como nascem os avós

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como nascem os avĂ´s


Copyright © 2016 José Inacio Parente © 2016 Maria Inês Delorme Nome dos autores: José Inacio Parente e Maria Inês Delorme Título da obra: Como Nascem os Avós Capa e Projeto Gráfico Cláudio Leal / KMRdesigñ Revisão Natalie Gerhardt / Calliope Soluções Editoriais natalie@calliope.com.br Produção Editorial Interior Produções Produção Gráfica Editora Multifoco Este é um texto provisório com uma parte descritiva em que se dão as informações sobre o livro enquanto um objeto a ser produzido com empenho e atenção aos detalhes, valorizando assim as idéias nele contido. Volume 1 – 232 páginas Editora Multifoco Rio de Janeiro 20 de novembro de 2016

Título: Como Nascem os Avós Autores: José Inacio Parente e Maria Inês Delorme Editora: Zeventeen Press Edição: 1a / 2016 Páginas: 232 Altura: 21 cm / Largura: 14 cm Coloração: Preto e branco (capa colorida) Acabamento: lombada canoa Tipo de papel: Pólen Soft 80g/m2


José Inacio Parente Maria Inês Delorme

como nascem

osavós


índice... apresentação 8 José Inacio Parente 12 Maria Inês Delorme 126


vovô vovó Um Livro a Quatro Mãos Mãos à Obra De Sábio e de Bobo Todo Avô Tem Um Pouco Fotografando Minha Filha Nossos Avós e os Avós de Nossos Filhos Meu Neto Nasceu Hoje Tom fez Oito Dias e é Domingo Primeiro Natal Nasce Um Avô A Primeira Viagem Avô, Um Coração Partido Passeio Ritual Com Meu Neto Varanda de Minha Casa, Noite Tom Começou a Caminhar Quase Quatro Meses e Dois Sonhos Sabedorias Preciso Voltar a Escrever Sexta-Feira Santa na Fazenda Ainda na Fazenda, À Noite Dia das Mães A Casa do Vovô Festa de São João Um Dia com Tom O Circo V do Vovô O Consultório e as Profissões do Vovô Nossas Doenças Dança, Vovô, Dança Mundo Virtual Verdade, Um Compromisso A Descoberta Nasce Mais Um Neto Praias, Sol e Sonhos Isabela, Nasce Uma Netinha Eric Faz Dois Anos Como Será o Amanhã?

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Como Tudo Começou? Como Nascem os Avós A Gestação da Avó

O Ninho: Entre a Mãe e a Avó É a Sua Vó! Mosaicos de Memórias Afetos Digitais? Nasceu a Nossa Criança! O fiel da Balança: as Avós, o Bebê e Seus Pais O Neto e a Avó se Encontram Amor Cantado: Avó e Neto se Embalam O Neto Muda o Jeito de a Avó Ler o Mundo Negociando com Fantasia A Reengenharia dos Espaços Amor e Poder: Entre a Mãe e a Filha O Baú de Histórias, Um Acervo Secreto A Avó Também é Sogra As Armadilhas do Amor: de Avó à Bilheteira do Metrô Um Cenário Mágico de Encontro Tomar Conta é Uma Coisa. Brincar é Outra! Rasguei a Minha Fantasia (o Fim da Imortalidade) O Corpo é a Casa da Criança O Papai Noel – Medo e Desejo Papos de Crianças De Volta ao Começo A Avó, o Irmão do Ben e o Fio da Vida

128 134 138 142 145 149 155 158 161 164 167 171 175 179 182 185 189 192 195 198 202 206 210 214 218 222


apresentação


Convido vocês a ler estes deliciosos relatos de um avô, psicanalista e de uma avó, educadora, amigos entre si, mobilizados e muito emocionados com cada descoberta que fazem com o nascimento de seus netos. Conheço José Inacio desde o nascimento do Lourenço, há mais de 28 anos. Pude acompanhar seu parto e tive a imensa felicidade de ver o nascimento de um pai, com uma peculiaridade até então não conhecida por mim. Muitos pais desejam fotografar o parto de seus filhos. Para muitos, fotografar não deixa de ser uma boa estratégia para, escondidos atrás da câmera, se protegerem daquele momento tão intenso, especial e único, mas, às vezes, assustador. Ocupados com a câmera, perdem o melhor desse momento e não gravam a melhor das imagens, justamente aquelas que só ficam gravadas na mente e no coração. Conversávamos sobre disso com José Inacio quando comemorávamos o nascimento de seu terceiro filho e com Patrícia, seu primeiro, degustando um sushi preparado por ele na sua casa.

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Fiquei surpreso com sua resposta ao meu comentário: “- Como filmo e fotografo muito, meus olhos estão muito acostumados a serem janelas da minha alma e desse modo a câmera só aumenta a minha capacidade de olhar e sentir.” Nunca esqueci seu emocionado relato. Nasceu Lourenço, nasceram seus pais José Inacio e Patrícia. Nasceu também uma enorme admiração por eles que, ao longo desses anos, só cresceu. Tantos momentos juntos, vários projetos, idéias compartilhadas, livros e fotos ajudaram a reforçar nossas admirações recíprocas. Aí surge o convite para apresentar este delicado livro, Como Nascem

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Avós, escrito a quatro mãos por ele e por Inês, uma

grande amiga de toda a família. Inês e José Inacio se mostram com toda sua sensibilidade nes10

tes relatos, muitas vezes íntimos. Abrem seus corações, e coração de avô ou de avó é um coração enorme, bobo, ingênuo e apaixonado. Com toda essa sensibilidade, emprestam-nos seus sentimentos para que possamos acompanhar o longo nascimento de um avô e de uma avó. Nascer avô ou avó nos coloca frente a frente com a inevitável verdade do envelhecimento e da morte no momento em que mais precisamos nos sentir fortes, saudáveis e alegres para acompanhar nossos netos. Nasce o bebê, nasce uma mãe que deixa de ser apenas filha para torna-se mãe e, assim, desloca sua mãe para o lugar de avó. É por aí que Inês passeia com experiência e tremenda competência. Avó moderna, culta, intelectual, próxima de seus quatro filhos, vivendo essa experiência plugada no computador para diminuir distâncias e apertar laços e sentimentos durante o parto de seu


primeiro neto quando se encontrava afastada da família por um oceano, num curso de pós- doutorado em Educação. Nós, pediatras, precisamos procurar entender melhor as avós para cuidarmos melhor de nossas crianças. Conheci Inês enquanto tocávamos violão e cantávamos com toda a família esperando a hora natural do nascimento de um sobrinho dela. Ludicamente se defende e se distancia de todas essas possíveis doencinhas que as avós costumam sentir, nada de avó hipertensa, de óculos pendurados e velhota. Vovó Inês se revela sempre antenada, amorosa, rejuvenescida, emocionada com cada um de seus netos: Benjamin, Conrado e Antônio. Se filhos constroem famílias, netos também. Se filhos são para sempre, avós também. É lindo quando José Inacio fala que o nascer de um avô pode ser como um parto ao contrário, pois permite a ele entrar para dentro dele e voltar a ser criança, reviver sua própria história. Afirma que sua sensibilidade com as pessoas e sua competência profissional se aprimoraram com o nascimento de cada um de seus netos: Tom, Eric e Isabela. Assisti tantos partos, mas não sou avô ainda. Tenho quatro filhos, André, Iná, Laura e Francisco. Tenho o Vicente emprestado ao meu coração pela Juliana. Tenho certeza que serei avô. Na época, quando isso acontecer, terei que reler este lindo livro. Um livro para avós, avôs, futuros avós, pais, mães, filhos e netos. Um livro de histórias verdadeiras e simples. Pode ser aberto em qualquer capítulo ou lido em qualquer ordem. Será sempre um convite a reflexão e a descobertas.

Ricardo Chaves pediatra

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JosĂŠ Inacio Parente




um livro a quatro mãos

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ste livro nasceu como resposta a um convite muito bonito e desafiador de Maria Inês Delorme para escrevermos juntos sobre a nossa experiência de nos tornarmos avós. Vamos nascer avós mais ou menos na mesma época. O convite é um enorme desafio e passei bastante tempo com isso na cabeça, meio paralisado. Não sei como mover-me nesse tema e parece que não posso escrever sobre um assunto que não conheço. Mas pode ser uma boa oportunidade de elaborar uma nova fase da minha vida, aprofundar-me nela e viver com mais densidade e intensidade as alegrias e as angústias de me tornar avô. Confesso que o convite me surpreendeu. Estava totalmente envolvido no projeto de um livro baseado em uma documentação

UM LIVRO A QUATRO MÃOS

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que eu havia feito com fotografias da evolução, semana a semana, de uma criança, Maria Lua, desde a gravidez até completar seu primeiro ano. Milhares de fotos foram feitas dos pais e da criança. Mas quando Luciana, minha filha, anunciou-me que estava esperando um neném, dei uma esfriada no embalo em que eu estava com esse projeto e fiquei até meio triste por isso. Escrever neste momento o livro Como Nascem os Avós, feito a quatro mãos, duas femininas e duas masculinas, pareceu-me muito oportuno, pois me daria a possibilidade de mergulhar nessa realidade inesperada e desconhecida de ser avô e de me aproximar mais da minha filha e – ainda difícil dizer, pela estranheza e novidade – do meu neto. O convite fez-me sentir uma mistura de orgulho e medo. Inês e eu temos histórias pessoais muito diversas, famílias e formação bem diferentes. Mas é certo que não temos dúvidas de que queremos fazer um livro juntos. Bacana dois amigos, um avô e uma avó, que não são avós de um mesmo neto escreverem um livro assim. Temos uma coisa em comum: imensa curiosidade e paixão pelas coisas que vivemos e fazemos. Temos, também, uma admiração grande um pelo outro e uma confiança recíproca. Admiro Inês por sua força e determinação. Consegue ser e pensar diferente sem precisar mostrar. Tem coragem intelectual e faz coisas inovadoras na sua área de trabalho, a educação. Confesso que sempre tive bastante dificuldade de trabalhar junto, em qualquer de minhas atividades – a fotografia, o cinema ou a literatura. Talvez eu tenha me acostumado a trabalhar sempre sozinho, por causa de minha atividade principal, que é a psicanálise. Esta é a primeira vez e um desafio que eu talvez não aceitasse enfrentar com outra pessoa. Como primeiro passo dessa aventura, comecei a preparar para meu futuro neto o bercinho que fiz quando Patrícia, minha mulher, estava esperando o Lourenço, meu filho mais novo. Lembro-me que a longa dedicação, de meses, para conceber o berço, trabalhar a madeira, encaixar todas as peças e preparar todos os

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detalhes até a pintura final foi um tempo de reflexão e elaboração. Eu havia sofrido um grave acidente quando filmava um documentário numa favela do Rio de Janeiro. Tempo de crescimento, no momento em que me preparava para ter meu terceiro filho, fruto de meu novo casamento. Esse berço, feito por mim na pequena marcenaria que tinha em minha casa, serviria para ele e para todos os filhos de meus filhos. Nada mais oportuno do que prepará-lo para meu primeiro neto. Lixei e agora vou pintá-lo de novo. É uma maneira de pensar, de elaborar um sentimento ambíguo enquanto trabalho. Quero penetrar nos mistérios dessa vivência tão pouco estudada que nem tem nome ainda, a avô-idade. Por enquanto, parece uma curiosa “volta para frente”. Vou continuar pintando e pensando enquanto ensaio escrever. Gosto muito de escrever às noites e pelas manhãs. Escrever parece com tirar água da fonte. As palavras, como água, vão trazendo lembranças e sentimentos que estavam adormecidos e que, ao virem à luz pela escrita, parecem surpreendentemente claros e renovados. É como nas fontes: quanto mais água tiramos, mais água é jorrada, cada vez mais clara e abundante. Para festejar nossa decisão e inaugurar nossa aventura, vou preparar para minha coautora um polvo à espanhola ou um polvo ao alho e óleo, ou talvez um polvo à minha moda, como sempre acontece, inventado na hora, mas com batatas.

José Inacio Parente

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mãos à obra

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rente a frente com o desafio, senti um imenso desejo de escrever. Viver para crer e crer para viver. Inauguro essa jornada escrevendo pensamentos soltos, sem necessidade de coerência ou continuidade. Escrever solta nossos sentimentos e palavras, e os organiza ao longo do texto. Decidi começar como fiz em tudo que já escrevi, partindo da contemplação do cotidiano até mergulhar nas minhas emoções e minha história. Por isso, escolhi escrever à mão num dos meus cadernos pretos. Dessa forma, parece que as coisas simples e quase casuais ganham nova dimensão, fluem na informalidade da escrita à medida que a caneta vai deslizando sobre o papel, adquirindo um significado jamais imaginado.

MÃOS À OBRA

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Essa história começou assim: Em nossa família, estávamos envolvidos em tantos projetos e trabalhos e Luciana só pensava no trabalho e viajava como nunca. Mas, numa tarde, telefonou-me e com uma voz insegura e alegre, quase trêmula, e perguntou-me: “Pai, você está sentado? Acabo de fazer uma ultra-sonografia. Estou grávida...”. Apesar de estar sentado e há muito tempo na torcida para que isso acontecesse, fui tomado de muita surpresa, quase susto. Fiquei com o riso nervoso de uma felicidade inquieta. Com a notícia da gravidez, uma criança já nasce em nossa cabeça num processo incrivelmente avassalador e impossível de se interromper, torná-lo mais rápido ou lento, modificá-lo de alguma maneira. A partir da gravidez, todos ficamos presos a um processo ininterrupto que se perpetuará por séculos, ou para todo o sempre, através dos filhos e netos de nossos filhos. E isso que se iniciou agora vai se desenvolver na barriga de minha filha e, diante de meus olhos, cairá nos meus braços. Será meu neto. Na busca de conhecer outros avós, fui fotografar a netinha de uns amigos. Admirado, observei que, quando a menininha de pouco mais de um ano fazia qualquer gesto que pudesse longinquamente parecer um pedido ou necessidade, os avós corriam para adivinhá-lo e satisfazê-lo imediatamente, com uma alegria contagiante. Pareciam gloriosos quando adivinhavam o que os dedinhos da neta queriam dizer. Por ocupar outro espaço e ter outras funções, amor de avô está sempre se renovando na complacência e na compreensão do tempo. A fisionomia tranquila do avô e da avó parecia dizer, silenciosamente, a todos da casa: “Não nos critiquem, é assim mesmo. Paciência”. Nunca pensei que a notícia da vinda de um neto fosse trazer tantas emoções e transformações em mim e em toda a família. De tão grandes, só pude senti-las aos poucos. Vou deixar que a caneta me puxe ao longo do papel de meu livrinho preto e, daqui para frente, vou escrever o que espontaneamente me ocorrer.

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de sábio e de bobo todo avô tem um pouco

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oje foi a primeira vez que eu vi a ultrassonografia do meu neto. Fomos jantar fora Luciana, minha filha, Cláudio, meu genro, Silvinha e Antenor, sogros de minha filha, eu e Patrícia, minha mulher. Não tive condições para me emocionar vendo aquela imagem técnica com o narizinho arrebitado e uma quase boquinha com os lábios também arrebitados. Ao saber da gravidez de minha filha, tive a impressão de que tudo deu certo – a evolução está garantida, com tudo funcionando conforme as leis naturais. Deu certo. Não tive tempo ainda para me centrar e sentir esse momento. Atordoado, até pedi a alguns avôs amigos que me mandassem alguma coisa escrita sobre essa questão de tornar-se avô, pois

DE SÁBIO E DE BOBO TODO AVÔ TEM UM POUCO

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estava escrevendo um livro. Assim, listei uma série de homens já tornados avôs e experientes nesse ofício. Conversei com alguns e tive a desilusão de ver que, apesar de declararem a maravilha de ser avô, todos me passaram a sensação de que não me podiam ajudar em nada. Convenci-me de que não devo pedir a experiência de ninguém, mas mergulhar nas minhas vivências e reflexões como pai, como avô, como psicanalista e usar a minha sensibilidade de homem. Em meio a tantas comemorações, confesso que, às vezes, tenho uma sensação de exclusão. Uma dolorosa impressão de estar de fora, de não participar da festa, de não estar participando com toda a alegria que deveria do chope que Luciana e Claudio estão preparando para comemorar a gravidez com os amigos. Tive uma triste impressão de estar velho e este é o momento em que eu mais preciso estar forte e alegre. Decidi voltar à academia e comecei a nadar, a fazer regime e penso em estar com 87 quilos quando o Tom nascer, ou seja, vou perder oito quilos. Mas todo avô, além de sábio, também é um bobo. Nesta noite de comemoração familiar, Antenor, o avô paterno, mostrou delicadamente um carinho especial por Luciana, chamando-a de minha filha, colocando a mão sobre a barriga dela e tentando sentir os primeiros movimentos do bebê. Fui tomado por uma rara mistura de sentimentos. Do lado sábio, muita admiração pelo que ele é e orgulho pela relação que tem conosco nos dando a sensação de sermos, juntos com Silvinha, uma só família. Pelo lado bobo, tive um ciúme inesperado quando ele sentia antes de mim os movimentos do bebê e chamava Luciana de minha filha... Tenho um cantinho preferido para ouvir música e escrever, o meu consultório, que fica num lugar reservado em minha casa. Fui para lá me recolher, pois alguma coisa me apertava o coração e chegava a duvidar se teria alguma coisa a escrever até o Tom nascer. Já é tarde da noite e estou ouvindo concertos de Mozart para piano. Há um enorme silêncio que faz a música parecer celestial.

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Pensei muito em meu irmão Expedito, que já não está entre nós. Morreu há apenas duas semanas. Sua mulher plantou no sítio deles perto de Fortaleza duas palmeiras de carnaúba junto às suas cinzas. Sinto uma tristeza imensa. Ele que gostava tanto dos sobrinhos e das sobrinhas não vai conhecer o Tom. Nem sei se ele viu Luciana grávida. A morte de meu irmão parece tingir de luto e medo a minha alegria de me tornar avô.

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DE SÁBIO E DE BOBO TODO AVÔ TEM UM POUCO


fotografando minha filha

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inha filha está muito bonitinha. Fomos fotografá-la no Jardim Botânico no domingo passado. Nunca vi Luciana querendo tanto ser fotografada. Sempre ficou muito envergonhada e fazia poses meio de má vontade. Com a gravidez parece que ela se sente plena e merecedora de todas as fotografias. Fez muitas poses com charme e paciência. Era uma tarde clara de sol fraco e céu azul. Fábio, meu segundo filho, estava conosco completando com carinho esse momento. Percebo que os hormônios na gravidez atuam com muita clareza e enfatizam gestos e atitudes femininas. Luciana fez até curso de costura, só pensa no Tom e no seu corpo. Está mais consciente de seus sentimentos e não está se sentindo fragiliza-

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da. Ao contrário. Ontem me ligou do shopping toda feliz. Estava lá sozinha comprando presentes para uma amiga que também está esperando um filho. Não fala de trabalho e está muito segura e decidida. Como eu tive minha filha, ela também vai ter um filho, que terá um filho, que terá um filho também. Quando fiz o berço para Lourenço, meu caçula, escrevi embaixo da madeira do fundo: “Para meu filho e para os filhos dos meus filhos”. Parece que eu estava fazendo como Stradivarius, que ao escrever dentro de cada violino que terminava marcava ali sua presença e autoria. Avô me dá a impressão de herói, de vitorioso, de sábio. A impressão de quem já percorreu muitos caminhos, todos os caminhos. Avô também dá a impressão de quem está se enganando, enganando os outros, fingindo de que agora com o neto encontrou a bem aventurança. Não pode, no entanto, esconder a impressão de fragilidade e de um desespero silenciado, porque nascer avô é também receber o primeiro anúncio da morte. Associamos nossa história à trajetória de nossos avós que já faleceram e hoje fazem parte do lendário de nossas famílias. Por isso, nascer avô nos coloca frente a frente com a inevitável verdade do envelhecimento e da morte no momento em que mais precisamos nos sentir fortes, saudáveis e alegres. Os avós sempre morrem, mas os filhos, e mais ainda os netos, gozam da feliz ilusão da imortalidade. Voltamos para casa com uma sensação de término de uma procissão gloriosa, tendo à nossa frente uma grávida linda e orgulhosa das transformações de seu corpo. Mais tarde fui debruçar-me sobre as fotografias que tiramos. Este é um momento de muito prazer. Costumo recolher-me na minha salinha do consultório e fico trabalhando as minhas fotografias até altas horas, enquanto me deixo embalar pelas canções de Chico Buarque, Gil e Caetano, ou por músicas barrocas. Entrevejo que ser avô vai me aproximar mais de minha filha e vamos nos descobrir um ao outro.

FOTOGRAFANDO MINHA FILHA

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nossos avós e os avós de nossos filhos

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ão conheci meu avô e minha avó Amélia, mãe de minha mãe, foi uma pessoa quase inexpressiva. O que ela mais gostava de comer era chuchu, sem menor gordura ou sabor. Falava muito baixo e era pequena na estatura e na sua própria vida. Lembro apenas de uma bronca arrasadora que ela me deu. Morava numa casa ao lado da casa de meus pais. Um portão improvisado unia os quintais. Criava galinhas soltas no terreiro. Um dia me deu um grito sem me perguntar nada, sem nenhuma atitude de curiosidade para saber o que aquela criança ingênua de uns sete anos estava fazendo por lá. “Sai daí, menino!”. Desde muito pequeno, fui muito sensível e creio que até chorei. Eu não entendi qual era o erro pelo qual fui repreendido.

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Nunca esqueci esse sentimento de injustiça. Mas uma coisa é certa, nunca fiz isso com os meus filhos. Cresci pensando que nunca podemos dar bronca sem saber os motivos que levam uma criança ou mesmo os adultos a fazer alguma coisa. Fiquei desde então convencido de que todo mundo sempre faz o melhor que pode. Sempre me afastei de minha avó por isso. Falavam muito bem do meu avô materno, João de Sá que, apesar de viver no interior do Ceará, era pessoa de hábitos quase europeus. Exportava algodão para a Inglaterra. Diziam que o pai dele era judeu, o que me dava orgulho e vergonha porque diziam, naquela época, que foram os judeus que mataram Jesus. Bonito, elegante e de poucas palavras, era a pessoa forte da família. Morreu muito cedo, talvez com uns 45 anos. Do meu avô paterno nada sei. O que se comentava sempre era a quantidade de filhos que teve. Com a primeira mulher teve 16 filhos e 13 com a segunda, que era a irmã mais nova da primeira. Meu pai era o caçula do segundo casamento, portanto, o último dos 29 filhos. Esses valores quantitativos excluíam qualquer possibilidade de se pensar na qualidade dos afetos e das relações. Não me lembro do nome dele, mas era como um camponês bem sucedido na região da serra de Ubajara, no Ceará. De minha avó paterna, nunca soube. A falta de avô na minha vida talvez justifique um pouco a dificuldade de viver esse novo papel. Com meu pai tive pouca relação, nenhum contato físico, nem mesmo uma conversa pessoal. Muitos anos de análise e muito sofrimento transformaram meu coração e, hoje, sou muito orgulhoso do pai que fui e sou. No consultório, tento ajudar pais e filhos a terem o que eu não tive com o meu pai. Mas pelo menos tive um pai forte, mesmo que distante. Meus filhos tiveram avós. Minha mãe era uma avó carinhosa e próxima, apesar de ter tido tantos netos. Creio que foram mais de 40. Era capaz de fazer bolo de aniversário e roupinhas para

NOSSOS AVÓS E OS AVÓS DE NOSSOS FILHOS

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cada neto. Não aproveitei muito, nem meus filhos, desse convívio amoroso porque vivíamos no Rio de Janeiro e meus filhos só tinham contato com a avó Isaura nas poucas férias que passavam em Fortaleza. O que limitava minha mãe na relação com os filhos e com os netos era o extremado compromisso que tinha com a religião católica. Seu único desejo parecia ser levar-nos para o céu, pelo caminho da virtude cristã, custasse o que custasse. Com meu pai, tive uma imensa dificuldade. Nunca trocamos carinho, nem me lembro de ter um dia conversado com ele ou tocado no seu corpo. Mas como ele poderia ter aprendido a ser pai sendo o vigésimo nono filho no interior do Ceará, no fim do século XIX? Quando tive Luciana, meu pai já tinha morrido. Assim, meus filhos não conheceram avô paterno. Luciana e Fabio tiveram e têm uma avó materna, timidamente carinhosa, e um avô materno, psicanalista, que sempre morou distante. Lourenço não teve a presença do avô materno, pois o pai de minha esposa, Patrícia, afastado da família, não conheceu o neto. A experiência humana mais rica de meus três filhos, de serem netos queridos e amados foi com minha sogra, Dona Jannice, mulher que conjugava como ninguém a dignidade e o carinho, a paciência e a ética, a inteligência e o respeito. Adorava ir à sua casa tomar café da manhã aos sábados. Já me esperava com bolo e novidades. Éramos muito diferentes, especialmente nas crenças religiosas e nas posições morais que a distinguiam das pessoas comuns. Foi muito importante para meus filhos, cada um à sua maneira. Mesmo não tendo consanguinidade, foi uma verdadeira avó para Luciana e Fábio. Para Lourenço foi uma espécie de árvore de tronco forte e galhos generosos. O Guarany, sítio que nos deixou de herança física e espiritual, é o que mais nos lembra o seu espírito e sua maneira amorosa de existir.

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meu neto nasceu

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ueria guardar para sempre os momentos e os sentimentos que tive com o nascimento do Tom. Quando me telefonaram dizendo que Luciana estava na maternidade e o Tom já havia nascido, eu estava pesquisando fotografias antigas, de famílias na Praça XV, e fiquei completamente atordoado. Achei que ela estava ainda em trabalho de parto. Resisti à notícia e, tomado por certo medo, não fui imediatamente para a maternidade. Parece que a história tinha que ir mais devagar comigo. Fui antes para minha casa buscar minha mulher. Meio trêmulo, tomei um taxi para irmos para a maternidade. Fiquei colado no celular para ter notícias. Alegres, surpresos, tensos, curiosos, chegamos à maternidade todos os avós e tios. As lembranças do nascimento de meus filhos acompanharam todo o tempo as vivências de nascer

MEU NETO NASCEU

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avô. Para todo mundo, especialmente para os pais, a maior preocupação é logo saber se o neném é normal, perfeito, bonito. Pois foi essa a exclamação da Luciana: “Pai, ele é perfeitinho... lindo! Todo perfeito!”. Alívio geral para todo mundo. Alívio de uma angústia indizível e inegável nesse momento mais importante e definitivo da vida de uma pessoa, o seu nascimento. Por várias vezes, quase falei para meus amigos que era meu filho que havia nascido. Recolhi-me por reconhecer que minha vez de ser pai já passou e só se renovará na medida em que eu for um bom avô e respeite e valorize a paternidade do Cláudio e a maternidade da Luciana. Meu lugar agora é outro, mas ainda não sei como ocupá-lo. Mergulhei em certos sentimentos meio cósmicos e me emocionei ao constatar que somos herdeiros de uma sabedoria filogenética adquirida através de sofrimentos e vitórias da espécie humana durante muitos milhões de anos. Sabedoria transmitida quando fecundamos uma mulher, garantida e perpetuada quando nos tornamos avós. Os filhos são nossa maior contribuição para o mundo. Pessoas boas, amorosas e criativas são uma dádiva para a humanidade. Se nossos filhos têm filhos, também amorosos e criativos, essa contribuição se amplia e se perpetua. Temos aí a sensação de sermos eternos.

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hoje Tom fez oito dias e é domingo

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esolvi passar o dia na casa de minha filha e fazer uma comida para eles. Dia chuvoso, cinza. Minhas costas doem muito desde ontem. Deitado na rede que tenho em minha varanda, tive um sono enorme quando me esforçava para me levantar e sair. Mais do que sono, senti uma vontade enorme de dormir, uma necessidade de me recolher. Estava cansado por ter acabado de realizar a mostra internacional de filmes etnográficos, festival que organizamos todo ano, e tinha que me preparar para uma nova etapa de projetos para o próximo ano. Mas a vontade de me recolher decorria, principalmente, da necessidade de entender melhor esse menininho que acabara de nascer, pois não está sendo muito fácil me sentir avô.

HOJE TOM FEZ OITO DIAS E É DOMINGO

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Dentro de mim se misturavam as sensações de surpresa e alegria com uma certa nostalgia como pano de fundo. Creio que ser avô remete a sentimentos de resignação diante da morte e do tempo, e, simultaneamente, a uma sensação de esperança e júbilo, pois tudo valeu a pena, tudo continua a evoluir. Já deu certo quando tive a Luciana, mas a garantia final da vitória só se confirmaria quando minha filha se tornasse mãe ou um filho meu se tornasse pai. É a única e definitiva garantia de nossa perpetuação, uma atenuada ilusão de eternidade. Cláudio está sendo ótimo e surpreendente como pai. É comovente vê-lo com o Tom e com minha filha. É encantador vê-lo encantado observando a perfeição do Tom, o seu desenvolvimento e a tranquilidade do seu sono. Não para de falar, de fotografar e mostrar centenas de fotos que ele faz a cada semana. Como fico feliz quando ouço os muitos elogios que ele faz à tranquilidade surpreendente de minha filha. Luciana está mesmo absolutamente calma. Não só parece que já sabe tudo, mas que sempre soube tudo e que nada a surpreende. Creio que esse sentimento de calma é sinal de maturidade, de quem teve muito boa identificação com as figuras maternas que teve em sua mãe, Claudia, e em Patrícia, minha mulher. Com quem parece o Tom? Sinceramente, por enquanto, parece comigo. Não me acho um modelo de beleza e, assim, preferiria que ele não se parecesse comigo, mas fiquei feliz quando parecia que ele parecia comigo. Mas agora está mudando e está ficando bem diferente e bonito. Desde que soube que Luciana estava grávida comecei a reconhecer em mim sentimentos novos. Comecei a sentir o tempo passar e queria que ele passasse mais devagar. Queria baixar a velocidade de tudo. Queria viver coisas lentas, silenciosas e para dentro de mim. Percebo agora que foi por isso que fui passar o dia com minha filha. Fiz muitas fotos do Tom e comprei várias coisas na feira

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que enfeita as manhãs de domingo perto da casa deles. Enquanto Tom dormia e os pais descansavam, exercitava a arte da culinária, minha máquina particular de desacelerar o tempo, preparando sem pressa uma comida bem gostosa: arroz arbório com vários tipos de cogumelos que comprei na feira, queijo gorgonzola, peras vermelhas e muitos temperos. E carinho também.

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primeiro natal

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a noite de Natal em nossa casa estávamos todos da família, eu, Patrícia, os filhos, nora, genro, cunhados e sobrinhos. Mas a presença do Tom era marcante. Tinha apenas cinco semanas e dormia tão profundamente como um anjo desejaria dormir. Passava de colo em colo sem o menor estranhamento. Era seu primeiro Natal e me senti bastante Papai Noel pelos cabelos brancos que não tinha com meus filhos quando ainda eram pequenos. Coloquei aquela touquinha de Papai Noel, com luzinhas que piscavam. Senti muito prazer com a troca de presentes, com as comidas que fizemos. Bati o recorde de comidas que preparei. Bacalhau com natas, rabanadas com canela como faço todos os anos, salmão especial como Lourenço havia me pedido, com vi-

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nho branco e redução de maracujá. Ajudei a preparar o tender e fiz um arroz. Fiquei bastante cansado, mas feliz e com a sensação de saúde. Estava muito pensativo enquanto fazia toda aquela comida. A presença do Tom fazia pensar numa espécie de Menino Jesus sem que isso nos colocasse em nenhuma situação religiosa. Todos estávamos envolvidos pela presença desse menino como Reis Magos carregados de presentes. As reuniões de Natal me comovem sempre, apesar de não ter tido quando criança festas como as de hoje em dia. Em Fortaleza, nossa família tinha uma comemoração bastante religiosa e centrada na missa do galo e nos presépios das igrejas. Nas minhas lembranças de criança os presépios eram lindos e enormes. Tinham grutas de pedra feitas de papel pintado com uns brilhos prateados, com purpurinas que lembravam estrelas do céu. Havia imagens quase realistas do Menino Jesus, de Nossa Senhora e São José com todos os coadjuvantes. Lembro os detalhes dos carneirinhos brancos e da areia do deserto, feitos com a areia trazida da praia de Iracema. Havia poucos presentes e só para as crianças, e cada uma ganhava apenas um brinquedo ou um item da lista das coisas necessárias. Papai Noel não era vermelho, era um personagem sem as características que a Coca-Cola criou para ele. Parecia mais um velhinho bom, meio sagrado, que amava as crianças. Lembro que nós, os três irmãos mais novos, ganhamos juntos um patinete, que encontramos pela manhã debaixo de nossa rede. Todos nós dormíamos em rede no Ceará. Tínhamos muito medo de que nossos pais soubessem que já não acreditávamos mais em Papai Noel, pois assim passaríamos a uma categoria de meninos mais velhos e não ganharíamos mais presentes do velhinho. Eram presentes muito simples, mesmo que nossos pais tivessem condições econômicas bastante boas. O último Natal ainda com Papai Noel foi muito marcante. Mamãe tinha escondido o nosso presente em cima do guarda-roupa do

PRIMEIRO NATAL

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quarto dela. Era um jogo de pingue-pongue para os três mais novos. Devíamos ter uns oito anos e descobrimos o esconderijo. Mamãe, quando chegou, nos viu jogando com o presente antes do Natal. Foi decepcionante ouvir dela “Já que vocês descobriram, então Papai Noel não existe mais.” Lembro que chorei. Não acreditar em Papai Noel era uma espécie de prova de crescimento, mas também representava a perda da inocência da infância.

