da nova geração. E, como habitualmente, fez de tudo um pouco, indo para lá do que a função exige. “A

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certa altura, já não era apenas assistente. Tinha de gerir a luz, o som, a contrarregra, a produção… Era uma pessoa extremamente criativa, em que o Nuno tinha grande confiança. Eu dava-lhe ideias, apesar da linguagem dele ser muito diferente da minha. Foi uma escola brutal: trabalhei com grandes textos clássicos e tive as minhas primeiras experiências em teatros nacionais e no estrangeiro”. Aqui chegados, há que perceber a razão por que Victor Hugo Pontes se desmultiplica em funções dentro das artes de palco. “O que me dá mesmo prazer é ir mudando de pele, de personagem, de ofício… Gosto de fazer coisas diferentes e sinto que tudo aquilo que faço não é tão disperso assim: as coisas têm ligações e umas só acrescentam às outras”. Por outro lado, “aborrece-me fazer sempre a mesma coisa, apesar de gostar imenso de ter rotinas. As pessoas que me conhecem sabem que eu gosto de ir sempre ao mesmo restaurante. Preciso dessas rotinas porque tudo o resto não é rotineiro”. Para além da fuga à estagnação criativa, Victor Hugo Pontes é um verdadeiro workaholic e parece gerir a sua atividade artística de forma intuitiva. “Vivo muito para o trabalho. Tenho mesmo esta necessidade. Quando paro, começo a pensar muito. E quando começo a pensar muito, não é boa ideia… Então, prefiro fazer. Depois de fazer, gosto de pensar no que fiz e tirar as minhas conclusões”. São estas características idiossincráticas que fazem Victor Hugo Pontes rever-se em Cristiano Ronaldo, que coreografou para um anúncio publicitário. “Admiro-o porque

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é persistente nos objetivos, trabalha para os conseguir e é desta forma que os consegue – não é por sorte nem por acaso”. Como coreógrafo/ encenador, Victor Hugo Pontes é autor de mais de 20 espetáculos, dos quais se destacam Ícones (2006), Rendez-vous (2010), Fuga Sem Fim (2011), A Ballet Story (2012), A Strange Land (2012), ZOO (2013), Ocidente (2013), Fall (2014), COPPIA (2014) em cocriação com Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves (dos Clã), Orlando (2015), em cocriação com Sara Carinhas, Se alguma vez precisares da minha vida, vem e toma-a (2016) e Carnaval (2016). No final de setembro, estreou o espetáculo Uníssono – composição para cinco bailarinos.

COMO TREINAR A SELEÇÃO A Ballet Story, uma encomenda da Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, foi um ponto de viragem na carreira de Victor Hugo Pontes, que curiosamente recusou por três vezes a criação do espetáculo. “A Ballet Story teve um sucesso gigantesco e, a partir daí, tenho consciência de que há cada vez mais gente a ver-me, a saber quem eu sou, a seguir o meu trabalho…”. Se alguma vez precisares da minha vida, vem e toma-a será, provavelmente, o mais ousado dos seus espetáculos, por ser baseado no clássico A Gaivota, de Anton Tchékhov. Já Carnaval afigura-se como o reconhecimento institucional do trabalho de Victor Hugo Pontes, uma vez que partiu de um convite da Companhia Nacional de Bailado. O espetáculo foi inspirado na obra musical O Carnaval dos Animais (1886), de Camille SaintSaëns, contou com música original de 12 compositores portugueses contemporâneos e envolveu 36 bailarinos.

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“Coreografar a Companhia Nacional de Bailado é como treinar a Seleção Nacional”, graceja Victor Hugo Pontes. Nestes 13 anos de criações, Victor Hugo Pontes acredita ter desenvolvido uma linguagem própria. “As pessoas conseguem identificar que aquilo é meu ou se parece comigo. Mas não é nada que eu faça de forma consciente. Faço-o porque sinto que deve ser dessa forma”. Aponta como característica distintiva do seu trabalho de coreógrafo “a forte carga dramatúrgica, que vem do facto de gostar muito de teatro. Há sempre um conflito que gera a ação”. Além disso, “a parte cenográfica é muito importante, tal como acontece no teatro mas raramente na dança”. Diz também que as criações são a sua “forma de ver o mundo” e de “questionar esse mundo”, mas ressalva: “Os espetáculos não são sobre mim, embora naquilo que faço esteja inevitavelmente aquilo que sou”.

Animado pelo sucesso em Portugal, Victor Hugo Pontes gostaria agora de apresentar os seus espetáculos lá fora com maior regularidade. Mas, para isso, tem consciência de que necessita de “reduzir a escala” dos espetáculos e de “simplificar” as respetivas estruturas. De resto, Victor Hugo Pontes já apresentou espetáculos seus em três cidades do Brasil e participou, com A Ballet Story, no Festival de Dança de Cannes, em França, e no Pays de Danses, em Liège, na Bélgica. Em 2010 já havia sido selecionado pelo projeto Intradance para dirigir a companhia russa Liquid Theatre, para a qual criou o espetáculo Far Away From Here, apresentado em maio desse ano, em Moscovo, na Rússia. Dois anos antes, em março de 2007, conquistou o 1º prémio do International Choreography Competition Ludwigshafen 07 – No ballet, em Ludwigshafen, Alemanha, com o espetáculo Ícones.

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Texto Ricardo Miguel Gomes

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i3S: O SUPER LABORA TÓRIO DA SAÚDE É o maior instituto português de investigação na área das ciências da vida e da saúde. Os números impressionam: cerca de 1.000 colaboradores (dos quais 800 são cientistas), 51 grupos de investigação, mais de 120 projetos em curso e um orçamento anual de 20 milhões de euros. Para instalar este superlaboratório, foi construído um edifício com 18.000 m2 de área total, no Polo Universitário da Asprela. A obra custou 21,5 milhões de euros, dos quais 18 milhões foram financiados pelo programa ON.2 – O Novo Norte.

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Para lá da grandeza dos números, o i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da U.Porto propõese, numa lógica de multidisciplinariedade científica, encontrar respostas para os maiores desafios da saúde humana, como o cancro, a neurobiologia e as doenças neurológicas, a interação e resposta do hospedeiro.

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Com a inauguração oficial do i3S, ficou concluído um processo exemplar de cooperação e solidariedade científicas que arrancou em 2003, com a formalização da parceria entre IBMC, INEB e Ipatimup, e se consolidou em 2008, quando os diretores destes três institutos criaram o consórcio que está na base do novo superlaboratório.

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Modulações da vida INVESTIGAÇÃO EM GENÉTICA

A progressiva descoberta dos mecanismos de transmissão hereditária e da centralidade do ADN como código regulador da reprodução e do desenvolvimento dos seres vivos reservou diversas surpresas, nomeadamente o aparente paradoxo de que apenas uma pequena fração do ácido desoxirribonucleico codificava as proteínas essenciais para a vida. No início deste século, ainda grande parte deste código parecia ser “lixo”, sem quaisquer consequências para o organismo. Mas a investigação na área rapidamente demonstrou que a interação entre os elementos do genoma tinha outro nível de complexidade.

No Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da U.Porto, o grupo de Desenvolvimento e Regeneração de Vertebrados dedica-se a estudar a interação entre elementos do genoma, com aplicações específicas na formação e no funcionamento do pâncreas. O seu líder, José Bessa, explica que, “inicialmente, tinha-se um conceito muito simples de como é que os genes eram transcritos. Os genes podiam estar ativos ou inativos, serem expressos ou não, e de forma diferente conforme o tipo de célula. Por exemplo, no nosso pâncreas teríamos uma série de genes ativos, ou seja, que são transcritos, que seria diferente da série de genes que são transcritos no nosso fígado ou no nosso olho, por exemplo”. Basicamente, para produzir – ou seja, “exprimir” – as proteínas necessárias ao desenvolvimento e regulação do organismo, as moléculas de ADN que residem no núcleo celular são o centro de um complexo processo que implica a sua cópia – “a transcrição” – para moléculas complementares, o ARN mensageiro. A produção de proteínas, mediada pelo ARN mensageiro, é já realizada no citoplasma, fora do núcleo celular – etapa designada por “tradução”. Mas, continua José Bessa, “o programa que regula essa atividade de transcrição dos genes não será tão imediato como originalmente se pensava: tinha-se a ideia de que bastava um promotor, ou seja, uma pequena sequência de ADN não codificante localizada a montante do gene, para regular a transcrição. Isso seria suficiente para determinar quando e em que células é que o gene estava ou não estava ativo”. A natureza, contudo, parece não ter optado por essa solução: “Hoje, sabemos que existem outras sequências dentro desse genoma não codificante – a que chamamos módulos – que interagem com os promotores dos genes e regulam a sua atividade. Portanto, a ativação dos genes inclui a atividade de muitas outras sequências que estão espalhadas no genoma”. Se antes a nossa visão se centrava quase exclusivamente no gene codificante – uma mutação num gene seria responsável pela formação incorreta da proteína nele codificada e, portanto, poderia acarretar a perda da função que essa proteína desempenhava na célula, eventualmente resultando numa doença –, encontramo-nos agora perante uma paisagem mais complexa, aberta a muitas perguntas. Quais são

ciência&tecnologia

os módulos que regulam a atividade dos promotores e que podem levar à perda de funções? Qual é a relação entre esses módulos e genes específicos?

DA SEQUENCIAÇÃO À MUTAÇÃO A partir do momento em que se procedeu a uma sequenciação em larga escala do genoma humano, foi possível construir um painel de correspondências entre a mutação de genes codificantes e o desenvolvimento de determinadas patologias. Mas nem sempre se encontrou uma associação direta entre doença e mutação, enquanto trabalhos experimentais confirmaram a complexa interatividade entre elementos codificantes e não codificantes do genoma. Verificou-se que a mutação de determinados módulos no genoma não codificante provocava, efetivamente, alterações na expressão do gene: as proteínas não eram produzidas corretamente nas quantidades e sítios adequados. É esta a área de interesse do grupo de Desenvolvimento e Regeneração de Vertebrados, como afirma José Bessa: “Queremos compreender como é que mutações nestes elementos do ADN que não são codificantes e não são promotores podem contribuir para o aparecimento de algumas doenças genéticas humanas. Temos meios para identificar onde estão esses módulos e queremos perceber como é que mutações nesses módulos podem interferir com a produção das proteínas, com a expressão dos genes”. Como são identificados, então, esses módulos? Fundamentalmente, através de marcas epigenéticas, modificações moleculares no ADN ou em proteínas que se ligam ao ADN e que parecem também ter como função regular a expressão dos genes, nomeadamente fornecendo instruções básicas para a sua ativação ou desativação: “O estado da arte permite-nos sequenciar zonas do genoma não codificante que estão enriquecidas para determinadas marcas epigenéticas que estão associadas com uma função do ADN. Basicamente, podemos saber quais são as sequências que têm maior potencial para serem elementos de regulação”. Encontrado o candidato, “isolamos esta sequência do genoma e pomos à sua frente um promotor mínimo, ou seja, uma sequência que permite Texto Paulo Gusmão Guedes / Júlio Borlido Santos

Fotos Egídio Santos

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José Bessa: cartógrafo de um atlas genómico.

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Viveiros aquáticos: a diversidade transgénica.

Peixe-zebra: a transparência de um modelo.

que estes módulos interajam com ele, controlando a transcrição dos genes. Mas, à frente do promotor, e de forma que consigamos acompanhar visualmente a expressão do gene, usamos um gene que codifica uma proteína fluorescente. Introduzimos esta construção de ADN no genoma do peixe-zebra e geramos um peixe-zebra transgénico”. Se o módulo em causa está ativo, o resultado será o aparecimento de células com a proteína fluorescente. Existe, por exemplo, a possibilidade de observar uma sequência que esteja ativa no pâncreas e, caso seja gerada uma mutação que afete a atividade desse módulo, a fluorescência deixa de se observar. Pode-se, pois, monitorizar quais as mutações geradas em zonas não codificantes que têm impacto na expressão dos genes e onde se verificam. Mas, realça José Bessa, “precisamos de um animal que seja transparente”.

-las com o genoma humano e descobrir onde é que as sequências correspondentes se encontram. Isto só é possível caso as sequências estejam conservadas. Caso contrário, temos outras estratégias: através da identidade bioquímica dessas sequências, ou seja, pelas suas marcas epigenéticas e pela combinação de proteínas a que elas se associam podemos estabelecer uma ligação que não depende diretamente da sequência em si: se essas marcas e combinações forem muito semelhantes em sequências não conservadas no genoma humano e no peixe-zebra, temos a indicação de uma possível ligação funcional entre essas zonas, ou módulos”. Resta aos investigadores gerar mutações nos módulos identificados, provocando o aparecimento de uma patologia ou de outra alteração detetável que possa confirmar a sua função.

PEIXE-ZEBRA COMO MODELO

COMPLEXIDADE MODULAR

O peixe-zebra é um relativo recém-chegado ao i3S, e é um “modelo” importado de Sevilha, do Centro Andaluz da Biologia do Desenvolvimento, onde José Bessa realizou estudos de pós-doutoramento. Para além da sua transparência, é um vertebrado com que é relativamente fácil de lidar, reproduzindo-se rapidamente e em grande quantidade. Por outro lado, nota o investigador, “o pâncreas do peixe-zebra é muito parecido com o pâncreas humano em termos de funcionamento e estrutura anatómica. Encontramos nele o mesmo tipo de células – produtoras de insulina, de glucagon ou de somatostatina – do pâncreas endócrino humano. Pretende então o grupo de Desenvolvimento e Regeneração de Vertebrados encontrar no peixe-zebra os “pontos quentes do genoma” e trasladar essa informação para o genoma humano, uma tarefa que não é particularmente fácil porque só 10 a 20% das sequências não codificantes com atividade na regulação dos genes estão “conservadas”, ou seja, mantêm-se similares nas duas espécies. José Bessa elucida: “Analisando as sequências genéticas do peixe-zebra, podemos alinhá-

ciência&tecnologia

A investigação genética do grupo de José Bessa é realizada no i3S.

“Uma coisa de que temos a certeza é que não existe – ou será muito pouco frequente – um gene responsável por uma atividade biológica específica numa única célula. O que acontece é que temos genes que são usados e reusados dependendo do contexto celular. Os mesmos genes são expressos em muitos tecidos, mas de forma diferente, e essa expressão específica será controlada por estes módulos. Embora não o possa afirmar de forma absoluta” – avança prudentemente José Bessa –, “sabemos que a expressão total de um gene é controlada por vários módulos e cada um desses módulos regula essa expressão maioritariamente em tecidos diferentes”. Se a atividade de transcrição passasse exclusivamente pelo promotor da expressão dos genes codificantes, isso significava que este teria de possuir um nível de complexidade que lhe permitisse compreender códigos diferentes de fatores específicos das células, conforme a transcrição fosse realizada, por exemplo, nas células do olho, do cérebro ou do pâncreas. A possibilidade de serem os módulos diversos que conferem especificidade aos tecidos ganha, por isso, relevância.

