E TRADIÇÃO
naFestadeNossaSenhoradoRosário deJardimdoSeridó-RN
Valdívia Costa
CAMPINA GRANDE-PB 2007
UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL ESPECIALIZAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO
ARTE E TRADIÇÃO NA FESTA DOS NEGROS DO ROSÁRIO DE JARDIM DO SERIDÓ-RN
VALDÍVIA COSTA
CAMPINA GRANDE-PB 2007
VALDÍVIA COSTA
ARTE E TRADIÇÃO NA FESTA DOS NEGROS DO ROSÁRIO DE JARDIM DO SERIDÓ-RN
Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do título de especialista em Comunicação e Educação, pela Universidade Estadual da Paraíba, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Custódio.
CAMPINA GRANDE-PB 2007
AUTORA: Valdívia Costa
ARTE E TRADIÇÃO NA FESTA DOS NEGROS DO ROSÁRIO DE JARDIM DO SERIDÓ-RN
Monografia aprovada como requisito parcial à obtenção do título de especialista em Comunicação e Educação pela Universidade Estadual da Paraíba por uma comissão examinadora formada pelos seguintes professores:
Prof. Luiz Custódio Orientador-UEPB
Profª Carla Borba Examinadora-UEPB
Prof. Flaubert Paiva Examinador-FIP
Por mais que seja repetitivo, é válido, e mais do que justo, oferecer o estudo aqui apresentado aos Negros do Rosário. Eles são mantenedores de uma cultura afrodescendente quase bicentenária, reinventada cotidianamente, portanto, repleta de questionamentos aflorando nas simbologias mantidas ou modificadas.
AGRADECIMENTOS
Pesquisar sobre os Negros do Rosário é como montar uma cadeia de informação, oral e eletrônica, que se comunica visual, sonora e simbolicamente. Várias pessoas foram interligadas neste projeto em prol de uma contribuição à cultura popular brasileira. Esperamos que todo o nosso esforço seja recompensado com o despertar do interesse pelas comunidades quilombolas, rurais e urbanas. Aos doutores, mestres, professores e demais amigos que nos forneceram a mão nessa empreitada. Pela ordem cronológica da construção desse projeto, elenquei os motivadores desta monografia. A Roberto Benjamim e Osvaldo Trigueiro, pela introdução aos estudos da Folkcomunicação e o despertar da idéia de pesquisar o folguedo dos Negros do Rosário de Jardim do Seridó, objeto presente em minha infância e redescoberto na atualidade enquanto fonte inesgotável de estudos semiológicos para comunicadores e educadores. A Roberto Faustino, pela indicação de acrescentar a Educomunicação no projeto, já que a forma como é passada a tradição dos negros mais velhos aos mais jovens interdisciplina as duas áreas. A Luiz Custódio, pelo oferecimento corajoso e muito pertinente de me orientar. Com os livros de sua estante bem servida, pudemos montar esse trabalho. Custódio não só me motivou pelo objeto de estudo, como foi sincero em reconhecer as falhas, cobrálas e me convencer a refazê-las. A Robéria Nádia, pelos insigths epistemológicos, pelo exemplo de intelecto feminino sempre ávido por conhecimento e a importância de passar ciência como instrumento de transformação. A Cássia Lobão, por outro estímulo científico brilhante e por nos mostrar o princípio básico e a visualização panorâmica da Educomunicação.
A Diego Marinho, pelo empréstimo da monografia de graduação que fala sobre as relações de estratégias e táticas dos Negros do Rosário, pela qual eu pude nortear o meu trabalho na formatação. Pelas entrevistas que muito me renderam informações e suporte científico dos significados dos ícones carregados pelos negros no folguedo. A Valmir Gamela, pela co-orientação primeira e bastante relevante sobre a forma lingüística como estava escrevendo ciência. Pelas idéias, especialmente de linguagem visual, inspiradas de sua dissertação de mestrado sobre a Feira Central, ícone maior da cultura popular de Campina Grande. A Fernanda Souza, pela trilha deixada em sua pesquisa também sobre cultura popular. Pela orientação pessoal, principalmente de leitura e discussões, e pela motivação pessoal (quase diária) para a conclusão desta pesquisa. A Toninho Borbo, pela ajuda inicial com os primeiros textos (densos) científicos. Pela orientação sociológica e pelo aconchego do lar, que me fez ter paz e equilíbrio para desenvolver este trabalho no meio de uma rotina atarefada. A Nilson Meira, pelo eficiente acompanhamento fotográfico. Com ele pude explorar visualmente minhas observações. Agradeço à sua sensibilidade por estar realizando trabalhos junto à comunidade da Boa Vista e conhecendo suas peculiaridades. A Joana da Costa e Júnior Lucena, respectivamente, minha mãe e meu irmão, pessoas queridas que acreditaram desde o início dos meus estudos na minha força criadora. Graças a eles, enfrentei um período sem emprego, mas me capacitando para a vida acadêmica. Foram os dois os responsáveis materiais para este trabalho nascer. E, novamente, aos Negros do Rosário, em especial a Maria das Graças, José Vieira, Dodoca e aos muitos jovens participantes do folguedo, inspiradores do meu trabalho.
É a festa dos negros coroados num batuque que abala o firmamento. É a sombra dos séculos guardados, é o rosto do girassol dos ventos. (...) No alarido de um povo a se inventar. É o conjunto de ritos e mistérios, é um vulto ancestral de além-mar. Tuaregue Nagô – Bráulio Tavares
RESUMO
Os Negros do Rosário de Jardim do Seridó-RN são descendentes de uma cultura africana de manter festas de folgas (folguedos) nos finais de ano. Eles se apresentam por três dias com reinado, dança e música do Espontão. Este estudo pretende evidenciar a Folkcomunicação utilizada pelos negros durante o folguedo. Desde que foi criada em 1863, a Festa de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião sincretisa os ritos afrobrasileiros com os da religião católica. Os ícones utilizados pelos negros possuem símbolos de resistência do passado escravocrata sofrido e das crenças negras nos santos católicos como apaziguadores e salvadores da fome, da miséria e das pragas. Também são mitológicos ou lendários, criados pelos negros mais velhos para justificarem seus utensílios durante a festa. Nesses símbolos estão algumas explicações para a dança e a música do Espontão como carros-chefe do folguedo que perdura como um marco de sobrevivência de um patrimônio imaterial cultural. Nem os meios de comunicação de massa conseguem atrair tanto um jovem ao ponto de fazê-lo desistir do folguedo por causa da tradição de se guardar a memória que é transmitida oralmente. PALAVRAS- CHAVES: Negros do Rosário-Folkcomunicação-folguedo-memória
LISTA DE FOTOS
FIGURA 01: FOLGUEDO DOS NEGROS DO ROSÁRIO DE JARDIM DO SERIDÓ. FOTO: N. Meira; ANO: 2006. FONTE: Acervo particular do autor..............................13 FIGURA 02: O SOM AFRO-BRASILEIRO E A CRENÇA CRISTÃ. FOTO: N. Meira; ANO: 2006. FONTE: Acervo particular do autor...........................................................16 FIGURA 03: PASSOS E SONS DO ESPONTÃO. FOTO: N. Meira; ANO: 2006. FONTE: Acervo particular do autor................................................................................21 FIGURA 04: DANÇARINOS DA BOA VISTA E DE JARDIM - CORREDOR REINADO. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.............23 FIGURA 05: FOLGUEDO TEM GRANDE PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.................................29 FIGURA 06: VELHOS E JOVENS COMPARTILHAM E GUARDAM A HISTÓRIA. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.................................32 FIGURA 07: ESPONTÃO - INSTRUMENTO, DANÇA E MÚSICA DO FOLGUEDO. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.................................34 FIGURA 08: SUELMA IRACI DA CRUZ – RAINHA DO ANO 2006/2007. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor..................................................36 FIGURA 09: MULHERES NÃO PODEM DANÇAR NO FOLGUEDO. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor..................................................37 FIGURA 10: MARIA DAS GRAÇAS. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor............................................................................................................39 FIGURA 11: JOSÉ FERNANDES DO AMARAL, CHEFE DA IRMANDADE DOS NEGROS. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor...............47
FIGURA 12: ANTÔNIO FERNANDES (DODOCA), PORTA BANDEIRA DO FOLGUEDO. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.........50 FIGURA 13: TRONCO REPRESENTA S. SEBASTIÃO; COROA, NOSSA SRª ROSÁRIO. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.............52 FIGURA 14: BANDA EUTERPE NA FESTA DOS NEGROS. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor......................................................................53 FIGURA 15: HASTEAM. BAND. S. SEBASTIÃO. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor................................................................................54 FIGURA 16: HASTEAM. BAND. N. S. ROSÁRIO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor................................................................................54 FIGURA 17: VISITA DOS NEGROS NAS COMUNIDADES. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.....................................................................57 FIGURA 18: NEGROS DANÇAM DENTRO DA IGREJA CATÓLICA. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor..................................................60 FIGURA 19: A COROA DOS REIS NEGROS É UTILIZADA PARA PEDIR BÊNÇÃOS. FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor............64
SUMÁRIO O ENREDO – FOLKCOMUNICAÇÃO E FOLGUEDOS POPULARES
2
I – Estudo folkcomunicacional do folguedo – tradição passada través da arte
3
II – Folkcomunicação como linguagem científica
4
III – Entrevistas e observação participante
8
1. O FOLGUEDO DOS NEGROS DO ROSÁRIO DE JARDIM DO SERIDÓ
10
1.1. A crença dos negros
16
1.2. A arte do folguedo
20
1.2.1. A dança do Espontão
21
1.2.2. Coreografias e loas do Espontão
23
1.2.3. A música do Espontão
25
2. A MEMÓRIA E FOLKCOMUNICAÇÃO COMO RECURSOS DE MANUTENÇÃO DOS NEGROS DO ROSÁRIO
28
2.1. Folkcomunicação – símbolos distintos em discursos e apresentações
33
2.2. Representatividade feminina no folguedo
37
2.3. O lugar onde moram as lembranças
41
3. O FOLGUEDO DE JARDIM DO SERIDÓ
45
3.1. Antes da festa, a história
48
3.2. A festa de Nossa Senhora do Rosário
50
CONSIDERAÇÕES FINAIS
66
REFERÊNCIAS
68
ANEXO – Documento de criação da irmandade do rosário
72
APÊNDICE – Entrevistas
74
Arte e Tradição na Festa de Nossa Senhora do Rosário de Jardim do Seridó - RN
O ENREDO – FOLKCOMUNICAÇÃO E FOLGUEDOS POPULARES
Os Negros do Rosário, principalmente os mais velhos, são a fonte de qualquer pesquisa. Baseamos-nos em suas vivências para afirmarmos que eles transmitem a verdade nos relatos de tempos passados. A memória da convivência com os brancos, dos conflitos de interesse e da própria fase escravista, nos amparou numa pesquisa que revelou algumas lacunas devido à desinformação dos negros acerca de determinados significados simbólicos. Analisamos a trajetória e a tradição da Festa de Nossa Senhora do Rosário, popularmente conhecida por Festa do Rosário, que vem sendo realizada anualmente há 146 anos na cidade de Jardim do Seridó-RN, um folguedo original que transmite sua história a devotos, curiosos e estudiosos. O presente objeto de estudo evidencia um ritual de sincretismo religioso entre rituais afrobrasileiros, pertencentes às comunidades quilombolas da Boa Vista e de Jardim, e o catolicismo. Procuramos responder por que o folguedo consegue resistir mediante o processo de modernização e urbanização do espaço coletivo, visto que os indivíduos difusores dessa história são, em grande parte, da zona rural e mantém a tradição de forma rústica. Surge, então, a preocupação com os mais jovens participantes, mantenedores futuros do folguedo. Como eles estão assimilando o folguedo, mediante a massificação e importação de uma cultura alienígena, disseminada principalmente pela televisão e adotada como forma de diversão em cidades interioranas? Preocupa-nos a influência negativa de variados conteúdos televisivos que podem afetar aos jovens quilombolas, já que a maioria deles habita nas zonas urbanas onde os costumes e hábitos são outros. Contudo, como os estudos nesse campo avançaram desde a perspectiva generalizada dos anos 1990, quando a cultura popular era vista como vítima dos apelos
da cultura massiva, manipuladora, que afetava especificamente a cultura folclórica, os meios de massa hoje podem se tornar aliados na preservação das manifestações populares. Podemos dizer que os Negros do Rosário desperta o interesse de pesquisadores, principalmente de
História, e já
foram
documentados
em
monografias
e
videodocumentários, o que prova a aliança positiva do tradicional com uma mídia atual. Com a utilização de recursos modernos, eles não correm mais o risco de não atraírem os próprios representantes do grupo, já que o folclore tão discutido na comunidade pode ser visto por outra perspectiva, além da narrativa oral. O tradicionalismo, segundo Canclini, é uma tendência em amplas camadas hegemônicas e pode combinar-se com o moderno, quase sem conflitos, quando a exaltação se especializa nos setores social e econômico. Mas os modernizadores extraem dessa oposição entre passado e presente a moral de que seu interesse pelos avanços, pelas promessas da história, justifica sua posição hegemônica, enquanto o atraso das classes populares as condena à subalternidade (2006; p.: 206). Precisamos entender a definição que é dada ao termo popular para iniciarmos nossos estudos. Conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e várias outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem na sociedade é o “conjunto complexo” que forma a cultura, como descreveu Luiz Gonzaga de Melo (1991; p.: 40), citando LeviStrauss. Ele completa a definição “em sentido largo” quando diz que a cultura é o conjunto das obras humanas, pois é ela que distingue o homem dos outros animais (1991; p.: 41). Para Canclini (2006), popular é o excluído: “aquele que não tem patrimônio ou não consegue ser reconhecido ou conservado”. O autor afirma que o popular costuma ser associado ao pré-moderno e ao subsidiário. Na produção, ele manteria formas
próprias sobrevivendo nas “ilhas pré-industriais”, como as oficinas artesanais, mas também as forma de “recriação local”, como as músicas regionais e os entretenimentos suburbanos. Já no consumo, Canclini diz que os setores populares estariam sempre no final do processo, “como destinatários, espectadores obrigados a reproduzir o ciclo do capital e a ideologia dos dominadores” (2006; p.: 205). Voltando um pouco ao tradicional, do ponto de vista histórico, os indivíduos que compõem o folguedo são agentes transmissores de suas manifestações. Através da oralidade e da expressão corporal e artística, esses heróis anônimos conseguem manter uma tradição de desbravamentos, já que o folguedo existe desde a época da escravatura. Analisamos o objeto como uma mídia que informa sua manifestação cultural folclórica para um público que consome o exposto por diferentes motivos, desde o religioso, como bem material da fé, ao de entretenimento, como símbolo de alegria e descontração. Neste contexto, o presente estudo utilizou os referenciais teóricos de Folkcomunicação, definida por Beltrão (2004) como “a teoria do processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, idéias e atitudes da massa, por intermédio de agentes e meios ligados direta e indiretamente ao folclore” (Beltrão, 2004, p.: 47). Percebemos que os Negros do Rosário carregam na memória os preceitos necessários para passar a tradição aos mais jovens como única forma de preservação da cultura afrodescendente. É nesse processo silencioso de transmissão de informação que os negros da Irmandade do Rosário mantém um elo com o público mostrando uma festa religiosa e profana que emociona e contagia.
I - Estudo folkcomunicacional do folguedo – tradição passada através da arte
Entender a fundo a importância dos Negros do Rosário é fundamental para que não ocorra o descarte de uma cultura secular que vive à margem de uma sociedade capitalista devido à evolução de comportamento da atualidade. O caminho da Folkcomunicação foi utilizado para se chegar à compreensão desse folguedo porque a tradição mantida pelos Negros do Rosário se perpetua nesse processo de comunicação entre mídia - no caso, o folguedo - e as pessoas que assistem às festividades, o público receptor. Além de guardiões da memória e dos símbolos que preservam a sua identidade, o referido objeto de estudado analisa uma rica linguagem, enquanto veículo de comunicação, merecedor de observações e questionamentos. A Folkcomunicação dos Negros do Rosário está presente na música e na dança do Espontão, além da forma como a tradição é passada do mais velho para o mais jovem e como nos ícones que eles carregam por entre os séculos de preservação dessa cultura, informando a trajetória de lutas de classes e reconhecimento étnico. José Marques de Melo (2004) constatou que estamos com uma identidade cultural em mudança, “em pleno processo de transformação da nossa identidade cultural, compelidos a continuar importando padrões oriundos das matrizes da indústria mundial de bens simbólicos, mas também participando desse mercado internacional potencializado pela cultura massiva” (2004; p.: 272). Este mesmo autor definiu a Folkcomunicação como a "comunicação em nível popular, que se dá através do folclore ou de meios folclóricos” (2001, p.: 17). Por essa característica folclórica percebemos que a música e a dança populares dos Negros do Rosário são atrativos à população jardinense, que se mostra mais envolvida com a arte nas apresentações do que com o ritual religioso.