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nasce um avô

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ano de 2011 foi muito rico e de muito esforço. Tive muitas vivências ricas e intensas neste ano, mas a mais evidente foi o nascimento do meu neto e, com ele, a surpreendente transformação de minha filha como mãe, como uma mulher renovada, femininamente madura e terna. Viemos para a fazenda passar o Réveillon. Fiquei com muita pena por Tom não estar conosco. Tem ainda seis semanas e ficou no Rio. Estou com muita saudade dele e quando contemplo a serenidade do seu rosto, vejo que dorme com tal conforto e tranquilidade que chega a nos preocupar. Tenho vontade de apressar o tempo para poder acordá-lo e mostrar-lhe o mundo, e, por que não, me mostrar para ele e dizer: - “Eu sou seu avô”. Mas por quantas experiências ele terá que

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passar, quantas coisas terá que aprender até entender um pouco do mundo e, mais ainda, decifrar que essa mancha de barba e cabelos brancos, o sorriso carinhoso e olhar acolhedor, sou eu. De minha parte, tenho que ter bastante paciência de esperar para nascer avô dentro do meu neto e ser por ele reconhecido. Um processo lento e lindo de mútuo reconhecimento, um dentro do outro. Um mistério maravilhoso. Percebi esse nascimento dentro de mim quando ele, deitado em meu colo, abriu os olhinhos e ficou me fitando por infinitos dez ou cinco ou dois minutos, sem piscar. Eu também não queria piscar para não perder um segundo daquele momento. Quis sentir como se eu estivesse sendo reconhecido como avô ou, ao menos, como outra pessoa. Pensei que ele estava adentrando o meu interior através dos meus olhos e eu o dele, do mesmo modo e no mesmo instante. Um parto ao contrário. Não um nascimento por separação, como no parto, mas por uma espécie de interpenetração espiritual, por mútuo reconhecimento. Eu sentia como se eu dissesse: “Você é o Tom. Você é meu neto. Você é bom”. É como se ele me dissesse o mesmo apenas com o olhar, já que não podia pedir emprestadas as minhas palavras, pois ainda não conhecia palavras. Parece que ali fizemos um pacto. Queria guardar comigo aquele momento de olhares e aqueles olhinhos quase doendo de curiosidade e sono. Foi assim e nesse momento que eu nasci avô. Tenho tido saudades do Tom e uma necessidade grande de escrever sobre ser avô. Ser avô do Tom se desdobrou na descoberta de minha filha, como mãe e como filha. Ficamos muito mais próximos e cúmplices. Ser avô me trouxe um sentimento de plenitude que guardo dentro de mim e que pretendo explorar e transmitir. Quando algum sentimento me sufoca, esse me liberta, me renova. Hoje, primeiro dia do ano, estou assistindo à chuva cair no telhado fazendo aquele barulho delicioso que me faz lembrar noites

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na fazenda de meu pai no Ceará. Da varanda do Guarani, nossa fazendinha, tem-se a sensação gostosa de que o centro do mundo é aqui. Lourenço me acompanha nessa contemplação silenciosa. Estamos juntos ouvindo lindas canções que deixamos que briguem com o silêncio e o barulho da chuva. Quanta sabedoria transborda das letras das músicas brasileiras... Vivo, paralelamente, uma sensação de estranheza com minha idade, pois faço setenta anos daqui a dois meses. Minha idade passou a ser uma realidade mais presente. Parece que o nascimento do Tom me faz pensar na minha história. É duro pensar que quando ele tiver dez anos já terei oitenta anos. Serei um idoso, por mais que saudável. Vou fazer todos os exercícios que puder para ter saúde física e espiritual para conversar com meus netos, para vê-los jogando futebol, cheios de amigos e amiguinhas. Gostaria de ter a lucidez para viver com eles, ainda que mais velho, muitas das alegrias que tive com meus filhos quando ainda era jovem. 41

NASCE UM AVÔ


a primeira viagem

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stamos em Búzios, primeira viagem do Tom. Para essa mesma casa foi a primeira viagem do Lourenço, com mais ou menos a mesma idade. Lembro bem da fotografia que fiz da Patrícia amamentando o Lourenço ao lado da Regina, que dava de mamar ao Théo. Os seios das duas estavam enormes, lembro. Tento esconder de mim mesmo a preocupação secreta com meu netinho. Acho que ele dorme muito, até demais. Será que ele teria algum problema de audição? Minha mulher também se preocupava, mas escondíamos esses pensamentos um do outro. A tranquilidade de Luciana me acalmava e me dava muita segurança. Não queria contagiar os pais com essas preocupações exageradas de avô. Essa quieta criança de dois meses ficou toda a noite de Natal passando de mão em mão por

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todos os tios ansiosos por tocá-lo, inabalável, sem chorar nem estranhar ninguém. Búzios está sendo uma orgia de risos e interações tranquilizadoras. Procurei, dessa vez, fugir da cozinha, que sempre foi minha diversão e fonte de criatividade. Procurei acordar cedinho e ficar bastante com meu neto. Numa manhã, coloquei-o no meu colo por quase uma hora. Nossos olhares ficaram fitados um no outro. Os olhinhos dele não deixavam de prender os meus, sem piscar, por longos períodos. Fiquei encantado com essas nossas primeiras interações. A princípio, queria inventar alguma brincadeira que ele só fizesse comigo. Minha primeira brincadeira com meu neto foi assim. Mantendo-o deitado no meu colo, de frente para mim, comecei a tombá-lo para um lado e para o outro. Repeti essa peripécia por várias vezes e Tom, para minha surpresa, fazia pequenos gemidos e movimentos, interpretados por mim como um pedido de mais. Ficamos assim entretidos por mais de meia hora. Pensava comigo mesmo: se ele está interagindo é porque está me reconhecendo, certamente não como eu mesmo, nem como seu avô, mas como outro ser fora dele. E esse ser fora dele era eu, só eu, e isso me bastava. Eu queria ter o privilégio de ter inventado essa complexa brincadeira e de ter feito isso pela primeira vez. Foi também a última vez. Mais tarde no Guarany, não consegui repetir essa incrível façanha. Fiquei triste com o desinteresse dele pela brincadeira e por sentir uma certa indiferença para comigo. Enquanto alguns foram andar na praia, me esforço para ser reconhecido por ele e até penso que ele já me reconhece. Uso algumas estratégias secretas: tento fazer coisas muito simples para que ele entenda. Deixo Tom em pé e começo a incliná-lo, para um lado e para o outro, e faço pequenos ruídos: “Tum,tum, tum, tum”. Temo que me vejam fazendo essa ginástica mas não revelo a ninguém minha intenção, meu segredo: querer ser o primeiro e

A PRIMEIRA VIAGEM

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o único a fazer essa coisa única. Às vezes penso que estou sendo original. Outras, que estou sendo um bobo. Quando Tom crescer vai julgar, apesar de eu saber que nunca será capaz de lembrar desse esforço de me fazer presente na origem, na fonte, nas primeiras águas que alimentaram sua vida interior. Vejo que Tom também faz um esforço grande para se comunicar. Há umas duas semanas que ele tenta fazer ruídos que parecem de um lobo. Seu rosto se contorce e sua boca se contrai para construir um som, algo assim: “Aaaaaauuuuuuuunnnnnnn”. Repete “essa frase” várias vezes, dialogando comigo, que tento imitá-lo. Parece meio ridículo, não me importo. Mas é muito engraçado e emocionante. O esforço é grande e a alegria dele é visível quando ele consegue. Adoro brincar disso com meu neto. “Tum, tum, tum, Tum” talvez seja nossa primeira brincadeira e “Aaaaauuuuuuuunnnnnnn”, nossa primeira conversa.

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avô, um coração partido

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stamos no Guarany desde ontem, aniversário de dois meses do Tom. Ele estava muito inquieto, muito diferente do primeiro mês e da semana que passamos em Búzios. Luciana parece impaciente porque acha que Tom está dengoso e que não quer ficar sozinho de nenhuma maneira. Expressa certo desapontamento conosco por deseducá-lo na semana de Búzios. Não sei como me comportar, mas não consigo deixá-lo chorando sem tirá-lo do carrinho. Coração de avô é diferente do coração dos pais, mas os dois se complementam ou, pelo menos, deveriam. Percebo essa diferença quando sinto, com Tom, emoções que não sentia com meus filhos quando eram pequenos. Como pai, sentia um amor compromissado com resultados, com o cumprimento de uma missão de formação, de responsabilidade.

AVÔ, UM CORAÇÃO PARTIDO

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Coração de avô não é melhor nem pior, mas fala diferente, mais suave, mais compreensivo, mais devagar e a longo prazo. Olhar de avô não tem urgência nem regras fixas. Assim como o coração tem razões que até a razão desconhece, posso dizer que a razão dos avós tem um coração que só o coração reconhece. Dizem que ser mãe é padecer no paraíso. Ser pai não deveria ser, mas, frequentemente, é padecer do lado de fora. Ser avô é ficar esperando, meio dentro, meio fora, um acontecer que depende pouco de nossas ações e cuidados. Muitas vezes se resume em ficar esperando numa espécie de contemplação. Contemplar é ficar presente de outra forma, sem urgências nem competições, sem a lógica rígida da causa e efeito. Quando nada podemos fazer, podemos fazer muito, dando um clima e um pano de fundo de cor suave. É difícil, se não impossível, mantermo-nos numa posição de equilíbrio para não entrarmos em competição com os pais e não nos tornarmos eternos críticos à conduta deles. Ser pai está para o saber como o ser avô está para a sabedoria. Tenho me cuidado todo o tempo para não chamar o Tom de meu filho ou chamá-lo de Lourenço ou de Fabio, meus filhos. É preciso ter uma resignação sábia de nos manter na posição de avôs e dar espaço para que os pais se descubram e se inventem na medida e no tempo deles. Creio que está aí a mais difícil e necessária sabedoria do avô.

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passeio ritual com meu neto

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xiste, na nossa fazenda, uma longa avenida de terra que sai do asfalto e conduz quem chega da cidade à magia de um lugar cheio de histórias. Uma fazenda feita de coisas velhas, marcadas pelo tempo e pelas pessoas queridas, os avós e bisavós que já se foram. Vamos combinar: os pais não morrem, ou não poderiam morrer. Só os avós podem morrer e isso nos dá uma liberdade a mais. A natureza já nos deu uma licença para ir. Quando passamos para a categoria privilegiada de avô já podemos ir sem fazer tanta falta material, apenas afetiva e espiritual. Por isso, nós, os avós, podemos encarar a morte como um gesto de generosidade. Neste último momento, damos lugar para os que chegam, nossos netos. Os avós, como Peter Pans ao contrário, já pertencem à Terra do Sempre. A morte dos avós é natural.

PASSEIO RITUAL COM MEU NETO

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A morte dos pais é brutal. Se brutal para os filhos, mais brutal para os pais que morrem, especialmente quando eles ainda não subiram para essa categoria mais nobre dos humanos, a avó-idade. Vamos criar esse nome? No passeio que fiz pela avenida do Guanary naquela manhã, sabia bem que estava percorrendo um caminho histórico e, por isso, seria um passeio ritual. Por ali passaram as carruagens dos bisavós quando noivos, os carros de boi trazendo capim para alimentar o gado, para preparar o leite que alimentava as crianças da família e fazer o mingau dos bebês que hoje, morridos, são nossos avós. Avô é o nome que sempre usamos para os antepassados, os já falecidos. Talvez seja um dos motivos por que ser avô é uma coisa tão temida. Lembra a morte e nosso desaparecimento futuro e certo. Mas é futuro e certo não por sermos avós, mas por sermos humanos e vivos. Essa avenida de terra, entre cercas que separam espaços para a criação de cavalos e bois, tem apenas uns rápidos 300 metros para os jovens que saem a cavalo com suas namoradas em alegres grupos. A mesma avenida tem enormes e longos 300 metros para os idosos que por ela andam para exercitar suas pernas cansadas com a ajuda de bengalas com cabo de prata, como Dona Dulce, antiga dona da fazenda, a tetra avó do Tom, mãe de dona Jannice, minha sogra e bisavó do meu neto. Que crueldade desse Deus, que dizem ser tão bondoso, separar para sempre os avós dos seus netos, os pais de seus filhos. Com a morte, creio que nos separamos definitivamente e para sempre, mesmo que as religiões nos garantam que estejam bem e na bem-aventurança. Como dona Jannice amaria estar aqui no Guarany e, por um minuto que fosse, pudesse ver o seu bisneto reconhecendo-a e sorrindo para ela, e ela pudesse ao menos dizer alguma palavra para ele, ou com apenas um sorriso lhe desse uma benção silenciosa que fosse. Se eu conheço minha sogra, estou certo de que trocaria anos desse paraíso prometido para os

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que morrem, dessa felicidade entre nuvens celestiais, para voltar a conviver conosco no Guarany por um dia sequer, passear mesmo silenciosa entre a gente, ir nos quartos dos casais para abençoar seus amores, conferir a arrumação dos lençóis e das toalhas, as louças, olhar para os cavalos e bois, cuidar de suas orquídeas e dar uma última volta pela avenida com sua bengala. Roubaram-lhe o Guarany, o seu céu. Que terrível esse paraíso-prisão onde estão os bem-aventurados que não nos podem visitar, nem mesmo para nos assegurar de que continuam existindo, que estão bem e que nos acompanham. Essa prisão celestial também nos deixa presos, aqui do lado de fora. Somos, assim, obrigados aos poucos a esquecer nossos pais, nossos avós, nossos queridos e abandonar nossos afetos. Que crueldade com os que morrem e com os que ficam. Juro que dona Jannice deixaria por um tempo os prazeres no seio de Deus para empurrar o carrinho do Tom na avenida do Guarany. Nem sempre valorizamos o privilégio de ter momentos como esse. Convenci-me, mais uma vez, de que o céu nós fazemos aqui, na Terra, no amor por nossos filhos e netos, na dedicação à nossa família e aos nossos amigos. O balanço do carrinho de bebê fez o Tom adormecer, mas não conseguiu adormecer em mim essa reflexão revoltada sobre a prisão celestial. Nesse nevoeiro de pensamentos, fiquei encantado com um casal de canarinhos da terra que cantam e voam sem pensar em nada dessas coisas. São os pássaros de minha infância. Na minha casa em Fortaleza criávamos passarinhos em gaiolas. Trazíamos da fazenda de meu pai ou meu irmão comprava na feira de passarinhos aos domingos, depois da missa. Tínhamos um galo-de-campina de corpo branco e preto e cabeça vermelha cor de sangue. Havia graúnas feias, pretas, de canto lindo. Lembro que meu pai coçava a cabeça delas através das grades da gaiola e elas ficavam tão embevecidas que até caíam no chão de arame. Mas os canários eram os meus preferidos. Em suas gaiolas de

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madeira amarela colocávamos caixas com uma entrada redonda para que fizessem ninhos. Para nosso encanto, os canarinhos procriavam. Tivemos canários belgas, sofisticados com penugens coloridas e canto abundante, mas os que eu mais gostava eram os canários da terra. Pareciam caboclos. Os canarinhos da avenida do Guarany andavam juntos e pareciam brincar posando nos esteios da cerca. Havia dois filhotes ainda verdes, quase cinzas. Os canários da terra só ficam amarelinhos quando adultos. São amarelinhos e têm a cabeça mais amarela à medida que envelhecem, talvez quando viram avós. De repente, saíram pelo caminho do pasto e desapareceram. Voaram para o céu ou, quem sabe, foram para o Ceará...

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varanda de minha casa, noite

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á um mês e dez dias não escrevo no meu livrinho preto. Sinto-me pressionado, mas não queria que ficasse um escrever por obrigação. Creio que, nesse tempo, acabei sendo invadido pelo concreto, desse concreto que tira o espaço do sonho e da gratuidade. Fui ouvir o silêncio da noite, deitado em minha rede branca tecida no Ceará. Tenho pensado bastante em minha mãe. Pensar nos ascendentes é uma necessidade para recuperar a história de uma família e uma sensação de cadeia natural onde se entrelaçam vida e morte. Chamava-se Maria Isaura. Fiel a Deus e aos instintos de mulher, teve 11 filhos, adotou duas meninas, ajudou a criar vários sobrinhos. Vivia entre a Igreja e a família, querendo converter todo mundo e levar todos para o céu,

VARANDA DE MINHA CASA, NOITE

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os filhos, a família, os amigos, os empregados, os moradores da fazenda, os pescadores da praia onde tínhamos casa, todo mundo. Exercer esse carinho justificava todos os meios. Um maquiavelismo com alguma semelhança com o exército das Cruzadas. Mulher forte e teimosa, na vida familiar e pessoal, administrava uma casa enorme, com mais de oito empregados, uma casa meio caótica que ela dominava em todos os detalhes. Meu pai, de aparência forte, vitorioso nos negócios, era em casa, inevitavelmente, conduzido por ela. Com um misto de raiva e prazer deixava-se levar por suas mãos. Fazia quase tudo que uma mulher na época poderia fazer, além dos deveres familiares e dos compromissos com a igreja. Tratava de doentes, criava galinhas e vendia os ovos para os vizinhos. No quintal da casa, quase um sítio, criava porco e tinha sempre duas ou três vacas no curral de nosso terreno, em pleno centro de Fortaleza... nosso pai tomava leite mugido, recém tirado das vacas, todas as manhãs e levava para cada um de nós em nossa rede, muito cedo. Foi a forma que ele encontrou para mostrar, silenciosamente, o seu carinho com os filhos. Quando tinha cerca de setenta e quatro anos minha mãe teve um câncer que ela teimosamente tratava com homeopatia. Os médicos, sem considerar a sua arte, pois ela pintava quadros, a proibiram de continuar pintando alegando que as tintas lhe fariam mal. Tomou uma das atitudes mais admiráveis e nos deixou um legado muito forte quando, depois da proibição dos médicos, ela me disse: “Não importa, meu filho, agora eu posso começar a estudar piano”. Um dia comprei um órgão de igreja, desses portáteis, e mandei para ela. Não sei se ela conseguiu estudar, mas seu exemplo me norteou em momentos difíceis de minha vida. Essa é a bisavó do Tom.

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Tom começou a engatinhar

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ão sei por que passei tanto tempo sem escrever no meu livrinho preto. Fiquei dividido, precisando concentrar-me em outros projetos, outros assuntos, e escrever exige um espaço livre para pensar, sentir, um espaço para sonhar. Tom, por outro lado, desenvolve-se com muita rapidez, vitalidade e tranquilidade. Está muito durinho, com pescocinho ereto e cabeça firme, olhos atentos e a carinha sorridente de riso levado, mostrando os dentes que ainda estão por vir. Parece que nada o aborrece. Fico querendo que ele se desenvolva rápido para me reconhecer e brincar comigo. Mas fico também querendo que ele não cresça tão rápido assim. Está quase conseguindo a coordenação motora para agarrar as coisas. Tive a impressão de

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que ele já obedece a minha sugestão de pegar na barba branca do vovô. Quase sempre tenta me agarrar pela barba com o pouquinho de coordenação motora que já adquiriu. Vivo a sensação, pelo menos, de que nenhum outro avô tem barba, que sou a única pessoa de barba, com a exceção do tio Lourenço. Dois meses depois... Tom começou a engatinhar essa semana e está com um olhar muito bonito, curioso e esperto. Creio que já me reconhece, mas não tenho certeza. Tocar piano com ele é uma delícia. Experimenta as notas e bate no teclado com as duas mãozinhas com força e prazer. Amanhã, domingo, vou passar o dia na casa da Luciana. Tom vai ao mar pela primeira vez. Cláudio, surfista por natureza e apaixonado pelo mar, está especialmente exuberante com esse primeiro mergulho nas águas da praia da Barra. Primeiro mergulho num mar imenso de futuras ondas de surfe e de amores que ele um dia vai viver nessas águas salgadas. Vou à feira pertinho da casa da minha filha e talvez compre lá alguma coisa para preparar para o almoço. Gosto muito de cozinhar, mas estou querendo mesmo é ficar com meu neto. Muitas preocupações, o trabalho no consultório e a preparação de projetos para escrever outros livros fizeram com que as reflexões sobre ser avô ficassem um pouco distantes. Fiquei tomado pelo esforço de fazer exercícios físicos, pela luta contra as dores nas costas e pernas e, principalmente, pela luta contra as fantasias e a sensação de envelhecimento. Ser avô e fazer setenta anos sobrecarrega a nossa cabeça de fantasias depressivas que são exatamente o oposto da alegria e da curiosidade que meu neto está vivendo. Se quiser acompanhá-lo, tenho que vencer essas questões e sair vitorioso dessa fase. Creio que a doença é uma espécie de perturbação na nossa posição no mundo. Sinto que minha posição mudou e está instável. Sinto-me frequentemente fragilizado. Projetos me

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fortalecem os sonhos e me renovam, mas não estou com consistência e força para me organizar e transformar esses sonhos em projetos viáveis. Quero escrever mais livros. Quero fotografar mais. No fundo, quero ter mais tempo para mim. Mas como posso se tenho que trabalhar tanto? Como gostaria de trabalhar menos para escrever mais.

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TOM COMEÇOU A ENGATINHAR


quase quatro meses e dois sonhos

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á algumas semanas, tive um sonho lindo, daqueles que a gente fica sem querer acordar para continuar tendo aquele prazer suave, meio de verdade, meio de mentira. Sonhos contam mentiras para contar verdades que nem imaginamos. Por outro lado, temos tantas verdades que apenas contam mentiras que nós mesmos criamos. Assim, os sonhos muitas vezes nos revelam mais do que as nossas verdades. Mas o sonho foi assim: eu estava deitado numa praia de areia branca e tão suave que nem parecia areia. Lá estava o Tom e uma irmãzinha que tinha a mesma idade e a mesma carinha dele. Eu não conseguia descobrir o nome dela e parecia como se eu estivesse acometido de um enorme esquecimento do qual eu me

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culpava e me preocupava. Ficava deitado na areia me deliciando com o sorriso dela e os ruidinhos que trocávamos para nos comunicar. Era delicioso e eu não queria acordar. Fiquei esticando o sono para continuar o sonho. Quando resolvi me levantar fiquei buscando estratégias para não esquecer esses momentos. Os sonhos são fortes e verdadeiros quando estamos dentro deles, mas frágeis e evaporam quando acordamos e vamos para a vida real. Escrever esse sonho no meu caderninho preto foi uma estratégia para aprisioná-lo e torná-lo meu para sempre, mas não sei quem era essa irmãzinha do Tom, minha neta, da qual eu não sabia o nome. Mas agora, enquanto escrevo, lembrei-me de uma parte do sonho que já ia se esvaecendo mas que é essencial, talvez a chave, para decifrá-lo: a menininha de três meses me dizia docemente e repetidamente: “Meu pai querido...meu pai querido...”. Lembro agora que Luciana me trata assim, especialmente quando me escreve e-mails. A ordem das palavras é sempre a mesma, ‚Äòpai querido’. Mas por que no sonho eu não sabia o nome da irmãzinha do Tom que tinha a mesma idade dele? Quero entender que a menininha era Luciana, minha filha... Tive um segundo sonho, há alguns dias. Tentei segurá-lo na memória pela importância que parecia ter, mas apenas o essencial foi preservado. Sonhos são voláteis e não conseguimos recuperá-los nem que sejam alguns minutos depois. Parecem arquivos temporários que precisam ser apagados. Vão desaparecendo numa espécie de nuvem. Nela vão se esmaecendo por mais que a gente tente segurá-los. Por isso, certos sonhos precisam ser reinventados várias vezes e por muito tempo. Eram de novo duas crianças na idade do Tom, sendo um o próprio Tom. Deitado com eles numa cama no Guarani, comecei a falar chamando-os de meus filhos, mas eu mesmo tomava consciência da inadequação de minha frase, pois eu não era o pai. Enquanto ainda sonhava, me condenava pela inveja que sen-

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tia e me perguntava quem eram os pais dessas crianças tão lindas. Como que lendo meus pensamentos, Tom me respondeu em voz alta como se fosse um homem adulto e pronunciou uma palavra, quase uma sentença: “Depende”. Acordei de imediato como de um susto. Durma-se com um sonho desses e com essa inexorável sentença. A palavra ‚Äòdepende’ não parou de gerar constantemente reflexões e interpretações múltiplas e angustiantes. A mais evidente é que ser avô, assim como ser pai, depende de nós, especialmente de nós avós. Depende de nossa dedicação, de nossa capacidade de perder tempo para estar com nossos netos e construir, passo a passo, essa relação pela qual somos responsáveis.

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Nós temos a pretensão de sermos reconhecidos como avós, por direito ou herança, por mérito ou compaixão. Mas na verdade, nem conseguimos que nosso neto nos perceba e temos que reconhecer que, nesse começo, não passamos de mais um rosto que se mexe nesse mundo de caras, bocas, olhos, dentes, ruídos e câmeras que os perturbam com flashes atordoantes. Ainda bem que as crianças com até quatro meses só enxergam o que está muito perto, não distinguem o que está a mais de 50 centímetros e ouvem apenas os ruídos mais altos. Assim, a natureza os protege dessa multidão de pessoas sedentas por estar presentes na vida dos bebês. Mesmo assim, não quero desistir da pretensão de que meu Tom é diferente e que eu sou um avô especial e único. Infelizmente, todos os avós são iguais a mim e têm as mesmas pretensões. Ser avô não é um bem gratuito nem consequência apenas de sermos pais de um dos pais. Os bebês, para nosso desencanto, nem sabem o que é um avô e muito menos o que é ser neto. A sabedoria da natureza faz com que os cheiros, a intimidade dos corpos e as marcas interiores dos primeiros contatos conduzam

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o bebê para o reconhecimento prioritário da mãe e do pai. Nós, os avós, somos diferentes dos que visitam o recém-nascido apenas por nossos cabelos brancos, por nossas pretensões e boas intenções. Nossa relação com nossos netos tem que ser construída desde o começo, com nossa presença física e na constância de nosso afeto. Alguns avós protegem-se das emoções e não se aproximam desse show da vida. Preferem assistir de fora como a um espetáculo do qual não tomam parte ativa. Outros têm a coragem de mergulhar no encanto da ternura. A ternura por um neto é transformadora, especialmente para nós homens.

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sabedorias

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ejo que o tempo está passando com muita velocidade. Daqui a seis dias Tom já faz quatro meses e sua evolução vai ser, a cada dia, mais rápida. Pessoas me mostram fotos de netos com dois ou três anos que já falam, parecem meninos. Num piscar de olhos, Tom já estará assim e não sei como vou garantir a minha presença em sua vida de menino. O trabalho e as preocupações tomam-nos momentos preciosos da vida. Vejo-me sem tempo para acompanhar seu crescimento. Temos que viver esses momentos com toda a intensidade, porque eles não voltam mais. Não é fácil ser avô. Dentro da alegria se esconde um sofrimento intrínseco e um cuidado constante. Vejo, com o nascimento

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de meu neto, quantas mudanças acontecem na dinâmica de uma família, pois todos se transformam, novas funções aparecem e se definem. Entram em cena todos os avós, sanguíneos e afetivos, segunda mulher do avô, segundo marido da avó, tios pela primeira vez, padrinhos, tios-avós e primos que querem também ocupar um lugar no cenário. Momento rico e delicado em que, simultaneamente, a família maior está se rearrumando e uma pequena família está buscando seu estilo e criando o seu ninho e, assim, precisa ser protegida. Muitas vezes, a função dos avós se apresenta como um desafio delicado e quase impossível. É preciso estar dentro sem entrar muito e estar fora sem abandonar. É preciso calar e reconhecer que agora é a vez dos pais. A sabedoria nos ajuda a mostrar que um dia soubemos e que hoje, felizmente, não sabemos mais. O reconhecimento de que não sabemos cria o espaço para o saber e para a autoridade dos que hoje são pais. Esse dilema sempre estará presente, como uma constante aprendizagem, e é intrínseco à nossa função de avô na família e no mundo. Em vários momentos, discordei de decisões que os pais do Tom tomaram, quase sempre em coisas não essenciais. Na minha lógica, outras alternativas poderiam ser adotadas, mais criativas e sem tanto desgaste. Tenho procurado insistir não mais que uma ou duas vezes, porque a decisão final deve ser deles na aprendizagem da condução da família que estão formando. Temos que aceitar a frustração de não sermos atendidos e de termos que recolher a nossa experiência e, principalmente, nossa autoridade. Já não são mais os mesmos filhos da época em que dávamos as ordens. Estávamos na varanda e Tom estava inquieto no carrinho. Eu tentava atrair o seu olhar que me encantava com um sorriso aberto e gratuito cheio de reconhecimento. Apesar de toda minha sedução, usando todos os meus recursos sonoros, gestos e brinquedinhos, Tom virou o rosto totalmente para o pai e levantou os

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braços pedindo seu colo. Por mais graças que eu fizesse, continuava buscando o olhar do pai. Entendi que, nesse instante, minha função era ficar de pano de fundo. Certa vez, fui colocar o Tom no carrinho e Luciana, carinhosamente, disse-me: “Pai, não é assim que se coloca, puxa mais pra cima...”, e deu mais alguns detalhes. Há trinta e quatro anos atrás eu coloquei Luciana no carrinho centenas de vezes. Que encantador ver que Luciana tenta me ensinar a colocar seu filho no carrinho. Não falei nada e deixei que ela me desse todas as explicações de como cuidar de um bebê. Ensinar-me é necessário para que ela saiba que sabe. Para ela ter mais segurança e sentir que é mãe, que é a mãe do Tom, que tem o seu jeito de tratar, sua forma de educar dentro de sua filosofia de vida. Recolher-me é uma forma sábia de aceitar. A educação que o avô pode dar não está nos discursos cheios de experiências e saberes, mas na nossa condição de gerar espaços para que os pais afirmem seus caminhos e, em casos extremos, de proteger os netos dos excessos sem tirar-lhes a autoridade. Difícil função: aprender a se recolher para melhor acolher e ter paciência de esperar para melhor colher. O exercício do equilíbrio e a prática do silêncio são tópicos da função do avô. Tudo isso é lindo e necessário. Esse é o caminho e quero velar para que isso aconteça, mas minha frustração é difícil esconder. Frustração boba e só compreensível porque nós, os avós, somos mesmo uns bobos, quase crianças carentes. A natureza é sempre sábia, pois sendo carentes e bobos ficamos mais identificados com nossos netos e, assim, podemos sentir e compreender melhor o que eles sentem. Todos os avós são santos e bobos, ansiosos por serem o que todos desejamos ser, os melhores avós do mundo. Não é sem motivo que dizem que ser avô é ser pai duas vezes, ser pai com açúcar, educar sem culpa, errar sem arrependimentos.

JOSÉ INACIO PARENTE


preciso voltar a escrever

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enho tido dificuldade, não de ter ideias, mas de sentar e pegar a caneta. Tenho sofrido muito com as dores lombares e outros sintomas que me obrigam a idas a médicos e desperdiçar meu tempo, que já é curto, com tantas hipóteses de causas e soluções para minhas mazelas. Nós, os avós, vivemos torturados com notícias que nos chegam de doenças e até da morte de companheiros com nossa idade. Sempre preocupados, fazemos inúmeros exames para nos prevenir de doenças que vemos nos amigos. Sabemos que um dia morreremos de alguma delas e não preciso citá-las aqui. Estamos mais frágeis e suscetíveis física e psicologicamente. Ultimamente tenho me sentido meio triste e as noites ainda estão difíceis, embora bem melhores. Tenho tido também pouco

PRECISO VOLTAR A ESCREVER

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tempo para encontrar meu espaço, meu lugar de avô. Tenho ido pouco à casa da Luciana. Minha vida parece ter ficado mais pobre e tenho me perdido em coisas burocráticas. Parece que perdi a poesia. Tenho vontade de voltar a escrever. Tenho tido muitas idéias novas que me fizeram sentir que tenho algo de valor e um olhar diferente e rico sobre ser avô. Preciso me libertar desses pesos para voltar ao espaço do pensamento e da poesia. Escrever é necessário, mas neste momento sinto-me travado. Por outro lado, vejo que nunca fui tão eficiente e brilhante no consultório como atualmente. Parece que o consultório flui sem esforço e com prazer, como nunca. Vários meses se passaram e Tom já está com um ano e dois meses. Passei a contar o tempo pela idade dele e me assusta cada vez que percebo que estou perdendo momentos preciosos que não pude acompanhar e me ressinto pelas reflexões que deixei de fazer. Refletir é uma maneira de guardar as vivências de outra forma, de uma maneira mais profunda e universal, mais sublime. Escrever sobre ser avô é uma maneira de aprofundar minhas vivências nessa forma mais terna, mais fácil de compartilhar e de ser reconhecido por outros avós, por outros pais e até mesmo pelo Tom, quando ele estiver em condições de perceber essas belezas do mundo interior. Como será o mundo concreto e o mundo interior daqui a vinte ou trinta anos, quando não passarei de uma coleção de livros que escrevi e de uma imensa coleção de fotografias que tirei. Faço fotografia desde meus 18 anos. As pessoas irão dizer: “Aquele seu avô, José Inácio, que vocês não conheceram... aqui estão os livros dele empoeirados, lado a lado, numa estante do Guarani”? Muitas fotografias deixarei, e até pequenos filmes e filmagens que fiz dos meus filhos, do Tom, além dos filmes profissionais que realizei. Espero poder deixar, também, registros com imagens e escritos sobre outros netos que um dia virão. Nesse tempo talvez o Tom

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já possa ensinar aos primos os primeiros passos, já possa mostrar os primeiros momentos de um mundo lindo no qual eles poderão viver mais de cem anos, com a qualidade de vida que nós não tivemos. Fotografar é uma maneira de eternizar os momentos e de nos eternizar pelas imagens que fazemos. Como os poetas e os artistas, eternizamo-nos pelas fotografias que fazemos. Quando observo essa geração que nasce agora ou mesmo a geração de meus filhos, sinto que são crianças e jovens que vão viver num mundo muito mais rico e livre. Livre para pensar uma vida sem religiões, sem igrejas, sem culpas torturantes, sem pressões que vem de fora, de cima ou do céu. Um mundo mais rico pela espiritualização do homem através das tecnologias e da informática, unindo o gênero humano, e fazendo com que cada riqueza do pensamento humano seja acessível e compartilhada por todas as pessoas. Que geração saudável e bonita. Quero ter a capacidade de acompanhá-los com o encantamento dos jovens e o prazer de contemplá-los sem os preconceitos dos velhos, quase de dentro, quase de fora. 65

PRECISO VOLTAR A ESCREVER


sexta-feira santa na fazenda

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essa vez o Guarany assistiu a uma reunião da família quase completa. Poucas vezes tivemos essa sorte. Viemos todos de minha família. Lourenço chamou-me atenção para isso e resolveu não convidar nenhum amigo para não quebrar essa magia. Tom foi, como quase sempre, o centro da admiração de toda a família. Para mim, ele está incrível. Parece que já domina tudo, entende tudo. Nada fala claramente, apenas aponta com um dedinho sábio que abre todas as portas e corações. “Mamam, mamam”, representa quase tudo, tudo o que de alguma maneira lembra sua mãe ou o que ela faz. Repete “Mamam” para o automóvel, para o desenho de uma casinha e para tudo que lembra uma mãe que está presente em quase todas as coisas. “Mamam” por enquanto, serve para quase tudo.

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Fiquei muito mobilizado hoje pela manhã quando fui para a sala de jogos e encontrei o Tom com uma raquete e uma bolinha tentando jogar pingue-pongue. Fabio jogava animadamente com Ana Paula na mesa recém-comprada. Depois Luciana entrou na roda. Pensei em pegar outra raquete e tentar brincar com o Tom, que mesmo sozinho estava se divertindo animadíssimo. Jogar com ele, nesse momento, exigia de mim disposição física e atitude interior. Para acompanhar aqueles momentos tão especiais, precisaria me abaixar e pegar a bolinha, levantar, andar de quatro e suportar as dores nas costas. Cai numa certa depressão quase contemplativa. Depressão contemplativa é a expressão exata, um sentimento que contrastava com a disposição juvenil do Fabio, da Ana Paula e da Luciana, que disputavam aquelas partidas de pingue-pongue. Senti profunda inveja, talvez uma inveja também contemplativa, pois fiquei olhando para dentro de mim quase paralisado, sem que ninguém percebesse. Uma timidez imensa me abateu, daquelas que tinha quando criança, tão forte que me impediu de dizer tão simplesmente: quero jogar também. Nunca senti tão claramente o que é envelhecer e que no envelhecer tem uma escolha, assim como na doença. Deixar-se vencer pelas dores nas costas, ceder à timidez e preferir a acomodação, não jogar pingue-pongue com meus filhos e não partilhar com eles a alegria é envelhecer e ceder à morte. Ninguém percebeu que eu estava mergulhado no meu mundo interior povoado de pensamentos urgentes, decisões simples e definitivas e não estava podendo participar da vida que transbordava no amor do Fabio e da Ana Paula e na maternidade tão plena da Luciana. Sem ninguém saber nem perguntar, levantei-me e, covardemente, retirei-me da sala de jogos, onde meu neto e meus filhos se deliciavam com a vida que, para o Tom, se abria tão generosamente. Mas foi importante a minha retirada. Precisava mergulhar nessas cavernas com cheiros de morte, onde a velhice vai se anunciando, para ressurgir do mergulho com uma esperan-

SEXTA-FEIRA SANTA NA FAZENDA

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ça de vida e o compromisso de não me deixar abater. Levantei-me como quem dá um salto e sai para andar pela estrada. Fui caminhando sozinho até Andrade Costa, um pequeno vilarejo perto da fazenda, para tomar cerveja no Bar do Maurinho. Estava ótimo e me sentia feliz. Até pedi torresmo e umas linguiças fritas como aperitivo para a cerveja gelada. Resolvi voltar para o Guarany andando a pé entre o verde da pastagem regada pela chuva e meus pensamentos, levando a sensação de estar me dedicando à minha saúde e reforçando a minha alegria interior. Voltando para casa, a avenida do Guarany pareceu-me mais linda ao contemplar a chuvinha fina que caía mesclada com momentos de sol. Tudo tinha um verde que eu não percebera antes. Cachaça com caldo de feijão e papo solto na varanda para esperar o almoço que sempre sai duas horas depois do combinado. Para acompanhar o almoço tradicional do Guarany, com arroz, feijão e farofa, preparei polvo e camarão com legumes da fazenda, muito pimentão vermelho e cebolas cortadas em pedaços generosos. 68

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ainda na fazenda, à noite

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om havia brincado com todo mundo durante todo o dia. Agora ele aprendeu a chamar a atenção e a desafiar as pessoas com um sorriso misterioso de quem está chamando para brincar. Anda, quase fala, corre e assim consegue ser o centro das atenções de todo mundo. Eu nem pretendia que ele ficasse tão ligado a mim como de outras vezes. Vi que queria ficar um pouco separado de mim e não respondia aos meus convites. Preferia brincar com todo mundo ou, ainda melhor, decidiu correr atrás dos cachorros e das galinhas. Assim ele podia ver a delícia que é se divertir com todos os tios e primos, seduzindo cada um com sua simpatia e aproveitar a liberdade dos espaços abertos do campo.