Texto Paulo Gusmão Guedes / Júlio Borlido Santos

Fotos Egídio Santos

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i3S: investigação genómica.

Esclarecer o mecanismo pelo qual isto se realiza é particularmente complexo, até porque, no quadro do genoma, a relação poderá não ser bidimensional: “Os módulos podem regular o gene que está mais perto, é verdade, mas provavelmente existem módulos que regulam genes que estão bastante mais afastados. Há evidências que sugerem que múltiplos genes podem ser regulados através de um módulo. Esta regulação à distância não é improvável porque, apesar da nossa perceção do ADN como estático e linear, ele tem uma estrutura tridimensional: dentro da célula, está dobrado, tem uma arquitetura. Existe uma topologia do genoma, com pontos de interação – zonas onde o ADN tem uma maior propensão para interagir do que o ADN situado noutros locais, sendo esta interação mediada por proteínas”. As patologias de base genética serão fundamentais para o conhecimento dos mecanismos de regulação, como sucede no caso dos supressores tumorais. Os genes associados a esta função de proteção celular são expressos numa grande parte das células do nosso corpo. “Se esta expressão for modulada em tecidos diferentes por módulos diferentes – e essa é uma das coisas que estamos a tentar compreender – existirão variações no genoma não codificante associadas à perda da expressão deste gene em tecidos específicos. E, claro, a perda de alguns desses supressores tumorais terá como consequência uma maior incidência de cancro nessas células”. Poderão, ainda, existir reguladores que só se tornam ativos em determinadas circunstâncias: “Por exemplo, as mutações no gene p53 estão associadas ao desenvolvimento de muitos tumores. Este gene é importante para a destruição de células quando estas entram em stress. Quando existem mutações neste gene, as células disfuncionais podem tornar-se viáveis e dar origem a um tumor: o gene p53 tem como função ‘limpar’ estas células. Mas existirão módulos que respondem ao stress celular, sendo eles os responsáveis pela ativação da transcrição desse gene? E existirão módulos com uma ação mais predominante em determinados tecidos do que em outros, podendo assim predispor para a falta de resposta desse gene nestes últimos tecidos?”.

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A INVESTIGAÇÃO DO GRUPO SITUA-SE A UM NÍVEL FUNDAMENTAL, AINDA AFASTADA DA SUA PREVISÍVEL APLICAÇÃO EM SAÚDE, MAS O CONSELHO EUROPEU DE INVESTIGAÇÃO PERCEBEU A IMPORTÂNCIA DO ESCLARECIMENTO DAS QUESTÕES LIGADAS À REGULAÇÃO GÉNICA...

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APLICAÇÕES DA INVESTIGAÇÃO A investigação do grupo situa-se a um nível fundamental, ainda afastada da sua previsível aplicação em saúde, mas o Conselho Europeu de Investigação percebeu a importância do esclarecimento das questões ligadas à regulação génica, neste caso especificamente dirigida para o estudo do pâncreas, financiando com um milhão e meio de euros um trabalho de cinco anos que tentará, através de mutações no genoma não codificante do peixe-zebra, provocar o aparecimento de condições semelhantes à da diabetes tipo 2. Mas outras aplicações poderão ser, no futuro, resultado do trabalho do grupo. Com uma ação contrária aos supressores tumorais, alguns genes – apelidados de oncogenes – estão diretamente relacionados com o surgimento de cancro, seja pela ocorrência de mutações, seja pelo facto de serem “sobre expressos”, o que significa que proteínas que estes genes codificam são produzidas em maior quantidade. “Se nós conseguirmos encontrar os módulos de regulação desses oncogenes, isolá-los e formar um peixe-zebra que nos permita monitorizar a atividade destes módulos, podemos tentar utilizar fármacos para diminuir a sua atividade, deste modo diminuindo a transcrição do gene num tecido específico”. Sendo certo que, no i3S, se estão a desenvolver meios que permitirão a triagem automatizada de um elevado número de drogas, tornando possível testar o efeito de fármacos na atividade de regulação da transcrição através de módulos, e assim abrindo o caminho à intervenção terapêutica, José Bessa sumaria primordialmente uma não pequena ambição: “Queremos construir um atlas de modificadores, ou seja, de ‘pontos quentes’ no genoma humano cujas mutações possam estar associadas a determinadas patologias – em particular à diabetes e ao cancro pancreático – e que possam contribuir para a avaliação do seu risco ao longo da vida de cada indivíduo”.


CAMPEONATO DE FLOORBALL

ESPETÁCULO &EMOÇÃO

desporto

Texto Ricardo Miguel Gomes

Foto CDUP

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Não é tão popular em Portugal como nos países nórdicos, na República Checa, em Singapura, no Japão ou em Taiwan, onde os torneios são mais competitivos e arrebanham muitas centenas de adeptos entusiásticos. Por cá, o floorball está ainda a conquistar atletas e adeptos com a emotividade, espetacularidade e competitividade geradas pelo confronto entre duas equipas de seis jogadores de campo e um guarda-redes, que utilizam sticks para introduzir uma bola oca em pequenas balizas. Sim, o jogo tem muitas semelhanças com o hóquei em patins (sem estes últimos) e mais ainda com o hóquei em campo, embora seja disputado indoor. Para a divulgação desta modalidade no nosso país muito terá contribuído a realização, em julho, no Porto, do Campeonato do Mundo Universitário de Floorball 2016. Organizado pela U.Porto e pela Federação Académica do Por-

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to (FAP), o torneio reuniu mais de 400 atletas de dez países: Portugal, Suécia, Finlândia, Suíça, República Checa, Japão, Polónia, Eslováquia, Espanha e Coreia do Sul. Ambas as finais, masculina e feminina, foram vencidas pela Finlândia, enquanto Portugal (masculinos) alcançou um honroso 7.º lugar, registando três vitórias nesta que foi a sua primeira participação em campeonatos mundiais universitários da modalidade. O sucesso do torneio veio reafirmar a capacidade da U.Porto para organizar grandes eventos desportivos internacionais de âmbito académico, estando já prevista realização, em 2017, do Campeonato Europeu de Futebol Universitário, em colaboração com a FAP e o Instituto Politécnico do Porto.

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Nasceu da valorização do conhecimento, é fortemente inovadora, tem orientação global e captou milhões em capital de risco. Até aqui, nada de novo. O que parece, de facto, distinguir esta startup é ter uma visão de futuro. E o futuro, para a Veniam, são cidades inteligentes em que os veículos estão ligados em rede por tecnologias sem fios – a chamada “internet das coisas em movimento”. É esta quase utopia tecnológica que está a ser concretizada a partir do UPTEC, com o reconhecimento do ecossistema empreendedor internacional.

Veja o vídeo da entrevista em http://tv.up.pt/videos/6_hcpvwz

Disruptiva. O adjetivo tem servido para caracterizar a Veniam, startup da indústria wireless criada, em 2012, pelos investigadores João Barros e Susana Sargento. Recentemente, o canal norte-americano CNBC considerou a Veniam como a 28.ª startup mais disruptiva do mundo, numa lista de 50 empresas liderada pela Uber. Isto significa que a startup instalada no UPTEC – Parque de Ciência e Tecnologia da U.Porto está, de facto, a romper paradigmas e a anunciar o futuro com o conceito da “internet das coisas em movimento” (internet of moving things). João Barros, CEO da Veniam e docente/ investigador da Faculdade de Engenharia da U.Porto (FEUP), confirma o caráter disruptivo e visionário da empresa. “A solução

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da Veniam é considerada, por muitos, como a fronteira do conhecimento na área dos transportes em rede”, sublinha, para logo acrescentar, em complemento, que a empresa, no último ano e meio, conquistou oito prémios internacionais de inovação, nomeadamente da CableLabs (consórcio de I&D que reúne operadores de cabo norte-americanos) e da Wireless Broadband Alliance (associação internacional de operadores e produtores da indústria wi-fi). Ora, a solução da Veniam é um pequeno dispositivo tecnológico wi-fi, o NetRider, que no essencial serve para estabelecer a ligação de veículos (p. ex., táxis e autocarros) à internet e para permitir a comunicação destes mesmos veículos entre si, criando uma rede em malha onde cir-

cula informação essencial para a gestão de uma cidade inteligente. Ou seja, graças ao NetRider, os veículos são transformados em hotspots wi-fi, dotando assim as cidades de uma infraestrutura não só de comunicações on-line mas também de captação e gestão de dados sobre uma variedade de serviços urbanos, a partir de sensores que comunicam diretamente com a cloud. “Olhamos para os veículos não apenas como máquinas que transportam pessoas do ponto A para o ponto B, mas como elementos ativos da internet e como componentes essenciais de uma estrutura de smart city, com a qual podemos melhorar a vida dos cidadãos”, explica João Barros. O NetRider é uma solução de baixo custo, robusta, segura e de fácil instalação que garante conectividade per-

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Fotos Egídio Santos

Texto Ricardo Miguel Gomes

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manente, mesmo quando a rede de telemóvel não está acessível. Equipado com GPS e várias interfaces, nomeadamente uma interface celular igual à dos telemóveis e com ligação à rede 4G, o NetRider permite desde logo o acesso gratuito à internet dos passageiros dos mais variados transportes. Mas a grande mais-valia do dispositivo é a já aqui referida capacidade de recolha de dados quer sobre os veículos, quer sobre as cidades onde estes circulam. Esta capacidade possibilita, a jusante, o desenvolvimento de soluções que permitam otimizar serviços urbanos (como a recolha de lixo, p. ex), reduzir o volume de tráfego, promover o uso de veículos elétricos e melhorar o conforto, segurança, eficiência e ergonomia dos transportes públicos.

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DO AMBIENTE ACADÉMICO PARA OS NEGÓCIOS João Barros, cofundador e CEO da Veniam.

A ideia de negócio que está na origem da Veniam nasceu em ambiente académico, a partir de um conjunto de projetos de I&D desenvolvidos no Instituto de Telecomunicações por João Barros e Susana Sargento, docente/ investigadora do Departamento de Eletrónica, Telecomunicações e Informática da Universidade de Aveiro (DETI). Foram necessários mais de dez anos de investigações para desenvolver as componentes de hardware, software e cloud das redes veiculares. Um processo que envolveu uma série de parceiros académicos, como a FEUP, a Faculdade de Ciências da U.Porto, o DETI mas também o MIT (Massachusetts Institute of Technology) e a Universidade Carnegie Mellon, através dos programas homónimos. “Rapidamente constatámos que era necessário sair do laboratório e passar a fazer experiências reais, com utilizadores reais, no tecido urbano”, diz João Barros, para explicar a evolução do projeto. Com a colaboração da Câmara Municipal do Porto, iniciaram os testes da solução tecnológica nos táxis da cidade, ainda no âmbito do Programa Carnegie Mellon Portugal, e depois nos autocarros da STCP. «Esta abordagem diretamente com os utilizadores finais fez com que chegássemos à conclusão de que existia, não apenas uma tecnologia interessante, mas um produto e um conjunto de serviços que podíamos levar para o mercado”, salienta o professor catedrático de Engenharia Eletrotécnica e de Computação da FEUP e professor visitante em Stanford. À criação da empresa seguiu-se, em 2013, o arranque do projeto Future Cities, coordenado pelo Centro de Competências para as Cidades do Futuro da FEUP, então dirigido por João Barros. Com um investimento de 2,3 milhões de euros, financiados pelo 7.º Programa Quadro de Investigação

e Desenvolvimento Tecnológico da União Europeia (1,6 milhões) e pelo QREN (700 mil), o projeto dotou a cidade do Porto de uma infraestrutura de captação de dados com mais de 800 sensores instalados em veículos. No Porto funciona, de resto, a maior rede wi-fi de veículos do mundo, implementada pela Veniam. Inclui, como hotspots wi-fi, toda a frota da STCP (mais de 400 autocarros), táxis, camiões de recolha do lixo e outros veículos de serviços urbanos. A rede serve mais de 400 mil utilizadores wi-fi (população, turistas e outros city users) e transporta cerca de 8,5 terabytes (equivale a 1024 GB) de dados por mês, captados pelos veículos equipados com sensores. Muitos destes dados estão a ser utilizados para o estudo do tráfego e de serviços urbanos. Em concreto, no âmbito de uma intervenção num dos túneis da cidade foi possível quantificar o impacto no trânsito antes e depois das obras. Também foi possível demonstrar o efeito de recentes alterações nas paragens de autocarros e está a ser estudada a ligação dos veículos aos semáforos, para se criarem vias verdes para autocarros e viaturas de emergência. Em curso encontra-se igualmente um projeto-piloto de gestão inteligente da recolha de lixo, em que os camiões verificam remotamente se os contentores estão cheios e enviam essa informação para a cloud. Com base nessa informação, os camiões só se deslocam aos contentores que realmente necessitam de ser esvaziados. Com a rede veicular a funcionar no Porto, a Veniam “atraiu muita atenção” e “foi possível avançar para financiamentos maiores”, recorda João Barros. Mas, até lá, o financiamento foi um dos principais desafios da empresa, à semelhança do que acontece com muitas startups inovadoras. E também a Veniam recorreu aos três efes, family, friends and fools (família, amigos e parvos), para reunir o capital necessário para arrancar com o negócio. Neste caso, foi um familiar a garantir a comparticipação da empresa necessária

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Fotos Egídio Santos

Texto Ricardo Miguel Gomes

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Veja o vídeo da entrevista em http://tv.up.pt/videos/6_hcpvwz

Centro de competências da Veniam no UPTEC.

para desbloquear o apoio QREN aprovado em 2012. A situação, ao nível financeiro, melhorou substancialmente com a entrada no projeto de dois empreendedores norte-americanos, Roy Russell e Robin Chase (fundadora e ex-CEO da Zipcar, a maior empresa de carsharing do mundo), que João Barros e Susana Sargento conheceram durante uma apresentação no MIT. Para além do know-how que aportaram à Veniam, Roy Russell e Robin Chase possibilitaram o contacto com uma série de investidores internacionais de capital de risco. O processo de financiamento da Veniam conheceu vários momentos. Na fase seed, em 2013, a empresa captou quase meio milhão de dólares (455 mil euros) junto de investidores privados. Em 2014, a Veniam fechou uma ronda de investimento série A de 4,9 milhões de dólares (3,9 milhões de euros), na qual participaram capitais de risco de topo como a True Ventures e a Union Square Ventures. Já em 2016, a startup fundada por João Barros e Susana Sargento captou quase 25 milhões dólares (24 milhões de euros) numa ronda de investimento liderada pela capital de risco norte-americana Verizon Ventures, à qual se juntaram a Cisco Investments, a Orange Digital Ventures e a Yamaha Motor Ventures.