II - Folkcomunicação como linguagem subjetiva
O primeiro e norteador objetivo que expomos foi a análise das manifestações culturais dos Negros do Rosário de Jardim do Seridó-RN, observando as formas adotadas para a preservação e memória do folguedo. Assim, apontamos a Folkcomunicação como linguagem subjetiva utilizada pelos indivíduos desse grupo para transmitir um elemento da cultura popular. Ao classificarmos os elementos folk do folguedo esperamos contribuir para o processo de difusão da história e da tradição dessa manifestação cultural. Marcos Ayala e Maria Ignez Novais Ayala, Flausino Rodrigues e Luiz Beltrão encabeçam o embasamento teórico para as análises do primeiro capítulo. Achamos importante destacar a crença e a arte praticadas no folguedo para ressaltar os símbolos que os Negros do Rosário carregam. Na nossa pesquisa, não encontramos os participantes da manifestação folclórica totalmente seguros dos significados dos símbolos que eles utilizam. Mas procuramos embasamento nas histórias que ouvimos dos integrantes mais velhos do grupo. Explicamos a preferência pela santa católica, os ritmos e suas origens, com seus devidos conceitos definidos por José Ramos Tinhorão, músico e folclorista que conseguiu captar nossas origens musicais. Com a conclusão desse capítulo apresentamos a música como o principal elemento que atrai o mais jovem ao folguedo. O som faz esses aprendizes se transformarem em instrumentos, meios que levam uma mensagem artística e histórica por entre os séculos. Faz parte da nossa pesquisa verificar de que forma a tradição do folguedo vem sendo repassada pelos integrantes das comunidades de Jardim e da Boa Vista para as novas gerações. Constatamos que a memória é um elemento fundamental para a
manutenção do folguedo. Além do esforço etnográfico, necessário para a descrição simbólica da história preservada pelos quilombolas, procuramos aprofundar o diálogo com Jacques Le Goff para desvendarmos o caminho que a memória percorre por entre os séculos. Partindo deste princípio, observamos a forma como os indivíduos pesquisados transmitem suas histórias. Além da tradição oral, no folguedo dos Negros de Rosário, a Folkcomunicação está presente na apresentação como um todo através dos símbolos utilizados pelos negros, que são muitos e a maior parte com significados desconhecidos. Os símbolos para Beltrão (2004) são distintos em discursos e apresentações. O autor observou que as formas significativas visuais e auditivas, como as combinações de sons utilizados pelos Negros do Rosário, “em suas expressões elementares são os instrumentos mais primitivos das inteligências”. Beltrão também tem uma explicação que se encaixa na apreensão rápida e contínua pelas gerações quilombolas por seus símbolos artísticos. Os ícones “adquirem estruturas complexas, constituindo símbolos de profunda significação e apresentando uma articulação lógica peculiar”. (2004; p.: 69) Neste capítulo, abordamos também a linguagem utilizada pelo folguedo. A linguagem do folclore é enigmática e desafiadora, como definiu Beltrão (2004). “Num estudo de conjunto, a nossa capacidade de descobrir o segmento semântico codificável, no emaranhado de sons, ritos, movimentos e imagens que o encobrem, constituindo o segmento estético, não decodificável racionalmente” (2004; p.: 69). Fizemos um adendo da participação feminina no folguedo. A carga simbólica que as mulheres quilombolas carregam nessa manifestação folclórica parte da imagem da santa, Nossa Senhora do Rosário, pois, nos primeiros anos de apresentações, elas só serviam para organizar e arrumar a festa, até que elas próprias começaram a pedir aos companheiros e à Igreja para participar devido à devoção à santa católica. Abriu-se,
então, a exceção à regra. Atualmente, as mulheres continuam lavando, cozinhando e arrumando a Casa do Rosário, enquanto os homens têm mais liberdade durante a festa. Porém, já existem rainhas e juízas no reinado, mais um elemento folk que transmite a história da coroação de reis negros do Congo. Levando-se em conta as ressignificações que a cultura popular deve sofrer para se perpetuar, um passo a mais para o folguedo seria a introdução do feminino nas apresentações dos Negros do Rosário. Por último, este capítulo é concluído com uma descrição rápida da comunidade da Boa Vista, um dos lugares onde parte da irmandade do Rosário de Jardim vive. Na verdade, é um breve relato da economia, estrutura e projetos na comunidade. O encerramento da pesquisa, no terceiro capítulo, verifica os recursos utilizados da música e da dança do Espontão presentes no folguedo, bem como os aspectos simbólicos existentes na tradição. É chegada a hora da descrição detalhada da festa de Nossa Senhora do Rosário com todos os seus elementos atuando em conjunto. Começamos esta parte da monografia com a história do grupo. Numa perspectiva religiosa, vale ressaltar a história do folguedo dos Negros do Rosário como forma de expressão de fé dos escravos brasileiros do século 18. Eles criaram a irmandade em Caicó, no Seridó do Rio Grande do Norte nordestino. Esta tradição se popularizou e, em 1863, foi criada a irmandade da cidade vizinha, em Jardim do Seridó, no Rio Grande do Norte. A irmandade de Jardim foi criada em 1863 e os integrantes antepassados do grupo deixaram um patrimônio histórico-arquitetônico aos seus descendentes, a Casa do Rosário, localizada na Avenida Dr. Fernandes, no centro da cidade. Com 12 cômodos, entre salas espaçosas e três quartos também grandes, além de dois conjuntos de
banheiros masculinos e femininos, o abrigo hospeda todos os negros da irmandade, mas quem a habita pelos três dias de festa são os negros da Boa Vista. O resto do capítulo é uma visualização da Festa de Nossa do Rosário que faz perceber a riqueza de simbologias presente neste folguedo, o que faz os participantes entrarem num êxtase profundo de fé e alegria por festejar sua ancestralidade negra.
III - Entrevistas e observação participante
Através do instrumento da memória, e apoiados no recurso da narrativa oral, colhemos as informações necessárias a este projeto. As lembranças dos negros mais velhos foram as nossas principais fontes na pesquisa de campo. Colhemos informações com outros integrantes do grupo, como os mais jovens, para sabermos como eles absorvem o que é transmitido. Para captarmos esses dados usamos as metodologias da entrevista e da observação participante, importantes componentes da realização de uma pesquisa qualitativa, definida por Minayo (1994, p. 57-59). Através do contato direto com o fenômeno observado obtivemos informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. Esta técnica foi realizada durante as festividades dos Negros do Rosário, de dezembro de 2006 a janeiro de 2007. Em contato com a comunidade da Boa Vista, em 2004, executamos esta mesma técnica quando visitamos os quilombolas. Segundo Minayo, a observação participante é importante para captarmos uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, “uma vez que, observados diretamente na própria realidade, os sujeitos transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real” (1994, p. 59).
Utilizamos ainda os meios de pesquisa documental, de campo, coleta e análise de dados. Na pesquisa documental relacionamos os estudos de Folkcomunicação, suporte teórico e norteador do nosso trabalho, além de estudos sobre memória, cultura popular, música e folguedos. A entrevista foi utilizada para buscar informes contidos nas falas dos sujeitos observados, como Minayo (1994) descreveu, e um meio de coleta dos fatos relatados pelos atores, os sujeitos-objeto da pesquisa. A entrevista vai sempre se relacionar aos valores, às atitudes e às opiniões dos sujeitos. Realizamos esta técnica de forma aberta ou não-estruturada, assim o informante falou livremente e resgatamos pela memória sua história de resistência.
Arte e Tradição na Festa de Nossa Senhora do Rosário de Jardim do Seridó - RN
1. Os Negros do Rosário de Jardim do Seridó - Folkcomunicação e folguedo
A festa é notadamente de cores, ressaltando-se o preto, com sua ginga e manha bem definidos. É a cor mais destacada por baixo do arco-íris de fitas multicoloridas amarradas nas lanças que cortam o ar em coreografias. Contracenando com as pernas saltitantes de negros abençoados por Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião, os sons de batuques africanos, rústicos e acelerados, que entram brutalmente em nosso interior. Abismados com o visual exótico e desproporcionalmente alheio à realidade moderna, um povo curioso, atento às mensagens sutis que todo o cortejo parece transmitir. É o som que move o povo na longa fila sinuosa de fiéis e negros? É a fé que arrasta os pés dessa gente entre o sincretismo religioso do rito festivo negro com a crença branca nos santos? Simplesmente, é o eco mudo e pesado do tempo que se move e cria séculos de tradição guardados nas lembranças dos mais velhos. Se passarmos por algumas cidades interioranas nordestinas, em alternadas épocas do ano, principalmente no mês de outubro, podemos encontrar uma festa que nos revelará mais ou menos essa descrição grosseira de uma verdadeira manifestação da cultura popular. É o folguedo, um grupo folclórico de negros que apresenta personagens com hierarquia. O nome designa a festa mais esperada por afro-brasileiros que moram em comunidades quilombolas. É como se fosse o dia de folga, de descanso, dos negros. Folga é festa, divertimento, daí o termo folguedo1. Alguns pesquisadores designam o folguedo como Autos, folganças, bailados ou danças dramáticas como expressões complexas que, na maioria das vezes, a dança se constitui em elemento de destaque. Folguedo é a denominação mais aceita para estes
1
Mini Aurélio; p. 327
festejos porque nomeia todo fato folclórico, dramático, coletivo e com estruturação, priorizando, ora o elemento dramático, ora o do brinquedo ou o coreográfico. Para estes estudiosos, a característica essencial do folguedo é o sentido de representação, quando o indivíduo assume provisoriamente um ou vários papéis na apresentação, que se traduzem em espetáculos, cortejos, bailados coletivos que, junto com um tema tradicional e caracterizador, se agregam à música constituída pela seriação de várias peças coreográficas. Geralmente um folguedo é dramático, não só no sentido de ser uma representação teatral, mas também por apresentar um elemento especificamente espetacular, constituído pelo cortejo, sua organização e danças. Mas normalmente essa manifestação é coletiva por ser de aceitação integral e espontânea de uma determinada coletividade. A estruturação é necessária porque, através da reunião de seus participantes, dos ensaios periódicos, se adquire certa permanência. O cenário onde este segmento da cultura popular se insere são as ruas e praças públicas de nossas cidades, especialmente nos dias de festas locais, em louvor dos santos padroeiros ou do calendário cristão. Em razão da sua complexidade, os grupos de folguedos são sempre estruturados. A divisão de trabalho e a hierarquia interna ultrapassam o momento da representação. A participação nos grupos exige certa permanência, por isso, os grupos são considerados fechados. Além das indumentárias características, a maioria imitando uma corte real portuguesa de negros, essas manifestações populares possuem, geralmente, um ritual artístico - como a utilização da dança e da música - específicos e tradicionalmente africanos. No Brasil, há grande número e variedade deles, em todas as regiões, principalmente nos Estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Com a base fundamentada nos Congos2, os folguedos representam um auto de inspiração africana, como pesquisadores do folclore já notaram e como ainda é visto nas comunidades quilombolas ou irmandades negras que mantém a tradição. A descrição empolgada e poética de um folguedo foi a forma mais respeitosa e reverenciadora que encontramos para iniciar esta pesquisa. Ao observar os Negros do Rosário de Jardim do Seridó-RN percebemos o valor da abstração e da inspiração para um indivíduo que mantém um ritual folclórico. Voltando um pouco à ordem natural dos fenômenos culturais, faz-se necessário um breve resumo sobre os estudos dos costumes populares e suas respectivas datas. Os primeiros estudos brasileiros sobre cultura popular foram realizados por Celso de Magalhães, que publicou seus conhecimentos em 1873. Um ano depois, José de Alencar deu continuidade ao cientificismo que estava apenas começando no Brasil. O país passava por grande produção intelectual e os cientistas apresentavam suas teses em publicações periódicas. Foi através de um desses meios que Sílvio Romero surgiu na cena, em 1879, criticando os estudiosos da cultura popular. Na Revista Brasileira, ele começou a publicar artigos e apresentou um estudo mais aprofundado que os trabalhos anteriores. Era tempo de evolução nas pesquisas sobre manifestações populares.
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Manifestações culturais dos negros que datam da época do Brasil Colônia.
FIGURA 01: FOLGUEDO DOS NEGROS DO ROSÁRIO DE JARDIM DO SERIDÓ FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
Os autores Marcos Ayala e Maria Ignez Novais Ayala (2006) observaram que esses três primeiros cientistas possuíam uma característica em comum: “a busca de traços nacionais num acervo cultural considerado menos sujeito a mudanças – a poesia popular” (2006; p.: 11 e 12). Outro aspecto salientado pelos autores é sobre a presença da cultura popular no meio rural e em cidades do interior. Os estudiosos não concordam com a afirmativa de que os indivíduos de comunidades rurais produzem as manifestações populares de forma rude, rústica, ingênua e que se oponha ao progresso por estarem de fora da civilização moderna. Acreditamos que essa afirmativa é coerente ao observarmos que os Negros do Rosário conseguem manter o folclore deixado pelos antepassados mesmo com os jovens rodeados pelos meios de comunicação de massa e as devidas influências das culturas massivas. Talvez isso se deva conforme a motivação que as comunidades quilombolas
recebem para perpetuarem sua tradição. No caso dos sujeitos estudados, além do incentivo e co-manutenção da festa vindo da Igreja Católica, os mais velhos se preocupam em manter os mais jovens informados sobre suas crenças, através de uma mitologia3 forte, disseminada pelos negros escravos. As histórias e influências antepassadas representam a verdade absoluta para eles cumprirem com suas obrigações religiosas. Talvez seja por isso que os Negros do Rosário não contestam seus antepassados. Essas histórias retransmitidas de antepassados por gerações posteriores são definidas na cultura popular como folclore. Como Flausino Rodrigues (1978) definiu, o vocábulo folclore compõe-se de duas palavras inglesas que juntas significam ciência do povo (folk = povo; lore = ciência). Esse termo foi criado pelo arqueólogo inglês William John Thoms (1803-1885), pesquisador da cultura popular européia, em artigo publicado na revista The Athenaeum, em 22 de agosto de 1846, com o título "Folklore". Com isso, a data se tornou referência do surgimento do termo folclore, que gradativamente foi incorporada a todas as línguas dos povos considerados civilizados. Ao ser norteado por uma crença popular, o ato de se manter uma tradição folclórica é permeado de responsabilidade, seriedade e disciplina, por mais festivo e descompromissado que ela seja. Para além dessa característica, os indivíduos pesquisados parecem ter uma satisfação plena, mais profunda e reflexiva enquanto integrantes do folguedo, que vai para além da obrigação religiosa. O que justifica essa observação é uma das definições de folclore, novamente de Flausino, onde ele explica o fenômeno com “uma manifestação espontânea da alma popular nas letras e nas artes em geral, nascendo, em via de regra, ao ar livre da natureza, completamente anônimo” (1978; p.: 3).
3
Estudo da ciência dos mitos ou o conjunto deles.
Para entrarmos no nosso objeto de estudo, pesquisamos com Luiz Beltrão (2004) os aspectos comunicacionais de um folclore, através da Folkcomunicação, percebida na Festa de Nossa Senhora do Rosário por sua definição inteira, descrita pelo autor como um processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, idéias e atitudes da massa, por intermédio de agentes e meios ligados direta e indiretamente ao folclore4. Nessa perspectiva, procuramos analisar a mensagem real, atual, escondida nesta manifestação antiquada que é o folguedo. Antes de partir para suas próprias observações, Beltrão cita Gilberto Freire, que alertava para não apreciarmos nas manifestações folclóricas apenas os aspectos artísticos, a sua finalidade diversional. “Entendê-las como uma linguagem do povo também se faz necessário, pois eles expressam o seu pensar e seu sentir, tantas vezes discordantes e opostos ao pensar e ao sentir das classes oficiais e dirigentes como em todo processo comunicativo, precisaremos da condição essencial de termos uma experiência sociocultural com um evento folclórico para observarmos melhor suas mensagens” (2004; p.:118). Mas é com a “característica crucial” do folclore, conforme Beltrão, analisando o aspecto artístico dos costumes de um povo, que adentramos no mundo de um folguedo. Porque é justamente através dos elementos artísticos que o objeto pesquisado consegue bradar a sua história para uma multidão, todos os anos, há mais de um século. Com características iguais a outros folguedos da região Nordeste, os Negros do Rosário possuem como elementos de formação a coroação dos reis do Congo e reminiscências das lutas da Rainha Ginga, de Angola, contra os portugueses. Em Jardim do Seridó, os integrantes do grupo apresentam personagens reais e são assistidos na
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BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. Umesp; 2004; p. 47.
Festa de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião, popularmente conhecida por Festa do Rosário, nos dias 30 e 31 de dezembro e 1º de janeiro de cada ano.
1.1 A crença dos negros
Além da designação profana, a religiosa é a que mantém a tradição e a cultura de um folguedo. É a fé que eles destinam aos santos que faz a festa ser verdadeiramente rica em diversos sentidos. A crença em santos católicos livrou o negro de atritos que aniquilaria sua raça no Brasil, caso não houvesse concordância com os colonizadores. Os acordos entre dominantes e dominados formaram o ponto forte que ambas as raças dividiam, conseguindo chegar ao respeito na hora da adoração aos santos.