AINDA NA FAZENDA, À NOITE

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Já é noite. Comecei a perceber o silêncio provocado pela sua ausência. Procurei pela minha filha e encontrei Luciana às voltas com o trabalho mais difícil para as mães: fazer uma criança dormir. Luz quase apagada, porta fechada para silenciar as falas lá de fora. Luciana cansada e impaciente tentava que sua delicadeza e persistência vencessem a excitação e o cansaço do Tom para que ele cedesse ao sono e, como sempre, adormecesse no seu colo. Parecia uma carinhosa luta. De um lado, Tom não conseguia parar de se mexer, querendo descer do sofá e andar pela sala escura. Do outro lado, Luciana balançava o Tom com gesto terno e repetitivo tentando acalmá-lo. Tom gemia daquela impaciência de quem não sabe o que quer e não pode perceber que a única coisa que precisa é dormir. Luciana, como resposta, cantava: “Tá na hora de dormir...não espere mamãe mandar...um bom sono pra você... pr’um alegre despertar...”. Cheguei perto sem saber muito o que fazer, mesmo sabendo que tantas vezes fiz Luciana dormir nas mesmas circunstâncias e com as mesmas músicas. Costumava cantar para ela “Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta...” e, nessa parte, para que ela não entendesse, eu cantava bem baixinho. Sentei no sofá com medo de estar atrapalhando ou de aumentar a excitação do Tom e comecei a cantar também com a minha voz desafinada. Minha mão, que acariciava o Tom, começou a esbarrar nas mãos da minha filha. Senti como é difícil, quando ficamos adultos, esse contato físico tão fácil e prazeroso quando Luciana era pequenininha. Venci minha timidez e comecei a acariciar a mão dela, até porque percebi que essa barreira tinha que ser vencida dentro de mim. Sei que para ela também deveria ser um pouco difícil. Não me lembro de termos brigado alguma vez, mas alguma coisa vai acontecendo durante nossas vidas que cria uma misteriosa barreira, principalmente no nosso contato físico.

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Nesse momento, aconteceu uma iniciativa linda. Luciana, já cansada com Tom em seus braços, me pediu para deitar a cabeça na minha perna. Tom continuava agitado, mas quando Luciana aventurou-se a aconchegar-se no meu colo, acariciei a cabeça de minha filha com suavidade. Parecíamos três num só corpo e minha mão começou a acariciar as costinhas do Tom que estava deitado sobre Luciana. Tom foi acalmando e senti que eu estava protegendo a minha filha para ela proteger o seu filho. Resolvi então dizer para Luciana: “Minha filha, você é tão boa mãe”. Ficamos por algum tempo silenciosamente emocionados. Acariciou minha mão, a mesma mão com que eu estava acariciando o Tom. Nesse momento, o importante já não era mais o Tom. O amor se transformou no amor de um pai e de uma filha. Esse sentimento ficou maior do que tudo naquele momento. Não falamos mais nada. Nossas mãos voltaram a acariciar o Tom, que já dormia profundamente. Tom voltou a assumir de novo o papel de protagonista nesse momento marcante em minha vida e nas minhas descobertas de como ser avô. Cada vez mais, tenho orgulho de minha filha e nossa relação está muito mais amorosa. Tenho certeza de que a segurança e a confiança do Tom decorrem da confiança e segurança que ele sente na relação com minha filha. É uma criança feliz, está se desenvolvendo muito bem e se dá com todo mundo. Luciana conjuga muito bem a firmeza e a doçura, mantendo a coerência com seus princípios. Helena, nossa caseira, é descendente de escravos, cheia de sensibilidade e sabedoria sobre as pessoas, sobre as plantas e as ervas medicinais. É um relicário de histórias dos escravos das fazendas de café do vale do Paraíba, onde fica nossa fazenda. Costumamos conversar, irmãos, primos e parentes, até muito tarde da noite, botando em dia nossas prosas, mas temos como garantia que Helena vai ficar com Tom desde as primeiras horas da manhã até todos acordarem. Passeiam de mãos dadas pela avenida e Tom, mesmo sem ainda saber falar, ouve histórias e presta

AINDA NA FAZENDA, À NOITE

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atenção nas explicações que ela lhe dá sobre os bichos e a vida na fazenda. Benjamin, neto da minha co-autora, esteve no Guarany com o Tom e pôde conviver com Helena nessas manhãs de fantasias. Cheia de saudades dessas crianças, ela me mandou um bilhete que ditou para que uma de suas filhas escrevesse:

Tom e Benjamim,

aqui no Guarany tudo se renova quando vocês estão aqui. Com os pássaros cantando, vocês olham para mim entendendo as diferenças de cada melodia. Ao caminhar na avenida, vocês adoram colher flores para suas mães.

72 Tom e Benjamim, vocês são o sol que brilham no Guarany, espero sempre por vocês. Helena

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dia das mães

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manhã é dia das mães. Vamos fazer uma reunião à noite aqui em casa para que todos tenham tempo para festejar suas mães durante o dia, que será domingo como sempre. Patrícia merece, como todos os anos, a maior demonstração de carinho de todos nós. Todos os meus filhos têm uma relação muito bonita com ela. Desde pequenos, moram conosco e a relação estreitou-se ainda mais quando Lourenço nasceu. Quero também festejar Luciana, minha filha, que sempre me surpreende como mãe e como filha. Parece que ser uma boa filha prepara para ser uma boa mãe e ser uma boa mãe corrige as dificuldades que ainda possam restar em ser filha. Gosto cada vez mais da minha filha e a admiro também sempre mais. Mas ontem Tom veio para minha casa, a casa do Vovô Zé. Ain-

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da me soa precoce a palavra vovô. Parece que ainda não comporto esse título. Vovô, para todo mundo, é um título disfarçado de velhice. Parece que todo avô tem que ser velhinho e eu, mesmo com setenta e um anos, não me sinto velhinho, apesar das dores nas costas que o carregar o Tom no colo me deixam como lembrança por, pelo menos, uns dois dias. Estava sozinho em casa esperando. Foi um dia maravilhoso, mesmo tendo durado apenas cinco horas. Tom foi trazido pelo outro avô, o Antenor, que chamamos de ‘vô Tenor’. Já fazia uns quinze dias não o via e estava com a sensação de que ele poderia perder a lembrança do meu rosto e que teria me esquecido. Chegou dormindo no carro, mas começou preguiçosamente a despertar. Quando me viu, imediatamente pegou minha mão pelo dedo e adentrou minha casa como se fosse o dono. Fomos até a cozinha, comemos carambola que eu tinha comprado na feira, tocamos piano e abrimos a caixa dos brinquedos. Demonstrando o domínio pleno da casa do vovô, pegou-me pelo dedo e subimos a escada para a sala de televisão. Começamos a assistir, sentados juntinhos no sofá, um programa infantil, ambos fascinados com um filmezinho baseado em Carlitos, depois outros com animaizinhos. Mas o meu maior fascínio era tê-lo comigo, sentadinho e quietinho ao meu lado. Lembro que suas pernas eram tão pequenas que os pés terminavam antes do meu joelho. Algumas vezes se entusiasmava e descia do sofá e começava a apontar para os bichinhos na televisão falando “cocó” “au-au” etc. Às, vezes pousava a cabeça na minha perna sem a intenção de dormir, só por aconchego. Deve ter durado uma meia hora, mas para mim durou umas duas horas. Depois chegou minha mulher, ‘vó Tiça’, vinda do médico. Quando viu a avó, esticou os bracinhos para cima e saiu correndo na direção dela. Foi comovente. Fizemos mamadeira com leite em pó, banana e alguma farinha láctea, seguindo à risca a receita da mãe. Não quis ajuda e ficou sustentando a mamadeira até esvaziá-la. Quando Luciana chegou, parecia que tinha tocado o sino para avisar que havia

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acabado o recreio. Ficou subindo e descendo a escada e eu o segurava com cuidado. Seria ótimo que o Tom tivesse ficado para dormir comigo a noite inteira. Ainda não aconteceu essa noite. Foi um dia lindo mesmo que tenha durado apenas cinco horas. Ontem acabou sendo o dia dos avós.

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a casa do vovô

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om um ano, Tom já anda por toda nossa casa. Quer conhecer, testar e tocar em tudo. Pegar, colocar na boca, jogar no chão, testar os adultos e as regras, como numa eterna brincadeira. Na casa dos pais é preciso ter mais regras, uma rotina mais estabelecida, pois além do prazer, o convívio deve também ter um objetivo educativo. A casa dos avós costuma ser mais permissiva. Tem certo ar de exceção além de um constante convite à desobediência, necessária como um contraponto às regras características da casa dos pais. A não aceitação dessas diferenças pode facilmente gerar competição e conflitos desnecessários. Para a criança, a casa dos avós não pode ser uma réplica da casa dos pais, nem vice-versa. É preciso que sejam diferentes, não opostas, mas complementares. Mesmo sendo mais

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permissivas, as normas da casa dos avós precisam ter uma lógica clara e uma coerência permanente. Nossa casa tem muitos pequenos objetos de artesanato, lembranças de viagem, coleção de copinhos de cachaça, figurinhas de barro, tudo à altura e ao alcance do Tom. Conversamos com Luciana e Cláudio e decidimos que nada iria sair do lugar, a não ser uma ou outra coisa que poderia oferecer algum perigo para criança. Apenas sinalizamos para o Tom dizendo com firmeza que isso não é para mexer. Não precisa repetir muitas vezes, desde que a regra não seja arbitrária, seja explicitada sem ameaças, com clareza e coerência. As crianças não duvidam das ordens e não costumam desobedecer quando nós, os adultos, não temos dúvidas sobre as regras que estabelecemos. Muito cedo, Tom começou, ele mesmo, a fazer com o dedinho o gesto de ‘não pode’. Nunca aconteceu nada com nossa coleção de objetos, orgulho da vovó Tiça. Por outro lado, nos seus brinquedos e coleção de Lego, que pertenceram ao tio Lolô nessa idade, procuramos não interferir em nada. Quando vai embora a casa fica cheia de brinquedos espalhados pela sala, junto com os instrumentos de percussão que temos ao lado do piano. É com os brinquedos e com a manipulação dos objetos que a criança se expande, experimenta e descobre as leis da física, como a lei da gravidade, e as leis sociais da convivência neste primeiro modelo de sociedade que é a família. Tenta encaixes, exerce a percepção dos tamanhos, das distâncias e sua força muscular. Assim vai ensaiando suas operações lógicas, forma seu pensamento e sua imagem corporal, protótipo inicial de sua identidade. Ao mesmo tempo, vai criando seus códigos de ética que irão orientá-lo para o resto da vida. A casa dos pais e a casa dos avós, por terem normas diferentes mas complementares, podem ajudar a criança a compor, com mais liberdade, a sua própria ética, desde que as duas casas mantenham a coerência com os princípios morais de cada uma. Mas as crianças não brincarão

A CASA DO VOVÔ

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mais como brinquei, fazendo estradinhas de terra e pedrinhas para nossos caminhõezinhos carregarem formigas, debaixo das mangueiras na casa de meus pais em Fortaleza. Mais cedo do que podemos imaginar, esse laboratório de brincadeiras será invadido e enriquecido com objetos e aparelhos eletrônicos que não obedecem às mesmas regras dos objetos concretos, palpáveis, sujeitos às leis físicas como a gravidade nem sujeitos às propriedades dos sólidos. Essa geração terá oportunidades e experiências que nossa geração nem mesmo a geração de nossos filhos poderá alcançar. A fotografia, a internet, os tablets, os celulares, a televisão, os filmes com desenhos animados e os jogos eletrônicos estão entrando no universo do Tom como objetos virtuais que darão a ele outro tipo de experiência de mundo. Os objetos virtuais são frutos da imaginação criativa dos homens, nas suas formas e nas suas propriedades. São apenas imagens e sons, livres das relações de causa e efeito do mundo visível; não ocupam espaço apesar de passarem rapidamente a ocupar o tempo e o imaginário das crianças. São objetos mais plásticos, transformáveis, não têm peso e podem navegar pelo espaço sem tempo. Suas regras são inteiramente novas e irão formar o pensamento de todas as crianças, que inevitavelmente entrarão neste universo novo. A estrutura de sua mente será formada por outro tipo de manipulação do mundo, de onde extrairão outra lógica. Saberão transitar entre operações e objetos imaginários, para nós inimagináveis, dos quais apreenderão uma nova estética e uma nova ética. As crianças não param porque o mundo é para elas um fascinante laboratório de experimentações, onde elas vão descobrindo os princípios que regem o mundo físico, a lógica que rege as operações e o tempo, a estética que conduz o arranjo dos objetos e dos espaços e a ética que estrutura as relações entre as pessoas para a realização dos desejos de cada um. Estou ansioso para acompanhar e estimular a entrada desses brinquedos fascinantes que irão enriquecer o imaginário de meu

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neto. Os jogos eletrônicos, as telas sensíveis, as imagens de síntese construídas eletronicamente, o acesso rápido à informação, a fotografia digital, os botões e os personagens pertencem a esse mundo novo, onde nada depende do tempo nem do espaço. Tudo pode se transformar em tudo a qualquer momento com um simples toque na tela mágica. Tudo pode se repetir indefinidamente sem desgaste ou risco. Tudo pode voltar atrás por um simples comando. Assim pode-se brincar ou trabalhar sem medo de errar porque os erros podem ser desfeitos sem ansiedade. Como são imagens obedecem apenas às regras das imagens, podendo ser transformadas, reproduzidas, compartilhadas, guardadas ou deletadas a qualquer momento. É a independência total das leis do universo físico e talvez a inauguração de uma nova “natureza”. Tudo isso terá consequências inimagináveis e certamente maravilhosas na inteligência das crianças e na humanidade.

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festa de são joão

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doro as festas juninas. As bandeirinhas, as comidas, a fogueira e as danças com sanfona me lembram coisas de minha infância e as festas do interior na fazenda de meu pai no Ceará. Nem creio que tenham sido muitas vezes, mas as poucas vezes se multiplicaram no meu interior em tantas que parece que vivi todas as festas em todos os junhos de minha infância. Tento traduzir essas lembranças com cheiro de milho verde nas festas em nossa fazenda. Gabriel, meu cunhado, monta uma fogueira enorme que queima toda a noite. Sou encantado com as fagulhas que sobem ao céu como estrelas. Ano passado tive o primeiro São João com meu neto. Uma foto na minha sala lembra a minha alegria com ele no colo, ambos com o chapéu de caipira. Este ano repetimos a mesma festa,

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no mesmo lugar, numa praça do Jardim Botânico. Teria passado despercebida se não tivesse acontecido um incidente com o Tom, que fez essa festa inesquecível. Era uma daquelas brincadeiras de pescaria. Levei o Tom para conhecer essa brincadeira, talvez a mais ingênua e encantadora que conheço. Uma banheirinha de criança, um pouco d’água, peixinhos de plástico, argolinhas e um caniço de bambu. Algumas crianças um pouco mais velhas que o Tom brincavam com aparência de domínio, domínio do lugar e da técnica de pescar. Tom ficou encantado com a brincadeira e pegou uma das poucas varinhas encantadas. Foi então que uma menina mais velha e com mais domínio do brinquedo disputou a varinha e tomou-a da mão dele. Mesmo agora, quando escrevo, me emociono ao lembrar daquela carinha, com aquele choro de beicinho trêmulo de perder o fôlego e os olhos cheios de lágrimas, por tristeza e por revolta. Tom me olhava pedindo uma ajuda ou intermediação. Ele procurava a mãe, chamando a minha filha com desespero. Parecia que ele estava pela primeira vez tomando contato com a disputa, a competição, a sensação de território, de posse, a primeira decepção com as pessoas, a primeira sensação de impotência diante da propriedade privada. Na verdade, a varinha era da menina e o que eu poderia fazer? Tomar a varinha da menina? Inventar uma historinha falsa para ele? Não sei o que aconteceu dentro de mim. Virei uma criança e arranquei-o de perto daquela menina que, para os meus olhos de criança, representava toda a maldade. Assumi verdadeiramente o sentimento do meu neto. Mesmo sabendo que ele vai precisar aprender a lidar com essas situações de frustração tão comuns nos grupos infantis, coloquei-o nos meus braços e enchi-o de presentes. Caixas de estalinhos, aquelas bombinhas que explodem quando as crianças as jogam no chão. Quando estalavam, Tom me olhava como se ele tivesse feito aquela mágica. Quando não estalavam eu pisava na bombinha com vigor. Não satisfeito, num gesto impulsivo, comprei uma espada enorme, maior do que

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ele, toda luminosa, daquelas que vendem nas pracinhas, com luzes coloridas que acendem e piscam enquanto tocam músicas. Mais do que uma espada, era um convite para matar a tristeza, aquela primeira decepção. Para ele não sei, mas para mim foi mágico. Viva São João!

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um dia com Tom

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manhã será um dia especial. Não marquei nada, nenhum cliente, desmarquei meu dentista, desisti de ir à cidade e vou acordar cedo. Tom vem passar o dia conosco. Há uns três dias me preparo para nisso. Minha coluna está melhor e mais forte. Estou mais forte em geral e com mais desejo. Luciana vai trazê-lo aqui quando for para o trabalho e a babá, sempre eficiente, vem nos ajudar. Só imagino acompanhá-lo em tudo aquilo que ele quiser fazer, segui-lo como um delicioso ditador que vai dar as ordens. Penso em passear no Jardim Botânico ou talvez no shopping quando adoro desfilar para que todos me vejam com meu neto. É impressionante como uma criança e, mais ainda, um neto, pode trazer um tom novo à nossa vida. Ficar à disposição dele pode deseducá-lo, mas para mim é

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um desafio e um encanto a mais na minha casa. Vai dar muito trabalho porque já me acomodei a realizar tarefas intelectuais e trabalhos cotidianos. Ficar à disposição dele pode parecer uma perda de tempo, mas é importante saber que perder tempo é um dos gestos mais amorosos. Preciso aprender de novo, aprender com as crianças, aprender com o Tom, aprender a ganhar tempo, perdendo-o. Acordei cedo, mas sabia que ele não iria chegar tão cedo. Nós mais velhos dormimos menos, não queremos perder mais tempo do pouco tempo que ainda temos. Tom chegou com a babá e tudo, mas eu queria sair com ele para o Jardim Botânico, mas só com ele e minha mulher. Saímos e percebi que eu estava dando bom dia para todo mundo, cumprimentando os porteiros e cantarolando dentro de mim. Patrícia e eu nos entreolhamos com um ar de cumplicidade. Tudo lembrava as vezes em que levávamos Lourenço no mesmo caminho, na mesma hora, sempre mais tarde do que deveríamos. O olhar de cumplicidade nascia do sentimento de que Tom agora era nosso e poderíamos fazer nossas desobediências. Observei dentro de mim uma espécie de felicidade daquelas que as crianças sentem quando fazem alguma coisa escondida. A mãe e o pai estabelecem normas – talvez a babá devesse nos acompanhar – e Tom deveria almoçar antes de sair, pois já eram onze horas. Desobedecemos e saímos. Tom estava livre. E nós também. Nos espaços abertos e livres, corria gritando e fazendo piruetas na pouca grama debaixo das mangueiras. Experimentava a areia e se deliciava em sujar-se, passar por baixo das raízes altas, passar por cima das raízes baixas. A brincadeira era sempre para interagir conosco ou posar para minha câmera. Procurava fazer uma fotografia que mostrasse a imensidão do jardim e a alegria do Tom. O imenso e o pequeno numa só imagem. Tom gostava da nossa cumplicidade nos espaços livres, mas não parava de falar mamãe e papai para tudo. Pulava e dizia “papai”, pulava e dizia “mamãe”, morrendo de rir para a gente. Quan-

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do viu a cachoeira apontou dizendo papai. Quero acreditar que era por causa da semelhança com as ondas do mar, do surfe, esporte preferido do Cláudio. No Laguinho das Tartarugas, a quem ele chamava de “tatá”, ficava apontando para as tartarugas adultas, a quem chamava de “papai” e de “mamãe”, e para as menores, que eram as tartarugas “Tom”. Fiquei admirando a alegria que sentia com suas descobertas, mas, ao mesmo tempo, sentia-me excluído. Descobri, nesse momento, que havia uma imensa tartaruga reinando sobre todas as outras e tive a brilhante ideia de chamá-la de tartaruga ‘vovô’. Gênio. Tom entendeu a minha necessidade e, quando eu lhe perguntava pela tartaruga vovô, ele apontava imediatamente para a maior das tartarugas. Teríamos que voltar para casa. Já havia se passado quase duas horas do seu horário de almoço. Não aceitava ir no carrinho e esperneava teimosamente para não entrar. Tentei levá-lo nos braços, mas minha coluna não aguentava tanto peso por muito tempo. Tentei mais uma vez, mas ele só queria meu colo. Mas chegou um momento em que tive que obrigá-lo a obedecer e sentar no carrinho. Quando fui firme ele sentou e fomos até nossa casa. Quando chegamos verifiquei que seu silêncio era sinal de que estava dormindo há muito tempo. Criança nos cansa, mas também se cansa. A fome acordou-o naturalmente. Vovó Tiça deu-lhe o almoço e o fez dormir. Fui dormir um pouco também. Confesso que estava cansado e não sabia bem de que e por quê. Queria dormir, apesar do meu propósito de ficar por conta de meu neto durante todo o dia. Tinha que fazer algumas coisas na minha coleção de fotografias antigas de família, fazer algumas burocracias de minha vida de adulto. Quando Tom acordou, a vovó me chamou para eu cuidar dele. Vi que eu estava dividido entre a minha promessa e a minha preguiça. Tom queria subir e descer as escadas de minha casa. Ufa! Ele só pode fazer certas coisas segurando a mão de um adulto. A solução mais prática foi ver televisão. Há ótimos ca-

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nais para crianças. Para ele, as historinhas são verdadeiramente encantadoras pela música e pelos movimentos rápidos. Fiquei preso nas formas sintéticas e nas cores vivas. Com muito poucos traços, a criança pode reconhecer um gato, uma galinha “cocó” ou uma fazendinha com animais. Um pequeno traço branco no lugar do bigode é suficiente para Tom gritar vovô. Nunca tinha visto esses programas infantis feitos atualmente. Para mim também as historinhas são cativantes. Assim ficamos por muito tempo, como duas crianças sem sentir o tempo passar, ele sentado ao meu lado ou reclinado sobre meu corpo. Meu prazer era muito grande ao senti-lo aconchegado debaixo do meu braço enquanto segurava minha mão ou beliscava suavemente meu dedo polegar. Depois deitou a cabeça na minha perna e eu acariciava seus cabelos louros com aquele tom dourado que só as crianças têm. Esse dourado bem que poderia esperar muito mais tempo para se tornar o castanho ou preto dos adolescentes. O banho foi dado pela babá na nossa banheira, antes do jantar. Parecia satisfeito com o macarrão com carne moída que eu tinha preparado. Inspirei-me nas lembranças que tinha de minha mãe. Nunca me esqueci das macarronadas enormes que ela fazia quando éramos pequenos, em Fortaleza. Muita carne moída e muito molho, quase uma sopa. Tom comeu garfadas enquanto a babá dizia: “Macarrão do vovô!”. Parecia já satisfeito quando lembrei-me de que eu tinha comprado na feira umas carambolas. Carambola foi desde o começo uma fruta mágica entre mim e ele. Fui eu quem lhe apresentou a carambola pela primeira vez, e Luciana sempre reservou esse prazer para nós dois. Nunca pude saber se Tom gosta de carambola porque gosta do vovô ou se gosta do vovô porque ele dá carambola. Tom já estava vestido e pronto. Almoçado e jantado. Mas o dia de desobediência ainda não estava completo. Minha vontade de chamá-lo para perto de mim me fez pegar a carambola na geladeira e comecei a mostrar de longe para ele. A babá repetia que

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ele não iria querer mais porque já tinha almoçado. Correu para mim, todo vestidinho de branco, para pegar a carambola, nossa fruta, enquanto a babá alertava que carambola deixava manchas. Mas eu estava inspirado naquela tartaruga vovô que reinava sobre todas as tartarugas menores. Dei a ele aquela suculenta carambola, doce, concluindo em voz alta, com ar de vencedor: “Carambola de avô não mancha! Haha!”.

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UM DIA COM TOM


o circo

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omos para a fazenda. Era o aniversário de Patrícia, a vovó Tiça, e a festa anual de Andrade Costa, onde temos o sítio. Convidamos Inês, minha coavó e coautora deste livro, que levaria o Benjamin, seu neto. Tom e Ben iriam ser apresentados pela primeira vez. Eu e Inês iríamos ter aquela conversa séria sobre nosso livro, mas nunca conseguimos, até agora, conversar de verdade sobre nossa obra. Havia um circo pousado pertinho de nossa fazenda. Existem alguns circos que perambulam pelo interior do Estado do Rio de Janeiro. Pertencem todos a uma única família, e há décadas percorrem as cidades do interior. São primos, irmanados pela mesma história mágica da sobrevivência financeira e cultural. Vivem dos poucos reais que recebem das pessoas simples das pequenas cidades, que se divertem com a simplicidade ingênua

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de suas apresentações. Palhaços, mágicos, malabaristas, trapezistas, tudo que oferece um circo das grandes cidades. Mas uma coisa só eles têm: a riqueza da simplicidade, a beleza terna da pobreza sem disfarce, a comunicação de pessoas simples com a comunidade de parceiros igualmente simples do interior. Essa é a magia e a mágica. Sempre gostei muito de circo. Os palhaços e os mágicos me trazem memórias guardadas de minha infância. Poucas vezes fui a um circo, mas como aconteceu com as festas de São João, multiplicaram-se dentro de minha memória e tenho a feliz ilusão de que fomos a todos os circos que apareciam no Ceará. As coisas boas são assim, têm seus poderes. Preciso acreditar, apesar de estar com meu neto muito menos do que gostaria, que esses pequenos momentos se multiplicarão dentro dele como as mágicas dos circos que vivi e que não vivi. Inesquecível a magia desse momento com tantas coisas lindas acontecendo no mesmo lugar: a fazenda, aniversário de minha mulher, a festa da cidade, minha filha, os cachorros, as galinhas, os espaços abertos do campo, os cavalos, meu neto e o circo. Tom tem um encantamento, quase um fascínio, pela dupla de palhaços Patati e Patatá. Qualquer figura de palhaço é o “Tatá” para ele. Mas sua convivência com os palhaços era restrita ao tablet e à televisão. Não sei quem estava mais excitado com a possibilidade de encontrar o ‘Tatá’ ao vivo. Nenhuma apresentação o empolgava mais do que o aparecimento do palhaço no picadeiro. Tom apontava e gritava “Tatí, Tatá”, e nada desviava o seu olhar daquele homem de bola vermelha no nariz e as calças caindo sobre os sapatos gigantes. Apesar da simplicidade do cenário e daquela velha lona rasgada, era igual a qualquer palhaço em qualquer cidade do mundo. Era o Tatá. Eu mantinha o Tom no meu colo e olhava para ele acompanhando seu fascínio. Não importava que as cenas fossem bobas, feitas para as crianças locais, o ‘Tatá’ era o herói. No intervalo fiz uma besteira, dessas bobeiras de avô. Le-

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vei o Tom para ver o Tatá ao vivo e ao natural, vendendo pipocas na entrada do circo. Era mostrar como a mágica era feita. Tom queria se aproximar dele, mas tinha medo e se agarrava comigo pedindo para ficar observando de longe. Medo, fascínio e um avô abobalhado. Mas como em todo grande circo, faltava o número final, o espetáculo maior. Depois do intervalo, a cortina se abriu deixando aparecer a sucata de um automóvel amarelo com a lanternagem totalmente destruída. Os palhaços combinavam fazer neste carro uma viagem para São Paulo. Acontece de tudo: o carro não pega, as portas caem, a tampa do motor levanta e, o mais emocionante, bombas explodem dentro do carro cada vez que o Patati ou o Patatá tentam ligar o carro. Era um susto e um aplauso com gargalhadas. Parecia um grande espetáculo da Universal Studio, da Disney, em Andrade Costa. Mas com uma grande vantagem: a pureza permitia a proximidade e a pobreza permitia a sensação de realidade. Não tinha efeitos especiais de cinema, só tinha a mágica da simplicidade que encanta as crianças e os avós. O encantamento era o ponto de encontro entre Tom e o avô. 90

No dia seguinte, como se não bastasse, resolvi completar minha felicidade realizando um sonho antigo. Já tinha tentando outras vezes, sem sucesso. Comprei um bodinho e uma cabritinha para o Tom: Ariane e Cauby. São lindos. Ele, o Cauby, seria para puxar uma charretinha que eu havia comprado para o Lourenço há mais de vinte anos. Naquele tempo, comprei uma charrete e um bode já adulto com imensos chifres e longas barbas brancas. Chama-se Capitão. A cabritinha Ariane serviria para gerar filhotes, leite, e para o Tom ter a experiência de ver o nascimento e o crescimento desses animais e, assim, acompanhar a evolução de uma família de cabritinhos para aumentar o seu encantamento com a natureza e, certamente, com o avô.

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v do vovô

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omo tudo na vida, uma história e nossas histórias sempre têm um fim. Precisava definir para mim quando pararia de escrever este livro, pois as descobertas do Tom, nossas experiências e minhas reflexões não têm fim. Encontrei um bom motivo e um marco. Vou parar de escrever quando o Tom me chamar de Vovô pela primeira vez. Já sentia que esse dia estava se aproximando. O carinho dele comigo estava ficando mais pessoal e direto. Tocar piano com o vovô já se tornara um evento especial e quase um ritual semanal. Levanta os braços pedindo para brincar de piano. No piano se vê o seu desenvolvimento motor e espacial. No início, batia no teclado com força; hoje Tom já toca cada tecla, uma a uma, separadamente. Gosto de brincar com ele de tocar a nota Dó em quatro

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oitavas diferentes. O primeiro Dó significa papai; uma oitava mais aguda vira mamãe e um Dó mais agudo ainda ficou sendo a nota do Tom, que corresponde ao tom de voz das crianças. E o Dó do vovô ficou sendo uma oitava mais grave do que o Dó do papai. Grave e grosso são, no entanto, os opostos das virtudes e sentimentos que eu procuro nesse momento desenvolver em mim. Quero garantir a delicadeza e a serenidade na crença de que tudo se resolve. Desde que Tom tinha uns oito meses, comecei a fazer uns filmezinhos do seu cotidiano. Há duas semanas, chamei-o para meu colo no computador e vimos vários desses filmezinhos. Tom se reconhecia e apontava com seu dedinho para maioria das pessoas, ensaiando dizer seus nomes. Vimos também fotografias que eu havia feito de nossa ida ao circo na fazenda, onde aparecem e reinam os palhaços, que sempre são variações mágicas do Papati e do Patatá, seus heróis. Já vimos essas fotografias talvez umas 20 vezes e ele sempre pede Papati e Patatá. Criei uma espécie de página na internet para colocar uma seleção de fotos para que Tom possa acessar quando quiser, de onde estiver. Assim ele não fica limitado a ver apenas os programas e filmes feitos nos Estados Unidos. Pode ser uma espécie de janelinha do Vovô Zé. Algumas atitudes de Tom me davam a sensação de que o dia de ser chamado de vovô se aproximava. A carambola doce que comemos juntos, o circo, as fotografias e os filmezinhos que vimos no computador, nosso banho no chuveirão do jardim de nossa casa, tudo me dava a certeza de que eu estava ocupando meu lugar definitivo. Só faltava o nome. Impressiona-me ver que Tom, com apenas um ano e dez meses, já reconhece quase todas as letras do alfabeto, principalmente aquelas que representam pessoas de seu universo afetivo. T de Tom, P de papai, M de mamãe, B de Bia, S de Sissi, a avó paterna. Lourenço veio me consolar explicando que o V era a consoante mais difícil para uma criança pronunciar. De fato, é preciso fazer

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o lábio vibrar junto com as cordas vocais, enquanto a criança sopra para produzir o som de F. Complexo mesmo. Experimentei em mim e me convenci. Pude então esperar mais pacientemente quando verifiquei que colocaram para o final do alfabeto as letras mais difíceis V, W, X, Y, Z. Imagine a dificuldade de dizer Vovô Zé, com V e Z... Tom fala “mamam” e “papá” desde os dez meses. São palavras quase sagradas ou quase mágicas que ele repete constantemente como para assegurar-se de que não está sozinho. ‘Papá’ e ‘mamam’ são como um mantra tibetano cuja repetição o conforta. É muito interessante pensar sobre os primeiros fonemas que iniciam a comunicação da criança. Em quase todas as culturas, “mamam” é a primeira palavra que a criança pronuncia. Não foi diferente com Tom. A segunda palavra foi papá. Pesquisei em mais de 30 línguas, mesmo nas mais antigas como o Sânscrito, e verifiquei que em todas elas as palavras para chamar a mãe sempre começam com M, que é um fonema que vem de mamar, do gesto de sugar, de botar para dentro. As palavras para chamar o pai, em todas essas línguas, começam com o fonema P, que é uma consoante explosiva e se pronuncia soprando o ar para fora. Mas até quando vou ficar esperado ouvir dele a palavra mágica ‘vovô’ para terminar meu livro? O dia chegou. Tom estava no meu colo diante do computador vendo fotografias que eu tinha feito na fazenda, fotografias dos bichos, do bodinho Cauby, da cabritinha Ariane e do circo Sansão. Luciana chegou e começou a brincar de adivinhar de quem era cada letra do teclado. M de mamãe, P de papai, S de Sissi. Aponta para o V e ele nada responde, mas minha filha insiste: “É a letra do vovô”. Tom ensaia um “fôfô” e logo corrige dizendo “vovô” perfeitamente. Fiquei muito emocionado. Logo depois, completou: “Vovô Zé”. Percebendo a minha emoção, começou a repetir ‘Vovô Zé’ várias vezes, apontando para mim e caindo em gargalhadas, certamente alegre ao perceber a sua vitória e a expressão de

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bobo que só avô tem... mais tarde, quando desci as escadas para levá-los até o carro para me despedir de Luciana, repetiu muitos “tchau, vovô Zé”, com um sorriso matreiro inesquecível. Lembrei-me do dia em que nos olhamos, olho no olho, numa espécie de reconhecimento mútuo quando ele tinha apenas três meses.