I&D MANTEM-SE NO PORTO O primeiro cliente da empresa foi a administração do Porto de Leixões. Nesta infraestrutura, a Veniam ligou em rede os veículos de transporte e criou pontos de acesso wi-fi (interconexão entre os dispositivos móveis) para transmissão de dados da atividade portuária em tempo real. Mais tarde, a Veniam participou no acelerador do Programa MIT Portugal (Building Global Innovators), o que ajudou a empresa a posicionar-se no mercado e a ir ao encontro de potenciais clientes, desde operadoras de te-

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lecomunicações até fabricantes de equipamentos. “Este contacto com os clientes foi muito motivador, em particular para mim que vinha da I&D de cariz matemático e científico. Foi um contacto direto com os utilizadores finais, que nos permitiu aprender como se transformam teoremas matemáticos em algoritmos, em protótipos, em sistemas, em redes e finalmente em produtos e negócios”, sublinha João Barros. De referir que a Veniam tem dois mercados prioritários: o das cidades inteligentes e o dos chamados espaços controlados (infraestruturas portuárias e aeroportuárias, unidades industriais, estaleiros, etc.), onde se podem criar conectividades entre os diferentes veículos, equipamentos e funções. Hoje, a Veniam desenvolve os seus principais projetos e negócios com os seus investidores estratégicos: a Verizon (maior operador de telecomunicações dos EUA), a Orange (maior operador de telecomunicações francês), a Cisco Systems (multinacional de TIC), a Yamaha Motors e a Liberty Global (maior operador de cabo do mundo). Além disso, a empresa criou uma rede veicular em Singapura, onde tem um escritório, e outra em Manhattan, Nova Iorque. Há ainda a perspetiva de expandir os serviços da Veniam para outras grandes cidades, como Londres e Barcelona. De resto, a Veniam nasceu com uma orientação eminentemente global. Após a bem-sucedida instalação da rede veicular no Porto, a empresa abriu um escritório em Boston, nos EUA, e, depois de fechar uma ronda de investimento, mudou-se para Mountain View, na Califórnia, onde trabalha a equipa responsável pela gestão de produto, finanças, marketing e vendas. No UPTEC, está o centro de desenvolvimento tecnológico. A Veniam tem também uma subsidiária em Singapura, responsável não apenas pelas vendas mas também pelo desenvolvimento operacional para o mercado asiático.

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A deslocalização foi fundamental “para promover o crescimento da empresa e para estar mais próximo de clientes e investidores”, explica João Barros. Mas as atividades de I&D são para manter na Invicta, já não no UPTEC mas no Palácio dos Correios, onde estão a ser instaladas as empresas envolvidas na estratégia ScaleUp Porto, uma iniciativa da autarquia que tem como parceiro de referência a U.Porto. “Os nossos investidores estão impressionadíssimos com a qualidade dos engenheiros da Veniam em Portugal, e isso para eles é o mais importante. Hoje em dia, em Silicon Valley, é extremamente difícil conseguir uma massa crítica de engenheiros, em particular na área das redes. O facto de nós termos conseguido desenvolver essa massa crítica, desde logo porque temos 10 doutorados na empresa a criar inovação, é uma mais-valia para todos e um valor em si”, garante o CEO da Veniam, justificando assim a permanência da I&D no Porto. No Porto, a Veniam tem uma equipa de 36 pessoas (45 no total da empresa, mas com perspetivas de crescimento), etariamente muito heterogénea (dos 22 aos 60 anos), com cerca de 30% de mulheres e oito nacionalidades diferentes. Esta massa crítica maioritariamente constituída por engenheiros é responsável pela propriedade intelectual da Veniam, “que é um valor em si, independentemente do sucesso comercial da empresa”, ressalva João Barros. Atualmente, a Veniam é coproprietária de cinco patentes juntamente com a U.Porto, a Universidade de Aveiro e o Instituto de Telecomunicações. Além destas, já submeteu cerca de 40 patentes com propriedade intelectual. “Estamos a produzir conhecimento, invenções e patentes à razão de uma a duas por mês”, assegura João Barros, que não esquece o apoio da UPIN – U.Porto Inovação no registo das patentes da Veniam.

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UM MUSEU PARA AS NOSSAS NEFERTITIS Do centro da cidade até à Foz do Douro, há uma matriz de ciência que se vai espalhar pelo Porto. A Galeria da Biodiversidade – Casa Andresen será o primeiro polo a inaugurar, de um roteiro científico que começará no Edifício Histórico da Reitoria da Universidade do Porto e terminará no Aquário da Foz. A verdadeira cidade CAMPUS vai nascer.

Foi em dezembro de 1912 que uma equipa chefiada pelo arqueólogo alemão Ludwig Borchardt conseguiu chegar até ao atelier do escultor Thutmose, em El -Amarna (Antiga Akhetaton), no Egito, e entre outros artefactos descobriu o busto de Nefertiti. Na mesma década, outra equipa de arqueólogos alemães, um pouco mais para Oriente, recolhia objetos encontrados nas escavações de Assur, antiga capital da Assíria. Este lote de objetos foi confiscado pelo governo português em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, de um barco alemão refugiado no Tejo, o Cheruskia. Em 1921, por despacho, o Ministro da Instrução Pública da altura, Augusto Nobre, cedeu o espólio à U.Porto para a criação de um Museu de Arqueologia. Um ano depois, chegaram à Reitoria 140 das 450 caixas existentes. Este poderia ser o final da história se a Alemanha tivesse desistido da sua carga, o que não aconteceu. Em 1925 o arqueólogo alemão Walter Andrae veio a Portugal e conseguiu chegar a um acordo. As antiguidades assírias regressaram com ele e como forma de agradecimento o governo alemão ofereceu um lote de antiguidades egípcias, oriundas do Museu de Berlim, na Alemanha. A “Coleção Egípcia da Universidade do Porto” esteve em exposição no edifício da Reitoria, entre setembro de 2011 e março de 2012, e foi distinguida com o prémio de “Melhor Catálogo” de 2012, pela Associação Portuguesa de Museologia (APOM), um dos mais importantes organismos ligados à museologia em Portugal. As expedições continuaram durante a Segunda Guerra Mundial e, por cá, foi eleito um Presidente da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, para que as ações de investigação antropológica, etnológica e arqueológica fossem realizadas na Guiné, em Moçambique, em Timor e em Goa, na Índia. Era por carta que Mendes Correia ia sabendo novas das missivas dos seus colaboradores. A 19 de setembro de 1945, Santos Júnior desabafa estar há 37 dias a bordo. “É um desespero ver passar tantos dias sem poder trabalhar naquilo que me traz a África. Nunca supus que para chegar até à Beira gastasse 39 (!) dias”. A 9 de outubro de 1945, Joaquim dos Santos Júnior voltava a dar conta dos trabalhos no terreno que implicavam “medir” a diversidade do género humano: “Só pude estudar 44 bargués, 22 homens e 22 mulheres. (…) Tirei muitas fotografias e fiz alguns desenhos de tatuagens, de mãos e de pés, e alguns apontamentos esboçados de perfis labiais e de narinas. (…) No dia 3 de outubro fomos visitar as ruínas de Metáli e da Molanda na Serra Chôa. (…) Fizemos 35 quilómetros a pé. (...) Foi um dia de grande calor, e passámos um pouco de sede (...). Esta gente em África não se rala. Em África ninguém tem pressa. Queria seguir para Milange, onde me esperam umas pinturas rupestres, e estou aqui preso por não ter chegado o malfadado camião”. As expedições antropológicas a África sucedem-se, sob influência de Mendes Correia, e é com este professor da Faculdade de Ciências da U.Porto, mais tarde presidente da autarquia, que se inicia o ensino de Antropologia e se estabelece o Museu e Laboratório de Antropologia. Ora, “é na componente africana que estão algumas das nossas nefertitis”, afirma Nuno Ferrand (na foto), diretor do Museu de História Natural e da Ciência da U.Porto. Retirado durante a Segunda Guerra Mundial, o busto de Nefertiti regressou ao renovado Neues Museum, em Berlim, onde se encontra atualmente. Símbolo do Antigo Egito, o busto com cerca de 3.400 anos de idade tem direito a uma sala própria. “O museu tem quatro andares, mas é a Nefertiti que o grande público quer ver”, diz-nos Nuno Ferrand. Porque há uma narrativa que as pessoas querem acompanhar... “Nós também temos as nossas nefertitis e vai ser nos Leões, num museu moderno, que vamos poder contar as nossas histórias. E será com base nas nossas nefertitis que vamos construir a nossa narrativa”.

cultura

Texto Anabela Santos

Fotos Egídio Santos

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O FUTURO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL E DA CIÊNCIA São da responsabilidade do mármore os trabalhos de captura e irradiação da luz que nos recebe no átrio daquele que será o futuro Museu de História Natural e da Ciência da U.Porto. Resultado da fusão do Museu de História Natural e do Museu da Ciência / Núcleo da Faculdade de Ciências, originalmente a funcionar desde 1996, este museu integra um Polo Central, localizado no Edifício Histórico da Reitoria, e outro que inclui a Galeria da Biodiversidade – Casa Andresen e o Jardim Botânico do Porto. O Polo Central abrange as coleções históricas de geologia, paleontologia, zoologia, arqueologia e etnografia, botânica (incluindo o Herbário da U.Porto – PO) e ciência. Com exemplares de arte africana, asiática e da Melanésia, grande parte das coleções provém do Instituto de Antropologia Dr. Mendes Correia que realizou algumas das maiores expedições e missões antropológicas organizadas pelo governo português. Com dois séculos e meio de aquisições, as coleções multiplicaram-se na sua tipologia e diversidade, daí que se justifique um investimento na investigação. “Temos coleções muito relevantes” que carecem de “uma investigação e enriquecimento permanentes, sendo que não há, em Portugal, nenhum museu de história natural e da ciência que tenha investigação ativa sobre o património”, esclarece Nuno Ferrand. Do átrio, que ficará na ala sul do Edifício Histórico da Reitoria, dá para ver a porta que esconde uma das joias mais importantes de todo o complexo: o Laboratório de Química Ferreira da Silva. Depois de os outros museus em Coimbra (século XVIII) e Lisboa (século XIX) terem recuperado os seus laboratórios, “nós tivemos a sorte de ter aqui um laboratório excecional, de início do século XX”, explica Nuno Ferrand. “Vamos contar três séculos de história da química num eixo nacional”. Está a ser trabalhada a possibilidade

de haver um programa comum para que “as pessoas que visitam as três cidades possam entender essa história e a contribuição da investigação que foi feita em Portugal na área da química”. O Laboratório do Porto é dos inícios do século XX, período de excelência da art déco, e embora tenha sofrido algumas alterações ao longo do tempo, vai ser feito um trabalho de reconstituição e contextualização. “Há muitos episódios de ligação à cidade que vão ser recuperados, mas também a relação de Portugal com outros países, nomeadamente na exportação de vinhos para o Brasil e a respetiva análise que aqui era efetuada”. Sendo que este laboratório corresponde também à matriz da Bial, a empreitada contará com o apoio daquela farmacêutica. O mecenato estende-se ainda à Mota-Engil para aquele que será o “aspeto mais icónico” do museu: o Pátio dos Dinossauros. Em dezembro de 2015, o Museu de História Natural de Berlim anunciou ao mundo a sua nova superstar. Com 66 milhões de anos, Tristan, o Tyrannosaurus rex de 13 metros de comprimento, chegou de Montana, nos Estados Unidos. No Porto, a narrativa vai ser outra: a de proximidade. Com histórias que ainda não foram contadas. “Não vamos trazer para aqui os TRex”, afirma Nuno Ferrand. “Vamos trazer os dinossauros que têm sido encontrados em Portugal e que nos colocam, neste momento, na sétima posição do mundo em termos de interesse paleontológico. Os dinossauros que têm sido encontrados na Lourinhã são de facto excecionais”. O diretor do futuro Museu, Nuno Ferrand, o Professor da FBAUP Luís Mendonça e o consultor catalão Jorge Wagensberg constituem a equipa que pensou o discurso expositivo e museológico dos Leões e da Galeria da Biodiversidade, entre os quais haverá uma ligação temática, fazendo com que quem entre no Polo Central saia com vontade de continuar a visita na Casa Andresen, e vice-versa.

cultura

Texto Anabela Santos

GALERIA DA BIODIVERSIDADE - CASA ANDRESEN Porquê salvar uma espécie? Porque é pura beleza; porque chegou até aqui depois de quase 4.000 milhões de anos de evolução. Ou “só” porque nela pode estar a solução para um problema que ainda nem surgiu. Quando entrar no portão que dá acesso ao Jardim Botânico, olhe para o chão. Terá a “Árvore da Vida” rente aos pés. Faz lembrar o tronco de uma árvore, esta obra de Luís Mendonça que representa a distribuição da diversidade das espécies. Do humano ao fungo, estamos a pisar quatro mil milhões de anos de vida. Meio caminho andado para subir as escadas da Galeria da Biodiversidade - Casa Andresen e encontrar o caracol riscado (Cepaea nemoralis) que, tal como Beethoven na música, é um maestro na apresentação de diferentes variações sobre o mesmo tema. Para lembrar que, quanto maior for a diversidade genética de uma espécie, mais protegida está contra a incerteza do meio ambiente. E qual é a forma que carece de uma superfície mínima, para encerrar um volume, permitindo assim uma perda de calor mais lenta? Também é a forma mais difícil de ser mordida por uma boca cujo diâmetro seja menor… O ovo, claro. Sabia que o esférico cai do ninho mais facilmente do que o ovoide? Haverá uma relação entre a forma geométrica e a função que um ser vivo desempenha no ambiente? Há seres vivos parecidos porque partilham uma história, outros porque partilham um destino. As perguntas vão funcionando de anzol, nesta aventura pelas espécies que, também aqui, retoma a narrativa de proximidade. Se é verdade que há revoluções científicas associadas a grandes viagens como as de Charles Darwin ou Alfred Wallace, também é verdade que Portugal foi pioneiro na descoberta do planeta e é porque a biodiversidade também se escreve em português que vai ser resgatado o contributo de exploradores como Alexandre Rodrigues Ferreira (1756 - 1815). Fotos Egídio Santos

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A Galeria da Biodiversidade - Casa Andresen, cuja inauguração está prevista para os próximos meses, aposta em momentos e elementos “tremendamente fortes do ponto de vista estético” e num “cruzamento entre arte e ciência que nos vai distinguir a nível nacional e internacional”. A herança do universo de Sophia (de Mello Breyner Andresen) está na metáfora do esqueleto da baleia que se impõe no hall de entrada. “E a partir daí irá nascer tudo o resto”, acrescenta Nuno Ferrand. Há ainda um projeto para “desacantonar” o Jardim Botânico, ou, visto de outra forma, de “botanização” do Campo Alegre. Ainda pertence ao papel, esta ideia de expandir o jardim pela rua.