FIGURA 02: O SOM AFRO-BRASILEIRO E A CRENÇA CRISTÃ FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
Veríssimo de Melo (1964), em estudo sobre a Festa do Rosário de Jardim do Seridó, aponta para uma relação imagética da fé negra nos santos católicos do festejo com a adoração dos negros africanos por seus totens5. Ele afirma que os negros sempre viveram na África em torno de totens e, durante a escravidão, teriam se congregado em torno de um santo da religião católica. Por isso, a inclusão dos ritos africanos nas festas católicas foi de comum acordo para ambas as partes; a Igreja, preocupada em reter a fúria dos negros escravizados, e os negros, aceitando o sincretismo religioso como forma de manter sua fé num totem. Esse mesmo autor dá um significado especial à escolha dos negros por Nossa Senhora do Rosário, que seria a santa católica preferida deles. Nossa Senhora do Rosário, segundo Veríssimo de Melo, teria sido levada para o Congo pelos portugueses, anteriormente ao período do tráfico de escravos para o Brasil. A devoção à santa surgiu porque ela seria para os negros uma transposição daquele ídolo da religião primitiva, Iemanjá, dona Janaína, a rainha das águas, já que a crença aos seus orixás era proibida. As irmandades católicas foram feitas porque o senhor de engenho não permitia o culto fetichista. O autor acredita que os escravos viam na imagem católica mais a deusa das águas (Iemanjá) do que propriamente a santa do hagiológico6 romano. Já as celebrações das cerimônias do coroamento do rei e rainha, camuflados de totemismo, eram aceitas tranquilamente pelos senhores de escravos, pois serviram como derimidoras de atritos. Conforme Tinhorão (1975), Andreoni explica a importância de um folguedo para os negros e o que a falta ou a negação dele por parte dos senhores poderia causar
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Objetos ou animais a que certos grupos primitivos se julgam filiados e lhes devem dedicar veneração; coisa julgada sagrada, inatingível. Mini Aurélio; 2000. 6
Tratado acerca da vida dos santos.
aos escravos. Negar os seus folguedos, que eram o único alívio de seu cativeiro, seria como desejar o desconsolo, que traria a melancolia e a vida curta aos escravos. Os conselhos de Andreoni alertavam para a forma como essas festas seriam realizadas. Isso servia de atenuante para a desconfiança dos senhores brancos ao estranharem os reis, cânticos e bailados criados em alguns dias do ano pelos afrodescendentes (1975; p.: 115). Os dois autores anteriores não detalharam mais sobre essa escolha dos indivíduos estudados pela santa, mas Roberto Benjamim procurou descrever minuciosamente sobre as origens dessa cultura. De acordo com seus estudos, realizados em 1977, sobre a Festa do Rosário de Pombal, foram os negros escravos de Portugal que adotaram a santa como padroeira. Para comprovar isso, ele baseou suas descobertas em outros estudos de Julita Scarano (Devoção e escravidão, p. 47), onde há o achado de documentos de 1436 que registram as Irmandades do Rosário dos Pretos em Lisboa, como instituições préexistentes e bem estruturadas, ligadas aos conventos dos padres dominicanos. O autor pôde comprovar que também outras ordens religiosas regulares difundiram no mundo colonial português a devoção do Rosário, como franciscanos, jesuítas, agostinianos etc. Contudo, para os Negros do Rosário de Jardim, a tradição de uma lenda contada pelos mais velhos representantes da comunidade da Boa Vista e de Jardim parece ser a única explicação para devoção por Nossa Senhora do Rosário. Como as teorias anteriores, a lenda explica a escolha dos sujeitos pesquisados pela santa. Ambas as comunidades têm o mesmo relato de como acharam a estátua católica e porque ela foi escolhida. As lacunas ou diferenças em alguns trechos fazem perceber que os elementos da dança e da música são as únicas passagens que as duas comunidades preservam devido à importância de se fazer uma festa para essa crença.
Sob uma perspectiva histórica, o movimento que a memória faz é o mesmo para as duas histórias contadas pelos negros mais velhos da comunidade. Por se tratar de uma lenda, os negros podem acrescentar ou omitir detalhes que não interferem na preservação da tradição folclórica. Não há questionamentos da veracidade lendária pelos negros habitantes das comunidades, mas sim uma forte crença no que parecer ser absurdo para algumas pessoas. Dona Inácia, da comunidade de Jardim, conta a lenda do jeito que seus avós a ensinaram:
meus avó falava que ela apareceu numa serra (estátua da santa)... foram busca com música. Chegava, butava, aí ela voltava pra trás, pra o mesmo lugar. Depois foram buscar as caixinhas, essas caixinhas, os tambor com os seus espontão. Aí, foram busca, trouxeram, ela ficou. Aí, ficou chamando ela de Nossa Senhora do Rosário; foram os negros que vieram que foram busca (CONCEIÇÃO, Inácia Maria da. Op. Cit. Grifos de Diego Marinho. Entre Estratégias e Táticas: enredos das festas dos Negros do Rosário em Jardim do Seridó-RN).
Já o Senhor Amaral, da Boa Vista, relembra a história contada pelo “povo”, se referindo aos mais velhos. Percebemos nos detalhes que os contos diferem um pouco, mas sempre o elemento da música consegue deixar a santa com a Igreja Católica, como um indicativo para se criar uma festa que faça o mesmo percurso, entre a comunidade da Boa Vista e Jardim, representando a união das duas culturas:
Como o pessoá diz, ela vivia num mato, lá numa ilha, num sabe? Aí, acharam num tronco. Aí, pegaram, trouxeram ela pra cá, aí, quando foi no outro dia, voltou pra lá sem ninguém levar (...) porque essa santa tava com nós aqui, vinha trazer pra cá, ela voltava pra lá. Aí, quando foi pra ficar permente (permanente), assim a história diz, eu num sei muito bem, aí, levaram e vamos fazer a festa. Aí, foram, os negros foram pra lá, trouxeram ela debaixo da procissão, a batucada, começou a batucada. Trouxeram ela praqui, aí, ela ficou, num voltou mais. (AMARAL, José Fernandes do. Op. Cit. Grifos de Diego Marinho. Entre Estratégias e Táticas: enredos das festas dos Negros do Rosário em Jardim do Seridó-RN).
Notamos que há, na memória coletiva do grupo pesquisado, uma total adesão ao trabalho artístico e cultural desenvolvido há mais de um século. Porém, sob o ponto de vista católico, há desmembramentos. Os jovens que moram na comunidade da Boa
Vista ainda carregam os valores religiosos, mas os que moram em outras cidades não conseguem se integrar totalmente às longas missas durante a Festa dos Negros do Rosário. Muitos saem da Igreja para conversar nas calçadas uns com os outros. Le Goff (1994) explica que, nas sociedades sem escrita, a memória coletiva se ordena por três grandes interesses, a idade coletiva do grupo, que se funda em certos mitos de origem, o prestígio das famílias dominantes, que se exprime pelas genealogias, e o saber técnico, que se transmite por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa (1994, p. 431). Pudemos observar que o maior interesse dos Negros do Rosário é o da idade coletiva do grupo, pois todos se orgulham do tempo que é mantida e refeita a celebração festiva. Para comprovar isso, o jovem integrante da comunidade da Boa Vista, Paulo Henrique Fernandes, que mora no Estado de São Paulo, foi escolhido um dos juízes do ano na apresentação de 2006 para 2007. Para ele, o momento era de alegria e de grande relevância, pois “podia representar os antepassados e contar suas histórias apenas se apresentando no folguedo”.
1.2 A arte no folguedo
Nessa manifestação popular chamada Festa do Rosário, não é só pela história oral que os integrantes do grupo mantêm a tradição. A arte também é um forte elemento que delineia o folguedo com traços poéticos e sempre caracterizados. Os elementos da dança e da música são citados pelos indivíduos pesquisados como uma atividade que empolga a todos os representantes da Irmandade. E são, talvez, os veículos folkcomunicativos que mais são compreendidos pelo público receptor.
Tocar um instrumento desde pequeno ou aprender rápido os passos da batucada são hábitos mantidos através das gerações nas duas comunidades da Irmandade do Rosário, em Jardim e na Boa Vista. Todos os integrantes do grupo são induzidos a aprender essas artes denominadas de Espontão. O espetáculo do Espontão dos Negros do Rosário, parte fundamental do folguedo, aglomera uma multidão curiosa pela crença que perpassa as fronteiras do passado também através da arte.
1.2.1 A dança do Espontão FIGURA 03: PASSOS E SONS DO ESPONTÃO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
A característica mais marcante da Festa do Rosário é a dança do Espontão composta por negros tocadores de pífanos e tambores e dançarinos que se misturam entre os rituais católicos, também presentes na festa, realizados nos três dias de apresentação. Sua denominação deriva da meia-lança usada pelos sargentos de infantaria no século XVIII. Pode-se caracterizar essa principal atividade artística como mais um veículo folk que transmite a história traduzida pelos símbolos do folguedo. É de se observar que todas as danças remanescentes de negros escravos têm as marcas do Brasil colônia, com a disputa racial e de poder sempre destacada. A maioria dos festejos quilombolas retrata a mesma ginga e maliciosidade no jeito de dançar. No
caso dos Negros do Rosário, a regra é a mesma. Apesar dos dançarinos serem homens, percebe-se os mesmos traços de disputas entre as raças. Algo que Tinhorão já havia descrito como observações de teóricos do século 16 sobre as danças negras: “(...) o requebrado dos quadris, o movimento de avanço e recuo com marcação rítmica nos pés, e finalmente, a umbigada, que traduz a sobrevivência de alguma dança ritual africana ligada ao culto da fecundidade” (1975; p. 120). O termo Espontão também designa as danças e lanças de outras festas do Rosário, mas com a denominação de Pontão, realizadas por negros quilombolas, como as da Paraíba. No Alto Sertão paraibano, a tradição da Festa do Rosário de Pombal é de 113 anos. Nela, os negros brincam com os Pontões por nove dias do mês de outubro. Como uma arte folclórica desenvolvida em conjunto e com freqüência, a dança do Espontão é, então, bastante conhecida das populações de determinados Estados nordestinos brasileiros. Nestes grupos específicos existe a união dos grupos negros e o cumprimento da festa anualmente. A lança carregada pelos dançarinos do Espontão também recebe o mesmo nome, mas é apenas um pedaço de madeira – geralmente um cabo de vassoura – pintado na cor vinho, com fitas coloridas na ponta. O instrumento é a representação da “arma” do guerreiro, que, na dança, se transforma em lança abençoada pelos santos. Como outro instrumento folk, representa o sagrado tocando um homem, o que revela a mensagem de devoção para com os santos em troca da proteção dos Negros do Rosário. É com ela que os negros “abençoam” as pessoas durante o cortejo, pelas casas e pelas ruas, por três dias. Os componentes do grupo da Boa Vista não conduzem mais a lança de metal na ponta para evitar que as crianças se machuquem quando estão empolgadas nas
coreografias, mas o Espontão de Jardim ainda leva a lança de metal, o que faz o instrumento parecer ainda mais com uma arma de guerra.
FIGURA 04: DANÇARINOS DA BOA VISTA E DE JARDIM - CORREDOR REINADO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
Com ou sem lança de metal, o Espontão é constantemente carregado pelos negros em qualquer apresentação e os passos inventados por eles remetem a uma batalha de classes sociais. Observamos assim, que todo e qualquer movimento criado no folguedo transmite uma mensagem, ora de religiosidade, ora de reafirmação de lutas travadas por bravos guerreiros abençoados pelos santos católicos.
1.2.2. Coreografias e loas do Espontão
Na apresentação, cada um dos homens negros leva o Espontão e desenvolve uma coreografia que simula uma batalha. O chefe, também chamado de “Capitão de lança”, é
o que leva a lança grande. Os dançarinos guiados por ele percorrem as ruas ao som de tambores e pífanos. Nas casas visitadas, eles dançam agitando os Espontões, realizando saltos de ataque, recuos de defesa, acenos guerreiros, numa improvisação que revela grande destreza nos movimentos. Não há cânticos, mas o acompanhamento rítmico produzido nos tambores causa, por si só, uma grande atratividade na multidão. A única comunicação falada pelos Negros do Rosário é a entoação de loas7 ou saudações recitadas ao final das batucadas para louvar aos santos, as pessoas, a natureza e à comunidade na qual eles habitam. Geralmente, a loa é recitada pelo Capitão de Lança e respondida por todos os integrantes dos dois grupos. A loa mais utilizada é esta:
Viva Nossa Senhora do Rosário! Viva São Sebastião! Viva as pessoas de bem! Viva a boa sociedade, troncos, ramos e raízes!
Em resposta à saudação, os negros respondem, em coro, “viva!”. A mensagem folk subjetivamente contida na loa pode ser entendida como um grito que mostra a filosofia de vida do negro alforriado. Além de retratar a devoção aos santos, a loa é uma mensagem de liberdade. Mas a dança não apresenta só o lado social e religioso do negro. Por ela fica clara a intenção de mostrar ao povo que o negro nunca foi totalmente subserviente ao branco. Há coreografias na dança do Espontão que remetem às táticas de guerra, como a própria definição do instrumento prevê. A maioria dos passos foi criada desde os ancestrais dançarinos e são imitados pelos negros mais jovens. Porém, há a introdução de coreografias novas, mais elaboradas e ás vezes até menos pretensiosas, sem
7
Conforme Câmara Cascudo, loas são “versos de louvor, louvação em versos, improvisados ou não”. CASCUDO, Luís da Câmara. Op. Cit. P. 334.
compromisso com os rituais de antigamente, onde se sobressaíam os passos que eram utilizados pelos negros escravos para demonstrar o confronto entre brancos e pretos. Os três ritmos diferentes de música acompanham três tipos de dança exibidas nos desfiles e apresentações durante a festa. Os ritmos são chamados de batucadas. Em entrevista com a presidente da Associação de Desenvolvimento da Comunidade da Boa Vista (Adecob), Maria das Graças Fernandes, que também é coordenadora do projeto Quilombinho,
da
prefeitura
de
Parelhas,
descobrimos
mais
um
elemento
folkcomunicacional. O passo dançado pelos negros em que eles vão agachando até o chão – com um negro de frente para o outro e as lanças se entrecruzando em cima - é a representação do confronto entre brancos e negros. A coreografia apresenta uma bela sincronia e alegra os negros na execução. Mas quer dizer algo bem diferente, como comemorar a ausência dessa luta há mais de 200 anos. Este pareceu ser o único passo que eles sabem a origem e o significado, o que nos proporcionou relatar aqui mais um traço folkcomunicativo do folguedo. Graça explicou que os mais velhos nunca revelaram os símbolos de dança, música e figurino utilizados no folguedo para os mais jovens, que constantemente questionam sobre isso e ainda não obtiveram respostas.
1.2.3. A música do Espontão
O som do Espontão é um tipo de música popular, como tantas outras que perpassam o tempo sendo cantadas pelo povo, quase sem interferência midiática. Tinhorão (1975, p. 9) afirmou que a música popular que conhecemos é um fenômeno ligado ao aparecimento de centros urbanos no Brasil colonial.
Já na Idade Média, o povo considerava a arte da música um privilégio. “Cantar e compor se tornou uma especialização e gozar esse canto um prazer estético”, escreveu Tinhorão (1975; p. 33) demonstrando como a canção desceu ao povo com a facilidade de ver e poder ter instrumentos. Desde essa época, a base de instrumentos utilizada pelos grupos populares, como a dos Negros do Rosário, é formada por tambores ou “caixas”, a mais antiga referência à participação de negros na criação de ritmos, genericamente definida pelo nome de batuques. Mais uma vez, Tinhorão acrescenta que foi com esse instrumental rudimentar que os negros africanos começaram também a participar das festas públicas em que os portugueses se apresentavam com suas chamarelas e trombetas, além de cultivarem nos primeiros anos da escravidão o mesmo tipo de música que haviam trazido da África. Executada há mais de um século com a mesma base de instrumentos - bumbos, tarols e pífanos - a sonoridade do Espontão é rica e agressiva e as batucadas dos Negros do Rosário envolvem a todos. Esse ritmo percussivo é utilizado desde o século XVI no Brasil, quando os primeiros ritmos afros chegaram aqui e uma das raízes musicais, o lundu, foi introduzida na nossa cultura.8 Na Festa dos Negros do Rosário, outro tipo de manifestação musical popular é agregada à cerimônia religiosa, a apresentação da Banda Euterpe9 Jardinense
8
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de negros, índios e mestiços. Editora Vozes: Petrópolis; 2ª ed.; 1975. Cap. 1; pág. 09. 9
Do grego eu (bom, bem) e τέρπ-εω ('dar' prazer). A Doadora de Prazeres. Era a musa da Música, filha de Zeus e Mnemósine. Foi uma das nove musas da mitologia grega. No final do período clássico foi nomeada a musa da poesia lírica e usava uma flauta. Inspirado nesta deusa grega, o maestro Heráclio Pires Fernandes, em 1906, mudou o nome da então Sociedade Musical da Vila da Conceição, que havia surgido na Vila 47 anos antes (1859), para Banda Euterpe Jardinense. Desde então passou a pertencer à Prefeitura Municipal de Jardim do Seridó, quando a Vila Conceição do Azevedo havia sido elevada a categoria de cidade. Essa nova denominação dada à banda é conservada até hoje. Em 1971, o oficial reformado do Exército, Jaime de Medeiros Britto, assumiu o comando da banda dirigindo numerosos espetáculos e concertos. De 1975 a 1978, a banda chegou a reunir um elenco de 43 músicos, a maior do Estado até então, se apresentando em diversas cidades do País. Atualmente, a Banda Euterpe acompanha as festividades religiosas, como o folguedo dos Negros do Rosário, além de participar de concursos e
Alternando os toques, os dois grupos proporcionam uma mistura de toque marcial com os batuques afros que nos remete a antiga disputa social entre negros e brancos. Assim, Igreja e Quilombo saem revezando os sons extraídos das suas raízes. Ao longo de toda a procissão, um batuque faz os negros saltarem alegres pelas ruas da cidade. Os clarins e tarols da Banda Euterpe os faz parar de pular. Enquanto o tom disciplinado da marcha desenvolve uma música, os negros caminham esperando o recomeço de mais uma batucada. Apesar da disputa musical como forma de disciplina, equilíbrio e respeito na crença que une os dois grupos, católicos e quilombolas, há um ponto em comum: a presença do jovem perpetuando tradições artísticas seculares. A música é o que atrai o mais jovem ao folguedo, assim como à Banda Euterpe. O som faz esses aprendizes se transformarem em instrumentos, meios que levam uma mensagem artística e histórica por entre os séculos. Os negros afirmam que não tem nenhuma informação sobre os símbolos. Segundo Maria da Graça, seria interessante que os pesquisadores desenvolvessem suas respostas para os questionamentos até o momento não explicados pelos negros.
consertos nacionais. AZEVEDO, José Nilton de. Um passo a mais na história de Jardim do Seridó. Editora UFRN: Caicó; 1ª ed.; 1988. Cap. 1; pág. 172 – 174.