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o consultório e as profissões do vovô

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everia terminar aí o meu livro, como pensava, se não fosse o que aconteceu ontem, sábado. Era um dia daqueles em que a gente se sente vazio, a vontade é de ficar deitado e nada nos atrai. Patrícia sentia o mesmo e nem fome tínhamos apesar de já serem 14 horas. Lourenço me declarou que estava com a mesma sensação. Senti que não poderia deixar minha família assim, mergulhada nessa passividade vazia. Num esforço hercúleo, dei um pulo da cama e convidei o Lourenço para fazermos um churrasco e abrirmos umas cervejas. Foi um primeiro passo. Fui a um supermercado perto e comprei uma picanha para assar na churrasqueira improvisada no jardim. Lourenço animou-se. Tomamos banho no chuveirão que temos no meio das plantas do jardim. Foi bom, mas

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não o suficiente para nos sentirmos felizes. Aí o telefone tocou. Fábio nos comunicava que todos estavam vindo para nossa casa, sem que nada tivéssemos combinado. Com Luciana, Claudio, Tom, Fábio, Ana Paula, Lourenço, Patrícia e eu a família estaria completa. Rapidamente Patrícia foi ao supermercado e improvisou algumas sobremesas. Tudo mudou dentro de mim e dentro do Lourenço, que se transforma diante do Tom. Estávamos de repente tão felizes com o encontro da família completa e com a presença do Tom que, como sempre, era o centro das brincadeiras. Brincamos de piano com ele. Patrícia e Ana Paula fizeram batuques nos pandeiros e tambores, e Tom, apesar de cansado, matava a curiosidade experimentando os instrumentos de percussão que ficam junto do piano. Aos poucos, foi se aquietando e procurou meu colo. Luciana demorava a chegar do cabeleireiro e Tom, entre fome e sono, chamava “Mamam”. Tentei contornar e fazer passar o tempo enquanto a ‘mamam’ não chegava. Com sono, Tom fazia o gesto de todas as crianças, esfregando os olhos e deitando a cabeça sobre o meu peito. Mas desta vez foi diferente. Abraçava-me batendo nas minhas costas num gesto repetitivo, como os adultos abraçam. Tentei diversas vezes fazê-lo dormir, mas quando pensava que ele, exausto, estaria dormindo, repetia a palavra mágica “Mamam, Mamam” que o mantinha acordado e a cena toda mudava. Andei pela casa oferecendo de tudo e até comemos carambola, nossa fruta, que estava madurinha e doce. Desisti de tantas tentativas quando entendi que Tom não queria nem dormir nem ficar acordado; ele não queria outra coisa senão a ‘mamam’. Levei-o, depois, para o segundo andar e comecei a mostrar-lhe, numa estante, fotografias de meus filhos quando crianças. Reconheceu a mãe mesmo numa fotografia em que ela tinha apenas seis anos. Senti necessidade de mostrar todas as fotos como quem quisesse demonstrar a ele que o mundo era muito mais do que papai e mamãe. Tom estava bem atento e sério, fixando o olhar nas pesso-

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as, começando a entender algumas das relações da rede familiar. Mostrei uma foto minha com uns 40 anos ao lado de minha mãe. Tom virava e revirava a foto tentando absorver a lição de que o vovô era o pai da mamãe e eu também tinha uma mãe. Fiquei admirado com como ele estava atento àquela aula. Até poucas semanas atrás, Tom, algumas vezes, chamava-me de pai, por associação à maneira como Luciana me chama na presença dele. Havia, em casa, um cubo de fotos das crianças em férias em Cabo Frio. Luciana era uma risonha pré-adolescente de doze anos. Fábio, um lourinho lindo e inquieto de nove anos. Lourenço tinha exatamente a idade e a beleza do Tom, além de uma semelhança assustadora com ele. Quando perguntei quem eram, não teve dúvida, mostrando com seu dedinho: “Mamãe, tio Fábio e Tom”, tal a semelhança. Tinham a mesma idade, a mesma expressão e postura. Procurando entender, ficou muito tempo revirando aquele cubo de imagens onde o tempo se misturava. Todo o sono passou quando Luciana chegou. Correu com os braços abertos para os braços da mãe. Lembrei de quando viajei para os Estados Unidos com a Claudia, mãe da Luciana, que ficara com a avó materna. Tinha apenas três anos. Guardo muito arrependimento dessa separação provocada por uma viagem em que eu estava dando meus primeiros passos no meu sonho de me tornar, além de psicanalista, um cineasta. Lá comprei alguns equipamentos e fiz os primeiros contatos com a idealizada Califórnia cinematográfica. Quando chegamos, apresentava uma pequena gagueira. Sofri muito porque eu fui muito gago e me lembro como esse sintoma me torturou em toda a minha infância e adolescência. Como o Tom, de braços abertos, Luciana corria pelo pátio do aeroporto, nos dizendo aos gritos: “Tudo voltou, tudo voltou!”. Em poucos dias a gagueira desapareceu. O sono passou e o lanche familiar matou a fome de todos. Parece que aquela noite tinha que acontecer, uma noite de encontro espontâneo de toda a minha família. E o sono chegou, e o sono

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saiu, com tanto movimento em casa. Tom estava meio inquieto. Patrícia levou-o para frente de nossa casa e sentamos no banco de madeira do pequeno jardim que temos em frente à entrada de meu consultório. Há uns doze anos passei a trabalhar em casa. Foi uma grande mudança na minha vida profissional e pessoal. Meu consultório virou também meu cantinho onde tenho meu computador e lá me escondo trabalhando nas minhas fotografias, lendo os meus sonhos e escrevendo meus livros, como este. Tom começou a apontar com seu dedinho mágico para a porta, indagando para onde aquela porta levaria. Minha mulher começou a explicar: “É o trabalho do vovô, é o consultório dele. Papai e mamãe não trabalham? Pois aqui é o trabalho do vovô Zé”. Como quem não queria perder a força daquele instante mágico, pedi para minha mulher esperar um pouquinho com ele do lado de fora e fui correndo dar a volta para abrir meu consultório para meu mais novo convidado. Acendi as luzes e abri a porta por dentro para receber um personagem importante. Apesar de já conhecer a sala, Tom nunca tinha passado por aquela porta, por onde entram os clientes. Adentrou com ar solene e logo apontou para uma fotografia na sala de espera. Uma mãe indiana com uma criança quase idade dele. É uma das melhores fotos que já fiz. Foi feita num momento bastante mágico, quando realizava na Bengala Oriental meu filme Mulaqat. Nesta foto gosto do olhar cuidadoso da mãe para o filho e do olhar curioso do filho para o mundo. O triângulo mágico. Luciana entrou na sala e éramos quatro nessa cerimônia: Tom, Luciana, Patricia e eu. Tom parecia muito interessado em acompanhar a continuação dessa aula sobre nossa família, sobre as origens e sobre o ciclo da vida. Começamos a apresentar a ele as coisas do consultório: a minha poltrona, o sofá, minha mesa com o computador e, em seguida, mostramos as pequenas fotografias das crianças que guardo coladas em meu quadro imantado. Luciana com meses ainda de idade, depois com dois anos e outra com seis anos. Várias do

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Fábio e do Lourenço, todos bem pequenos. No canto do quadro, está um cartão que Lourenço me deu num dia dos pais: ‘Pai, eu fico aqui te admirando e treinando para ser como você. Parabéns.’ Fui ficando silenciosamente enternecido com a descoberta de que o ciclo da vida se renova em períodos de trinta anos. Fiquei tomado por um sentimento de muito orgulho, pois estávamos no consultório onde sempre trabalhei muito e tive muitos clientes e por muito tempo. Com meu trabalho dei conta da educação e do desenvolvimento de minha família. Em endereços diferentes, trabalho há mais de quarenta anos atendendo clientes de quase todas as idades, pessoas que têm em comum a vontade de partilhar comigo a dor e a esperança. Com maior maturidade pessoal e profissional, sou cada vez mais procurado, à medida que atendo com mais simplicidade, criatividade e prazer. Muitas vezes, quis, por imaturidade ou vaidade, sofisticar a relação com meus pacientes. Sempre que cedi ao narcisismo de minha posição como analista, dando brilho artificial à minha compreensão e às minhas palavras, fiz um mau trabalho, mesmo que me sentisse, nesses momentos, mais brilhante em minhas descobertas. Senti várias vezes que assim traía quem me procurava, tentando me esconder atrás de ser psicanalista, que até sou. Mas sempre fui mais útil, mais verdadeiro e mais feliz quando fui simples e consegui ser simplesmente eu. Que me perdoem muitos psicanalistas, mas foi a maneira mais honesta e criativa que encontrei de ser feliz à minha maneira e de ajudar as pessoas a serem felizes, cada uma à sua maneira. Tenho a sensação de que a vida me foi generosa, dando-me as mulheres que tive e a que tenho, dando-me os filhos que adoro e um neto tão querido. Não foi apenas do consultório que vivi e tirei meu sustento. Explorando minha curiosidade pelo mundo e minha vontade de testar ao limite minhas aptidões, curti a diversidade de meus interesses. O silêncio da intimidade do consultório, fonte de prazer e de inspiração, nunca me foi suficiente como realização pessoal. Por isso, sempre busquei reali-

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zações paralelas que se tornaram quase profissões. Onde muitos terapeutas temem a dispersão e a diversidade, foi aí que investi. Não quis realizar meus sonhos através de ver realizados os sonhos de meus clientes. O trabalho de psicanalista não é minha única janela para a vida e não pode esgotar a minha ânsia de viver minha aventura no mundo. Uma camiseta branca e uma calça jeans foram vestimentas que me acompanharam em minhas aventuras e descobertas na fotografia, no cinema e na contemplação das diversidades culturais. Ficou tarde e dei-me conta de que estava embevecido com este mergulho na minha história. Fui para a sala, que estava com jeito de fim de festa, cheia de brinquedos espalhados pelo chão, com cara de feliz bagunça. Luciana, como boa mãe e educadora, chamava o Tom para recolher os brinquedos. Ele começou a pegá-los, um por um, e a colocá-los no balde amarelo, enquanto Luciana cantava: “Tá na hora de guardar, de guardar/ cada coisa em seu lugar, seu lugar...”.

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nossas doenças

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ascer avô veio, para mim, num momento de muitas perdas, de doença e morte de pessoas muito próximas e queridas. Nascer avô com setenta anos não é fácil. Perdi um irmão querido, dois meses antes de Tom nascer. Moramos juntos quando fazíamos faculdade. Admirava-o muito como cientista e como um homem apaixonado e afetuoso. Morreu de uma cirurgia de emergência no intestino decorrente de uma diverticulite. Desapareceu antes que eu pudesse me despedir de nossas conversas intermináveis em minha casa, quando vinha por algum trabalho aqui no Rio. Sentia também o seu carinho comigo e sua admiração quando via como ele guardava as ideias que partilhávamos nas madrugadas, entre goles de vinho ou cachaça. Sofri muito. Parece que, com a morte

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de meu irmão, comecei a perceber mais minha fragilidade física e emocional, minha vulnerabilidade a doenças e meu medo da morte. A cada momento recebemos notícias de doenças e até da morte de nossos irmãos, de nossos amigos e de pessoas famosas. Como psicanalista, acompanhamos o envelhecimento e a doença física e emocional de nossos clientes irmanando-nos com o sofrimento de suas famílias. É compreensível que os avós desenvolvam medos exagerados das doenças que levaram nossos queridos, pois sabemos que, um dia, alguma dessas doenças levará nossos sonhos. Desenvolvemos sensores especiais e os espalhamos por todo nosso corpo, como câmeras de vigilância que instalamos em nossas casas para nos alertar de possíveis invasores, que são muitos. Esses mesmos sensores, tão necessários para nos orientar nos cuidados e no controle dos riscos, invadem-nos de fantasmas e nos paralisam com medos e posturas autoprotetoras desnecessárias e até adoecedoras. Tornamo-nos medrosos e o medo provoca também doenças físicas e emocionais e, assim, entramos num círculo vicioso que acaba nos paralisando. Verifiquei que eu estava tomando certas posturas de pessoas mais velhas. Apoiava-me ao descer escadas e estava evitando certos desafios, estava cedendo a dores, muitas vezes mais imaginárias do que reais. Minhas dores de coluna eram resultado de uma má postura física e principalmente psicológica. A doença é uma perturbação de nossa posição no mundo físico e social. Hoje, nascido avô, depois de passar por momentos difíceis e profundas descobertas, tendo meu caderninho preto como companheiro, estou me sentido bastante bem, mais alegre e forte. Fiz todos os meus exames de saúde, cujos resultados me deram a quase segurança de poder contar com meu corpo por muito mais tempo. Voltei a frequentar a academia com mais regularidade e a enfrentar exercícios mais exigentes. Aumentei o esforço e o tempo dos exercícios de musculação e os exercícios aeróbicos

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na bicicleta. Descobri que o envelhecimento e a doença existem, em grande parte, na medida em que interpretamos nossas fragilidades naturais da idade como inevitáveis perdas contra as quais nada podemos fazer. Não podemos evitar a morte, mas podemos adiá-la ao limite de nossas forças. Se nos protegemos demasiadamente da doença, adoecemos, pois não desenvolvemos segurança e anticorpos. A saúde é resultado de um espaço conquistado frente à doença. Não podemos morrer do medo de morrer. Retomei certos sonhos mais exigentes, como o de meu próximo livro, Praias do Sol, para o qual vou fazer, daqui a um mês, viagens de helicóptero e de jipe fotografando praias e pequenas vilas do litoral do Nordeste, desde Natal até os lençóis maranhenses (!). Sinto que estou mais velho, mas prefiro me ver como mais maduro e dizer que a fruta madura é fofa e mais doce. Mas não podemos negar que a sensação de imortalidade decorre da beleza de nossas obras e do fato de termos filhos e netos.

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enho que parar de escrever para que seja possível publicar este livro. É difícil parar porque continuo fazendo reflexões e descobertas na minha relação com o Tom, importantes para mim e para os meus leitores. Ontem era um sábado que prometia chuva, mas amanheceu com um céu azul de primavera. Resolvi fazer um churrasco e chamei Ana Paula e Fabio. Sentia muita saudade deles e sei que eles adoram estar conosco. Preparei tudo com a maior disposição. Subi e desci mais de vinte vezes a escada que leva ao jardim onde acendi a churrasqueira nova. Sentia-me jovem e disposto festejando os bons resultados de meus exames médicos. Bebemos cachaça e cerveja enquanto preparávamos o assado de pernil de cordeiro, costela de porco, linguiças e contrafilé bovino. Um enorme tuca-

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no pousou na árvore do jardim como se estivesse buscando pouso seguro naquele fim de tarde. Fábio colocou uma seleção de músicas e Lourenço foi comprar mais cerveja. Já eram quase 18h quando chegaram Luciana e Tom. Desci mais uma vez para pegá-los lá embaixo. Ao me ver, Tom levantou os braços e, para minha surpresa, começou logo a chamar a Vovó Tiça. Subi as escadas com ele no colo, enquanto ele chamava em voz alta: “Vovóoo, Vovóoo!”. Fiquei feliz por ver que ele estava assumindo Patrícia como avó e como uma pessoa indispensável em sua vida. Depois que aprendeu a falar “vovô Zé”, ficou fácil falar “vovó” e o nome de todos de nossa casa. De longe, Tom apontava para Lourenço e dizia em voz alta: “Tio Lou”, morrendo de rir. Com o mesmo riso, apontava para o Fábio, dizendo: “Abio, Abio”. Parecia que ele estava festejando já poder falar, à sua maneira, todas as palavras. Tom demonstra ser uma criança muito adequada e feliz, sem ser dependente nem teimosa. Feliz é seu melhor adjetivo. Lourenço e Fábio pegam Tom de tudo o que é jeito, fazendo cosquinhas e malabarismos. Rodopiam e dão gargalhadas com muita euforia. É lindo vê-los assim. Mesmo que me sinta forte o suficiente para subir e descer todas as escadas, e sinta ter resistência para preparar toda a comida e cuidar de tudo, não é fácil para nós, os avós, ter a mesma energia e agilidade para brincadeiras acrobáticas como essas. É natural que uma criança com tanta energia, como todas as crianças dessa idade, queira estar com quem tem a mesma energia e essa capacidade de brincar. Pensava, resignado, o que poderia um avô oferecer a um netinho de dois anos que o atraia igualmente. Que colo quentinho pode um avô oferecer sem tornar-se meloso ou possessivo? E, mais ainda, o que é mesmo o amor e o papel de um avô em meio a tantas pessoas, tantas estimulações e tecnologias atraentes? Tom começou a dançar dando voltas e piruetas de braços abertos no meio da roda, no ritmo da música, ao lado da churrasqueira. Cada um foi se animando para participar da dança con-

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tagiante. Apesar de constrangido e tímido, eu não queria ficar sentado apenas observando de longe a minha família dançar. Foi quando Tom puxou-me pela mão e, continuando a dançar, me convidou para o meio da roda dizendo: “Dança Vovô, dança...”. Com a mãozinha dele na minha mão, participei da roda, da roda da vida. Estava me sentido saudável e meu coração batia forte e feliz com a casa cheia, um dia com tantas atividades e a família reunida. Estava me sentindo vitorioso no meio dos fantasmas e preocupações que acompanharam meu nascimento como avô. Estava cansado, mas com aquele cansaço de quem fez naquele dia muita coisa intensa e feliz. Foi ficando tarde. Era precisava terminar o dia e Tom precisava ir para casa. Como sempre, levei-os até o carro da Luciana para me despedir. Mas quando tentamos colocá-lo na sua cadeirinha no banco traseiro do carro, Tom começou a chorar e se agarrou comigo fazendo aquele beicinho de choro que comove todos os avôs. Apontava para minha casa e se grudava nos meus braços. Para que soubesse que eu o havia entendido, disse para ele: “Tom quer ficar na casa do vovô Zé...”. Tom confirmava com a cabecinha. Tentamos convencê-lo que já era tarde, que era preciso ir para a casa do papai e da mamãe e que ele voltaria outro dia. Passei-o para os braços de minha filha, que o posicionou na cadeirinha. Parou de chorar e caiu no sono. Meu coração ficou realizado e partido por vários dias.

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mundo virtual

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om está com um ano e meio e totalmente fascinado, dominando o mundo virtual com total naturalidade. Seu dedinho passou a ser uma varinha mágica. Tocando e deslizando-a sobre uma telinha faz o mundo acontecer sob seu comando, com a lógica que ele já absorveu. Sabe fazer funcionar os principais aparelhos e com seu dedo abre quase todos os jogos interativos. Escolhe filmes no Youtube e se delicia com as cenas dos palhaços Patati e Patatá. Como certamente quase todas as crianças de sua geração, sabe ver fotografias e deslizar o dedinho na tela para ampliá-las ou passar para as próximas imagens. Para participar desse mundo que nos aguarda e surpreenderá, criei uma forma de me comunicar com ele através da Internet. Queria enviar-lhe fotografias das coisas que fazemos juntos,

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da fazenda, dos animais, de nossa família. Criei uma espécie de janelinha do vovô para onde envio essas imagens. Estou certo de que, muito em breve, receberei dele imagens feitas por ele, muito antes de se alfabetizar. Estávamos na fazenda e quis apresentar meu cavalo para meu neto. Coloquei-o na sela e lhe mostrei as rédeas, que não lhe interessaram. Ao contrário, começou a apertar com seu dedinho mágico, sobre o topo da sela, como faz com o seu iPad, para que o Diamante começasse a andar. Crianças tentam navegar nas imagens das revistas, deslizando o dedo sobre as páginas. Nascidas no mundo digital, crianças hoje procuram no mundo concreto o correspondente digital. Nós, os adultos que nascemos em outro mundo e em outra lógica, fazemos o caminho inverso: procuramos no mundo virtual o correspondente às nossas experiências no mundo concreto. Daqui a muito pouco, Tom vai descobrir o que só aconteceu comigo aos quase 70 anos. Tom vai descobrir que poderá ter o mundo inteiro na palma de sua mão, mesmo ainda pequenininha. 108

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verdade, um compromiso

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esta vez fomos todos e fiquei feliz por ver que nossa família tem aproveitado mais a fazenda como ocasião de estarmos juntos, curtindo uns aos outros com alegria. Tenho observado que nossa família não parece nutrir-se com ressentimentos e isso dá uma leveza especial aos nossos encontros. Que assim permaneça para sempre. Fiquei planejando fazer um passeio a cavalo com meu Diamante, o que há muito não faço. Seria uma vitória voltar a montar e não ficar preocupado com minha coluna. Pensei em dar passeios com o Tom, usando o carrinho puxado pelo Cauby, nosso bodinho branco que dei para ele há uns quatro meses. Convidamos a Sofia, prima da mesma idade. Mas nem tudo acontece como desejamos. Passei pela avenida do Guarany e vi que os cabritinhos,

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Cauby e Ariane, estavam muito agitados correndo em círculo presos pela corda que os mantinha no pasto. Duas horas depois, quando pedimos para pegar o Cauby no pasto para o passeio, soube tristemente que o cabritinho branco havia morrido naquela hora, mordido por uma cobra muito venenosa. Cauby tinha chifres grandes e afiados e enormes testículos, testemunhando que já estava pronto para cruzar com Ariane e dar filhotes, para alegria do Tom e de todos. Ficamos todos consternados e paralisados, além de preocupados em como contar para o Tom sobre o que acontecera com seu cabritinho. Acho que seria a primeira vez que ele teria contato com a morte. Impossível para mim. Não saberia como explicar e não vejo como ele poderia entender a morte, e uma morte tão gratuita e repentina. Tenho como princípio nunca mentir e não queria que ele se sentisse enganado, mesmo com a melhor intenção de poupá-lo da dor. Fiquei horas sem saber o que fazer, com meu coração apertado e uma vontade danada de chorar. Lembrei-me da festa de São João e da sua carinha de choro quando aquela menina tomou dele a varinha de pescar, que marcou seu primeiro contato com a propriedade privada. Tive o mesmo impulso. Fiz o que o meu coração pediu. No dia seguinte acordei muito cedo e fui a Werneck, cidadezinha a poucos quilômetros da fazenda. Buscava a velhinha que me vendera o Cauby porque eu queria um cabritinho branco e da mesma raça, igual ao Cauby. A velhinha, de nome dona Geralda, não tinha nenhum substituto, mas me indicou outros sítios ali por perto. Saí à procura e encontrei um cabrito branquinho da mesma raça ainda novinho, mas terá a idade do Cauby quando chegar o Natal. Foi a única saída que encontrei. (dois meses depois...) Estava chegando o Natal e já era hora de ir buscar o novo cabritinho branco e com um par de chifrinhos, para substituir o Cauby. Paguei ao camponês que, se despedindo do seu animalzinho, trouxe-o no colo e colocou-o no bagageiro do meu carro.

JOSÉ INACIO PARENTE


Com aquele rosto de verdade dos camponeses, me perguntou: “O senhor sabe o nome dele?”. Meio constrangido, respondi: “Vai se chamar Cauby”. “Não. O nome dele é Diamante”, afirmou. Tomei um susto e concordei com a firmeza do ex-dono que ainda tinha autoridade sobre o seu animalzinho. Diamante também era o nome do meu cavalo. Cauby, na verdade, seria uma mentira que um dia Tom iria descobrir. Sempre me orgulhei de sempre ter dito a verdade para meus filhos. Sempre. O nome dele será Diamante! Saímos com aquela culpa de quem separa da mãe o filho ainda pequeno. Durante todo o trajeto até a fazenda, o cabritinho berrava muito, aquele tipo de berro que parecia lamento e angústia. Ao chegarmos, vi que os animais são tão humanos como nós humanos temos sentimentos tão parecidos com os dos animais. Quando abri a porta do carro para nosso Diamante sair, a cabrinha Ariane, que havia perdido seu irmão e futuro pai dos seus filhos, reconheceu o lamento e a angústia do Diamante e começou a berrar também, chamando-o. Levei-o logo até ela, que estava no curral dos cavalos. Reconheceram-se como da mesma espécie imediatamente, pois pararam de berrar e começaram a se lamber. Depois, já começaram a brincar da mesma brincadeira que o Tom tinha com a mãe e com a gente; bater a testa com a nossa testa. Ariane e Diamante com muita alegria ficaram dando chifradas um no outro. É a mesma alegria que o Tom expressa quando corre para os braços de sua mãe ao vê-la chegando do trabalho. Daqui a aproximadamente seis meses, Diamante já poderá dar filhos à Ariane, que vai dar leite para eu fazer uns queijos de cabra. Foi bom assumir a verdade de que Cauby morreu e que o Diamante irá puxar a charretinha de bode que dei ao Lourenço e depois ao Tom. Diamante será o novo pai dos cabritinhos que virão.

VERDADE, UM COMPROMISSO

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a descoberta

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T

om passou quase todo o dia comigo nesta sexta-feira. Organizei meus horários no consultório e atendi poucas pessoas pela manhã para ficar à disposição de meu neto. Brincamos muito, mas desta vez de uma maneira diferente. Parecia que ele havia decidido usar um brinquedo novo, o nosso corpo. Agarrava minhas pernas e escorregava por elas dando imensas gargalhadas. Aninhava-se no meu peito puxando minha barba. Colocando-o sobre minhas pernas, eu brincava com seus dedinhos dos pés e das mãos recitando a antiga modinha: “Dedo mindinho, seu vizinho, maior de todos, fura-bolo, cata piolho. Cadê o bolinho que estava aqui? O gato comeu! Foi por aqui, por aqui...” e fazia cosquinhas debaixo do braço e na barriga dele. Repetimos isso muitas vezes entre gostosas risadas.

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Preparei nosso almoço. Ovos mexidos com um pouco de carne moída e arroz. De sobremesa, comemos duas carambolas, nossa fruta. Depois de muita insistência de minha parte, dormimos juntos no sofá, só por alguns minutos. Na verdade, eu não estava muito convencido de que era preciso dormir depois do almoço como na sua casa. Estávamos só nós dois em casa e poderíamos fazer o que desse em nossa telha. Resolvi passear com ele em nossa rua e fomos, pela primeira vez, até o quartel dos Bombeiros que fica perto de nossa casa. Os Bombeiros reconhecem o fascínio que exercem sobre as crianças e batem continência para elas. Mesmo sem entender o gesto, adentrou pelo quartel e foi direto para os caminhões gigantes, vermelhos, cheios de mangueiras e canhões de água. Parecia que assistia à mágica de ver transformar-se em tamanho natural aquilo que só existia para ele nas miniaturas de seus carrinhos. Subimos e descemos várias vezes pelos degraus prateados. Entendeu que não podíamos fazer muito barulho para não chamar a atenção dos bombeiros, que poderiam proibir nossas estripulias e desobediências. Vivemos momentos únicos de doce cumplicidade. Tom me olhava com um sorriso tímido e sem vergonha, e falava baixinho. Voltamos lá mais uma vez. Não sei se queríamos ver de novo os caminhões gigantes ou se buscávamos reviver esse momento de inesquecível cumplicidade que estávamos experimentando pela primeira vez. Ah, quanto prazer sentiu minha alma! Na volta para casa fomos identificando, pelo caminho, os carros estacionados na rua, mas Tom estava mesmo era buscando o fusquinha azul do Tio Lolô. Meus deveres de senhor responsável torciam para que minha filha chegasse logo para levá-lo. Temos tantos deveres e fugimos dos prazeres. Por outro lado, meu prazer de virar criança e com ele brincar de descobrir o mundo torcia para que Luciana ficasse envolvida no trabalho e deixasse Tom dormir comigo naquela noite. Dei mamadeira fora do horário e fiquei seguindo as brincadeiras que ele ia inventando. Soprava a flauta

A DESCOBERTA

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e tocava pandeiro enquanto eu dedilhava notas soltas no piano. Tudo parecia igual a todas as outras vezes, mas trazia, como sempre, algo diferente e com um tempero de novidade. São esses os pequenos passos do surpreendente crescimento de todas as crianças. Como é relaxante ficar inteiramente à disposição de uma criança que, por sua vez, está inteiramente entregue ao prazer e à curiosidade pelo mundo. Continuávamos, só nós dois, em casa neste começo de noite de sexta-feira. Tom não estava agitado, mas não parava de procurar coisas. Foi então que pegou dois castiçais coloridos que temos na mesa de centro da sala e, olhando nos meus olhos, me entregou um deles dizendo: “Vovô”. Como num ritual, apertou o outro sobre seu peito dizendo: “Tom”, e começou a rir suavemente. Em seguida, pegou o castiçal de minhas mãos, colocou os dois juntinhos sobre a mesa de centro e, apontando para eles, pronunciou: “Dois”. Entendi, Tom. Vovô entendeu que agora você já é uma pessoinha e você entendeu que o vovô Zé é também uma pessoa. Somos dois, separados e unidos para sempre. O que você não sabe, ainda, é que o vovô Zé e o Tom vão ter destinos diferentes. A vida já me deu tanto e ainda me dará muito, mas tenho 71 anos. Você ainda tem dois anos e terá, certamente, mais de 100 anos de vida, experiências e descobertas. Um dia você vai ter filhos, como o vovô teve, e terá também um netinho que dará a você a mesma felicidade que você me deu.

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nasce mais um neto

O

tempo anda mais rápido do que a gente. Demoramos muito para perceber que o livro estava maduro e pronto. Alguma coisa nos prendia e aí se passaram vários meses, tempo suficiente para que minha filha desse para o mundo mais um filho, e para mim, mais um neto. Durante a gravidez, todos se perguntavam se haveria lugar para mais uma criança, mais um Tom na minha vida, mais uma vida na vida de todos nós. Mas a vida é o único milagre que merece esse nome. Eric, que significa príncipe, nasceu lindo e sorrindo querendo o seu lugar. Quando abriu os olhos parecia que já conhecia o milagre. Mirava nos meus olhos placidamente como se já conhecesse o mundo. Seu sorriso forte e aberto é sua marca e um constante convite.

NASCE MAIS UM NETO

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Tom sempre foi para comprido e fino. Eric nasceu gordinho, e é todo para redondo. Tom, nesse momento, tem muita facilidade social, autonomia, auto estima e gosto pela música. Desde pequeno brincava de tocar num piano que temos em nossa casa. Tocava as teclas graves e atribuía à voz grossa do Vovô, as notas menos graves pertenciam ao Papai, as agudas eram da Mamãe e as bem finas eram dele. Tomávamos café num domingo de manhã no Espaço Tom Jobim que fica no Jardim Botânico, perto de nossa casa. Lá estão expostas partituras, fotografias e um antigo piano que pertencia ao compositor. De repente, nos demos conta de que Tom havia sumido. Em pânico, saímos todos correndo à sua procura. Para surpresa de todos e dos visitantes, encontro meu neto, sem menor censura, “tocando” no piano do Mestre. Não me contive e fiz algumas fotos dessa sonora desobediência. Tirei-o de lá, mas no caminho uma garçonete do café, lhe perguntou sorrindo: Você é o Tom Jobim? E ele respondeu imediatamente: Não. Eu sou o Tom Parente! 116

Resolvi matar as saudades e ir de noite à casa de minha filha desfrutar da delícia de ser avô, personagem único numa casa cheia de brinquedos espalhados pela casa e com aquela bagunça natural e necessária de uma casa com duas crianças pequenas, ativas e inteligentes. Ficar inteiramente à disposição de dois netos que sobem pelas nossas pernas ou nos puxam para sentar no chão para brincar com tantos brinquedinhos coloridos enquanto o outro nos implora para ver desenhos na televisão – eis o grande desafio. Nós três já estávamos exaustos e fomos para o quarto que os dois dividem entre almofadas e brinquedos pelo chão. Resolvi fazer Tom dormir com uma mamadeira quentinha e um monte de historinhas inventadas saindo do forno. Tom gosta de pedir histórias que são verdadeiros desafios à nossa criatividade. – Vovô,

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inventa uma história que tenha tubarão, girafa e lobo mau... Comecei a lhe dar a mamadeira que já estava esquecida de tantas histórias mirabolantes. Queria também ajudá-lo a compartilhar o mundo e as pessoas com seu irmãozinho: – Tom, seu irmãozinho já está dormindo. Você está ficando grande, já conhece quase tudo e já sabe até conversar com o Vovô. O Eric está pequeninho e não conhece quase nada ainda. Ele não sabe nem o que é vovô. Tom me surpreendeu: -Vovô, ele ainda não sabe nem o que é Ipad... Apesar de Tom e Eric parecerem crianças tão diferentes, o convívio íntimo e cotidiano, como duas plantas nascidas no mesmo vazo, vai torná-los mais semelhantes e ao mesmo tempo, bem diferentes. As flores e os frutos deles nascidos, vão mostrar, com o tempo, essas diferenças e semelhanças. Como eu gostaria de estar aqui para ver as flores e os frutos!

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NASCE MAIS UM NETO


praias, sol e sonhos

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A

fastei-me de meu livro não sabendo muito por quê. Só retornei um ano depois. Tantas coisas aconteceram desde o transplante de rim a que minha mulher se submeteu com todas as complicações e internações. Vi de muito perto o heroísmo admirável dessa avó que se segurava na vontade de viver e de ver os netos crescerem e de continuar alimentando nossa família com o prazer da intimidade que sempre tivemos. Fiquei inteiramente preso ao desenrolar de uma luta contra uma doença cheia de dúvidas e incertezas, esperanças e pesadelos. Hoje Patrícia é uma vencedora de heróicas e sofridas batalhas e todos nos sentimos mais maduros e felizes. Quatro anos de intensas vivências ao me tornar avô e de reflexões sobre o envelhecimento, a morte e a paixão pela vida, eleva-

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ram meu espírito a lugares mais altos de onde pude enxergar panoramas mais belos e esperanças mais sólidas. Foi aí que comecei a fazer um livro de fotografias a que chamei de Praias do Sol. Um livro que exigiu muita coragem e firmeza para enfrentar riscos de uma verdadeira expedição que incluiu fotografar de helicóptero quatro mil quilômetros do litoral do Nordeste e, por terra, quase dois mil quilômetros de praias. Não teria tido essa disposição nem mesmo o sonho dessa arriscada aventura, se não tivesse passado por tudo o que vivi nesses tempos. Escolhi como assistente para as viagens de helicóptero, meu genro, Claudio Leal, pai de meus dois netos. Fez boa cobertura da viagem e é quem faz agora a diagramação deste novo livro. Escolhi meu filho Fábio e minha nora Ana Paula como parceiros para a segunda parte da expedição. Juntos, fizemos longas viagens de carro, bugres e canoas nessa corajosa expedição. Não sabíamos ainda, perdidos viajantes entre praias e dunas, que seríamos parceiros de uma mais linda aventura que trazíamos escondida em nosso coração, tão fascinante que ficou, na época, silenciosa, indizível e por isso dela nada falamos.

PRAIAS, SOL E SONHOS

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Isabela, nasce uma netinha

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ançado o livro das praias, não haveria momento mais oportuno para retornar ao antigo sonho, o livro dos avós. Motivo mais forte também não haveria do que a surpreendente notícia, tão sonora e transformadora, do nascimento de uma princesa. Com dois netos e uma netinha, o livro, como eu, agora ficaria completo... até que eu tenha a felicidade de ganhar outros netos. A maneira como Fabio nos deu a notícia emocionou toda a família que numa noite estava reunida em nossa casa. - Lembra, pai, quando eu era pequeno, me perguntaram o que eu queria ser quando fosse grande e eu respondia que queria ser pai. Pois, então, Ana Paula está grávida... Foi o momento de nos abraçar e chorar juntos ao ver que o

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sonho do Fabio e de toda a família ia se realizar. Lourenço se abraçava com o irmão e os dois soluçavam num abraço como eu nunca vira. Meu coração parecia receber um surpreendente clarão. Uma nova etapa de minha vida estava para acontecer. Quando Isabela começou a abrir os olhos para a luz e o mundo começarem a entrar, todos diziam e repetiam dela a mesma coisa: ela é linda, ela é linda. Minha neta é uma menina delicada e forte, fina e decidida, curiosa e com cara de quem vai brigar pelo o que quer. Clara, quase ruiva, traz no cinza e azul dos olhos as cores dos olhos dos pais. Admiro como meu filho tem jeito para pegar sua filha, com braço e pulso firmes. Muitas vezes tentei, sem sucesso, aconchegá-la nos meus braços. Fabio tentou me ensinar a colocá-la no colo. Eu, que por tantos anos peguei meu filho nos meus braços, pareço ter esquecido. Oportuno esquecimento que permitiu um espaço para eu contemplar meu filho cuidando de sua filhinha. É bom saber que esquecemos o que um dia soubemos tanto. Assim aprendemos a ceder o lugar de pai e de mãe para quem realmente o é. Agora é a vez deles. Nossos filhos, pais de agora, precisam nos ensinar para descobrirem o que sabem.

ISABELA, NASCE UMA NETINHA

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Eric faz dois anos

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tempo anda mais rápido do que a gente. Tenho certa pena de não ter escrito sobre ele tanto quanto gostaria.. Foram tantas coisas que ocuparam meu tempo, os pensamentos e os afetos e tiraram meu foco, apesar de minha ligação com o Eric ter sito sempre intensa, tão intensa como tudo dele, a ternura, o choro e a paixão. Eric foi sempre forte e determinado, talvez por ter tido que criar seu lugar na família, onde o irmão já ocupava os espaços e os corações. Com ternura, choro e paixão, ele mostra sua vocação de ser verdadeiro. Era uma manhã de domingo com chuva fina quando eu resolvi fazer minha netoterapia para relaxar minhas tensões e matar minha saudade. Com essa chuva que não parava de duvidar se virava chuva

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ou garoa, nem pudemos ir à feira ver as frutas, as flores e comer pastel com caldo de cana. Quando cheguei, Tom já estava me esperando e me acenava desde a varanda. Quando Eric percebeu que eu entrara em casa veio correndo com a fraudinha larga e os braços abertos, gritando como num canto pelo e amoroso: Vovô, Vovô. Naquela hora não pude sentir tanta emoção como agora que escrevo. Escrever é como ressentir bem dentro da gente aquilo que parece ter acontecido fora. Escrever é como olhar com uma lupa, aquilo que se viu sem pensar. Eric foi se afirmando uma criança diferente. Doce e atrevido, parece não ter medo de nada mesmo quando pula de cabeça do sofá sobre as almofadas ou se solta com velocidade em cima de uma prancha de skate. Quando se machuca, chora e repete, depois repete e chora, mas não acusa ninguém. Rapidamente muda de humor e sai correndo com o mesmo sorriso do início da brincadeira. Chama o irmão de Titom ou Tomtom com tanta ternura e orgulho mesmo depois de uma briga em que os dois rolaram pelo chão como num tatame de judô. Tom vive entre palavras curtindo pronunciá-las e pensa usando surpreendentes conceitos. Aos 2 anos, Eric vive correndo atrás das coisas, pensa com seu corpo em movimento, seus conceitos são gestos, suas palavras, travessuras. Às vezes ainda é difícil entendê-lo, mas é fácil explicar por que usa tão poucas palavras. A pessoas são seus maiores fascínios, por isso repete constantemente, como um mantra, o nome de todos os astros de sua constelação – Papai, Mamãe, Titom, Vovó, Vovô e Neném que é como ele se nomeia. Como o pai e o irmão, Eric tem muita facilidade e equilíbrio para bicicleta e skate. Parece que tudo funciona com a facilidade de uma conexão plug-and-play. Por isso tem muita sociabilidade e facilidade na escola que acaba de começar. Gosta de tudo e come muito e com seu dedinho mágico, igual a seu irmão, aponta para tudo o que quer e assim vai conseguindo conquistar tudo e todos.