UM ROTEIRO PARA A PROMOÇÃO DA CULTURA CIENTÍFICA

cerca de 40 anos depois. O suficiente para fazer parte da memória coletiva. Porque o tema “está em todas as agendas” e porque é essencial vincar a importância do mar num país como Portugal, interessa resgatar a memória do que foi a investigação marinha. É fundamental, sublinha Nuno Ferrand, “perceber por que motivo essa investigação arrancou na U.Porto e recuperar os trabalhos de uma pessoa absolutamente fundamental na criação do museu, e na biologia, que foi o professor Augusto Nobre”. Com a integração do Polo do Mar, este novo o roteiro científico terá início no centro do Porto e terminará na Foz do Douro, efetivando, concluí Nuno Ferrand, “a noção de campus ou de ciência espalhada pela cidade”. Sob a matriz de divulgação e promoção da cultura científica há uma cidade campus que está a nascer.

A U.Porto viu recentemente aprovados 1,9 milhões de fundos comunitários para o processo de reabilitação do Museu de História Natural e da Ciência, “um contributo significativo que vai permitir consolidar a obra que está em curso e abrir novas frentes”, esclarece Nuno Ferrand. A realização da Conferência Anual do Ecsite, em junho de 2017, que trará ao Porto cerca de 350 organizações e mais de mil pessoas empenhadas em comunicar ciência, será um dos momentos importantes para apresentar “este novo projeto sobre divulgação e comunicação de ciência. Em vez de um edifício teremos uma instituição espalhada pela cidade, da qual as pessoas vão poder desfrutar através de um programa conjunto. É uma obra complexa, que vai continuar nos próximos anos”. A última fase deste projeto leva-nos até à Avenida Montevideu, na Foz. A Estação de Zoologia Marítima Dr. Augusto Nobre foi criada em 1914 e as obras de construção do edifício começaram logo de seguida. Com 36 aquários para exposição de animais de água doce, salobra e salgada, o aquário público abriu portas em 1927, para as fechar 31

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Alexandre Quintanilha Veja o vídeo da entrevista em http://tv.up.pt/videos/cmeruszw

“ESTOU-ME A SENTIR CADA VEZ MELHOR NA POLÍTICA” É um dos cientistas portugueses mais conceituados mas, quando se preparava para um bucólico remanso nas Montanhas Rochosas dos EUA, foi desviado para a política, onde garante sentir-se “cada vez melhor”. Considera-se uma espécie de “água fresca” na Assembleia da República, mercê da forma desinteressada, independente e heterodoxa com que exerce o cargo de deputado na bancada do PS. Acredita que vai cumprir os quatro anos do mandato, até porque, segundo ele, o “realismo” dos partidos da “geringonça” não deixará cair o Governo. A homossexualidade, que assume com desassombro, “não é assunto” para si, nem se sente investido da responsabilidade de defender os direitos LGBT no Parlamento. O seu contributo para a causa, diz, é a “forma muito natural” como vive a sua sexualidade. Presidente da Comissão Parlamentar de Educação e Ciência, Alexandre Quintanilha confia que é possível retomar a herança política de Mariano Gago e, mesmo sem mais financiamento, dar confiança às instituições do ensino superior.

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entrevista

Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos

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Veja o vídeo da entrevista em http://tv.up.pt/videos/cmeruszw

Confessou numa entrevista que a sua primeira experiência na política, enquanto vereador da CM Porto, não tinha sido “entusiasmante”? E esta segunda experiência política, está a ser mais entusiasmante? Muito mais entusiasmante. Também é uma situação inédita, esta junção de todos os partidos da esquerda para constituírem um governo estável. A esquerda tem mais tendência para se dividir do que para se juntar. Tenho muita empatia com os ideais socialistas, tenho muitos amigos no Bloco de Esquerda, estou a conhecer algumas pessoas do Partido Comunista… E estou a achar interessante, não só pelas pessoas, mas também pelos tópicos que estamos a debater: questões relacionadas com a educação, com a ciência, com a saúde. São questões que me interessam e em relação às quais tenho posições. O que é que o levou a aceitar o convite de António Costa para ser o cabeça de lista do PS pelo Porto? Eu tinha acabado de dar a minha última aula [de jubilação, no ICBAS], numa sexta-feira, e no sábado de manhã recebo uma chamada do [vereador da CM Porto] Manuel Pizarro a dizer que o António Costa queria falar comigo, sem me dizer porquê. Combinámos encontrar-nos em Serralves, ao fim da tarde. E ele [António Costa] foi direto ao assunto: perguntou-me se estava disposto a fazer parte da lista do PS. Aceitou de imediato? Não, desatei-me a rir. Disse-lhe: “Está a brincar comigo, porque eu não tenho experiência [política] nenhuma”. E ele deu-me uma resposta muito inteligente: “É precisamente por isso que o gostava de convidar, porque a credibilidade dos políticos não está a passar por momentos muito positivos no mundo inteiro. Portanto, a vinda de uma pessoa que não tem carreira na política pode ser uma espécie de água fresca”. Não sei se foram exatamente estas as palavras que ele usou, mas deu-me a entender que a ideia era trazer [para a política] uma pessoa nova, com pouca experiência, com algum bom senso e obviamente com ideias. Achei a resposta inteligente, mas não aceitei logo. Pedi uma semana para pensar. E depois disse ao António Costa: “Aceito e daqui a um ano verei como me estou a sentir”. Mas estou-me a sentir cada vez melhor. Pensa acabar o mandato? Nesta altura, a sensação que eu tenho é de que vou acabar o mandato. Acho que ainda há muitos desafios importantes em muitas áreas em relação aos quais gostava de contribuir. E acho que posso contribuir. Portanto, se tudo correr normalmente, como está a acontecer, para espanto de algumas pessoas…. Acredita então na viabilidade do acordo à esquerda? Acredito. Tem havido realismo. Percebemos as dificuldades que o país ainda vai passar – como é óbvio, não estamos a nadar em dinheiro –, mas também sabemos que nos temos de afastar do caminho que estava a ser seguido, que era um caminho claramente neoliberal. Eu já conheci o neoliberalismo nos Estados Unidos, com Reagan, e também sei o que aconteceu em Inglaterra. Acho que foi um desastre total e estou muito satisfeito por esta nova forma de olhar para as pessoas, para o mundo, para Portugal, para a situação em que estamos. E acha que está a ser a “água fresca” de que António Costa falava? Acho que sim. Tenho a noção de que, para muitos deputados, e não só do PS, eu sou bem-vindo. Já não sou aquele bicho estranho que apareceu. Falo pouco, tenho poucas intervenções, mas as que faço são apreciadas. Às vezes até fico preocupado, pois batem-me palmas não só à esquerda mas também à direita.

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“Nesta altura, a sensação que eu tenho é de que vou acabar o mandato. Acho que ainda há muitos desafios importantes em muitas áreas em relação aos quais gostava de contribuir.“

“Falo pouco, tenho poucas intervenções, mas as que faço são apreciadas. Às vezes até fico preocupado, pois batem-me palmas não só à esquerda mas também à direita.“

Como é que convive com a disciplina partidária? Acontece-lhe pensar de forma diferente do PS e do Governo? Não tem sido um problema. Uma das coisas que o António Costa também me disse, logo no início, foi que respeitava muito a independência e as opiniões diferentes das pessoas. E eu sou independente. Nunca senti qualquer pressão. Aliás, já votei, não muitas vezes, de forma diferente daquela que era a posição do partido.

HOMOSSEXUALIDADE “DEIXOU DE SER ASSUNTO” Creio que é o único deputado homossexual assumido no Parlamento português. Esta condição tem algumas implicações na sua atividade política? Nunca. Nem no passado nem atualmente. Tem a ver com o facto de eu não colocar isso [a homossexualidade] como um assunto. Para mim, isso já deixou de ser assunto. É como ter os cabelos louros ou os cabelos castanhos. Já vivi muitas décadas da minha vida em que isso deixou de ser assunto para, agora, passar a ser assunto. Não sente uma responsabilidade maior de defender as causas LGBT no Parlamento? Não, não sinto. Se calhar, a causa para mim é a minha vida; o facto de eu não ter orgulho em ser nem vergonha de o ser. Esta forma muito natural de estar na vida, de lidar muito naturalmente com as pessoas, é o meu contributo para dessacralizar e desmistificar um pouco esta ideia de que uma pessoa é assim por ser homossexual ou lésbica. Há muita gente hoje que, por me ter conhecido, tem uma visão diferente da divisão entre o straight e o gay. Afinal, somos todos muito parecidos. Apesar dos avanços nos direitos LGBT, ainda há pouco tempo um hotel em Viana do Castelo pedia no seu site aos homossexuais para não fazerem reservas porque lhes poderia ser “vedada a admissão”. Isto pode querer dizer que a mentalidade dos portugueses não está a acompanhar o avanço da legislação relativa aos direitos LGBT? Deixe-me fazer uma comparação com o racismo. Nenhum português admite ser racista, ou, pelo menos, terá uma certa vergonha, espero eu. E, no entanto, o racismo existe, toda a gente sabe. Acho que a juventude hoje presta cada vez menos atenção a estas questões. Estão mais interessados em saber o que a pessoa é do que quais são os adjetivos associados à pessoa. E isso é bom. Repito, é um assunto que, para mim, não é assunto. Mas há casos extremos de ódio homofóbico, como o atentado em Orlando. Sim, mas nada disto é novo na História. Houve sempre pessoas perseguidas. Isso faz parte do mundo em que vivemos. Pessoas que têm opiniões extremas e que acham que há certas formas de viver e de pensar que são as corretas sempre existiram. [Por outro lado], há ganhos sociais muito recentes e, por serem muito recentes, há ainda focos que aparecem. E se calhar em momentos de tensão, de fragilidade das sociedades, muitas destas coisas vêm à superfície. Aliás, há um exemplo atualíssimo disto: o referendo em Inglaterra [para a saída da UE]. Muita gente ficou surpreendida; eu não fiquei nada surpreendido. O Brexit foi uma reação de revolta contra as elites? Foi uma revolta contra a falta de solidariedade. Numa sociedade cada vez mais competitiva, de uma forma selvagem, obviamente que as diferenças vão aumentando. Todos os indicadores mostram que a diferença entre os mais ricos e os mais pobres, os mais educados e os menos educados, tem vindo a aumentar nos últimos 70 anos. A minha empatia é com todos aqueles que lutam para que haja mais equidade no mundo. Para que as pessoas possam ter acesso a educação, justiça, saúde, nutrição…

Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos

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NUNO CRATO “FOI UM DESASTRE” Como presidente da Comissão Parlamentar de Educação e Ciência, teve de lidar com temas bastante polémicos, como o fim dos exames nacionais nos 4.º e 6.º anos e a suspensão dos contratos de associação. Para alguém com pouca experiência política, tem sido difícil gerir assuntos de tão grande melindre? Eu na Comissão não falo. Tento moderar, mas de uma forma muito silenciosa. Procuro que toda a gente [deputados e membros do Governo] tenha a oportunidade de exprimir as suas opiniões, de forma equitativa. Isso não quer dizer que não tenha as minhas opiniões. Por exemplo, em relação às escolas, não tenho nada contra o ensino privado. Tem todo o direito de existir. Agora, eu não quero que os meus impostos sejam para as escolas privadas. Os meus impostos são para garantir que haja uma oferta pública de ensino para todos e com a melhor educação possível. Se os pais decidirem que querem mandar os filhos para escolas privadas, têm todo o direito de o fazer, mas não é com os meus impostos. Não estamos em Portugal a criar uma situação em que os pobres vão para as escolas públicas e os ricos vão para as escolas privadas? É um risco. Há pessoas que julgam que, mandando os seus filhos para escolas privadas, têm a garantia de ter uma educação, senão melhor, pelo menos diferente. Mas, como sabemos, há muitas surpresas: há pessoas que vão para as melhores escolas e melhores universidades e saem uns trastes. O ambiente que uma pessoa tem em casa também tem uma influência enorme. Isso faz parte das diferenças que existem no mundo. Na educação, a diferença maior não é entre privado e público mas entre as pessoas. Mas o que eu queria era que o nível da educação na escola pública fosse cada vez maior. Em Portugal, as políticas de educação mudam de governo para governo, o que não permite estabilizar e dar a desejável constância ao sistema de ensino. Isso é um problema em todo o mundo, infelizmente. Cada Governo quer deixar a sua marca. O que gostaríamos era de ter uma política de longo prazo, com pequenas alterações à medida que vamos avançando. Agora, não se esqueça que quem introduziu variações dramáticas no sistema de educação foi o Governo anterior, do ministro Nuno Crato. Eu apreciava o Nuno Crato, antes de ele ser ministro, pelas posições que tinha sobre o ensino da Matemática, de que era um grande divulgador. Mas acho que foi um desastre [como ministro]. Não houve uma coisa que ele tenha feito com que eu estivesse de acordo. Uma! E não foi só em relação à educação, foi também em relação à ciência. Aí, acho que foi um desastre total.

FINANCIAMENTO VAI “CRESCER DEVAGARINHO” Foi assinado um acordo entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e as instituições que estabiliza os orçamentos das universidades e politécnicos durante três anos. É possível fazer progredir o ensino superior, a ciência e a inovação em Portugal sem um reforço efetivo do financiamento público às instituições do ensino superior? A evolução de um país tem a ver com os níveis de financiamento, mas também com os níveis de confiança das pessoas num futuro melhor. E o que estava a acontecer no Governo anterior é que a esperança num futuro melhor tinha quase desaparecido. Até 2010/2011, por ter felizmente um ministro como Mariano Gago, o país acreditou que va-



lia a pena apostar no conhecimento. Nos últimos quatro anos, o que aconteceu foi a reversão completa [dessa aposta]. Nós estávamos a aproximar-nos da Europa em muitos indicadores e, nos últimos quatro anos, entrámos numa trajetória completamente oposta. Acho que o que o atual ministro está a fazer é tentar voltarmos à mesma trajetória, se calhar menos rapidamente. Agora, vamos crescer mais devagarinho. O acordo tem muito a ver também com esta questão de dar às instituições uma certa confiança e com uma certa partilha de responsabilidades financeiras, que eu acho importante. As instituições continuam a competir umas com as outras, o que é normal, mas há a ideia de que podem colaborar mais entre si para desenvolverem certas áreas que necessitam de conhecimentos complementares. A manutenção do financiamento no mesmo nível dos anos anteriores não defrauda as expectativas das universidades e politécnicos em relação a este Governo e contradiz, até, o discurso do PS antes de assumir funções governativas? Uma coisa é aquilo que gostaríamos de fazer, outra coisa é aquilo que é possível fazer. O Governo está a fazer o máximo que é possível, mas também não está a dar mensagens irrealistas daquilo que é possível. Por outro lado, também é verdade que o financiamento para a I&D não tem que ser só público. O que acontece no mundo inteiro é que, quando aumenta ligeiramente o financiamento público, o financiamento privado tem tendência a acompanhá-lo. No Governo anterior, o financiamento público diminuiu e o financiamento privado ainda mais, em comparação. Portanto, espera-se que, se houver um ligeiro aumento do financiamento público, possa também haver um aumento do financiamento privado. Não acha pertinente, como têm defendido os reitores, que o financiamento varie em função dos resultados de cada instituição do ensino superior? Primeiro, é preciso saber como se medem os resultados. Uma das questões críticas atuais, em todo o mundo científico, tem a ver com a forma de avaliação das instituições. Como é que se decidem os fatores de impacto, por exemplo? Como há muitas incertezas em relação à capacidade de avaliação, acho que o financiamento deve ter uma base, talvez em função do número de alunos das instituições, que seria o bolo principal. E depois devia haver uma percentagem pequenina para poder recompensar as coisas extraordinárias que possam ser feitas nessas instituições. Percebo essa visão de alguns reitores, não sei se são todos, mas acho que é preciso avançar com muito cuidado neste processo. Precisamente porque eu tenho preocupações de equidade. Até poderia utilizar-se o argumento contrário: aqueles que não estão a trabalhar muito bem, se calhar precisam de mais financiamento, para os ajudar a trabalhar melhor.