Arte e Tradição na Festa de Nossa Senhora do Rosário de Jardim do Seridó - RN
2. A memória e a Folkcomunicação como recursos de manutenção dos Negros do Rosário
Não seria muito difícil reconstituir os significados da simbologia utilizada no folguedo, mas, com toda certeza, seria trabalhoso. Primeiramente pela profundidade histórica que uma pesquisa nesta área necessitaria. Talvez, acadêmicos desta área não tenham descoberto ainda as incógnitas que os participantes dessa manifestação cultural possuem em relação a sua própria história e, por isso, não tenham conseguido alcançar a comunidade quilombola com as respostas. Segundo, por causa da pouca demanda de trabalhos acadêmicos que estudem a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Como uma forma de contribuir com a difusão dos costumes desta comunidade, sob a perspectiva folkcomunicativa, este estudo surge para preencher algumas lacunas. Porém, seguimos pela perspectiva histórica, na qual a memória é um forte embasamento para guiar os estudos de Folkcomunicação. Pudemos perceber que as lembranças dos mais velhos conseguem alcançar os mais jovens, cercados de meios eletrônicos e envoltos pela cultura de massas. As crianças da comunidade quilombola da Boa Vista são educadas para pular, mas embaladas pelos relatos marcantes das histórias que escutam dos pais e avós. Há alguns anos esse discurso oral está sendo constantemente ameaçado por tecnologias como a televisão, que transmite mensagens consumistas e de valores distantes da realidade rural ainda vivenciada por alguns jovens. Devido à necessidade de competir com esta mídia, que oferece entretenimento e informação de fácil acesso e absorção, foi inventado um projeto quer vai educar para a preservação da memória do grupo, o Quilombinhos.
FIGURA 05: FOLGUEDO TEM GRANDE PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
A integrante da Boa Vista, Maria das Graças10 está coordenando o projeto destinado às crianças da comunidade.
“Eles aprendem, como numa escola, um pouco da história da África, dos movimentos artísticos culturais do Congo, de onde nossos ancestrais são, além de entenderem que não é só o folguedo que é dançado no Brasil. Eles têm a oportunidade de ouvirem tudo isso de professores que desenvolvem o hábito de 10
FERNANDES, Maria das Graças: depoimento [dez. 207]. Coordenadora do projeto Quilombinho, da prefeitura de Parelhas, e presidente da Associação de Desenvolvimento da Comunidade da Boa Vista (Adecob). Possui Ensino Médio completo e muita curiosidade em aprender sobre a história da comunidade onde nasceu, se criou e vive até hoje. Entrevista à autora, em Jardim do Seridó-RN, em 2007. 2 fitas K7 (120 min).
contar histórias pela leitura. Os meninos e meninas podem aprender a jogar capoeira, mais uma arte africana. No Quilombinhos, nós estamos montando o primeiro grupo de dança feminino da comunidade. As mulheres queriam dançar no folguedo, mas, como a tradição não permite, estamos organizando um grupo de meninas e adolescentes que vão dançar alguns ritmos africanos”. (FERNANDES, Maria das Graças. Entrevista à autora em dezembro de 2006, em Jardim do Seridó-RN)
O objetivo principal do projeto é a preservação do folguedo no mundo moderno, onde as crianças se tornam jovens que não vão saber preservar a história devido à imensa quantidade de informações contrárias ao que é praticado no folclore. “A maioria deles vive em cidades, hoje em dia. Moram em Currais Novos, Natal, Caicó... porque os pais só conseguiram emprego fora da comunidade. Eles vivem em cidades que já têm outros costumes mais urbanos. Mas conscientizamos primeiro os pais, gente da minha geração, por exemplo. Eles têm o papel de não deixar morrer nos adolescentes, principalmente, a vontade de manter o folguedo. Depois é a vez da criança, que vai compartilhar com os outros os ensinamentos dos nossos ancestrais”. (GRAÇA, 2007) O projeto Quilombinhos ainda está em andamento, mas já tem o apoio da prefeitura de Parelhas-RN, porque a comunidade faz parte do município. A coordenadora do trabalho que vai orientar pedagogicamente as crianças quilombolas acredita que os Negros do Rosário só se mantém ativos por causa do esforço em conjunto que é feito para a manutenção do folguedo. Quanto aos mais velhos quilombolas, eles acreditam que a iniciativa é válida, desde que não seja alterado o sentido da história contada nas apresentações. Depois de aprovado pelos guardiões da memória da Boa Vista, o Quilombinhos pode ser mais uma escola que vai reforçar as lições passadas pelos pais e avôs afrodescendentes. Embora a transmissão oral da história vivida pelos antepassados escravos tenha servido como base fundamental para a tradição do folguedo se manter firme, a integrante do grupo quilombola se preocupa com uma possível falta de interesse por parte dos mais jovens em continuarem se preparando para serem também guardiões da
memória. Mas, com o trabalho constante e até intuitivo dos mais velhos em contato com as crianças, os tambores do Espontão continuam sendo tocados, as batucadas são assoviadas e as brincadeiras com os meninos no terreiro, de pular o Espontão, servem para indicar as crianças mais avançadas nas coreografias e transformá-las em integrantes do folguedo. O que pudemos perceber é que há um ritual praticado coletivamente pela comunidade quilombola, tanto de Jardim como da Boa Vista, de se falar muito sobre a “festa”. Essa comunicação constante sobre o festejo deixa as crianças assimilando e praticando a dança e a música a maior parte do tempo. E assim eles vão crescendo, entre um batuque e outro, pulando os anos e querendo cada vez mais entrar para o folguedo. É como se os integrantes da comunidade tivessem gravados na inconsciência a prática e o gosto daquela festa tão comentada e esperada o ano todo. A aquisição da memória das crianças foi objeto de estudo de pesquisadores em 1968, que descobriram o grande papel desempenhado pela inteligência. O aspecto ativo e constitutivo das condutas pelas quais se faz o uso desse caráter perceptivo-cognitivo nos seres humanos também foi abordado nessa mesma época. Chegaram à conclusão de que era preciso compreender a natureza da recordação humana, pelas perspectivas biológica e de estímulo social, para poder entender como funciona a memória. A pontuação feita por Le Goff (1994) sintetiza os dois aspectos como resultados de sistemas dinâmicos de organização. “Eles só existem na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui”, (p. 424). O comportamento dos indivíduos pesquisados é condizente com os aspectos ativo e constitutivo na reconstrução da história. Procuramos saber dos adolescentes, por serem mais jovens, se eles pensam em deixar o folguedo. O que eles acham dessa tradição que tanto todos falam?
Ao contrário do que Maria das Graças teme, os adolescentes demonstraram interesse em dançar no folguedo. Um dos integrantes mais jovens do grupo de Jardim do Seridó, Josélio Dantas, veio da capital do Rio Grande do Norte, Natal, somente para dançar. Segundo ele, os pais sempre comentavam sobre a beleza da festa. “Eu sempre tinha vontade de vir olhar. Consegui vir esse ano e fiquei com vontade de dançar. Passei alguns dias andando com os tocadores e dançarinos do Espontão e eles me colocaram no grupo”. A forma como os mais velhos transmitem suas vivências ou de seus ancestrais de recato e comedições devido à escravidão - sempre é através da oralidade ou do conto. A identidade cultural perpassa as condições de gerações distintas para encontrar no registro oral a sobrevivência.
FIGURA 06: VELHOS E JOVENS COMPARTILHAM E GUARDAM A HISTÓRIA FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
Os mais velhos narram seu passado sentados nas calçadas ou nas salas das casas e instigam a curiosidade dos jovens sobre suas raízes. Este papel do contador de
histórias, que ensina através de seus relatos aos mais jovens, é o de preservar com orgulho o passado, a história e a cultura negra. O velho contador de histórias entrou em evidência nos últimos quatro anos para os pesquisadores do folclore devido ao projeto Griô, desenvolvido pelo Ministério da Cultura (MinC). Como definiu Hampâté Ba (1982, p.204), “uma vez que a sociedade africana está fundamentalmente baseada no diálogo entre os indivíduos e na comunicação entre comunidades ou grupos étnicos, os griôs são os agentes ativos e naturais nessas conversações”. Na comunidade da Boa Vista ainda não se fala em griô, mas se conta muitas histórias. Baseados nos relatos dos negros mais velhos entendemos, primeiramente, que o folguedo para eles não representa uma festa religiosa somente. A alegria e a descontração se instalam na comunidade da Boa Vista nos dias antecedentes à apresentação, denotando o que o senhor José Vieira11 descreveu como uma “farra”. “Em 42, eu fui pra festa só, como se diz, pra farrar. Eu era muito moço, fui só farrar. Hoje também a festa é só uma farra boa. Mas tem de cumprir direitinho o reinado”. (2004) Os mais velhos negros guardam a história da Comunidade da Boa Vista com orgulho. Outros relatos sobre eles já foram escritos, filmados e fotografados, mas sem a riqueza de detalhes e informações complementares que só a mente de um idoso guarda por ter vivido em outra realidade.
2.1. Folkcomunicação – símbolos distintos em discursos e apresentações
11
FERNANDES, José Vieira. Entrevista à autora aos 82 anos de idade, em 2004. Um dos guardiões da memória da comunidade da Boa Vista. Faleceu no início deste ano. Zé Vieira, como era mais conhecido, foi líder da comunidade durante quase toda a vida.
FIGURA 07: ESPONTÃO - INSTRUMENTO, DANÇA E MÚSICA DO FOLGUEDO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
No folguedo dos Negros de Rosário, a Folkcomunicação está presente na apresentação como um todo através dos símbolos utilizados pelos negros, que são muitos e a maior parte com significados desconhecidos. Os símbolos para Beltrão (2004) são distintos em discursos e apresentações. O autor observou que as formas significativas visuais e auditivas, como as combinações de sons utilizados pelos Negros do Rosário, “em suas expressões elementares são os instrumentos mais primitivos das inteligências”. Beltrão também tem uma explicação que se encaixa na apreensão rápida e contínua pelas gerações quilombolas por seus símbolos artísticos. Os ícones “adquirem estruturas complexas, constituindo símbolos de profunda significação e apresentando uma articulação lógica peculiar”. (2004; p.: 69) Desde que foi criado (1863), o folguedo dos Negros do Rosário passa por constantes transformações e inserções de novos elementos simbólicos, principalmente há seis anos, devido ao maior número de participantes jovens. Naturalmente, isso traz adaptações sutis, mas relevantes para a manutenção do interesse na tradição.
Em estudo sobre “a presença de traços da cultura de massa absorvidos pela cultura folk”, Roberto Benjamin observou que modismos de linguagem verbal, gestual, do vestuário e outros marcam a presença da cultura de massas na cultura popular tradicional12. No folguedo dos Negros do Rosário, percebemos que, em alternadas épocas, a tradição é refeita, ao menos visualmente, a cada nova geração, devido a esse aspecto renovador de novos integrantes compondo a tradição do folguedo. Durante as entrevistas com os adolescentes componentes da dança do Espontão, pudemos perceber que o visual festivo os atrai, mas muitos dos significados dos símbolos utilizados no folguedo são desconhecidos para eles. Para os mais jovens afrodescendentes, os santos, as indumentárias características de um reinado, as coroas, as bandeiras e as loas, são ícones que os deixam fascinados. Como toda a comunidade católica fica a observar a festa, a sensação para eles é de um respeito adquirido somente pela existência. Um dos participantes adolescentes, o músico do Espontão, Joaquim Dantas, disse que aprendeu a tocar pífano para entrar no grupo. Desde pequeno, ele queria ser um músico do Espontão, mas não conseguia tocar. Quando aprendeu a manusear o instrumento, “foi uma sensação de estar com uma responsabilidade muito grande daquele momento em diante”. A flauta, para ele, era um símbolo de poder muito desejado por toda a infância. A linguagem do folclore é enigmática e desafiadora, como definiu Beltrão (2004). “Num estudo de conjunto, a nossa capacidade de descobrir o segmento semântico codificável, no emaranhado de sons, ritos, movimentos e imagens que o
12
BENJAMIN, Roberto. Mídia e Folclore – o estudo da folkcomunicação segundo Luiz Beltrão. Cátedra Unesco/Umesp de Comunicação; 2001; p. 36.
encobrem, constituindo o segmento estético, não decodificável racionalmente” (2004; p.: 69). Nas primeiras apresentações, os negros dançarinos vestiam branco e usavam chapéus com abas. Com o passar dos anos, as novas gerações vão introduzindo traços da cultura de massa para que haja uma identificação maior com o grupo adolescente, responsável pela manutenção dessa cultura. Na apresentação de 2006/2007, as negras mais jovens adotaram um visual bastante moderno. Elas usavam longos apliques em formato de transas rastafari.
FIGURA 08: SUELMA IRACI DA CRUZ – RAINHA DO ANO 2006/2007 FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
Quando questionadas pelo visual aparentemente copiado das afrobrasileiras baianas, elas disseram que não lembram qual delas chegou com a novidade na comunidade. Segundo as jovens, elas aderiram ao estilo porque simplesmente acharam o penteado “bonito”.
Já as senhoras mais idosas da comunidade descriminam não só essa postura irreverente às tradições e costumes, como votam contra as filhas e netas nas mesas quando são questionadas pelos integrantes homens. Dona Inácia reprovou a atitude das mulheres mais jovens desejarem dançar no Espontão, no meio das ruas, por achar que “a luta delas não dá em nada”. Apesar da força contrária, inclusive partindo do mesmo sexo, as quilombolas da Boa Vista estão dispostas a enfrentar os preconceitos e estão cada vez mais presentes nas relações políticas do grupo, chegando a participar de vários congressos do Movimento Negro em todo o Brasil durante o ano.
2.2. Representatividade feminina no folguedo
FIGURA 09: MULHERES NÃO PODEM DANÇAR NO FOLGUEDO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
A participação feminina no folguedo dos Negros do Rosário ainda é pequena, mas já é atuante. A carga simbólica que elas carregam na manifestação folclórica parte da imagem da santa, Nossa Senhora do Rosário, pois, nos primeiros anos de
apresentações, elas só serviam para organizar e arrumar a festa, até que elas próprias começaram a pedir aos companheiros e à Igreja para participar devido à devoção à santa católica. Abriu-se, então, a exceção à regra. Atualmente, as mulheres continuam lavando, cozinhando e arrumando a Casa do Rosário, enquanto os homens têm mais liberdade durante a festa. Porém, já existem rainhas e juízas no reinado, mais um elemento folk que transmite a história da coroação de reis negros do Congo. Maria das Graças já foi rainha em 2004. Ao ser coroada, ela fez o que os fiéis costumam fazer ao serem coroados por alguns minutos, uma promessa.
“Quando eu fui eleita Rainha do Ano da Festa de Nossa Senhora do Rosário, recebi a coroa e disse para mim mesma que eu não ia ser rainha só por ser rainha, mas eu ia construir a capela. Essa construção é tudo para mim. Quando é período de festa, eu passo duas três noites sem dormir, perco peso trabalhando. A carga é quase somente para mim, pois sou eu que organizo há anos essa festa. Eu consegui o apoio de pessoas importantes, que confiam em mim e isso me motiva a continuar. Porque muitas vezes a pessoa se esforça e não é valorizada por isso, mas eu consegui esse reconhecimento”. (FERNANDES, Maria das Graças. Entrevista à autora em dezembro de 2006, em Jardim do Seridó-RN)
No início, Maria das Graças teve que enfrentar o machismo do marido, o porta bandeira do folguedo, Antônio Fernandes, mais conhecido por Dodoca. Ela conta que, quando começou a viajar para representar a comunidade nos congressos quilombolas, o marido impôs um clima de ciúme. Com um jeito todo especial e usando a mesma retórica da manutenção da tradição folclórica, com a qual todos os membros do grupo se identificam, ela começou a romper as barreiras machistas.
“A partir do momento que a gente começa a participar desses encontros, surge a vontade de fazer alguma coisa para mudar a realidade acomodada em que vivem a maioria das comunidades quilombolas. A gente vê que tem gente passando pela mesma dificuldade e lutando pelo mesmo ideal. Até os idosos participam das nossas interações. Alguns quilombolas não sabem aproveitar as oportunidades. Mas é compreensível, porque eles vivem no mesmo canto a vida inteira. Desse jeito, é fácil acreditar que tudo tem que cair do céu, que você não precisa fazer esforço algum para conseguir melhorias de vida. Mas, a partir do momento que você sai, começa a conhecer outras realidades, dá para ver que a comunidade da Boa Vista é privilegiada. Nós temos água potável, casas em alvenaria, temos luz elétrica e todas a crianças estudam. (...) A gente sabe que existe o racismo, talvez isso iniba um
pouco os meus irmãos. Por isso, a gente passa muito para os adolescentes que eles têm que estudar. Se ele for desvalorizado pela cor, em algum momento ele vai ser valorizado pelo o que ele é. Hoje existe preconceito com todo tipo de diferença, mas nem por isso a gente tem que baixar a cabeça e sim buscar os nossos objetivos”.