ERIC FAZ DOIS ANOS

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como será o amanhã?

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omo serão no futuro esses meninos soltos nesse mundo entre multidões de amigos e primos que ainda virão? Tom e Eric irão buscar Isabela na saída do cinema? Isabela irá namorar algum amigo do Tom ou será o Eric que vai namorar alguma amiga da Isabela? Para os meus filhos, desejo que sejam muito amigos e possam contemplar com orgulho as suas diferenças. Para os meus netos, desejo que sejam verdadeiros, corajosos e sempre prontos para se apaixonarem.

JOSÉ INACIO PARENTE


Os pais nascem do escuro do nunca e vão ganhando as cores da madrugada, cores que cedem lentamente para a ofuscante claridade do meio-dia. Nós, os avôs e avós, somos a beleza do pôr-do-sol e aos poucos, ganhamos as cores do fim do dia, cores que cedem rapidamente para o inevitável escuro do sempre.

Vovô Zé

COMO SERÁ O AMANHÃ?


Maria InĂŞs Delorme



como tudo começou?

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“C

aro amigo Zé Inácio: preciso dizer que coloquei na sua conta a insônia que tive essa noite, coisa rara para mim. Fui dormir muito cansada às 2h30 da manhã e, já às 6h, não me continha na cama. Contrações seguidas e uma avó por nascer. Hoje é sábado e mais indispensável do que dormir está sendo reabrir o meu baú de vivências reais e imaginárias para me deixar nascer como avó. Agora vai. Obrigada pelo encontro delicioso de ontem que, pelo visto, cortou o meu cordão umbilical com a mãe que fui até hoje. Obrigada, a coavó, Inês.” Como costuma acontecer, a apresentação deste livro também está sendo escrita somente agora, terminada a tarefa de escrever

MARIA INÊS DELORME


todos os outros textos. Foi a partir do email acima que o disparador da escrita foi acionado e o desafio de fazer um livro a quatro mãos começou a tomar corpo. Eu e José Inácio Parente, que meu coração chama de Zé Inácio, já escrevemos, cada um na sua área de interesse e individualmente, alguns livros. Como professora da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e estudiosa de crianças há mais de trinta anos, todos os meus livros publicados vinculam-se à educação de crianças – com exceção de um livro sobre um cachorro da família que nos ajudou na educação dos filhos. O novo desafio, de escrever com o Zé Inácio, era imenso, enorme por vários motivos. Primeiro porque o Zé Inácio é sensível, competente e exigente como poucos, embora sempre doce e terno. Eu não poderia desapontar esse amigo, tão genial quanto importante para mim. Em segundo lugar, porque estávamos, e ainda estamos, para o resto de nossas vidas, vivendo uma experiência nova – a de nos tornarmos avós – e escrever no percurso da experiência nem sempre é fácil. Em terceiro, porque agora precisaríamos dar mil piruetas internas para ser possível escrever um livro juntos. Em quarto, porque desde o início já sabíamos tudo o que não queríamos que esse livro fosse, como, por exemplo, um manual de “possíveis certezas” para consultas. Isso, de verdade, este livro não é. Assim que me veio à mente a ideia do livro, conversando com meu marido Celso Mesquita, de modo espontâneo e quase natural nos veio a pergunta: por que não convidar o Zé Inácio para isso? Bem, daí em diante foi tudo muito mais simples. O convite foi feito no Guarany, fazenda que frequento desde criança por ser uma amiga muito próxima da Patrícia Monte-Mor, esposa do Zé. Eu e Patrícia nascemos no mesmo ano e mês, com apenas cinco dias de diferença. Aos três anos de idade nos tornamos amigas, vivendo no mesmo bairro e frequentando a mesma escola. A amizade feliz e produtiva com o Zé veio coroar essa aproxima-

COMO TUDO COMEÇOU?

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ção entre as nossas famílias, filhos, amigos, amigos dos amigos. Numa expressão de continuidade, ao final de 2011, uma nova onda de sinergia fez com que viéssemos a nos tornar avós, do Tom e do Benjamin, hoje com dois anos, numa mesma época, com muito pouca diferença de tempo entre os nascimentos de um e de outro. Com tudo isso, eu me pergunto se em sã consciência, ao pensar em escrever sobre o “nascimento dos avós”, poderia prescindir da sensibilidade, da competência e da doçura de um amigo como o Zé Inácio. Entendi que o desafio compartilhado estava aceito quando recebi dele o título de coavó. Foram muitos encontros, na fazenda, em nossas casas, troca-troca de emails, longos telefonemas até ser possível por mãos à obra, dar o primeiro toque na bola, e o marco desse início está aqui, no texto do email que abre essa apresentação. No mais, quero reafirmar que essa parceria formal e explícita foi uma novidade para ambos. No entanto, a riqueza da troca que estabeleço frequentemente com o Zé, e também com a Patrícia, sobre todos os assuntos, permite-me garantir que eles, e tantos outros amigos, além dos meus alunos – as crianças (da PCRJ) e os adultos (da UERJ) – sempre estiveram presentes de modo discreto, invisível, talvez até imperceptível, em tudo o que fiz e sou. De fato, eu acredito que as subjetividades sejam constituídas pelo contato e pela interação com outros, com os nossos pares, diferentes de nós, durante a vida toda. Para concluir, não passou pela nossa cabeça, em nenhum momento, escrever para ensinar ou para dar lições, mas apenas para compartilhar esse processo de transformação nosso e de toda a família com a chegada de um neto. Nem sei se conseguimos e vocês, os leitores, vão nos dizer. Sim, acho que conseguimos obedecer ao desejo de abraçar integralmente essa nova fase da vida, com os sonhos e os conflitos que ela envolve, usando a surpresa do presente para entremear o passado com os dias felizes e incertos que sempre virão. Quisemos olhar para as nossas ex-

MARIA INÊS DELORME


periências pessoais e familiares do presente sem desvinculá-las (como de fato são e estão) das experiências das gerações passadas, de modo a questionar essa fantasia recorrente e muito atual sobre a existência de um presente contínuo, sem raízes, sem lastro para sustentar a complexidade e a riqueza da vida. Essa tarefa não se faz sozinho. Tom e Benjamin são os nossos primeiros netos e outros já estão anunciados para chegar. Que eles sejam amigos e felizes, que cresçam certos do amor que já temos por todos eles, que possam perceber a existência de ninhos de afeto, quentinhos, esperando por eles, em todas as fases da vida. Agradeço mais uma vez ao bom amigo Zé Inácio pela integridade da parceria, sempre, e também às nossas famílias, deliciosas, participativas, e às crianças que tanto me ensinaram a vida toda. Em especial, preciso agradecer aos meus filhos Vicente, Eduardo, Artur e Helena, ao meu marido Celso Mesquita, à minha irmã Cacala Carvalho e à minha sobrinha Thais Siqueira Perricelli pela leitura crítica, atenta e muito afetuosa dos originais. 131

Maria Inês de Carvalho Delorme

COMO TUDO COMEÇOU?


vov


ovรณ


como nascem os avós

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gestação de um neto, o primeiro, e a perspectiva de sermos avós revolve um mar de sentimentos muito subjetivos, de memórias reais e imaginadas, histórias dos nossos e de outros avós. É possível que muitos outros avós tenham sentido um misto de alegria e surpresa, um resgate do seu passado como filho, depois como pai ou mãe, junto com alguma ansiedade, o que me parece claro e natural. No meu caso, tenho antecipado essa nova experiência com uma força interior deliciosa, uma alegria imensa e, também, com alguns sentimentos pouco nítidos. Há uma injeção de vida paralela à morte antecipada da fantasia de imortalidade, que só agora veio dar seu anúncio. Afinal, a fila andou e, agora, seremos avó/ avô, futuramente idosos, quando passarei a ser aquela velhota,

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em geral hipertensa, com óculos pendurados no pescoço. Será implacável esse processo? E dessa forma? A surpresa e a novidade trazem, ainda, outras perguntas suaves e com ecos diferentes, como estas: diante da chegada do meu primeiro neto, quem serei eu? Quem seremos nós? Quem será ele? A certeza de que há diferentes maneiras de cada pai e mãe tornar-se avô/avó associa-se à de que a família toda será outra, à chegada de cada novo neto. Esse é o primeiro e, nesse processo transformador irreversível, com ele e por ele mudaremos todos, seremos outros. Seguindo a boa notícia da entrada no mundo dos avós, eu e o futuro avô entramos num processo delicioso e irreversível de rejuvenescimento, de retomada de fôlego pela nova geração a caminho, apesar das reflexões, mais minhas do que dele. Esse bebezinho já passou a ser o foco de atenção e de amor da família. Com ele, os nossos outros filhos nascerão como tios, as avós virarão bisavós, nascerão muitos tios-avós e assim por diante. Ninguém demonstra estar tão emocionado e reflexivo sobre todos os renascimentos como a futura avó. Sim, estou. Que tipo de avó serei eu? Como é ser avó? Em que pontos a chegada desse bebê, já tão querido, poderá transformar a mãe, a mulher que fui até hoje, em uma avó? As noites que se seguiram à alegre notícia da gestação foram povoadas por sonhos, memórias remotas e alguns planos que não resistiam ao amanhecer mais rotineiro. Por exemplo, a falsa jura de que não misturaria a minha vida profissional, voltada para a educação de crianças, na teoria e na prática, com a função de avó. Claro, a intenção pode ser louvável, mas a jura é mentirosa, tanto por essa divisão ser quase impossível, quanto por não servir para quase nada. Pego-me perdida em imagens longínquas, memórias que me revisitam, provavelmente repaginadas agora com cores e tons, mais ou menos fortes, envolvendo vivências reais e imaginárias, como se fora também uma gestação minha para essa nova etapa.

COMO NASCEM OS AVÓS

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Surpreendo-me, ainda, buscando conciliar dois tempos supostamente incompatíveis. De um lado, uma volta ao meu passado: às origens, às raízes e à história; de outro, uma contagem regressiva para o futuro, para a chegada desse primeiro neto e, com isso, a possibilidade real e concreta de nos vermos, de nos tocarmos, de nos conhecermos. Algo dentro de mim já é forte e intenso. Pulsante e extremamente delicado. Amor total. Ser avô/avó parece soar, ainda que pretensiosamente, como uma promoção por merecimento, um posto alcançado pelo empenho certo, no melhor foco. Uma ação grande que se fala doce, quase no diminutivo, ao se remeter à linguagem coloquial, mas que nasce superlativa nos afetos. Seriam os avós e os netos, desde sempre e naturalmente, parceiros e cúmplices? Acho que sim, mas nada vale pela experiência em si e a hora se aproxima. Escrever sobre isso é imperioso, delicioso, por várias razões. A mais importante delas é o descompromisso de escrever para comunicar ou transmitir o que se sabe. Ao contrário, a escrita é uma experiência que convida quem escreve a se remontar, a se reorganizar internamente para se abrir à transformação. A experiência da escrita é, portanto, libertadora, um exercício de se colocar, em alguns momentos, em lugares socioafetivos diferentes do seu, do habitual. No meu caso, como nenhum outro recurso, a escrita me ajuda a questionar as minhas certezas e, assim, abrir mão do que já sou para me tornar uma outra, diferente da anterior. Como um alívio e um pano de fundo que acena, como se passasse tremulando num aviãozinho na praia, está a garantia de que não existe um único jeito de ser avó e avô. Seremos únicos nessa vivência como avós, na relação com cada um de nossos netos. Como portos seguros, o “pai-drasto”, meu marido Celso, um parceiro “pé de valsa” que é pai da minha única filha, a quarta (ele acompanha com amor, cuida e educa os nossos quatro filhos junto comigo); uma outra figura masculina doce, presente e forte,

MARIA INÊS DELORME


sempre próximo de nós, na medida do possível, que é o pai biológico dos meus três meninos, meu ex-marido Ricardo, participativo e amigo; e, ainda, os pais da minha nora, Vilson e Geny, que não são novatos como nós nessa missão. O que hoje se pode garantir é simples, óbvio e definitivo: em pouco tempo a família vai crescer com a chegada de um bebê que nos fará avós, tios, tios-avós, bisavós pela primeira vez, para o resto de nossas vidas.

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COMO NASCEM OS AVÓS


a gestação da avó

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assavam-se poucos dias, uma semana no máximo, que havíamos nos encontrado eu, Artur e Camila, minha nora. Naquele dia fomos juntos ao show do Paul McCartney, no Rio de Janeiro. No caminho até o carro, por duas vezes eles pararam para ela respirar, já que ela não estava bem naquela noite. Nada me passou imediatamente pela cabeça, naquela hora. Mas, assim que soube da gravidez, pensei alto com o filho: “Entendi, naquele dia já deveria ser isso”. Sim, e era. É comum acontecer, no mundo feminino, de uma informação ficar dias, meses ou horas num cantinho de memória, dada como perdida, e, num determinado momento, ressurgir e se encaixar como uma luva para montar um sentido. As mulheres são muito intuitivas, em geral bem sensíveis e, nessa hora, caiu a ficha: vou ser avó.

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Naquele dia, meu filho me olhou profundamente, com ar feliz e disse: “Mãe, eu vou ser pai e você vai ser avó!”. Ficamos os dois parados, fixados nos olhos um do outro com emoção, alegria e algum susto, já que meu filho e minha nora pensavam em filhos mais para frente. Sem combinar, nos abraçamos e pulamos abraçados. Pulamos, eu disse, de tanta alegria. Preciso confessar que, embora eu tenha quatro filhos, todos muito diferentes entre si (três meninos, o Vicente, o Eduardo e o Artur, e só uma menina, a Helena – aliás, três homens e uma moça), eu sempre observei latente e presente, nos quatro, o desejo de terem filhos. No caso desse filho, o grande desejo dele chegou a se configurar numa preocupação de que ele se apressasse, diante de tanta vontade, e que acabasse sendo pai numa circunstância pouco favorável, ou menos amorosa. Isso não aconteceu, o que me deixou feliz diante da certeza de que a única coisa definitiva nessa vida, de fato, são os filhos. Assim, eles cresceram nos ouvindo dizer que “filhos são para sempre”, que os pais têm responsabilidades para com eles, e que estas envolvem presença física, amor, cuidados, atenção e educação. Muito afeto e muito respeito. Porém, a notícia desse neto a caminho teria sido uma deliciosa surpresa e seria, também, muito mais suave para mim, se eu não estivesse de malas prontas para fazer um pós-doutorado na Europa por seis meses. Nesse percurso, os minutos que se seguiram aos pulos de alegria foram invadidos por perguntas sem resposta, medos, culpa e lágrimas. Naquele momento, me sentindo quase traída, embora não fosse o caso, perguntei para ele: “Meu filho, e a minha viagem? Você foi o maior incentivador da sua mãe. O bebê nasce em janeiro e eu ainda não estarei de volta? Como assim? Como vamos passar por isso, dessa forma?”. E confesso que fraquejei. Chorei muito e internamente desisti da viagem, racionalizei algumas coisas como o fato de ainda depender de uma resposta positiva de um órgão financiador de pesquisa para o recebimento de uma

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bolsa de estudos, da qual eu dependia para viver lá, também pelo fato de a minha mãe, idosa, poder vir a sentir muito a minha falta, por ela ter ficado viúva há pouco tempo e agora, mais do que tudo, pela chegada de um bebê na família. Com esse sentimento, todos nós convivemos como se a viagem não fosse mais acontecer, por dois meses. Até que no final de junho de 2011 chegou a resposta positiva sobre a bolsa de estudos e, com isso, a panela de pressão voltou a apitar. Vou, não vou? Conversávamos o dia todo, eu com o marido, com os filhos, com os amigos mais próximos, com a minha mãe (já com mais de 85 anos) , com minhas duas irmãs queridas e o filho que viria a ser pai (este tendo valor de pitaco dobrado, triplicado, no caso). Disso saiu a decisão nada fácil de ir, de viver essa conquista profissional e acadêmica em Lisboa, de agosto de 2011 a fevereiro de 2012. A frase que mais me fortaleceu para decidir ir veio desse filho, o futuro papai: “Mãe, você tem que ir e, como nós, o seu neto irá se orgulhar de você. No mais, avó é para sempre e um pós-doutorado não.” Em 30 de agosto, quarenta dias depois, eu embarcava para Lisboa com muitos planos, boas expectativas mas com o coração aos pedaços. Como seria essa aventura? Estar longe desse filho, dos outros filhos, dessa nora, das outras noras, do marido, da minha mãe num momento como esse? Como eu conseguiria estar fora do meu ninho nessa hora? Mas eu fui. Minhas irmãs, uma mais velha, a Ana Teresa, e outra mais nova, a Cacala Carvalho, eu ali no meio, super amparada por elas, tiveram papel determinante nessa decisão. Além de acreditarem na importância da viagem para a minha vida profissional, garantiram apoio integral aos meus três outros filhos, à nossa mãe, ao futuro papai e ao futuro avô, à nora e também ao netinho. A irmã mais velha é madrinha de batismo do papai-grávido, além de ser superprotetora dos sobrinhos. A outra, a mais nova, amigona e parceira de todas as horas, superconectada e amorosa com os sobrinhos é especialmente ligada a esse meu filho-papai em for-

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mação, porque ele estudou em Niterói, fazia um pouso feliz na casa dela com os primos e, com isso, estreitaram mais ainda laços que já eram intensos. Certa de que não lhes faltaria amor nem apoio, eu parti. Mas não estar ali, junto, acompanhando o final da gravidez e o nascimento do meu neto era algo inimaginável. Mas fui e até hoje não sei como consegui.

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o ninho: entre a mãe e a avó

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heguei em Lisboa e me senti abraçada pela cidade. Estudei, ensinei e aprendi muito. Fiz bons amigos. Mas vir a ser avó permanecia como uma ideia fixa, algo que eu não conseguia esquecer por um segundo sequer. Ao me apresentar a novas pessoas, depois daquelas informações básicas sobre o que faz, de que cidade é etc., eu me pegava dizendo: “Já vou ser avó, em janeiro de 2012. Vem aí o meu primeiro neto”. Todos respondiam com carinho ao meu repetido slogan, e foi nesse processo que comecei a perceber em mim uma tendência, um comportamento novo. Esquisito? Talvez. Sabe quando só você e os mais próximos sabem que você está grávida, ainda quando a barriga não cresceu, mas você começa a querer que todos saibam? Dá vontade de andar com um crachá,

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no pescoço ou na testa, dizendo “eu tenho um bebê na minha barriga!”. Todas as vezes em que estive grávida eu quis espalhar para os quatro ventos que carregava um bebezinho e, ao mesmo tempo, observava as outras grávidas na praia, no metrô, na aula de natação dos meninos, nas ruas e nos supermercados. Pois é, dessa vez eu não procurava propriamente as grávidas, mas as avós! Eu tinha uma vontade imensa de saber quem já tinha netos e quem não tinha. Quando eu imaginava que poderia vir a conhecer alguém nessas condições, não resistia, aplicava praticamente um questionário focado nessa interseção entre a avó e o neto/a: “Seu neto é menino ou menina? Tem algumas coisas bem legais que vocês fazem juntos? Filhos e noras favorecem a aproximação de vocês? E quando você trabalha e/ou viaja? Vocês ficam por muito tempo sem se ver? Saudades? Sentimentos parecidos com o que tinham com seus filhos?”. E, nessa enquete informal que incluiu até os taxistas, havia uma intuição recorrente, talvez uma mera fantasia: “Ser avó parece ser mesmo totalmente diferente de ser mãe, bem mais fácil e muito melhor!”. Melhor do que ser mãe? Como assim? Intenso mas diferente, mais suave talvez, e o resto vocês já sabem. Em mim, assim se iniciou um sentimento novo, em busca de um lugar afetivo igualmente novo, o de uma mulher madura, entre a mãe e a avó. Nesse momento vieram-me à cabeça muitas avós conhecidas, a minha mãe e a minha sogra, a avó da amiga dos meus filhos que, viúva já há algum tempo, “cuidava” dos netos. De repente, perto dos 80 anos, conheceu um parceiro-dançarino na aula de dança do clube, tornaram-se namorados e, por ele e com ele, “fugiu de casa”, sim, para viverem juntos. Também penso naquelas avós que encontram os netos apenas nos três ou quatro momentos sociais pré-estabelecidos, “de família”; naquelas que gostariam de estar mais perto e não podem, em tantas outras que param de viver para serem totalmente responsáveis por eles. Não desconfio do

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amor de nenhuma delas. Brotam, ainda, muitas lembranças da minha infância, dos meus avós com seus diferentes netos. Tudo isso, aos poucos, me ajudava nessa construção muito delicada, permanente, de um ninho bem quentinho para receber e acolher o meu neto. Esse resgate do passado tinha a ver com o meu ninho, e dele foram sendo revelados o que minha cabeça e meu coração quiseram dele guardar. Eu não poderia ficar freando os meus relatos, nem as lembranças, na dependência de um estudo minucioso que viesse a confirmar a veracidade de tudo, de todos os detalhes, tal como eu os guardei na memória. Por isso, garanto que tudo o que está posto aqui é verdade se visto com os meus óculos, e posso afirmar que ninguém tem lentes iguais às minhas.

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é a sua vó!

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ara falar a verdade, eu tive mais do que apenas dois casais de avós. O vovô Meyer, pai da tia Alice, era um mega-avô, um cozinheiro experiente que compartilhávamos com as nossas primas-irmãs Ana Lucia e Angela. Bem, nós e nossas primas fazíamos tudo juntas: escola, passeios, catecismo, curso de inglês, ida à pracinha, ao clube e não havia porque não compartilhar os nossos avós. Elas também curtiam, junto conosco, os nossos avós de Niterói. Muitas vezes íamos todas para lá, com os meus pais, para os almoços de domingo e nos misturávamos aos primos Eliane, Eduardo e Heloisa. Íamos de barca, o que era fascinante, subíamos o morro do Corpo de Bombeiros, comíamos jabuticaba no pé e, na volta, dormíamos de cansaço, no caminho. Junto com os primos de Niterói passávamos a integrar um grupo

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de oito crianças. Gostávamos de ver a vovó Laurita fazer baba de moça, coando milhões de vezes, pra lá e pra cá, a calda de gemas em um filtro de tecido fino e branco. Na Tijuca, onde morávamos, estava a vovó Inah, uma vizinha que acolheu minha mãe assim que se casou, quando chegou da Bahia, como uma filha, e nós, como netas. Ela fazia macarrão cabelinho de anjo e bolo de maçã, captando no ar os nossos desejos. Ela só bebia Água Prata, um tipo de água mineral. Quando adoecíamos, pedíamos para beber a tal água, e ela levava as garrafas pra nós. Achávamos mágico aquele engradado repleto de garrafas que havia na cozinha da casa dela e, por isso, íamos lá, escondidos, só pra olhar para ele. Havia, também em Niterói, a vovó Odeth, avó dos nossos primos. Ela era professora. Ir à casa dela era um sucesso por conta dos gatos e, também, do teto alto, do piso de madeira e do corredor comprido. A casa tinha muitos quartos e sempre, num deles, havia um grupo de amigos da família jogando cartas. Ali, as crianças não deveriam entrar. A vovó Odeth era uma pessoa de fala mansa, em tom baixo, e de muita escuta. Nós adorávamos correr pelo corredor, gritar loucamente para ouvir o eco das vozes e, assim, fazer o barulho do piso ficar cada vez maior. Parecia mágico quebrar a paz daquela casa. Bem mais tarde, uma outra avó muito especial entrou em nossas vidas, a vovó Léa, avó de outras primas, as mais novas, Ana Claudia e Adriana. Essa tinha o dom de acolher e de encantar, sendo discreta. O melhor pão quentinho, o cafezinho mais gostoso e as melhores partidas de pingue-pongue da minha adolescência aconteceram lá. Ela se marcou como a avó da nossa juventude, que rezava junto e que fazia promessa para que nossos sonhos se realizassem. Com o tempo, outros laços familiares começaram a unir para sempre as nossas famílias e passamos, então, a comemorar Natal e ano novo na casa da vovó Léa, com música e dança que varavam a noite. Junto a isso tudo, sempre pensei

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sobre o número de pessoas, em geral idosas, de óculos, que nos eram apresentadas como sendo avós! Em geral, eram os nossos pais quem davam “a informação” de quem deveria receber essa comenda, de nossa parte. No entanto, eram atitudes de afeto, de um tipo diferenciado na aproximação, e a continuidade desse contato que faziam com que os acolhêssemos como tal. O marido da vovó Inah, por exemplo, nunca foi efetivamente promovido a avô. Ao contrário, o chamávamos de Sr. Santos e costumávamos rir do seu nome, austero como a sua figura, ainda mais quando usava capa de chuva cáqui até os joelhos, como um detetive inglês: Eleutério. Eu e minha irmã mais velha ríamos do nome dele, pelas costas, como que zombando da figura de autoridade que ostentava. Nunca ele foi nosso avô! Nunquinha alcançou esse posto. Pergunto-me, até hoje, porque usam o nome da avó para ofensas: é a vovozinha! Ou, é a avó! Para evitar crises, quando éramos crianças, o colegiado de primos decidiu que cada um teria uma família de xingamentos, sem nenhuma relação com a real. Claro, não tinha sentido xingar a avó, a vovozinha, quando elas eram as mesmas. E assim, ludicamente, íamos questionando, contornando certas regras e comportamentos que pareciam ser impostos a nós pelos adultos, também sobre os avós. Claro, havia também os nossos avós de sangue. Eles eram dois casais muito, mas muito diferentes, com uma única característica em comum: eles, os avós homens, é que davam o tom da relação com os netos, pelos menos oficialmente. Claramente, o poder dos avós-homens era diferente do das avós, sempre mais conciliadoras, com mais escuta e doçura. Ainda bem que, hoje, percebo os casais alternando, de modo doce e solidário, a autoridade entre o homem e a mulher, valendo-se criativamente das características pessoais, das diferentes habilidades de cada um, em cada situação. Num processo de legitimação das potências e das sensibilidades masculinas e femininas, o lugar do “cabeça

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do casal”, ocupado antes majoritariamente pelos homens, vem sendo compartilhado com as mulheres, e isso pode tornar a vida muito mais livre e mais feliz. Nesse caminho, o casal pode se libertar das fronteiras que ainda ditam o que delimitaria desses diferentes mundos, o masculino e o feminino, usufruindo das suas diferenças. Isso equilibra, aproxima e enriquece a relação do casal, e dele com os filhos e netos.

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mosaicos de memórias

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enho pensado com frequência nos meus avós. Os dois casais, os pais do meu pai e os da mãe, eram nitidamente diferentes como pessoas, pelas suas histórias de vida e pelo que representavam como avós. Sem querer ser nostálgica, e não sendo historiadora, nem da área da psicologia, acho que, por mais simples e comuns que sejamos, somos todos parte do nosso tempo e da nossa história e ela, por sua vez, também faz parte de nós. Mesmo que tentemos subdimensioná-lo, tratá-lo de modo refratário ou até mesmo tentar esquecê-lo, o nosso passado me parece indestrutível e inapagável em nossas histórias, tanto quanto o festival de Woodstock, a bomba de Hiroshima e o 11 de setembro, para citar três acontecimentos públicos que também se integram a textura de nossa

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vidas. Nesse viés, sei que as vidas dos meus avós foram marcadas por lutas, bravatas e circunstâncias muito diferentes, numa mesma época, em espaços distintos. Ambos exerciam um tipo de “nomadismo” por causas muito diferentes, verdadeiras aventuras. Se um buscava vacinar a população contra o tétano que matava crianças e adultos (por isso cada um de seus filhos nasceu em uma cidade – em Minas Gerais e no Rio de janeiro), o outro tinha que alimentar e cuidar de sua família numa fazenda de onde, eventualmente, precisavam se mudar para se proteger de Lampião, aquele da Maria Bonita, no interior da Bahia. Embora eu tenha nascido no século passado, sou parte dessa história que conto aqui como eu a vi, senti e vivi. Meu avô paterno tinha uma casa no centro de um terreno cercado de árvores e, ainda, um bom emprego, mas não era rico. O avô materno, sim, tinha recursos como imóveis e terras. O primeiro vivia em Niterói, o outro na Bahia. Um foi médico, o outro fazendeiro. O avô médico atendia no hospital e na sua casa, numa sala separada só para isso. E, no muro da frente, bem perto da porta principal que dava para a rua, havia uma placa com o seu nome completo e sua profissão – Dr. Nelson de Carvalho – médico –, o que era uma distinção, à época. O outro avô, baiano, Raul Borba, era dono de uma casa imensa e com estilo, de altos e baixos como diziam, com móveis de época em chão de mármore e um aroma permanente de jasmim do cabo cultivado por ele com apreço, no jardim. Ali se sabia que morava um homem forte e galante, muito rigoroso com seus filhos e com a esposa, de poucos risos e uns tantos sisos. Nossos pais queriam que nós amassássemos os seus pais com igual intensidade, só que sentimentos não se compram nas farmácias, o que gerava conflitos, comparações e cobranças. O avô de Niterói tinha uma saleta mágica na casa onde morava, tal como uma botica cheia de medicamentos, livros e instrumentos médicos, todos de acesso proibido às crianças. Ali havia vidros

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maravilhosos, de muitos tipos: pescoço longo e base baixa, vidros finos e altos, todos com tampas e etiquetas de prata com nomes pendurados. Seringas de injeção eram esterilizadas com álcool e fogo, num suporte de metal, talvez prata. Era tudo muito mágico para nós. Os armários tinham portas de vidro trancadas à chave e estas ficavam sempre no bolso do paletó ou terno que ele estivesse usando. Nós rezávamos para que surgisse um paciente para ser atendido ali, por ele, e nessa hora o pensamento e a fantasia iam longe. Os potes, as tesouras, gases e seringas tomavam vida, faziam sons encantados e nós achávamos que ele era capaz de curar a todos de tudo e, também, que ele fosse capaz de fazer grandes cirurgias e alquimias. Nós ficávamos na janela lateral da sala, com os ouvidos colados na parede e, um dia, tivemos a certeza improvável de que ele, em carne e osso, extraía veneno de cobras vivas. Também imaginávamos que ele poderia cortar partes do corpo e emendá-las, depois, em outras pessoas, sempre sem dor, para salvá-las de algo ruim. O fato de ele fazer, ali, pequenas suturas (queixos dos netos, mãos e dedos de pacientes etc.) nos enlouquecia. Para completar o cenário fantástico, o avô médico tentava domar a nossa curiosidade com uma frase impossível de ser compreendida e que, de verdade, só alimentava ainda mais a nossa fantasia quanto aos seus superpoderes: “Meninos, essa é uma das três profissões impossíveis: curar, educar e governar”. E ele atribuía a autoria dessa frase célebre e genial ao Freud. Será? E, com isso, o nosso avô teria, então, uma profissão impossível. Como nós, crianças, poderíamos entender isso? Na casa do outro avô, na Bahia, também havia uma sala “especial”, sinistra, que também era vedada aos seus netos, às crianças em geral. As portas de vidro “bisotado” que trancavam essa sala deixavam à mostra os armários com cristais que reluziam no piso de mármore bem encerado. O mobiliário sisudo, escuro, todo em jacarandá, combinava perfeitamente bem com o perfil enrijecido e sóbrio do seu dono, o nosso avô. Estar com ele, na Bahia,

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não significava uma vivência descontraída de férias de verão, em Salvador. Ali imperavam a ordem, a obediência e, ainda que seja triste reconhecer, pouco ou nada mais. Nossa avó baiana, a avó Laura, submetia-se a ele com obediência canina, talvez até com algum medo do marido, como nós. E assim, por amor ou por medo, ela deixou ir embora toda a sua graça, sua luz própria como mulher, como mãe e, claro, também como avó. Adoeceu gravemente com pouco mais de 60 anos. O outro avô, o médico de Niterói, era doutor só para os outros e para nosso orgulho pessoal junto às outras crianças amigas e às nossas primas cariocas. Ele ficou viúvo muito jovem e compartilhou a guarda de seus quatro filhos, todos muito pequeninos, com sua cunhada, a vovó Laurita, que, à época, também havia enviuvado, precocemente. Ele e a vovó Laurita ocupavam espaço de pai e mãe de meu pai e seus irmãos, sem que jamais houvessem se casado. Nós, as crianças, tínhamos muita curiosidade sobre os limites dessa parceria cotidiana existente entre eles e, confesso, compartilhávamos a fantasia de que eles vivessem “escondidinho” algo mais picante, uma relação de homem e mulher. Ambos nos negavam qualquer possibilidade de diálogo sobre isso, porém sem bronca ou constrangimento. Será que eles nunca chegaram nem mesmo a se tocar, a se beijar? A ter uma relação mais íntima? Não sei dizer. Era auspicioso contar para os amigos que nosso avô viúvo vivia com a cunhada, morando na mesma casa, sem serem casados. Ninguém acreditava. Era delicioso contar aos amigos que o nosso avô aplicava todas as vacinas que tomávamos em sua casa, sem que sentíssemos um pingo de dor. E, havia, ainda, um outro diferencial: elas eram aplicadas nas pernas para não deixarem marcas nos nossos braços. Assim, ele fez isso com todos os netos e com os emprestados, como as nossas primas-irmãs, Ana Lucia e Angela, suas ”conetas”. Essa preocupação de relativa vanguarda cedeu seu lugar para uma tendência, vinda da Inglaterra, que foi a minissaia pondo nossas cicatrizes de vacinas

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e as pernas inteiras à mostra, sem que ele pudesse ter previsto. Diante do fato, dizia ele, rindo: “Fracassei. A medicina acabou se curvando à moda”. A preocupação dele com a nossa saúde, higiene e alimentação era grande, talvez um pouco exagerada, eu achava. Mas ele não nos impedia de subir na jabuticabeira do seu quintal, nos deixava brincar com a tartaruga Bilu e contribuía generosamente para a realização de nossa brincadeira predileta – fazer hortas e espantalhos. Subir na jabuticabeira e comer a fruta no pé era magnífico e nos permitia, ainda, praticar o voyeurismo em relação aos vizinhos. Bisbilhotar a casa ao lado, do vizinho esquisito, o tal Sr. Mesquita, era magnífico. Fazer a horta era um sonho. Nosso avô médico deixava que os netos plantassem as sementes ou as mudas e emprestava, a cada ano, nas férias de verão, algum paletó velho para montarmos um espantalho com chapéu, do tipo Panamá. A cada verão criávamos um novo, com um nome escolhido por eleição direta. O nome de que me lembro foi João Cória, um antigo empregado da casa de uma tia querida em Itaipava, que nos amedrontava quando crianças. Criar e dar vida aos espantalhos, além da imensa responsabilidade de espantar os passarinhos, talvez fosse mais encantador do que colher, propriamente, o que nascia nessa horta. Dela brotavam sonhos e muita alegria. Tínhamos diálogos inteiros com os bonecos que criávamos e a quem dávamos muitas ordens. Enquanto isso, o avô da Bahia colecionava mágoas e antiguidades, sentimentos e objetos antigos. Ele sabia de cór todas as marcas de suas dores, do que lhe faltava, das omissões de filhos, genros e netos. Ele tinha na ponta da língua suas decepções, com sofisticação de detalhes, sobre quando, por exemplo, se passara uma data importante sem que ele tivesse recebido uma única cartinha das netas cariocas. Isso era um crime inafiançável e que, infelizmente, não bastava para nos aproximar. Ele tinha uma predileção explícita pelos seus três netos homens, primos queri-

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díssimos, que gozavam de um imenso prestígio impossível de ser equiparado, mesmo reunindo num único time as suas seis netas-mulheres. Nossos três primos homens são e eram muito amigos, nada tinham a ver com isso e, junto com sua mãe, a querida tia Marina que morava perto deles, faziam da Bahia a verdadeira terra da felicidade. Nós e nossos pais percebíamos essa diferença de gêneros estabelecida pelo avô baiano com alguma tristeza, mas ele era assim. Um chefe, uma autoridade a ser obedecida. Ou não. Do outro lado do mapa, o avô do Rio de Janeiro colecionava segredos e ternuras. Das empadinhas de camarão, aos domingos, às notas de dinheiro “novinhas em folha”, guardadas cuidadosamente para dar aos netos, passando por farta distribuição de sorvetes e picolés de frutas da quitanda da esquina. Um dos seus trunfos de carinho era o Xamego Bom, chamego escrito com X, mesmo. Eram tabletes do doce de leite mais gostoso do mundo que ele ia estocando, num criado mudo do seu quarto, para ser distribuído aos seus netos. Ele não nos deixava ficar sem seus chamegos, com x e com ch. Lembro-me de, já com 17 anos, ficar esperando ansiosamente pela visita semanal do vovô médico em nossa residência na Tijuca. De terno, como sempre o vimos, ele não faltava. Chegava com sua fala tranquila e bem-humorada, sua doçura e seu amor para nós. Ele dizia sempre: “Eu é que venho aqui buscar alimento e alegria para a alma e para a vida”. Parece-me que seja esse um caminho produtivo, guardado nas nossas histórias, como uma prova cabal de que avós e netos sejam fontes de alimento mútuo, para a alma e para a vida.