“Espera-se que, se houver um ligeiro aumento do financiamento público, possa também haver um aumento do financiamento privado. “

“Aqui [no i3S], há a possibilidade das pessoas dialogarem e perceberem os problemas dos outros. Hoje em dia, as perguntas mais interessantes são sempre na interface das áreas.“

Portugal cresceu significativamente em número de doutorados, investigadores, instituições de I&D e publicações científicas. No entanto, o país é acusado de ainda não ter conseguido transformar em crescimento, riqueza e emprego o conhecimento científico produzido nos centros de investigação. Acha esta crítica válida? Acho [essa crítica] totalmente artificial, pela seguinte razão: não há uma relação direta entre o conhecimento e as suas aplicações. A ideia de que devíamos financiar só a investigação que vai ter impacto direto na economia parece-me um argumento, não diria infantil, mas adolescente. [Uma ideia] de quem não conhece o mundo do conhecimento e da inovação. Tive colegas que me ensinaram uma coisa que eu sempre valorizei muito: hoje em dia, nós sabemos que quem está a fazer investigação básica ou fundamental muito boa dentro de pouco tempo vai ter aplicações extraordinárias. E vice-versa: quem está a fazer investigação aplicada muito boa vai ter necessidade de voltar

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à investigação fundamental para resolver questões críticas. Portanto, estas duas áreas não são independentes; estão muito ligadas. Isto é o que os países mais desenvolvidos e as universidades mais desenvolvidas do mundo já perceberam: o que se deve financiar é boa investigação, quer ela seja pura ou aplicada. E tentar forçar que uma coisa seja aplicada não funciona. Ela tem de surgir do próprio mecanismo do conhecimento.

I3S É UM “FAROL” No entanto, o i3S, de que foi um dos obreiros, é também um instituto de inovação… Temos os dois nomes juntos: investigação e inovação. Isto é um instituto que acredita que, através da investigação, a inovação também acontece, e vice-versa. O nome foi escolhido de propósito para indicar que é um instituto que está virado para o conhecimento. E que esse conhecimento pode ser fundamental ou aplicado. O que é que representa para si a concretização deste instituto? Espero que permita que pessoas das mais variadas origens científicas, culturais e nacionais sintam que têm a capacidade de arriscar fazer perguntas diferentes e entrar em domínios ainda pouco explorados. Isto não é fácil. É muito mais fácil para uma pessoa que trabalhou 20 anos num assunto, e que o conhece muito bem, continuar nesse assunto. Parar, e ir falar com aquele e começar a aprender novas coisas é mais difícil. Aqui [no i3S], há a possibilidade das pessoas dialogarem e perceberem os problemas dos outros. Hoje em dia, as perguntas mais interessantes são sempre na interface das áreas. Aquilo que é difícil de explorar não está aqui nem ali – está no meio. É aí que aparecem as questões novas, as hipóteses novas, as narrativas novas, que depois se podem testar. E o que é que este instituto representa para a ciência em Portugal? A originalidade deste instituto é que ele não foi imposto de cima para baixo. Estas pessoas juntaram-se, de baixo para cima, porque quiseram. Quando o INEB e o IBMC se juntaram, foi porque já havia muitos projetos em comum. Quando o Ipatimup se juntou ao INEB e IBMC, formando esta tríade, também foi porque tinham projetos em comum, partilhavam equipamentos muito caros, havia alunos com os mesmos orientadores… E foi essa experiência que permitiu criar o i3S. Não é fácil juntar instituições com culturas diferentes. Então, os portugueses que são o povo mais individualista que conheço… Mas não tenho dúvidas nenhumas de que isto vai funcionar. Isto pode ser um farol, que faça com que as pessoas deixem de ter medo de arriscarem em domínios diferentes. E pode também ser um farol para a U.Porto, considerando a sua ambição de se afirmar internacionalmente na investigação científica? Eu acho que já é [um farol]. Há muita gente na U.Porto que aprecia o que está a ser feito no i3S. O mundo académico é muito competitivo, há muitas invejas… Mas, depois dos 20 anos de experiência deste processo, uma parte significativa da comunidade académica tem respeito e admiração por aquilo que se está a tentar fazer no i3S. E depois há aqui gente jovem fabulosa. Uma das coisas em que a [nossa] sociedade pode ter alguma confiança é a de que há jovens de uma qualidade extraordinária. Muito mais abertos, com muito mais vontade de ir por esse mundo fora conhecer pessoas, trocar ideias, colaborar com outros grupos.

Texto Ricardo Miguel Gomes

Fotos Egídio Santos


Marzia Bruno A ITALIANA CUJA PAIXÃO PELA LUSOFONIA LEVOU AO TARRAFAL

Marzia Bruno fez a licenciatura em Escultura na Academia de Belas Artes de Florença, mas trocou a cidade de Botticelli, Leonardo da Vinci e Michelangelo (vivia entre a Galleria degli Uffizi e a Galleria dell’Accademia) pela instituição onde se formaram Soares dos Reis, Júlio Resende, Nadir Afonso, entre outros… Desta paixão pelo país e pela língua de Camões nasce

um doutoramento em História da Arte Portuguesa, sobre identidade lusófona, na FLUP. Juntou-lhe um conceito itinerante e criou um projeto de curadoria com exposições que passaram por Aveiro, Porto e Cidade Velha, em Cabo Verde. Pelo caminho entrou no Campo do Tarrafal e saiu de lá com um “Lampejo de liberdade”, projeto que lhe valeu um prémio internacional.

“A M Í L C A R.” É sonoridade que lhe causa alguma estranheza. Movimentos de boca para os quais a língua de Dante não a preparou. Mas habituou-se. Afinal, é o nome do companheiro que conheceu em Portugal e já lá vão mais de dez anos. Também foi nome que se entremeou nas histórias que ia ouvindo em Cabo Verde, de chinelo de dedo, a caminho da praia do Tarrafal. “Sempre gostei do Tarrafal. Da praia, das cores, das luzes. Passava muitas vezes pelo Campo. O pai do Amílcar, meu companheiro, foi lá prisioneiro”. Quem o diz é a investigadora e curadora italiana Marzia Bruno, que, de saia feita de capulana (pano tradicionalmente usado pelas mulheres moçambicanas), viaja entre Florença, Porto, Aveiro e Cidade Velha. Modelo seu, entregue às mãos de uma costureira cabo-verdiana. A memória das histórias prevalece até hoje, como aquela em que a avó Angelina (avó do namorado) foi ter com Amílcar Cabral ao barco atracado no porto de Dakar (Senegal, colónia francesa na altura), vindo da Guiné Conacri, e lhe deu roupas para que ele, disfarçado de mulher, pudesse circular e desenvolver os seus esforços revolucionários sem dar nas vistas. De resto, o nome que foi dado ao companheiro deve-se a esta proximidade com aquele que foi um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). A última vez que enfrentou o Campo que dizem ser de “morte lenta” foi no Natal de 2015. “É árido. A boca seca quando se está lá dentro. Fiz diversas fotos. Eu, o Amílcar e o irmão. E lá estavam as fotos do pai deles. Que ainda está vivo. Fui dar uma volta e começaram a surgir as ideias”. Criada pelo Estado Novo, a Colónia Penal do Tarrafal, no lugar de Chão Bom, na ilha de Santiago (Cabo Verde), recebeu os primeiros presos políticos portugueses em outubro de 1936 – ano em que rebentou a Guerra Civil em Espanha e a Alemanha realizou, em

Berlim, os Jogos Olímpicos de verão. O prisioneiro mais jovem tinha 17 anos. Edmundo Pedro esteve dez anos à espera de julgamento e, no final, foi condenado a 22 meses de prisão. O Campo fechou em 1954 para reabrir, em 1961, como Campo de Trabalho de Chão Bom. Até 1974 funcionou como penitenciária para militantes anticolonialistas de Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Por lá passaram mais de 340 portugueses e 230 africanos. Da má alimentação aos trabalhos forçados, do paludismo aos espancamentos, além das semanas passadas na “frigideira” (caixa retangular de cimento com placa de betão no teto e porta de ferro), nas contas do jornalista cabo-verdiano José Vicente Lopes ali morreram 37 pessoas. Trinta e dois eram portugueses. “O espaço é arrepiante e é, ainda, uma ferida aberta”, reconhece Marzia Bruno. Foi depois da última visita ao Campo do Tarrafal que nasceu “A Glimmer of Freedom”, nome do projeto que venceu o apexart International Franchise Program 2016-17. A apexart é uma associação artística norte-americana sem fins lucrativos que visa dar a curadores independentes e artistas a oportunidade de proporem e produzirem uma exposição a acontecer em qualquer lugar do mundo. Entre 423 candidaturas enviadas por 53 países, foi o seu projeto para o Campo do Tarrafal que arrecadou o primeiro prémio. Através da música, dança, pintura, artes performativas e vídeo mapping, vários artistas locais vão trabalhar questões como o património, a história e as vivências do local. O “Lampejo de Liberdade” vai envolver escolas, com quem Marzia Bruno irá desenvolver atividades educativas, como também antigos prisioneiros, com quem irá realizar entrevistais e palestras. O espaço já foi cedido pelo Instituto do Património da Cultura de Cabo Verde. Todas as instalações vão ser produzidas com recurso a materiais locais.

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Fotos Egídio Santos

Texto Anabela Santos

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Momento de partilha com a comunidade escolar de Cabo Verde, no âmbito do projeto “Identidades: Âncoras de Passagem”.

Casa Museu Abel Salazar com trabalho no exterior de André Alves, no âmbito do projeto “Identidades: Variáveis Convergentes”.

Campo do Tarrafal: interior de uma cela.

DE ITÁLIA PARA A LUSOFONIA

É O CONCEITO QUE VIAJA

A primeira vez que esteve em Portugal foi em 2000. Veio visitar a irmã que, na altura, e ao abrigo do Programa Erasmus, se encontrava a estudar na Universidade de Aveiro. Em 2005, Marzia Bruno decide candidatar-se ao mesmo programa e tem a possibilidade de frequentar a Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Foi na capital, enquanto subia e descia a calçada portuguesa, que descobriu o maravilhoso novo mundo dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). “Mas, afinal, o português fala-se noutros sítios. De formas diferentes. Não estou a acreditar! Que giro! Itália não tem esta relação que Portugal tem com África”. E foi abrindo espaço para os novos horizontes que a cultura lusitana ia trazendo. “Fascinava-me esta ideia dos portugueses como descobridores. Revia-me neles. Gosto de descobrir…”. Voltou para Florença e terminou o curso de Escultura em 2007. Consciente de que se queria afastar um pouco da escultura, mas manter-se fiel ao fascínio por arte contemporânea, performance, instalação, exploração do espaço e pela prática da investigação e envolvência conceptual, decide fazer um mestrado. Optou pelo curso de Estudos Artísticos, especialização em Estudos Museológicos e Curadoriais da Faculdade de Belas Artes da U.Porto. Terminou a tese com 20 valores, foi a melhor aluna do ano e teve direito a uma menção honrosa. O projeto de mestrado foi sobre arte pública, em Aveiro. “Fiz uma ficha técnica com o levantamento de ações de arte pública, criei percursos temáticos e uma plataforma em que juntei imagens antigas com imagens atuais”. Também trabalhou voluntariamente no Museu de Aveiro (Santa Joana, agora Museu de Aveiro, – nas atividades educativas), experiência que lhe permitiu perceber o que realmente lhe interessava: explorar as áreas da museologia e da curadoria. Queria entender um pouco melhor o papel do curador, cada vez mais presente no mundo artístico. “É um elemento-chave que comunica entre o público e o artista. Um elo. E tem de conhecer muito bem o percurso e visão dos artistas para saber se ‘encaixam’ no seu conceito”. Era uma espécie de “revolta” que sentia como artista.

Foi em Aveiro que viveu uma daquelas experiências que aponta caminhos: conheceu uma exposição itinerante, de Pedro Lapa, que lhe fez levantar a seguinte questão: e se em vez de fazer mover as obras, fizesse mover o conceito? E assim nasceu o “Conceito Itinerante”, com o qual se aventurou para um projeto de curadoria que iria fazer passar por Aveiro, Cidade Velha e Porto, e que seria matéria-prima para um doutoramento em História da Arte Portuguesa, na Faculdade de Letras da U.Porto. “Não posso fazer uma exposição itinerante, mas posso ter um conceito. E é o conceito que viaja”. Outro pilar do seu trabalho foi encontrar estratégias de internacionalização da arte contemporânea. “Estas exposições também foram pensadas de forma a internacionalizar artistas, obras e lugares”. E mãos à obra. Sendo a lusofonia o fio condutor da empreitada, “e esta paixão pela língua de Camões que não sei de onde vem”, fez uma pesquisa, levantamento e seleção de artistas portugueses e lusófonos que convidou a explorarem a identidade lusófona, inserida no contexto do lugar onde as exposições se iriam realizar. Pretendia fazer a análise de como a obra se integra nos espaços, daí que a identidade do local tenha funcionado de matriz para este ‘conceito itinerante’. “Quis analisar um lugar comercial, um lugar histórico (lugares improváveis) e um lugar museológico”. A primeira exposição foi em Aveiro, local que conhecia melhor. Procurou espaços improváveis, ou alternativos, daí que tenha arrancado no espaço comercial Olá Ria, do Centro Cultural e de Congresso de Aveiro. “Identidades: Circunstâncias Transversais” integrou obras de pintura e escultura de seis artistas nacionais: Alexandra de Pinho, Glória Mendes, Madalena Metelo, Nelson Santos e Patrícia Guerra. A segunda exposição foi realizada em Cabo Verde, no Convento de São Francisco, na Cidade Velha. Intitulou-se “Identidades: Âncoras de Passagem”. Para este projeto de curadoria reuniu obras previamente realizadas e outras criadas especificamente para a exposição, mas todas com leituras identitárias, relacionadas ou à volta da raiz lusófona. Expôs obras de cinco artistas cabo-verdianos: Manuel Figueira, José Maria Barreto, Alex da Silva, Nelson Lobo e Tchalé Figueira. A terceira exposição aconteceu na Casa-Museu Abel Salazar, no Porto. Mal entrou no espaço, pensou: “O Abel Salazar deveria usar a casa dele como um laboratório a céu

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Texto Anabela Santos

Fotos Egídio Santos

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aberto. Este espaço não se usa como laboratório? Vou transformar aquilo tudo! E virei tudo ao contrário”. Literalmente. Fez o levantamento exaustivo da coleção da Casa Museu, percebeu as dimensões da vida e obra de quem lhe deu nome. Trabalhou os conceitos de presença, ausência e esquecimento. “Se eu criar o nulo, será que desperta a atenção? É que, normalmente, sentimos falta quando não temos. Só damos pela coisa quando a perdemos. Será que temos de chegar a este ponto?” De forma mais ou menos implícita, tentou puxar pela identidade do lugar. “O Abel pintava atrás das pinturas”, motivo pelo qual decidiu virar os seus quadros ao contrário. “Expus esta parte inédita da coleção que esteve ocultada pela força de se ter entendido que apenas uma era a parte frontal. Mas é sempre dele. Ele fazia muito isto”. Para esta exposição, que intitulou de “Identidades: Variáveis Convergentes”, selecionou sete artistas: Ana Vieira, André Alves, Isaque Pinheiro, Miguel Leal, Raquel Melgue, Rodrigo Oliveira, Vítor Israel, sendo que cinco deles criaram obras novas, pensadas para o local.