FIGURA 10: MARIA DAS GRAÇAS FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
A
batalhadora
integrante
do
grupo
quilombola rompeu o preconceito em casa, mas disse sofrer a mesma pressão da comunidade quando alguma coisa dá errada na preparação das festividades. Devido à condição de gênero, os homens da Boa Vista exigem mais das mulheres que se propõem a fazer parte do grupo. Quando elas não conseguem atuar no folguedo com discrição, sofrem reclamações. A coordenadora do projeto Quilombinho conta, emocionada e orgulhosa, a trajetória de vida que a levou ao cargo de presidente da Adecob e como consegui ser respeitada pelos homens da irmandade. A simbologia aqui é carregada de emotividade e respeito aos antepassados porque, para esta integrante do grupo, participar de igual para igual com os homens, mesmo que fora das apresentações, é uma honra.
“A minha vida era diferente. Eu era dona de casa, cuidava do marido e dos filhos. Em 2004, antes de ser presidente da Adecob, eu fui convidada para participar de um encontro de negros em Natal-RN. Eu achava que ia ser uma única vez, mas foram muitos desses encontros que já participamos. Eu comecei a gostar, a perceber a luta negra, e fui amadurecendo. Notei que somos acomodados, porque eu comecei a perceber que outros quilombolas estavam lutando. A nossa luta pela sobrevivência é igual. Todos brigam por educação e respeito. Você ouve depoimentos indignantes. Negros que foram expulsos por prefeitos... Para perceber isso, não é preciso ir tão longe. Eu visitei a comunidade dos Negros do Riacho, de Currais Novos-RN e fiquei horrorizada com a pobreza do local. O caminho que eu estou seguindo é espinhoso. A partir do momento que você começa a trabalhar com pessoas de variadas mentalidades, dá muito trabalho entendê-las, agradá-las. Tem dias que eu deito na cama e penso em desistir. Começo a chorar e digo: „vou desistir‟. Mas minha família, minha mãe, me dão muito apoio. Não desisto também porque vem uma força interior muito forte que me faz continuar. Eu penso muito na construção da capela. Foi um sonho da comunidade que construímos juntos. Por isso, eu me meto em tudo, seja organizando as coisas, seja participando de reuniões, encontros ou
recebendo as pessoas que querem conhecer a comunidade. Por ser a primeira mulher da comunidade a estar à frente de tudo, às vezes, eu sou perseguida. Mas, por eu conseguir as coisas, correr atrás do que quero, não ser acomodada, é que a gente está conseguindo fazer tudo o que fazemos. Em todo o Seridó, a comunidade da Boa Vista está sendo reconhecida, é a melhor nos eventos afros que realiza”.
Uma das conquistas da gestão de Maria das Graças foi conseguir o apoio do Governo Federal, que deu 13 máquinas de costura industriais para as mulheres da Boa Vista trabalharem em sua própria localidade, construindo assim, uma autosustentabilidade sem precisar do deslocamento para um grande centro. O equipamento foi conseguido pela presidente da Adecob e mais duas pessoas da comunidade, que participaram de uma oficina de projetos culturais em Recife-PE. Entre vários projetos a serem escolhidos para as comunidades quilombolas, o grupo da Boa Vista escolheu o de corte e costura. Segundo Maria das Graças, elas receberam as máquinas quando já estavam descrentes em iniciativas como esta. Mas, um ano depois do projeto escrito, o equipamento chegou à comunidade e passou quase um ano parado no grupo escolar porque não houve capacitação teórica para a utilização da pequena fábrica de confecções. Veio então o projeto Casa da Família, que capacitou 22 pessoas com um curso de manuseio das máquinas e de corte e costura. Depois de produzirem as primeiras peças de roupa, as quilombolas pararam a produção por falta de material para costurar. Para retomar o projeto, o grupo de costureiras fez um empréstimo para adquirir linha, tecido etc. Atualmente, menos da metade das costureiras estão trabalhando, mas, Maria das Graças garante que o projeto vai continuar e o próximo passo conseguir um espaço em Parelhas para mostrar o trabalho. Esse é um projeto que eu acredito muito e vou batalhar até o fim por ele porque é nosso. Não é um projeto governamental que vem e depois acaba. Se depender da gente, da nossa força de vontade, temos uma fonte de renda. Por isso que sou taxada de chata, porque eu falo que é muito comodismo não levarmos um projeto desse adiante. As máquinas estão lá, tem pessoas capacitadas e hoje só resta cinco ou seis delas produzindo. Para que as coisas dêem certo, tudo depende muito da gente, da nossa força de vontade.
É com toda essa luta que as mulheres conseguem seus espaços na comunidade. E é com essa mesma determinação que elas querem entrar no folguedo. Ao receberem os ensinamentos dos antepassados, as mulheres também sonham em poder representar a comunidade pelas ruas de Jardim nos dias de festa. O que notamos atualmente é uma discreta participação delas nas horas da dança do Espontão pelas ruas. Elas seguem os companheiros e namorados pulando ao lado do cortejo que percorre as ruas. Achamos contraditória a forma de tratamento com as mulheres, pois os negros afirmam que elas são importantes para o grupo, porém, recebem as incumbências mais servis durante as festividades do Rosário. Levando-se em conta as ressignificações que a cultura popular deve sofrer para se perpetuar, um passo a mais para o folguedo seria a introdução do feminino nas apresentações dos Negros do Rosário.
2.3. O lugar onde moram as lembranças
A comunidade da Boa Vista fica localizada há aproximadamente 12 quilômetros de Jardim do Seridó e um pouco menos de Parelhas. Antigamente, era uma área bastante grande, mas, segundo os quilombolas, “as pessoas não-negras foram se apossando”. Hoje, eles vivem numa parte muito estreita. As divisas territoriais sempre foram medidas pelos quilombolas mais velhos, mas nunca foram repassadas para os mais jovens. Este ensinamento conseguiu fugir com o passar do tempo e a preocupação começou a se instalar nos herdeiros naturais. Os dois últimos representantes mais velhos da Boa Vista, D. Inácia e Zé Vieira, detentores da memória coletiva do grupo, morreram este ano. Com isso, os negros mais velhos atualmente na comunidade são os juízes perpétuos e o capitão de lança.
Preocupada com a preservação do folguedo, a Adecob encaminhou um ofício para o Incra pedindo a demarcação dessas terras em 2005. Como o Incra tinha um relatório muito antigo houve várias modificações e, para garantir um processo mais seguro, eles pediram a ajuda da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Três pesquisadores estão trabalhando na área para fazer um relatório mais atualizado. A professora Juliana Pereira, da UFRN, está desempenhando essa pesquisa e um trabalho antropológico da comunidade. Para os moradores, essa iniciativa vai ser muito importante, pois eles vão poder conhecer um pouco mais da história da comunidade. A economia da Boa Vista é basicamente sustentada pela indústria de cerâmica, mas a comunidade possui alguns aposentados. A agricultura só é utilizada para o consumo, pois a terra não é boa para plantar e não dá para produzir muito. Às vezes, a produção agrícola nem dá para o consumo, pois as terras estão ficando mais secas, como toda micro-região do Seridó, onde o sítio está inserido. Para se deslocarem par ao trabalho, os negros vão a pé ou de bicicleta. Existe ônibus pela manhã e à tarde para os alunos que estudam em Parelhas. Os que estudam no povoado de Juazeiro, vão a pé. Na Boa Vista tinha escola e creche, mas por falta de alunos e pela estrutura muito defasada, foram desativadas. Como o povoado do Juazeiro tinha uma estrutura bem melhor, as aulas passaram a ser ministradas lá. O único patrimônio arquitetônico em Jardim que pertence legalmente à Irmanda de do Rosário, é a Casa do Rosário. A escritura é em nome da comunidade da Boa Vista. Teve uma interferência da Igreja Católica de Jardim, que se dizia proprietária do imóvel, mas o patrimônio atualmente pertence aos negros. A comunidade recebe apoio da Secretaria de Assistência Social de Parelhas com cursos profissionalizantes fornecidos pela Casa da Família. Quando os Quilombinhos
precisam de transporte, eles fornecem. De Jardim, eles recebem o apoio logístico somente durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário. A próxima batalha da Boa Vista é a construção de uma quadra poliesportiva. A Adecob, em parceria com a prefeitura de Parelhas, que já está enviando os projetos tanto para a construção da quadra quanto para um centro cultural. A comunidade é muito visitada pelos pesquisadores e estudantes e essa requisitação cultural tem que ser bem recebida na comunidade. O ideal seria ter um local para exposições de fotos, a história da comunidade, com uma pessoa que pudesse atender a quem procurasse. Tem um projeto para ser aprovado que vai beneficiar o grupo Quilombinhos com a aquisição de recursos para instrumentos e vestuário. A comunicação da comunidade é limitada ao aparelho de telefone celular porque ainda não tem telefone público. Quando adoece alguém, eles se deslocam para uma comunidade próxima, que é o Juazeiro, onde tem telefone público para poder ligar e pedir um serviço médico ou transporte. Hoje, com o advento da telefonia móvel, as pessoas conseguem se comunicar com mais facilidade, pois alguns moradores têm aparelhos celulares. Mesmo assim, o telefone público é necessário e a comunidade enviou um ofício para a Telemar solicitando o serviço, mas o pedido foi negado porque a população ainda é pequena para “precisar do serviço”. Além de comemorarem a Festa do Rosário também na comunidade, os moradores da Boa Vista elaboram mais uma festa, o João Pedro, comemorado em julho. Segundo Graça, eles recriaram esta outra manifestação folclórica de maneira diferente, com apresentações culturais. “Eles levam apresentações de quadrilhas, casamentos matutos de outros Estados e a festa se tornou tradicional”. (2007)
A partir da elaboração dessas festas, os moradores se uniram para a criação da capela, que ficou semi-pronta no final de 2006, faltando o acabamento final. O templo servirá para a brigar as festas sagradas da Igreja Católica. Há mais de 15 anos os moradores da Boa Vista lutaram para construir esta capela e realizaram o sonho com patrocínio privado. Os recursos foram procurados porque a comunidade não possui recursos próprios. Com esses eventos bem organizados, a comunidade cresceu muito. Tem um trabalho social de aulas de capoeira e informática para crianças. Em 2006, surgiu a idéia de formar um grupo de dança africana feminino. Falta muita coisa ainda para se conseguir, mas há a conscientização de que tudo depende da comunidade. Contra o comodismo, Maria das Graças não gosta de culpar os governos pela falta de estrutura que possivelmente ainda existe no local onde ela nasceu. Ela acredita que pode contribuir, como todos os “irmãos”, para a construção de um local com melhor qualidade de vida. Nem todos os integrantes do folguedo dos Negros do Rosário da Boa Vista são críticos, mas o mais jovens estão começando a passar novos estímulos aos mais velhos e às crianças.
Arte e Tradição na Festa de Nossa Senhora do Rosário de Jardim do Seridó - RN
3.O folguedo de Jardim do Seridó-RN
Antes de serem cidadãos, eles são negros. Antes de andarem, eles pulam. É característico do indivíduo pesquisado receber a incumbência, desde pequeno, de carregar nas veias a energia e na mente a vontade de pular ao ouvir o Espontão. É na memória que a tradição encontra o aliado para perpetuar-se. Le Goff13 descreve a memória como “propriedade de conservar certas informações” que “remete-nos, em primeiro lugar, a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas ou que ele representa como passadas” (1994; p. 423). Seguindo esta linha de pensamento, a tradição dos Negros do Rosário percorre um caminho invisível contido na memória dos mais velhos afro-brasileiros das comunidades da Boa Vista e de Jardim. São eles os detentores do conhecimento daquela realidade e da história de seus antepassados. Sem descartar essa possibilidade e visando a interpretar a forma como o negro mantém a comunidade interligada aos seus costumes, face à sociedade midiática em que vivemos, Diego Marinho14 escreveu em sua pesquisa sobre estes quilombolas e revelou que “é na fala do velho onde está o poder de transmissão e constituída a verdade. O efeito de poder (...) passou a responsabilidade do reinado ao filho adotivo”. Para perpetuar uma tradição que lhes foi deixada pelos antepassados, os mais velhos ensinam, estimulam e fazem o folguedo com total devoção. A união em prol da tradição rendeu mais de um século de existência da Festa dos Negros do Rosário.
13
LE GOFF, Jacques. História e memória. Editora da Unicamp: Campinas; 3ª ed.; 1994 Historiador e pesquisador da comunidade dos Negros do Rosário. Fez a monografia de graduação de História da UFRN “Entre estratégias e Táticas: enredos das festas dos Negros do Rosário em Jardim do Seridó (RN)”; Caicó; 2005. 14
É através das histórias dos mais velhos, das dificuldades que enfrentaram - com orgulho - para manter a festa, dos atritos com os brancos na época da escravidão, que os jovens se motivam e se interessam pelo folguedo. O movimento que a memória tem, a função que ela carrega de detentora de conhecimentos, é o que faz com que o folguedo sobreviva em face da modernidade, essa devoradora do consumo de sentidos. Essa relação respeitosa entre jovens e velhos das comunidades, definidora do perfil do negro que conhece seus valores e orgulha-se de expô-los, proporciona-lhes a inspiração para manter uma tradição folclórica. Por isso, a maioria das comunidades quilombolas do Brasil vivem em irmandades, para se manter viva a vontade de perpetuar a cultura afro-brasileira. Os Negros do Rosário fazem parte de uma irmandade que é composta por membros de Jardim do Seridó e de Caicó, além dos negros da Boa Vista. Para Tinhorão15, o aglutinamento de irmandades vinha a calhar para a representatividade étnica. Os desfiles das procissões, um verdadeiro teatro ambulante, eram oportunos para o livre exercício das suas criações culturais, “com boa margem de liberdade para a afirmação psicossocial dos grupos componentes, embora sujeitos todos aos temas oficiais impostos pelo calendário religioso”. Inseridos nas camadas populares, os Negros do Rosário é um folguedo mantido originalmente, salvo algumas inserções que naturalmente surgem das cabeças mais jovens, como algumas contribuições para o visual do grupo. É uma união de arte e religiosidade que empolga uma multidão anualmente. Os negros que fazem arte no folguedo são partes de uma evolução musical que manteria no Brasil uma estreita relação com o desenvolvimento da Igreja Católica, como foi observado por Tinhorão (1975, p. 34). 15
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de negros, índios e mestiços. Editora Vozes: Petrópolis; 2ª ed.; 1975
De acordo com o autor, essa relação entre Igreja e Irmandade do Rosário aconteceu quando a Igreja forneceu ao povo maior oportunidade de lazer, através do grande número de dias santos respeitados com a suspensão do trabalho, o que durou, pelo menos 200 anos. Benjamim16 também se refere à quantidade de dias santos que beneficiaram as folgas dos negros no Brasil. Ele cita Henri Koster, em sua visita ao País, no século passado, que contou trinta e cinco dias santos, “além dos domingos que eram também guardados pelos escravos”. Apesar de não precisarem mais folgar uma única vez no ano, os negros de hoje comemoram essa liberdade conquistada com tanta euforia quanto os negros escravos. Afinal, religiosidade à parte, os Negros do Rosário de Jardim preferem definir o momento de se comemorar o folclore como uma grande e esperada festa.
FIGURA 11: JOSÉ FERNANDES DO AMARAL, CHEFE DA IRMANDADE DOS NEGROS FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
16
BENJAMIM, Roberto. Festa do Rosário de Pombal. Editora da UFPB: João Pessoa; 1977.