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afetos digitais?

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inguém duvida das vantagens oriundas dos recursos tecnológicos nos dias de hoje. Por meio deles, as pessoas se aproximam, dialogam e, eventualmente, conseguem remendar seus corações partidos, e esse era o meu caso. O email e a telefonia celular cobrados em centavos por minuto, de Lisboa para o Brasil, funcionavam como um recurso valioso, porém incomparável à possibilidade de interlocução, em tempo real, com imagem em movimento. Assim, só quando eu consegui acesso à internet em minha casa foi que, pelo menos duas vezes por semana, eu e meus filhos, marido, amigos queridos, minha mãe e irmãs nos falávamos e nos tocávamos de um jeito novo, de modo virtual e muito verdadeiro.

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Nada, absolutamente nada, era mais difícil do que estar com esse filho, o pai em formação, e ouvir dele, com som e expressão: “Mãe, você está me fazendo muita falta!”. Nós ficávamos nos olhando fixamente, chorávamos às vezes, e ele repetia sem parar essa frase que nos mantinha próximos, quase imantados, mesmo tão distantes – havia um oceano entre nós. Eu sempre perguntava para ele as mesmas coisas: “Está tudo bem? Vocês estão precisando de algo? A futura mamãe está passando bem? Vocês estão felizes?”. “Sim, mãe, tudo certo”, era a resposta dele, sempre em tom positivo e tranquilizador, complementada por aquela sentença, a de sempre, avassaladora – “Só que você está me fazendo muita falta”. Eu sempre falava com minhas irmãs que acompanhavam atentas a gestação do neto e a vida dos meus filhos em geral. Elas me tranquilizavam com notícias atualizadas, sinceras e seguras, mas eu percebia que elas não tinham como sentir o que eu sentia e, assim, não havia maneira de dimensionar o que eu e meu filho dizíamos um ao outro – nós queríamos muito estar perto nessa hora, embora soubéssemos racionalmente a importância de eu estar longe, naquela circunstância. Comprometi-me em janeiro de 2011 com esse projeto ousado de viagem, de ser oficialmente uma avó-estudante, já com mais de 55 anos, e só em maio eles engravidaram!!! Quanta mudança, quanta novidade. Eu repetia internamente essas datas, esses prazos, para tentar amenizar a minha culpa, um desconforto forte e desagradável que me rondava. Foi a internet, também, que me permitiu jantar vários dias por semana em companhia da minha mãe, do outro lado do Atlântico, me acompanhando, conversando e me mantendo informada de tudo e de todos. E, pela internet, eu vi a barriga da nora crescer dia a dia, vi todas as ultrassonografias com movimento, em que meu neto já se mostrava saudável e com as mãozinhas muito expressivas, sempre nítidas e bem visíveis. Muitas vezes com uma

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das mãos sobre o rosto, ou sobre a testa. Eu contemplava. E chorava de emoção. Ao mesmo tempo, e por outro lado, o aumento da longevidade das pessoas, hoje, configura-se como uma nova realidade. Há um prolongamento da vida útil, produtiva e feliz de gente com idade igual ou maior que os famosos sessenta anos, a medida dos idosos. A fantasia de que avós sejam velhinhos decrépitos, com a saúde sempre comprometida e que vivam de passado mudou muito. Minha mãe, com mais de 80 anos, usa email e tem perfil na rede social do momento. Eu não me vejo, tão cedo, sem trabalhar pelo menos uma boa parte do dia e ainda transbordo sonhos por realizar. As tecnologias da informação me são acessíveis e sem elas não vivo, não trabalho, não produzo academicamente e nem, também, mato as saudades da família no Brasil. Pela internet eu me sinto um pouco mais perto, dentro da casa da minha mãe, junto e dentro da casa dos filhos, dentro da minha própria casa e por ali, também, eu e o meu filho-papai conversamos, afagamos os corações cheios de saudades. Pela internet eu acompanhei toda a vida intrauterina do meu neto, o amor de seus pais, dos tios, avós e amigos que, mês a mês, fortaleciam os laços para a entrada efetiva desse neto na nossa vida, de forma definitiva. Mas me faltavam ali algumas coisas tão essenciais, um aconchego, um cheiro, o calor dos abraços que me diziam não poder ficar distante um dia, nem um minuto a mais do que o prazo estabelecido pela universidade. Uma semana antes da data prevista fui autorizada oficialmente a voltar ao Brasil. Eu já era avó! Ser avó pela primeira vez tem sido uma experiência nova e muito transformadora. Não sei quantas vezes terei a oportunidade de aumentar o meu escore de netos, mas acho que a emoção será sempre enorme e as expectativas, muitas. Desejo sempre estar ativa e saudável para levá-los ao teatro e ao cinema, para cozinharmos juntos, para subir com eles a Pedra da Gávea e fazer muitos piqueniques por aí, alguns no Parque do Martelo.

AFETOS DIGITAIS?

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nasceu a nossa criança!

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dia do nascimento do nosso neto Benjamin foi vivido, obviamente, como um tornado de ansiedade, um tsunami de emoções e uma vontade pulsante, imensa de estar no Brasil, junto com todos eles. Embora estivesse louca para ver a carinha do meu neto, meu coração estava conectado com o do meu filho, batendo junto com o dele, era assim que eu sentia, acompanhando as emoções que ele estaria vivendo naquela hora. Nesse dia aflitivo e gelado em Lisboa, com meu marido e minha filha lá, já que o neto chegou alguns dias antes do prazo e, consequentemente, antes da volta deles ao Brasil, eu aprendi algumas coisas. A primeira foi que eu era mais forte, internamente, do que eu supunha. Passei horas em pé, numa rua vazia, diante de um telefone

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público, numa madrugada gelada do inverno europeu, ligando de meia em meia hora para os outros filhos, para minhas irmãs e mãe para saber de todos os movimentos, de absolutamente tudo. E tudo o que me diziam era sempre pouco para o tamanho da minha aflição e do desejo de estar ali. Aprendi, então, uma segunda coisa: a arte de estar junto sem estar, estando longe, relembrando uma respiração que me foi ensinada pela minha irmã mais nova como sendo tranquilizadora. Depois das notícias do nascimento, fomos para casa, deitamos os três (eu, o marido e a filha) numa mesma cama, bem espremidinhos. Ali choramos, cantamos e juntos respiramos daquele modo “tranquilizador”. Assim, eu adormeci feliz, porém, desassossegada até ligar a minha “tomadinha”. A “tomadinha ligada” foi criação do meu pai para acalmar os nossos medos de criança. Dormíamos, eu e a Cacala, com um fiozinho longo de barbante nas mãos, e este nos ligava a ele, lá no seu quarto, com minha mãe. Em caso de medos noturnos, o barbante era acionado e ele, de lá, respondia com puxões nos dizendo “estou aqui e nada vai acontecer”. Com essa doce lembrança dormi porque consegui ligar a minha tomadinha com a do meu filho, ainda que de modo imaginário. Diretamente conectados pelo amor e, quietinha, unida com filha e marido, eu pude sentir que o protegia, que podia acompanhá-lo o tempo todo com o fio do nosso barbantinho virtual tensionado, visceralmente conectado. Sonhei muito, a noite inteira, curiosamente, com meu pai que havia falecido dois anos antes. Conversamos a noite inteira sobre a minha festa de 50 anos, que já havia acontecido há alguns anos e na qual ele de verdade. Disse-me assim: “Filha, os primeiros 50 são os mais difíceis”. É verdade. E como eu desejava que ele conhecesse o bisneto, todos os bisnetos, já que foi um pai e um avô extremamente amoroso. Mas não foi possível. Chorei de saudades do meu pai por todo o dia seguinte ao nascimento do tão desejado neto. O coração feliz pela chegada do desejado rebento e, ao mesmo tempo, choroso com saudades do melhor

NASCEU A NOSSA CRIANÇA!

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pai e avô que conheci, o meu. Contradições e complexidades. Sentimentos misturados. Nos dias que se seguiram ao nascimento do meu neto, eu passei a sofrer de uma “drogadição tecnológica” pela internet. Todos os dias e em todas as oportunidades, eu via o filho e a nora, junto com a linda cria, perto da outra avó dando a eles uma tranquilidade cúmplice, advinda da experiência de vida e do amor. A mãe da nora é doce e terna, ajudou muito nesse início, e ajuda sempre que pode. Sorte do meu neto por ter avós tão amorosos, por todos os lados. De Lisboa eu o via mamar, dormir, tomar banho, mas havia algo como uma parede de vidro grossa entre nós, que impedia o contato físico e sensorial, a troca de calor humano. Era bom, era o possível diante da distância, mas era pouco diante do que eu precisava. Lembrava, assim, mais uma vez, da minha irmã Cacala dizendo-me que “nós fomos ungidas no amor, constituídas e forjadas no amor. Assim estamos fazendo com nossos filhos e faremos com os netos.” É verdade, pura. Com isso, aprendi uma terceira coisa: que a partir de janeiro de 2012, e por todos os próximos verões, nunca mais seríamos os mesmos.

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o fiel da balança: as avós, o bebê e seus pais

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sse período final em Lisboa, que correspondeu às três primeiras semanas de vida do meu neto, foram muito difíceis. Os dias pareciam ter um número imenso de horas e meu coração já estava no Brasil, embora a cabeça ainda precisasse estar lá. Agora, os meus encontros via internet com filho, nora e neto passaram a ter uma conotação mais prática, embora muito afetuosa. Eu perguntava sobre o sono, a mamada, o seio dela. Naquele dia, foi o meu filho que me chamou pelo computador e, com os olhos na câmera, como quem precisa encontrar resposta para uma equação muito complexa, perguntou: “Mãe, você é a favor de chupeta?”. Nesse momento, como um raio veloz, é a nora quem adentra o monitor, colada no marido, recém-saída do banho, ávida para ouvir a resposta. Nós três rimos muito

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diante da situação carregada de afeto que transformou essa simples questão numa videoconferência, já demonstrando resquícios das habituais disputas de poder, comuns entre pais nas questões afetas à educação dos filhos. O bebê recém-chegado, sem saber de nada, já dava um xeque-mate nas convicções de seus pais. O pai, de um lado, parecia buscar uma consultoria externa pessoal. Minha nora, com seu lindo faro feminino e sensibilidade materna, ao perceber o teor da pergunta, se impôs com a maior agilidade no assunto. Adorei e procurei conversar com eles também sobre esse cenário de diálogo. Rimos de nós mesmos. Eu, de imediato, percebi uma “luz amarela” me sinalizando: ”Atenção, vovó Inês, não vá cair na tentação de responder assim ou assado, contrariando a sua vontade de apostar no fortalecimento do casal, e em nada diferente disso”. Como agir para fortalecê-los sem ser omissa? Decidi não aceitar a responsabilidade por um desempate ao perceber, de um lado, o desejo implícito da mãe em dar a chupeta, de outro, um pai contra a chupeta. Tive uma leve intuição de que o meu filho supunha que eu fosse endossar a opinião dele, sendo também contra. Isso é uma intuição, como disse. Só que eu não sou uma defensora, em muitos casos, de “vitórias da maioria”. Nesse caso, então, jamais a opinião de uma avó, mesmo sendo uma estudiosa de crianças como eu, poderia ser mais verdadeira, nem mais correta do que a da mãe ou a do pai. A saída foi permanecer um pouco mais de tempo rindo e conversando enquanto eu pensava. De fato eu tinha e tenho uma opinião sobre isso, mas queria ser uma avó “quase perfeita”. Quanta pretensão, eu sempre acreditei que o crescimento de um casal se dê por meio de partilhas, trocas e negociações entre o par. As negociações e os pactos deles só poderiam trazer benefícios para eles, para o bebê, para os avós e para o entorno da família, ou seja, um crescimento coletivo. Então, conversando com os dois eu tentei mostrar como essa decisão sobre a chupeta do neto, e muitas outras, exigiriam deles um acordo advindo

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do diálogo, com cumplicidade e a clareza sobre como desejam educar juntos o filho. A chupeta foi o mote e a consultoria da avó estava garantida, desde que percebêssemos, todos, que educar implica em acordos e prioridades que precisam ser estabelecidos por eles, entre eles. Muitas vezes são os filhos, às vezes mesmo recém-nascidos, que vêm exigir condutas diferenciadas de seus pais para questões relativamente simples. O casal pode ser favorável à chupeta, por exemplo, e o bebê pode não gostar de chupar chupetas. Isso vale para a escolha da hora melhor do banho, para a escolha das roupas em função da sensação térmica de cada bebê e para tantas outras coisas. Vale lembrar que as crianças são todas muito diferentes umas das outras, o que exige uma parceria de mãe e pai muito efetiva mas flexível, em respeito ao que elas nos dizem, mesmo antes de falar. Enfim, ainda ali diante do monitor do computador disse a eles o que eu pensava sobre o uso da chupeta. Minha nora pareceu sorrir feliz, a outra vovó também, lá no fundinho da tela, e assim eu entendi que, sem querer, engrossei o coro das mulheres (minha nora e sua mãe), talvez contrariando a expectativa do meu filho em relação à educação de seu bebê. Acontece.

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o neto e a avó se encontram

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hegar ao Brasil era tudo o que eu queria e, já no primeiro dia, fui conhecer Benjamin, pegá-lo, ver e tocar o seu corpo todo tão branquinho que deixava ver as veias nele desenhadas. Que pele, que delicioso estar com aquele bebê saudável, gorduchinho e tranquilo. Estar perto do meu filho, da minha nora e do meu neto era tudo o que eu precisava. Dali a dois dias o bebê já faria um mês. Ele estava lindo, rosado, muito bem cuidado, tranquilo, e a visita, para mim, foi um pouco frustrante – meu neto mamou e dormiu o dia todo, sequer chorou com força, para além de uns poucos miados de fome. O primeiro mês de contato com Benjamin, que equivalia ao seu segundo mês de vida, foi marcado por encontros banhados em sono, semelhantes ao do primeiro dia. Eu mesma ri, notando a minha frustração

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quase infantil e perguntei para mim mesma, com meus botões: “O que eu queria? Que ele me esperasse de braços abertos dizendo: ‘bem-vinda ao Rio! Te amo, vovó?’ Talvez, sim”. Queria me sentir importante para ele, em segundos! Bobagem. Passei a gostar muito de ficar com Benjamin no meu colo, adorava deitar e permanecer olhando fixamente para ele, bem de pertinho, ele estando acordado ou enquanto dormia; queria ter oportunidade de dar banho e de trocar suas fraldas. Eu queria me disponibilizar para ele, trocar nossos olhares nessa fase inicial. Eu já acreditava que quando o olhar da criança toca o do adulto, e vice-versa, estabelece-se um elo de aproximação, de relação e de contato. Penso que seja o olhar, em especial, o que sustenta a conexão afetiva entre o adulto e o bebê. Bem, mas esse início de vida saudável e totalmente tranquilo, abastecido com leite materno farto e rico, faziam com que o bebê dormisse e mamasse, dormisse e mamasse. Pouco chorava com cólicas, já expressava prazer na hora do banho e uma voracidade pontual para mamar. Algo que consegui fazer com ele, de modo ligeiramente diferenciado, era colocá-lo para arrotar. Comigo ele sempre arrotava bem e alto, já que não me faltava paciência e vontade para segurá-lo junto da minha barriga, até que fosse expelido o ar da mamada. Enquanto isso eu ia conversando com ele, acariciando-o com as minhas mãos pelas suas costas e com meu rosto pela sua cabeça. Era delicioso, parece-me que para nós dois. Já nesse primeiro tempo de vida dele, pude perceber em sua casa, em seu quarto e nele mesmo alguns indicadores da nossa educação familiar, alguns marcadores estáveis de ancestralidade e da cultura do nosso núcleo chamado família. Havia um Menino Jesus pendurado num crucifixo, junto ao berço dele; um enxoval muito colorido, como sempre fizemos, embora minha mãe, agora bisavó, sempre tenha reclamado que “vestimos logo, logo os bebês como crianças, desde que nascem, e assim eles não usam mais as camisinhas de pagão, as roupas de tecido branco impecáveis,

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com uma aguinha leve de maisena”. É verdade, eu já não quis usar meu precioso tempo como mãe engomando nem passando a ferro as roupinhas dos meus filhos e, hoje, as minhas noras também não querem fazer isso. As cores usadas no enxoval não se restringiam ao azul e ao rosa por orientação de nossos pais, já que ainda, naquela época, não era comum saber o gênero do bebê antes do nascimento. E o enxoval para recém-nascidos da família acabou sendo reunido por nossa mãe para circular entre todos os bebês. Muitas gerações usufruíram desse acervo, montado durante muito tempo por muitas mãos e mães que foram acrescentando uma manta, alguns babadores, lençóis. Hoje, já nos libertamos das fraldas de pano, que usei apenas no meu filho mais velho. Os outros três e todos os sobrinhos já usaram só as descartáveis. Era o meu pai quem ajudava nessa compra (cara ainda, à época, para nós) e era ele, também, o autor da piada – “Enquanto eu puder, o bumbum dos meus netos só usará descartáveis” –, como uma questão de dignidade para netos e filhas. “Assim, ninguém precisa tomar contato com as idiossincrasias deles”, completava ele. A palavra idiossincrasia, esquisita que só, dava o tom do respeito necessário às intimidades e às características individuais da criançada. Esse tom jocoso justificava também o adjetivo iconoclastas, usado por ele para os mesmos netos quando o assunto rondava as escatologias em pauta (xixi e principalmente cocô). O bebê, seus pais e também os avós têm seus hábitos, demandas, ritmos, ciclos, tempos de maior e de menor energia. Há uma orquestra para ser afinada.

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amor cantado: avó e neto se embalam

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“Um dia ele chegou tão diferente / do seu jeito de sempre chegar olhou-a de um jeito muito mais quente / do que sempre costumava olhar” (Valsinha – Vinicius de Moraes e Chico Buarque)

conteceu de meu filho precisar viajar a trabalho e, por isso, ele me pediu para dar uma ajuda à minha nora e ao meu neto. Com o maior prazer, combinamos de eu ir dormir com eles. Não preciso dizer da minha felicidade ao receber e poder atender a esses chamados, já que a utilidade afetiva da avó, gerada pela confiança dos pais na entrega do seu bebê, tem o seu lugar. Refiro-me a um tipo de entrega à avó que dá ao casal a tranquilidade indispensável para dormir entre as mamadas, para a mãe ir à manicure nos intervalos e isso proporcionar, também para a avó, a possibilidade de contatos gostosos e relaxantes como o de dar um banho de sol no bebê ou oferecer-lhe um suco. Isso me alegra muito e permite um contato de corpo muito próximo entre nós. Massagear o corpo dele

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durante o banho é delicioso e ele responde com um olhar fixo, interessado, de quem já reconhece o prazer do contato afetivo. Canto para ele um repertório imenso de músicas que eu não sabia que ainda lembrava, e ele responde com um olhar curioso, que me segue, lá e cá.

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Gostamos de cantar e há em nossa família alguns músicos. Minha mãe foi professora de piano formada pelo Conservatório de Música da Bahia e, assim, crescemos ouvindo Mozart, Schubert, Bach , Vila Lobos e outros. Não me esqueço do número imenso de vezes em que eu e minha irmã mais velha chegamos da escola e encontramos nossa mãe ao piano, tocando lindamente. A pena é que nessa hora ela costumava parar de tocar para cuidar do nosso banho, do almoço e da casa e, assim, não almoçávamos ouvindo a sua música. Nossos pais e as nossas escolas, para onde fomos no maternal, cuidaram de nós, sem a ajuda de mais ninguém no Rio de Janeiro. Durante a semana, meu pai e minha mãe se dividiam nas tarefas de casa para cuidar de nós, de tudo da casa e da família, e nos fins de semana passeávamos todos juntos. Fomos criadas com amor e muita música, com long plays girando em uma vitrola que tocava Nat King Cole, Elizeth Cardoso, Beatles, Elvis Presley e até Rita Pavone. As três filhas aprenderam piano por muitos anos e hoje não sei tocar uma única nota, a irmã mais velha toca “de ouvido” e a menor vive de, com e pela música. Ela canta, compõe e tem dois filhos que são músicos e que enchem de bom som as nossas vidas. Enfim, eu adoro cantar baixinho para o meu neto e eu acho que ele adora que cantem para ele. As tias-avós, quando aparecem para “tivovozar”, naturalmente cantam também para ele e percebo o encanto dele com a sonoridade ao responder com sorrisos delicados ao som do amor cantado. Em tempo, tivovozar serve para nomear as horas de carinho, cuidados e amor que as duas tias-avós vêm dedican-

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do ao bebê da família. Nós, as três irmãs, sempre soubemos que os filhos de uma são “meio filhos” das outras também e, agora, portanto, somos todas um pouco avós e musicais. A música nos une, encanta em tom baixinho, embala e vale como uma linguagem universal de amor. Benjamin ouve o que cantaram para nós quando crianças, o que cantamos para nossos filhos – Pintinho Amarelinho, Formiguinha da Roça, Borboletinha na Cozinha, Pai Francisco, Dona Cotia, Ciranda- Cirandinha –, acalantos em geral e, assim, vai se apropriando desses nutrientes culturais e familiares. Eu tento cantar para o meu neto aquele Acalanto feito pelo Dorival Caymmi para sua filha Nana: “É tão tarde / A manhã já vem; Todos dormem / A noite também; Só eu velo/ Por você, meu bem; Dorme anjo / O boi pega neném; Lá no céu / Deixam de cantar / Os anjinhos foram se deitar; Mamãezinha precisa descansar; Dorme, anjo / Papai vai lhe ninar: boi, boi, boi, Boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta”. Jamais conseguir cantar a música toda para ele. Não que ele dormisse antes, mas porque meu coração não suporta cantar para ele “os anjinhos foram se deitar, mamãezinha precisa descansar”. Não sei explicar, não sei porque e nem se há um ou mais porquês. Algo me trava nessa frase musical. Paro e reinicio. Ele parece não perceber nada, move o corpo todo com muita força, como numa dança em que diz que, além de estar acordado, gostaria de mais música. Exuberante e feliz. Lembro-me de uma música feita pela minha madrinha, a Tita, que morava conosco quando eu tive uma catapora forte: “A menina ficou catapora. Como uma tosse que não tinha fim. A menina já está boa agora. Que bom pra mim.” A melodia, simples, levava consigo essa letra fácil de guardar, carregada de afeto, e, talvez por isso, ela esteja viva em mim até hoje. Tenho alguma vergonha

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de contar as músicas que crio, as paródias que invento, quando estou com o Benjamin. Só posso garantir-lhes que não preciso ser um expoente na música para dizer a ele os meus sentimentos e as nossas histórias cúmplices de linguagem cantada. Eu insisto e ele gosta. Canto com ele, para ele e para mim, sempre que estamos juntos. Quando minhas irmãs estão por perto o repertório se enriquece – cantamos tudo o que lembramos da nossa infância, alem de alguma MPB. Na nossa família, a irmã gêmea do meu pai, a Tita, costumava dar um verso de presente no dia do nascimento. Todos os filhos e sobrinhos têm. Cacala, minha irmã, assumiu esse posto e dedica uma música feita por ela a cada criança que chega na família. A música da minha filha, Helena, que hoje tem 16 anos, é conhecida pela família toda e ela, em especial, sabe a sua música, que é entoada, algumas vezes, como um resgate da infânca, um troféu, uma medalha que lhe dá poder e segurança em cada passo de sua vida, junto do seu coração. Parece ser a música, mesmo, uma linguagem internacional do amor, que tanto nos remete aos nossos ancestrais quanto, ao mesmo tempo, apoia e sustenta o momento presente.

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o neto muda o jeito de a avó ler o mundo

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comum acontecer de eu estar dirigindo o meu carro para o trabalho, bem cedinho, e ver o sol bater numa parte lateral das montanhas da cidade. Nessa hora, diante daquela imagem luminosa que delineia um horizonte limpo, o desenho e os contornos da cidade, logo penso que gostaria de ensinar ao meu neto a ler a sua cidade, a olhar para ver o que ela nos mostra, também o que ela esconde. E assim vai. Nesse mesmo percurso, em certas manhãs, deparo-me com uma porca imensa deitada, bem perto do meio fio, amamentando sua cria de muitos filhotes. De repente, estou numa cena inusitada para uma grande cidade. Que beleza e que medo de alguma tragédia vir a acontecer, tanto com os animais, quanto com os motoristas que por ali trafegam. Volto a pensar na infância dos meus netos, desse e dos próximos,

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no desejo de que todos possam, um dia, desfrutar de cenas semelhantes. Poder ver o ciclo de vida dos animais e, se possível, perto de mim. Eu adoraria. Em Vargem Pequena, onde trabalho e pesquiso com e sobre crianças, costumo ver charretes, bois e cavalos. Brincadeiras à parte, “galinha lá é pinto”, de tanto que há, soltas pelas ruas e vielas. Penso de novo nas crianças que têm a oportunidade de ver as galinhas com seus ovos, ninhos de pássaros e passarinhos, pintinhos saindo dos ovos. Quem me dera poder estar junto dos meus netos nessas ocasiões. Eu adoraria. Penso em todas as crianças, a partir da chegada desse neto, diante da necessidade e do desejo delas de contar fatos e de serem ouvidas, de falar na primeira pessoa, narrando seus casos com suas formas próprias de entender, e de participar, como crianças que são, do mundo em que vivem. E sei que poucas crianças urbanas têm oportunidade de contato direto com animais e com a natureza em geral, com as cores que estão no mundo, e não apenas nas caixas de lápis de cor. Mas há como buscar essas alternativas e, também, como conversar com elas sobre a vida, sobre os ciclos da natureza, sobre o mundo de que somos parte como uma das formas de vida, em relação permanente de dependência para com as outras. Reconheço cada criança como um sujeito da cultura, como consumidora e como produtora permanente de cultura. Elas têm um tipo de participação na vida social que é sempre mediada pelos adultos e eles, muitas vezes, não percebem essa participação e, com isso, não percebem as apropriações que elas fazem, a seu modo, de produtos culturais como músicas, novelas, personagens da TV e, também, de padrões alimentares, de comportamentos. Muitas crianças pensam, hoje, que feijões nascem em supermercados tanto quanto o frango que comem. É preciso querer saber como elas pensam sobre tudo e pode ser surpreendente perceber os recortes que fazem e os significados que dão a tudo, das no-

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tícias veiculadas às musicas que escutam, passando pelas propagandas, pelos trejeitos dos outros etc. As versões criadas por elas para a música que invade os nossos ouvidos pela televisão, pelo rádio etc., são muito mais interessantes e criativas do que a sina da própria e de seu caráter puramente comercial, traçados pelo seu autor. A liberdade infantil sem censura prévia, sem impedimentos impostos pela cultura, gera um tipo de permissão muito interessante para que elas se apropriem e recriem. Mesmo sem permissão elas o fazem, mas nem sempre compartilham com os adultos. E, para ter graça, é preciso haver partilha entre elas e nós, e isso só acontece se os adultos exercitam a tal “escuta produtiva”, aquela que é feita com os olhos, com os ouvidos e com o coração. Só assim pode ser estabelecida uma escuta do pensamento, aquela que gera uma experiência afetiva entre adultos e crianças pautada na ética da receptividade, do acolhimento e na hospitalidade ao outro. Assim, preciso estar atenta para ouvir o(s) neto(s) a partir das suas posições e experiências, que sempre serão diferentes das minhas, das de seus pais etc. Ouvi-los sem tratá-los como iguais. Benjamin, por exemplo, vem exercitando suas escolhas dizendo “quero” e “não quero” o tempo todo. Como ele se alimenta muito bem, pode não querer mais comer inhame, por exemplo, depois de tanto tempo comendo e gostando. Ele também vem demonstrando não gostar mais da consistência dos purês. Tudo bem em aceitar a renúncia dele. Agora, esse mesmo neto, às vezes, quer subir de sapatos no sofá, ou ir para o parque num dia de chuva. A expressão do desejo dele e a minha escuta estão garantidas, mas não dá para deixar. Converso e tento mostrar como se sentar, não ficar em pé, sem sujar o nosso sofá e, também, a chuva que cai , impedindo nossa ida ao parque. Eventualmente ele chora, agora com dois anos, e diz “quero isso, quero aquilo”. Não imponho uma verborragia difícil de ser entendida por ele, no afã de convencê-lo. Espero passar a reação mais raivosa e me mantenho

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firme no que acredito. Eu digo a ele , todas as vezes em que há um impasse, que entendo a raiva dele, quando seus desejos não são atendidos. Procuro dizer com palavras e com atitudes, com calma, mas se estou convencida do que estou fazendo naquela circunstância, não arredo meu pé. Acredito que para ele ser uma criança e ser meu neto, como todos os outros que chegarão, eu preciso ocupar o espaço de adulta e de avó, ainda que também esses estejam sempre sendo reconstruídos no passo, no convívio. Assim agi com meus filhos, já que nunca me senti uma coleguinha deles, embora buscasse ouvi-los e respeitá-los como amiga, mas nunca abri mão do que julguei caber a mim, como mãe e responsável, jamais dona de uma única verdade. Meu marido sempre me julgou como extremamente exigente com os filhos. Pode ser. Sempre defendi o sim, quando possível, e o não, quando necessário. Certo ou errado, não fui uma mãe de repetir um milhão de nãos para meus filhos, postura que pretendo manter como avó. Com meu neto, com toda a flexibilidade que o posto de avó traz consigo, tentarei dizer sim, sempre que possível. Mas quando penso com calma, reflito e entendo que algo não seja possível, digo não, e é não. Um só. Não negocio choro por um sim. Muito duro? Rigoroso? Pode ser. Estamos agora morando em outro bairro, mais próximo dos filhos, não para viver a vida deles, nem dos netos, mas para ser possível, dentre outras coisas, ouvir esse e todos os netos que poderão vir, ouvir os filhos nessa nova fase e ouvirmo-nos e tocarmo-nos sem tanta dificuldade de deslocamento no trânsito carioca. Os filhos estão aí, na ativa, para julgar a mãe que tiveram e a avó que se apresenta. O nosso núcleo familiar está amadurecendo. Estamos envelhecendo, por que não?

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negociando com fantasia

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ego-me pensando na morte, isso me assusta. Morrer é simples, mas sair de perto de tanta gente tão amada, de tantas construções bacanas que levam a nossa assinatura como coautor é uma pena. Ser avó é uma delas e, se dependesse do meu desejo, gostaria de ver todos os meus netos nascerem, crescerem, serem pais, avós e eu sempre ali, perto deles. No entanto, tenho que aceitar que há limites para os meus desejos e para a vida do planeta! Quando éramos crianças, coube ao meu pai Fernando e à sua irmã gêmea os ensinamentos sobre a graça da vida. Essa tia, a Tita, era minha madrinha e morou em nossa casa por mais de dez anos. Nossa mãe estava sempre voltada para a nossa alimentação, cuidados e higiene, para a cobrança dos bons mo-

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dos, para os deveres de casa feitos e corretos, para o cumprimento dos horários e de tudo o mais que fosse condizente com o mundo das meninas bem educadas. Somos três filhas. A morte e as limitações da vida, e também as alegrias, chegaram a nós trazidos por eles, pelo pai e pela tia, por meio dos contos de fadas com duendes e bruxas, pelas histórias clássicas, pelos contos mágicos, mitos, lendas e fábulas que contemplavam a inveja, a raiva, o abandono, a traição. Eles também inventavam músicas e histórias para nós. Muitas experiências de encantamento aconteceram nas peças de teatro. Assistíamos, por exemplo, a tudo o que era produzido por Maria Clara Machado. Sim, nosso pai e sua irmã foram os mestres das brincadeiras, da imaginação e da alegria para suas filhas, sobrinhos e depois, para os seus netos. Sei ainda de cor várias histórias musicadas como a Festa no Céu, Dona Baratinha, a história de Pluft, o Fantasminha, O Rapto das Cebolinhas e mais um monte, também por meio dos respectivos livros e, ainda, pela coleção de disquinhos coloridos e muito fascinantes. A Festa no Céu ainda vive dentro de mim com todas as vozes, entonações e sequências. O encanto da vida e também certas imagens das dores infantis e humanas foram apresentadas a nós por eles, como já disse, pelo meu pai e pela minha tia, que sinalizavam para a existência de crianças pobres pelas ruas; eles nos contavam histórias de madrastas crudelíssimas e de lobos malvados. Muitas vezes nós chorávamos com as histórias, nos livros ou no cinema e, nesses momentos, eles se mostravam transtornados. Meu pai não nos podia ver tristes, doentes nem chorando. Minha mãe sabia que o contato com as emoções e com algumas dores era necessário, e o que poderia parecer frieza dela, hoje me soa como sabedoria. A nossa tia Tita era capaz de chorar junto conosco. Vejo, hoje o meu pequeno neto, recém-matriculado na creche, com uma gripe fortíssima e uma pequena pneumonia. Medicado, atendido, e sob controle médico. Divido com a nora

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o plantão em casa já que ele não poderia, nem deveria ir doente para a creche. Febre, dores no corpo, choro e mal estar. Tenho cuidado dele, junto com sua mãe, e às vezes me sinto frágil, chorosa e ameaçada ao vê-lo assim. Sinto em mim uma preocupação enorme e de certo modo exagerada, em relação à gripe dele. Pergunto-me sobre como lidava com as doenças dos meus filhos, quando pequenos. De verdade, saber que meu neto tem, agora, uma pneumonia tem me mobilizado muito, embora cada um dos meus filhos tenha tido pelo menos uma dessa. Ao mesmo tempo, não posso negar que me sinto muito forte e confiante para segurar o bebê para tirar sangue, fazer raio-x e também para fazer as nebulizações que ele mostra detestar. Nessas horas, a nora fraqueja um pouquinho e diz: “Eu não consigo, sogra”. Com relativa tranquilidade, embora com pena, eu ajudo o neto e a nora, seguro-o com firmeza e não me deixo vencer pelo choro dele diante das seringas, aspirações e sons desconhecidos. Sou capaz de segurá-lo para fazer as nebulizações em casa, do começo ao fim, embora ele reaja. Não uso força, apenas escolho alguns livros com imagens grandes e textos pequenos. Ponho as historinhas junto de nós e começo a contar enquanto vou virando as páginas. Sinto-me uma “avó polva”, com milhões de braços e mãos funcionando como tentáculos para dar conta de segurar tudo. Aos poucos, ele se esquece da nebulização e acompanha as historinhas com interesse, tenta segurar cada livro e, quando acaba o soro do nebulizador, a história continua. Eu fui uma “mãe polva”. Será que preciso repetir isso? Penso que talvez a idade e a maturidade tenham fortalecido minha cabeça e amolecido meu coração, até certo ponto. Não gosto quando dizem que “avós são mães com açúcar”, não me enquadro nisso. E também não sou como açúcar. Tudo isso é muito novo para mim. Percebo que vivem dentro de mim, ainda, certas coisas ensinadas pelo meu pai, que conseguia chorar ouvindo uma mú-

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sica, ter uma raiva imensa dos militares no poder, na época da ditadura, ser capaz de nos levar por um ano seguido, todos os sábados, ao zoológico para acompanhar, com fotos e desenhos nossos, a gravidez de uma elefanta e ter a coragem de nos aplicar injeções quando estávamos doentes. E ele repetia: “O que arde, cura, o que aperta, segura”. Será que segura?