O PAPEL DA CURADORIA As três exposições, que passaram por dois países e três cidades, obedeceram a uma estratégia de levantamento e estudo da obra de artistas da lusofonia, nomeadamente dos 17 que apresentaram obras nas suas exposições, incluindo inéditos. Além de potenciar a criação, o projeto de curadoria (“Conceito Itinerante”) serviu de mote para a realização de atividades educativas mas também de conferências, como aconteceu em Cabo Verde, sobre o conceito de preservação e património. O que voltará a acontecer com o projeto que tem para o Campo do Tarrafal. “É preciso trazer aquele espaço para a realidade. Ultrapassar o trauma”. Até porque a ilha carece de espaços expositivos. “Por que não conceber aquelas salas como espaços laboratoriais? De pura criação. Porque dói lembrar o que aquilo era?”. Há, no entanto, um cuidado que preocupa e irá sempre balizar a ação de Marzia Bruno no local: “O cuidado de não deturpar ou banalizar a passagem que se efetuou”. O respeito pela identidade do espaço a ser intervencionado. Da pintura à performance, construindo

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e desconstruindo a presença humana no local, terá a trabalhar consigo uma equipa pluridisciplinar que irá abordar a história do local em múltiplas perspetivas. Das entrevistas que vai realizar aos sobreviventes será extraída a matéria-prima de trabalho para os artistas. “É uma forma de preservar a memória e dar espaço à criação com artistas locais”. ‘A Glimmer of Freedom’ acontece de 8 de abril a 6 de maio. A escolha das datas não é inocente, já que abrange o 18 de abril, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, e o 5 de maio – Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP. “É o dia da Libertação. Foi o pai do Amílcar que me falou de 1 de maio 1974, porque foi uma das pessoas ligadas à libertação, na Zona de Santa Catarina. E fechamos”. O objetivo no Tarrafal é “preservar a memória vs locus (o lugar)”. Às vezes parece que “ainda se tem medo de falar sobre o assunto”. Que “é melhor não mexer muito porque se mexer dói”. Consciente dos perigos de interferir numa ferida que “ainda está aberta”, quer tornar o espaço “mais vivencial”. Porque, “se não se der este salto, o Campo vai ficar esquecido ou abandonado. Cheio de espinhas e poeira. É um fantasma que lá está. Quando se pode fazer daquele um espaço vivo”. E este também pode ser, defende a artista, o papel da curadoria, ou seja, o de despertar consciências. De sentidos bem despertos, na arte como na vida, Marzia Bruno alerta-nos para os perigos do decapitar da emoção e incentiva o apuramento da ‘Narrativa de Fuga’ de cada obra para que nos possamos sentir envolvidos pelos circuitos que a arte oferece. Deixa-nos um desafio: que cada um se atreva “a descobrir a parte íntima e artística que nos une”.

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PRESIDENTE VAI CONDECORAR A FCUP PRÉMIO PARA ESTRATÉGIA DE INTERNACIONALIZAÇÃO

A Faculdade de Ciências vai ser distinguida com o título de Membro Honorário da Ordem da Instrução Pública. O anúncio foi feito pelo Presidente da República durante o Dia da FCUP 2016, evento que, a 7 de outubro, assinalou o 105.º aniversário da faculdade. “Foi com estupefação que descobri que nunca o poder político galardoou adequadamente os méritos desta faculdade”, começou por dizer Marcelo Rebelo de Sousa, antes de anunciar a distinção. “E a decisão só podia ser uma, que é atribuir -lhe o título de Membro Honorário da Ordem da Instrução Pública”.

A U.Porto conquistou o Prémio para a Inovação na Internacionalização 2016 da European Association for International Education, plataforma europeia para a troca de conhecimento, experiências e metodologias ao nível da mobilidade académica. Coube à vice-reitora para as Relações Externas e Cultura, Maria de Fátima Marinho (na foto), receber aquele que é o único galardão a distinguir instituições europeias do ensino superior pelas suas estratégias e ações de internacionalização. A U.Porto viu assim reconhecida, pela maior associação do setor, a política de internacionalização que tem desenvolvido nos últimos dois anos, em particular no que respeita à participação e coordenação de consórcios e projetos europeus de mobilidade internacional de estudantes, docentes e colaboradores.

Carlos Costa é o novo Provedor dos Estudantes da U.Porto. O Professor Emérito e antigo diretor da FEUP foi nomeado pelo Conselho Geral para substituir Fernando Nunes Ferreira, que exercia o cargo desde 2010. Nascido no Porto em 1948, Carlos Costa fez todo o seu percurso académico na FEUP. Foi aí que se licenciou em Engenharia Química (1971) e que desenvolveu a sua carreira de docente e investigador, tendo ascendido a professor catedrático em 1996. Embora não disponha de poder decisório, é ao Provedor que os estudantes devem apresentar queixas ou sugestões relacionadas com órgãos, serviços e agentes da Universidade e das suas unidades orgânicas. Os estudantes podem contactar Carlos Costa pelo e-mail provedor@reit.up.pt ou marcando no SIGARRA uma reunião no Calendário do Provedor de Estudante.

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Textos Ricardo Miguel Gomes

Manuel Barros, antigo diretor regional do Norte e presidente do Conselho Diretivo do Instituto Português do Desporto e da Juventude, é o novo diretor dos Serviços de Ação Social da U.Porto (SASUP). Com mais de 30 anos de carreira como professor do ensino secundário, Manuel Barros, de 58 anos, chega à liderança dos SASUP depois de ter passado por cargos de gestão em diversos organismos públicos e também numa instituição do ensino superior, o Instituto Politécnico do Cavado e do Ave. É licenciado em Filosofia e mestre em Administração Pública. Manuel Barros promete “uma liderança de proximidade com os estudantes” e o reitor Feyo de Azevedo acredita que o novo diretor dos SASUP pode “melhorar ainda mais aquele que é um serviço de enorme relevância para a vida da Universidade”.

Fotos Egídio Santos

MANUEL BARROS É O NOVO DIRETOR DOS SASUP

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A U.Porto concedeu o título de doutor honoris causa ao jornalista e historiador Germano Silva, em cerimónia realizada a 3 de novembro, no Salão Nobre da Reitoria. O padrinho do doutorado foi o Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, cabendo ao historiador e docente da FLUP Luís Miguel Duarte ser o elogiador. A atribuição do título é o “reconhecimento da U.Porto por quem soube transformar o seu empenho na recolha do saber numa forma de partilha coletiva da estima pelo património da cidade do Porto”. Germano Silva promoveu uma “notável forma de aproximação dos cidadãos à história do Porto, que se deseja enaltecer com a atribuição do título de doutor honoris causa”.

Foto gentilmente cedida por Leonel de Castro (JN)



À volta da Politécnica DOS TEMPOS E DAS PESSOAS A PRETEXTO DOS ESPAÇOS Em torno do velho edifício da Academia Politécnica – hoje sede da Reitoria da U.Porto –, os nomes das ruas homenageiam aqueles que dela fizeram parte, a construíram e acompanharam na sua transição para a instituição universitária. Fizemos o roteiro possível desse novelo de arruamentos que evocam outros tempos e outras pessoas, desvendando o significado dos respetivos topónimos.

PARADA LEITÃO (PRAÇA DE) A vida da Academia Politécnica não foi fácil, e a construção do seu próprio edifício parece testemunhar as convulsões do século XIX, atravessando-o como projeto inacabado, sempre adiado, remodelado pontualmente por exigências imediatas. Do projeto de Carlos Amarante, aprovado em setembro de 1807, cerca de dois meses antes da família real portuguesa embarcar para o Brasil, até à conclusão do edifício na véspera da República, passa-se um século. O mesmo em que viveram os homens que batizam os espaços que o rodeiam e de quem falaremos.

Em 1809, num país que continua ameaçado pela presença francesa, nasce José de Parada e Silva Leitão, cujo nome identifica a praça a ocidente da Academia, uma das preferidas da juventude portuense pela abundância de cafés que a bordejam. A largueza da praça foi obtida já no início do séc. XX através da demolição de um quarteirão de casas intermédio entre a Politécnica e as fachadas agora visíveis. A vida de José Parada Leitão é uma imagem da agitação da primeira metade do séc. XIX: inicia uma carreira militar, mas os estudos em

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Fotos Egídio Santos

Texto Paulo Gusmão Guedes e Susana Barros

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Praça de Parada Leitão, antes e agora.

Matemática, na Universidade de Coimbra, atraem-no, apenas para serem interrompidos pela sua adesão ao movimento liberal contra o absolutismo miguelista. Integra-se no batalhão académico, ruma ao Porto. Derrotado o governo revolucionário da Junta do Porto, Parada Leitão segue em 1828 o caminho do exílio, e embarca na Galiza para Plymouth, depois passa para Ostende, na Bélgica. Aventureiro e idealista, caminha (literalmente) de Ostende a Paris, onde se avista com Saldanha e, recomendado, segue para Bayonne, alistandose no batalhão de emigrados das forças do general Espoz y Mina, que pretende libertar a Península Ibérica do absolutismo (e talvez uni-la num só país). Frustrado esse movimento, junta-se às forças de D. Pedro de Bragança na campanha liberal de recuperação do país e participa na defesa do Porto, em 32 para 33. A (relativa) pacificação do país permite-lhe retomar os seus estudos: conclui o curso de Matemática em 1837, em Coimbra. Aos 28 anos, tornase lente da cadeira de Física e Mecânica Industriais da Academia Politécnica do Porto. Mas a agitação política dele tomará conta novamente, e serve como ajudante-general de Sá da Bandeira por ocasião da Patuleia, em 1846. O resultado do conflito, em desfavor da Junta Governativa do Porto, leva-o a abandonar definitivamente a carreira militar. O nome de Parada Leitão está tão ligado à Academia Politécnica quanto à Escola Industrial do Porto, de que é o primeiro diretor, em 1853. O crescimento industrial, associado à (lenta) penetração das novidades mecânicas, exigia um ensino de caráter prático, formando

engenheiros, oficiais de marinha, pilotos, agricultores, diretores de fábricas e artistas. Era essa a vocação da Academia Politécnica do Porto, criada em 1837, em sintonia com as necessidades da burguesia da cidade. Mas era um ensino superior, reservado a poucos, pelo que se estabelece a Escola Industrial para a formação de operários especializados. No centro da articulação entre as duas escolas, que por mais de meio século iriam partilhar as mesmas instalações, equipamento e, até, alguns professores, está a figura de José Parada Leitão. As condições do ensino nas duas instituições não seriam as ideais, uma vez que, para além delas, ainda ocupavam o mesmo edifício o Liceu Nacional, a Academia Portuense de Belas-Artes, o Real Colégio de Nossa Senhora da Graça dos Meninos Órfãos (fundado em 1650) e lojas e sobrelojas cujo rendimento revertia para os órfãos. Na realidade, o investimento em obras públicas do período da Regeneração parecia ter esquecido o edifício da Politécnica, que continuava por concluir, como ainda se verifica perto do final do século, em 1892: “É acanhadíssimo para nele se poderem instalar convenientemente os seus gabinetes, laboratórios, coleções e salas de estudo.Uma grande parte das dependências ao rés do chão, que podiam ser aproveitadas, estão ocupadas [por] uma loja de fazendas, uma mercearia, uma relojoaria, um restaurante de caldos de galinha, um café, uma loja de barbear, três tamancarias e uma loja de linheiro! Dentro dos muros dos edifícios acham-se um casarão meio arruinado, nas piores condições higiénicas, servindo de colégio aos (...) meninos órfãos, e uma igreja prestes a cair”.