3.1. Antes da festa, a história
Numa perspectiva religiosa, vale ressaltar a história do folguedo dos Negros do Rosário como forma de expressão de fé dos escravos brasileiros do século 18. Eles criaram a irmandade em Caicó, no Seridó do Rio Grande do Norte nordestino. Esta tradição se popularizou e, em 1863, foi criada a irmandade da cidade vizinha, em Jardim do Seridó, no Rio Grande do Norte. A cidade surgiu enquanto propriedade com o nome de Conceição do Azevedo, pertencente a Antônio de Azevedo, em meados do século 19, localizada no município de Acari, a 245 km de Natal. Entrecortado pelos rios da Cobra e Seridó, o local prosperou e se impôs a consideração do Governo Provincial. Em 1858, chegou à categoria de Vila com o nome de JARDIM, sede do município desse nome, então criado e instalado solenemente no dia 4 de julho de 1859. Luiz da Câmara Cascudo consultou o amigo Felinto Elísio de Oliveira (1852-1944), que além do conhecimento sobre o município, era bisneto de Antônio de Azevedo Maia. Felinto o escreveu e disse que o nome Jardim surgiu devido “a vaidosa circunstância de se achar a povoação ao lado de um verdadeiro jardim, ao sopé, frondoso coqueiral e magníficas bananeiras e canaviais, em longa extensão, onde produziam tudo na época.” Em 27 de agosto de 1874, a Vila do Jardim subiu à categoria de cidade com o nome de JARDIM DO SERIDÓ. Finalmente, a Lei n° 453, de 27 de novembro de 1919, restaurou a comarca da cidade, que foi instalada em 8 de janeiro de 1920, com a posse do Dr. Manoel Bénicio de Melo Filho.17 De acordo com um estudo levantado por Adriana Medeiros de Macedo, historiadora que reside em Jardim, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário desta cidade foi 17
AZEVEDO, José Nilton de. Um passo a mais na história de Jardim do Seridó. Editora UFRN: Caicó; 1ª ed.; 1988. Cap. 1; pág. 49.
formada por dois grupos de negros quilombolas: os da Boa Vista (comunidade de Parelhas) e os de Jardim do Seridó. Dos séculos 16 a 19, um negro ser da mesma religião de um senhor, além de ser uma posição de status, seria uma maneira de ele conseguir liberdade ao menos na religião, conforme a pesquisadora. O grupo da Boa Vista foi o que mais conservou a afrodescendência, principalmente nos traços físicos. Isso se deve, segundo o historiador e secretário da Casa Paroquial de Jardim, Sebastião Arnóbio de Morais, pelos negros desta comunidade manterem a tradição da etnia pura. Somente há poucos anos os integrantes da comunidade abriram a exceção dessa regra porque algumas pessoas poderiam entender a não miscigenação como discriminação racial. Esses quilombolas moram há mais de 10 quilômetros de Jardim. Desde as primeiras apresentações dos Negros do Rosário na cidade notou-se a necessidade de um ponto de apoio para os habitantes da Boa Vista que participam da festa. Desde 1863, quando foi criada a irmandade de Jardim, os antepassados deixaram um patrimônio histórico-arquitetônico aos seus descendentes, a Casa do Rosário, localizada na Avenida Dr. Fernandes, no centro da cidade. Com 12 cômodos, entre salas espaçosas e três quartos também grandes, além de dois conjuntos de banheiros masculinos e femininos, o abrigo hospeda todos os negros da irmandade, mas quem a habita pelos três dias de festa são os negros da Boa Vista. A construção mantém as paredes do século 19, vive desocupada a maior parte do tempo e caso algum inquilino venha a morar nela, tem que a deixar livre todo final de ano para o abrigo da irmandade. Este ano, cerca de 200 quilombolas das duas comunidades se prepararam para o ritual e trafegaram pela Casa, além dos visitantes.
3.2. A Festa de Nossa Senhora do Rosário
Uma visualização da Festa de Nossa do Rosário se faz necessário para que possamos perceber a riqueza de simbologias que este folguedo carrega consigo, o que faz os negros participantes entrarem num êxtase profundo de fé e alegria por festejar sua ancestralidade negra. No dia 30 de dezembro de 2006, por volta das 8h00, os negros da Boa Vista chegaram a Jardim do Seridó (RN) de manhã cedo trazidos por um ônibus que a prefeitura de Jardim cedeu. Cerca de 100 negros – entre crianças, jovens, adultos e poucos velhos - desceram do ônibus tocando e dançando o Espontão.
FIGURA 12: ANTÔNIO FERNANDES (DODOCA), PORTA BANDEIRA DO FOLGUEDO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
Eles se hospedam na Casa do Rosário. Ao descerem do ônibus tocaram três “batuques” e recitaram as loas. O resto do dia foi marcado pela organização dos negros dentro da casa. Eles desarrumaram a bagagem e demarcaram seus lugares. Os negros adultos se espalharam pela cidade e se distribuíram nos bares para beber cachaça e visitar parentes e amigos.
As mulheres e crianças ficaram na casa. Enquanto as negras se revezam para preparar alimentos, arrumar e organizar, as crianças brincam dentro e na frente da casa, interagindo com outras crianças da cidade. O almoço é servido por volta de meio dia e todos comem espalhados por dentro da casa. Eles são gentis e oferecem a comida para quem vai visitá-los. A limpeza dos pratos é feita pelas mulheres com a ajuda dos jovens. Os adolescentes da Boa Vista passeiam pelas ruas de Jardim e logo são notados pela população devido a seus traços angolanos bem definidos. Enquanto o pessoal da Boa Vista se organiza de tal forma, os negros de Jardim por morarem em casas espalhadas na cidade – só se encontram em uma casa próxima ao Mercado Central na hora de se arrumarem para as apresentações. Ao final do primeiro dia, às18h00, houve a recitação de um terço religioso católico, em frente à Casa do Rosário. Sebastião Arnóbio, representante da Igreja Católica e mestre de cerimônia da Festa de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião, fez as apresentações e chamou o padre Joaquim para o início do evento religioso. Os andores bem ornados de flores - trazidos da Igreja Matriz para a Casa do Rosário na chegada dos negros à cidade - foram retirados para fora no momento do terço. O padre Joaquim fez as orações acompanhado de um representante dos negros. Duas integrantes da Boa Vista apresentaram as bandeiras de Nossa Senhora do Rosário, representada por uma coroa ornada com um terço, e de São Sebastião, um tronco com cordas e pingos de sangue que caem no chão fazendo brotar flores. Diego Marinho interpretou as bandeiras do folguedo com uma perspectiva semiótica: As bandeiras são ícones. O símbolo de São Sebastião é representado por um tronco, onde o santo foi assassinado por flechas. São Sebastião foi um mártir que morreu no Império Romano. Nesse tempo, se crucificavam as pessoas. Quando existia guerra, o
número de mortes era tão alto que não dava tempo de fabricar as cruzes e usavam os troncos das árvores para substituí-las.18.
Os símbolos da bandeira de Nossa Senhora também foram detalhados pelo historiador: O símbolo da santa, a coroa, tem diversos significados ou leituras. A coroa representa o poder do rei, porque ele a utiliza para caracterizar a sua existência na irmandade, a partir do momento que a irmandade elege pela corte real. Ela também representa a questão financeira, o poder econômico. É com ela (o instrumento feito de lata, usado pelos reis do folguedo) que os negros arrecadam dinheiro. No passado, essa coroa circulava em Jardim e na comunidade da Boa Vista, nas casas dos moradores. Um procurador a carregava (...) para arrecadar recursos financeiros para a festa. Outra leitura da coroa é que ela possui efeitos de religiosidade. Para os Negros do Rosário, a coroa tem poderes de cura. As pessoas fazem promessas, geralmente quando estão com dor de cabeça, para colocar a coroa. Todos os dias 1º do ano, após a procissão, acontece esse ritual de colocar a coroa na cabeça dos fiéis. Existem pessoas brancas que fazem também esse ritual. (...) A coroa é colocada como cumprimento de alguma promessa realizada, como um ex-voto.19
Logo mais, após o terço, as duas bandeiras foram hasteadas nos mastros do patamar da Igreja Matriz, próxima à Casa do Rosário.
FIGURA 13: TRONCO REPRESENTA S. SEBASTIÃO; COROA, NOSSA SRª ROSÁRIO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
18 19
GÓIS, Diego Marinho. Em entrevista em janeiro de 2007. Idem.
Poucas pessoas estiveram presentes no terço, que durou cerca de 40 minutos. Logo após, os dançarinos do Espontão, incluindo os de Jardim, já estavam se organizando na frente da Casa da Cultura20. O modo como os negros se apresentam varia de acordo com o momento. Por volta das 19h00, eles estavam devidamente fardados com camisetas de malha, pintadas com fitinhas de santos no ombro direito e calças de brim azul, além de bonés brancos com pinturas identificando o nome da festa e na lateral a frase: “tradição desde 1863”. Após o terço, foi iniciada a primeira apresentação musical e de dança do Espontão por duas ruas da cidade. O cortejo saiu da Rua Jesuíno de Azevedo (de frente à Casa do Rosário), entrou na rua da Matriz, onde existe a Igreja de mesmo nome. A única rádio da cidade, a Cabugi do Seridó, cobriu o evento ao vivo para as pessoas acompanharem o folguedo de casa. A dança do Espontão é coordenada por dois capitães de lança (coreógrafos). O capitão da Boa Vista é um senhor chamado Amaral e o de Jardim é o Antônio Capitão. São eles que escolhem os dançarinos, organizam e preparam o desfile. No primeiro desfile, os negros dançarinos saíram na frente puxados pelo portabandeira Dodoca, que levava uma bandeira branca com a loa “Viva Nossa Senhora” bordada com linha azul. Menor do que as bandeiras que são hasteadas, esta fica com ele em todas as apresentações de dança, dando graça aos passos e reverenciando à Santa. Logo em seguida, desfilam os andores com os santos e a Banda Euterpe Jardinense entre eles. Para carregá-los, a Igreja solicita a ajuda de oito homens - quatro em cada andor – que seguram a base nos ombros.
20
Prédio ao final da Av. Dr. Fernandes, onde era a Cadeia Pública da cidade até 2006.
FIGURA 14: BANDA EUTERPE NA FESTA DOS NEGROS FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
No desfile, os negros tocam apenas uma batucada. Quando param, a banda Euterpe toca uma música. Esse revezamento acontece em movimento pelas duas ruas até a chegada ao patamar da Igreja, onde os negros tocam mais uma batucada e terminam com as loas. Por volta das 19h30 começa o hasteamento das bandeiras, um importante ritual simbólico. Os negros se dirigem ao pé do mastro direito, apontam os espontões para ele e o padre começa a içar a bandeira de São Sebastião. Muita comoção é notada no olhar dos negros, que parecem em êxtase pela fé à Santa. Hasteada a bandeira, os negros repetem as loas e se viram para o outro mastro do lado esquerdo, onde começa a ser erguida a bandeira de Nossa Senhora do Rosário e a mesma emoção é sentida. FIGURA 15: HASTEAM. BAND. S. SEBASTIÃO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
FIGURA 16: HASTEAM. BAND. N. S. ROSÁRIO FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
Em seguida, os negros dançarinos fazem um corredor com os espontões apontando para cima e os outros entram em fila dentro da Igreja. É o momento de maior sincretismo religioso. Os negros com sua batucada e dança invadido o templo sagrado emociona e impressiona os presentes com sua alegria festiva e o som agressivo dos tambores. Ao final da batucada, eles recitam novamente as loas e alguns sentam nos bancos dianteiros reservados à comunidade. A Igreja criou esta estratégia para atrair os negros mais jovens e fazê-los ficar dentro da Igreja até terminar o culto aos santos católicos. Apesar disso, os negros mais jovens saem do templo. Parece que há uma rejeição aos ritos católicos. De acordo com alguns jovens, os ritos são extensos e eles preferem dançar e desfilar pelas ruas a ficarem atentos às palavras dos padres. É rezada uma missa solene. Ao final desta primeira missa, os negros saem da Igreja tocando e dançando o Espontão do mesmo modo como entraram: em fila, passando pelo corredor de lanças. Os negros voltam à Casa do Rosário com o ar de alívio e de expectativa. A festa continua em frente à Casa. Nesta noite, por volta das 20h00, foi preparada uma festa profana, associada a um bingo, visando à arrecadação de dinheiro para a irmandade.
No dia seguinte, às 8h00, os negros da Boa Vista começam a se organizar para as visitas nas casas das pessoas que os convidam como sinal de reverência ao ritual afro-católico e de pedidos de bênção para a casa visitada. O trajeto começa pela Casa do Rosário, onde os negros saem de forma mais descontraída, sem farda e com muita disposição de enfrentar o sol castigante do Seridó. As primeiras casas são as do Centro da cidade. Um comerciante muito antigo de Jardim, Biô, faz a primeira acolhida. Ao chegarem em frente à casa a ser visitada, os negros elevam os espontões como sinal de bênção às moradas. Neste local, os negros tocam uma batucada e param gritando as loas. O comerciante oferece refrigerante e dinheiro para os negros. Eles tocam mais uma batucada e entoam as loas na saída. A visita dura o tempo que o dono da casa quiser com as oferendas aos negros. Já o comerciante Enilson serviu, além de refrigerante, vinho para os negros. A quantidade de bebidas foi maior e os negros parecem ter gostado, pois entraram, sentaram para descansar e tocaram quatro batucadas. Neste dia, os negros passaram na casa do monsenhor Ernesto, ainda no Centro. Quando foi padre, Ernesto aprimorou o folguedo introduzindo a organização dos membros e o reinado, elemento fundamental para a permanência do folguedo na cidade. Os negros mais velhos contam que antes do então padre Ernesto (década de 1940), eles só tocavam o Espontão pelas ruas. Era um ritual desarticulado da comunidade que só queria mostrar a música e a dança dos Negros do Rosário e pedir dinheiro para a própria sobrevivência. Existia também somente a presença de homens no Espontão. O padre achou por bem organizar o folguedo (1950). Desde então, o reinado (parte que vou falar mais adiante) foi introduzido e as mulheres tiveram lugares de destaque como os cargos de juíza e rainha do ano e perpétuas.
Porém, neste dia da visita, o monsenhor Ernesto não estava em casa. Os negros demonstraram certa tristeza, mas, como eles não gostam deste sentimento, tocaram uma batucada, recitaram as loas e partiram para outra visita. Apesar de a cidade ser pequena, os negros caminham muito até chegarem ao bairro do Alto Baixo. Quando os negros chegam nesse bairro, por volta de 11h30, o tratamento das pessoas em relação a eles mudou. Os moradores foram mais receptivos e chegaram a dar lanche, além das bebidas. Os negros aparentaram estar em casa e se sentiram mais à vontade. Parece haver uma maior identificação de classe entre festejantes e apreciadores.
FIGURA 17: VISITA DOS NEGROS NAS COMUNIDADES FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor.
Neste horário, os negros mais jovens e as crianças já estão cansados e demonstram esmorecimento devido ao sol que está mais quente. O cortejo segue, sem
batucada e com uma caminhada lenta, pela BR 101 em direção à entrada da cidade. A próxima casa a ser visitada é a de Sotinha, um negro que fazia parte da comunidade de Jardim e que morreu há alguns anos. Nesta casa há uma demora devido a uma homenagem ao dono dela. Os negros comem e bebem e seguem pela Avenida Dr. Fernandes até a Casa do Rosário, onde encerram as visitas com a música e a dança do Espontão. A segunda apresentação acontece por volta das 19h00, é o reinado que acontece com o encontro das duas comunidades da Boa Vista e de Jardim. Os negros da Boa Vista se preparam para este encontro em frente à Igreja Matriz. É a parte mais emocionante do folguedo que caracteriza a força e a perpetuação da raça através da união de duas famílias afrodescendentes. É onde o sincretismo religioso também se acentua, pois essa união é abençoada pela Igreja Católica e pelos santos defensores dos negros através da coroação dos reis e rainhas do ano. Na coroação de 2006, a rainha negra era de Jardim e o rei, da Boa Vista. Há um revezamento entre as duas comunidades em nome da igualdade de representação comunitária no folguedo. Como este ano o rei foi da Boa Vista e a rainha de Jardim, no próximo ano será o inverso em sexo e comunidade. O ritual da coroação é o mais esperado devido à riqueza visual e de informações simbólicas. As pessoas seguem o cortejo do rei do ano da Casa do Rosário até a Igreja. Os vestidos das mulheres remetem aos das donzelas da corte portuguesa, são brancos e enfeitados. As coroas são de metal pesado cobertas com dourado. O porte do negro é majestoso e todos admiram sua beleza a desfilar pelas ruas. A imponência do cortejo faz todos caminharem com cuidado e atenção nos representantes da corte negra que passam pelas ruas.
Em meio ao reinado, estão os dançarinos do Espontão, agora fardados com calça azul e camiseta branca, além do tradicional boné branco. A roupa oficial da apresentação. Os Espontões sempre miram os céus na dança em sinal de reverência e fé aos santos que estão abençoando a festa dos Negros do Rosário. A música das três caixas, três flautas, um tambor longo e duas zabumbas estremecem os corações de quem assiste impressionado o desfile. Ao chegarem ao patamar, os negros de Jardim estão enfileirados do lado direito esperando a chegada da rainha a ser coroada. O rei parece ansioso como em um casamento. Quando os negros da Boa Vista chegam, os espontões são levantados e os negros de Jardim se misturam aos da Boa Vista fazendo um volume maior de negros arrumados e alegres, enfeitando o patamar da Igreja. A cerimônia de coroação é regida pelo mestre Sebastião Arnóbio que comunica alguns passos a serem seguidos pelos negros para o início da coroação. Os nomes dos novos reis são ditos e os representantes de 2006 transferem suas coroas aos novos reis do ano, que repetirão o mesmo ritual de quase um século ao final do ano seguinte. A banda Euterpe toca no momento da coroação. Os reis de 2006 permanecem com as roupas da corte e os novos reis vestem trajes normais. Durante o ano de 2007, cada rei ou rainha confeccionará seus trajes para a realização do reinado do ano vindouro. Cerca de 20 minutos se passaram e os negros, devidamente coroados, entram na Igreja da mesma forma como os dançarinos do Espontão entraram: por baixo de um corredor de lanças. A música parece mais forte neste dia devido à quantidade maior de negros tocando e de pessoas assistindo. A corte segue na frente, lenta e majestosamente. Os negros parecem se encher de orgulho ao ocuparem lugares de destaque dentro do templo católico. Cadeiras com
estofados vermelhos – como tronos reais – são distribuídos em duas filas laterais ao altar da Igreja para a corte negra sentar.