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a reengenharia dos espaços

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eu neto vem com relativa frequência à nossa casa, onde tem o seu berço, banheira, carrinho de passeio, alguns brinquedos, roupas e artigos de higiene. Adoramos estar com ele aqui, na nossa casa. Com seu dedinho apontado para o que quer e para o que lhe interessa, acaba fazendo dos adultos, em especial de mim e do avô, intérpretes dos seus desejos. E, de frente para uma estante imensa de livros e de enfeites, até o teto, ele aponta e nós vamos tentando descobrir o que ele queira: carro? Retrato do titio? Vela? E por aí vamos. O dedo de Benjamin apontado para as coisas faz-me lembrar do que um dia aprendi num livro que se referia ao ancinho, ao arado e às ferramentas criadas pelo homem como peças que cor-

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responderiam a continuidades de seus braços, pernas e mãos. Com o dedinho, naquele corpo de bebê que já anda, ele desenha na areia, segura palitos de sorvete que funcionam como lápis ou canetas e vai brincando de riscar papeis, sofás e superfícies. O gesto e o dedo indicador nos ajudam a entender a pré-história do grafismo, da escrita, da representação e do desejo. O dedo nos diz “Quero! Pega pra mim? Aquilo ali!”. Nem tudo para o que ele aponta é adequado para ele brincar, e ou, também, em alguns casos, eu não quero que ele brinque, com pouco mais de um ano de idade, com alguns objetos que são meus, que têm um valor estético ou estimativo. Nessas horas, com frequência, eu o e avô entramos em choque. Ele acha tudo muito mais simples do que eu, não deseja contrariar o neto e, por ele, sempre cederia. Eu não. Penso que ele deva crescer conhecendo o que pode ou não fazer, onde pode ou não mexer, na casa dos avós. É muito curioso observar que Benjamin já tem algumas preferências e certas rotinas na nossa casa. Ele entra andando, se estiver acordado, e, depois dos cumprimentos de praxe, vai para a cozinha onde pega um pequeno pilão de madeira e, com ele, brinca de dar comidinha ao boneco Mestre Cuca, muito antigo na casa, que funciona como segurador da porta contra a força do vento. Dali ele vem para uma porta antiga, de pinho de riga, que liga o corredor à sala. Como ela é de correr, ele puxa e empurra infinitas vezes essa porta. O medo de que ele aperte os dedos, a meu ver, não deve ser inibidor desse movimento. Fico ali perto, de olho, mas o avô, por exemplo, não acha que valha a pena o risco. Esse é um dos modos comuns de o casal de avós entrarem no terreno das dissidências que envolvem o neto, dentro da casa dos avós. Há uma tendência do avô a fazer uma “limpeza” prévia da nossa casa, antecipando-se à chegada do neto, de modo a evitar conflitos e frustrações. Eu não gosto dessa alternativa, nem acho que o papel dos avós seja o de (des)educar seus netos. Mas como pensam os seus pais em relação a isso? Na casa deles e na

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dos outros? Não sei dizer, até ousaria arriscar. Enfim, uma família grande sempre funciona como um cenário onde valem muitas opiniões diferentes. Nesse viés, cabe aos avós agir na mesma linha que os pais seguem em sua casa? Ou eles devem manter as suas próprias convicções e, assim, ajudar o neto a perceber que em espaços diferentes há regras diferentes? Até certo ponto, a chegada de um neto já transforma muito a vida de uma família. Traz uma felicidade imensa, um ar de renovação e de continuidade saudável do ciclo da vida. Interna- mente, querendo ou não, todos redividimos o bolo afetivo em novas bases. A casa dos avós precisa ser segura, sim, mas para que ela seja também gostosa e confortável para o neto e para os avós, precisamos refletir e conversar bastante. Todos são bem-vindos à casa dos avós mas isso não implica que aqui seja a tal “casa da sogra”. Fazer o quê?

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A REENGENHARIA DOS ESPAÇOS


amor e poder: entre a mãe e a filha

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esde que meu pai faleceu, no Natal de 2008, eu e minhas irmãs passamos a trazer a nossa mãe para passar os fins de semana em nossas casas, com um revezamento prazeroso para todos. Essa foi uma alternativa encontrada para atender a várias questões. Uma delas, para não deixá-la sozinha nos dias em que a ajudante dela tem folga. Isso também acontece porque ela não aceita com facilidade a ideia de ter uma acompanhante nos fins de semana, já que “ainda não precisa de babá”, como diz. Um outro ponto forte é a necessidade que temos, suas filhas, de tê-la perto de nós, perto dos netos, embora ela não queria morar com nenhuma de nós. É bom que ela tenha a sua casa, nós concordamos com ela, por enquanto. Como ela adora o bisneto e diz que gostaria de vê-lo

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sempre e, a cada dia ela tem menos oportunidade de encontrá-lo por iniciativa própria, sempre que ele vai estar conosco em nossa casa, nós procuramos que ela também esteja, para promover o famoso “encontro de gerações”. Assim, dentro de uma mesma casa ficam, além do meu neto, a minha mãe (a bisavó), eu (a avó), meu marido (o avô) e nossa filha (a tia), ou seja, o encontro de três gerações numa teia de relações familiares. Helena, minha filha, de 16 anos, diz, nessas ocasiões, que eu não dou nenhuma atenção a ela quando estou junto com o neto. Ela ama o sobrinho mas gosta de ficar com ele seguindo uma bula, com dose e horário. Ela está em plena adolescência e ele, aos dois anos, além de não parar um segundo, gosta de abrir os armários dela, puxar as gavetas e mexer em tudo. Ela acha que “perto dele eu me transformo, só olho para ele e nada mais existe”. A minha mãe, por sua vez, me diz que não sabe porque eu a chamo exatamente quando o neto esta aqui!!! Ela se diz abandonada, sem atenção e, pior, que o bisneto não dá a menor bola para ela: “Ele só quer saber de correr e de mexer nas coisas, não quer saber de ficar comigo. Não fica um segundo no meu colo”. É verdade, ele agora é um corpo em ação permanente. Achando ainda pouca essa confusão, a minha mãe diz que eu não dou atenção nem para o meu marido, diante da presença do neto em nossa casa. É bastante complicado! Às vezes, tendo a acreditar no que diz o senso comum ao referir-se à velhice como uma fase da vida muito semelhante, em alguns pontos, à infância. Idosos cobram muita atenção da família para si, gostam de ter suas demandas atendidas rapidamente e têm uma certa irritação com tudo o que pode roubar-lhes o destaque e os cuidados. E, como o lugar dos idosos é mesmo dentro da família, junto dos filhos, minha mãe sempre está perto de nós e tem uma relativa “imunidade parlamentar” para se expressar como é, como pensa e sente. Interessante e desafiador é tentar dialogar nesse cenário que tem o neto como o centro, junto com minha filha, de um lado, e a minha mãe, de outro. Ambas dizem

AMOR E PODER: ENTRE A MÃE E A FILHA

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não ter nenhum ciúme de mim, nem do pequenino. Seria eu mesma a “pessoa” disputada por elas? Acho que não. Explico que a nossa casa não tem redes de proteção, que criança pequena que já anda mexe em tudo, corre, é curiosa, ágil e que exige atenção integral dos adultos que estão com ela. Ambas concordam com os meus argumentos implacáveis, mas perguntam por que ele não vem com uma babá, para ficar brincando lá embaixo? Tento explicar que o gostoso, para os avós, é ficar com ele perto de nós, curtindo-o e, também, elas duas. Chega a ser engraçado. Minha mãe diz que tudo isso é uma invenção da minha cabeça e da do meu marido, Celso. Seria, então, o Benjamin a “pessoa” disputada por elas? Acho também que não. Eu talvez pudesse supor que um dia, em alguma circunstância, o meu neto viesse a expressar algum tipo de ciúme em relação a mim ou a alguém, mas não a elas. Não creio que seja ciúme de mim nem do bebezinho a quem elas tanto amam. Creio que seja a configuração do cenário familiar e que seu foco não esteja nelas, mas no Benjamin. Antes mesmo que eu tivesse descoberto uma saída para esse tipo de conflito, a situação em si começou a se transformar. A cada dia que passa as duas estão muito mais tranquilas e igualmente enamoradas pelo Benjamin, que interage mais e melhor. Aprendi com o meu pai, também, que há certas questões que o tempo cuida de resolver. Ele dizia assim: “Às vezes a gente precisa deixar uma coisa ou outra no fundo da gaveta, fermentando. De repente, percebemos que elas se resolveram por si mesmas”. Acho que foi isso.

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o baú de histórias, um acervo secreto

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unca fui muito igual à maioria das meninas e mulheres da minha idade e do meu entorno social. Ainda hoje eu trabalho diariamente, na UERJ, na PCRJ e também dentro de casa; tenho uma vida familiar e profissional muito ativa e não penso em abrir mão disso tão cedo. Eu começo a desejar trabalhar menos, isso sim, talvez em regime de meio expediente e, também, nunca pretendi ser babá nem assumir junto aos meus netos as responsabilidades que tive como mãe. Percebo, por exemplo, que minhas amigas acham a maior graça quando digo que tenho uma caixa de ferramentas e uma máquina de furar, objetos poucos comuns à maioria das mulheres. Aliás, quero dividir essa originalidade com minhas duas irmãs que, com o eu, são hábeis nas ferramentas, têm as suas pró-

O BAÚ DE HISTÓRIAS, UM ACERVO SECRETO

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prias e, também como eu, têm autonomia para consertar muita coisa dentro de suas casas. Não sou uma avó 100% disponível para o neto, embora quando esteja com ele procure ser 100% dele. Sou mesmo muito atarefada, tem o tal pilates que eu faço, a ginástica que preciso fazer, alem do trabalho e da administração compartilhada do lar. É tudo verdade, mas o meu coração resvala e me surpreendo tentando criar intervalos dentro dessa rotina diária, turbulenta e corrida, para eu encontrar com o meu neto e também com seus pais. A deliciosa chegada dessa criança trouxe o desafio de encontrarmos, todos nós, novos tempos e lugares, um espaço de relações outras, onde eu, que sou a avó, tenho a expectativa de ser simplesmente única e diferenciada em sua vida. É muito pretensioso, presunçoso e até me envergonho de dizer, mas sinto assim. É muito forte, sincero e sob controle. Será? Com algum constrangimento, revelo que venho construindo certos espaços-tempos, segredos e afetos onde só nós dois poderíamos transitar, incluir, aumentar ou diminuir, transformar. Eu não quero ser uma avó qualquer, não porque me sinta mais importante do que os outros, mas apenas porque disso depende grande parte da minha felicidade, da minha identidade nessa nova fase. Nesse processo, correndo o risco de mais uma vez ser pretensiosa, decidi montar para todos os meus netos um baú de histórias e de coisas que julgo interessantes para crianças. Para esse baú comecei a selecionar seu conteúdo, com muito apreço e cuidado. Num canto escondido do meu armário comecei a juntar fotos, livros que foram dos meus filhos, vídeos em que meus filhos ainda pequenos aparecem, novos livros de literatura infantil, manuais de fadas e de bruxas, alguns fantoches, um binóculo, uma lanterna pequena. Esse pequeno acervo começa a tomar corpo e a exigir um espaço maior e, agora, já ocupa toda a parte de baixo da minha estante. Na hora certa (mais pretensão), esse baú de histórias será apresentado ao público. Ele tem como missão fun-

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cionar como um tapete mágico, um acervo encantado meu e dele, da avó com o neto, com entrada garantida, até agora, apenas para a Helena, minha filha e tia de Benjamin, e que vem participando ativamente da sua montagem e compartilhando o “olho clínico” para a inserção de novas coisas. Celso, meu marido, está amando ser avô e já deixou claro não ter nem um milésimo das minhas questões como avó. O fato de termos ainda uma filha jovem parece ser a garantia de um lugar muito sólido, mais jovial também e inquestionável como pai, o que, até o bebê nascer, tornava o espaço do avô ainda longínquo, distante. No entanto, com o nascimento do neto, “caiu a ficha”. Ele foi se aproximando aos poucos, pedindo para pegá-lo no colo, puxando o carrinho do bebê para perto dele enquanto via televisão. Muitas vezes, enquanto o nosso neto dormia, eu encontrava o Celso sentado à beira do berço, olhando para a paz do bebê adormecido, com apenas uma das mãos sobre uma perninha dele, por exemplo. Ali ele ficava inebriado, por longo tempo namorando a criança que dormia, e não é raro que ele se assustasse com a minha aproximação, tamanha sua concentração. O avô adora mostrar gatinhos e cachorros para o nosso neto, cantar para ele e passear de carrinho. Parece haver alguma timidez afetiva no avô, o que torna a sua aproximação sempre mais cautelosa, menos esparramada que a minha. Talvez ele só tenha percebido a sua paixão ao notar que ele já interagia, ainda que com poucas palavras, com sorrisos e gestos indicando gostar de fazer algumas coisas, também, só com ele, como deitar-se no sofá, acolchoando-se na barriga gorducha do vovô para ouvir músicas. O que fazemos juntos, eu e Bem, desde que ele começou a andar, é dar café da manhã aos animais que vivem perto de nós, no condomínio onde moramos. Assim, descemos com um potinho de farelo de pão para os as carpas do lago do prédio. Depois, seguimos na caça aos gatos das redondezas. Descobrimos que gatos detestam miolo de pão molhado no leite, pelo menos os

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daqui. Precisei providenciar ração de gatos, sem ter ou gostar de aproximação com os felinos, para que o neto visse os gatos comendo. Depois vamos procurar passarinhos em geral. Aqui há muitos, de tamanhos e com cantos variados. Desse modo, pode parecer curioso mas ouço meu neto falar “peixe” como uma palavra mágica para indicar que acordou. Em, pé no berço, ele diz algo assim: “bobó pexe“ e, depois, fala “miau” e “cocó”. Eu sei perfeitamente o que ele quer. Levamos o nosso bom dia aos bichos e depois brincamos no parquinho. Acervo secreto e programação lúdica que envolvem avó e neto. Não temos culpa se o mundo dorme nos fins de semana enquanto brincamos, já no café da manhã.

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a avó também é sogra

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á vários mitos e frases feitas que fazem parte do senso comum e que se mantêm, ao longo do tempo, polarizando os papéis de avós e de sogras. Às avós cabe o título de “mães com açúcar” e, às sogras, o que há de pior: são como cobras, traiçoeiras; via de regra são mulheres possessivas e ciumentas de seus filhos e, para sublinhar com bom humor isso tudo, tem a máxima de que também elas, as sogras, “tardam, mas não falham”, como se houvesse uma suposta astúcia ou ardil comum a todas. Esse senso comum é totalmente rejeitado por mim, é equivocado e chega a ser crudelíssimo com certas avós. Dói no coração ouvir coisas assim: “Filho de filha, neto é. Filho de filho, será que é?”, para sacramentar a crença perversa de que as mães correm o risco de perder o amor e a

A AVÓ TAMBÉM É SOGRA

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convivência com os próprios filhos para as suas mulheres. E, para completar, segue a ameaça de que, aos poucos, eles adotariam para si apenas a família de suas amadas. Crenças antigas, ainda vivas, mas que não são verdades universais que se repetem. Estamos aí, vivendo outros modelos de famílias que desafiam o senso comum em nome de amores verdadeiros. Nenhuma dessas ameaças, até hoje, sequer tangenciou a nossa família, nem a mim como sogra. Jamais senti ciúmes das mulheres amadas e escolhidas pelos meus filhos que, aliás, são todas sensíveis e exigentes, na medida. Minhas noras são mulheres inteiras: autônomas, independentes e muito afetuosas. Mulheres felizes. E, agora, uma delas se diferencia das demais pelo fato de ter se tornado mãe, junto com o nosso filho Artur, o pai. Até o nascimento do primeiro neto, nos papéis de sogra e noras, fomos amigas e muito próximas, mas não havia um bebezinho para nos trazer, mais e mais, nem tão rapidamente, para muito mais perto. Irmãos, agora tios, primos e amigos todos cercam o bebê e o casal de amor. E, embora rejeite esses lugares sociais antigos, gelados, cruéis e preestabelecidos, destinados às sogras e às avós, essa proximidade da “avó-sogra” com o casal e com o neto vem exigir, indiscutivelmente, uma medida saudável e prazerosa para todos. Lembro da frase que aprendi quando criança – “O pouco enobrece, o muito aborrece”. Embora sem bula nem fórmula, não pode haver impulsos do coração que justifiquem uma quebra de respeito e de ética amorosa entre pais e filhos, entre sogras e noras, entre avós e netos. Como descobrir essa medida? Diante de um amor intenso e do desejo permanente de estar com o neto e com o casal, é preciso ter sensibilidade e cuidado para definir os espaços e os intervalos de presença, e de ausência, de modo a garantir apoio e amor sem invadir. Temos procurado ser avós presentes e disponíveis afetivamente para eles, mas tudo é novo para nós todos. Mais uma vez,

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encontramo-nos todos nessa ciranda de aprendizagens coletivas. O desafio consiste em aprender a compartilhar tempos e espaços, estar disponível afetivamente para ajudá-los sem desabilitar o novo casal. Eles precisam se apoiar na sensibilidade e nas escolhas deles para crescerem como pai e mãe. E nós, como avós. Um desafio tremendo para a mãe, a sogra e a avó que habitam em mim.

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A AVÓ TAMBÉM É SOGRA


as armadilhas do amor: de avó à bilheteira do metrô 192

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possível que muitas amigas e amigos já tenham passado por isso sem tanta turbulência. Aliás, talvez eles não tenham tido tanta vontade de jogar luz sobre essa experiência como eu tenho, para explorá-la ao máximo e aprender com ela. Não há, em mim, qualquer resistência vinculada ao evidente binômio avós e velhice. Posso questionar se é o fato de a chegada de um neto ser um marcador incondicional à entrada na vida idosa, na velhice, o que roubaria desses avós seu viço, sua vida e juventude. Não temo envelhecer, embora deseje me manter lúcida, feliz e saudável para trabalhar, para dançar, para cozinhar, para pesquisar, para tantas coisas e também para ser avó. Tenho um imenso medo de morrer cedo, isso sim. Acho, no momento, que talvez eu resista a uma configuração que se aproxime da “morte

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da mãe” que há em mim, papel que me sustentou até pouco tempo atrás como mulher, no âmbito pessoal e também profissional, para tornar possível ser avó. Será? Se há uma coisa que eu evito fazer com filhos, com amigos, com marido são as famosas cobranças. Sei que, mesmo sem perceber, acabamos fazendo algumas. Eu detesto ser cobrada, de qualquer coisa, por qualquer pessoa. E quem não gosta de cobrança, não pode ser cobradora. Bem, eu não deveria ser nunca, mas, certo dia, peguei-me nesse lugar horroroso que tanto rejeito. Com quem? Pois é, foi exatamente com ela, a amada nora. Ela foi delicada e doce, ética e me ajudou a ver o que eu não vi. A cena foi a seguinte: fim do antibiótico, neto feliz e saudável, recomeça uma febre alta. Apreensão, a febre voltou no mesmo dia em que terminou o antibiótico!?! Entramos na pilha, a nora me ligou, fomos ao médico, fizemos os exames no neto, deixei-os em casa e fui trabalhar. Os dois dias que se seguiram foram ocupados com uma preocupação legítima de avó, quer dizer, talvez exagerada, em que dei telefonemas em seu nome, mais de cinco por dia, para saber do neto: “Febre? Deu remédio? Ligou para a médica? E as bolinhas da homeopatia? Ah, e o pó em jejum?”. Liguei, liguei e liguei. Ao final do segundo dia eu percebi o exagero da minha ansiedade, para além do amor, devendo estar atrapalhando muito mais do que ajudando. Puxei o freio de mão, parei e me senti extremamente envergonhada. Muito envergonhada. Não sabia como me desculpar. Certamente, telefonando mais uma vez, não. Não. Com muita vergonha, fui dormir chorosa, sem jeito e constrangida. Não sei se já disse que meu filho Artur trabalha em São Paulo de terça a sexta-feira, todas as semanas. Eu e meu marido, por isso, ficamos sempre atentos às demandas da Camila e do Benjamin. No dia seguinte, no meio da manhã, a minha nora me liga e diz: “Sogra, você não me ligou? Senti sua falta. O que houve? Me sinto

AS ARMADILHAS DO AMOR: DE AVÓ À BILHETEIRA DO METRÔ

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segura com você perto de mim, me ajudando.” Nossa, respirei aliviada, disse o quanto me fez bem a ligação dela e pedi desculpas pela atitude ansiosa. Só por isso eu não havia ligado na noite anterior e disse a ela que precisei parar porque percebei que passei de avó e sogra cuidadosa à bilheteira do metrô. “Bilheteira do metrô, por que isso, sogra?”. Eu respondi: “Pensa bem, o que ela faz? Cobrança! Só faz cobrança. Não quero isso para mim, nem para você. Desculpe, não faço mais”. Docemente, ela me disse: “Te amo, sogra!”. Respiramos aliviadas e rimos um pouco, para desopilar. Meu neto logo se curou. Eu ainda preciso de algumas doses de cuidados para a minha cura, com todo respeito aos funcionários do metrô.

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um cenário mágico de encontro

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velho e bom Guarany, em Andrade Costa, foi um dos cenários da nossa infância. Lá eu brincava com minha amiga, com seus irmãos e primos, fazíamos cavalgadas noturnas, cantávamos e dançávamos. Depois de mim, meus filhos fizeram paragem também por lá, por essas coincidências que não se pode explicar. Amigos de futebol e do water polo eram filhos de primos desses amigos e tinham, também, sua fazenda por lá. E, assim, Andrade Costa deixou de ser parte só da história da minha vida e passou a ser parte da deles também. O ciclo da vida se faz e gira, mais uma vez, apontando para as nossas raízes e histórias de infância. Estávamos todos juntos lá no Guarany: Benjamin e seus pais, Tom e família e, também, nós, seus avós. Não poderia haver nada me-

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lhor. Os tios dos nossos netos, as crianças da casa, estavam representados pela Helena, pelo lado do Benjamin, e pelo Lourenço, do lado do Tom. Tom e Ben tinham todo o tempo do mundo para brincar juntos, para se curtirem e se divertirem com o sol debaixo de um céu azul que emoldurava aquele fim de semana de julho. A festa de São João estava sendo preparada com trabalho intenso e coletivo, mais uma vez. Era lindo ver minha filha, agora com filhos e sobrinhos desses amigos, fazendo o que um dia fizemos, com as idades deles, organizando a barraca de doces para a festa. Durante o dia, Benjamin e Tom brincavam junto aos cavalos, riam ao ver um bezerro fujão que corria desvairado para não entrar na baia, curtiam os “cocós”: as galinhas da Angola, o galo altivo que cantava a qualquer hora do dia e as galinhas cacarejadeiras comuns. E corriam. A diversão maior, para eles, estava em correr na grama, de um lado para outro, esbanjando saúde, disposição e alegria. Correr. Correr. Não faltou nem mesmo uma grande surpresa, no domingo, que foi a chegada de Ariane e Cauby, bode e cabra, trazidos pelo vovó Zé Inácio para puxar a carrocinha que fora usada pelo tio Lourenço, quando ele era pequenino. Tudo vinha enriquecer o cenário de alegria e de diversão dos nossos meninos, o Ben com um ano e seis meses e o Tom com um ano e oito meses. Não imaginávamos a perda irreparável do bode Cauby, que aconteceria poucos meses depois. Hoje, em seu lugar está o Diamante, e o Zé Inácio é quem conta essa história melhor do que eu. Foi também nesse dia que nós, os avós, retomamos um pacto feito assim que nossos netos nasceram: o de escrever sobre eles até que estivessem podendo se expressar oralmente, com palavras, falando livremente. Foi assim que combinamos. E essa comunicação entre Tom e Ben foi posta à prova, nesse dia, ainda que com poucas palavras. A convivência mais íntima, dormindo e compartilhando espaços, atenções e objetos (brinquedos) acaba expondo algumas questões que são resolvidas por eles de outras

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maneiras, menos pela fala ou pelos acordos verbais. Os dois disputaram quase tudo e se estressaram por quase tudo, o que é altamente previsível, interessante e até mesmo engraçado para os que estão em volta. Assim, eles disputavam sempre a mesma cadeirinha, o brinquedo e a bola, ainda que houvesse três, por ali, disponíveis, como fazem todas as crianças. Mas, curioso era observar como o poder de um deles, altamente ameaçador em relação ao outro, era alternado e invertido em segundos. A bola solta no chão era chutada por um deles. O segundo corria, não chutava para o amigo, pegava a bola com as mãos e saía correndo. A graça era correr com o outro indo atrás, disputando de todo modo a posse do objeto do desejo de ambos. O que estava com a bola, de repente, largava-a no chão por algo que chamasse sua atenção, como o bezerro fujão que corria por ali. Pronto, a bola estava solta no chão. Bastava: o outro pegava a tal bola e, desta vez, disparava na frente do amigo, que corria atrás para tentar pegá-la. Curioso, o poder e o sucesso estavam com quem carregasse a bola, que se alternava entre as mãos de um e de outro. Tudo indicava que a disputa em si e a corrida atrás do outro fosse uma atividade mais gostosa do que jogar bola. Só de estarem os dois netos ali, juntos, brincando naquele lugar com cheiro de infância, de fogão de lenha, pisando naquele chão amigo, cercados de amor, já alegrava o coração de seus avós, tanto da avó que escreve este livro, quanto do amigo coautor, Zé Inácio. Cenário mágico, momento cheio de sinergia. Não sabemos como os netos Tom e Benjamin vão se relacionar quando crescerem mais. Eles nem desconfiam, ainda, como são importantes para nós também quando legitimam os amigos de infância de seus avós e, mais ainda, quando se apropriam de espaços de nossa infância, cenários de vida feliz que permanecem presentes.

UM CENÁRIO MÁGICO DE ENCONTRO

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tomar conta é uma coisa. brincar é outra!

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avó e o avô, que tanto curtem uma agenda livre, perceberam-se, já desde a noite de sexta-feira, suavemente depressivos e com uma imensa saudade do neto. O segundo passo, constatado o sentimento, foi o telefonema descomprometido para filho e nora, apenas para saber da programação deles com a criança no fim de semana. Nada foi agendado, apenas levantadas possibilidades. Nesse mesmo dia, sábado, a minha mãe, a bisavó, que iria para a casa da outra filha, minha irmã mais velha, acabou vindo para a nossa. O meu filho Duda e a nora Joanna, de malas prontas para a Patagônia, vieram almoçar para despedirem-se. Na praia, de onde saíram Duda e Joanna para a nossa casa, estavam Benjamin e Artur que, na carona do tio Duda, vieram junto para a alegria ficar completa. Mais tarde

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chegou a Camila, mãe do meu neto. Casa cheia. Alegria. Minha mãe, a bisavó, curtiu imensamente a surpresa de estar com o bisneto, não sem imediatamente recuperar antigas preocupações e modelos que ela manteve por toda sua vida: “Há comida para todos? Como você vai fazer? Quer que eu ajude em alguma coisa? A cama da Helena ainda não está feita! Os banheiros, hoje, ainda não foram lavados”, e por aí seguiu com uma série de supostos problemas que fazem parte do universo da vida dela, muito mais do que da minha. Eu queria curti-los, aproveitar; ela se preocupava com a casa que precisaria estar impecável para recebê-los. Nesse dia, configurou-se algo novo em nossa família. A diferença de idade que temos, eu e minha mãe, em torno de trinta anos, somada ao fato de eu ser a avó e do neto dela ser o pai do Benjamin, seu bisneto, colaboraram para esse encontro geracional trazer à tona vários pequenos e novos conflitos. A preocupação inicial de minha mãe com o bom andamento da casa, da minha casa, deu lugar a uma tutoria, digamos assim, de como eu deveria ser avó. Assim, ela continuava se ocupando menos de curtir, até de usufruir da convivência pouco usual com todos os seus netos e, principalmente, com o bisneto, em nome de repetir padrões de controle, de ordenações e de boas maneiras. Lembrei-me, mais uma vez, do lugar da minha mãe na nossa infância, sempre muito cuidadora, protetora e muito afetuosa, mas pouco lúdica. O nosso pai, sim, esse fazia brinquedo com qualquer material, nos fazia dançar com Elvis Presley e nos envolvia de simbolismos fascinantes que nos faziam sonhar. Ele alimentava o nosso imaginário no dia a dia. Isso era delicioso. Minha mãe não piscava um olho, cuidando e “tomando conta”, o que era infinitamente menos prazeroso. Eu e ela juntas, em torno de um menino de quase dois anos, animado e cheio de vida, que canta, dança e que ensaia juntar palavras significativas em pequenas frases – “Doeu dedo”, “Bateu coco”, “Mais banana”

TOMAR CONTA É UMA COISA. BRINCAR É OUTRA!

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etc. Ela me dizendo como eu deveria agir com o Benjamin: “Esse menino vai cair”, ao vê-lo tentando subir num pequeno banco; “Uma banana inteira é muito para ele”, enquanto ele come duas de lanche; “Ele pode deixar essa bola cair lá embaixo”, ao vê-lo chutar e gritar gol; “Ele toma banho no box, em pé? Não vai escorregar?”. E concluiu todas as colocações do dia, que foram inúmeras, dizendo: “Estivesse eu mais forte, mais segura das pernas, iria tomar conta dele, dar a mão, passear lá embaixo com ele, colocá-lo no meu colo”. Todas as vezes eu retruquei: “Mãe, ele não precisa que tomem conta dele, no colo. O que ele mais gosta é de brincar, de correr, de jogar bola, de se movimentar”. E ela reafirmava seu pensamento, incapacitando-se: “Eu não sei mais ficar sozinha com uma criança, eu tenho medo, eu não consigo, eu posso cair com ele”. Na verdade, ela nunca sentou no chão para brincar com suas filhas e, agora, alguns impedimentos físicos gerados pela idade poderiam estar servindo para justificar uma impossibilidade de outra ordem, difícil de ela perceber. Enfim, eu evito ser grosseira ou áspera com ela porque a amo, além de achar desnecessário confrontá-la, usando as minhas verdades, aos 80 e tantos anos de vida dela. Mas foi muito difícil para mim, incomodou-me ser confrontada com a avó que ela achava que eu deveria ser, ainda mais diante do meu respeito pela avó e bisavó que ela é. Para não haver impasses explícitos, estive o tempo todo por perto, ouvi as suas justificativas e respeitei seus limites. Eis que eu resolvi ir tomar banho e deixei Benjamin com o pai, o Artur, que até então lia o jornal e esticava-se no sofá. Depois de algum tempo, enquanto eu me vestia, ouvi, lá do meu quarto, um apito e algumas palavras de ordem como gol, falta, estátua e, de novo, o apito. Sim, era um apito de plástico que o Benjamin adora e que minha mãe estava usando. Chego na sala e vejo minha mãe entre duas cadeiras, semi abaixada entre as “balizas do gol”, jogando futebol com o bisneto. Artur, meu filho, sem escutar as lamúrias

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da avó, sem aceitar seus supostos limites, havia pedido a ela: “Vó, quero tirar um cochilo, brinca com ele para mim?”. E ela brincou, sem pestanejar. Jogou futebol com ele. Queríamos almoçar, já eram quase 16h e ela ali, há mais de uma hora, de goleira, ainda brincando “de driblinha” com o bisneto, sem abandonar o tal apito. E eu calada, feliz e muito surpresa. Que renovação. Pensei muito na nossa relação como mãe e filha, nas impossibilidades que criamos com uma linguagem que acaba dando corpo e textura a elas, embora nem sempre essas impossibilidades correspondam, linearmente, ao que as palavras dizem. O meu medo, nessa circunstância, passou a ser com relação a ela, de que ela sentisse dores, de que ela não se equilibrasse adequadamente por já ter tomado um ou dois tombos na velhice. Não toquei no assunto com ela, apenas observei, refleti e sorri, internamente, ao perceber como ela, e eu, e todo mundo pode dar maior ou menor espaço às infinitas possibilidade que temos de quebrar padrões, de mudar hábitos, de apostar na nossa potência. Não na impotência, nem na prepotência. Só na potencia de cada um. E foi o Celso, o avô de menos palavras e de muito afeto, quem matou a charada. Sem qualquer cerimônia ou reflexão mais conceitual, com delicadeza disse a ela: “Gostei de ver, batendo um bolão com o Benjamin”, ao que ela respondeu: “Ah, Artur pediu para eu brincar com ele para ele dormir um pouquinho e eu brinquei. Só isso, não tomei conta e brinquei mesmo”. Quanto tempo podemos ter perdido, pelo menos nós duas, com tanto discurso vazio , embora ético e respeitoso, para que ela viesse a se sentir apta e liberta para brincar? Ser livre para brincar, só isso. Bastou um simples pedido do neto e tudo aconteceu. Brincar é muito mais gostoso e tão necessário quanto tomar conta.

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rasguei a minha fantasia (o fim da imortalidade)

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então, por que resistir? O que temo de verdade? Não sei dizer, ainda. Não resisto a ser avó, estou amando a nova etapa, mas percebo que se anuncia um ciclo novo, virtuoso, mas novo, em que ainda tateio o meu lugar, nem tanto o de avó, mas o meu lugar no mundo. Acho que já encontrei uma trilha feliz para viver a avó, já sei que há mil modos de ser avó, sem que eu deseje estabelecer nenhuma hierarquia entre eles. Talvez eu venha mesmo a ser uma avó com pontos em comum com outras avós, e com outros bem distintos. Talvez eu venha a ser uma avó diferente com cada um dos netos que eu venha a ter. É possível que consista nisso a riqueza e a profundidade desse novo posto. Não sei se isso vale para todas as mulheres, mas algo me exigiu descobrir e construir um novo lugar, na família, no mundo dos

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avós – até então eu era mãe e hoje sou, também, avó. Agora que eu já me sinto avó, com todas as letras, meu neto me reconhece como tal e me chama de vovó de um jeito delicioso, vislumbro outras nuances, nem sempre agradáveis em minha vida. Parece que se eu olhar para longe eu já tenho como ver a linha do horizonte, coisa impossível quando eu era mais jovem. Sempre me orgulhei, inclusive, de ser “um cachorro vira-latas” no quesito saúde, como brincava com meu médico. Hoje, começa a se distanciar a imagem daquela que pode comer de tudo, a qualquer hora, que nada faz mal. Sem diabetes, sem problemas de vesícula, sem colares no pescoço para aliviar as dores, sem hipertensão e com muita agilidade. Citei aqui tudo o que ouço de amigas como sendo mazelas comuns dos que rondam os “sessentanos”, algo menos, algo mais. Sim, descobri que tenho artrose, o que me provoca algumas dores matinais nas mãos, que aos poucos, com movimento, desaparecem, e também com um remedinho por dia, natureba, à base de abacate. Mas não é só isso. Já tomo um para a tireóide, também um cálcio e um Ômega 3, todos incluídos no último ano. Puxa vida, já são quatro por dia! E todos os dias! Lido mal, muito mal, com ter que levar para todos os lugares e tomar todos os dias uma série de bolotinhas coloridas! Começo a entender por que os idosos têm algumas prerrogativas de descontos, assentos, vagas em estacionamentos. Talvez seja para que possam andar com um carrinho de rodinhas com remédios. Isso porque eu sou uma daquelas que escuta do seu médico, depois de tantos exames clínicos, de imagem, os de suar na esteira, e com o holter de pendurar no pescoço, algo assim: “Você está ótima”. Como ótima? Com um bando de remedinhos diários! Chatice. Ótima mas com remédios, vai entender. Bem, qual é a relação do meu neto e do posto de avó com tudo isso? Pois é, tenho a experiência feliz de ser avó, de envelhecer mais ou menos bem, mas começo a sentir que existe um fim, um limite para a minha vida. E temo por isso. Em alguns momentos,

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penso que falta muito ainda, caso eu acompanhe a média matemática de longevidade e, em outros, acho que a finitude bate à minha porta. A artrose diagnosticada ainda ecoa na minha cabeça; ela vale como uma entrada confirmada no mundo dos remedinhos e dos idosos. O sentimento interno oscila. Mas quando ele dói, fere-me como o anúncio do fim da fantasia de imortalidade que me acompanhou muito nesta vida, e que hoje já não é tão forte e, quem sabe, agoniza como fantasia para dar lugar a uma outra pessoa que ainda não conheço. Não tenho desânimo, não tenho mau humor, não tenho falta de energia para continuar fazendo o que desejo, o que gosto e o que preciso, mas vejo uma linha do horizonte lá no fim, no nascer e no por do sol que eu sempre apreciei, onde ela não estava, onde não havia fim nem limite, aos meus olhos. Não estou doente, não tenho medo da hora da morte. Opa, mentira, tenho um imenso medo de morrer. Não temo o momento da hora da morte, nem o que pode vir depois. Também não acho que essa hora esteja próxima, não tenho qualquer pressentimento ruim, apenas começo a pensar que hoje eu e minhas irmãs somos “as quase-idosas da vez”, aquelas que, aos poucos, vão ocupando o lugar de pilar da família e dos mais novos: filhos, netos, sobrinhos. Estamos caminhando para ocupar o lugar da tia Alice, da tia Marina e da minha mãe, hoje. O que é, ao mesmo tempo, lindo. Outro dia encontrei uma amiga que aos 55 anos deixou de pintar os cabelos e me disse: “Me libertei daquela chatice, deixei os grisalhos chegarem”. Pensei muito nisso, como uma libertação verdadeira, com alguma vontade de ter coragem de imitá-la mas, em seguida, morri de medo. A fantasia de não pintar mais meus cabelos equivalia à compra da passagem sem volta para a velhice que temo, aquela com decrepitude e solidão. Na mesma hora saí de casa e fui ao salão. Pintei meus cabelos.