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Fotos Egídio Santos

Texto Paulo Gusmão Guedes e Susana Barros

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FERREIRA DA SILVA (RUA DO DOUTOR) Estas são as observações do químico António Ferreira da Silva, que em 1877 – ainda antes de completar 24 anos – chegara à Academia Politécnica do Porto com um bacharelato em Filosofia Natural (Ciências Naturais) pela Universidade de Coimbra, sendo contratado como lente substituto da cadeira de Química Orgânica e Inorgânica. Parada Leitão terá sido professor de Ferreira da Silva quando este, em 1870, se inscrevera simultaneamente na Academia Politécnica e no Instituto (ex-Escola) Industrial do Porto. Parada Leitão já se aproximava do fim da vida quando Ferreira da Silva se tornou seu colega e faleceu no mesmo ano em que este chegava a lente proprietário: 1880. Já no século XX, Ferreira da Silva redigiu a biografia do seu antigo professor. Desde o seu início que a Politécnica vivia subfinanciada e mal equipada – chegou a ser considerada a sua extinção em 1854, com a firme oposição de Parada Leitão, e, em 1863, a sua redução a escola industrial. Apesar de se orientar expressamente para a formação prática, a Politécnica era, contudo, acusada de ministrar um ensino excessivamente teórico. Mas, ao iniciar-se a década de 80, a Politécnica estava em transformação, e a própria ação de Ferreira da Silva era disso uma manifestação: recém-chegado, promove o reapetrechamento do laboratório de química, de que era diretor por inerência, e a aquisição de obras recentes desta disciplina para a biblioteca. Dedica-se à experimentação labora47

Retrato de António Ferreira da Silva.

torial, fundamental para o seu próprio desenvolvimento como químico, reforça a componente prática na sua cadeira e permite a utilização do laboratório para trabalhos práticos a todas as horas. Em 1884, publica o 1.º volume do seu Manual de Química Elementar, que enriquecerá a bibliografia de base do curso, até então predominantemente francesa; em 1888, sairá o 2.º volume. Ferreira da Silva tem um importante papel na proposta de reforma do ensino da Academia Politécnica de 1885, de que um dos resultados é o desdobramento da sua cadeira em duas (Química Inorgânica; Química Orgânica e Análise) refletindo, afinal, a crescente importância do aprofundamento dos estudos de química na formação dos quadros industriais. Mas a atividade de Ferreira da Silva estender-se-á para além da Politécnica. Em 1880, a Câmara Municipal solicitara-lhe estudos sobre a qualidade de diferentes fontes ou rios para o abastecimento de água canalizada ao Porto: Ferreira da Silva confirma a mesma opção de estudos anteriores – o rio Sousa. Em 1882, é convidado pelo município para chefiar a instalação de um laboratório de controlo da qualidade alimentar dos produtos consumidos na cidade. O Laboratório Municipal iniciará a sua atividade em 1884 com Ferreira da Silva na direção, mas fará muito mais: análises hidrológicas, agrícolas, farmacêuticas, sanitárias e toxicológicas. Será um local de ensino, prática e experimentação, complementando o laboratório da Politécnica. Será o instituto de investigação de Ferreira da Silva e de outros químicos, e de onde sairão resultados reconhecidos internacionalmente. Aqui, a

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carreira do químico orientar-se-á decisivamente para a saúde pública. Alguns trabalhos de análise química de Ferreira da Silva, pela sua importância e mediatismo, garantirão o seu reconhecimento público e, claro, alguns detratores: tais são os casos da demonstração de que os vinhos portugueses exportados para o Brasil não eram adulterados na origem, e o de Urbino de Freitas, médico e lente da Escola MédicoCirúrgica do Porto acusado de envenenar os seus sobrinhos, sendo o Laboratório Municipal responsável pela identificação dos alcaloides usados no crime. A importância do estabelecimento de ligações com a comunidade científica nacional e internacional foi bem compreendida por Ferreira da Silva, e a sua presença em congressos e comissões normalizadoras será frequente, assim como a participação em sociedades e publicações científicas nacionais (cria em 1905 a Revista de Química Pura e Aplicada) e estrangeiras. O seu nome ganha uma indubitável expressão internacional. Será este também, num ainda maior grau, o caso do matemático Francisco Gomes Teixeira.

GOMES TEIXEIRA (PRAÇA DE) Se a rua oriental que limita o edifício da Politécnica – a rua do Doutor Ferreira da Silva – é aquela para onde ninguém escreve (não tem números de polícia, e para ela abrem-se apenas duas portas, uma das quais, precisamente, permitia o acesso ao laboratório de química da Politécnica), a praça de Gomes Teixeira é aquela que raramente se nomeia para além do endereço de correio, tanto os leões alados da sua fonte predominam sobre a verdadeira designação. Foi deste chafariz que brotou em 1886 a primeira água canalizada a chegar ao Porto, a água aprovada por Ferreira da Silva, e cuja qualidade – perante a preocupação pública – teve que então reafirmar em artigos e conferências. Francisco Gomes Teixeira, dois anos mais velho do que Ferreira da Silva, era dotado de uma impressionante capacidade intelectual. Licencia-se em janeiro de 1875 e em julho do mesmo ano é já doutor em Matemática. A sua tese doutoral sobre mecânica celeste tem como arguente o matemático e astrónomo José Falcão – esse mesmo cuja rua homónima, recordando a sua militância republicana, espreita de nordeste para a Praça de Gomes Teixeira – que, depois de discutir veementemente durante a sessão as propostas avançadas pelo doutorando, declara finalmente “se o que V. Ex.ª acaba de dizer está bem, tem muito valor; e, se não está, tem pelo menos o mérito de eu não lhe saber dizer onde errou”. Em 1877, Gomes Teixeira será contratado como lente substituto da Faculdade de Matemática de Coimbra e três anos depois já é lente proprietário. 49

Em 1883, Gomes Teixeira solicita a sua transferência para a Academia Politécnica do Porto. Não seria esta escola de engenheiros o lugar ideal para a investigação teórica do matemático, e os professores do Porto recebiam sensivelmente menos do que os de Coimbra, mas a vontade da jovem portuense com quem se casara em 1882 ou 83 terá sido determinante nesta escolha. O matemático, entretanto, não desdenhara a intervenção política, e seria deputado às Cortes pelo Partido Regenerador em 79, 83 e 84. Surpreendentemente, declara mais tarde: “De política sou e fui sempre profundamente ignorante. Olhe, fui deputado uma vez, no tempo do Fontes [Pereira de Melo]! E, não gostei”. Em 1886, três anos após a sua entrada na Academia Politécnica, Gomes Teixeira é nomeado “sem concurso” para a direção da instituição, cargo que ocupará até à criação da U.Porto. É um importante período da vida do matemático: o seu Curso de Análise Infinitesimal – Cálculo Diferencial, prémio da Academia de Ciências de Lisboa, será publicado no ano seguinte, em 87, o mesmo ano em que o seu Tratado de las Curvas Especiales Notables é premiado pela Academia de Ciências de Madrid; reescrita em francês, esta última obra será também distinguida pela Academia de Ciências de Paris. Mas a produção científica anterior de Gomes Teixeira era já notável e abundante, sendo, a partir de 78, os seus artigos publicados com frequência em revistas científicas francesas, belgas, italianas, alemãs... No panorama nacional, o seu Jornal das Ciências Matemáticas e Astronómicas iniciara a publicação em 1877 e, apesar do seu âmbito científico restrito, seria apoiado financeiramente pelos governos do rotativismo, junto de quem o prestígio de Gomes Teixeira era evidente. A ação do diretor da Academia é referida em termos muito gerais pelos seus biógrafos, falando-se, a partir de 1885, de “período áureo” da história da instituição, quer por graça da qualidade dos docentes, quer por virtude das reformas introduzidas naquele ano. Seria talvez Gomes Teixeira a pessoa indicada para este cargo, mas certamente que lhe pesava: em 1900, apresenta a sua demissão, que não foi aceite, mantendo-se na direção da Politécnica. Com a chegada da República, assim também chegou, em 1911, o fim da Academia Politécnica. O prestígio científico de Gomes Teixeira e de Ferreira da Silva, ambos monárquicos e católicos convictos, foi mais valorizado pelo governo republicano do que a sua orientação política, sendo o primeiro empossado como primeiro reitor da U.Porto e o segundo como primeiro diretor da sua Faculdade de Ciências. Mas a relação que estabeleceram com os poderes republicanos – ascendentes ou estabelecidos – não será a mesma para ambos. Porém, essa é outra história.

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Para saber mais: ALVES, Maria da Graça Ferreira (2012), Francisco Gomes Teixeira – O Homem, o Cientista, o Pedagogo, U.Porto Editorial, Porto ALVES, Jorge Fernandes; ALVES, Rita C. (2013), A. J. Ferreira da Silva – Nos Caminhos da Química, U.Porto Editorial, Porto FERREIRA DA SILVA, António Joaquim (1917), “Homenagem à Memória de José de Parada e Silva Leitão”, Revista de Chimica pura e applicada. Série II, Ano 2, números 1-3, 4-6, 7, 8-9, Porto. Disponíveis na página web da Sociedade Portuguesa de Química: http://www.spq.pt/publicacoes_spq Ver ainda em: www.up.pt > Universidade > História > Figuras/Património/ Memória da U.Porto


Dar é o melhor remédio Desde março deste ano que mais de 70 estudantes da U.Porto percorrem as farmácias da cidade para garantir medicamentos gratuitos a várias famílias carenciadas da zona da Vitória. Por enquanto, “contentam-se” com um “Porto com + Saúde”. No futuro, querem ajudar a salvar vidas em todo o país. Junto ao balcão da centenária farmácia Aliança, em plena Baixa do Porto, Teresa Couto e Carina Vieira atiram o melhor sorriso a quem chega. Estão habituadas a fazê-lo desde que começaram a pôr de parte os livros do Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas da Faculdade de Farmácia da U.Porto (FFUP) para dedicarem algumas horas por semana a sensibilizar os utentes daquela e de outras farmácias portuenses a ajudarem a custear os medicamentos de um grupo de idosos da cidade. “O que fazemos é garantir que doentes crónicos que não tenham acesso a medicação por dificuldades financeiras consigam tê-la gratuitamente”, apresenta Teresa Couto, presidente da Associação Cura+ e um dos rostos principais do projeto “Porto com + Saúde”. O nome diz tudo. Ou, pelo menos, assim o idealizaram Joana Carvalho e Sara Batista, as duas estudantes – hoje diplomadas – da FFUP que, em 2015, descobriram durante um estágio extracurricular aquilo que lhes passava ao lado entre as quatro paredes da faculdade. “Elas aperceberam-se de que havia um número muito grande de pessoas que não conseguiam pagar a medicação de que precisam para sobreviver”, explica Teresa Couto. Face à inexistência de um projeto de voluntariado voltado especificamente para estudantes de ciências farmacêuticas, decidiram juntar dois em um e criar a sua própria associação, mobilizando para isso outros colegas da faculdade. Teresa foi um deles. “Foram entrando cada vez mais pessoas e, no caminho, fomo-nos rodeando de professores e profissionais de saúde que nos ajudaram a desenvolver todo o circuito do projeto”. A faculdade foi a primeira a apoiar. Seguiram-se algumas das que são

quadro de honra

Texto Tiago Reis

hoje as farmácias parceiras da Cura+ e a Associação Nacional de Farmácias (ANF). À equação juntou-se por fim o Centro Social e Paroquial de Nossa Senhora da Vitória, ao qual coube a tarefa sinalizar os primeiros “alvos” do projeto. Condição: sofrerem de uma doença crónica e não terem possibilidades financeiras (rendimento mensal per capita inferior a 100 euros) para comprar a sua medicação sujeita a receita médica. No terreno desde março de 2016, a fase “beta” do “Porto com + Saúde” começou por envolver três farmácias (atualmente são seis), onde as equipas de estudantes voluntários entram em ação três dias por semana, durante duas horas. Tempo suficiente para distribuírem sorrisos, entregarem brochuras e explicarem aos clientes ao que vêm. Seguidamente, “a pessoa pode fazer um donativo dirigido, a partir de uma lista que temos com os medicamentos que são necessários para cada doente. Ou então um donativo não dirigido, no valor que acharem apropriado. Posteriormente, os doentes dirigem-se às farmácias e, mediante a apresentação da receita médica, recebem o seu medicamente de forma gratuita e anónima”, explica Teresa Couto. A verdade é que, menos de um ano após o arranque do projeto, os resultados não podiam ser mais encorajadores. Abrangendo inicialmente 40 agregados familiares por mês, o “Porto com + Saúde” deve chegar a 60 famílias até março de 2017. ”Hoje em dia, já conseguimos pagar os medicamentos de todos os doentes exclusivamente com os donativos que angariamos nas farmácias”, refere a finalista da FFUP. Em tempos de crise, vem também ao de cima o espírito solidário de quem, muitas vezes, dá o que (não) pode. “Há pessoas que até nem têm possibilidades, mas sentem que querem contribuir e dão aquilo que podem dar”. As palavras da futura farmacêutica fluem com a naturalidade de quem já se habituou aos microfones e às máquinas fotográficas, o preço a pagar pelo “feedback muito positivo” que o projeto vai tendo no exterior. A começar pelas farmácias parceiras. “Os estudantes estão muito envolvidos e integram-se perfeitamente na nossa rotina de trabalho. Por outro lado, é muito positivo porque o número de pessoas a precisar deste apoio é cada vez maior”, nota Sónia Correia, farmacêutica-adjunta da Farmácia Aliança. Pelo meio, “estamos sediados na Casa das Associações, que nos cedeu um espaço incrível, mantemos a parceria com a FFUP, a nossa casa-mãe, e sentimos muito apoio das farmácias e dos parceiros comerciais porque eles veem os resultados a acontecer”, completa Teresa Couto. A ANF também viu. Tanto que atribuiu à Cura+ o Prémio João Cordeiro – Inovação em Farmácia 2015, na categoria de responsabilidade social.

FAZER A DIFERENÇA Mas o que leva afinal tantos estudantes a abdicarem de parte do seu tempo para ajudar a salvar a vida de quem não conhecem? A resposta podia multiplicar-se pelos 110 colaboradores que compõem a estrutura da Cura+, incluindo os mais de 70 voluntários que dão a cara pelo “Porto com + Saúde”. Entre estes destacam-se os estudantes da FFUP, mas também há quem venha das faculdades de Belas Artes e de Economia. A diversidade é bem-vinda. “Os voluntá-

Fotos Egídio Santos

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Teresa Couto, Sónia Correia e Carina Vieira (da esq. para a dir.).

COMO AJUDAR? Para apoiar o “Porto com + Saúde” basta deixar o donativo pretendido numa das seis farmácias aderentes – Aliança (Rua da Conceição), Lemos (Praça de Carlos Alberto), Vitália (Praça da Liberdade), Moreno (Largo de São Domingos), Clérigos (Rua dos Clérigos) e Parente (Rua das Flores). Em alternativa, pode fazê-lo através de transferência bancária para o NIB da Associação Cura+: 0033 0000 4547 4174 5320 5 Os interessados podem ainda associar-se à campanha como voluntários. Mais informações em http://www. curamais.com/ ou através do e-mail geral@curamais.com.

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rios podem candidatar-se através do nosso site ou falar diretamente connosco. Depois são distribuídos de acordo com as suas características pelos vários departamentos da associação”. Contas feitas, “neste momento temos um banco de voluntários que nos permite dar a todos a oportunidade de participarem”. No caso de Teresa Couto, a experiência “tem sido muito gratificante. Todos sabemos que há pessoas que passam dificuldades extremas, mas é diferente vermos isso ao nosso lado. Ao mesmo tempo, é ótimo sentir que posso fazer a diferença na cidade que me acolheu”. “Fazer a diferença na vida das pessoas” foi também o que levou Carina Vieira a juntar-se ao projeto depois de ter descoberto a Cura + durante uma feira de voluntariado na FFUP. Um ano depois, o balanço é “muito positivo” para a estudante do 4.º ano de Ciências Farmacêuticas e atual coordenadora do departamento de intervenção social da associação. “É um projeto muito motivador, exige muita comunicação e é uma forma de crescermos profissionalmente, porque um dia vamos estar à frente de um balcão a contactar com esta realidade”.

LEVAR SAÚDE A TODO O PAÍS A poucos meses da conclusão do projeto piloto, e já com outro projeto na forja – o “Polimedicação + Segura”, destinado a ajudar doentes polimedicados a gerir a sua medicação da forma mais adequada –, é com confiança e ambição que Teresa Couto e os restantes estudantes encaram o futuro. “Por enquanto, esperamos atingir todas as farmácias da zona da Vitória. Posteriormente, queremos chegar a todas as regiões da cidade do Porto”. E prometem não ficar por aí. “O nosso objetivo a longo prazo é conseguir alastrar as farmácias Cura+ para mais cidades do país, a começar pelas que têm faculdades de ciências farmacêuticas [Covilhã, Coimbra, Lisboa e Algarve] ”. O remate surge em forma de mote: “Queremos um Portugal com mais saúde!”.