FIGURA 18: NEGROS DANÇAM DENTRO DA IGREJA CATÓLICA FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
Ao final da música, quando todos os negros entraram, as loas são repetidas com mais intensidade e as lanças são apontadas para o altar, onde os padres já estão preparados para o início da novena. No dia 1º acontece a terceira apresentação dos negros. Uma missa solene começa por volta das 10h00 e termina às 11h30. No Dia Mundial da Paz, os negros voltam à igreja com todo o cortejo, reinado e dançarinos, para a missa solene de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário. Como nas outras vezes, os indivíduos entram na igreja dançando e tocando o Espontão, passando por baixo da fila de espontões e ocupando as mesmas cadeiras aveludadas vermelhas destinadas ao reinado negro. Esta missa é mais elaborada, pois representa o momento católico mais acentuado na Festa de Nossa Senhora do Rosário. O reinado já está montado, quatro padres estão no altar e o início se dá com a leitura da Palavra de Deus por uma jovem negra, uma das rainhas do folguedo. Ao final seguiu-se um ritual tão tradicional quanto a própria dança e música do Espontão: a coleta de dinheiro. Em duas urnas colocadas no patamar da Igreja, os fiéis colocaram seus donativos que serão revertidos para os negros ao final da festa. No
momento da entrega da óstia, por ser uma festa especial dos católicos, fogos de artifício estouram fora do templo religioso; incensos grandes são queimados dentro da Igreja e a banda Euterpe Jardinense toca mais uns acordes no patamar da Igreja. Sempre dispersos do lado de fora, os negros vêem nesse ritual final a chamada para se reunirem dentro do templo novamente e começarem os festejos finais da missa. Lentamente, eles vão entrando e ocupando um pequeno altar ao lado do altar mor e começam a se enfileirar com os espontões repousados, em pé, na frente deles. No momento em que o padre sinaliza, os negros retornam ao altar, levantam os espontões para Nossa Senhora do Rosário e começam o mesmo ritual de crença deles. Os negros saem do altar em fila, do jeito que entraram. No patamar, a banda espera que o último negro saia e que os tambores do Espontão se calem para só então tocarem mais uma música e encerrarem a missa. Ao final, mais uma vez, os negros formam o desfile e saem pelo mesmo trajeto à Casa do Rosário, onde eles trocarão de roupas e as famílias da Boa Vista e de Jardim almoçarão juntas. A quarta apresentação é uma procissão que se inicia às 17h00 e encerra às 18h30. Todos os negros já se encontravam em frente à Casa do Rosário prontos e bem vestidos para a procissão. Como em toda festa religiosa seridoense, a procissão é o fechamento de todas as atividades católicas que aconteceram. È o ponto máximo do evento, onde os negros desfilarão pelas principais ruas de Jardim. A população, católica ou não, assiste ao folguedo. A procissão inicia-se no patamar da Igreja Matriz. As filas de devotos são divididas e distribuídas pelas representações religiosas, do mesmo modo como foi criada pelos cristãos há muitos anos. Na frente, vêm duas representações da Igreja Católica, a Irmandade de Santa Terezinha, formada por mulheres de vestidos de cor
branca, com colares de cor marrom, e o Apostolado do Sagrado Coração de Jesus, também mulheres de vestidos azul-marinho com colares vermelhos. Ainda nas filas da procissão, no meio, vêm duas filas dos dançarinos do Espontão, de Jardim e da Boa Vista, na mesma organização das outras apresentações: os dançarinos na frente e os tocadores por último. Em seguida, o reinado impondo sua majestade negreira a caminhar imperiosamente. Logo após, vêm algumas pessoas misturadas aos três padres e coroinhas católicos; depois vêm os participantes do grupo católico Encontro de Casais com Cristo (ECC) e a banda Euterpe Jardinense, que se reveza com a batucada dos negros. Os andores ficam no final da procissão, junto aos fiéis que somam quase cinco mil participantes. A procissão segue majestosamente pelas ruas Coronel Felinto Elísio, Frei Miguelinho, Avenida Dr. Fernandes e entra na Rua Jesuíno Azedo, onde, logo à frente, o cortejo volta à Igreja Matriz. No patamar, os andores são colocados numa mesa e o reinado se distribui, uma parte na frente de Nossa Senhora do Rosário, outra na frente de São Sebastião. Os Reis do Ano são Sandro Eduardo da Cruz, da comunidade da Boa Vista, e Suelma Iraci da Cruz, de Jardim. O ritual católico seguiu proclamado pelos padres. Os reis perpétuos, Enoque José da Trindade e Maria Etelvina Pacheco, ambos de Jardim, coroaram os reis do ano de 2008, Júlio César de Souza e Jardelly Lhuana da Costa Santos, que se mostraram emocionados durante a coroação. Neste momento, houve a prestação de contas. Na festa deste ano, os negros arrecadaram R$ 830,00 com leilões e bingos e R$ 2.599,00 com doações pessoais. Na visão deles, o lucro foi bom. Para a Igreja, esse valor vem decaindo. Teve ano dos negros renderem quase R$ 5 mil.
Depois disso, os agradecimentos se estendem aos que receberam os negros em suas casas, à Igreja e aos próprios negros, além da população que assistiu ao folguedo. O encerramento é feito às 18h30 com a retirada das bandeiras dos santos ao som do hino de Nossa Senhora do Rosário cantado pelos presentes e tocado pela banda Euterpe. Os negros se dividem com os Espontões levantados em direção às duas bandeiras desasteadas. Ao mesmo tempo, olham encantados, numa espécie de êxtase de fé, a queima de fogos de artifício em homenagem aos santos. Em seguida, os negros se viram e retiram as lanças para ouvirem os hinos de São Sebastião. Os mais jovens se mostram compenetrados a cada final de ato. Começa, então, o ritual em que a população interage com o sincretismo católico-africano. As pessoas comuns se apresentam para colocar as coroas dos reis do ano na cabeça. As loas dos negros são repetidas a cada final de ato. Os mais devotos e crentes pedem graças difíceis como curar alguém de uma dor de cabeça constante ou curar uma doença mais complexa. Segundo os historiadores da cidade, há relatos de que as graças foram conseguidas. Há também aqueles que colocam a coroa para “matar uma curiosidade” e os que pedem pertences materiais. Homens, mulheres e crianças são coroados pelos reis perpétuos.
FIGURA 19: A COROA DOS REIS NEGROS É UTILIZADA PARA PEDIR BÊNÇÃOS FOTO: N. Meira; ano: 2006. FONTE: Acervo particular do autor
Outra forma de interação dos negros com os participantes é receber a lança do Espontão de um negro do Rosário no ombro como sinal de bênção de Nossa Senhora do Rosário. A dispersão das pessoas põe fim à festa. A retirada dos negros se deu da mesma maneira das outras vezes. De volta à Casa do Rosário, todos dançaram, inclusive as mulheres quilombolas, que não participaram da dança do Espontão pelas ruas. Depois, os negros voltaram à Boa Vista
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante esta pesquisa, pudemos observar de perto os traços deixados pela memória dos mais velhos da comunidade quilombola da Boa Vista. É com este instrumento que os Negros do Rosário conseguem preservar uma tradição secular, mesmo tendo a maior parte dos integrantes do folguedo residentes na zona rural. Como todo grupo excluído socialmente do espaço urbano mais desenvolvido, não é o local que os impede de criar suas próprias formas de comunicação e de interação com um público específico. As inquietações de Beltrão (2004) sobre como se informavam as populações rudes e tardes do interior do nosso país, por quais veículos manifestavam o seu pensamento, a sua opinião, eram pertinentes. Pudemos constatar isso in loco ao presenciarmos a convivência diária do indivíduo pesquisado em seu meio rural com as ocorrências do cotidiano urbano, tendo que cumprir horário de trabalho, se locomover diariamente à cidade e estar em contato com um público de estudiosos e curiosos que querem aprender sua história. A simbologia apresentada no folguedo estudado nos serviu de base para descobrirmos os escritos interdisciplinares de Beltrão sobre a semiologia e o folclore, como o aspecto macro da Folkcomunicação.
Nas manifestações folclóricas, ao nosso ver, combinam-se elementos vivenciais não-artísticos, antes de tudo utilitários, com elementos estéticos, às vezes gritantes, sob formas tão complexas que o seu significado profundo escapa à observação de pesquisadores e analistas. Diante dessa realidade do folclore e da própria cultura é que temos de buscar aproximação entre a distinção clássica das categorias comunicacionais em lógica ou discursiva, quando se baseia na palavra ou repertório dos signos de extração conceitual e, por tanto, de compreensão racional, e alógica ou apresentativa, quando se promove por meio de um repertório de sons, gestos, cores, imagens, movimentos do corpo e outros signos extraconceituais (..) cremos que só pelo intermédio da semiologia conseguirão os comunicólogos e pesquisadores alcançar a meta almejada e entender a mensagem contida nas manifestações populares. (BELTRÃO, Luiz. 2004; p.: 69)
Além da comunicação visual nos atrair muito nesse projeto, preferimos trabalhar com um objeto de estudo próximo da nossa realidade. Como sou natural de Jardim do Seridó acreditei que poderia falar com propriedade de uma atividade cultural da qual fiz e faço parte como platéia e agora como pesquisadora. Assisto à apresentação dos Negros do Rosário desde pequena e sempre fui encantada pelo ritmo agressivo dos tambores. As brincadeiras da minha época de infância eram ingênuas e ainda não tínhamos tantos recursos eletrônicos de fácil acesso para a diversão. Quando estávamos nas ruas, era grande o número de crianças imitando os Negros do Rosário. Desde aquela época achava injusto as mulheres não poderem dançar junto com os homens. Brincávamos com os Espontões improvisados e miniaturizados, mas com as mesmas fitas de várias cores. A oralidade e os festejos dos Negros do Rosário estão presentes em Jardim de forma superficial hoje em dia, mas há muito tempo que o folguedo permanece inalterado, pelo menos na mentalidade dos mais velhos integrantes do Espontão. Observando as fotos expostas na Casa do Rosário, dos grupos da década de 1950 e de 1970, nota-se que houve alteração e introdução de elementos originais da época dos antepassados escravos. Descobrir que os Negros do Rosário conseguem se perpetuar perante os processos da modernidade através do instrumento invisível da memória foi uma das vertentes desse estudo. O fato do folguedo ter ganhado novos elementos, como a introdução da mulher no reinado, na década de 1980, não quer dizer que a manifestação perdeu. Ela, apenas, acompanha o tempo com os desdobramentos que os integrantes do grupo dão à manifestação artística. Por último, a educação, instrumento pelo qual a comunicação faz a interface disciplinar, merece uma maior contemplação. A forma como o mais velho transmite a
história da comunidade, através do aprendizado diário em convívio com a natureza e com os mitos, faz do mais jovem um aprendiz de guerreiro. Quando o menino quilombola nasce, ele aprende a pular antes de falar, dizem os mais velhos. E pular, entenda-se, é no compasso, no ritmo do Espontão. A partir desse jargão criado na comunidade mesmo, pudemos perceber que o respeito pela tradição do folguedo é freqüente. Tudo na comunidade é ensinado de maneira peculiar. Mas os elementos folk que mais integram os quilombolas com o folguedo são os instrumentos musicais, bumbo, tarol e pífano, e o próprio Espontão, a lança de guerra do desbravador das manifestações populares. Apesar da conotação extremamente festiva, Beltrão deixa visível que mesmo sendo um grupo folclórico, uma apresentação artística e um ensinamento às crianças da irmandade do Rosário, o folguedo também retrata o sofrimento e as formas de contornar a escravidão, descarregando nos passos astutos e ligeiros a ravia contida pelos ancestrais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livros: BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. Umesp: São Bernardo do Campo; 2004.
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MELO, José Marques de. Mídia e Folclore - O estudo da Folkcomunicação segundo Luiz Beltrão. Cátedra Unesco/Umesp de Comunicação: São Bernardo do Campo; 2001.
--------------- A esfinge midiática. Editora Paulus: São Paulo; 2004.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. Editora da Usp: São Paulo; 2006.
MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia cultural. Editora Vozes: Petrópolis; 1991. BARRETO, Luiz Antônio. Folclore – Invenção e Comunicação. Scortecci Editora: Aracaju; 2005.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Editora da Unicamp: Campinas; 3ª ed.; 1994.
SANTAELLA, Lúcia. Cultura das Mídias. Experimento: São Paulo; edição revista e ampliada; 2000.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de negros, índios e mestiços. Editora Vozes: Petrópolis; 2ª ed.; 1975. MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa Social – Teoria, método e criatividade. Editora Vozes: Petrólopes; 1994. AYALA, Marcos / NOVAIS, Maria Ignez. Cultura popular no Brasil – perspectiva de análise. Editora Ática: São Paulo; 2ª ed.; 4ª impressão; 2006.
Monografias: GOIS, Diego Marinho de. Entre Estratégias e táticas: enredos das festas dos Negros do Rosário em Jardim do Seridó – RN. UFRN: Caicó; 2006.
ANEXO Documento de criação da irmandade do rosário
APÊNDICE Entrevistas 1ª) Diego Marinho Góes, 25 anos, historiador e pesquisador da comunidade dos Negros do Rosário. Fez da monografia de graduação de História da UFRN a análise “Entre estratégias e Táticas: enredos das festas dos Negros do Rosário em Jardim do Seridó (RN)” (Caicó – 2005). Entrevista à autora em dezembro de 2006 e janeiro de 2007. Coroa de Nossa Senhora do Rosário Utilizada pelos rei e rainha, perpétuos e do ano. Têm diversos significados ou leituras que podem ser feitas acerca desse instrumento. 1. A coroa representa o poder do rei, porque ele a utiliza para caracterizar a sua existência na irmandade, a partir do momento que a irmandade o elege pela corte real. 2. A coroa representa também a questão financeira, o poder econômico. É com ela que os negros arrecadam dinheiro. No passado, essa coroa circulava em Jardim e na comunidade de Boa Vista nas casas dos moradores. Um procurador a carregava, mais um cargo da irmandade que ainda existe na comunidade. A coroa é passada ao procurador com o intuito dele arrecadar recursos financeiros para a festa. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário constituída de dois grupos, os negros de Jardim e os da Boa Vista. Esses grupos não formam apenas uma família em cada representação. Não existe só Caçotes na parte da irmandade de Jardim, mas também os Dantas. Os Caçotes participam principalmente da dança do Espontão, já os Dantas, no passado, monopolizaram os juízes e toda a corte (reinado). Esse é o grupo menos homogêneo da irmandade. Como na Boa Vista, que tem os Fernandes da Cruz e os Vieira. Todo o povo da Boa Vista se reúne em um grupo que é chefiado pelo capitão de lança ou chefe da
irmandade. Os Caçotes da mesma forma. O cargo de capitão de lança é perpétuo, passado dos mais velhos aos mais novos. Existe um ritual de passagem. É escolhido quando um capitão de lança está velho. Ele próprio procura o substituto. O capitão de lança geralmente é um negro que se destaca na música ou na dança do Espontão. A lança do Espontão é diferente para o chefe, é bem maior para simbolizar o comando do grupo. Em Jardim, o senhor Ludugério, pai de Sotinha, que foi capitão durante muito tempo, escolheu o seu substituto e o treinou durante alguns anos até passar o cargo para ele. Ritual de coroação dos reis (encontro das duas comunidades dos Negros do Rosário) O encontro se dá porque as comunidades se reúnem para se apresentar em dois locais diferentes da cidade. O grupo da Boa Vista sai da Casa do Rosário enquanto o grupo de Jardim sai de uma casa da família nas proximidades do mercado central. Nesse momento, dá para perceber que são grupos distintos. É no patamar da Igreja Matriz que acontece o entrelaçamento dos dois grupos. Geralmente, eles saem na mesma hora e chegam juntos da Igreja, dando-se o encontro. Antes do encontro, da Boa Vista sai a rainha perpétua conduzindo o rei do ano. E do outro ponto da cidade sai o rei perpétuo do Grupo de Jardim conduzindo a rainha do ano. No momento do encontro, o rei perpétuo apresenta a rainha ao rei do ano. Eles se entrelaçam formando uma única irmandade, de Nossa Senhora do Rosário. O reinado é constituído pelos dois grupos. Em um ano é constituído o reinado de Jardim e, no outro, o da Boa Vista. Símbolos das bandeiras São ícones. O símbolo de São Sebastião é representado por um tronco, onde o santo foi assassinado por flechas. São Sebastião foi um mártir que morreu no Império
Romano. Nesse tempo, se crucificavam as pessoas. Quando existia guerra, o número de mortes era tão alto que não dava tempo de fabricar as cruzes e usavam os troncos das árvores para substituí-las. As roupas O reinado se apresenta com uniforme branco, as mulheres de vestidos e os homens de terno. Para distinguir as funções, eles usam faixas com os nomes de reis, juízes, escrivãos e os demais cargos. Diego constatou que esse reinado é apenas simbólico, pois, por exemplo, o escrivão é semi-analfabeto, sabendo apenas assinar o nome. São cargos que eles não assumem de fato, pois, no caso do escrivão, era para ele escrever todos os livros da irmandade. Cargos Os negros escolhem quem vão ocupar os cargos da irmandade que serão ocupados somente por negros. No caso da rainha do ano, não pode se ruma pessoa qualquer, tem que ser uma jovem de boa conduta e virgem. São pessoas que têm um passado de concentração, entendimento e amor ao folguedo. O capitão de lança, por exemplo, tem de ser um negro de muita responsabilidade, pois ele é quem organiza a dança e música do Espontão. São pessoas interessadas que se destacam dentro do grupo. A irmandade está sob a guarda dos mais velhos, que legitimam a festa. Se a irmandade existe hoje e se ela é reinventada constantemente, isso se dá em virtude dos mais velhos, que são detentores do próprio conhecimento da história dos negros. É o mais velho que observa e é ele que escolhe o jovem para participar do reinado. O mais velho passa algumas informações de como o mais jovem deve proceder. Por exemplo, Antônio, capitão de lança da comunidade de Jardim, é reconhecido na cidade como Antônio Capitão. Ele recebeu a lança do antigo capitão Ludugério, que
estava doente, o chamou em casa e pediu para que Antônio o substituísse. Ele teve que esperar Lufugério morrer para poder assumir o cargo. O rei e rainha perpétuos, no passado, eram monopolizados pela família Dantas. Diego se baseia nos depoimentos de Viturina Dantas, que foi rainha perpétua da irmandade. O pai dela era um homem muito idoso que detinha todo o conhecimento da irmandade. Já por ter recebido do pai o cargo de rei perpétuo, o pai de Viturina escolheu para substituí-lo um senhor chamado Pelé, que era irmão adotivo dela. Pelé era criança quando foi escolhido para ser rei perpétuo. Ele não pode assumir o cargo porque era criança. Antônio, outro irmão de Viturina, ficou no lugar de Pelé até que ele pudesse ser rei. É na fala do velho que está o poder de transmissão e constituída a verdade. O efeito de poder estava na fala do velho que passou a responsabilidade do reinado ao filho adotivo. Pelé cresceu e foi rei apenas um ano. Aconteceu um trágico acidente com ele, uma casa desabou sobre ele. A cabeça de Pelé, que ia ser coroada, foi esmagada nesse acidente. Dona Viturina conta que esse acontecimento marcou de tal forma a família Dantas que eles saíram da irmandade. Eles acreditavam que essa transmissão não era abençoada. Na comunidade da Boa Vista, todos respeitam a palavra dos mais velhos, como eles respeitam também a palavra do capitão de lança. Se acontecer algum problema durante a festa e o capitão disser que é para todo mundo ir embora, eles concordam e todos vão. Porque o capitão de lança é legitimado responsável por todos e é a palavra dele que conta como verdade absoluta. Na comunidade só existe um único cargo que é assumido por um branco, o de tesoureiro. Para que o tesoureiro seja aceito, é necessário que todo o grupo o aprove legitimamente. Um exemplo disso é a história de Geraldão, um ex-militar que foi
tesoureiro durante muito tempo na irmandade. Quando ele foi escolhido tesoureiro, todo o grupo teve de aceitar. A Igreja não pode impor a vontade dela nessa escolha. Transmissão de conhecimento O capitão de lança é responsável pela dança do Espontão. Como ele é escolhido dentre as pessoas que já participam desde criança, ele tem de ter um certo conhecimento sobre a festa com um todo, pois ele já observa o folguedo há muito tempo. No passado, era constituído apenas por pessoas adultas. A entrada de jovens é cosa recente. Nas fotos das décadas de 1940 a 1960, dá para observar que não há crianças ou jovens na apresentação. A foto da década de 1940 só tem homens velhos. As mulheres assumiam os cargos da corte. Recentemente, os negros perceberam que os mais velhos estavam todos morrendo, daí a necessidade de se colocar os jovens e as crianças. Se todos os velhos morressem, o grupo acabaria. A preocupação em manter uma tradição fez com que a Igreja conversasse com o capitão de lança e eles inserissem as crianças na irmandade. Dona Inácia é considerada por Diego uma guardiã da memória do grupo. Ela contou que, na época em que o padre Ernesto ainda atuava na cidade. Ele observou que o grupo estava pequeno e conversou com o tesoureiro Sebastião Agustinho e fez a proposta de colocar as crianças para que eles já fossem criando gosto pela irmandade. Foi uma sugestão de padre Ernesto, não uma imposição. Por isso, o capitão de lança teve de ser consultado e o grupo, que apoiou a idéia e hoje as crianças e adolescentes participam mais do folguedo do que os velhos. A tradição é reinventada constantemente, por isso não há perigo de se extinguir. Hoje, é comum o comentário de que as crianças da Boa Vista já aprendem a pular a dança do Espontão antes de andar. É observado na fala dos pais o orgulho em dizer isso.