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Se o neto me trouxe rejuvenescimento, renovação e alegria, trouxe também com ele a força do ciclo da vida, onde uns chegam e outros se vão. A vida é voraz e por isso cabe aproveitar tudo, então, até o caroço. Não fico nostálgica, raivosa nem rebelde, apenas constato. Às vezes, entristeço um pouco. Afinal de contas, já inclui o pilates na minha agenda, a volta na Lagoa três ou quatro vezes por semana, os remedinhos diários multicoloridos. Convivem comigo a tal artrose e a ideia ambígua, difusa, de que estou muito bem, embora precise dos tais remedinhos. Essa expressão me remete à alegria de um colecionador de carros que encontra um Aero Willys, ou um Corcel em bom estado, embora antigos. Os adjetivos que antes circulavam entre bonita, inteligente, interessante, alegre, alto astral, agora dão lugar a um advérbio de modo – Você está muito bem! Como se fora: fica com isso, querida, é o que temos para o momento. Enfim, tenho em mim um sentimento da rapidez dessa vida, embora hoje com menos ansiedade e mais paz de espírito, e ainda cheia de sonhos e desejos de fazer tanta coisa. E vou fazer. Quero ter muitos netos – é só um desejo –, quero vê-los crescer, quero ir ainda muito ao cinema – diversão que adoro –, ir à praia à tarde, quero estar entre amigos, com meus filhos, irmãs, cunhados e sobrinhos, também com os amigos deles. Quero e preciso estar entre eles e junto desse neto que chegou como um tipo novo de cupido, que fisga avós com uma flecha de luz encantada, com um amor imenso, definitivo, que convida à vida, mais e mais. Mas a linha do horizonte está ali, e eu já a vejo.

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o corpo é a casa da criança

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enho pensado muito sobre os corpos, suas configurações, movimentos e possibilidades, maiores e menores, mais ou menos ricas, para o entrelaçamento com o outro, para o contato com o outro. Para um tipo de contato que alimenta, que revigora, indispensável para que crianças e adultos se sintam queridos, protegidos, acolhidos. Refiro-me àquele tipo de toque e de contato que diz com gestos e com todo o corpo: eu estou aqui e você está aí, nós dois estamos aqui, um para o outro. Acompanho há mais de 30 anos a vida de diferentes crianças, sempre em instituições de educação infantil, sejam creches ou pré-escolas. Nesses encontros, eu percebi que havia muitos totalmente disponíveis ao a outro, à presença e ao toque do outro,

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fosse esse outro uma criança, ou um adulto; também convivi com outros que chamei inicialmente de “parcialmente disponíveis” para o outro, alguns dias mais, outros menos; e, também é verdade, tive a oportunidade de conhecer uma minoria que não se dá ao outro, não acolhe e nem se deixa acolher, tocar então nem pensar. Esses me preocuparam e ainda me preocupam. Esse meu convívio com meninos e meninas de variadas idades, de todas as classes sociais, em instituições públicas ou particulares, permitiu-me levantar certas hipóteses que também precisam ser avaliadas, no caminho de conhecer e de respeitar cada uma do seu jeito, como elas são e pronto. Em paralelo a esse percurso de trabalho, de aprendizagem e de crescimento pessoal, criei quatro filhos muito diferentes entre si e, agora, convivo de modo muito próximo com meu neto. Percebo que ele, em geral, se mostra muito aberto ao contato com o outro, sempre curioso para saber o que está à volta dele, o que tem dentro das coisas, o que cada um está comendo, e por aí vai. Ele se aproxima do que lhe interessa conhecer sempre com olhos e mãos, já mexendo, o que eu chamo de olhar com o corpo todo. Ele dá abraços, beijos deliciosos e também aceita bons abraços. Interage, puxa assunto e poderia ser tratado como um menino simpático. Mas esse pode ser apenas meu olhar de avó. Será que assim o vê a sua professora? Os vizinhos do prédio? Será que ele tem uma única forma de ser e de agir em todas as situações? Acho que não. Com o tempo, também, suas reações vão mudando e, cada vez menos previsíveis, mostram que ele já expressa seus desejos, o que lhe agrada ou não, e que suas escolhas não são estáticas, variam. Por exemplo, é comum estarmos os dois na maior galhofa, esperando o elevador de onde moro. Quando ele para e entramos, podem estar ali crianças ou adultos, e ele tem reações muito surpreendentes. Eventualmente o adulto pergunta: “Ei, vai passear com a vovó? O que é isso na sua mão?”. As crianças maiores também gostam de perguntar certas coisas:

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“Você é flamengo? Que brinquedo é esse na sua mão?”. Nem sempre Benjamin responde, ou sorri. Já assisti a esse neto de quase dois anos, a quem julgo lindo e simpático, ceder a sua bola por instantes para a alguém segurar, ver e brincar. Mas também já o vi não dar um único sorriso, abaixar a cabeça e conter-se, retrair-se como quem diz: “Eu lhe conheço? Quem é você para me fazer tantas perguntas?”. E até, talvez, um “Não se meta na brincadeira que estou fazendo com a minha avó, querendo se fazer passar por alguém que priva da minha intimidade!”. Não posso garantir o que passa pela cabeça nem pelo coração dele, mas posso criar hipóteses, mais uma vez, como fazem os adultos quando desperdiçam seu tempo e pensamentos julgando suas crianças. Por que buscamos o tempo todo enquadrá-los em tipos de comportamentos, reações previsíveis a partir de lentes, réguas e bússolas do mundo adulto? Bem, às vezes eu me pego repetindo certas bobagens. É fato que hoje, na era da centralidade da imagem, dos selfies e de tudo mais, as crianças têm e impõem seus próprios critérios de proteção, de intimidade e de disponibilidade para o outro, de acordo com as circunstâncias. E nós, adultos, embora avós e às vezes também educadores, por compromisso social com comportamentos supostamente bonitos, empáticos e educados, costumamos intervir com um “Fala com ele! Conversa com o moço! Responde, criança! Empresta um pouquinho o seu brinquedo”. Sim, eu acredito que essa movimentação livre que abarca as experiências corporais das crianças, em especial nos primeiros anos de vida, venha a ser elemento estruturante do pensamento, das funções mentais superiores e também dos afetos. No entanto, esses movimentos corporais e gestuais são ampliados ou cerceados, muitas vezes, pelas próprias crianças diante de alguma incerteza, desconhecimento ou desconforto que lhes indicam algo como “Êpa, não lhe conheço, não quero que você participe tão ativamente das minhas coisas, neste momento”. Acredito

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também que as vivências cotidianas entre as crianças e delas com adultos possam ensiná-las a dançar, a brincar e a rir da vida. É certo que nós, adultos, ensinamos as nossas crianças a brincar quando sacudimos um chocalho para elas, quando balançamos o nosso corpo no ritmo da música e docemente, num continuum, às convidamos para que façam o mesmo, para que batam palmas, para que sorriam para as fotos. Como avó e educadora, aprendo com meu neto e com todas as outras crianças que não ajuda em nada rotulá-las, classificá-las, como fiz no início deste texto. Elas reagem e se portam de acordo com as circunstâncias, com seus sentimentos e intuições. Como parte integrante e participativa de um mundo com características totalmente diferentes das que regem o dos adultos, elas se permitem frear, avançar, atalhar, desviar, inventar e construir caminhos impensáveis para os adultos.

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o papai noel – medo e desejo

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eu neto de dois anos já identificava a figura do Papai Noel, se mostrava altamente excitado quando o via pelos shoppings da vida e havia recebido, recentemente, com imensa alegria, a visita de um deles na sua creche-escola. Do seu jeito ele contava: “Vovó, Papai Noel”, querendo dizer “Eu vi o papai Noel”, e saía imitando um velhinho andando, com um saco pesado às costas. Segurando meu rosto com as duas mãos ele repetia: “Vovó, Papai Noel”. Fui entendendo que talvez pudéssemos ir assistir à sua chegada de helicóptero no condomínio onde morava, duas semanas antes da grande data. Assim o fizemos. A expectativa era imensa, minha e dele. Ele dançava batia palmas enquanto cantava comigo a tradicional música do bom ve-

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lhinho que lembra do “sapatinho na janela do quintal”. Tudo era alegria e, de súbito, me preocupei com o barulho altíssimo do helicóptero que se aproximava. Que surpresa! Embora o barulho fosse ensurdecedor, a emoção dele era imensa ao ver o Papai Noel, dentro do helicóptero, acenando. Meu neto mandava beijos e chamava bem alto pelo nome dele, gritando com as duas mãos para cima. Nos dois éramos emoção pura e muita felicidade por estarmos vivenciando juntos essa experiência. Mais uma vez lembrei-me do meu pai, que nos levava, ano após ano, para ver o Papai Noel chegando de helicóptero, vindo da Lapônia, uma cidade congelada no norte da Europa. As renas viriam junto com ele, dentro do helicóptero, sabe-se lá como. Nós amávamos essa atividade e, antes dela, as nossas cartinhas eram escritas e levadas aos correios. A oficina de elfos e duendes, os auxiliares do Papai Noel, produzia manualmente cada presente, mesmo que eles viessem com uma etiqueta da fábrica Estrela, como aconteceu com a boneca Meu Sonho e com a bicicleta Caloi. Que delícia: magia, encanto, sonho. Papai Noel chegou bem, teve seu avião estacionado e foi se aproximando de um pequeno palco, alto, com aquela cadeira-trono vermelha só acessível aos grandes heróis e às realezas. O caminho era cercado por cordões de isolamento e precisei colocar Benjamin no meu colo para vê-lo passar. Meu neto mantinha-se encantado, em estado de graça, agora junto ao meu corpo. Ele pulava a ponto de ser difícil mantê-lo no colo. Quando a ilustre figura se aproximou dele, generosamente esticou uma de suas mãos e acariciou sua cabeça e seu ombro. Nessa hora tudo mudou. Que desastre! O fascínio virou um grande susto e, de alguma forma, uma ameaça. Meu neto dizia, insistentemente: “Mão, não. Vovó, mão não. Medo”. E, de fato, ele ficou com muito medo. Diante dessa reação, na mesma hora afastamo-nos da área de perigo e tentei manter-nos seguros, porém, podendo ver ainda o Papai Noel em seu trono, de longe. Ben voltou a curtir,

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agora com menos intensidade, e de vez em quando lembrava-me: “Mão, não, vovó. Medo”. Tantas crianças com idades semelhantes tiveram reações parecidas, caíram em prato, enquanto outras corriam atrás do sonho querendo puxar sua roupa, tocar naquela figura encantadora. Nesse momento, remeti-me aos medos infantis e também aos dos adultos, a tantos medos que nos acompanham pela vida e que se travestem de tantas formas, às vezes sem nenhuma relação direta com fatos reais. As ruas do medo parecem ser outras que não as da razão. Pensei se um dia o meu neto poderá entender os medos como algo característico dos humanos e, de certo modo, estruturador do pensamento e das ações. Afinal, quem nunca sentiu um certo medo do bicho-papão, aquele ser horrendo que come criancinha? Ou do homem-do-saco, velho maltrapilho que leva embora os pequeninos? O bicho-papão, a loura do banheiro e o homem-do-saco são seres criados pela imaginação dos adultos para amedrontar as crianças e conseguir que elas fiquem quietas ou lhes obedeçam. Quem também não criou seus próprios monstros? Quem nunca imaginou que havia um morto-vivo escondido debaixo da cama ou nunca jurou que atrás da porta do quarto escuro se escondia um fantasma ou um ser de olhos maus e flamejantes? Meu neto Benjamin, saiba que tudo o que é desconhecido quase sempre é amedrontador. Claro que nós não gostamos de admitir o medo. Então, para justificá-lo, povoamos o desconhecido com seres imaginários. Isso acontece desde os mais remotos tempos, quando os homens conviviam com muito mais coisas e situações desconhecidas, para as quais não tinham explicação. Tinham medo dos trovões, das tempestades, das florestas escuras, dos mares profundos. Tinham medo da morte, da fome e dos animais ferozes. Para todos esses medos os homens criaram seres imaginários, que comandavam cada uma dessas coisas e situações. Alguns eram horrendos, violentos e malvados.

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Outros ajudavam os homens em sua luta para sobreviver: elfos, duendes, fadas, centauros, dragões e tantos outros. Talvez, atualmente, boa parte desses seres fantásticos tenha se transformado em personagens de histórias que vemos na televisão, no cinema, no computador, nos jogos dos telefones celulares, nas revistas em quadrinhos. Talvez também, hoje, menos pessoas acreditem em monstros, mesmo naqueles inventados por outros adultos, diante de tecnologias que nos apresentam os extraterrestres, androides, robôs e tantas espécies de alienígenas, dotados de superpoderes. Talvez estejamos deixando de acreditar na existência dos monstros. Só que continuamos a nos assustar uns aos outros. E será que o medo desapareceu? Será que numa escura noite de tempestade, ao ouvir estranhos ruídos na casa, não ficamos imaginando que há algum fantasma ou monstro atrás da porta? As pessoas sensíveis podem se fortalecer ao admitir seus medos. A sua avó tem pavor de aranha, embora nenhuma tenha lhe desacatado até hoje. Vai saber... 213

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papos de crianças

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á pouco tempo descobrimos um espaço encantado, onde as crianças brincam soltas, livres, aprendem a dividir os melhores brinquedos que, nesse caso, são os do parque. Lá eles fazem piquenique juntos. Nem preciso dizer que este lugar passou a ser um objeto de desejo do nosso neto. Mal ele entra na nossa casa, pede para ir ao parque. Às vezes vamos eu, meu marido e Benjamin. Lá é possível sentar à sombra e ler jornal, enquanto as crianças brincam. Por isso mesmo, torna-se possível observá-las interagindo, brincando, brigando e conversando. Nesse espaço, há um grande trepa-trepa onde as crianças sobem e descem pelo escorrega. Parece haver uma combinação entre elas, em que se uma decide ir para o roda-roda, as outras vão

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atrás. O trepa-trepa permite uma relativa organização em fila indiana, onde uns entram e outros saem, impedindo ou evitando as brigas. Já o roda roda oferece um número limitado de lugares. E, por isso, muitas vezes as brigas acontecem. Uns puxam os outros pelo braço para sair, outros pelos cabelos, outros gritam e choram alto. Eu sempre procuro ficar por perto e acompanhar as alternativas que o Benjamin encontra para seus impasses, sem intervir no primeiro minuto. Tento acompanhar o “andar da carruagem”; eventualmente, me aproximo e acabo dizendo aquelas frases típicas de avó, e de avó boba: “Puxa, que feio. O Nicolas gritou com os amigos, a Giovanna bateu na Teresa, que feio!”. Ele parece me ouvir com seus olhos e ouvidos, alimentando sem perceber a minha idealização das crianças, como se todas fossem ingênuas, indefesas, boazinhas e dóceis. Sempre, em todas as situações. Numa dessas, a menina Malu, de três anos, tentou tirar o Benjamin do roda-roda, puxando-o pela blusa. Para minha surpresa, ele saiu do brinquedo e gritou muito alto: “Você não, menina não pode!”, e reassumiu o antigo lugar. A senhora que acompanhava a menina, não sei dizer se era avó ou babá, disse assim: “E é machão”. Eu ouvi e nada disse. O que fiz foi uma intervenção rápida tentando arranjar um outro lugar para a Malu, o que não consegui,e, por isso, ela ficou de fora esperando uma próxima vaga. Preciso reconhecer que fiquei muito surpresa com a reação do meu neto. Construímos, ao longo da vida, certos padrões idealizados de comportamento para as crianças como se elas fossem o espelho dos adultos com quem convivem e, pior ainda, como se esses adultos não apresentassem raiva e algum destempero, até mesmo alguma agressividade, em certas situações. Na verdade, já passei por provas de fogo durante a infância dos meus filhos, os três meninos. Eles jogavam futebol e faziam water polo. Competiam nessas duas frentes desportivas e, por isso, pude assistir a brigas de adultos assustadoras, duplas de mães que se batiam por conta dos embates vividos pelos seus filhos dentro

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das quatro linhas, fossem elas as do campo de futebol ou as da piscina. Jamais me envolvi nesse tipo de conflito, embora algumas vezes tivesse tido vontade, muita vontade. Quando meu sangue subia era a hora de eu ir embora e não perder a chance, assim que o calor da raiva baixasse, de sentar com os meus filhos e conversar muito sobre o acontecido. Não foram poucas as vezes; assisti a mais de dez brigas hediondas, de adultos enfurecidos. Retomando o impasse da Malu com meu neto Benjamin, nesse dia eu precisei parar e refletir sobre as implicações geradas pela forma como as crianças resolvem suas disputas e conflitos aos dois anos de vida. Claro, nessa idade não preponderam, ainda, o bom senso, o altruísmo, o diálogo nem os pactos negociados. Ali, naquela “competição” por um lugar no roda-roda, cada criança se defendia a seu modo e, ao ser puxado do brinquedo, ele reagiu daquela maneira. O mais incrível foi notar a postura dele, condizente com crianças mais velhas, ao lançar mão do argumento que regula os clubes do Bolinha e da Luluzinha: as questões de gênero. E, na minha cabeça, ficou nítida a minha irritação em relação à adulta que o acusou “de machão”. Em relação ao Benjamin, restava a surpresa pela força da reação dele. Dessa situação eu pude extrair várias coisas. A mais importante delas consiste no fato de o meu neto ser uma criança normal, saudável e que busca se defender da sua forma, diante da idade que tem. Com dois anos de idade eles acham que o mundo gira em torno dos desejos deles, e valem o “primeiro eu” e o “é meu”. Meu neto me mostrou, naquela situação, o que eu já sabia mas não tinha realizado, ainda: que ele não é uma criança feita só de mel, nem de poesia, idealizada, mas que ele é a criança que é. Em segundo lugar, essa forma de ele reagir e das outras crianças também, menos com palavras amenas e mais com tapas, gritos e brigas, com pouco mais de dois anos, não significa que elas sejam crianças agressivas e, muito menos, que virão a sê-lo quando adultos. Em último lugar, a inclusão e seu reverso, pelo gênero,

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não tem nessa idade qualquer relação ideológica com machismo ou feminismo, nem com o que é atribuído socialmente como próprio do mundo dos homens ou das mulheres. Precisar separar e ordenar os grupos de amigos entre meninos e meninas é um comportamento comum entre as crianças que nada tem a ver com preconceito, nem com sexo. Ser chamado de machão me pareceu mais uma piada! Mas me irritou bastante. Penso sobre qual seria a reação de cada uma das minhas noras, de temperamentos totalmente diferentes, numa situação dessas envolvendo seus filhotes. Ficariam bravas? Reagiriam? Ficariam caladas como eu fiquei? A saber. Para concluir, preciso contar como foi a saída do parque nesse dia. Benjamin saía comigo, as outras crianças saíam com suas mães, pais, avós ou babás. Na rampa da descida, como num milagre, os supostos desafetos se aproximaram. Malu e Benjamin se esbarraram. Riram um para o outro e Malu ofereceu pipocas que foram aceitas de imediato pelo Benjamin; os dois deram as mãos e assim foram até o portão de saída do parque. No caminho, cantavam: “Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou”. Só não posso dizer aqui que eles ficaram amigos e foram felizes para sempre, como terminam as histórias encantadas, mas pode ser que sim. Eles não se lembravam mais do que haviam dito e feito um ao outro, minutos antes. Por outro lado, com certa vergonha, revelo que não consegui sequer olhar nos olhos da acompanhante da Malu, aquela que havia chamado o Benjamin de machão. Confesso que tive vontade de chamá-la de boba, de desinformada e até de coisas menos nobres, o que não fiz, é claro. E, se o fizesse, teria engrossado aquele cenário vil e ridículo formado pelos adultos que se envolvem e que tomam as dores em brigas de crianças. Com vergonha, de verdade, revelo ainda que fiquei irritada o dia todo, que hora ou outra a cena daquela moça falando “e é machão” voltava à minha mente. E isso me dava raiva, hoje não mais. Talvez esse seja um sinal de que preciso aprender ainda muita coisa com as crianças! NOTA DA COAUTORA: Por motivos óbvios, usei outros nomes para referir-me às crianças, no lugar de seus verdadeiros. Mantive apenas o nome do Benjamin.

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hegou o fim do ano. Nos primeiros dias do próximo ano o nosso neto vai fazer aniversário e completar dois anos de vida. Esse natal foi diferente para toda a nossa família porque o filho, a nora e o neto foram para o Sul passar as festas com os avós de lá. Nós também saímos do Rio no dia seguinte do Natal, para a serra, e, com isso, os contatos entre nós passaram a ser apenas pelo telefone, pelo fixo já que os sinais para celulares e internet são precários. Ai meus deuses, tudo como aconteceu no início dessa história, eu em Portugal eles, cá. Assim, comunicamo-nos, mais uma vez, quase diariamente e fomos acompanhando as festas de lá, o encontro com os primos, as brincadeiras novas e antigas que alegravam a criançada gaúcha. Na casa dos avós do Sul as crianças podem tomar ba-

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nho de chuva, correr atrás de galinhas e de porquinhos, subir em árvores, correr, correr, correr. Penso que essa riqueza de experiências implique os melhores sentimentos de liberdade, de alegria e de confraternização. Pode soar pretensioso, e talvez o seja, mas acredito que as crianças que têm dois pares de avós por perto sejam mais felizes. Será? É uma prerrogativa positiva desde que os avós sejam aqueles que têm a sua própria vida, seus próprios interesses e a alegria de ter netos, eu acho. Também resta definir os critérios de proximidade entre avós e netos, sempre de modo afetivo e respeitoso. Essas reflexões e pensamentos vagos têm mais tempo e espaço para acontecer aqui na serra, onde estamos vivenciando essa pequena pausa para as festas. O sol lindo e as chuvas eventuais tornam as plantas e as flores mais vivas, mais coloridas, mais bonitas. A proximidade com parte da família e amigos torna esse cenário muito mais feliz. Quebrando o silêncio fecundo, em meio às contemplações e lembranças, um som tipicamente urbano e familiar invade as nossas vidas. Irrompe um chamado do Skype no meu iPad, que também vinha tirando férias, embora sempre ligado e carregado. Em segundos minha mente associa, mais uma vez, o Skype como o elo afetivo Brasil-Portugal, revolvendo memórias recentes do tempo em que era o meu filho, pai do meu neto, quem me chamava, diariamente. Enquanto corria e pensava na surpresa, o chamado foi interrompido. Na verdade, pensei também que poderia ser um dos outros filhos, já que eles estavam fora do Rio. Logo vi que o chamado vinha do Sul. Deixei ali, quietinho, o iPad “recém acordado” à espera de um novo chamado que não demorou a acontecer. Era mesmo um contato vindo do Sul. Depois que nossos filhos passam a ter filhos, naturalmente eles se reaproximam dos pais com outros tipos de laços, renovam e intensificam as relações com eles, ainda que de modo não pla-

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nejado. Hoje temos uma relação muito mais próxima com esse filho e essa nora que nos deram o Benjamin. Supomos ser capazes de dar-lhes alguma segurança diferenciada, um apoio afetivo para essa experiência feliz, vertiginosa e definitiva que é ter filhos. Temos contato quase que diário com eles, menos com os outros dois filhos, que estão com suas namoradas e amigos em outras bandas. É perfeitamente compreensível. No Natal costumamos ficar todos juntos, mas as festas de ano novo são liberadas entre nós para cada um fazer o que deseja. Ainda assim, sempre nos falamos por telefone ou pelo computador, quando é possível.

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Quando toca o iPad, parece cena do filme “O Chamado”. Desta vez, todos os adultos correm para ver; tanto ou mais importante do que apenas falar, falar com imagem é quase abraçar. Na tela, surge Benjamin com um sorriso implacável e, ao nos ver, ele grita “Vovóóóó!”. Meu coração bateu acelerado, vi meu filho e minha nora ao fundo, e meu neto estava enorme, bem pertinho, nítido, rindo; logo ele fez a segunda e última fala, acompanhada de um beijo respaldado pelas duas mãozinhas: “Vovó, saudades!”. Todos os adultos que nos cercavam soaram, em uníssono: “oooowwwwwnnnnn”. E essa cena, tão deliciosa quanto simples, teve um peso bastante simbólico. Por isso, e de pronto, eu a escolhi para a conclusão deste livro. Pode-se garantir que avós e netos terão, sempre, coisas interessantes para compartilhar com prazer e sem esforço algum. No entanto, cabe lembrar que este livro também nasceu do desejo compartilhado de refletir sobre a experiência de tornar-se avô e avó. Hoje, embora saibamos, eu e Zé Inácio, que essa construção apenas tenha começado, ela tem a garantia do “para sempre”, como me ensinou meu filho Artur, pai do Benjamin. Essa nova relação começou e vai continuar, vai se apurar e se fortalecer ao longo da vida, num processo sem fim. E, tal como a vida, que tem

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seus ciclos, suas histórias e surpresas, a relação entre os netos e os avós também vão ter ritmos, profundidades e ligas muitos próprias em cada caso. Mas em todos, não tenho dúvidas, certos ciclos e sensibilidades se repetirão como se fossem cirandas ou brincadeiras de roda. Ancestralidade, resgate e renovação girando felizes, de mãos dadas, em círculo, sob as bênçãos da lua, que ouve e atende aos pedidos de amor dos avós de várias gerações: “Lua, luar, pega esse menino e me ajuda a criar”.

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a avó, o irmão do Ben e o fio da vida

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ostumo buscar o Ben na creche-escola uma vez por semana, ele dorme aqui conosco e no dia seguinte, depois do café da manhã, ele vai com o vovô para a pré-escola. Eu, ele e o vovô montamos, sempre de modo negociado com ele, uma programação para esse dia que nunca pode passar sem “cineminha com pipoca”. Ultimamente ele gosta de, antes de entrar em nossa casa, passar no parque que frequentamos ou numa praça próxima. Ontem, por exemplo, fomos a uma dessas praças e de lá saímos para nossa casa por volta das 18h. Tomou banho, viu desenho animado (o tal cineminha), jantou e fomos brincar. Ele anda encantado com montagem de quebra-cabeças. Diante das peças pequenas do jogo, ele disse: vovó, meu irmão não vai poder brincar com isso porque ele vai ser bebê e bebê não

JOSÉ INACIO MARIA INÊS DELORME PARENTE


sabe brincar de quebra-cabeça. É verdade! Em dois meses o Ben vai ganhar um irmãozinho, o Conrado. Ele fala com amor desse irmão que vai chegar, mas venho observando que ele precisa sinalizar as impossibilidades de o bebê ao nascer, valorizando mais o que o bebê não pode fazer, menos o que ele vai fazer e ser. Hoje cedo, quando a ajudante-diarista chegou e demonstrou estar feliz por encontrá-lo, ela disse assim: bom dia, quem bom, o nosso bebê louro hoje está aqui. Imediatamente ele reagiu bravamente: eu não sou bebê. Eu já sou grande, não chupo chupeta, nem uso fralda. Pára! Meu irmão que vai nascer é que é um bebê. Pois é, falas como essas têm me feito pensar mais no fato de o Ben vir a ganhar um irmãozinho, do que no fato de eu ser avó mais uma vez. Claro, estou felicíssima, acompanhando passo-a-passo a gravidez da Camila e do Artur, cheia de amor e remontando aquele ninho gostoso para receber o Conrado, mas há espaço para tentar entender como os netos expressam a chegada de um priminho ou de um irmão. Conversar com as crianças, ouvi-las cuidadosamente sem aquele tom de quem aplica um questionário é muito importante para sermos parceiras, amigas; para saber como pensam para ser possível respeitá-las, entendê-las e não para formatá-las. Enfim, dessas conversas restam certos aspectos nos quais tenho pensado. Em geral, quando chega uma criança nova numa casa nós, adultos, para favorecer a inserção do que vai chegar, acabamos responsabilizando o mais velho em relação a essa criança menor. Aqui em casa foi assim, e em geral, acontece desse jeito. Quando tive meu terceiro filho, o Artur, foi o Duda quem escolheu o seu nome. Um de seus melhores amigos da creche era assim chamado e com isso ele repetia seguidamente: vai chegar o meu irmão Artur; eu vou dar banho no meu irmão Artur; o meu irmão Artur vai ser Flamengo igual a mim e ao Vicente. Era tanto amor envolvido e uma inserção tão bonita do bebê que ia che-

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gar que aceitamos. Coisa semelhante aconteceu quando a Helena estava para chegar. Dessa vez foi o Artur, com 11 anos que dizia: mamãe eu vou ser o dindo dela. Eu quero ser o padrinho da minha irmã. Embora, em princípio, nosso plano fosse outro, aceitamos o pedido como um elo de amor. Ele é o padrinho dela. Voltando ao Benjamin, vejo que ele se sente fortalecido, como o nosso menino grande que já sabe fazer muitas coisas etc. e, como uma contrapartida, tem sido interessante vê-lo falar do bebê que vai chegar com superioridade, poder e alguma autoridade: vovó, eu vou ensinar o Conrado a nadar. Eu digo: que lindo Ben, você já sabe nadar, que bacana? E ele diz: não vovó, sozinho eu não sei nadar, mas meu pai sabe. Com isso ele permite também que eu levante a hipótese de que, por ele amar tanto o pai e se identificar tanto com sua figura, que chegue a ampliar “os poderes” dele, para si mesmo. E com isso, ambos ensinariam coisas novas ao Conrado. Nesse viés, quando estamos juntos, tento que ele se situe como a criança que é, sugerindo que ele se expresse em relação às expectativas que tem pela chegada do irmão. Por exemplo: vovó, é chato quando o bebê chora muito, né? Eu não gosto quando o Antônio (primo) chora. Quando a voz dele vai começar a sair?, e por aí vai. Podemos, juntos, partilhar o aborrecimento de ouvir uma criança chorar por não saber dizer o que deseja. Ele também me fala que ele vai cuidar do irmão porque sempre o irmão mais velho já é grande e tem que tomar conta do pequeno. Embora soe simpático, todas as vezes eu proponho a ele que ocupe um outro lugar, o do irmão que brinca, e menos, o de quem se ocupa com os cuidados do bebê já que “tomar conta” deve ser função dos adultos. Digo a ele que tomar conta é muito chato, que as vezes impede a gente de brincar. Contei para ele que minha irmã mais velha, a Ana Teresa, que todos chamam de Inha, ia para a praia com toda a nossa família e que ela ficava do meu lado, o tempo todo na água, gritando para a nossa mãe que

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estava sentada na beira: mamãe, olha essa menina! E eu digo a ele: ela amava tanto a vovó Inês, mais nova que ela, que nem curtia a praia de tanto que tomava conta de mim. Ele escutou atento e, de repente me perguntou: vovó, você não chamava ela de chata? Ela não gostava da água? Já sei, acho que ela tinha medo de tubarão. Dá para entender, portanto, porque digo que nossas conversas são deliciosas e não têm fim. Com a chegada recente do Conrado, em maio de 2016, o Benjamin passou a se autodenominar como “o meu melhor amigo”, melhor amigo dessa avó aqui, se diferenciando assim do irmão e do primo, na relação comigo. E talvez ele seja mesmo, um amigo muito especial, diferenciado. Nessa dinâmica familiar, impulsionada pela chegada de outros netos, venho desenvolvendo outras dimensões da avó. Os livros, o baú de histórias e de brinquedos, a nossa casa e até nós mesmos precisaremos compartilhar atenções e amor com todos eles. E, claro, não conseguiremos escrever um livro a cada vez que chegar um novo netinho ou netinha. Isso significa dizer que a história não tem fim, como já sabemos, e que se a cada tempo o nosso olhar, os medos e as experiências vão se solidificando, as demandas também vão se alterando, exigindo novas formas de viver os papéis sociais. Até agora, os responsáveis por esse movimento são o Ben (4 anos e 6 meses), o Antonio (com um aninho) e o Conrado que acabou de nascer, e que já tem um encanto muito próprio. Em homenagem a eles e a todas as crianças com quem convivi, e ainda convivo, com a chegada dolorida do final desse livro, resolvi inaugurar um blog, eu e Angela Borba, minha prima e comadre. Nesse blog tentamos escapar dos discursos teóricos e mais acadêmicos sobre crianças, infâncias e a ele demos o nome de Papo de Pracinha. Quem sabe se com o passar do tempo, um produto veiculado na internet não venha a ter mais longevidade que um livro. Não sei dizer, mas para mim um livro tem um valor muito especial e diferenciado, para melhor.

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Penso que essa talvez seja uma tentativa de ampliar meus olhos, braços e afetos para acompanhar eternamente a vida desses netos. Me pego pensando sobre quem serão eles quando mais velhos, se terão o mesmo prazer, também as vertigens que tivemos aos nos tornarmos avós. Não temos como responder e projetar demais o futuro sob o risco de ocupar a cabeça e o coração enquanto o tempo passa. Precisamos viver esse amor familiar intensamente no presente e, se possível, também, sem nostalgias. Para concluir, deixaria aqui repetida a frase com que embalamos nossas crianças: lua, luar, pegue esses meninos e nos ajude a criar. Sonho que eles venham mesmo a ser bons amigos e, que sempre que puderem, que ouçam junto com seus pais o genial Gilberto Gil, em especial a música em que ele se refere com delicadeza ao universo feminino: quem sabe, o Superhomem venha nos restituir a glória, mudando como um deus o curso da história, por causa da mulher.

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Para esse clube de homens e de meninos amados que me cercam, para minha filha, para os netos e netas que vão chegar eu deixo esse livro carregado de histórias e de muito amor. Desejo com fé que eles possam ser heróis e vilões em suas brincadeiras, super-homens invencíveis e, também, formiguinhas frágeis e assustadas, não aceitando viver na superficialidade do mundo. com amor, Vovó Inês

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Este livro foi composto por KMRdesign em fonte Lora Regular corpo 10/14 para o texto, corpo 36 nos títulos de capítulos e Lora Bold na arte da capa. Impresso pela Gráfica ZipPrint em novembro de 2016 na cidade do Rio de Janeiro para a Editora Multifoco em papel Pólen Soft 80g/m2 (miolo) e TP Hi-Bulky 250 g/m2 (capa).




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