A ciência das pequenas coisas

Em 2007, Joana Moscoso deixou Portugal levando na mochila uma quase-licenciatura em Biologia e o sonho de menina de vingar na investigação cien-

tífica. Nove anos depois, a bióloga-empresária apaixonada pelo mundo das bactérias desafiou a lógica e está de volta para fazer o que melhor sabe.

O coração ainda aperta e “há fogo de artifício no cérebro” quando Joana Moscoso contempla o céu azul no caminho que percorre a pé de casa até ao trabalho. Esse é apenas um dos pequenos prazeres de que não prescinde desde que, em janeiro deste ano, trocou Londres pelo Porto. Veio contra a maré. “Quando decidi vir falava-se muito na crise. O meu próprio pai telefonou-me um dia e disse: ‘Filha, não achas que entraste num avião para ir para longe e agora estás a atirar-te do avião a meio do caminho?’”. Atirou-se. “Muito a medo”. Mas não se arrepende. “Tem sido uma boa e verdadeira surpresa”, sorri, tendo como fundo as paredes recém-inauguradas do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S), onde está a desenvolver um projeto de investigação na área da microbiologia molecular. Era uma vez uma menina de sorriso cativante, que sonhava com coisas tão pequeninas que nem as conseguia ver. Assim podia começar a história desta bióloga nascida há 31 anos no Porto, mas com sotaque roubado a Valença do Minho, cidade onde, aos 12 anos, teve uma revelação à mesa do café dos pais. “Lembro-me de estar na esplanada a olhar para o chão e a pensar: nós não conseguimos ver, mas este chão está cheio de coisas vivas. Desde aí vivo fascinada pelos organismos vivos que não se veem”, conta. A queda para a matemática ainda se intrometeu na hora de se candidatar à universidade, mas a decisão estava tomada. “Ensinaram-me que temos que seguir as coisas pelo coração, por aquilo que nos apaixone. E o que eu queria era a Biologia”. Em 2004, o coração trouxe-a para a Faculdade de Ciências da U.Porto (FCUP). Do curso destaca a “formação abrangente” e as aulas no edifício dos Leões (atual Reitoria) e no Jardim Botânico, locais “emblemáticos” onde aprende o ABC da Biologia com “grandes professores”. Entre estes destaca-se Fernando Tavares, o professor favorito com quem descobre o mundo da microbiologia e que, no último ano do curso,

ajuda Joana a concretizar a ”imensa vontade de ir lá para fora estudar”, através do programa Erasmus. Aos 21 anos, sonha com um estágio de três meses em Amesterdão, com estadia incluída numa casa-barco. A mãe nem por isso. “Para lá não vais porque as drogas são livres!”, ouve. Pim pam pum, o destino é a Universidade de Umeå, a maior cidade do norte da Suécia, situada a 100 quilómetros do círculo polar ártico. Nos meses seguintes, dedica-se ali ao estudo de um grupo de bactérias capazes de degradar derivados do petróleo. “Foi uma experiência espetacular porque o sol punha-se às 11 e meia e à uma da manhã estava a nascer outra vez”. Pelo meio, perdeu-se no tempo. “Era suposto ser um estágio de três meses, mas fiz por estar seis meses a fazer mais trabalho”. Por esta altura, a microbiologia molecular já a tinha conquistado.

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Texto Tiago Reis

CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS Após o estágio na Suécia, Joana Moscoso regressou a Portugal determinada a prosseguir uma carreira científica ao mais alto nível. Terminada a licenciatura, inscreve-se no mestrado em Biologia da FCUP, mas já com o pensamento a 18 mil quilómetros de distância, na Universidade Nacional da Austrália, em Camberra. Parte um ano depois, em 2008, para desenvolver o trabalho laboratorial do projeto de mestrado, o qual dedica ao estudo de uma bactéria que entra no organismo através dos alimentos, causando diarreias. No diário dos onze meses que passou na capital australiana ficam palavras como “perseverança” e “desafio à imaginação”. Conclusão. “Depois de estar na Austrália, cheguei à conclusão de que o queria mesmo era estar na Europa”. Novo regresso, nova partida, desta vez para o prestigiado Imperial College London, no Reino Unido, onde Joana chega em 2009 para desenvolver o projeto de doutoramento, ao abrigo de uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Nos seis anos seguintes, escreve Fotos Egídio Santos

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artigos, coleciona prémios (entre os quais, o Microbiology Outreach Award da Society for General Microbiology ou o Award for Outstanding PhD student in Science Communication do Imperial College of London) e vai enriquecendo a “caderneta” de coisas invisíveis com nomes impronunciáveis. Primeiro com a Pseudomonas aeruginosa, uma bactéria associada às infeções respiratórias adquiridas em hospitais, a que dedica a tese de doutoramento. Depois com a Staphylococcus aureus, outra bactéria perigosa para o ser humano e na qual desvendou uma fraqueza que pode ser usada no desenvolvimento de terapias contra infeções bacterianas.

ESTA CIÊNCIA NÃO É PARA VELHOS

às escolas e falam com as crianças sobre o seu trabalho, em estilo speed dating. O objetivo é que elas possam conhecer o que fazem os cientistas e, assim, criar memórias positivas na sua língua materna”. No ato de inspirar os mais novos através da ciência, Joana descobriu-se. Aprendeu a montar uma empresa e venceu “o medo que os cientistas têm de falar da sua ciência”. Pelo caminho, percebeu que o sucesso não fala a uma só língua. “Senti sempre que o poder estava em mim e não dependia do facto de ser portuguesa, espanhola ou inglesa…”.

O REGRESSO A CASA

Em Londres, a vida da jovem investigadora não se resume, contudo, às páginas das publicações científicas onde se torna uma habituée. “No segundo ano do doutoramento já tinha um paper publicado e sentia que podia concluir o projeto se quisesse. Mas ainda tinha dois anos de bolsa e sentia que podia fazer mais alguma coisa”, recorda. Entre os jantares com os amigos e um pezinho de dança nos bares do Soho, abraçou-a em 2012, à mesa de um pub, quando aceitou o desafio de organizar o encontro anual da PARSUK, uma rede de investigadores e estudantes portugueses a residir no Reino Unido. Na verdade, o que começou por ser a preparação de uma conferência resultaria num “ponto de viragem” na vida de Joana. “Um dos cientistas tinha um contacto próximo com a comunidade tradicional de imigrantes portugueses no Reino Unido e sensibilizou-nos para o facto de nós, imigrantes qualificados, podermos fazer a ponte com essa comunidade”. Decidida a “dar o exemplo”, despiu a bata e foi para o terreno com outros investigadores portugueses. “Organizámos uma atividade em que fomos a uma aula de Português numa escola inglesa falar sobre ciência”. O sucesso foi tal que, juntamente com outra antiga estudante da U.Porto (Tatiana Correia, licenciada em Física pela FCUP), decidiu dar continuidade ao projeto. “Candidatámo-nos a concursos de empreendedorismo social e a tudo a que nos candidatámos, ganhámos. Isso deu-nos coragem para fundar a primeira spin-off da PARSUK”. Nome: Native Scientist, uma empresa sem fins lucrativos que usa a ciência para ensinar línguas a crianças bilingues dos 7 aos 12 anos. Focado inicialmente na comunidade portuguesa em Londres, o projeto criado há três anos já chegou a centenas de crianças no Reino Unido, tendo-se expandido, entretanto, para as comunidades imigrantes em França e na Alemanha. A receita repete-se. “Os investigadores vão

Uma carreira bem-sucedida, uma empresa em expansão e uma vida preenchida em Londres. E eis que Joana decide voltar. “Estás maluca!”, disseram-lhe os amigos. Não estava. Uma experiência menos positiva no pós-doutoramento, que inicia em 2014 no Imperial College, foi o gatilho para o que viria a seguir. “Quis ser persistente, mas a certa altura já não conseguia e comecei a delinear a minha estratégia de saída”. Portugal surge no topo das preferências, mas faltava responder à pergunta que se formava na mente da investigadora. “Se este laboratório estivesse na China, tu ias para a China?”. Durante alguns meses, desdobra-se entre as atividades da Native Scientist e a pesquisa de todos os laboratórios de microbiologia existentes no país. Entre eles, encontra o grupo Molecular Microbiology do i3S, liderado pelo investigador francês Didier Cabanes. “Percebi logo que respondia à minha pergunta. Vim a uma entrevista, ele gostou, eu também, fizemos candidaturas a financiamento e acabei por vir”. No regresso a Portugal, Joana trouxe um penteado novo e uma prestigiada bolsa Marie Sklodowoska-Curie no valor de 150 mil euros, que vai aplicar nos próximos dois anos no estudo dos “mecanismos utilizados pela Listeria [uma bactéria semelhante às que estudou em Londres] para se adaptar ao meio ambiente em que vive”. Pelo meio, ela própria é um exemplo de adaptação. Ao i3S, onde diz ter encontrado “condições tão boas ou melhores do que as que usufrui lá fora”. E à cidade. “Levou-me quase um ano a adaptar a Londres e, em três semanas, adaptei-me ao Porto. Cá sinto uma serenidade que lá fora não encontro”, revela. Também por isso, o futuro escreve-se em tons de azul no horizonte da investigadora que ambiciona “descobrir o porquê das coisas”. “O meu sonho é ser group leader e gostaria de dar esse salto antes dos 35”, projeta. O outro é “ter uma empresa na área da biotecnologia. Esse bichinho está dentro de mim”.

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ROTEIRO DA PRIMEIRA VIAGEM DE VASCO DA GAMA À ÍNDIA, 1497-1499

SEIS BREVES APONTAMENTOS DE COSMOLOGIA CONTEMPORÂNEA

Edição de Luís Fernando de Sá Fardilha e Maria de Lurdes Correia Fernandes

Orfeu Bertolami e Jorge Páramos

Col. Letras Portuguesas, n.º 0, publicação conjunta da Câmara Municipal do Porto, U.Porto Edições e Fund. Eng.º António de Almeida, Porto, 2016. (173 pp. + fac-simile)

Seguia na nau de Paulo da Gama o incerto autor que registou os principais momentos da viagem que põe definitivamente em contacto comercial e civilizacional, por via marítima e regular, o Ocidente moderno e o Oriente. Outras narrativas em primeira mão terão existido, mas só esta chegou aos nossos dias. O texto agora criteriosamente reeditado baseia-se na única cópia manuscrita sobrevivente, possivelmente realizada nos meados do séc. XVI, e que, da biblioteca de Santa Cruz de Coimbra, transitará pela mão de Alexandre Herculano para a Biblioteca Municipal do Porto, servindo de fonte para todas as edições posteriores. Neste caso, estamos perante uma publicação que alia o rigor académico da transcrição ao desígnio de a tornar acessível a um público alargado, atualizando a grafia sem retirar totalmente a “patine” ao texto. No mesmo livro, encontramos três versões do “Roteiro”: portuguesa, inglesa e fac-similada. A versão inglesa é de expressão contemporânea e o fac-simile poderá servir tanto a estudantes ou amantes de paleografia como a quem, embalado por um relato que terá também inspirado Luís de Camões, deseje folhear um “beau livre”. De realçar o breve estudo introdutório, cuja clareza informativa nos introduz convenientemente ao “Roteiro”, e a conveniência das notas de margem, que estruturam o relato cronológica e geograficamente.

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livros

U.Porto Edições, Série Para Saber, n.º 45, Porto, 2016. (142 pp.)

Apresentado como sendo “uma breve síntese de aulas de cosmologia” lecionadas por Orfeu Bertolami, a que se adicionaram tópicos dos dois autores sobre matéria escura, energia escura e teorias alternativas da gravidade, na realidade estes “Seis Breves Apontamentos…” oferecem uma panorâmica sobre os dados observacionais e as teorias que fundamentam as nossas visões atuais sobre a origem, evolução e estrutura do Universo, passando em revisão as limitações e problemas inerentes aos diferentes modelos explicativos e expondo as muitas questões que se mantêm em aberto. Como se afirma na introdução, “no início do século XXI, somos confrontados com uma visão do Universo na qual cerca de 95% do seu conteúdo energético nos é desconhecido. Acredita-se que só através da integração do conhecimento advindo da cosmologia e da física das partículas elementares é que estes mistérios poderão ser desvendados”. Sendo certo que esta obra se destina primordialmente a ser utilizada como obra de referência no âmbito de estudos universitários, poderá atrair interessados por questões de cosmologia que dominem solidamente os conceitos de física a ela associados e a linguagem matemática que os exprime.

Textos Paulo Gusmão Guedes

campus

ARTIFICIAL AESTHETICS CREATIVE PRACTICES IN COMPUTATIONAL ART AND DESIGN, Miguel Carvalhais U.Porto Edições, Série Para Saber, n.º 49, Porto, 2016. (307 pp.).

Desenvolvido a partir da tese de doutoramento de Miguel Carvalhais, “Artificial Aesthetics…” é uma análise profunda e informada da forma como “os utensílios e os média computacionais (…) transformam alguns dos aspetos mais fundamentais da arte e do design, levandonos a questionar a sua essência e o nosso papel como participantes humanos” (da introdução). A primeira parte da obra conduz-nos através dos conceitos e da nomenclatura associados aos processos computacionais, abordando as questões da inteligência e da criatividade artificiais e desembocando no conceito central de estética artificial, relacionando-a com a perceção humana dos processos e dos resultados dos sistemas e, daí, passando para a análise das características da colaboração homem-máquina. A segunda parte de “Artificial Aesthetics…” dedica-se inicialmente às “práticas processuais” em contexto artístico, historiando a utilização de mecanismos algorítmicos e combinatórios em práticas musicais, literárias e plásticas, antes de descrever os diferentes processos e sistemas envolvidos na produção (computacional) artística contemporânea, propondo finalmente, para estes, um modelo analítico que repousa na sua natureza conceptual.

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UNIVERSIDADE DO PORTO Uma das 150 melhores instituição de ensino e investigação científica da Europa. 3 14 1 2 291 1 563 29 921 8 546 12 490 5 549 3 336 3 616 1 652 1 964 167 401 136 636 34 18 124 34 376

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Diplomados em 2015/16 Diplomados em Licenciaturas Diplomados em Mestrados Integrados Diplomados em Mestrados Diplomados em Doutoramentos

4 160 7 736 1,9

Vagas disponíveis em 2016/17 Candidatos em 1ª opção Número de candidatos em 1ª opção por vaga

49 14 21 3 986 23,4% 17 442

Unidades de Investigação (registadas na FCT) Unidades avaliadas com “Excecional” e “Excelente” Unidades avaliadas com “Muito Bom” Artigos publicados em 2014 Percentagem de artigos portugueses na Web of Science Artigos publicados no quinquénio 2010 - 2014

183 20 203 1 832

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9 21 5 517

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