O porta-bandeira da Boa Vista, Dodoca, é um dos destaques entre os mais jovens. Mas já diz que o filho dele dança melhor do que ele. O incentivo é o orgulho, expresso em palavras, de ver o rebento participando e eles poderem ensinar a dançar. Isso vai mantendo a tradição há 163 anos. Reunião de mesa A irmandade de Nossa Senhora do Rosário realiza no dia 1º uma reunião chamada mesa. Os negros deliberam tudo o que aconteceu na festa. Os negros não sabem o significado da palavra mesa, apesar de praticarem a reunião há mais de um século. Essa reunião é restrita aos negros, nem o padre eles aceitam que participe. Há alguns anos, os padres quiseram impor as suas presenças na mesa e aconteceram vários problemas. Mas os negros ficaram com o direito de fazer a reunião secretamente. A questão das bebidas é um dos assuntos mais recorrentes. A Igreja proíbe que os negros participem do folguedo quando bebem. Para os religiosos, os negros deviam fazer jejum alcoólico. É nessa reunião que eles discutem com os mais teimosos para eles não beberem, no intuito de estarem em união com a Igreja. Para alguns negros, o sentido da festa é o de festejar somente. Para outros não, tem outro sentido além desse, o de se concentrar na fé. E esses mais religiosos tentam a todo custo mudar os comportamentos dos mais teimosos. Na mesa, toda a comunidade sabe o que acontece, uma vez que ela acontece com as portas abertas, mas somente os negros podem participar. O único branco que está lá é o tesoureiro, que é quem comanda a reunião de mesa, onde também acontece o pagamento da irmandade. Cada membro da irmandade paga uma anuidade e é nessa mesa que acontece a prestação de contas, bem como o dinheiro arrecadado durante a festa.
Toda reunião é lavrada uma ata, um documento importantíssimo para os pesquisadores dessa festa. Toda a corte assiste a apresentação da ata, feita pelo tesoureiro, ao final da reunião e todos assinam o documento, caso haja concordância geral entre os participantes sobre os assuntos debatidos.
2ª) Maria das graças Fernandes, 32 anos, coordenadora do projeto Quilombinho,
da
prefeitura
de
Parelhas,
e
presidente
da
Associação
de
Desenvolvimento da Comunidade da Boa Vista (Adecob). Possui Ensino Médio completo e muita curiosidade em aprender sobre a história da comunidade onde nasceu, se criou e vive até hoje. Entrevista aberta à autora em dezembro de 2006 e janeiro de 2007.
“A primeira idéia foi construir a capela, um sonho que a comunidade tinha a mais de 15 anos. Corremos atrás de patrocínio pedindo ajuda. Surgiu a idéia de realizar festas na comunidade. Em 2006, fomos convidados para a festa de Serra Negra (RN). O grupo sempre é convidado para ir a outras cidades, como Parelhas (RN). E os dançarinos do Espontão vão, mas sem o reinado. A festa de Nossa Senhora do Rosário só era realizada na cidade. Há três anos, nós levamos para a comunidade da Boa Vista e hoje ela é realizada em outubro, anualmente. E tem o João Pedro, em julho, que recriamos de maneira diferente, com apresentações culturais. Levamos apresentações de quadrilhas, casamentos matutos etc. de outros lugares e a festa se tornou tradicional. A partir da elaboração dessas festas, nos unimos para a criação da capela, que ficou semipronta no final de 2006, faltando o acabamento final. A comunidade é que está fazendo com a ajuda privada. Com esses eventos bem organizados, evoluímos. Temos um trabalho social na comunidade de aulas de capoeira e informática para crianças. Em
2006, surgiu a idéia de formar um grupo de dança africana feminino. Falta muita coisa ainda para se conseguir, mas há a conscientização de que tudo depende da comunidade. Às vezes a gente culpa os governos, mas a gente tem que fazer primeiro a nossa parte. A partir do momento que a comunidade é acomoda, não vai atrás de objetivos, ninguém vai se interessar em fazer isso pela gente. No início tive que enfrentar o machismo do meu marido (o porta bandeira Antônio Fernandes, o Dodoca). Quando comecei a viajar para encontros negros em Brasília (DF), meu marido impôs um clima de ciúmes. A partir do momento que a gente começa a participar desses encontros, surge a vontade de fazer alguma coisa para mudar a realidade acomodada em que vivem a maioria das comunidades quilombolas. A gente vê que tem gente passando pela mesma dificuldade, mas lutando pelo mesmo ideal. Até os idosos mostram alguma coisa, porque lá eles exigem mesmo. Alguns quilombolas não sabem aproveitar as oportunidades. Mas é compreensível, porque eles vivem no mesmo canto a vida inteira. Desse jeito, é fácil acreditar que tudo tem que cair do céu, que você não precisa fazer esforço algum para conseguir melhorias de vida. Mas, a partir do momento que você sai, começa a conhecer outras realidades, dá para ver que a comunidade da Boa Vista é privilegiada. Nós temos água potável, casas de alvenaria, temos luz elétrica, todas a crianças estudam. Aparece muitas oportunidades para a gente, mas às vezes não são aproveitadas por algum receio. A gente sabe que existe o racismo, talvez isso iniba um pouco os meus irmãos. Por isso, a gente passa muito para os adolescentes que eles têm que estudar. Se ele for desvalorizado pela cor, em algum momento ele vai ser valorizado pelo o que ele é. Hoje existe preconceito com todo tipo de diferença, mas nem por isso a gente tem que baixar a cabeça. A gente tem que levantar a cabeça e correr atrás dos nossos objetivos.
A minha vida era diferente. Eu era dona de casa, cuidava do marido e dos filhos. Em 2004, primeiramente, eu fui convidada para participar de um encontro negro em Natal (RN). Eu achava que ia ser uma única vez. Antes de ser presidente da Adecob, eu fui convidada para esses encontros. Eu comecei a gostar, a perceber a luta negra, e fui amadurecendo. Notei que somos acomodados, porque eu comecei a perceber que outros negros, quilombolas, estavam lutando. Os depoimentos são iguais. A nossa luta pela sobrevivência é igual. Todos brigam por educação e respeito. Você ouve depoimentos indignantes. Negros que foram expulsos por prefeitos. Para perceber isso, não é preciso ir tão longe. Eu visitei a comunidade dos Negros do Riacho, de Currais Novos (RN) e fiquei horrorizada com a pobreza do local. O caminho é espinhoso. A partir do momento que você começa a trabalhar com pessoas de variadas mentalidades, dá muito trabalho entendê-las, agradá-las. Tem dias que eu deito na cama e penso em desistir. Começo a chora e digo: „vou desistir‟. Mas minha família, minha mãe, me dá muito apoio e dizem para eu não desistir. Não desisto também porque vem uma força interior muito forte que me força a continuar. Eu penso muito na construção da capela. Foi um sonho da comunidade que construímos juntos. Quando eu fui eleita Rainha do Ano da Festa de Nossa Senhora do Rosário, recebi a coroa e disse para mim mesma que eu não ia ser rainha só por ser rainha, mas eu ia construir a capela. Essa construção é tudo para mim. Quando é período de festa, eu passo duas três noites sem dormir, perco peso trabalhando. A carga é quase somente para mim, pois sou eu que organizo há tempos essa festa. Eu consegui o apoio de pessoas importantes, que confiam em mim e isso me motiva a continuar. Porque muitas vezes a pessoa se esforça e não é valorizada por isso, mas eu consegui esse reconhecimento. Em tudo eu me envolvo, seja organizando as coisas, seja participando de reuniões, encontros ou recebendo as pessoas que querem conhecer a comunidade. Por
ser a primeira mulher da comunidade a estar à frente de tudo, às vezes, eu sou perseguida. Mas por eu conseguir as coisas, correr atrás do que quero, não ser acomodada, não ficar esperando os acontecimentos e fazer, é que a gente está conseguindo fazer tudo o que fazemos. Em todo o Seridó, a comunidade da Boa Vista está sendo reconhecida, é a melhor nos eventos afros que realiza. Estou no segundo ano de mandato. Quando terminar, eu vou dar uma pausa. Eu acho que tem alguém que vai me substituir. Todo mundo é capaz de fazer. O que precisa é ter perseverança. É um trabalho muito árduo, mas quando há amor no fazer, você consegue ultrapassar os obstáculos. As pessoas perguntam como vai ficar a Adecob. Alguém vai ter que dar continuidade. Existem pessoas capazes para levar o projeto adiante. Nunca pensei em preparar alguém para ficar no meu lugar. Apoios A comunidade recebe apoio da Secretaria de Assistência Social de Parelhas (RN) com cursos profissionalizantes fornecidos pela Casa da Família. Os Quilombinhos quando precisam de transporte, eles fornecem. De Jardim, recebemos o apoio somente durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Tem também o apoio do Governo Federal, que deu 13 máquinas industriais de costura, por estarmos no projeto que a comunidade está tentando levar a diante. Tem também o projeto pela Sepi (que trabalha com a raça negra). Eu e mais duas pessoas da comunidade participamos de uma oficina de projetos em Recife (PE). Havia vários projetos a serem escolhidos para as comunidades quilombolas. A gente escolheu esse de corte e costura. A gente recebeu o equipamento quando já estava descrente em iniciativas como esta. Um ano depois, as máquinas chegaram na comunidade. O equipamento passou quase um ano parado no Grupo Escolar da comunidade porque não tínhamos conhecimento de como operar e utilizar as máquinas de forma produtiva para o nosso sustento. O projeto Casa da
Família foi quem capacitou 22 pessoas com um curso. Depois disso fizemos alguma peças, mas paramos de novo. O grupo de costureiras fez um empréstimo para adquirir matéria-prima (linha, tecido etc.). Já fizemos mais peças e estamos vendendo à comunidade. Um outro passo é conseguir um espaço em Parelhas para mostrarmos nosso trabalho. Esse é um projeto que eu acredito muito e vou batalhar até o fim por ele porque é nosso. Não é um projeto governamental que vem e depois acaba. Se depender da gente, da nossa força de vontade, temos uma fonte de renda. Por isso que sou taxada de chata, porque eu falo que é muito comodismo não levarmos um projeto desse adiante. As máquinas estão lá, tem pessoas capacitadas e hoje só resta cinco ou seis delas produzindo. Para que as coisas dêem certo, tudo depende muito da gente, da nossa força de vontade. A próxima batalha da comunidade é a construção de uma quadra poliesportiva. A Adecob em parceria com a prefeitura de Parelhas, já está enviando os projetos tanto para a quadra quanto para um centro cultural, que é um sonho meu também. A comunidade é muito visitada pelos pesquisadores e estudantes. E já que ela é muito requisitada pela cultura, seria interessante ter um local para exposições de fotos, a história da comunidade, com uma pessoa que pudesse atender a quem procurasse. Tem um projeto para ser aprovado que vai beneficiar o grupo Os Quilombinhos para adquirir recursos e investir em instrumentos e vestuário. Receberam algumas cartas sinalizando positivamente. A comunidade ainda está na luta para conseguir um telefone público. Antes era muito difícil a comunicação da comunidade. Quando adoecia alguém, eles se deslocavam para uma comunidade próxima, que é o Juazeiro, onde tem telefone público, para poder ligar e pedir um serviço médico ou transporte. Hoje, com o advento da telefonia móvel, as pessoas
conseguem se comunicar com mais facilidade, pois alguns moradores têm aparelhos celulares. Mas o telefone público é necessário. A comunidade enviou um ofício para a Telemar solicitando o serviço, mas o pedido foi negado porque a população ainda é pequena para „precisar do serviço‟. Casa do Rosário A escritura é em nome da comunidade. Teve uma interferência da Igreja Católica de Jardim, que se dizia proprietária do imóvel, mas o patrimônio é nosso. A comunidade A Boa Vista era um área bastante grande, mas as pessoas não-negras foram se apossando. Hoje a gente se encontra em uma parte muito estreita. A preocupação começou porque a gente não sabia onde começava nossas terras e aonde terminava. Quem sabia dessa delimitação eram os quilombolas mais velhos, que estão morrendo. A Adecob encaminhou um ofício para o Incra pedindo a demarcação dessas terras em 2005. Já tem dois anos de processo, mas está avançado. O Incra tinha um relatório muito antigo e teve muita modificação. Para ser um processo mais seguro, eles pediram a ajuda do pessoal da universidade. Agora, essas pessoas estão pesquisando a área para fazer um relatório mais atualizado. A professora Juli, da UFRN, está desempenhando essa pesquisa e um trabalho antropológico da comunidade. Para nós vai ser muito importante isso, pois vamos poder conhecer um pouco mais da história da comunidade. Economia Os homens trabalham na cerâmica, tem alguns aposentados. A agricultura só é utilizada para o consumo. A terra não é boa para plantar e não dá para produzir muito. Às vezes, a produção agrícola nem dá para o consumo, pois as terras estão ficando mais secas. Transporte
Nós nos deslocamos para o trabalho a pé ou de bicicleta. Existe ônibus pela manhã e à tarde para os alunos que estudam em Parelhas. Os que estudam no povoado de Juazeiro, vão a pé. Na Boa Vista tinha escola e creche, mas por falta de alunos e pela estrutura muito defasada, foram desativadas. Como o povoado do Juazeiro tinha uma estrutura bem melhor, as aulas passaram para lá. Fábula sobre a criação da festa Eu ouvia meus avós contarem que um rei encontrou um rosário e em seguida o perdeu. Ele mandou um dos escravos encontrar o adorno e lhe prometeu coroar os escravos por três dias em troca do achado ou, se ele não encontrasse o rosário, ele teria a cabeça cortada. O escravo, muito aflito, saiu à procura do rosário. De repente, o rosário apareceu na frente dele. Ele levou o achado ao rei, que teve de coroá-lo pelo pacto estipulado.